1 MARIA LUIZA VELOSO MARIANO DA CONSTRUÇÃO À DESCONSTRUÇÃO: A MODELAGEM COMO RECURSO CRIATIVO NO DESIGN DE MODA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO MESTRADO EM DESIGN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU ORIENTADORA: Profª Dra. Kathia Castilho UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI SÃO PAULO 2011 2 MARIA LUIZA VELOSO MARIANO DA CONSTRUÇÃO À DESCONSTRUÇÃO: A MODELAGEM COMO RECURSO CRIATIVO NO DESIGN DE MODA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Design Mestrado da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Design. Orientadora: Profª Dra. Kathia Castilho São Paulo – SP 2011 3 M286d Mariano, Maria Luiza Veloso. Da construção à desconstrução: a modelagem como recurso criativo no design de moda. Maria Luiza Veloso. – 2011 139f. il.; 30 cm. Orientadora: Kathia Cunha Castilho Dissertação (Mestrado em Design) – Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2011. Bibliografia: f.135-139 1. Modelagem. 2. Design de moda 3. Metodologia 4. Processo criativo. I Título. CDD 741.6 4 UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MARIA LUIZA VELOSO MARIANO DA CONSTRUÇÃO À DESCONSTRUÇÃO: A MODELAGEM COMO RECURSO CRIATIVO NO DESIGN DE MODA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Design – Mestrado, da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Design. Aprovada pela seguinte Banca Examinadora: Profª Dra. Kathia Castilho Orientadora Universidade Anhembi Morumbi Profª Dra. Marizilda Menezes Avaliadora externa UNESP - Bauru Profª Dra. Márcia Merlo Avaliadora Interna Universidade Anhembi Morumbi São Paulo, março/2011 5 À Fernanda Luisa Veloso, minha irmãzinha (in memoriam). 6 Agradecimentos: Como acredito que todo bom trabalho só pode ser realizado com o apoio e colaboração da família, amigos e colegas, aqui estão meus sinceros agradecimentos a: Nair Luisa Veloso, minha mãe, que me ensinou a magia de transformar tecidos em roupas e me deu amor e condições materiais para que eu pudesse ser quem eu sou. Sérgio Mariano Júnior, meu marido e amigo, por ter sido compreensivo e paciente. Você é o principal responsável por eu ter concluído esse trabalho. Profª Dra. Kathia Castilho que, sempre muito carinhosa, me orientou com sabedoria e generosidade. Prof Dr. Jofre Silva que, no início do mestrado, me incentivou a escrever, quebrando um bloqueio que quase me fez desistir. Professoras Doutoras Mônica Moura, Márcia Merlo e Maria Lúcia Bueno pela maneira generosa com que compartilham o conhecimento conosco. Antônia Costa, pela paciência e prontidão com que ajuda todos os alunos do mestrado. Gustavo Reis, Annelise N. da Fonseca, Elá Camarena, Thaiza C. Martins, Thaisa V. Sena, Marienne Vidutto, Kenny Z. Marques, Cristiano Leão, José Henrique Penna e todos os colegas com quem compartilhei essa experiência inesquecível. Karina Emi Sumiya, colega de trabalho que compartilha comigo o mesmo amor pela modelagem. Sem seu inestimável apoio, eu não teria concluído essa importante etapa para minha vida acadêmica e pessoal. Graziella Martins Cavalcanti, pelo entusiasmo com que me ajudou a organizar toda a parte gráfica e iconográfica da pesquisa. Raquel Valente, coordenadora da Faculdade Santa Marcelina, que me incentivou a começar e muito me apoiou com seu conhecimento e compreensão. Colegas da Faculdade Santa Marcelina, Glória Motta, Vagner Volpi, Mariana Rocha, Marly Menezes, Yaeko Yamashita, Renata Zaganin, João Braga e Miti Shitara. A contribuição de vocês foi fundamental para a conclusão deste trabalho. Léa Pinez de Paulo Villaça, por ser a irmã que Deus me deu em forma de amiga. Marcos Roberto Píscopo, pelos conselhos e apoio durante a pesquisa. Ângela Aparecida, por cuidar do meu bem mais precioso durante o tempo em que estive ausente. Todos os amigos que, graças a Deus, são muitos e bons. Obrigado por não desistirem da minha amizade durante a ausência. 7 Escolha um trabalho que você ame e não terás que trabalhar um único dia em sua vida. Confúcio 8 Resumo MARIANO, M.L.V. Da Construção à Desconstrução: a Modelagem como Recurso Criativo no Design de Moda. 2011. 139f. Trabalho de Conclusão de Mestrado – Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2011. O design de moda contemporâneo fundamenta-se numa série de etapas, dentre elas está a modelagem. Processo que determina a transformação dos materiais planos em formas tridimensionais adaptáveis ao corpo humano, a modelagem do vestuário está no cerne do design de moda pela importante contribuição para a configuração de seus produtos, por determinar a reprodutibilidade do vestuário, mas principalmente por ser uma ferramenta capaz de potencializar o processo criativo. Portanto, a presente pesquisa busca investigar a adequação dos tecidos ao corpo humano levando em consideração as características de ambos, os métodos e técnicas compreendidos pela modelagem para atingir tal fim, o desenvolvimento tecnológico implícito na história da indumentária e, por fim, busca exemplificar a teoria com a análise detalhada de peças de estilistas e designers que fundamentaram suas obras na construção diferenciada do traje. Com isso, a pesquisa visa contribuir para teorizar uma prática antiga e fundamental para o desenvolvimento de novas formas vestíveis, mas que na maioria das vezes fica ofuscada pelo brilho da moda. Palavras-chave: Modelagem, design de moda, metodologia, processo criativo. 9 Abstract MARIANO, M.L.V. From Construction to Deconstruction: Patternmaking as a Creative Resource in Fashion Design. 2011. 139f. Masters’ Degree Dissertation – Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2011. The contemporary fashion design is based on a series of steps, among them is the patternmaking. Process that determines the transformation of flat materials into threedimensional shapes adaptable to the human body, patternmaking is at the heart of fashion design for the important contribution to the configuration of their products, by determining the reproducibility of clothing, mainly for being a tool able to enhance the creative process. Therefore, this research aims to investigate the suitability of the tissues to the human body taking into account the characteristics of both, the methods and techniques understood by patternmaking to achieve this end, technological development implied by the history of costume and finally, seeks to exemplify the theory with detailed analysis of parts of stylists and designers who based their works on the distinguished construction of costume. Therefore, the research aims to contribute to theorize a very old practice, fundamental to the development of new forms wearable, but that is usually overshadowed by the brilliance of fashion. Keywords: Patternmaking, fashion design, methodology, creative process. 10 Sumário LISTA DE FIGURAS 11 INTRODUÇÃO 14 1 FORMA E MATÉRIA 1.1 1.2 2 3 4 A forma “Corpo” 19 21 1.1.1 A anatomia humana 24 1.1.2 A proporção e antropometria 30 1.1.3 O movimento 35 1.1.4 A pele 37 A matéria têxtil ANÁLISE DA MODELAGEM NA HISTÓRIA DA INDUMENTÁRIA 37 44 2.1 As origens 44 2.2 O papel da modelagem para o desenvolvimento da moda 51 2.3 A industrialização no século XIX 60 2.4 As inovações da alta-costura 62 2.5 O prêt-à-porter 72 A MODELAGEM NO DESIGN DO VESTUÁRIO 75 3.1 Processo, método e técnica? 80 3.2 O desenvolvimento do produto de moda 82 3.3 A modelagem e seus métodos 86 3.3.1 Modelagem bidimensional 86 3.3.2 Modelagem tridimensional 99 3.3.3 A integração dos métodos 105 A MODELAGEM COMO PROCESSO 109 4.1 O fenômeno japonês 111 4.2 A desconstrução de Martin Margiela 115 4.3 A modelagem criativa no design de moda nacional 120 4.3.1 Walter Rodrigues 121 4.3.2 Huis Clos 127 CONSIDERAÇÕES FINAIS 132 REFERÊNCIAS 135 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 139 ANEXOS 140 11 Lista de figuras Figura 1 - Espartilho de cetim de seda, 1880 24 Figura 2 - Crinolina, 1865 23 Figura 3 - Planos anatômicos do corpo 25 Figura 4 - Vestido assimétrico - Halston, 1976 27 Figura 5 - Como surgem as pences 29 Figura 6 - “Doríforo”, “Apoxiomeno” e “Apolo de Belvedere” 31 Figura 7 - “Homem Vitruviano” de Leonardo Da Vinci 32 Figura 8 - Proporções no desenho de moda 34 Figura 9 - Movimentos do corpo 36 Figura 10 - Trama (branco) e urdume (azul) 38 Figura 11 - Padrões de entrecruzamento da trama e do urdume 38 Figura 12 - Fio reto (no urdume), fio transversal (na trama) e viés 40 Figura 13 - Construção da malha jersey 40 Figura 14 - Aviamentos variados 41 Figura 15 - Vestido de tecido fluido de Madeleine Vionnet 42 Figura 16 - Vestido de gazar de Cristobal Balenciaga 42 Figura 17 - Representação de mulheres preparando lã no século VI a.C 45 Figura 18 - Exemplo da colocação do peplo 46 Figura 19 - “Deusa” adorada pelos cretenses 47 Figura 20 - Tipos de túnicas 49 Figura 21 - Armadura medieval metálica 50 Figura 22 - Gibão de Charles de Blois e detalhe do abotoamento 53 Figura 23 - Modelagem do gibão de Charles de Blois 54 Figura 24 - “Mulher de vestido vermelho”, Moroni, 1560 56 Figura 25 - “O Alfaiate”, Moroni, 1570 56 Figura 26 - Estudos de encaixes no Libro de Geometria, Pratica y Traça 57 12 Figura 27 - Alfaiataria do século XVIII 58 Figura 28 - Oficina especializada na confecção de espartilhos 59 Figura 29 - Primeira máquina de costura 61 Figura 30 - Vestido com recorte “princesa” de Charles Frederick Worth, 1892 65 Figura 31 - Chanel usa calça e blusa listrada 67 Figura 32 - Saia, blusa e cardigã de malha 67 Figura 33 - Vestido baseado em quatro quadrados de musseline de Madeleine Vionnet 68 Figura 34 - Vestido enviesado e sua respectiva modelagem 69 Figura 35 - Túnica em gazar 71 Figura 36 - Casaco de seda fúcsia 71 Figura 37 - Casaco de uma só costura 71 Figura 38 - Coleção Inverno 2006/2007 por Nicolas Ghesquière 71 Figura 39 - Exemplo de encaixe de grade feito no sistema CAD 74 Figura 40 - Molde com indicações para corte 78 Figura 41 - Dinâmica do processo, método e técnica 81 Figura 42 - Traçado de diagrama do corpo 87 Figura 43 - Exemplo de sistema CAD para modelagem 88 Figura 44 - Locais para tomada de medidas 90 Figura 45 - Bases de modelagem ou bloco básico 91 Figura 46 - Princípio da transferência de pences 92 Figura 47 - Recortes 93 Figura 48 - Blusa “cubos” e as etapas de planificaç~o 95 Figura 49 - Saia godê + cone 96 Figura 50 - Gradação 97 Figura 51 - Método de modelagem bidimensional e suas técnicas 98 Figura 52 - Madeleine Vionnet modelando sobre um manequim de madeira 1932 99 Figura 53 - Vestido drapeado Vionnet 100 13 Figura 54 - Marcação das linhas do manequim 102 Figura 55 - Modelo desenhado diretamente sobre o manequim 103 Figura 56 - Sistema de modelagem virtual em 3D 104 Figura 57 - Método da modelagem tridimensional e suas técnicas 104 Figura 58 - Processo (modelagem) com seus métodos e técnicas integrados entre si 107 Figura 59 - Rei Kawakubo Outono/Inverno 1983 112 Figura 60 - Yohji Yamamoto Primavera/Verão 1983 112 Figura 61 - Casaco Yohji Yamamoto e modelagem 113 Figura 62 - Coleção prêt-à-porter Verão 2000 de Yohji Yamamoto 114 Figura 63 - Manequim de prova como referência 117 Figura 64 - Peças inacabadas Primavera-Verão 2006 118 Figura 65 - Camisa com as proporções de roupa de boneca 118 Figura 66 - Suéter de meias militares e como fazê-las 119 Figura 67 - Casaco jeans da coleção Inverno 2002 e modelagem 124 Figura 68 - Macacão amarelo da coleção Verão 2004 e modelagem 126 Figura 69 - Alfaiataria e tecido masculinos trabalhados em moulage 128 Figura 70 - Laços; decorativos e funcionais 129 Figura 71 - Macacão de lã xadrez Huis Clos Inverno 2008 e modelagem 130 14 DA CONSTRUÇÃO À DESCONSTRUÇÃO: A MODELAGEM COMO RECURSO CRIATIVO NO DESIGN DE MODA Introdução A história da indumentária comprova que é antiga a prática de moldar materiais flexíveis ao corpo com a intenção de protegê-lo ou adorná-lo, mesmo que de maneira rudimentar e intuitiva. As roupas surgem como uma das soluções para adaptar o ser humano ao meio ambiente e vão se revestindo de significados cada vez mais complexos, indo muito além da simples finalidade de abrigar ou adornar o corpo. Atualmente, as roupas encerram significados que permeiam todo o contexto sociocultural do indivíduo, adequando-o e ao mesmo tempo diferenciando-o dos demais pela aparência e particularidade formal. Num contexto maior, o vestuário está profundamente ligado à moda, fenômeno por si muito mais envolvente e que se confunde com o vestuário, por ser esse seu veículo mais reconhecido. Do ponto de vista tecnológico, o modo de produzir roupas, tanto em termos estéticos quanto funcionais, foi se modificando atrelado às inovações dos materiais têxteis, às descobertas científicas e consequentes invenções de instrumentos e maquinários específicos para confecção. A modelagem, processo que viabiliza a transformação dos tecidos, materiais planos em sua essência, em peças do vestuário adapt|veis {s formas tridimensionais do corpo, est| no cerne deste “fazer” e constitui o tema da presente pesquisa. Apesar da indiscutível importância para o design de moda, às vezes a modelagem do vestuário é vista erroneamente como um fazer experimental, empírico, artesanal e livre de regras. Confundida com a costura, a modelagem das roupas também pode induzir à ideia de uma atividade caseira, vinculada às prendas domésticas e desprovida de desafios intelectuais ou engenhosidade. 15 O processo de elaboração de uma roupa fez parte de muitos lares brasileiros. Nos anos 1970 a máquina de costura era considerada um bem de consumo durável e grande parte das mulheres costurava para a família, seguindo moldes de revistas especializadas. Com o crescimento do mercado de vestuário, a indústria não teve problemas para abastecer-se de mão de obra qualificada para serviços de costura. Já para modelagem, ainda hoje, quase não há especialistas. Nem mesmo para a modelagem plana, o que dirá para moulage... (MOL in QUEIROZ e BOTELHO, 2008, p.8) Em direção diametralmente oposta, na indústria do vestuário a modelagem é muitas vezes considerada uma etapa puramente técnica, isenta de teor artístico e desvinculada da criação. Talvez tais constatações surjam da grande quantidade de obras repletas de receitas de “como fazer” roupas. Esses manuais apresentam fórmulas rígidas que, na maioria das vezes, engessam uma prática que poderia ser investigada com mais afinco a fim de estabelecer a modelagem como uma ferramenta criativa. De fato, a dicotomia entre criação e modelagem na indústria também conduz ao entendimento de que ambos os setores são estanques. Na maioria das empresas, observa-se que a modelagem está dissociada da concepção do projeto, acarretando problemas na execução e comprometendo o resultado final dos produtos em razão de sua inadequação. O mesmo problema pode ser verificado nos projetos desenvolvidos por alunos de design de moda. Por falta de metodologia, a modelagem aparenta ser uma prática complexa, rigorosa e muitas vezes incompreensível. Assim, por haver grande dificuldade por parte de alunos e designers em apreender a dinâmica da modelagem, esse conhecimento é isolado do processo criativo, sendo incorporado posteriormente durante as etapas de execução. Portanto, o problema que motiva a realização da pesquisa que se segue formula-se na seguinte questão: De que formas os métodos de modelagem podem converter-se em recursos criativos capazes de fundamentar o design de moda? Para responder essa questão, cabe ponderar que a modelagem é um processo muito mais abrangente do que podem imaginar os consumidores quando adquirem suas roupas. Quando encarado como um desafio criativo pelo designer, o ofício de modelar é fascinante e compensador porque articula saberes que extrapolam o domínio técnico de um traçado ou a escolha adequada de tecidos ou aviamentos; passa pela análise detalhada das características do corpo do usuário, sua anatomia, necessidade de conforto, adequação dos tecidos a uma realidade tridimensional por meio de cálculos e também pela sensibilidade. Esta integração de conhecimentos ressalta o aspecto interdisciplinar do design no campo da moda. 16 Em termos de adequação, a modelagem permite reproduzir o formato corporal, tal como uma segunda pele de tecido. Permite também desconstruir essas mesmas formas anatômicas para, então, reconstruí-las de maneira totalmente diferente e inusitada; essa é, no entendimento desta pesquisadora, a grande contribuição de seu objeto de pesquisa e é aí que investiga as possibilidades deste fazer. Assim, modelar é uma práxis e, como tal, deve vir amparada por uma fundamentação teórica, a qual ainda está por ser ampliada. Por todas as implicações projetuais e estéticas, a modelagem do vestuário está intrinsecamente vinculada ao conceito de design – um design específico onde a interface do objeto com o usuário ocorre num nível mais íntimo e abrangente que qualquer outro objeto de uso pessoal. O forte vínculo afetivo que estabelecemos com as roupas afeta até mesmo nossa percepção de que elas são produtos. De fato, são objetos sui generis que protegem, adornam, transformam, deformam, aumentam, comprimem, aquecem, contornam, afagam, comunicam mensagens explícitas e muitas vezes subjetivas – enfim, um número incontável de funções práticas e estéticas que atribuem significados diversos ao corpo vestido. Portanto, pensar a práxis da modelagem fundamentada nas teorias do design investigando a sistematização dos saberes que compõem esse exercício e suas implicações no design de moda contemporâneo é o objeto de estudo da presente pesquisa, que busca vislumbrar o papel deste “fazer” que integra conhecimento e sensibilidade para conceber e configurar produtos do vestuário. Para tanto, partimos das seguintes hipóteses: O designer de moda, ao apropriar-se dos recursos de modelagem durante o processo criativo, agrega valor ao produto, por diferenciá-lo em sua estrutura e não apenas em sua aparência exterior. A modelagem não é só uma técnica; quando compreendida em profundidade, torna-se um método e pode até mesmo conduzir todo o processo criativo. A associação dos métodos – a moulage e a modelagem plana – potencializa as soluções dos problemas de configuração e estabelece um caminho de mão dupla capaz de favorecer a criação de novos produtos. O profissional de modelagem pode ser considerado um designer, uma vez que detecta e soluciona problemas de configuração, bem como elabora as 17 matrizes que possibilitam a padronização e produção do vestuário em grande escala. A pesquisa tem como objetivo geral abordar o tema “modelagem” como práxis embasada em teorias do design e inserida num contexto maior ao qual pertence; a moda. Assim, partindo de uma visão mais abrangente e menos focada em técnicas determinadas pelos manuais de corte e costura, a pesquisa visa apontar caminhos para a concepção de projetos do vestuário, considerando a integração dos métodos de modelagem bidimensional e tridimensional como uma das estratégias para repensar a modelagem como ferramenta criativa. Quanto à metodologia, a pesquisa baseia-se principalmente em referencial bibliográfico e opta pela abordagem descritiva e qualitativa. Já a parte prática fundamenta-se no exercício profissional da modelagem por parte desta pesquisadora, tanto como docente em cursos especializados em construção do vestuário, quanto como modelista para diversos segmentos de confecção. A partir deste conhecimento e vivência, pretende-se ilustrar a teoria com exemplos reais de geração de formas vestíveis, tomando como exemplos a obra de designers – Charles Frederick Worth, Madeleine Vionnet, Cristobal Balenciaga, Yohji Yamamoto, Martin Margiela, Walter Rodrigues e Clô Orozco – que fizeram da construção das roupas a característica predominante de suas produções. Desta forma a pesquisa estrutura-se da seguinte maneira: O Capítulo 1 aborda a relação entre forma e matéria e envereda essa discussão para o vestuário. Sendo o corpo a forma predominante a ser vestida e os tecidos a principal matéria para revesti-lo, ambos são analisados para elucidar a correlação no design de moda. Partindo de uma abordagem histórica, o Capítulo 2 visa pontuar os períodos na história da indumentária onde a modelagem destaca-se como recurso para solucionar problemas do vestuário. A análise dos trajes é feita do ponto de vista técnico, sem aprofundar-se nas questões sociais específicas de cada época, uma vez que o interesse está em apontar alguns momentos onde se verificam invenções e estruturas relevantes para o entendimento da construção das roupas. No Capítulo 3, adensa-se a análise da relação entre modelagem e design de moda pela definição do conceito geral e dos tipos específicos de modelagem – plana e tridimensional –, buscando a localização da modelagem dentro do processo de 18 desenvolvimento de produto do vestuário, a avaliação das vantagens e desvantagens de cada método e a integração das modelagens bidimensional e tridimensional. A fim de apontar caminhos para pensar a modelagem como parte integrante do processo criativo, o Capítulo 4 investiga o papel da modelagem nos trabalhos dos designers contemporâneos Yohji Yamamoto e Martin Margiela, cuja escolha justifica-se pelas extensas obras, sempre focadas em conhecimentos aprofundados e experiências inovadoras em termos de modelagem. Os procedimentos práticos deste estudo serão dedicados à análise de peças pertencentes a empresas de prêt-à-porter de luxo atuantes no mercado brasileiro, que também se empenham em personalizar seus produtos pelo uso diferenciado dos métodos de modelagem; Huis Clos e Walter Rodrigues. Através desta análise crítica, a modelagem será tratada no âmbito dos métodos e dos processos, inserida no desenvolvimento de produto e relacionada às outras variáveis que compõem o design de moda. 19 CAPÍTULO 1 – Forma e matéria O ato de moldar ou modelar, seja uma peça do vestuário, uma escultura ou qualquer outro objeto, configura-se como uma das capacidades internalizadas do ser humano. Desde muito cedo na história da cultura, o desejo, a curiosidade e a aptidão em transformar o entorno, manipular e dar sentido às diversas matérias-primas ao seu alcance e elaborar formas capazes de melhorar a qualidade de vida, representar algo ou mesmo proporcionar fruição estética são potencialidades que nos caracterizam como espécie humana. Dorfles (1997, p.97), ao se referir à escultura de totens e outros símbolos religiosos, descreve a facilidade em identificar no homem certo prazer em dar forma e, “portanto, vida, ainda que uma vida simbólica e abstrata, a um material, a princípio amorfo e que se transformou em algo reconhecível e inconfundível.” O autor diz que a escultura é uma das primeiras formas expressivas, através da qual o homem confere vida a um “simulacro tangível”. Foi assim que, antes mesmo da configuração da escrita, os homens do paleolítico já criavam, além de ferramentas e armas, imagens tridimensionais derivadas das pinturas rupestres, também sustentando simbologia específica – além da funcionalidade, essas peças foram eficazes em perpetuar certo entendimento da vida naqueles primórdios. Partindo das artes para o design, pode-se afirmar que a definiç~o de “modelar” est| intimamente ligada à definição de design proposta por Heskett (2006, p.7); “O design [...] pode definir-se como a capacidade humana para dar forma sem precedentes na natureza ao nosso redor, para servir às nossas necessidades e dar sentido {s nossas vidas.” Moldar ou modelar consiste, essencialmente, em confeccionar uma forma. Em sentido amplo, Wong (2001, p.138) define Forma como “tudo que pode ser visto – tudo que tenha formato, tamanho, cor, textura, que ocupe espaço, marque posição e indique direç~o” e a classifica em bidimensional ou tridimensional. As formas bidimensionais possuem largura e comprimento, e são constituídas por pontos, linhas e/ou planos sobre uma superfície plana. O mundo bidimensional é fundamentalmente uma criação humana e distingue-se de nossa experiência cotidiana por se tratar de uma representação da realidade tridimensional. Atividades como 20 desenho, pintura, impressão, tingimento e escrita são atividades que determinam esse universo bidimensional criado pela ação do homem com a intenção de reconstruir o mundo tridimensional. (WONG, 2001, p.237) Contudo, a realidade das formas tridimensionais é produto da soma da profundidade à largura e ao comprimento. São formas tangíveis que não só podemos manusear, mas observar de ângulos e distâncias diferentes. A visão de uma forma tridimensional a partir de um único ângulo pode ser limitadora, uma vez que, a cada movimento do objeto, um formato diferente se revela e a relação entre este objeto e o olhar do observador se modifica, relata Wong (2001, p.238). É assim que o mapa nos localiza, embora não forneça todos os elementos da vista aérea; o mesmo na relação entre a planta baixa e a maquete, ou a pintura como representação da realidade e a própria realidade. A configuração de um formato, seja ele em duas ou três dimensões, pressupõe o emprego de determinada matéria. Na antiguidade, Aristóteles já estabeleceu a relação entre forma e matéria, ao afirmar que “a matéria é aquilo com que se faz algo, a forma é aquilo que determina a matéria para ser algo, isto é, aquilo pelo qual alguma coisa é o que é.” (GOMES FILHO, 2000, p.39). Para Ostrower (1987, p.51), “formar” implica num processo din}mico de transformação da matéria, onde esta orienta a ação criativa através de suas possibilidades de ação, e também de suas impossibilidades. Tais limitações, quando reconhecidas como orientadoras – e não restritivas –, sugerem rumos para realização de um trabalho criativo. Assim, transformando-se numa nova forma, a matéria não é despojada de seu caráter, e sim reafirmada em sua essência, apresentando novas configurações plásticas e estéticas. “Ela se torna matéria configurada, matéria-e-forma, e nessa síntese entre o geral e o único, é impregnada de significações.” Cardoso (apud Flusser, 2007, p.12) observa que a produção de qualquer artefato se d| pela aç~o de dar forma { matéria com determinada intenç~o. “Do ponto de vista etimológico, portanto, a manufatura corresponde ao sentido estrito do termo in + formação (literalmente, o processo de dar forma a algo). No sentido amplo, fabricar é informar.” Flusser (2007, p.23) comenta que a palavra materia é uma tentativa dos romanos de traduzir para o latim a palavra grega hylé, que originalmente significa madeira. Todavia, os gregos usavam a palavra hylé, n~o com a acepç~o de “madeira”, de algo concreto, mas como aquilo que se opõe ao conceito de forma – em grego, morphé. 21 Sendo assim, hylé significa algo amorfo, que pode ser transformado. A relaç~o “matériaforma” seria algo como “conteúdo-recipiente”. A partir de tal constataç~o, Flusser posiciona o design como um mediador entre matéria e forma; Se “forma” for entendida como o oposto de “matéria”, ent~o n~o se pode falar de design “material”; os projetos estariam voltados para informar. E se a forma for o “como” da matéria e a “matéria” for o “o quê” da forma, ent~o o design é um dos métodos de dar forma à matéria e de fazê-la aparecer como aparece, e não de outro modo. O design, como todas as expressões culturais, mostra que a matéria não aparece (é inaparente) a não ser que seja informada, e assim, uma vez informada, começa a se manifestar (a tornar-se fenômeno). A matéria no design, como qualquer outro aspecto cultural, é o modo como as formas aparecem. (FLUSSER, 2007, p.28) Considerando que Dorfles, Wong, Ostrower e Flusser são predominantemente advindos do campo das artes plásticas e da filosofia, pode-se dirimir de suas afirmações que existe certa concordância entre eles quanto a forma e matéria estarem intrinsecamente vinculadas, e que a forma atribui significados e vida à matéria. Essas relações permeiam as artes e o design; sendo assim, tanto o artista como o designer se deparam com as particularidades da matéria ao criar uma obra – seja ela artística ou funcional. Essa constatação justifica uma análise mais aprofundada da relação entre forma e matéria, levando em conta a importância primordial e as especificidades de ambas para que se compreenda a dinâmica da modelagem do vestuário no design de moda. É uma observação nesse sentido que o presente trabalho se propõe realizar. Afinal, em conjunto com outras intervenções (costuras, acabamentos e demais beneficiamentos), a modelagem proporciona ao designer a capacidade de transformar tecidos e demais materiais têxteis em formas que comunicarão novos significados na maneira de vestir. 1.1 A forma “Corpo” Refletindo sobre o conceito geral da forma e da matéria, especificamente para o campo do design de moda, Souza (1987, pp.33 e 34) assevera a importância destes elementos para configuração do vestuário, referindo-se ao tecido como a matéria pela qual se manifesta e se estrutura a forma-roupa, e ao “costureiro” como um artista capaz de adequá-los um ao outro, visto que, de fato, ele conhece e investiga as possibilidades da matéria no exercício criativo das formas que vestem o corpo humano. Assim, em relaç~o ao vestu|rio, a forma deve “respeitar o destino da matéria” e também adaptar-se ao corpo humano e suas inúmeras particularidades: 22 [...] fechado em seu estúdio, o costureiro, ao criar um modelo, resolve problemas de equilíbrio de volumes, de linhas, de cores, de ritmos. Como o escultor ou o pintor ele procura, portanto, uma Forma que é a medida do espaço e que, segundo Focillon, é o único elemento que devemos considerar na obra de arte. Harmonizar o drapeado de uma saia com o talhe das mangas, traçando um "conjunto coerente de formas unidas por uma conveniência recíproca". Respeita o destino da matéria, a sua "vocação formal", descobrindo aquela perfeita adequação entre a cor e a consistência do tecido e as linhas gerais do modelo. Como qualquer artista o criador de modas inscreve-se dentro do mundo das Formas. E, portanto, dentro da Arte. (SOUZA, 1987, p.34) Modelar uma peça de roupa é um ato bastante complexo, em seu objetivo de relacionar dois elementos de naturezas diferentes – a matéria têxtil, de caráter bidimensional e a forma corporal, tridimensional, móvel e sensível. Nesse entrave, a modelagem do vestuário surge como o processo capaz de relacionar as duas condições. Segundo Saltzman (2004, p.10), ainda que todas as áreas do design tomem o corpo como parâmetro, no caso do vestuário, a estrutura corporal é a própria base para o objeto/vestuário. A roupa só adquire sua forma definitiva quando vestida, e então acontece uma relação dialética entre corpo e roupa, que faz com que a condição de ambos se modifique constantemente; o corpo contextualiza o traje e vice-versa, criandose uma simbiose ou um todo de sentido. Assim, pode-se inferir que o traje afeta o gestual do usuário, ao restringi-lo ou expandir suas formas. Caldas (2006, p.80) é enfático ao relatar como a moda é pródiga em reconstruir um corpo idealizado que, muitas vezes, nada tem a ver com o corpo natural. Fundamentalmente, esta reconstrução da silhueta ocorre graças a recursos de constrição ou expansão das formas naturais, respectivamente exemplificados pelo espartilho1 (fig. 1) e pela crinolina2 (fig. 2). 1 Até o início do século XX as mulheres usavam os espartilhos num esforço para se aproximar de uma forma física ideal para época. O espartilho da figura 1 mede 76 cm de busto e 49 cm de cintura. Disponível em http://kci.or.jp. 2 Tecido originalmente feito de crina, por volta de 1830, usado para confeccionar anáguas que dessem volume às saias. Por volta de 1850, essas anáguas foram substituídas por armações de barbatanas e metal; porém, o termo permaneceu ligado à forma expandida. 23 Figura 1: Espartilho de cetim de seda, 1880 Fonte: http://www.kci.or.jp Figura 2: Crinolina, 1865 Fonte: http://www.kci.or.jp Em contrapartida, o corpo também se impõe e modifica a estrutura do traje através de seus contornos e movimentos, forçando a trama do tecido onde suas protuberâncias necessitam de mais espaço. Um exemplo disso está nas deformações e esgarçamentos nas áreas dos joelhos e cotovelos em roupas muito usadas, devido ao intenso movimento dessas articulações. É importante considerar que o corpo humano é produto, não só de herança étnica e genética, mas de vivências resultantes de construções culturais, além da atividade física, dos hábitos alimentares, da vida emocional e de tantas outras circunstâncias às quais este corpo está sujeito (SALTZMAN, 2004, p.20). Iida (2003, p.105) embasa tal constatação alegando que esses fatores acarretaram o crescimento da estrutura física dos indivíduos modernos, principalmente no que diz respeito à alimentação. Para Grave (2004, p.12), a modelagem do vestuário deve ser aplicada como fundamento multidisciplinar { disposiç~o da “m|quina humana”, permitindo que o vestuário se torne interativo e corresponda às necessidades e singularidades do indivíduo. Tais aspectos e características serão abordados a seguir, num esforço de compartilhar uma visão teórica do corpo como um todo. 24 1.1.1 A anatomia humana Entender o corpo, sua estrutura, divisões e movimentação é fundamental para compreender como a modelagem atua na transformação dos tecidos em peças adaptáveis às necessidades de conforto do usuário. A palavra anatomia vem do grego ana (em partes) e tomeim (cortar) e talvez seja o aspecto físico mais analisado quando se trata de design do vestuário, porque traz consigo todos os aspectos relativos à forma corporal. Biologicamente definida como a morfologia interna ou externa dos seres vivos, em seu sentido figurado, a anatomia é a compleição ou a aparência externa do corpo humano, sendo este último conceito o mais apropriado para análise no design do vestuário (GRAVE, 2004, p.16). Segundo Castilho (2004, p.51), o corpo anatômico nos remete ao corpo biológico com o qual nascemos e que apresenta variáveis quanto às proporções e componentes formais, tais como “verticalidade, horizontalidade, espaço que ocupa como massa pl|stica etc.” A autora assinala também as diferentes características pertinentes às várias raças, como o aspecto cromático (cor da pele), matérico (tipologia e textura da pele), topológico (altura, volume e proporção) e eidético (formas do corpo). Cabe, no entanto retomar a idéia de que o corpo biológico sofre influências socioculturais respectivas a cada período histórico e, portanto transforma-se num corpo cultural, portador dos diversos signos de contemporaneidade que dialogam com valores pertencentes à cultura e à época em questão. A análise do corpo por partes também é uma prática associada à elaboração das roupas, tanto no que diz respeito ao desenho de moda quanto à modelagem do vestuário. Embora as diferentes partes da anatomia possuam particularidades que demandem recursos de modelagem diferenciados, o corpo deve ser considerado em sua totalidade para que todas essas partes se integrem em equilíbrio e para que o resultado final seja harmônico conforme critérios de sua época. A partir desse pressuposto, a estrutura corporal será analisada considerandose a posição anatômica, que situa o corpo ereto com os pés unidos, os braços ao longo do corpo e as palmas das mãos voltadas para a frente (GRAVE, 2004, p.36), conforme figura 3. Observa-se que as relações mais habitualmente estabelecidas no projeto do vestuário coincidem com o sistema de planos que determinam o estudo anatômico: 25 Frente e costas (plano frontal); Inferior e superior (plano transversal); Esquerda e direita (plano sagital). Figura 3: Planos anatômicos do corpo Fonte: Ilustração a partir de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Coupe_anatomie.jpg Segundo Castilho (2004, p.64), a relação entre frente e costas se estabelece com base na divis~o vertical lateral que parte do solo “em direç~o ao meio das pernas e coxas, tronco, axilas, meio do pescoço, assinalando as orelhas e chegando ao topo da cabeça”. Anatomicamente, este corte é determinado pelo plano frontal (IIDA, 2003, p.124). Essa relação estabelece uma assimetria inequívoca e, ao contrário do que se supõe, a massa posterior prevalece sobre a dianteira em quantidade, densidade e volume (SALTZMAN, 2004, pp.25 e 26). A autora afirma que a parte posterior do corpo é como uma “couraça” 26 formada por uma cadeia muscular complexa, característica remanescente de nosso estado biológico anterior à posição ereta, enquanto a frente é mais delicada, apesar de abrigar os órgãos vitais. Embora essa divisão entre frente e costas seja frequente no design das roupas, é preciso considerar as laterais para que o volume corporal seja representado em sua totalidade; O corpo ereto constitui-se tridimensionalmente e pode ser figurado em pelo menos três modos básicos: de frente, de lado e de costas. (...) é por meio da análise dessas três possibilidades de visualização do corpo que podem ser traçadas suas linhas gerais de movimentação, articulação e de constituição plástica – e as relações provenientes da junção com os trajes. (CASTILHO, 2004, p.61) Um fato que pode ser observado tanto no âmbito acadêmico quanto no cotidiano das confecções refere-se à ênfase recorrente na representação da vista frontal anterior das peças do vestuário, em detrimento da posterior e das laterais. O desconhecimento das diferentes características na conformação da frente e das costas leva alguns designers e alunos de moda a crer que ambas podem ser resolvidas utilizando-se os mesmos recursos de modelagem e, por isso subestimam a representação das outras vistas. Talvez esse fato esteja relacionado à nossa própria percepção corporal, já que temos uma clara noção da parte frontal, enquanto o mesmo não acontece em relação à parte posterior. A relação superior e inferior efetua-se na horizontalidade estabelecida pelo plano transversal, e determina a divisão do tronco entre tórax e abdome (GRAVE, 2004, p.53). Na modelagem, essa divisão fica bem delimitada pela linha da cintura, geralmente um pouco acima do umbigo. Saltzman (2004, p.27) ressalta que a metade inferior diz respeito ao equilíbrio e à locomoção, enquanto a superior incumbe-se do intercâmbio social pela expressão e os gestos. Para o design de moda, observa-se que essa divisão determina a adequação da maioria das peças do vestuário quanto à funcionalidade. Na indústria do vestuário usamse as palavras tops e bottoms para denominar respectivamente as peças designadas para as partes superiores e inferiores (SANCHES, 2008, p.292). Para exemplificar, de modo geral, saias e calças são projetadas especificamente para a parte inferior e têm a cintura como principal ponto de apoio. Já as blusas e casacos são feitos para a parte superior e apóiam-se nos ombros. Vestidos e macacões são exemplos de peças inteiriças que cobrem o tronco, os membros inferiores e os superiores, caso possuam mangas, e se apóiam predominantemente nos ombros, embora algumas tenham mais de um ponto de apoio. 27 O plano sagital determina a divisão do corpo em metades direita e esquerda, também denominadas antímeros, por um eixo vertical que na frente passa pelo umbigo e entre os olhos e na parte posterior passa ao longo da coluna vertebral (SALTZMAN, 2004, p.27). Considerando-se que os lados são iguais, o ser humano apresenta uma “simetria bilateral”. Todavia, na realidade o corpo apresenta uma discreta assimetria, uma vez que um dos lados se desenvolve um pouco mais do que o outro devido à assimetria funcional determinada pela tendência de sermos destros ou canhotos. (GRAVE, 2004, p.41) No que diz respeito ao processo da modelagem, essa suposta simetria corporal apresenta-se como uma vantagem, pois é prática comum na indústria do vestuário modelar apenas um dos lados e depois “desdobrar” ou “rebater” o molde igualmente a fim de cobrir o outro lado. Modelos assimétricos, por sua vez, demandam maior tempo de execução para aplicação de diferentes soluções, adequadas a cada um dos lados. Um bom exemplo da diferença de abordagem nos modelos assimétricos está em peças com uma única alça, onde um dos ombros é um ponto de apoio de um lado e o decote acima do busto serve de sustento para o outro (fig. 4). Figura 4: Vestido assimétrico - Halston, 1976 Fonte:http://fashionsmostwanted.blogspot.com/ Crane (2006, p.310) afirma que a simetria é uma das particularidades da indumentária na cultura ocidental, ligada aos conceitos clássicos de perfeição e harmonia. No Oriente, pelo contrário, a assimetria é uma opção estética, fato que pode ser observado no trabalho de alguns estilistas japoneses como, por exemplo, Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo. Pode-se considerar a assimetria no vestuário como um redesign significante da estrutura corpórea, porque rompe com a simetria lateral do corpo biológico e exercita novas plásticas com experiências diferenciadas. 28 Além das relações estabelecidas pelos planos frontal, transversal e sagital, é importante analisarmos a divisão entre tronco, membros e cabeça, uma vez que muitos dos recursos de modelagem buscam solucionar as relações entre esses elementos. No decorrer da história da indumentária, as descobertas relacionadas às possíveis conexões entre as partes que revestem o tronco e aquelas que revestem os membros foram edificantes para a compreensão das questões inerentes à construção das roupas. Estas soluções possibilitaram a aproximação e o ajustamento das formas vestíveis ao corpo, – lembrando que, prioritariamente, os trajes da antiguidade eram tecidos drapejados sobre o corpo –, e a liberdade de movimentos dos membros daí decorrente resultava da pesquisa de técnicas de modelagem, cada vez mais desenvolvida. Recursos construtivos, como as cavas, referem-se à ligação entre o tronco e os membros superiores, enquanto os decotes possibilitam o acesso da roupa pela cabeça e também se apresentam como soluções que permitem a colocação de outros componentes do traje, como mangas e golas. O gancho das calças, outro exemplo, resolve a cobertura do corpo na união da pélvis com as pernas e possibilita o movimento de locomoção. O tronco abrange o tórax, o abdome e a pélvis (GRAVES, 2004, p.16) e “apresenta-se como estrutura mais sólida, compacta e concentrada, mostrando-se como figura predominante e robusta. (...) É a partir dele que se entrelaçam as outras partes do corpo”, segundo Castilho (2004, p.63). Para a an|lise da modelagem, esta é a parte corporal de maior relevância, precisamente pela conexão com os membros, pela maior necessidade de cobertura e também pela descontinuidade de medidas que apresenta, principalmente no corpo feminino. Constituída por protuberâncias e reentrâncias, a estrutura do tronco suscita recursos construtivos denominados pences para que ocorra o ajuste do tecido plano às diferenças de medidas entre tórax, cintura e quadris. Estes recursos serão analisados com maior ênfase no decorrer da presente pesquisa pela grande importância para o design do vestuário, principalmente para modelagem de peças justas. Esses recursos podem ser observados na figura 5, primeiramente posicionados sobre o corpo e em forma de modelagem logo abaixo. 29 Figura 5: Como surgem as pences Fonte: Ilustração a partir de OSÓRIO, 2000, p.46 Verifica-se que os membros são apêndices do corpo dotados de movimento, graças às articulações, e estão unidos ao tronco em pares simétricos. Os membros superiores ou torácicos são compostos pelos braços, antebraços e mãos, articulam-se entre si pelos cotovelos e punhos e ligam-se ao tronco pelo ombro. Os membros inferiores ou pélvicos são compostos pelas coxas, pernas e pés, articulam-se entre si pelos joelhos e calcanhares e unem-se ao tronco pelo quadril (GRAVE, 2004, p.16). Saltzman (2004, p.23) enfatiza ainda que a cabeça representa nosso aspecto social. “As expressões faciais e a palavra articulada conformam uma das |reas mais importantes na comunicaç~o e no contato com os outros”. É importante ainda constatar que a medida da cabeça é o cânone usado como referência para estabelecer a proporção do corpo humano em diferentes períodos da história da arte, e de grande relevância para a elaboração da figura no design de moda. (CASTILHO, 2004, p.65) Se entendermos a aplicação da modelagem de vestuário como fundamento multidisciplinar adequada às necessidades e singularidades do indivíduo, e o corpo, sua estrutura, divisões e movimentação como fundamentais para compreender a 30 modelagem na transformação dos tecidos em peças adaptáveis às necessidades de conforto do usuário e se percebemos as relações nos planos frontal, transversal e sagital, ainda nos restará apreender a relação dialética entre traje e corpo. É essa a análise feita nas próximas páginas. 1.1.2 A proporção e antropometria Ainda na busca do entendimento da relação dialética que existe entre corpo e roupa, na qual o corpo contextualiza o traje e vice-versa, há que se perceber as proporções e sua interferência no equilíbrio do todo. Segundo Dorfles (1992, p.54), a proporção pode ser entendida como o “equilíbrio entre comparações quantitativas de elementos an|logos em relaç~o recíproca e é, sem sombra de dúvida, um importante elemento de mediç~o espacial”. Especificamente no que tange a visualização corporal, a proporção refere-se ao corpo como um todo por meio de suas partes. A relação das partes em função de sua totalidade ocorre pela aplicação de uma regra matemática conhecida por cânone de proporção, que estabelece os critérios para a construção da estrutura corporal através da medida da altura da cabeça (TETSURO, 2007, p.33). A proporção é um aspecto essencial para a modelagem, não só por sua função estética, mas fundamentalmente por estabelecer uma relação entre o corpo do usuário e as partes que compõem a roupa. Desde a antiguidade, o estabelecimento das regras de proporção esteve vinculado aos padrões de beleza vigentes em cada período da história e sabe-se que a mutabilidade do conceito de beleza interferiu na representação do corpo idealizado através dos tempos. O sistema que toma a cabeça como módulo para a estruturação da proporção (fig. 6) tem sua origem na Grécia; já no século V a.C., a altura da estátua de Doríforo esculpida por Policleto media sete cabeças e meia. No século IV a.C., a estátua de Apoxiomeno esculpida por Lisipo sugeriu um novo conceito de proporção, representado por oito cabeças, sugerindo uma silhueta mais alongada. Entretanto, o cânone de oito cabeças e meia advém da estátua de Apolo de Belvedere do escultor grego Leocares (TETSURO, 2007, p.33). Descoberto durante o Renascimento, esse ícone simbolizou a perfeição estética para os padrões ocidentais e é empregado até a atualidade. 31 Figura 6: “Doríforo”, “Apoxiomeno” e “Apolo de Belvedere” Fonte: Ilustração a partir de http://pt.wikipedia.org Boueri (apud PIRES, 2008, p.348) relata que não se podem abordar dimensões e proporções do corpo humano sem mencionar a Seção Áurea, postulado criado pelo matemático Euclides 300 anos a.C. que estabelece a necessidade de três retas para determinar uma proporção, sendo a terceira a soma das outras duas. No corpo humano, 32 essas relações existem entre a distância do umbigo até a sola do pé, do umbigo até o topo da cabeça e a altura total. No século I a.C., o arquiteto e engenheiro romano Marcus Vitrúvio Pollio estudou as medidas e proporções do corpo humano, ressaltando que os parâmetros para todas as operações construtivas baseavam-se nos membros, como por exemplo, a polegada, o palmo e o pé. (BOUERI, apud PIRES, 2008, p.348) Durante o Renascimento, houve o resgate das teorias clássicas e, mais precisamente em 1490, Leonardo Da Vinci criou a famosa figura masculina inserida dentro de um círculo e um quadrado (fig. 7). O “Homem Vitruviano” baseia-se no terceiro de uma série de dez livros intitulados De Architectura, onde Vitrúvio descrevia as proporções do corpo humano. Entre as várias relações estabelecidas nesse estudo, Figura 7: “Homem Vitruviano” de Leonardo Da Vinci Fonte: ELAM, 2010, p.14 figuram as seguintes: A longitude dos braços estendidos de um homem é igual à altura dele; A distância do topo da cabeça para o fundo do queixo é um oitavo da altura de um homem. Todavia, corpos reais possuem diferenciações de padrão referentes à altura e diâmetro, sem contar a influência imposta pela idade e pelas diferenças significativas de gênero (GRAVES, 2004, p.34 e IIDA, 2003, p.103). Iida (2003, p.102) apresenta um estudo desenvolvido por William Sheldon (1940) limitado a uma população de 4.000 estudantes americanos cujo levantamento antropométrico resultou na classificação de três grandes grupos de tipos físicos – endomorfos, mesomorfos e ectomorfos – cada um com características distintas, conforme tabela 1, embora a maioria da população não se enquadre rigorosamente dentro de uma única categoria, transitando entre duas delas (IIDA, 2003, p.102). 33 Tabela 1: Tipos físicos e suas características Tipo físico Características Formas arredondadas, com depósitos de gorduras; Formato de “pêra” (estreito em cima, largo embaixo) Abdome grande e tórax relativamente pequeno Membros curtos e flácidos; Ombros e cabeça arredondados; Ossos pequenos; Baixa densidade; Pele macia. Endomorfo Formas angulosas; Musculoso; Ombros e peito largos e abdome pequeno; Cabeça cúbica e maciça; Pouca gordura subcutânea. Mesomorfo Corpo e membros longos e finos; Mínimo de gordura e músculos; Ombros largos, porém caídos; Tórax e abdome estreito e fino; Pescoço fino e comprido; Rosto magro, queixo recuado e testa alta. Ectomorfo Fonte: IIDA, 2003, p.102. Figuras a partir de http://www.nutricampeones.blogspot.com Grave (2004, pp.35 e 36) apresenta análise semelhante, relacionando a grande diversidade de corpos humanos a três biótipos: 34 Os longilíneos, indivíduos altos com tórax e membros alongados; Os brevilíneos, indivíduos com baixa estatura, pescoço curto e membros curtos em relação ao tórax largo; Os médios, indivíduos com membros e tórax próximos da harmonia entre verticalidade e horizontalidade. Embora a proporção utilizada no desenho de moda (fig. 8) represente um corpo irreal, a adoção de um parâmetro é útil para que o designer de moda estabeleça relações entre a localização dos elementos da roupa – bolsos, recortes, comprimentos e outros acessórios – e o corpo do usuário. Como sugere Castilho (2004, p.142), mais do que o despretensioso uso de roupas, a moda é uma questão de estrutura e construção de proporç~o. “Assim, o corpo ser| um contínuo suporte sobre o qual se inserem diferentes pontos, variações de medidas e proporções ocasionadas particularmente pelo traje”. A roupa, portanto, desenha novas configurações ao corpo. Figura 8: Proporções no desenho de moda Fonte: Ilustração a partir de JONES, 2000, p.85 35 1.1.3 O movimento Uma das características mais importantes na análise do corpo para o design do vestuário está relacionada ao movimento. Souza (1987, pp.33 e 34) defende que a moda se insira no mundo das artes através da forma, mas também a distingue da pintura e da escultura pela possibilidade do movimento; [...] Na verdade, é o movimento, a conquista do espaço, que distingue a moda das outras artes e a torna uma forma estética específica. [...] Arte por excelência de compromisso, o traje não existe independente do movimento, pois está sujeito ao gesto, e a cada volta do corpo ou ondular dos membros é a figura total que se recompõe, afetando novas formas e tentando novos equilíbrios. Enquanto o quadro só pode ser visto de frente e a estátua nos oferece sempre sua face parada, a vestimenta vive na plenitude não só do colorido, mas do movimento. Este acrescenta ao repouso qualquer coisa que nele já estava contido, mas que, apenas agora, subitamente irrompe. (SOUZA, 1987, p.40) Castilho (2004, pp.144 e 145) destaca que “existe uma relaç~o entre o movimento ou a articulação natural do corpo humano, que lhe é inerente e interior, e a possibilidade de articulaç~o que o traje impõe ao corpo.” Os diferentes movimentos e ritmos do corpo e das roupas organizam a estética do traje através da distribuição das linhas, das formas, dos materiais têxteis e das cores sobre o corpo. Do ponto de vista anatômico, as articulações estão ligadas ao movimento corporal no que se refere à possibilidade de diferentes ângulos de abertura e, portanto estabelecem os limites formais no vestuário para que não haja impedimentos quanto ao desenvolvimento natural do corpo (SALTZMAN, 2004, p.30). Grave (2004, p.16) relata que os membros superiores e inferiores projetam-se respectivamente a partir dos ombros e dos quadris. Ao andarmos, ocorre uma dissociação dos movimentos dos membros superiores e inferiores, cada um girando em sentidos opostos no plano horizontal, causando uma torção no tronco. Graças aos efeitos plásticos alcançados pela combinação do corpo em movimento e das propriedades dos tecidos, o ato de caminhar é bastante explorado pelos designers nos desfiles de moda. O corpo é dotado de movimentos de flexão, extensão, adução e abdução (fig. 9) que se desenvolvem através dos planos sagital, coronal e transversal a partir da posição anatômica. Cada movimento solicita o trabalho de pelo menos dois músculos que se movimentam de forma contrária, já que quando um se contrai o outro se alonga (IIDA, 2003). 36 Figura 9: Movimentos do corpo Fonte: Ilustração a partir de http://www.nyu.edu/classes/keefer/pain/pain2.htm Partindo do pressuposto de que quase todos os produtos são projetados para o consumo humano, Baxter (2000, p.177) atenta para a importância dos aspectos ergonômicos, principalmente no que se refere à análise de tarefa, estudo que explora as interações entre produto e usuário. A palavra ergonomia é derivada do grego ergon, que significa trabalho e nomos, que significa regras. No princípio, a ergonomia estudava o homem no seu ambiente de trabalho, mas agora ela ampliou os objetivos, e estuda as interações entre as pessoas e os artefatos em geral, e o seu meio-ambiente. A ergonomia usa os conhecimentos da anatomia, fisiologia e psicologia, aplicando-os ao projeto de objetos. Para a maior parte dos projetos, é suficiente observar cuidadosamente como as pessoas realizam as tarefas principais e daí extrair os elementos para o projeto (BAXTER, 2000, p.178). Baxter (2000, p.179) pontua ainda que, embora a análise de tarefa seja relativamente simples de conduzir – apenas solicitando às pessoas que usem os produtos em várias versões –, é comum que os designers não se dêem a esse trabalho. Pode-se verificar essa afirmação no design de moda, já que é muito comum encontrar peças do vestuário que desrespeitam necessidades básicas de conforto e usabilidade: exemplos dos incômodos a que são submetidos os usuários de algumas marcas estão em blusas e casacos que impedem os movimentos de extensão e adução dos braços devido à falta de tecido nas entrecavas3, calças que dificultam a flexão das pernas por serem demasiadamente justas nos joelhos e costuras internas salientes que deixam marcas na pele. 3 Medidas das larguras das costas e da frente pela altura das axilas entre os dois braços. 37 1.1.4 A pele A pele é descrita por Saltzman (2004, p.22) como uma “espécie de traje espacial” que protege nossos corpos das condições atmosféricas e viabiliza o tato, sentido que nos torna aptos a experimentar a tridimensionalidade do mundo. Socialmente, a pele determina a singularidade de nossos corpos e exerce impacto determinante para a construç~o da identidade, visto o termo “sentir-se bem na própria pele”. Transformado em roupa, o tecido se assemelha a uma “segunda pele” e delineia a silhueta graças a relações de aproximação e distância, expansão de volumes ou achatamento das dimensões, segundo Saltzman (2008, p.306). A autora afirma que a roupa é, em sua essência, um objeto têxtil que se difere de um objeto de uso cotidiano pela ampla interface com o corpo do usuário. Para Montemezzo (2003, p.50), o vestuário é um ótimo exemplo de produto de uso individual, definido por Löbach (2001, p.47) como ”produtos industriais usados exclusivamente por uma determinada pessoa”, concluindo que quanto mais próxima e contínua a relação durante o uso, mais intensa será a identificação do usuário com o produto. Castilho (2004, p.71) comenta que as roupas exercem uma mediação entre o público e o privado e que estas orientam as posições individuais e coletivas do indivíduo. Se, num primeiro momento, a decoração corpórea valia-se dos procedimentos efetuados diretamente sobre a própria pele, num segundo momento, é o tecido, como segunda pele, que reveste e recobre a primeira. No entanto, essa pele caracteriza-se por transformações continuamente definidas pelo ritmo das mudanças. E é justamente a segunda pele, cuja natureza se mostra predominantemente têxtil, que, até os nossos dias, permite a oscilação e mutação da decoração corpórea. (CASTILHO, 2004, p.59) Caldas (2006, p.81) afirma que “nada est| mais perto do corpo do que a roupa, nenhum outro material adapta-se t~o bem a ele quanto o tecido”. Sendo a matéria têxtil tão semelhante à pele em textura e maleabilidade, a comparação entre ambos torna-se inevitável. Tal constatação conduz a uma análise mais aprofundada dos tecidos. 1.2 A matéria têxtil Ao se impor e modificar a estrutura do traje por meio de seus contornos e movimentos, o corpo exige que o tecido tenha tramas maleáveis e elásticas, com características de textura, peso, caimento e aderência. 38 O tecido é, sem dúvida, a matéria mais utilizada na realização do projeto do vestuário. Resultantes do processo da fiação e da tecedura, os tecidos são formados pelo entrelaçamento, em ângulo reto, de dois conjuntos de fios designados urdume e trama (fig. 10). O urdume, ou urdidura, é composto pelos fios posicionados no sentido longitudinal ou vertical; paralelos ao comprimento do tecido, Figura 10: Trama (branco) e urdume (azul) Fonte: A partir de PEZZOLO, 2007, p.27 esses fios se mantêm fixos e em tensão constante. Já a trama é formada pelos fios que se entrelaçam ao urdume no sentido transversal ou horizontal em sucessivas passagens de um lado para o outro, formando a largura do tecido. (CHATAIGNIER, 2006, p.21 e PEZZOLO, 2007, p.144) A construção dos tecidos planos depende do padrão de entrecruzamento da trama e do urdume. Os ligamentos fundamentais são o tafetá, a sarja e o cetim (fig. 11) e, embora haja uma grande gama de tecidos, a maioria deles é variante destes três tipos. Figura 11: Padrões de entrecruzamento da trama e do urdume Fonte: A partir de PEZZOLO, 2007, p.153. 39 Quanto às fibras que compõem os tecidos, classificam-se em naturais, artificiais e sintéticas. As fibras naturais podem ser de origem animal, vegetal ou mineral, respectivamente exemplificadas pelos tecidos de lã, algodão e amianto. As fibras artificiais são geradas a partir de fibras naturais modificadas, a exemplo da viscose. De outra sorte, as fibras sintéticas derivam do petróleo, como a poliamida, o poliéster e o poliuretano. (SALTZMAN, 2004, p.37, CHATAIGNIER, 2006, p.29). Os diversos tipos de tecidos apresentam características inerentes à sua estrutura e às matérias primas com as quais são produzidos. Estas singularidades devem ser observadas pelos designers de moda para a devida adequação à construção que se quer obter; [...] é fundamental valorizar as qualidades de maleabilidade, ou seja, a aptidão do material para configurar o volume em torno do corpo, segundo seu peso, caimento, elasticidade, movimento, aderência e textura, além das qualidades que concernem à superfície, como a cor, o desenho, a trama, a estruturação, o brilho, a opacidade ou a transparência, etc. (SALTZMAN, 2004, p.44, tradução nossa) No que se refere à modelagem, o caimento é uma das peculiaridades dos tecidos que mais influenciam na elaboração de um traje. Chataignier (2006, p.64) ressalta que o caimento, como o próprio nome sugere, é a queda proporcionada pelo grau de flexibilidade, maleabilidade ou consistência do tecido. A presença dessa qualidade é que faz com que o tecido contorne o corpo com elegância, sobretudo no sentido vertical. O uso adequado dos sentidos dos fios no corte do tecido é também um grande diferencial no design do vestuário, como se pode verificar no aspecto prático; O corte tem mistérios desconhecidos por leigos: trama e urdidura indicam as posições nas quais os fragmentos do molde devem ser colocados para que o caimento fique perfeito. Golas pernas, mangas, cós e outros, caso não sejam cortados devidamente – o modelista assinala com uma seta no molde o sentido que deve ser colocado, incluindo a posição enviesada – não terão boa queda, ou seja, ficarão tortos e darão defeito na roupa tanto em partes como no todo. (CHATAIGNIER, 2006, p.67) O caimento depende diretamente da maneira como os moldes são cortados no tecido. Conforme citação acima, os moldes não podem ser posicionados aleatoriamente, mas devem seguir um critério de alinhamento, ou seja, devem ser colocados “no fio”. Essa prática consiste em traçar uma linha reta no centro de cada molde que compõe a modelagem e posicioná-la paralela à ourela4 ou urdume do tecido. Esta reta é encontrada ainda durante o traçado e se relaciona à verticalidade do corpo, tendo o plano sagital como principal referência. 4 Borda encorpada ao longo do comprimento ou urdume do tecido e que lhe serve de acabamento. 40 Madeleine Vionnet (in KIRKE, 1998, p.54) afirma que o tecido possui três direções; o comprimento, a largura e o viés (fig. 12). Entretanto, os fios que compõem o tecido estão dispostos em apenas duas direções, enquanto o viés é o sentido diagonal, estabelecido nos espaços entre o entrelaçamento dos fios de trama e urdume. Quando pendurados pelo viés, os tecidos perdem a sustentação e distorcem pela força da gravidade, assumindo um efeito de ondulação. É possível obter esse efeito inclinando-se urdume e trama dos tecidos a exatos 45 graus. Figura 12: Fio reto (no urdume), fio transversal (na trama) e viés O corte no viés diferencia-se do corte no fio reto, como é denominado o corte no comprimento, pelo efeito de fluidez e leveza no caimento de tecidos delicados, conferindo leve elasticidade, mesmo que eles não possuam essa propriedade. Diferente dos tecidos planos, as malhas são elásticas na largura e no comprimento, embora essa característica seja mais evidente na largura. Obtidas por laçadas que formam carreiras superpostas (figura 13), as malhas classificam-se retilíneas. em tubulares Devido a ou suas características de maleabilidade e elasticidade, a malharia exige uma modelagem diferenciada maquinário próprio e para fechamento e acabamentos, sendo a máquina de overloque e a galoneira as mais apropriadas para esse fim. Figura 13: Construção da malha jersey Fonte: A partir de JONES, 2005 p.124 41 Jones (2005, p.124) atenta para o fato de que a maioria do maquinário destinado à confecção de malharia foi desenvolvida a partir da técnica de tricô manual. “Hoje o maquin|rio moderno pode produzir, em grande velocidade, tecidos e roupas muito mais complexos do que os que poderiam ser feitos { m~o” (JONES, 2005, p.124) Entre os tecidos diferenciados, convém citar as rendas, os tecidos não-urdidos5 e as passamanarias6, sendo estas últimas amplamente utilizadas como aviamentos. Segundo Jones (2005, p.163), “acabamentos como el|sticos, laços e fitas são chamados “tecidos estreitos”, e podem ter uma finalidade puramente decorativa.” Aviamentos são todos os materiais utilizados na execução ou conclusão de uma peça do vestuário, além do tecido (fig. 14). Esses acabamentos e enfeites aplicados nas roupas podem ser classificados quanto à sua funcionalidade e visibilidade na roupa (TREPTOW, 2005, p.130); Componentes ou funcionais: aviamentos utilizados na construção de peças, sem os quais as mesmas não podem ser confeccionadas. Ex.: Linhas, entretelas, botões e zíperes. Decorativos: aviamentos utilizados apenas como adorno, sem características funcionais. Ex.: Rendas, aplicações, franjas e vivos. Aparentes: aviamentos que são visíveis após a confecção da peça, como botões, rendas e fitas. Internos: Ficam no interior da roupa e têm a função de reforçar, sustentar ou identificar a peça. Exemplos: Etiquetas, cadarços, ombreiras, barbatanas, entretelas e elásticos internos. São funcionais, em sua maioria. Figura 14: Aviamentos variados 5 Tecidos formados por fibras agrupadas por umidade e pressão – processo de feltragem – que resultam numa manta compacta. (TREPTOW, 2005, p. 121) 6 Faixas lineares formadas pelo entrelaçamento de fios, formando cadarços, galões, sianinhas, fitas e elásticos. (TREPTOW, 2005, p. 121) 42 Na história da moda, destacam-se alguns criadores que souberam identificar e aplicar com especial sensibilidade todo o potencial dos tecidos na elaboração de seus trajes. Por exemplo, os estilistas Madeleine Vionnet e Cristóbal Balenciaga foram, cada um em sua época, grandes conhecedores da matéria têxtil escolhida para a execução de seus trabalhos. Com habilidade, Vionnet trabalhava tecidos delicados e fluidos como o cetim e o crepe através da moulage – método de modelagem que será analisado no capítulo 3 -, e inovou o corte da época utilizando-os no viés (fig. 15). Balenciaga, cuja formação em alfaiataria permeou toda sua obra, preferia os tecidos encorpados como as lãs e os sintéticos, que conferiam volume e estrutura ao traje (fig. 16). Ambos souberam tirar proveito do caimento dos tecidos empregados, fossem estes vaporosos ou encorpados, pois conheciam suas especificidades e o que cada tipo de tecido poderia render no processo de construção do traje. Figura 15: Vestido de tecido fluido de Madeleine Vionnet Fonte: http://gille-k.blogspot.com/2009/09/puriste-de-lamode.html Figura 16: Vestido de gazar de Cristobal Balenciaga Fonte: JOUVE, 1997, p.47 Retomando as considerações de Ostrower (1987, p.51) acerca da matéria, verifica-se que a materialidade do tecido determina métodos de manuseio, uma vez que tanto as qualidades quanto as limitações dos tecidos são condutores significativos no processo de desenvolvimento criativo do design de moda. 43 Conforme visto neste capítulo, desde o surgimento das sociedades, o ser humano vem observando a anatomia, seus contornos e movimentos, e tentando aperfeiçoar suas formas, protegê-la e adorná-la com panos, couros e peles. Aprendeu a fiar, tecer, cortar e unir peças para esse fim. Aos poucos, foi se tornando necessário ampliar a produção dessas peças outrora únicas. Com isso, a modelagem assumiu papel significativo na moda e o segmento acompanhou o processo de industrialização iniciado na Europa até chegar ao prêt-à-porter. É disso que tratará o próximo capítulo. 44 CAPÍTULO 2 - Análise da modelagem na história da indumentária Existe uma concordância entre os pesquisadores que estudam a finalidade das roupas ao afirmar que a elas servem principalmente a três funções: proteção, pudor e adorno. Embora a primeira pareça ser primordial pela funcionalidade e a segunda seja relevante pela tradição bíblica, a maioria dos estudiosos considera que o anseio de enfeitar-se é o principal motivo para os adornos e, subsequentemente as roupas. (...) é indubitável que, desde a origem, a roupa deve ter correspondido a outras funções que não à simples utilidade, particularmente no que se refere a seu papel mágico: o ser humano primitivo quis, dessa forma, prover-se de atributos que o revestissem de um poder confiscado de outras criaturas, ou pelo menos que protegessem seus órgãos genitais e o defendessem contra as influências maléficas. O vestuário também satisfazia um desejo de representação. Enfeitar-se com adornos era identificar-se a outra criatura: animal, deus, herói ou homem. (BOUCHER, 2010, p.13) J| Castilho (2004, p 81) afirma que “a possibilidade de redesenhar o próprio corpo, em razão da eterna insatisfação humana com a própria aparência, é um dos moventes que permitem a transformação do ser humano biológico [...] em ser cultural”. O sujeito exprime a imagem que cria de si mesmo em codificações que resultam na “(re)arquitetura anatômica de seu corpo”. 2.1 As origens É provável que as peles tenham sido o primeiro material utilizado no feitio de roupas, por estarem disponíveis em quantidade a partir de sua retirada dos animais caçados para alimentação (TARRANT, 1996, p.3). No entanto, elas enrijeciam quando secas e a necessidade de torná-las maleáveis e confortáveis conduziu à descoberta do curtimento7. A invenção da agulha de mão, outro fato de grande relevância, nos mostra que o ato de costurar é uma prática muito antiga: Esse processo (o curtimento) permitiu que as peles fossem cortadas e moldadas, e houve então um dos maiores avanços tecnológicos da história do homem, comparável em importância à invenção da roda e à descoberta do fogo: a invenção da agulha de mão. Grandes quantidades dessas agulhas, feitas de 7 Técnica de amaciamento e impermeabilização pelo tratamento com ácido tânico ou tanino extraído da casca de árvores como o salgueiro e o carvalho, procedimento ainda usado atualmente (LAVER, 2001, p.10). 45 marfim de mamute, de ossos de rena e de presas de leão marinho foram encontradas em cavernas paleolíticas. [...] Essa invenção tornou possível costurar pedaços de pele para amoldá-las ao corpo. (LAVER, 2001, pp.10 e 11). Talvez tenha sido neste momento que ocorreu a gênese da modelagem das roupas, ainda que de maneira muito rudimentar. Conforme enunciado acima, “costurar pedaços de pele para amoldá-los ao corpo”, ou seja, articular partes planas de determinado material flexível através da costura para adaptá-las à realidade tridimensional do corpo humano é, em síntese, a definição de modelagem do vestuário como a conhecemos atualmente. Boucher (2010, p.24) atenta para o fato de que os despojos animais quase sempre preservavam sua forma original e que o corte de algumas roupas em tecido da Idade do Bronze apresentava o formato primitivo das roupas de pele, como se essas lhes servissem de molde para o talhe no tecido. “Com efeito, os barbantes dos ombros derivam nitidamente das patas de animais e, tiradas as medidas, a dimensão dessas roupas corresponde igualmente { das peles.” (BOUCHER, 2010, p.24). Considerada um marco para a humanidade graças à contribuição para as áreas artísticas, dos costumes, científicas e tecnológicas (CHATAIGNIER, 2006, p.21), é possível que a tecelagem tenha surgido no Paleolítico (civilização dos caçadores) em regiões de clima temperado e derivada de técnicas de cestaria. Os tecidos primitivos caracterizavam-se por seu tamanho reduzido, portanto não podiam ser cortados. Sendo assim, as roupas eram conjugadas pela junção de uma série de peças e costuradas com tendões de animais ou crina de cavalo (BOUCHER, 2010, pp.23 e 24). Os povos nômades da Era Neolítica produziam lã (fig. 17) a partir da tosquia de suas ovelhas. Ao se tornarem sedentários, esses homens estabeleceram-se em povoados onde, além de criar rebanhos, podiam dedicar-se à agricultura, inclusive de fibras como linho, cânhamo e algodão. Figura 17: Representação de mulheres preparando lã no século VI a.C. Fonte: Ilustração a partir de PEZZOLO, 2007, p.261 Submetendo a tecelagem à análise sob o viés da tecnologia, pode-se supor que o domínio da técnica da tessitura foi o motivo pelo qual, durante a antiguidade, 46 civilizações proeminentes como a egípcia, grega e romana vestiam-se basicamente com tecidos retangulares enrolados ao corpo, sem cortes ou costuras. Esses primeiros trajes evidenciavam um sinal de civilização, visto que tecer tecidos amplos o suficiente para essa finalidade exigia considerável avanço tecnológico (LAVER, 2001 p.12). Boucher (1987, p.136) afirma haver dois princípios básicos da indumentária clássica. Primeiro, não havia uma forma propriamente dita para o traje, uma vez que este consistia numa peça retangular de tecido que poderia variar de tamanho de acordo com o uso ou a altura do usuário, sem que houvesse diferenciação de gênero. Segundo, o tecido era sempre drapeado, ou seja, arranjado sobre o corpo em uma profusão de pregas e dobras de acordo com algumas regras, e nunca modelado ou cortado. Isso revela que não havia roupas no sentido em que as concebemos hoje, com partes articuladas que remetem à forma corporal. Até mesmo os arranjos desses tecidos eram tradicionais e imutáveis, possibilitando o reconhecimento hierárquico de quem o portava. O peplo é um exemplo de traje feminino drapeado usado na Grécia antiga. Boucher (2010, p.89) o descreve como uma bata ou um tipo de xale preso por fíbulas 8, a princípio aberto em um dos lados, predominantemente o esquerdo, e ajustado por um cinto (fig. 18). Por questões de recato, as gregas passaram a costurar a lateral e assim surgiu o peplo fechado. Figura 18: Exemplo da colocação do peplo Fonte: Ilustração a partir de http://www.mlahanas.de/greeks/Fashion2.htm 8 Broche usado na Antiguidade para prender ou fechar os trajes de homens e mulheres. 47 Não existem referências a alfaiates ou a costureiras na antiguidade; no entanto, sabe-se da existência dos vestiflex, encarregados de produzir vestes, ou seja, tecidos de tamanhos diversos. De acordo com Wilson (1985, p.30), os alfaiates foram mencionados pela primeira vez no período clássico, num edital do imperador romano Diocleciano. Embora hoje pareça que a grande diferença entre as roupas seja aquela estipulada pelo gênero, na antiguidade, homens e mulheres vestiam-se basicamente da mesma maneira, com exceção de poucas civilizações que diferenciavam seus trajes conforme o gênero do usuário, a exemplo da civilização cretense. Entretanto, para efeito de análise das formas de vestir, convém considerar que a diferença primordial ocorreu quando os trajes começaram a ajustar-se ao corpo: (...) as duas divisões fundamentais do vestuário são o pregueado e o talhado. É evidente que a necessidade de tirar medidas se impõe para certos pregueados cosidos, a mesma n~o implica a prévia elaboraç~o de “moldes”. Para certas peças talhadas, como blusas com mangas e as botas encontram-se por vezes modelos preparados, como os moldes de casca de bétula dos Siberianos (LEHOIGOURHAN, 1971, p.193). Examinando ajuste e afastamento essa das relação roupas, de a civilização de Creta diferenciava-se pela indumentária ajustada ao corpo, cuja beleza técnica e senso de geometrismo não encontram nenhum paralelo no período. Os fragmentos artísticos deixados pela cultura cretense – estatuetas (fig. 19), vasos e pinturas – revelam imagens de mulheres vestindo saias longas e justas na cintura, em formato de sino e adornadas por babados; o torso era coberto por uma espécie de peça com mangas que deixava os seios à mostra. Nota-se também a diferenciação Figura 19: “Deusa” adorada pelos cretenses Fonte: http://povosdaantiguidade.blogspot.com da indumentária para cada sexo. O feitio dessas peças revela conhecimento avançado das técnicas de confecção de roupas, o que leva a crer que tal atividade era uma arte desenvolvida entre os cretenses (BOUCHER, 1987, p.78 e KÖHLER, 2005, p.103). 48 A civilização persa, de exímios cavaleiros nômades, contribuiu com uma inovação de importância capital para a história da indumentária; a invenção das calças compridas. Denominadas por algumas fontes como anaxyrida, as calças foram representadas em relevos por volta de 400 a.C., em Persépolis, capital do Império Persa (BOUCHER, 2010, p.52). O uso de roupas costuradas tornou-se o emblema dos povos considerados bárbaros pelas civilizações clássicas. Estes povos migraram do norte e do leste europeu, regiões onde o frio era intenso, e sua contribuição para o vestuário se evidencia nas soluções funcionais representadas pelas túnicas costuradas e pelas calças compridas (BRAGA, 2004, p.31). Do final da Antiguidade (476 d.C.) até meados da Idade Média, não houve grandes mudanças nas formas do vestuário em quase toda a Europa, em grande parte por causa da doutrina cristã. Homens e mulheres vestiam-se de forma similar na aparência e na modelagem dos trajes, exceto pelo comprimento das túnicas, as quais podiam ser mais curtas para os homens em caso de guerras, trabalho e lazer. “A tridimensionalidade não estava na confecção da vestimenta, mas passou a existir à medida que o tecido que caía em torno de quem o usava foi amarrado, enfaixado, preso por cintos de diferentes maneiras” (HOLLANDER, 1996, pp.60 e 61). A princípio, as túnicas possuíam formas retangulares, poucos cortes e aproveitavam toda a largura do tecido. Aos poucos, os tecidos passaram a ser cortados e as partes começaram a corresponder a determinadas áreas do corpo ou ser adicionadas para embelezar o traje. Recortes adaptados à inclinação dos ombros favoreceram o surgimento das cavas, elemento responsável pelo encaixe das mangas (TARRANT, 1996, p.31). Alguns modelos de túnicas podem ser observados na figura 20: a. Dois tecidos costurados, deixando uma abertura para a cabeça e as laterais abertas, semelhante a um poncho. O urdume posiciona-se verticalmente em relação ao corpo do usuário e não há costura nos ombros. b. Dois tecidos unidos pelos ombros com abertura para a cabeça e as laterais abertas. O urdume posiciona-se horizontalmente. c. Encontrada na tumba de Kha (circa 1400 a.C.) no Egito, a túnica com costuras laterais apresenta abertura para os braços e utiliza a largura do tecido. d. Modelo de túnica egípcia do começo da era cristã tecida inteiramente de punho a punho, sem recorte para encaixe das mangas. 49 e. Forma antiga de camisa com aberturas laterais e mangas aplicadas. Esse tipo de modelagem aparece durante todo o período medieval em ilustrações de manuscritos. f. Com nesgas laterais que atribuem um formato rodado à saia. Este traje baseia-se nos achados do antigo povo russo Pazyryk. g. Com nesgas centrais na frente e nas costas que possibilitavam a montaria. Baseada na túnica de São Luis, relíquia preservada em Notre Dame, em Paris. h. Túnica com a parte superior razoavelmente justa e triângulos de tecido nas axilas e nesgas nas laterais e centros da frente e das costas. Baseada na túnica encontrada no corpo de um homem na Suíça. i. Camisa típica masculina do século XVIII, com pequenos triângulos no decote e nas laterais, e quadrados nas axilas. (TARRANT, 1996, p.31) Figura 20: Tipos de túnicas Fonte: Ilustração partir de TARRANT, 1996, p.31 50 Graças às Cruzadas, a introdução de tecidos e ornamentos provenientes da intensificação do contato com o Oriente rompeu com a uniformidade vigente no período, enriquecendo as formas simples, uma vez que a diferenciação na aparência se dava pela escolha de materiais mais refinados pelas classes sociais abastadas como, por exemplo, o cetim, o veludo e o brocado. (KÖHLER, 2005, p.161, WILSON, 1985, p.32, PEZZOLO, 2007, p.262). As técnicas de corte das roupas também estavam entre os conhecimentos advindos do Oriente e influenciaram os modos de vestir das mulheres, que começaram a ajustar os vestidos na parte superior por meio de abotoamento lateral (LAVER, 2001, p.56). Não é certo de onde veio o desejo por roupas mais ajustadas, porém o desenvolvimento das armaduras e a consequente necessidade de roupas de baixo podem ter sido o que determinou modificações significativas na articulação do traje masculino. Na Idade Média, mais especificamente no final do século XII, as armaduras de placas metálicas (fig. 21) substituíram as anteriores, feitas em cota de malha9 que haviam vestido os soldados por vários séculos. Figura 21: Armadura medieval metálica Fonte: http://photosfan.com/armour/ Como as armaduras metálicas eram feitas a partir das medidas de um guerreiro específico, as roupas de baixo que protegiam o corpo do contato com o metal também precisavam ser aderentes e acolchoadas (TARRANT, 1994, p.46). Esses trajes 9 Cota de malha: Espécie de tecido confeccionado com elos de metal. 51 eram confeccionados em linho pelos mesmos armeiros que forjavam as armaduras; portanto, esses artesãos são considerados os primeiros alfaiates da Europa (HOLLANDER, 1996, p.62). Segundo Hollander, entretanto, a real inovação refere-se à maneira como a armadura reconstruía as partes do corpo masculino separadamente e as juntava de uma nova forma, substituindo a estrutura humana por outra (1996, pp.61 e 62). Então, o vestuário masculino começou a adquirir novas e interessantes linhas para o torso e membros em detrimento ao aspecto folgado das túnicas. O traje masculino, de fato, ajustava-se ao corpo e os conhecimentos de modelagem começaram a se apresentar como ferramenta capaz de alterar os corpos de maneira criativa, além de proporcionar funcionalidade ao vestuário. [...] a engenhosidade dinâmica formal da armadura metálica medieval sugere que esta era projetada para realçar criativamente a beleza articulada dos corpos masculinos por inteiro, de modo moderno, com um conjunto de imagens abstratas de brilho multifacetado e uma aparência sobrenatural de força. Foi um grande avanço estético assim como prático (HOLLANDER, 1996, PP.61 e 62). Um aspecto técnico citado por Kirke (1998, p.145) trata da inserção de triângulos de cota de malha nas axilas para permitir liberdade de movimentos. Essas formas triangulares, conhecidas por nesgas, foram os primeiros elementos de tridimensionalidade aplicados também às roupas e que permitiram uma modelagem que aproximasse ainda mais o tecido do corpo. 2.2 O papel da modelagem para o desenvolvimento da moda A origem da moda está geralmente associada à emergência do capitalismo mercantil na Idade Média tardia e é considerada um acontecimento intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do mundo moderno ocidental (SVENDSEN, 2010, p.24). Segundo Lipovetsky (1989, p.23), “a renovaç~o das formas se torna um valor mundano, a fantasia exibe seus artifícios e seus exageros na alta sociedade, a inconstância em matéria de formas e ornamentos j| n~o é exceç~o, mas a regra permanente: a moda nasceu.” Entretanto, para Svendsen (2010, pp.24 e 25) seria mais correto dizer que a moda só se tornou realmente uma força no século XVIII, nos primórdios da Revolução Industrial. Nessa época, a burguesia em ascensão usava as roupas para indicar seu status social e disputar o poder com a aristocracia feudal. 52 Embora o processo da moda tenha atingido outros setores, certamente é com o vestuário que mantém um vínculo mais privilegiado (LIPOVETSKY, 1989, p.24). Caldas (2006, p.52) afirma que a inovação das aparências era fruto da vontade de indivíduos pertencentes à elite os quais, em negociação direta com costureiras e alfaiates, exerciam relativa autonomia para alterar detalhes como o comprimento de uma manga ou a aplicação de uma renda no decote. Entretanto, as formas gerais continuavam as mesmas. As modificações rápidas dizem respeito, sobretudo aos ornamentos e aos acessórios, às sutilezas dos enfeites e das amplitudes, enquanto a estrutura do vestuário e as formas gerais são muito estáveis. A mudança de moda atinge antes de tudo os elementos mais superficiais, afeta menos frequentemente o corte de conjunto dos trajes. (LIPOVETSKY, 1989, p.32) Com o advento da moda, surgiu um tipo de vestuário inédito e claramente diferenciado para cada sexo, que revolucionou o modo de trajar e estabeleceu os alicerces para o vestuário moderno. A especialização dos ofícios foi fundamental para o início da dinâmica da moda. Ainda na Idade Média, por volta do século XIII, iniciou-se a divisão do trabalho respaldada pelas corporações de ofícios ou guildas – associações de artesãos de um mesmo ramo – em detrimento do sistema artesanal existente até então. Entre 1260 e 1270, o Livre dês métiers de Étienne Boileau enumerava profissões dedicadas especificamente ao vestuário em Paris, com ênfase para os “alfaiates de vestido, costureiros, sapateiros, forradores, fabricantes de malhas etc.” Apenas os profissionais do sexo masculino eram habilitados a vestir os dois sexos. Lipovetsky ressalta a importância dos alfaiates no período: Atemo-nos aqui ao traje curto masculino que inaugura os começos da moda, como teria ele podido aparecer sem um corpo de ofícios já altamente especializado? À diferença do blusão medieval, longo, amplo, que se enfia pela cabeça, o novo traje masculino é muito estreito na altura da cintura e alteia o peito – tal transformação no vestuário exigiu um corte de grande precisão, um trabalho dos alfaiates cada vez mais complicado, uma capacidade de inovação nas técnicas de confecção (abotoamento, laços...). Ainda que os alfaiates e as profissões do vestuário não tenham tido nenhum reconhecimento social e tenham permanecido à sombra de seus clientes prestigiosos, contribuíam de maneira determinante, por sua habilidade e por suas múltiplas inovações anônimas, para os movimentos ininterruptos da moda; conseguiram, graças ao processo da especialização, concretizar o ideal de fineza e de graça das classes aristocráticas. (LIPOVETSKY, 1989, p.52) As guildas de alfaiates regulamentavam a profissão, assim como todas as outras corporações de ofício procedentes da Idade Média e uma das regras do negócio era manter em segredo as técnicas de corte e costura. Por isso, não há muitos registros dos moldes ou detalhes de como fazer as costuras, a não ser pelas peças remanescentes. A 53 respeito das praticas antigas, sabe-se que os alfaiates guardavam moldes de peças básicas do vestuário e as adaptavam para cada cliente. No período medieval, o papel não era disponível e é possível que os moldes fossem mantidos em tecido. As medidas de cada cliente eram tiradas e registradas em tiras de pergaminho, já que a fita métrica ainda não havia sido inventada. Entretanto, o que distinguia um bom alfaiate era a habilidade de marcar o tecido diretamente sem um molde de papel, usando apenas seu olhar apurado e sua intuição (TARRANT, 1996, pp.104 e 106). O traje masculino era composto pelo gibão, espécie de jaqueta curta, fechada por botões e justa na cintura, e por calções colantes que delineavam os contornos das pernas; o traje feminino manteve a tradição do vestido longo e farto, porém mais ajustado e decotado, colocando em evidência o busto, os ombros, o colo e os quadris (LIPOVETSKY, 1989, pp.30 e 66). Ao analisar a construção do gibão que pertenceu ao nobre francês Charles de Blois (1319/1364), um dos poucos trajes remanescentes deste tipo (fig. 22), Tarrant (1996, p.49) verificou o empenho do alfaiate anônimo em desenvolver técnicas para obter um bom caimento. Trata-se de uma espécie de jaqueta confeccionada em brocado de seda, abotoada no centro da frente e nas mangas, extremamente ajustada ao abdômen, ao quadril e aos braços, e proeminente no tórax. Figura 22: Gibão de Charles de Blois e detalhe do abotoamento Fonte: http://www.musee-des-tissus.com/en/02_02_set.html 54 Percebe-se que o pensamento construtivo aplicado nesse artefato é muito semelhante ao da armadura, principalmente na junção entre as mangas e o corpo da veste. As cavas profundas permitem que as mangas cubram parte do tórax e das costas. O efeito de tridimensionalidade necessário para conferir movimento e caimento à peça foi obtido com a aplicação de uma nesga inserida dentro de um corte da manga, possibilitando o encaixe desta no corpo da roupa. Há vários recortes desnecessários para o caimento, usados somente para economia de tecido (fig. 23). Figura 23: Modelagem do gibão de Charles de Blois Fonte: Ilustração a partir de TARRANT, 1996, p.50 O abotoamento é uma inovação que permitiu o acesso e o ajuste do traje ao corpo. Embora botões tenham sido encontrados em sítios arqueológicos pré-históricos, não há certeza quanto a estes aviamentos terem sido usados para fins funcionais ou meramente decorativos (TARRANT, 1996, p.20). Abotoamentos exigem que um lado se sobreponha ao outro para acomodar botões e caseados, recurso conhecido como “transpasse”. Antigamente, era comum para ambos os sexos que o lado esquerdo se posicionasse sobre o direito, como são as camisas e casacos masculinos na atualidade. Talvez a origem esteja no fechamento das capas com o lado esquerdo sobre o ombro direito, de maneira a permitir o manuseio da 55 espada pelo braço direito. Outra hipótese: em alguns tipos de vestimentas, é possível formar um blousé10. Este espaço entre a roupa e o corpo era um lugar seguro para guardar pequenos itens pessoais e até alimentos. É provável que o fato de a maioria das pessoas serem destras tenha influenciado esse tipo de fechamento, uma vez que ele possibilita o acesso para o interior do traje. (TARRANT, 1994, pp.22 e 24) No período Renascentista, o desenvolvimento científico e tecnológico conduziu à tomada de consciência de que é possível teorizar e decodificar o mundo. A geometria analítica11 e o sistema de coordenadas12 possibilitaram a invenção de ferramentas e tecnologias que revolucionaram a construção das roupas, graças à decodificação do corpo em medidas (SAMPAIO, 2010, p.3). As indústrias têxteis emergiram e o uso de enchimentos, entretelas, forro e barbatanas favoreceram o desenvolvimento da modelagem. Uma gama de tecidos de diferentes pesos e graus de flexibilidade afetou a maneira como as roupas eram estruturadas e apontou para novas possibilidades (TARRANT, 1996, p.93). Os grandes avanços nas técnicas de corte começaram por volta de 1550 e podem ser vistos na arte do período; por exemplo, na obra do pintor italiano Giovanni Battista Moroni (1525-1578), nos quadros “A mulher de vestido vermelho”, de 1560 (fig. 24) e “O Alfaiate”, de 1570 (fig. 25). A figura feminina representada no quadro de Moroni vestia o corpete, peça rígida e alongada, extremamente ajustada ao torso para definir a silhueta. Os seios ficavam achatados pela compressão porque não existiam recursos capazes de criar espaço para acomodar o busto. Os decotes eram quadrados, amplos e baixos e o abotoamento encontrava-se nas costas ou nas laterais. Os corpetes eram usados com saias amplas em forma de cone e mangas acolchoadas – a figura feminina parecia triangular. (TARRANT, 1996, p.56) 10 Excesso de tecido acima da cintura quando se ata um cinto ou um cordão. 11 Estudo da geometria através dos princípios da álgebra. Esquema criado pelo filósofo e matemático René Descartes, em 1637, com o objetivo de localizar pontos num determinado espaço. É formado por dois eixos perpendiculares - um horizontal denominado abcissa x e um vertical de nominado ordenada y- que se cruzam na origem das coordenada. Fonte: http://www.mundoeducacao.com.br/matematica/plano-cartesiano.htm. 12 56 Figura 24: “Mulher de vestido vermelho”, Moroni, 1560 Fonte: http://www.wga.hu/index1.html Figura 25: “O Alfaiate”, Moroni, 1570 Fonte: http://www.wga.hu/index1.html Enquanto as artes representavam as modas em vigência, a invenção da imprensa, ainda no século XV, estimulou a disseminação do conhecimento. O Libro de Geometria, Pratica y Traça, editado em 1580 e reeditado em 1589, de autoria do espanhol Juan de Alcega (fig. 26), é a primeira obra sobre a arte da alfaiataria (TARRANT, 1996, p.106; SORBER, 2000, p.24). Este primeiro registro destinava-se a alfaiates experientes e trazia descrições de como posicionar os moldes sobre o tecido de modo econômico. Não havia qualquer referência a costuras, forros, entretelas ou estruturação, uma vez que aos alfaiates cabiam as funções que demandavam maior habilidade – modelar e cortar –, enquanto as costuras e a montagem das peças ficavam por conta dos costureiros ou costureiras. (TARRANT, 1996, p.106). Esses estudos assemelham-se muito ao que ainda hoje é feito nas confecções para economizar tecido e otimizar a produção industrial, prática conhecida como “encaixe”. Todavia, essa técnica desenvolveu-se a ponto de haver, hoje, programas informatizados específicos para esse fim. 57 Figura 26: Estudos de encaixes no Libro de Geometria, Pratica y Traça Fonte: Sorber in Debo, 2003, p.25 Apesar da busca pela parcimônia no uso dos tecidos, as partes eram cortadas com excessos que compensavam a falta de exatidão do traçado e que só seriam eliminados quando montadas com alfinetes e provadas nos clientes. Entretanto, essa experimentação possibilitava aos alfaiates averiguar os lugares onde era necessário remover ou adicionar pedaços de tecido. Assim, o trabalho cotidiano foi apurando os métodos de corte. (TARRANT, 1996, p.106). Fontes (2007) atenta para o fato de que, apesar da simplicidade dos instrumentos de trabalho – tesouras, réguas, compassos – um alfaiate devia possuir conhecimentos de geometria, aritmética e das proporções do corpo humano, o que justifica o longo período de aprendizagem necessário para o exercício da função. O ambiente de trabalho simples é retratado em algumas iluminuras da época, a exemplo da gravura (fig. 27) encontrada na Encyclopedia of Trades and Industry de Denis Diderot (1751-1777) e descrita por Roche (2007, pp.324 e 325) como uma cena típica, que apresenta “os principais est|gios da manufatura, isto é, medir, cortar, costurar, exibir”: A oficina do alfaiate é uma sala grande e arejada, com muita luz natural, que entra por uma janela ampla com vista para rua, e que nos lembra da necessidade de uma boa iluminação para o trabalho de costura e da importância da acuidade visual e do tino para as relações sociais; o quadro de empregados é digno do ofício. A visão que a gravura nos dá dessa sala inclui cinco ou seis artífices, trabalhando de acordo com os regulamentos, sentados de pernas cruzadas junto a uma bancada e usando um sobretudo, em quanto outro jornaleiro, debruçado sobre uma mesa, corta o tecido utilizando um modelo, um aprendiz aquece um ferro ao fogo, e o mestre alfaiate tira as medidas de um cliente. O alfaiate está bem-vestido, quase não se distingue do cliente, o que é bom em termos de propaganda para seu ofício. O artista [...] construiu um cenário enriquecido por uns poucos objetos cuidadosamente dispostos (tesouras sobre a mesa, retalhos de tecido, trajes ainda inacabados pendendo da parede) e organizado de acordo com as atividades características do ofício. (ROCHE, 2007, p.324) 58 Figura 27: Alfaiataria do século XVIII Fonte: http://picasaweb.google.com/lh/photo/UtotrjByy0Cc7m9C-jlvfw Durante aproximadamente quatro séculos, os alfaiates do sexo masculino conceberam as roupas para homens e mulheres. Apesar de se distinguirem em forma e simbolismo sexual, as roupas eram confeccionadas artesanalmente, com os mesmos materiais e técnicas para ambos os sexos e igualmente ornamentadas. Armações e barbatanas de metal, madeira ou ossos de baleia eram encontradas tanto nos gibões quanto em roupas femininas, para dar-lhes forma e manter golas e mangas firmes e estruturadas (TARRANT, 1996, p.48). Durante todo esse tempo, os homens desenharam, tiraram as medidas, cortaram e ajustaram as roupas de todos, e outros homens as confeccionavam, dando-lhes estrutura, enchimento, acolchoamento e rigidez para adequá-las à moda para ambos os sexos. As guildas de alfaiates tinham tanta importância quanto as outras instituições artesanais e profissionais e, como elas, eram totalmente masculinas. (HOLLANDER, 1996, p.89) A hegemonia masculina no ofício da alfaiataria só foi quebrada em 1675, quando as mulheres conseguiram autorização para executar trajes femininos (LIPOVETSKY, 1989, p.52). Desde então, com a fundação da guilda das modistas, ocorreu uma divisão na maneira como eram concebidos e confeccionados os trajes masculinos e femininos. A alfaiataria prosseguiu com a tradição artesanal para os trajes masculinos. No século XIX, seguiu uma tendência de sobriedade e discrição, enaltecendo a construção do traje e rejeitando os efeitos produzidos pela ornamentação e o uso das cores fortes. Naquele momento, conhecido como a “grande renúncia”, o homem abdicava dos 59 elementos de ostentação característicos da aristocracia, fato que só ocorreria com o vestuário feminino um século mais tarde, por volta de 1920. A alfaiataria era comparada à arquitetura e merecedora do mesmo respeito concedido a todos os empreendimentos masculinos, fossem eles técnicos ou criativos: [...] A confecção de roupas para homens era de fato um assunto sério, envolvendo a calibração e o ajuste de moldes de papel cuidadosamente cortados e necessários à confecção do traje, e uma habilidade refinada em cortar e transpô-los para o tecido e na construção dos forros internos que criavam o caimento da roupa. (HOLLANDER, 1996, pp.91 e 92) Por outro lado, cabia às mulheres a tarefa de executar a costura fina, os ornamentos elaborados para o vestuário feminino e também confeccionar camisas, roupas de baixo e roupas infantis. Apesar de serem reconhecidamente habilidosas nos serviços manuais, as mulheres não eram consideradas criativas do ponto de vista tecnológico (HOLLANDER, 1996, pp.88, 89 e 90). Não obstante tenha ocorrido diferenciação das atividades entre alfaiates e costureiras no feitio das roupas masculinas e femininas, os espartilhos eram considerados – pela sua estrutura e rigidez –, “uma divis~o lógica da arte da alfaiataria masculina, descendendo da própria alfaiataria similar { dos armeiros”, segundo Hollander (1996, p.90). De fato, esta peça-chave fundamental na composição do traje feminino continuou a ser projetada e confeccionada por alfaiates (fig. 28). O trabalho das costureiras consistia então em confeccionar as saias e as mangas e adicioná-las ao corpete previamente moldado, bem como criar os detalhes superficiais ornamentais que poderiam ser facilmente desmontados e reutilizados de outras maneiras. (HOLLANDER, 1996, p.91) Figura 28: Oficina especializada na confecção de espartilhos Fonte: STEELE, 2003, p.17 60 Fontes (2007) ressalta a contribuição do conhecimento adquirido pelos alfaiates no processo de industrialização das roupas que começou no início do século XIX. Procurando exatidão nas medidas básicas do corpo humano, os alfaiates lançaram as bases da antropometria. Deve-se ao célebre alfaiate francês H. Guglielmo Compaign o estabelecimento das primeiras tabelas de medida e o princípio da gradação – sistema de ampliação e redução para vários tamanhos. Sua obra “A Arte da Alfaiataria”, de 1830, revolucionou as técnicas de corte em toda a Europa. Em parte, a retomada dos valores clássicos foi também responsável pelo aprimoramento dos trajes masculinos, os quais se caracterizavam pelo tórax e ombro levemente aumentados com o uso de aviamentos como ombreiras e entretelas (HOLLANDER, 1996, p.136). O interesse pela proporção clássica induziu à substituição das fitas individuais de pergaminho pela fita métrica, dividida em centímetros e patenteada pelo alfaiate Alex Lavigne em 1878 (BERG; ANCELMO, 2009, p.6). Graças a esta invenção, verificou-se que na maioria das pessoas, algumas medidas se relacionavam entre si e, portanto, poderiam ser adaptadas a um molde para servir em tamanhos diferentes. Isto aperfeiçoou as bases para a gradação, sistema utilizado para a fabricação das roupas prontas que se sofisticou com o passar do tempo e é aplicado ainda hoje. (TARRANT, 1996, p.137, HOLLANDER, 1996, p.136). 2.3 A industrialização no século XIX O crescimento dos centros urbanos na Europa e nos Estados Unidos promoveu uma grande demanda por roupas prontas e, até o fim do século XIX, já era possível encontrar grandes confeccionistas capazes de produzir peças por preços acessíveis. A princípio, essa indústria supria a procura por roupas de trabalho para os homens e os uniformes militares. O desenvolvimento da indústria da confecção fez necessário o emprego dos moldes para padronizar a produção do vestuário em larga escala. A gradação para os diferentes tamanhos e tipos físicos propiciou maior eficiência na produção e economia de material (DEBO, 2000, p.10). Na Europa, principalmente na França e na Inglaterra, desde 1820 produziam-se roupas baratas em série, com um grande impulso em 1840, mesmo antes da mecanização promovida pelas máquinas de costura (FORTY, 2007, p.75, LIPOVETSKY, 1989, p.71). O desenvolvimento técnico alcançado pelos alfaiates foi determinante para a consolidação da indústria da confecção e para a introdução do vestuário masculino na 61 era da industrialização, muito antes do feminino. Lipovetsky (1989, p.101) afirma que a confecção feminina permaneceu restrita por motivos técnicos; [...] as técnicas ainda não permitem uma confecção precisa e ajustada para toda uma parte do vestuário feminino; os primeiros vestidos feito sob medidas padronizadas só aparecerão depois de 1870. A confecção realiza sobretudo os elementos amplos da toalete (lingerie, xales, mantilhas, mantôs e casacos curtos); no que se refere aos seus vestidos, as mulheres continuaram e continuarão ainda por muito tempo a dirigir-se às suas costureiras. As camisas masculinas foram as primeiras peças do vestuário produzidas em série. Até o século XVIII, as camisas eram feitas a mão nas manufaturas, como indica o sentido original do termo, uma vez que as máquinas de costura ainda não existiam. No século XIX essas manufaturas começaram a mecanizar-se, embora conservassem sua antiga denominação. As camisas simples de trabalho, sem colarinho e confeccionadas com tecido grosseiro, podiam ser confeccionadas com antecedência nos tamanhos pequeno e grande, uma vez que n~o precisavam ser “sob medida”. Foi o primeiro passo para o segmento de confecção que hoje conhecemos por prêt-à-porter. (TOUSSAINTSAMAT, 1990, p.104). A invenção da máquina de costura certamente alavancou a fabricação das roupas prontas. A primeira máquina de costura (fig. 29) foi patenteada em 1846 por Elias Howe nos Estados Unidos, porém sua fabricação só começou efetivamente no início da década de 1850. Os dois maiores fabricantes, a Wheeler & Wilson e a Singer & Co, logo descobriram que era mais interessante suprir o mercado formado pelas donas de casa que o industrial. Assim, as máquinas de costura tornaram-se também aparelhos domésticos (FORTY, 2007, p.132). Figura 29: Primeira máquina de costura Fonte: http://digitalgallery.nypl.org/nypldigital/ dgkeysearchdetail.cfm?trg=1&strucID= 134744&imageID=112333&total=1&e=r 62 Apesar de trabalhar pelo menos dez vezes mais rápido que as costureiras, as primeiras máquinas de costura não podiam ser usadas em todas as etapas do processo de confecção industrial, ficando restritas apenas às costuras simples e aplicações de enfeites. Então, os donos das confecções passaram a explorar os recursos barateados pelas máquinas em detrimento dos detalhes que exigiam os dispendiosos acabamentos feitos à mão. Dessa maneira, entre os anos 1860 e 1870, a moda feminina foi influenciada pelo aumento de adornos, principalmente os babados aplicados aos vestidos a baixo custo (FORTY, 2007, p.77). Todavia, antes da introdução das máquinas de costura, já estava instituída a divisão do trabalho entre cortar e costurar e, até mesmo a costura das diversas partes de uma roupa eram confeccionadas por artífices diferentes. Nas últimas duas décadas do século XIX era possível encontrar roupas femininas de boa qualidade em lojas de departamentos. É importante ressaltar que, desde suas origens, a indústria da confecção foi fundamental para a difusão das tendências de moda. Os magazines ou lojas de departamentos introduziram inovações como o acesso livre e os preços fixados nas mercadorias, fatores que impulsionaram a democratização da moda (CALDAS, 2006, p.54). 2.4 As inovações da alta-costura No século XIX, mais especificamente em 1857, o inglês Charles Frederick Worth assentou os fundamentos do sistema de produção e difusão que determinou os rumos da moda e prevaleceu durante cerca de um século – a alta-costura. Até então, as costureiras, profissionais humildes geralmente do sexo feminino, eram meras executoras que se submetiam às vontades estéticas de sua clientela: visitavam-nas em suas residências para tirar medidas e confeccionavam as roupas segundo suas habilidades e conhecimentos técnicos com os tecidos escolhidos em armarinhos pela cliente. “A originalidade da roupa é antes subordinada { escolha do tecido do que { forma em si” (GRUMBACH, 2009, p.16). Nem sempre o efeito desta associaç~o era bem sucedido. ”Falhas grosseiras no gosto visual, resultado de colaborações ineptas entre uma cliente ansiosa e uma artesã obediente ou sem talento, podiam algumas vezes conduzir a resultados estranhos e desarmoniosos.” (HOLLANDER, 1996, p.151) 63 Worth instituiu a figura do couturier ou costureiro, artista criador cujo gosto era soberano ao desejo da cliente. O produto da criação passou a trazer a assinatura do costureiro numa etiqueta e este profissional adquire status de artista moderno. “N~o é mais apenas a riqueza do material que constitui o luxo, mas a aura do nome e renome das grandes casas, o prestígio da grife, a magia da marca.” (LIPOVETSKY E ROUX, 2005, p.43). Com a alta-costura, a moda organizou-se como a conhecemos hoje, pelo menos em suas linhas gerais: “renovaç~o sazonal, apresentaç~o de coleções por manequins vivos e, sobretudo uma nova vocação, acompanhada de um novo status social do costureiro.” (LIPOVETSKY, 1989, p.79). É o início da imposiç~o da din}mica cíclica de obsolescência aos produtos de moda. Graças à experiência em lojas de armarinhos em Londres, Worth adquiriu valiosos conhecimentos sobre tecidos. Em Paris, empregou-se na conceituada loja Gagelin, inicialmente vendendo tecidos e, posteriormente, xales e mantos. Ali, teve acesso ao que havia de mais avançado em termos de vestuário feminino. Percebendo que as vendas dessas peças dependiam da maneira como eram demonstradas pelas jovens atendentes, Worth criou vestidos simples, porém muito bem modelados, desenvolvidos graças à observação das técnicas de alfaiataria inglesa, em detrimento dos vestidos espalhafatosos da época. Uma vez elaborados os moldes sob medida, era possível cortar e costurar quantos vestidos fossem necessários. Worth inaugurou um departamento de costura para criação de vestidos de verão e, com essa estratégia, vendia também os tecidos e aviamentos fornecidos pela loja. Em 1858, fundou seu próprio ateliê (DE MARLY, 1990, p.24). Em verdade, Worth empregou o esquema de comercialização praticado nas alfaiatarias masculinas desde que, em 1791, o Antigo Regime havia permitido aos alfaiates e costureiras a estocagem e venda de tecidos, e a fabricação antecipada de trajes, fato que era proibido até então (LIPOVETSKY, 1989, p.101). Os alfaiates produziam o traje a partir de formas pré-estabelecidas e empregavam os materiais disponíveis em seus estabelecimentos. Uma vez tomadas as medidas e escolhido o modelo, todas as operações técnicas que se seguiam para a realização do traje eram um mistério para o cliente. (HOLLANDER, 1996, p.150) “Worth, um inglês com a tradiç~o da alfaiataria p|tria atr|s de si, tirou disto a idéia simples de inventar uma linha de produtos possíveis para clientes em potencial relacionados com os tecidos e ornamentos disponíveis em sua loja. E, desta maneira, ele tornou-se o primeiro “estilista” verdadeiro, aquele que cria um grupo de composições já acabadas inteiramente da sua imaginação, que abrange 64 todos os aspectos da sua aparência, exatamente como aquelas de um artista. A cliente precisa apenas escolher qual das visões ela deseja tornar-se.” (HOLLANDER, 1996, p.150) Tecnicamente, é importante salientar que a grande mudança trazida pela altacostura ocorreu primordialmente na modelagem das roupas. Antes, a linha geral do vestuário era mais ou menos estável e apenas algumas partes do traje sofriam alterações de corte. A maior parte das modificações acontecia na exterioridade do traje, com a aplicação de detalhes e adornos, como passamanarias, fitas e plumas, entre outros aviamentos e acessórios. É esse dispositivo que vai ser brutalmente modificado pela Alta-Costura, a partir do momento em que a vocação suprema do modelista reside na criação incessante de protótipos originais. O que passou ao primeiro plano foi a linha do vestuário, a ideia original, não mais apenas no nível dos adornos e acessórios, mas no nível do próprio ‘molde’. Chanel poder| dizer mais tarde: “Façam primeiro o vestido, n~o façam primeiro o acessório”. (LIPOVETSKY, 1989, p.80) De Marly (1990, p.26) ressalta a obsessão de Worth pelo caimento exato. Ele foi o primeiro a entender a estreita relação entre o tecido e o design das roupas e começou a alinhar os moldes que compõem a roupa com o urdume do tecido, visto que o sentido como o tecido era cortado comprometia o resultado final. Desde então, essa prática conhecida como “colocar o molde no fio”, tornou-se um dos fundamentos da modelagem. O corte e o acabamento inigualáveis em qualidade determinaram a denominação de “alta-costura” atribuída pela Sra. Moulton, uma de suas clientes americanas, em 1863 (SHAEFFER, 1993, p.17). Nenhum outro termo poderia expressar sua determinação em aprimorar os métodos de modelagem. Como admirador da alfaiataria, ele indignava-se com a abordagem descuidada e pouco criativa das costureiras, arraigadas a rígidas tradições. Não importava o que os costureiros fizessem, certamente existiam novos caminhos para obter velhos resultados simplificando o processo e desenvolvendo novos estilos de roupas ao mudar a técnica. “Ele era como um engenheiro ou um arquiteto para quem a solidez da construção era de fundamental importância. Nenhuma quantidade de decoração poderia fazer uma casa ou um vestido certo se as fundações estivessem erradas.” (DE MARLY, 1990, p.26) Entre as várias invenções para o vestu|rio da época est| o “recorte” ou “linha princesa” (fig. 30). A partir de experimentos para descer a costura da linha da cintura para um pouco acima da linha dos quadris, Worth conseguiu eliminar a costura horizontal que unia corpete e saia, graças a recortes verticais descendo do busto até os 65 quadris. Esta simples, porém hábil descoberta tornou-se modelo de construção do vestuário a partir de 1875 e é um tipo de corte empregado até os dias atuais. (DE MARLY, 1990, pp.85 e 144) Figura 30: Vestido com recorte “princesa” de Charles Frederick Worth, 1892. Fonte: http://www.kci.or.jp/archives/digital_archives/photos/100_xl_AC09206.jpg É interessante observar que, apesar do caráter aparentemente artesanal e exclusivo atribuído à alta-costura, Worth soube tirar proveito de técnicas industriais típicas da produção em massa para atender a imensa demanda. Além do auxílio das máquinas de costura, uma série de modelagens padronizadas com partes modulares e intercambiáveis possibilitava o desenvolvimento de uma quantidade considerável de modelos diferente (SHAEFFER, 1993, p.17). Assim, era possível que um vestido fosse composto, por exemplo, por um corpo padronizado do tipo A, com mangas do molde B e saia do molde C. Então, as partes poderiam ser unidas na máquina de costura que fazia as costuras longas e aplicava os enfeites, enquanto os acabamentos e os bordados eram feitos à mão. (DE MARLY, 1990, p.102). Sendo assim, a alta-costura instituiu a série limitada pouco antes de se difundirem as novas técnicas de fabricação industrial, as quais permitiram produzir em 66 quantidade as mercadorias padronizadas, por volta de 1880. (LIPOVETSKY E ROUX, 2004, p.44) Com a alta-costura, iniciava-se a comercialização de moldes de papel e telas13 de modelos, para que confeccionistas estrangeiros pudessem reproduzi-los em série em seus países. Esta estratégia comercial inovadora tornou-se prática comum entre outros ateliês, principalmente por volta de 1929, quando a crise financeira nos Estados Unidos tornou proibitiva a aquisição de roupas importadas por causa das altas tarifas aduaneiras, e persistiu até 1960, representando cerca de 20% do montante de negócios da alta-costura. (DE MARLY, 1990, p.103 e LIPOVETSKY E ROUX, 2004, p.44). A alta-costura se desenvolveu respaldada pelo luxo e pela experimentação e promoveu o surgimento de novas formas e estilos que eram rapidamente copiados ao redor do mundo. No entanto, cabe ressaltar que alguns dos maiores costureiroscriadores foram aqueles que adquiriram conhecimentos técnicos sobre a construção das roupas e sabiam manipular os tecidos com confiança, a exemplo de seu próprio fundador, Charles Frederick Worth. Em vista do vestuário em voga no final do século XIX e início do XX, a praticidade dos trajes propostos por Gabrielle Chanel (1883-1971) revolucionou a maneira como as mulheres viriam a se relacionar com suas roupas. Apesar da simplicidade na modelagem de seus trajes, ela foi visionária ao projetar seu próprio estilo de vida em suas roupas, sendo considerada uma estilista no sentido moderno do termo. Chanel se apropriou dos detalhes presentes na alfaiataria masculina e nos uniformes dos trabalhadores com o objetivo de simplificar e refinar as roupas femininas. Entre suas mais famosas criações estão peças advindas do universo masculino: o cardigã, a calça, o blazer com botões dourados e a blusa listrada de malha (fig. 31 e 32). O vestido tubo de crepe de chine preto – funcional e democrático – foi considerado o “Ford da Moda” (CONTI apud PIRES, 2008, p.226) em alusão ao veículo americano, igualmente preto e popular. 13 Adaptação de um croqui ou desenho técnico de uma roupa em tecido de algodão branco para sua forma tridimensional (GRUMBACH, 2009, p.104). 67 Figura 31: Chanel usa calça e blusa listrada Fonte: BAUDOT, 2002, p.75 Figura 32: Saia, blusa e cardigã de malha Fonte: BAUDOT, 2002, p.76 Porém, o maior diferencial no que concerne a modelagem diz respeito à preocupação com fatores ergonômicos, como conforto e mobilidade não só nas formas como no emprego dos têxteis: Chanel recusa-se a fazer bolsos nos quais não se possam introduzir as mãos, botões puramente decorativos e sem verdadeiras casas. Ela cuida para que suas saias permitam grandes passadas e que as cavas e as costas das roupas sejam suficientemente largas para facilitar os movimentos. Escolheu o jérsei e o crepe por sua maleabilidade (LIPOVETSKY E ROUX, 2004, p.158) Além do domínio da moulage, método que consiste em moldar o tecido diretamente sobre um manequim, Madeleine Vionnet (1876-1975) inovou ao construir vestidos inteiros no viés, técnica de corte que até então só havia sido usada em golas e pequenas partes do traje. Graças à escolha de tecidos de pouco peso – musselines, sedas, crepes –, Vionnet alcançou um visual de leveza e fluidez em oposição à silhueta rígida e estruturada usada até o início do século XX. Suas criações são consideradas inovadoras não só na construção como também no conceito, baseado no Purismo14. O interesse pela geometria permitiu que Madeleine Vionnet desenvolvesse cortes refinados a partir de formas básicas, como quadrados e 14 Movimento artístico dos anos 1920 que buscava inspiração nas formas geométricas. 68 triângulos. Um exemplo dessa influência sobre a obra de Vionnet pode ser conferido no seu vestido de 1920, construído a partir de quatro quadrados de musseline (fig. 33). Figura 33: Vestido baseado em quatro quadrados de musseline de Madeleine Vionnet Fonte: Ilustração a partir de http://www.lesartsdecoratifs.fr/ e http://dept.kent.edu/museum/exhibit/spirals/vionnet.htm 69 Um exemplo da aplicação do corte enviesado na obra da estilista pode ser observado no vestido de raiom15 preto e com faixas de crepe vermelho (fig. 34). Todas as partes são cortadas no viés. A longa faixa costurada ao decote da frente passa para as costas pelos ombros e volta para frente por baixo dos braços. Depois de cruzar a frente e as costas, a faixa é finalmente amarrada na frente. Figura 34: Vestido enviesado e sua respectiva modelagem Fonte: Ilustração a partir de http://www.kci.or.jp/archives/digital_archives/detail_150_e.html e http://dept.kent.edu/museum/exhibit/spirals/vionnet.htm 15 Espécie de seda sintética feita de celulose que possui bom caimento. 70 Vionnet estudou, como um médico, o corpo feminino, de forma a conservar a beleza que lhe é própria. Tal como um cirurgião, começou a colocar costuras hábeis, para que o vestido seguisse a silhueta do corpo. Foi um pensamento revolucionário, já que, até então, era ao contrário: o corpo tinha que se ajustar à moda do momento. Para atingir o seu objetivo, Madeleine trabalhou como um escultor, modelando os seus desenhos numa boneca de madeira, em vez de o desenhar (SEELING, 2000, p.71). O espanhol radicado em Paris, Cristóbal Balenciaga (1895 – 1972), foi um dos principais criadores de moda no período pós-guerra. Seu envolvimento pessoal em cada um dos aspectos relativos ao design de seus trajes – desenho, escolha dos tecidos e aviamentos, modelagem, costura – resultou no desenvolvimento gradual de técnicas tradicionais para inovações baseadas num corte inteligente, com o mínimo de costuras e pences. Talvez por causa de sua formação em alfaiataria, Balenciaga demonstrava clara preferência por tecidos encorpados como a lã, o tweed, o tafetá e o gazar. Abolindo todo tipo de artifício, ele envereda nos anos 1950 para uma geometria rigorosa, uma arquitetura constituída de volumes abstratos, à qual acede através de um jogo sutil de eliminações. [...] Balenciaga aprecia os tecidos com um profissionalismo igual ao dos próprios fabricantes, e gosta de seu peso, sua textura, sua rigidez, qualidades das quais se utiliza, indo direto ao essencial, tal como o escultor talhando o mármore (GRUMBACH, 2009, p.119) Admirador de Chanel e Vionnet, Balenciaga acreditava que as roupas deviam se confortáveis e práticas, principalmente para o uso diário. Deste modo, suas roupas possuíam folgas para movimento e espaço suficiente para respiração; os espartilhos ficavam reservados apenas para alguns vestidos de noite. As formas simples, baseadas em círculos, semicírculos e túnicas (fig. 35) são remanescentes dos trajes eclesiásticos, provável influência do aprendizado na Espanha, onde a Igreja Católica exercia forte domínio. As mangas com comprimento três quartos e sete oitavos foram soluções funcionais que permitiam os movimentos dos braços e não ficavam sujas nos punhos. O casaco da figura 36 demonstra claramente os aspectos específicos dos projetos de Balenciaga, baseados o menor número possível de cortes, como resultado de estudo diligente alcançado uma silhueta escultural que é independente das linhas do corpo. Em 2006, o acervo técnico de Cristobal Balenciaga foi revisitado por seu sucessor, o designer Nicolas Ghesquière, que adotou peças ícones como referência para criar a coleção Outono/Inverno. A homenagem aos trinta anos de trabalho do estilista espanhol, no entanto, não se trata de uma cópia literal: os modelos tiveram suas silhuetas modificadas, mas o estilo foi preservado (fig. 37 e 38). 71 Figura 35: Túnica em gazar Fonte:http://www.colettepatterns.com/blog/fa shion-history/cristobal-balenciaga-the-purist Figura 37: Casaco de uma só costura Fonte: http://www.modalogia.com Figura 36: Casaco de seda fúcsia Fonte:http://www.kci.or.jp/archives/digital_archi ves/detail_166_e.html Figura 38: Coleção Inverno 2006/2007 por Nicolas Ghesquière Fonte: http://connect.in.comcristobal-balenciagaphotos538534-8667557.html 72 Durante aproximadamente um século, a alta-costura reinou absoluta como um guia de novas tendências, resultado da experimentação e pesquisa de novas formas e materiais, tendo os estilistas como agentes atuantes. A influência da alta-costura sobre a moda predominou até meados da década de 1960, quando uma silhueta mais solta e casual, inspirada no movimento hippie e combinada aos desenvolvimentos tecnológicos dos tecidos e da confecção do vestuário, possibilitaram a cópia dos modelos vendidos em várias faixas de preços, como veremos a seguir. 2.5 O prêt-à-porter Até o final da Segunda Guerra Mundial, o mercado de roupas estava dividido em duas categorias diametralmente opostas em suas propostas: de um lado, a moda refinada e exclusiva da alta-costura e, de outro, a produção massificada de roupas de baixa qualidade e sem apelo estético feitas por confecções. Porém, em 1949, o sistema “pret-à-porter” surgiu para integrar a indústria da confecç~o { moda. A express~o francesa “pret-à-porter” introduzida por J. C. Weill significa “pronto para usar”, é a traduç~o literal da fórmula americana “ready to wear”. Lipovetsky relata que, diferente da confecção tradicional, o sistema pret-à-porter consistia em produzir industrialmente roupas inspiradas nas últimas tendências da moda, porém a preços acessíveis. “Enquanto a roupa de confecção apresentava muitas vezes um corte defeituoso, uma falta de acabamento, de qualidade e de fantasia, o prêt-àporter quer fundir a indústria e a moda, quer colocar a novidade, o estilo, a estética na rua.” (LIPOVETSKY, 2008, pp.109 e 110) Este sistema revolucionou a maneira como as roupas eram concebidas e fabricadas e derrubou a hegemonia da alta-costura. Nessa nova realidade, o aperfeiçoamento da modelagem contribuiu para a reprodutibilidade e a adequação dos modelos às diversas numerações dos consumidores/usuários. O cuidado com os moldes tornou-se imprescindível, uma vez que essas matrizes eram responsáveis pela padronização de toda a produção, como ainda é nos dias atuais. A modernização real da moda dependeu de uma elevação do status do vestuário confeccionado por máquinas e produzido em série, que acompanha a elevação do status estético de todo o design industrial. [...] O tamanho padrão graduado finalmente estendeu-se as meias e sutiãs, saias e blusas, luvas e sapatos. A beleza destas coisas está na sua grande capacidade de ser identicamente multiplicadas, na sua perfeição cortada e costurada a máquina, infalível e maravilhosa. Nos dias 73 de hoje, os jeans oferecem o melhor exemplo de deliciosa aparência industrializada. (HOLLANDER, 1996, p.180) Calanca (2008, p.206) atenta para o fato de que, com o prêt-à-porter, o significado da palavra estilista se modificou, uma vez que, nos projetos industriais, esse profissional era quem agia somente sobre a exterioridade dos objetos sem modificar sua função. Entretanto, ele adquiriu um novo status ao atuar na indústria da moda. Aos poucos, os industriais europeus começaram a tomar consciência da importância de se associar a estilistas para produzir um vestuário capaz de agregar moda e estética, como os americanos já faziam (LIPOVETSKY, 1989, p.110). O casual wear, estilo criado na Califórnia, aliava estética e conforto em modelos simples que, coordenados entre si, possibilitavam diversas combinações, de acordo com Vincent-Ricard (1989, p.23). Essa indústria (...) torna operacionais as séries em grande escala, de cunho estético adaptado, um fato que a Europa desconhece. Todas as operações são racionalizadas: os pedaços do quebra-cabeça, divididos em grandes peças, são cortados industrialmente – cada peça de roupa é montada em cadeia -; fazem-se todas as combinações possíveis de cores e desenhos, chegando a uma grande diversidade a partir de formas básicas. Por fim, racionalizam-se tamanhos, para que se adaptem a quase todos os tipos de corpo, com base em medidas perfeitamente codificadas de busto/cintura/quadris. (VINCENT-RICARD, 1989, p.23) Embora a alta-costura francesa tenha reagido após a Segunda Guerra, o eixo de poder havia sido alterado e os Estados Unidos passaram a deter a tradição em roupas esportivas e uma sólida indústria de prêt-à-porter. Os varejistas americanos desempenharam um papel particularmente importante no desenvolvimento da indústria da moda. Desde o princípio, eram eles que traziam ideias de Paris a cada temporada de desfiles e as adaptavam para a fabricação de seus produtos vendidos em massa. Hoje em dia, ainda são as grandes cadeias e lojas de departamentos que compõem a espinha dorsal do modelo americano (SAVIOLO e TESTA, pp.78 e 79). Graças à gestão aplicada aos negócios da moda, os americanos ficaram em condições de ensinar aos seus fornecedores europeus a lidar com itens como a produção e distribuição em larga escala. Embora haja uma grande variedade de modelos e diferentes níveis de qualidade, a quase totalidade do mercado mundial do vestuário é dominada pelo sistema prêt-à-porter. 74 Atualmente, a indústria de confecção está equipada com sistemas computadorizados capazes de modelar, graduar tamanhos e fazer encaixes de grade 16 (fig. 39), entre outras funções. Graças à técnica denominada enfesto, que consiste em sobrepor várias camadas de tecido a partir de cálculos de consumo, é possível cortar grandes quantidades de uma só vez com precisão, rapidez e economia de material. Figura 39: Exemplo de encaixe de grade feito no sistema CAD Fonte: A partir do Sistema Audaces Encaixe Em todo o desenvolvimento do vestuário, desde a pré-história, com suas funções essenciais de proteção e adorno, passando pelo sistema artesanal e em série, até o contemporâneo prêt-à-porter, a modelagem vem assumindo posição de importância estética e funcional. O próximo capítulo apresenta a modelagem como um processo composto por métodos e técnicas. 16 Definição dos tamanhos e suas respectivas quantidades para corte de um determinado modelo. 75 Capítulo 3 - A modelagem no design do vestuário “Quando as pessoas vestem roupas, n~o têm noç~o do que se passou antes que fossem roupas. Elas não têm a experiência dos intrincados estágios iniciais da construção, da escolha do tecido e do desenho e arranjo das peças do molde, da sensação de cortar o tecido, do encaixe dos componentes abstratos e da construç~o da roupa final.” Charlie Watkins, modelista de Hussein Chalayan in JONES, 2005, p.153 Para compreender a relevância da modelagem no design do vestuário é importante inicialmente procurar definir o design. Segundo Cardoso (2004, p.14), a palavra da língua inglesa design tem sua origem no latim designare e abarca tanto o conceito abstrato de plano, desígnio, intenção, quanto o aspecto concreto de configuraç~o, arranjo, estrutura. “O design opera a junção desses dois níveis, atribuindo forma material a conceitos intelectuais. Trata-se, portanto de uma atividade que gera projetos, no sentido de planos, esboços ou modelos” (CARDOSO, 2004, p.14). Ao contrário de outras atividades projetuais, como a engenharia e a arquitetura, o design destina-se ao projeto de artefatos móveis que serão submetidos à produção em série por meios mecânicos. Historicamente, a separação entre projetar e fabricar estabelece um marco determinante para caracterizar o design, adverso do fazer artesanal ou artístico, em que o mesmo indivíduo é responsável pela concepção e execução de um artefato (CARDOSO, 2004, pp.14 e 15). Coelho (2008, p.188) define design como uma práxis fundamentada em teorias com a finalidade de dar forma a artefatos a partir de um projeto elaborado para um objetivo específico. Abrange um campo extenso de atividades cujas especializações podem ser de caráter técnico, científico, criativo e artístico e que desempenham as tarefas de organização, classificação, planejamento, concepção, configuração de sistemas de informação, objetos bidimensionais e tridimensionais (volumétricos) destinados à produção industrial. Essas atividades levam em consideração no desenvolvimento projetual não apenas a produtividade do processo de fabricação, mas também questões de uso, função (objetiva e subjetiva), produção, mercado, utilidade, qualidade formal e estética (fruição do uso), buscando equacionar, sistema e simultaneamente, fatores sociais, culturais e antropológicos, ecológicos, ergonômicos. O processo de configuração, portanto, leva em conta fatores estéticos e extra-estéticos no estabelecimento de parâmetros – critérios pelos quais ele será considerado adequado, ou não, para uma finalidade específica de trabalho –, sem perder de vista a relação com o ser humano, no aspecto de uso ou percepção, buscando atender necessidades e contribuir para o bem-estar e conforto individual e/ou coletivo. (COELHO, 2008, p.188) 76 Adensando esta reflexão de Cardoso e Coelho, Forty (2007, p.43) afirma que o design surgiu na indústria no século XVIII a partir do momento que um único artífice deixava de ser responsável por todos os estágios da produção. O surgimento do designer especialista pode ser observado com clareza na fábrica de cerâmica inglesa de Josiah Wedwood, onde projetar e executar eram tarefas distintas e valorizava-se a primeira em detrimento da segunda; O trabalho de projetar, ou modelar, como era conhecido nas cerâmicas, tornou-se um estágio distinto e separado na produção de artigos de barro, embora fosse provavelmente feito por um artesão ou pelo mestre oleiro que trabalhava na mesma fábrica. Na década de 1750, a modelagem não somente foi reconhecida como atividade separada, como também havia indivíduos descritos como modeladores cuja única tarefa era fazer protótipos para servir de base aos outros artífices. (FORTY, 2007, p.50) Embora o exemplo mencione um segmento industrial externo à análise deste texto, é apropriado verificar que a importância dos modeladores é similar tanto na indústria de cerâmica quanto na confecção de vestuário e que a proeminência desse profissional representa um marco também para o surgimento do design. Tal especialização possibilitou a padronização dos objetos industrializados, uma vez que a exatidão nas instruções dos modeladores reduzia a liberdade dos demais artífices envolvidos nas outras etapas de fabricação, reduzindo a possibilidade de eles alterarem a forma dos produtos (FORTY, 2007, p.51) – isso se verifica em qualquer setor industrial, sobretudo na indústria de confecção. Na indústria do vestuário, a divisão do trabalho com um especialista em cada estágio da manufatura ocorre conforme relata Kirke (1998, p.27). O modelista determina as formas dos moldes; o graduador ou ampliador faz a escala de um tamanho para outros; o riscador decide como arranjar os moldes sobre o tecido de maneira econômica e eficaz; o cortador corta o tecido; o operador de máquina costura as partes; o acabador ou arrematador costura a mão o que não pode ser feito a máquina e o passador prepara a roupa para a entrega. Os ajustes no consumidor final são feitos por uma costureira ou alfaiate e, por fim o traje está pronto para ser usado. No caso específico do vestuário, os modelistas são os responsáveis por pensar, planejar e executar a construç~o das roupas. Treptow (2003, p.154) argumenta que “a modelagem está para o design de moda, assim como a engenharia está para a arquitetura” e Osório (2007, p.32) refere-se ao modelista como “engenheiro de moldes”. Tais definições comparam a função do modelista à do engenheiro e enfatizam a 77 importância deste profissional para a concretização do projeto do vestuário. Cabe, porém prospectar o status do profissional de modelagem contemporâneo, muitas vezes relegado à função de executor quando, de fato, é responsável pela solução de problemas complexos de configuração e adequação, corrigindo falhas projetuais presentes nas fichas técnicas elaboradas pelos designers de moda. Conceituada como a etapa do desenvolvimento do vestuário que se ocupa da interpretação do desenho técnico e a configuração das formas das roupas, a elaboração de moldes está no cerne da questão formal e, portanto, representa um dos aspectos da confecção do vestuário que mais se aproximam do conceito de design pelo estreito vínculo com o processo de concepção e construção das roupas. A modelagem é a ponte entre o projeto e sua materialização, bem como um dos processos responsáveis pela padronização do produto dentro do sistema industrial de fabricação do vestuário. Segundo Saltzman (2004, p.85), o design de moda abrange uma série de etapas de caráter construtivo, como traduzir o desenho para um plano, riscá-lo no tecido, cortálo e costurar as partes para que o volume se configure. “A modelagem é um processo de abstração que implica traduzir as formas do corpo aos termos de uma superfície têxtil. Esta instância requer colocar em relação um esquema tridimensional, como o corpo, com um bidimensional, como o tecido”. Do ponto de vista técnico, Debo (2000, p.9) concorda com Saltzman ao afirmar que os moldes são a transição bidimensional da forma tridimensional do corpo para uma peça de roupa finalizada. Moldes são, portanto, os planos que compõem uma modelagem que, quando cortados no tecido e articulados entre si pela costura compõem a forma total da roupa. “Cada molde carrega em si o traje em potencial e, consequentemente, o corpo em potencial.” (DEBO, 2000, p.9) Ao contrário dos moldes usados nas fábricas de cerâmica, cuja forma côncava é o negativo da forma tridimensional final do objeto com todas as suas características, os moldes para o vestuário não são uma representação fiel do corpo do usuário. Suas partes separadas podem parecer estranhas e amorfas quando comparadas às formas do corpo com as quais se relacionam. Esses moldes podem inclusive ser característicos do próprio projeto, construindo sobre o corpo formas diferenciadas cujo objetivo não seria só o de revesti-lo, mas também o de redesenhá-lo com formas diferenciadas. Ainda segundo Debo (2000, p.9), os moldes possuem um código abstrato, uma linguagem projetual própria, acessível apenas para iniciados. Essa afirmação observa-se 78 na prática, onde um molde só pode ser assim designado a partir do momento em que, além da transcrição da forma de determinada parte do corpo para o papel, esse adquire informações necessárias para seu correto posicionamento sobre o tecido e instruções de montagem. Dados como sentido do fio, piques nas bordas para orientação de montagem, margens de costura17, indicação da quantidade a ser cortada no tecido, denominação das partes e do tamanho da roupa, furos internos para posicionamento de detalhes estabelecem essa linguagem técnica e são fundamentais para o uso correto dos moldes (fig. 40). Margem de costura dede costura Fim da pence dede costura Piques Pence dede costura Sentido do fio Informações sobre o molde Figura 40: Molde com indicações para corte Fonte: Ilustração a partir de http://showstudio.com/projects/ddl_margiela/download.html Kirke (1998, pp.26 e 27) classifica quatro aspectos relativos à construção do vestuário; corte, alargamento, caimento e ornamentação. Essas especificidades servem de parâmetro para compreendermos a relação dos moldes bidimensionais com o corpo. Pode-se entender o corte como sendo a maneira como cada parte do molde se relaciona com uma área particular do corpo de forma harmônica e confortável. Também é 17 Quantidade extra de tecido necessária para que duas ou mais partes sejam unidas pela costura. 79 sinônimo de talhe ou feitio, e está relacionada à usabilidade ou à adequação do tecido ao corpo do usuário. Algumas partes do corpo movem-se mais que outras e isso exige uma adição de tecido que possibilite conforto nos movimentos, conforme análise no capítulo 1. Esse acréscimo de tecido em pontos cruciais é conhecido como alargamento. O alargamento pode ser maior ou menor, de acordo com a silhueta que se quer alcançar. Quanto mais justa for a roupa, menor ou quase inexistente será o alargamento. Quanto mais largo o traje, além de sua característica funcional, o alargamento torna-se a própria razão de ser do modelo. No vestuário, as partes soltas que pendem de um determinado ponto de apoio estão naturalmente sujeitas à força da gravidade. Essa relação entre o tecido e a gravidade é denominada caimento, como já visto na análise de tecidos. Kirke (1998, p.27) afirma que, se um traje “cai” mal, isso significa que falta alinhamento com as linhas gravitacionais horizontais e verticais da terra. Se esse alinhamento estiver correto, o traje parece estar em equilíbrio com a natureza e com o corpo, condição associada à beleza e base da estética. Exclusivamente relacionada à estética, a ornamentação agrega beleza e distinção ao vestuário através da decoração. Esta pode ser adicionada ao tecido por meio de bordados e aplicações, ou alcançada pelo acréscimo do volume de algumas partes do traje além da necessidade de adequação ou alargamento. Kirke (1998, p.27) enumera estes elementos constituintes do traje para concluir que o verdadeiro designer de moda é aquele capaz de integrar cada um desses aspectos em prol da elaboração bem-sucedida de sua ideia original, relacionando-os ao corpo do usuário e ao tecido escolhido. Entretanto, além das considerações de Kirke, executar uma modelagem requer raciocínio lógico e capacidade para articular múltiplos saberes como cálculo, geometria, anatomia, antropometria, ergonomia, noções de volume, espaço, escala, proporção, conhecimento de diferentes tipos de tecidos, técnicas de costura, aparato tecnológico disponível para o projeto e produção das roupas, entre outros. Tal constatação corrobora as considerações de Cardoso e Coelho sobre a função do design de unir dois aspectos distintos; forma material e conceitos intelectuais. 80 3.1 Processo, método e técnica? Quando nos referirmos à modelagem, é comum usarmos os termos “técnica”, “método” ou “processo”, mas muitas vezes o fazemos sem um embasamento teórico que nos auxilie a perceber a diferenciaç~o dos “fazeres” inseridos no significado destas palavras. Portanto, para compreender a definição de modelagem, convém analisarmos esses conceitos à luz das teorias do design. A noção de processo está diretamente ligada à ação e ao desenvolvimento e, por conseguinte o termo pressupõe movimento, caminho, percurso. “O processo seria a grande matriz de todo o modus faciendi, e, assim representaria ações em movimento, difíceis de ser percebidas” (COELHO, 2008, p.265). Método e técnica – outras duas definições frequentemente vinculadas à modelagem – estão relacionadas ao desenvolvimento de cada etapa do processo, como veremos a seguir. O substantivo método vem do latim methodus, que se originou da locução grega meta (meta) + hodos (caminho). Assim sendo, método seria o caminho para se atingir determinado objetivo. Quando nos referimos ao termo como um adjetivo, ou seja, um trabalho com “método”, pressupomos organização do trabalho, constituída por princípios de ordenaç~o das etapas necess|rias para que ele se concretize. “De fato, nesse particular, a palavra denota racionalidade e lógica no processo de realização, qualidades essas associadas à própria noção de cientificidade”. Assim, o método pode ser entendido tanto como normas de organização e controle pelos quais se desdobra o processo, quanto um lado inovador e criativo implícito no desenvolvimento desse processo. Entretanto, o método não é necessariamente conhecido a priori. (COELHO, 2008, pp.252 e 265) A técnica, por sua vez, constitui uma estratégia metodológica já consolidada, é a parte concreta do método, cujos procedimentos preestabelecidos conduzem a resultados conhecidos e esperados. “Quanto {s técnicas, seriam as receitas já experimentadas e realizadas inúmeras vezes com sucesso.” (COELHO, 2008, p.265) Em suma, a dinâmica entre processo, método e técnica pode ser assim entendida: O processo define-se como a base estrutural dos métodos desenvolvidos em determinado projeto. Representa a organização lógica do sistema. Já o método adapta-se a cada projeto e se desenvolve pela criatividade. Representa o saber adquirido na prática da pesquisa. É um conhecimento do modus faciendi transmitido sob a forma de técnicas. O método é a idéia mais abstrata do conceito de técnica. O método situa-se entre o processo e a técnica em termos de abrangência e especificidade. (...) O método, finalmente, é compreendido dentro de um processo e se expressa através da técnica (COELHO,1999, p.43). 81 Processo Métodos Técnicas Figura 41: Dinâmica do processo, método e técnica Partindo destas definições, presume-se que a modelagem, se entendida apenas como técnica - designação a que é frequentemente relacionada - perde o sentido amplo e dinâmico que apresenta quando analisada pelos conceitos de processo e método. Inserida num contexto ainda maior que envolve todo o desenvolvimento do produto de moda, como veremos a seguir, acreditamos que a modelagem pode ser considerada um processo, constituído por métodos e técnicas, e que sua prática atua não só na execução como também na concepção do projeto do vestuário. E se a referência para criação estiver nos aspectos ligados à construção das roupas, podemos considerar que a modelagem torna-se o processo de desenvolvimento do produto em si. Entretanto, convém considerar que o conhecimento e o domínio dos métodos de modelagem e suas respectivas técnicas, embora fundamentais, não são por si só suficientes para desenvolver formas vestíveis. É preciso ampliar o repertório através da experiência, da experimentação e da percepção. Segundo Heskett (2005, p.71), o conhecimento t|cito ou implícito é fonte de grande potencialidade e “parte do conhecimento de design tem esse car|ter” intuitivo, porém alerta que “a capacidade de projetar n~o deva se limitar a essa dimens~o”. Assim, a modelagem apreendida como processo reveste-se de um novo status; torna-se um agente organizador dos recursos técnicos e criativos capazes de conduzir a criação do vestuário para um patamar superior, onde a inovação ocorre no nível da 82 construção e organização das formas, e não só nos elementos superficiais de ornamentação. Ao abordar os aspectos vinculados à criatividade, Salles (2009, p.105) trata os recursos criativos como mediadores entre forma e conteúdo. Se considerarmos a modelagem como um destes recursos, podemos verificar que tal afirmação procede também para os projetos do vestuário. Ao falar dos recursos criativos, estamos na intimidade da concretude dessa relação entre forma e conteúdo, na medida em que são esses recursos que atam um ao outro, com as características do modo de ação de cada artista. Esses procedimentos estão sendo vistos, portanto, como elementos mediadores da relação forma e conteúdo. Há uma ligação entre a escolha desses recursos, a matéria selecionada e, naturalmente, a tendência do processo. (SALLES,1998, p.105) 3.2 O desenvolvimento do produto de moda De acordo com as proposições de Coelho (2008) analisadas acima, pode-se concluir que o desenvolvimento do produto de moda ocorre através de um processo pelo qual uma idéia se converte em algo concreto, neste caso, o produto de moda. De modo geral, Kotler (apud RECH, 2002, p.37) define produto como algo que possa ser oferecido ao mercado para aquisição, uso ou consumo e que satisfaça um desejo ou uma necessidade. Especificamente, Rech (2002, p.37) conceitua o produto de moda como qualquer elemento ou serviço capaz de agregar criação, qualidade, vestibilidade, aparência e preço de acordo com a demanda do segmento de mercado a que se destina. Embora haja uma grande variedade de produtos ditos de moda, – acessórios, cosméticos e serviços – o vestuário é, sem dúvida, o principal elemento desse universo. Para Caldas (1999), estes produtos representam importantes oportunidades de negócios e têm sido abordados de forma cada vez mais profissional, haja vista o papel das escolas superiores de moda para formação dos novos designers. Conforme estipulado desde a criação da alta-costura, o produto de moda é parte de uma coleção resultante de um processo que se renova sazonalmente. Segundo Fiorini (in PIRES, 2009, p.108), o conceito de coleção no campo da moda pode ser entendido como um sistema particular, que apresenta princípios de complementaridade entre os diversos produtos que o compõem. “Entre as peças de uma série, instauram-se relações que se multiplicam por toda a coleç~o” (FIORINI in PIRES, 2009, p.109). Embora a renovação das propostas ocorra a cada seis meses, essa dinâmica inicia-se 83 muito antes, com a pesquisa de novas matérias-primas e fabricação dos fios. Rech (2002, p.69) pontua que, em comparação com demais produtos, os de moda são os que mais demoram a chegar ao consumidor, em decorrência da complexidade e fragmentação da cadeia têxtil. Tal afirmação encontra embasamento em Vincent-Ricard (1989, p.32): Na verdade, o processo têxtil fragmenta-se de maneira muito complexa – partindo da fibra [...] até chegar à roupa pronta – e precisa passar, no tocante ao material, pelas fases de fiação, tecelagem, beneficiamento e estamparia; e, no tocante a modelos, passa pelas fases de corte, montagem e acabamento. Tudo isso requer pesquisa estética, elaboração prática, controle de qualidade a cada etapa, sempre dentro de prazos determinados. A roupa, enquanto produto, é o único objeto de consumo que leva dois anos para ficar pronto, começando como fibra têxtil e finalmente chegando à loja onde é vendida; mas renova-se a cada seis meses, com uma regularidade de metrônomo. Tabela 2: Cronograma e metodologia da criação industrial Item Antecedência Cores Dois anos Tecidos Um ano e meio Formas Um ano Ações Adoção de determinado número de cores; Combinação de cores entre si; Criação de harmonias entre cores quentes e frias; Opção em abdicar de cores clássicas. Delimitação de cores, harmonias e grafismos; Definição de temas promocionais. Definição do plano da coleção; posição de mercado, preço, cronograma e definição de estilo; Pesquisa de formas para uma linha geral; Materiais adaptados para criação de silhuetas; Equilíbrio de proporções e detalhes. Fonte: Vincent-Ricard (1989, pp.38 e 39) Conforme o cronograma de Vincente-Ricard, pode-se perceber que a modelagem se insere no desenvolvimento das formas, o qual se inicia com um ano de antecedência nos itens relacionados à pesquisa de formas, à adaptação dos materiais à criação e ao equilíbrio das proporções e detalhes. Entretanto, observa-se, tanto no âmbito acadêmico como no profissional, que a pesquisa de formas, na maioria das vezes refere-se ao desenvolvimento de silhuetas bidimensionais, sem que haja sequer estudos tridimensionais para conduzir tal pesquisa. Outro item que pode se mostrar contraditório é a adaptação dos materiais às silhuetas, e não o contrário. Conforme afirma Ostrower (1987, p.51), a materialidade conduz aos resultados com suas possibilidades e também com suas limitações. Forçar a natureza de alguns tecidos para aproximá-los de uma silhueta pode ser desastroso, principalmente quando se trata de produtos que serão reproduzidos em grande escala, considerando-se os processos de 84 sua produção e as condições de uso. Por fim, o equilíbrio das proporções e detalhes é de responsabilidade de um trabalho em conjunto envolvendo o estilista e o modelista, que estabelecem aspectos como comprimento, alargamento, posicionamento de detalhes como bolsos, golas, abotoamentos, punhos, acabamentos, entre muitos outros. Rech (2002, pp.69 e 70) disserta sobre a importância do projeto e da adoção de uma metodologia específica para o desenvolvimento de produtos de moda. Analisando os processos de desenvolvimento de produtos de Baxter (2000), Slack (1997), Kotler (1999) e da metodologia projetual de Munari (1982), a autora propõe cinco fases para o desenvolvimento de produto expostas na tabela 3, a seguir: Tabela 3: Desenvolvimento de produto de moda por Rech Fases Geração do conceito Triagem Projeto preliminar Avaliação e melhoramento Prototipagem e projeto final Ações Análise de coleções anteriores; Estabelecimento da direção mercadológica da nova coleção; Avaliação da dimensão da coleção. Análise de elaboração e adequação; Definição dos temas de moda. Esboço dos modelos (croquis ou moulages) Escolha de cores, tecidos, formas, aviamentos, componentes, acessórios e etiquetas. Desenvolvimento do desenho técnico, da modelagem e da ficha técnica. Desenvolvimento e aprovação da peça-piloto; Desenvolvimento de embalagens e materiais para divulgação. Fonte: Rech (2002, pp.69 e 70) Conforme análise de Rech, a modelagem aparece explicitamente no projeto preliminar para estudo das formas, representada pela moulage, o que certamente favorece o entendimento tridimensional dos modelos por parte dos demais participantes da equipe de trabalho, porque elucida a resolução do produto por todos os ângulos, além de fornecer informações valiosas quanto à adequação dos tecidos às propostas e à aplicação das proporções e detalhes. Na etapa de avaliação e melhoramento, a modelagem surge vinculada ao desenvolvimento do desenho técnico e da ficha técnica, embora na maioria das empresas o correto seja ter a ficha técnica com todas as especificações de formas, matérias, medidas, aviamentos e detalhes para que o modelista possa guiar-se por ela. Por fim, a prototipagem é a etapa que segue a modelagem e, no caso do vestuário, seu produto denomina-se peça-piloto. A peça-piloto definitiva é aquela que representa o 85 produto tal como ele deve ser quando produzido em larga escala; esta peça, juntamente com a ficha técnica e com a modelagem serão os orientadores para toda a produção. Montemezzo (2003) aborda a questão da metodologia projetual voltada para moda com maior ênfase, ao analisar as etapas projetuais do design de Lobäch (2001), Baxter (1998) e a inserç~o do fator “criatividade” entre as etapas do projeto por Gomes (2001). Propõe uma alternativa condizente com a realidade encontrada, não só nas empresas de moda, como também no ensino superior de Design de Moda. A tabela 4 sintetiza o resultado desse estudo detalhado e nos auxilia a contextualizar o papel da modelagem no desenvolvimento do produto de moda/vestuário. Tabela 4: Desenvolvimento de produto de moda Etapas Planejamento Especificação do projeto Delimitação conceitual Geração de alternativas Avaliação e elaboração Realização Ações Percepção do mercado e descoberta de oportunidades; Análises, expectativas e histórico comercial da empresa; Ideia para produtos/Identificação do problema de design; Definição de estratégias de marketing, desenvolvimento, produção, distribuição e vendas; Definição do cronograma. Análise e definição do problema de design (diretrizes); Síntese do universo do consumidor (físico e psicológico); Pesquisa de conteúdo de moda (tendências); Delimitação do projeto (objetivos) Geração de conceitos e definição do Conceito Gerador; Definição de princípios funcionais e de estilo. Geração de alternativas de solução do problema; esboços/desenhos, estudos de modelos; Definições de configuração, materiais e tecnologias. Seleção das melhores alternativas; Detalhamento de configuração (desenho técnico); Desenvolvimento de ficha técnica, modelagem e protótipo; Testes ergonômicos e de usabilidade; Correções/adequações Avaliações técnicas e comerciais apuradas; Correções/adequações; Graduação da modelagem; Confecção de ficha técnica definitiva e peça-piloto (aprovação técnica e comercial dos produtos); Aquisição de matéria prima e aviamentos; Orientação dos setores de produção e vendas; Definição de embalagens e material de divulgação Produção Lançamento dos produtos Fonte: Montemezzo (2003, p.62) 86 A proposição de Montemezzo especifica cada uma das etapas com maior detalhamento e permite correlacionar a modelagem desde o planejamento, na definição de estratégias de desenvolvimento do produto. 3.3 A modelagem e seus métodos Considerando a análise sobre processo, método e técnica, pode-se discorrer sobre as diferentes formas de modelagem como métodos capazes de atuar como recursos criativos inseridos no processo de desenvolvimento de uma coleção. Os métodos de modelagem do vestuário amplamente conhecidos pelo mercado e que nos interessam abordar aqui são; a modelagem bidimensional, também denominada modelagem plana ou geométrica e a modelagem tridimensional – moulage, em francês ou draping, em inglês. Estes são os métodos mais utilizados por profissionais do vestuário e ensinados nas escolas de moda, ainda que cada um traga consigo um raciocínio e técnicas próprias que serão analisadas a seguir em suas especificidades. 3.3.1 Modelagem bidimensional A modelagem bidimensional, plana ou geométrica é assim denominada por usar os princípios da geometria e fundamentar-se em cálculos matemáticos. Os modelos são traçados a partir de uma tabela composta por medições detalhadas dos contornos, comprimentos e larguras do corpo, onde as respectivas medidas serão devidamente representadas por linhas horizontais e verticais e correlacionadas entre si para aproximarse de uma reprodução fidedigna da anatomia. O traçado inicial, denominado diagrama (fig. 42), pode ser feito manualmente sobre papel com auxílio de material apropriado; lapiseiras, réguas quadriculadas, réguas curvas para quadris e cavas, esquadros, fita métrica, carbono para costura, alicates para piques, entre outros instrumentos. Atualmente, o mercado de softwares dispõe de sistemas CAD18 equipados com ferramentas gráficas adequadas à elaboração de moldes digitais que capacitam o operador/modelista a desenvolver traçados complexos com agilidade e precisão, além de possibilitar a criação de modelos adaptados de arquivos preexistentes (fig.43). 18 Sigla em inglês que corresponde a Computer Aided Design (desenho com apoio de computador). 87 Figura 42: Traçado de diagrama do corpo Os moldes desenvolvidos em sistema CAD podem interagir diretamente com a tecnologia CAM – Computer Aided Manufacturing ou manufatura assistida por computador -, cujos sistemas de automação utilizam computadores e equipamentos de controle numérico para os processos de produção (SILVEIRA, 2006, p.3). No entanto, convém ressaltar que, apesar do sistema CAD para modelagem ser um recurso importante, ele não capacita por si só o profissional de modelagem a desenvolver um traçado. As ferramentas oferecidas pelos sistemas CAD apenas potencializam a aplicação do conhecimento do método de modelagem plana e suas técnicas desenvolvidos previamente. 88 Figura 43: Exemplo de sistema CAD para modelagem Fonte: A partir do Sistema Audaces Independente da opção pela execução manual ou digital, a elaboração de uma roupa por meio da modelagem plana exige uma análise minuciosa da anatomia do usuário, seja este o consumidor final de um traje sob medida ou o modelo de prova que representa o perfil físico dos consumidores de uma empresa. A elaboração de uma tabela de medida é o primeiro passo e consiste na coleta de medidas de determinadas partes do corpo com o auxílio de uma fita métrica. Metodologicamente, a tomada de medidas (fig. 44) para construção de um traçado funciona como reconhecimento e delimitação de um problema de projeto; é uma coleta de dados que, quando articulados por cálculos conduzem ao formato corporal. Fischer (2010, pp.18 e 19) enumera os pontos mais importantes para a execução desse procedimento. De posse desses dados, inicia-se o traçado do diagrama. 89 Tabela 5: Posicionamento das medidas Posição Medida 1 Circunferência do pescoço Ao redor da base do pescoço. 2 Comprimento do ombro 3 Circunferência acima do busto 4 Circunferência do busto 5 Circunferência abaixo do busto Inicia no pescoço e termina no osso do ombro (acrômio). Ao redor do corpo, abaixo do braço, mas acima do busto, em linha horizontal. Ao redor do ponto do busto, em linha horizontal. Circunferência torácica, em linha horizontal. 6 Circunferência da cintura 7 Circunferência da cintura baixa 8 Circunferência do quadril 9 Comprimento da manga Ao redor da parte mais estreita da cintura, em linha horizontal. Ao redor do abdômen, em média 8 a 10 cm abaixo da cintura natural, em linha horizontal. Ao redor da parte mais ampla do quadril, em linha horizontal. Do final do ombro, passando pelo cotovelo, até o punho, com o braço levemente curvado. Do ponto de cruzamento entre o ombro e pescoço, passando pelo mamilo, até a linha natural da cintura. Da nuca até a linha natural da cintura. 10 Comprimento da frente 11 Comprimento das costas 12 Cintura até quadril 13 Cintura até joelho 14 Lateral da perna 15 Entrepernas Distância entre a linha natural da cintura até a parte mais ampla do quadril. Distância entre a linha natural da cintura e o joelho. Distância da linha natural da cintura até o chão ou o tornozelo. Distância do gancho até o tornozelo. 16 Bíceps Ao redor da parte mais ampla do braço 17 Cotovelo Ao redor da largura do cotovelo 18 Circunferência do punho Ao redor da largura do punho Fonte: FISCHER, 2010, pp.18 e 19 90 Figura 44: Locais para tomada de medidas Fonte: Ilustração a partir de FISCHER, 2010, pp.18 e 19 Em relação à localização das medidas adotadas para esta metodologia, cabe citar o estudo de Osório (2010, p.9) que enumerou o resultado de extensa pesquisa bibliográfica composta por obras dedicadas à modelagem plana. Tal pesquisa propôs a análise de tabelas de medidas antropométricas adotadas por diversos autores nacionais e estrangeiros para a construção do traçado. A autora, após análise, concluiu que existem medidas essenciais, provenientes dos contornos externos do corpo e que compõem a base da tabela de medidas, entre elas as medições de busto e cintura. Não menos importantes, as medidas auxiliares proporcionam precisão no posicionamento dos elementos internos do molde. Finalmente, as medidas complementares ou decorrentes surgem da aplicação de conceitos matemáticos sobre medidas essenciais. Uma prática muito comum na indústria do vestuário é o desenvolvimento de moldes que traduzem a forma básica do corpo, como uma segunda pele, sem nenhuma interferência de elementos estilísticos. Também denominados bases de modelagem 91 (DINIS; VASCONCELOS in SABRÁ, 2009, p.78) ou blocos básicos (OSÓRIO, 2007, p.17) são geralmente elaborados para construção em tecido plano e dividem-se em peças para cada parte do corpo. No caso do vestuário feminino, o conjunto de moldes é formado pelas bases para o tronco, calça e saia, cada uma delas dividida em partes dianteiras e traseiras, e pela base de manga numa peça única (fig. 45). Estas partes articuláveis entre si são o ponto de partida para a elaboração de modelagens complexas (DINIS e VASCONCELOS in SABRÁ, 2009, pp.78 e 79). Após a montagem em tecido para verificação da vestibilidade, execução de ajustes e aprovação, sugere-se que estes moldes sejam passados a limpo num papel mais rígido ou salvos no sistema CAD. Figura 45: Conjunto de bases de modelagem ou bloco básico As bases de modelagem apresentam os principais recursos construtivos; as pences fundamentais19 e as principais linhas de referência para tomada de medidas. Essas linhas referenciais, assim como os contornos dos moldes, são essenciais para interpretação das proporções dos novos modelos. 19 Pences localizadas na cintura e no ombro, ambas partindo do busto. 92 O bloco básico é definido como a primeira etapa da construção geométrica da forma do corpo. É a configuração de uma parte do corpo na sua estrutura anatômica com pences básicas localizadas no ombro e na cintura, a abertura ou profundidade das pences sem fechamento na linha externa e sem margem de costura. Nos blocos básicos, estão incluídas somente as linhas de contorno externo da forma do corpo, piques de balanço e folga de conforto ou movimento. (OSÓRIO, 2007, p.18) Partindo do bloco básico, o modelista desenvolve os modelos projetados pelo designer e modifica a estrutura anatômica com recursos específicos para cada efeito que queira produzir. Todos os detalhes de construção, proporção, acabamentos e aviamentos devem ser considerados. As relações de aproximação e afastamento entre tecido e corpo são solucionadas pelo acréscimo de volumes além do alargamento necessário para proporcionar conforto e movimento. Se, por outro lado, não se intenciona modificar a forma básica, mas apenas reposicionar a localização das pences, opta-se por sua transferência ou transposição (fig. 46). Esta é uma das técnicas que compõem a modelagem plana, e possibilita inúmeras opções de modelos. Esses elementos construtivos convergem em direção ao busto e, portanto, podem ser deslocadas para qualquer lugar do contorno da base, desde que continuem apontando para o ápice do busto. As pences de busto e cintura podem ser combinadas numa só ou se transformarem em volumes, franzidos ou pregas sem alterar a adequação do molde ao formato do corpo. Figura 46: Princípio da transferência de pences 93 As bases de modelagem também podem ser fragmentadas em mais partes criando recortes funcionais, suprimindo as pences. Nesse caso, o excesso de tecido que forma a pence é eliminado, porém seu formato anatômico não se altera (fig. 47). Como já citado no capítulo anterior, a criação da linha princesa por Worth no final do século XIX partiu justamente pressuposto. desse Figura 47: Recortes Além das mudanças estruturais, é possível aplicar detalhes como golas, bolsos, punhos, entre outros elementos de estilo, além de demarcar decotes e cavas, determinar comprimentos e solucionar problemas relacionados à funcionalidade como o acesso e fechamento das roupas por meio de zíperes ou abotoamentos. Determinados modelos demandam elementos internos como entretelas e forros, portanto o modelista deve estar ciente dos acabamentos, aviamentos e tipos de costura. O conhecimento do maquinário que executará a montagem e o acabamento da peça também é fundamental para o sucesso de uma modelagem. Diferentes máquinas de costura possuem características específicas para segmentos do vestuário como jeanswear, moda praia, malharia, alfaiataria, entre outros. Após a definição de todos os itens que constituem o modelo, as margens de costura são acrescidas aos moldes para possibilitar a junção das partes. Esses moldes finalizados, com todas as indicações para o posicionamento e corte no tecido são denominados “moldes para corte” ou “moldes interpretados” (DINIS e VASCONCELOS in SABRÁ, 2009, p.79). As bases de modelagem garantem fidelidade à tabela de medidas adotada pela empresa, coerência com os tamanhos das peças nos diversos modelos da coleção, redução de erros no desenvolvimento de outras propostas formais, além da agilidade 94 proporcionada pela eliminação da necessidade de se traçar um diagrama todas as vezes que um novo modelo for realizado. Todavia, Satzman (2004, p.85) alerta que o emprego destes moldes standards pode empobrecer o potencial criativo do design de moda. A autora ressalta que o projeto da vestimenta pode ficar simplificado pela oposição determinante entre os planos frontais e dorsais, separados por concisos cortes laterais, como se frente e costas fossem dois aspectos corporais alheios. De fato, esses recortes podem ser observados na maioria das roupas industrializadas e até mesmo o ensino da modelagem plana enfatiza a prática de segmentar o corpo em partes para otimizar o processo. Por outro lado, apesar de ser um método racional, a modelagem plana, quando bem desenvolvida e apreendida através do conhecimento técnico e da experiência prática, transforma-se numa grande aliada para o projeto e realização do vestuário. A viabilidade de construção de roupas complexas utilizando bases de modelagem pode ser conferida nas obras “Pattern Magic” e “Pattern Magic vol. 2” de Nakamichi Tomoko publicadas pelo Bunka Fashion College, importante escola de design de moda do Japão. Apesar de editados no idioma japonês, os diagramas e as fotos das sequências operacionais traduzem claramente os procedimentos realizados para alcançar os resultados apresentados. A despeito do esquema “passo a passo” apresentado pelas obras, a concepç~o de modelos por modelagem bidimensional conduz o leitor a refletir sobre infinitas possibilidades oferecidas por essa metodologia que se fundamenta na desconstrução da forma anatômica do corpo para reconstrução de novos modelos acrescidos de novos volumes. Este procedimento não seria nenhuma novidade, visto que esta prática é amplamente aplicada nos setores de modelagem de muitas empresas. Entretanto, o diferencial do trabalho de Nakamichi Tomoko é a maneira como a autora relaciona formas geométricas às anatômicas representadas pelos moldes básicos. Os novos volumes se fundem aos contornos do corpo e recriam uma nova silhueta numa espécie de simbiose. Para criar volumes que ora saltam das roupas, ora causam a sensação de profundidade, adicionam-se elementos tridimensionais às formas básicas. Para ilustrar o primeiro exemplo, a blusa que apresenta três cubos acima do busto (fig. 48) é construída a partir da aplicação das formas cúbicas sobre a base de tronco. Recortes estratégicos 95 inserem os elementos em relevo na estrutura da roupa. Porém, quando planificados, os moldes perdem totalmente a ligação com a figura da qual partiram. Figura 48: Blusa “cubos” e as etapas de planificação Fonte: Ilustração a partir de TOMOKO, 2005, pp.46/47 O segundo exemplo trata de uma saia godê em cujo molde base foi aberto um buraco e aplicado um cone. A nova composição foi redesenhada para que elemento de profundidade representado pelo cone fosse perfeitamente integrado à estrutura da saia criando uma sensação de continuidade entre as duas formas. O procedimento para unir os dois elementos pode ser observado na figura 49. 96 1 2 3 4 5 6 Figura 49: Saia godê + cone Fonte: Ilustração a partir de TOMOKO, 2005, pp.38 e 39 O que poderia ser apenas mais um método de modelagem plana como tantos outros se revela um grande aliado para refletir sobre a importância da inserção da modelagem ainda nos estágios de concepção do projeto. Para que isso seja possível, 97 estas obras apontam para a possibilidade de se explorar o método da modelagem plana para incrementar o repertório na criação dos produtos de moda. A gradação – ampliação e redução dos moldes para os demais tamanhos da tabela de medida – é o estágio posterior à aprovação do modelo. As técnicas de gradação foram se aprimorando desde a organização das confecções, em decorrência da padronização dos tamanhos e dos procedimentos de classificação e etiquetagem (JONES, 2005, p.140). Nesta etapa, as diferenças de medidas entre os vários tamanhos são distribuídas entre os moldes que formam a roupa, seguindo critérios para que não haja distorções nos tamanhos maiores ou problemas de proporção (fig. 50). Figura 50: Gradação Fonte: Própria a partir do Sistema Audaces Moldes Mesmo que o desenvolvimento da primeira peça seja elaborado através do método da moulage, como veremos a seguir, a gradação ocorre por técnicas relacionadas à modelagem plana. As diferenças de medidas de um tamanho para outro são divididas e dispostas sobre as linhas referenciais para tomada de medidas como, por exemplo, cintura, busto e quadril. Para a gradação de extremidades que envolvem simultaneamente medidas de largura e comprimento, utiliza-se o sistema de 98 coordenadas cartesianas. Todo o processo de produção do vestuário começa a partir desta etapa. A modelagem plana está relacionada à acuidade e precisão, porém alguns aspectos alheios à racionalidade devem ser previstos no decorrer do traçado. A falta de contato com a matéria talvez seja o ponto fraco deste método. Embora os moldes sejam elaborados justamente para aproximar a natureza têxtil dos contornos corporais, uma vez cortados, os tecidos comportam-se de maneira peculiar. Dependendo do posicionamento dos moldes sobre o tecido, algumas medidas se modificam de acordo com o sentido do fio. Verifica-se o comportamento de certos tecidos quando se modela, por exemplo, uma peça com decote V; a inclinação da linha do decote coincide com o sentido enviesado do tecido, provocando um estiramento nesta determinada região. Tal reação suscita a eliminação da sobra ocasionada pelo viés ou o auxílio de um acabamento que controle a distensão do tecido. Por isso, é imprescindível a prova final em modelo vivo para detectar e eliminar possíveis defeitos. O modelista deve desenvolver a capacidade de prever possíveis oscilações e compensar, ainda no traçado, problemas ocasionados pela reação dos tecidos. Para isso, o conhecimento dos diversos tipos de tecidos é indispensável para a boa formação do profissional de modelagem, assim como dos designers de moda. Em suma, o método de modelagem plana e suas respectivas técnicas podem ser sintetizados pelo seguinte esquema (fig. 51): Traçado de diagrama Desenvolvimento de bases Modelagem Bidimensional Transferência de pences Recortes Sistema CAD Gradação Figura 51: Método de modelagem bidimensional e suas técnicas 99 3.3.2 Modelagem tridimensional Conforme análise histórica empreendida no Capítulo 2, ainda que de modo experimental e rudimentar, moldar os tecidos diretamente sobre o corpo do usuário foi uma prática ancestral verificada desde a tentativa do homem pré-histórico em adaptar as peles às formas físicas e, posteriormente observada nas vestes drapeadas dos gregos e romanos na antiguidade clássica. Todavia, foi somente no início do século XX que a estilista francesa Madeleine Vionnet passou a utilizar a modelagem tridimensional de maneira sistemática, desenvolvendo uma metodologia própria, onde os modelos eram criados sobre Figura 52: Madeleine Vionnet modelando sobre um manequim de madeira. 1932 Fonte: DEBO, 2000, p.40 um manequim de madeira de tamanho reduzido e depois ampliado para o tamanho natural. A modelagem tridimensional, também denominada moulage ou draping, método vinculado exclusivamente à alta-costura há até pouco tempo, atualmente encontra espaço na indústria do vestuário por sua incontestável contribuição estética. Em francês, a palavra moulage significa “moldagem” e sua pr|tica consiste em trabalhar o tecido diretamente sobre um manequim cujo tamanho e configuração sejam condizentes com a anatomia humana. Este contato possibilita controlar as relações de ajuste e afastamento do tecido com base no formato corporal, bem como uma visualização imediata do caimento do tecido. A construção em três dimensões remete à modelagem tridimensional, [...] promove o contato entre o corpo suporte, representado pelo manequim, e a tela, tecido utilizado para modelar, lidando com medidas de comprimento, largura e profundidade. Essa aproximação favorece a experimentação das possibilidades construtivas, permitindo buscar novas soluções facilitadas pela apreensão da realidade. (SOUZA in PIRES, 2008, p.341) Com um raciocínio lógico diametralmente oposto ao da modelagem plana, a moulage possibilita uma relação direta do material com a volumetria do corpo, permitindo o contato indireto com as medidas que esse corpo apresenta. Enquanto na 100 modelagem plana decodificam-se as medidas para determinar os volumes, na moulage são os volumes que conduzem às medidas. Wong (2001, p.239), referindo-se às diferenças entre o desenho bidimensional e tridimensional, afirma que algumas pessoas são predispostas a pensar de maneira escultórica enquanto outras o fazem pictoricamente. As últimas frequentemente valorizam a vista frontal de um desenho em detrimento de outras vistas e acreditam “que as estruturas internas das formas tridimensionais est~o além de sua compreensão ou (são) atraídas com facilidade pela cor e pela textura das superfícies quando o volume e o espaço s~o mais importantes.” Entre o pensamento bidimensional e tridimensional há uma diferença de atitude. Para fazer representações tridimensionais, um desenhista deve ser capaz de visualizar mentalmente a forma toda e girá-la mentalmente em todas as direções, como se a tivesse em suas mãos. Não deve confinar sua imagem a uma ou duas vistas, mas explorar completamente o jogo de profundidades e o fluxo do espaço, o impacto da massa e a natureza dos diferentes materiais. (WONG, 2001, p.239) O conteúdo da citação acima se adapta perfeitamente aos problemas vinculados à compreensão da modelagem. Neste caso, a moulage proporciona visualização total e permite conceber o vestuário como um todo de forma tangível. Portanto, trata-se de uma prática escultórica, pois possibilita experimentar volumes, deixar-se guiar pelas formas que eventualmente os tecidos sugerem e assim criar direto sobre o manequim. Os profissionais adeptos do método acreditam que algumas formas só podem ser obtidas por meio do contato direto entre o material têxtil e o suporte proporcionado pela moulage. Ao considerar esse experimental e a aspecto possibilidade da inovação formal, a moulage aproxima-se dos processos artísticos. A abordagem do corpo como um todo pode ser examinada no vestido de Madeleine Vionnet (fig. 53) com forte referência à indumentária greco-romana. Os volumes e torções do tecido adaptados à anatomia do corpo Figura 53: Vestido drapeado Vionnet Fonte: http://elogedelart.canalblog.com/archives/ 2009/07/10/index.html. 101 feminino demonstram o cuidado com a construção formal e estética do traje. Percebe-se também que o vestido envolve o corpo sem recortes óbvios que demarquem frente e costas. Além disso, este é um dos exemplos que confirmam a importância da experimentação e pesquisa no trabalho de Vionnet. Na construção de uma roupa pela moulage, as características físicas de peso e espessura dos tecidos adquirem volumes e caimentos diferenciados quando sobrepostos ao corpo. Os tecidos comportam-se de maneiras diferentes de acordo com a tensão e inclinação com que são manipulados, produzindo efeitos muitas vezes inesperados. Surgem assim formas e contornos que não seriam possíveis de se atingir caso não houvesse esse contato direto e experimental entre o material e o corpo, muitas vezes representado por um manequim. Assim, o projeto da roupa pode surgir dessa experimentação e o acaso pode sugerir soluções para a construção da roupa. Ainda que a modelagem tridimensional admita certa liberdade de criação, é imprescindível observar que não se trata de um método despojado de regras. O sucesso de uma moulage está sujeito à exatidão das medidas e configuração do suporte. O custo de aquisição de bons manequins técnicos é alto e algumas de suas medidas podem não ser condizentes com as do usuário. Nestes casos, Brandão (1981, p.25) propõe a técnica que os franceses chamam de bourrage e que consiste em adaptar as formas de manequim, de preferência um pouco menor, com auxílio de enchimentos nos pontos que exigem mais volume até atingir a forma desejada. Recobrir o manequim remodelado com tecido consolida a bourrage definitiva. Essa prática é comum na alta-costura, “em que cada cliente tem um manequim com suas próprias medidas para provas” (LIPOVETSKY E ROUX, 2005, p.147). A delimitação do manequim em partes semelhantes aos planos anatômicos é fundamental para preparação do suporte. Da mesma forma que, na modelagem plana, as principais medidas utilizadas no traçado são transpostas por meio de linhas no papel ou tela do computador, na moulage delimitam-se as linhas básicas de construção sobre o manequim técnico com o auxílio de fitas de cetim ou soutache20 em cor contrastante. Estas linhas são alfinetadas sobre o manequim respeitando posições definidas para compreensão de proporção e caimento, conforme figura 54. Posteriormente, as fitas devem ser alinhavadas para que não se soltem com o uso. 20 Passamanaria estreita, com aproximadamente 3 mm, composta pelo entrelaçamento de dois cordões finos resultando numa pequena canaleta entre eles. 102 Figura 54: Marcação das linhas do manequim Este procedimento denominado “fitilhamento” é uma tarefa minuciosa que requer paciência e precisão, uma vez que estas marcações são os alicerces para execução da moulage e são fundamentais na etapa de planificação21. Embora trabalhoso, o fitilhamento ajuda a apurar o olhar para os contornos do corpo, fato determinante para a execução de uma modelagem bem sucedida. É possível afirmar que a análise anatômica realizada no capítulo 1 é claramente identificável nas técnicas ligadas à modelagem quando se divide o corpo em partes através de marcações para aproximar sua natureza volumétrica de formas planas articuláveis capazes de recobri-lo. Convém ressaltar que uma técnica muito utilizada quando se quer modelar roupas ajustadas diretamente no manequim consiste em desenhar os contornos e recortes do modelo com fita em cor igualmente contrastante, porém diferente da cor das linhas de marcação (fig. 55). Essa prática permite visualizar a proporção do desenho antes mesmo de posicionar o tecido sobre o busto técnico. Segundo Tim Williams (in FISCHER, 2010, p.127), “o princípio é simples: você marca no busto os locais em que as costuras irão gerar a silhueta. Como um desenho, esse processo simples depende da habilidade de saber posicionar as linhas, tanto estética quanto tecnicamente”. Etapa em que o tecido moldado sobre o busto-manequim é transposto para o papel com todas as suas indicações de montagem e feitas as correções necessárias para a produção em série. 21 103 Figura 55: Modelo desenhado diretamente sobre o manequim Fonte: Ilustração a partir de FISCHER, 2010, p.126 Nas últimas décadas, os fabricantes de sistemas CAD vêm desenvolvendo softwares voltados para o desenvolvimento de produtos para o vestuário. Conforme análise anterior, os sistemas em duas dimensões otimizam o trabalho de traçar, graduar e encaixar, e ainda integram-se ao sistema CAM, responsáveis pelo enfesto e corte computadorizados. Atualmente, esses sistemas se sofisticaram graças à tecnologia 3D, possibilitando ao designer criar um corpo virtual com medidas pré-determinadas e, sobre ele desenhar o modelo desejado – como se faz com a fita sobre o manequim no método da moulage -, desenvolver a modelagem, planificá-la e vesti-la digitalmente, ajustando-a como se fosse num modelo de prova, conforme figura 56. A partir disso, é feita a gradação - P-M-G, por exemplo -, e cria-se o encaixe para o corte da produção, sem que haja a necessidade de cortar um molde de papel ou uma peça piloto para aprovação em manequim vivo durante o processo de desenvolvimento. 104 Figura 56: Sistema de modelagem virtual em 3D Fonte: http://fashiontech.wordpress.com/category/optitex/ Observa-se que, apesar de tratar de uma metodologia aplicada por meio de tecnologia digital, este sistema de modelagem virtual em três dimensões assemelha-se à moulage, pois o modelo é desenhado e modelado diretamente sobre o corpo do manequim digital, permitindo a criação de peças ajustadas. Considerando algumas das técnicas aplicadas à modelagem tridimensional, esquematiza-se essa metodologia conforme figura 57: Preparação do manequim Marcação do modelo Modelagem Tridimensional sobre o manequim Planificação Modelagem digital 3D Figura 57: Método de modelagem tridimensional e suas técnicas 105 3.3.3 A integração dos métodos Retomando as considerações de Salles (2009, p.107) de que os recursos criativos são mediadores entre a forma e o conteúdo, a autora afirma que esses procedimentos estão intimamente ligados à práxis do artista. A opção por um ou outro procedimento técnico relaciona-se à necessidade do artista numa obra específica ou à sua preferência pessoal por determinado método. Esses procedimentos estão, diretamente, relacionados aos princípios gerais que regem o fazer daquele artista. Estamos, portanto, no ambiente propício para as singularidades aflorarem. É por meio dos recursos criativos que o projeto se concretiza e se manifesta. Quando defino recurso, estou enfatizando como aquele artista específico faz a concretização de sua ação manipuladora da matéria chegar o mais perto possível de seu projeto poético. (SALLES, 2009, p.107) Convém ponderar, ainda, que os recursos criativos aqui compreendidos pelos métodos de modelagem do vestuário e suas respectivas técnicas vinculam-se à natureza da matéria em uso. Assim como Ostrower afirma que cada matéria carrega em si possibilidades e limitações, Salles (2009, p.107) concorda que ela apresenta suas próprias leis. Portanto, “a seleç~o de um procedimento para manipular determinada matéria implica conhecimento dessas leis. Diferentes matérias geram busca por novos recursos, como há também a procura por novos modos de ação ao lidar com a mesma matéria.” Entretanto, o emprego de um ou outro tipo de modelagem é uma questão de escolha; os objetivos que se quer atingir ou o domínio que o designer ou o modelista tem sobre os métodos e as técnicas são os critérios que determinam essa opção. Além disso, convém considerar que a associação de ambos os métodos é eficaz para a resolução dos problemas de configuração. A complementaridade dos métodos constitui um caminho de mão dupla capaz de estimular a criação de novos produtos. Nada impede, por exemplo, que determinado aspecto do projeto seja resolvido por uma técnica diferente da aplicada no restante do trabalho; Acompanhando processos criativos, percebe-se que as opções pelos recursos criativos podem ser alvo de modificações ao longo do percurso. Desse modo, fica claro que esses procedimentos não são, necessariamente, pré-selecionados e determinados pelo artista, mas são, na maioria dos casos, encontrados durante o percurso. (SALLES, 2009, p.109) Profissionais que utilizam ambos os métodos aprimoram a habilidade de refinar o traço e de organizar um trabalho experimental: a moulage confere leveza às linhas duras e angulares predominantes no traçado típico da modelagem plana. Já o 106 método bidimensional ajuda a conferir medidas e ordenar uma moulage de caráter experimental para que ela se torne viável para produção industrial. Em geral, a associação da modelagem plana com a moulage permite que um método retifique e confirme o outro, adequando a forma bidimensional dos moldes à realidade tridimensional do corpo. A experiência desta pesquisadora como docente no ensino de modelagem em cursos superiores de moda exemplifica e ratifica a afirmação de que os métodos se complementam até mesmo como estratégia didática. Observa-se em sala de aula, que os alunos têm grande dificuldade em compreender como os tecidos adquirem as formas corporais através do ensino da modelagem plana. As fórmulas preestabelecidas pelos traçados não explicam, por si só, como se obtém determinada medida ou angulação. No início do processo do traçado de uma base de corpo, por exemplo, o aluno não consegue entender o que significa determinada linha ou curva. Essa visualização acaba ocorrendo mais próximo do fim do traçado e, mesmo assim, ainda pairam dúvidas a respeito de alguns elementos, principalmente relacionados à tridimensionalidade da roupa, como as cavas e as pences. Esse fato, no entanto, não desmerece o resultado final; quando prontas e transportadas para o tecido, as bases se aproximam da realidade tridimensional do corpo e o entendimento por parte do aluno se consolida. Porém, esse é um processo longo que gera desânimo em muitos deles. Por isto, verifica-se a validade de começar o ensino de modelagem plana com o auxílio da moulage. Essa abordagem começa com a preparação do manequim, conforme descrito anteriormente, e a moldagem de uma peça básica, com todos os elementos de ajuste que a compõem. Durante este contato, é possível chamar a atenç~o do aluno para o “di|logo” que ocorre entre o tecido e o suporte; o busto projeta-se à frente, provocando sobras de tecido que se transformam em pences, o pescoço e as cavas determinam contornos para passagem da cabeça e dos membros respectivamente, e o tecido tende a esticar mais nos lugares onde é cortado enviesado. Esta experimentação propiciada pela moulage prepara o aluno para compreender a dinâmica da modelagem plana. Além da experiência pedagógica, cabe citar outros exemplos onde uma metodologia ratifica e complementa a outra; bases desenvolvidas na modelagem plana e posteriormente provadas no manequim para possíveis correções, planificação e 107 gradação de peças desenvolvidas na moulage, desenvolvimento da estrutura da roupa em modelagem plana e o de outros elementos na moulage ou vice-versa. Ostrower alerta que a especialização exacerbada em uma determinada metodologia limita o potencial criativo, e o mesmo aplica-se à modelagem como um todo. Profissionais que se dedicam a apenas um dos métodos podem ter, não apenas seu potencial criativo, mas também o repertório técnico, cerceados pela “super especializaç~o”: Como experiência de vida e de trabalho, os processos de identificação com uma matéria, os processos de aprofundamento e de pesquisa que envolvem uma espécie de empatia com a essência de um fenômeno e os quais se baseiam na imaginação e no pensamento criativo não podem ser confundidos com a mentalidade mecânica e unilateral da superespecialização. Ainda que esta seja impingida pelo meio social em termos de necessidade profissional, não precisamos vê-la como virtude, como algum ideal aspirável em termos de realização humana. Do modo como está sendo colocada e com a falta de abertura, não passa de um reducionismo que exclui do viver toda experiência valorativa. Excluir do viver o vivenciar. Já por essa indiferença pelo real da vida, a atitude básica da superespecialização carece de qualificações criativas. (OSTROWER, 1987, pp.38 e 39) Assim, esquematiza-se a seguir a modelagem como processo, composta pelos métodos bidimensional e tridimensional e a integração entre as diversas técnicas que compõe cada método (fig. 58). Traçado de diagrama Desenvolvimento de bases Transferência de pences Bidimensional Recortes Sistema CAD Modelagem Gradação Preparação do manequim Tridimensional Marcação do modelo sobre o manequim Planificação Modelagem digital 3D Figura 58: A modelagem com seus métodos e técnicas integrados entre si 108 Partindo das considerações de Coelho e Ostrower, e pressupondo-se que a modelagem é um processo abrangente, composto por métodos e técnicas, conclui-se que quando estes aspectos são combinados entre si, potencializam a realização do projeto do vestuário e alargam a visão do designer para diversas possibilidades formais. Nesse caso, as técnicas da modelagem plana podem complementar o método da tridimensional e vice-versa, proporcionando maior versatilidade ao design de moda, e as tecnologias digitais otimizam este processo. 109 Capítulo 4 – A modelagem como processo Construção ou desconstrução? Feio ou bonito? Qual o oposto de direito – Avesso ou errado? (Fashion Passion, 2003, p. s/n) A modelagem, de acordo com análise anterior, pode ser compreendida como o processo que permite correlacionar a natureza bidimensional dos tecidos à tridimensionalidade do corpo, seja respeitando seu formato anatômico ou remodelandoo, criando novas configurações, e proporções para a aparência masculina e feminina. Durante toda a história da moda, a modelagem foi um dos alicerces tecnológicos responsáveis pela grande diversidade de estilos e formas. Por muito tempo, seu conhecimento esteve restrito aos alfaiates, profissionais humildes e anônimos que estruturavam roupas as quais, após serem modeladas, cortadas e costuradas, eram recobertas por ornamentos de superfície com efeito estético. Atualmente, a modelagem é uma práxis interdisciplinar, composta por métodos e técnicas, e embasada em conhecimentos das mais diversas áreas do conhecimento, tal como também se define o próprio design. Poderíamos considerar que se trata de uma habilidade, de um fazer que diferencia as ocupações e saberes pertinentes a um estilista e um designer de moda, uma vez que este último ocupa-se em configurar artefatos – tridimensionais no caso específico do vestuário – a partir de um projeto elaborado para tal fim, segundo definição de Coelho (2008). Levando-se em conta que o campo da moda abrange múltiplas atividades de caráter técnico/científico, criativo e artístico, o designer de moda é aquele que planeja e coordena todos os aspectos relativos ao projeto, criação, desenvolvimento e produção além do lançamento e acompanhamento do produto no mercado, buscando atender necessidades de uso e contribuir para o bem-estar do usuário, além de estar atento às questões estilísticas, conceituais e comerciais que permeiam as coleções. Se os antigos criadores de moda impunham determinadas regras, quando nos aproximamos do mundo contemporâneo, encontramos uma abertura ao novo e ao diferenciado cada vez mais acentuada e com ritmo cada vez mais frenético. O objetivo do designer de moda é ainda o de recriar, mediante aspectos formais, nas roupas, as qualidades picturais, o conjunto de traços que caracterizam como um objeto estético que possua a capacidade de atrair a atenção receptiva do outro sujeito para seu aspecto formal, para a materialidade que o constitui e o presentifica. Além disso, ele deve refletir sobre as questões que se determinam na 110 problemática do uso, na adequação ao corpo (ergonomia), nas situações dadas pela contemporaneidade, além das questões relativas ao custo, ao conforto e ao bem-estar. (CASTILHO; MARTINS, 2005, pp.34 e 35). A aplicação da modelagem como recurso criativo fica evidente, em maior ou menor grau, no trabalho de alguns couturiers22 da alta-costura e designers do prêt-àporter contemporâneo. Como pudemos constatar no capítulo 2, Worth, Chanel, Vionnet e Balenciaga foram alguns desses nomes – cada um em sua época e com estilos únicos – citados pela contribuição para a moda como um todo, mas principalmente por implementar novas concepções para a construção do vestuário. Partindo da fundamentação teórica analisada e verificada a construção das roupas da alta costura, estudando seus métodos e técnicas, interessa-nos também discorrer sobre o trabalho de designers contemporâneos os quais, assim como seus antecessores, incorporam os recursos de modelagem como uma etapa necessária para a configuração do vestuário, e também como uma referência criativa e fundamental para criação de suas coleções. Assim, a modelagem torna-se ferramenta criativa, associada ao processo de concepção e configuração do vestuário, e tal procedimento manifesta-se positivamente no produto final. Dentro do universo da moda composto por múltiplos estilos, delimitaremos nossa pesquisa à obra dos designers contemporâneos internacionais Yohji Yamamoto e Martin Margiela, e dos brasileiros Walter Rodrigues e Clô Orozco. Apesar da aparente diversidade entre os pesquisados, as escolhas justificam-se pela reverência com que esses designers se dedicam ao estudo das formas e à pesquisa de novos materiais. Suas habilidades fundamentam-se em conhecimentos de modelagem adquiridos pelo estudo de diferentes métodos, experiência prática e interesse pelo trabalho dos antigos mestres do corte. O fio condutor que perpassa toda a presente pesquisa e une esses últimos designers aos citados em capítulos anteriores é o profundo desejo de reinventar a forma pelo domínio da construção das roupas, fato que os conduz a empregar os conhecimentos de modelagem como uma metodologia. Pode-se afirmar, pela análise e estudo das questões formais de suas criações que esses designers, antes mesmo de se interessarem pela moda, têm profundo apreço pela estrutura das roupas. 22 Assim eram chamados os criadores da alta-costura desde os primórdios desse sistema. Tal denominação eleva o status do costureiro ao de artista, pois ele deixa de ser um simples executor e passa a criar os modelos, considerados obras de arte. 111 A fim de investigar como os processos criativos desses designers se desenvolvem, tomaremos como exemplo as imagens de algumas de suas coleções e peças mais relevantes. Embora, em alguns casos, a análise das metodologias aplicadas à realização dessas peças possa limitar-se a hipóteses, em razão da falta física do objeto, o conjunto da obra desses designers é importante para compreender o impacto da modelagem no design de moda contemporâneo, tanto no âmbito internacional como nacional. Os procedimentos práticos de nosso estudo serão dedicados à análise de peças selecionadas dos designers Walter Rodrigues e Clô Orozco, buscando exemplificar a importância da modelagem em seu processo criativo, além de ter o cuidado de escolher peças de cujo processo de modelagem ou execução esta pesquisadora participou ou acompanhou pessoalmente. Tal fato, neste caso, garante melhor conhecimento do processo e da finalização do produto, o que, em última instância, possibilita investigar com maior afinco o processo de configuração de um traje no contexto de uma coleção. 4.1 O fenômeno japonês No início dos anos 1980, os estilistas japoneses causaram espanto e perplexidade no mundo da moda, ao romper totalmente com a estética em vigor que se resumia ao visual da “mulher fatal”: corte justo e decotado, cores fortes, saltos altos e maquiagem carregada. Em contraponto, estes designers sugeriam uma silhueta afastada do corpo, encobrindo-o em vez de colocá-lo em evidência, com desconstrução nas formas e acabamentos, roupas assimétricas e invariavelmente nas cores preta e branca (BAUDOT, 2002, p.313 e SEELING, 1999, p.495). A simulação de pobreza nas criações ilustrava a antítese dos valores de perfeição artesanal criados na tradição da alta-costura. Crane narra que “Kawakubo criou suéteres cheios de furos e vestidos com barras inacabadas e irregulares. As máquinas para confeccionar suas roupas eram propositadamente manipuladas para produzir peças com defeitos.” (CRANE, 2006, p.310). Apesar do aparente desleixo com que essas peças eram produzidas, seu feitio desafiava a compreensão dos estilistas ocidentais pela complexa arquitetura (fig. 59 e 60). 112 Figura 59: Rei Kawakubo Outono/Inverno 1983 Fonte:http://www.kci.or.jp/archives/digital_archi ves/detail_205_e.html Figura 60: Yohji Yamamoto Primavera/Verão 1983 Fonte:http://www.kci.or.jp/archives/digital_archi ves/detail_203_e.html Dentre estes designers, cabe destacar a importante obra de Yohji Yamamoto. Filho de costureira, Yamamoto estudou numa das mais importantes instituições do gênero – a escola de moda Bunka, em Tóquio. Dois anos depois de formado, viajou a Paris a fim de observar estilos vindos das ruas e aprender sobre a moda ocidental. De volta ao Japão, passou a buscar novos caminhos para a moda (BAUDOT, 2000, pp.10 e 11). Talvez tenha sido esta atenta observação que lhe permitiu elaborar trajes que harmonizam influências ocidentais e orientais. Com elegância e firmeza, Yamamoto conseguiu conciliar proposições vanguardistas ao estilo da alta-costura parisiense, além de aproximar grandes opostos – fantasia e funç~o, erotismo e pudor. “Mestre japonês da arte de cortar e grande arquiteto do vestu|rio, cada uma de suas coleções põe em quest~o a estrutura e a postura do traje” (BAUDOT, 2002, p.322). Por vezes, suas roupas apresentam silhuetas esculturais; em outras, são soltas e desestruturadas. O elemento essencial é a qualidade do material; tecidos encorpados 113 inspiram modelos angulares enquanto tecidos fluidos conduzem a formas arredondadas e leves. Ao contrário da roupa ocidental que pretende ser uma nova pele para o corpo, Yohji busca dar-lhe espaço para se mover. (SEELING, 1999, p.511). É o próprio designer que explica a relação entre forma e matéria; “Começo pelo tecido, pelo material, por toc|-lo. Depois, passo à forma. Para mim, é o toque que conta primeiro. Em seguida, quando começo a trabalhar o material, eu me transporto em pensamento para a forma que ele deve assumir”. Qualquer roupa de Yohji Yamamoto parte, em sua construção, de dois pontos situados sobre as clavículas. “É daí que o tecido cai melhor. Permitindo que a matéria permaneça viva.” (YOHJI YAMAMOTO in BAUDOT, 2000, p.13) Portanto, a razão que nos leva a analisar sua obra reside no domínio dos métodos da modelagem e técnicas da costura para compor seu repertório de referências. Debo (p.13) relata que muitos dos moldes criados pelos designers japoneses contemporâneos revelam traços marcantes da tecelagem e confecção oriental, muito distintas da abordagem ocidental. O quimono, traje tradicional japonês, é feito de certa quantidade de retângulos compridos, moldadas por pregas que não correspondem às formas anatômicas do corpo. Pode-se observar essa influência no casaco formado por apenas duas partes, conforme figura 61 e modelagem correspondente. Figura 61: Casaco Yohji Yamamoto + modelagem Fonte: Ilustração a partir de http://showstudio.com/projects/ddl_yamamoto/download.html 114 No entanto, Yamamoto também é um atento observador dos métodos de produção da alta-costura e seu referencial histórico, dos quais se apropria mesclando elementos de sua cultura. Esta abordagem é nítida na coleção prêt-à-porter verão de 2000, quando Yamamoto elegeu a “tela” como tema, considerando que ela é uma vers~o temporária e inacabada de um traje, e seu feitio é prática recorrente na alta-costura. Partindo de um simples vestido de algodão branco com alinhavos horizontais em linha vermelha indicando a localização de busto, cintura e quadris, e costuras verticais em preto indicando de pences e costuras, Yamamoto desenvolveu toda a coleção adicionando detalhes do vestuário como um voile preto no decote, uma manga ou um recorte lateral até culminar num vestido de noiva “inacabado” (fig. 62). Por outro lado, a construção da veste sobreposta num dos vestidos é feita de quatro retângulos que remetem aos quimonos e, embora pareça complexa, é surpreendentemente simples. Figura 62: Coleção prêt-à-porter Verão 2000 de Yohji Yamamoto Fonte: http://www.style.com 115 4.2 A desconstrução de Martin Margiela As mudanças ocorridas nas décadas de 1980 ficaram conhecidas como “o fenômeno japonês” e causaram grande impacto na produç~o de jovens designers de diversas nacionalidades. Um grupo de estilistas belgas, “o grupo dos seis”, seguiu os passos dos estilistas japoneses, criando uma imagem de moda conceitual e vanguardista (GRUMBACH, 2009, pp.360 e 361). A admiração pela construção do vestuário perpetrada pelos japoneses era tal que esse grupo desmanchava suas peças para entender como eram feitas. Deste grupo, surge um dos grandes expoentes da moda contemporânea mundial – o estilista belga Martin Margiela. Formado pela Academia de Belas Artes de Anvers, como seus colegas, trabalhou durante três anos com Jean Paul Gautier, estabeleceu a Maison Martin Margiela em 1988 e, entre 1997 e 2003, exerceu concomitantemente a função de diretor artístico23 para o segmento feminino na tradicional Hermès – uma das mais renomadas e luxuosas casas da alta-costura francesa, reconhecida pela qualidade superior no corte e acabamento. (DEBO in MOMU, 2008, p.7) Famoso por não se deixar fotografar ou dar entrevistas, Margiela é contrário à imagem de celebridade atribuída aos criadores de moda da alta-costura, para que apenas o produto resulte na identidade da marca. Sua decisão de manter-se anônimo é traduzida nas etiquetas afixadas em suas criações; um retângulo de tecido de algodão branco costurado à mão nos quatro ângulos, sem nenhuma escrita. (DEBO in MOMU, 2008, p.11) Influenciado pelo mesmo conceito que os estilistas japoneses, Margiela logo foi considerado “desconstrutivista” por causa da aparência inacabada de suas peças de roupa, que deixavam expostos forros, ombreiras e costuras, além de terem elementos básicos de composição das roupas como mangas, cintura e ombros fora do lugar (SEELING, 1999, p.512). Segundo Braga (2004, p.102) “foi uma desconstruç~o para um novo construir; um tipo de paradoxo que acabou se firmando na moda. [...] Do ponto de vista comercial e popular, esse conceito se transformou em bainha desfiada e overlock aparente”. Esta abordagem vanguardista é assim definida por Crane: No contexto do vestu|rio, o termo “vanguarda” comumente implica modificar os significados usuais atribuídos a itens específicos do vestuário (como o uso de um tipo de traje associado a uma determinada atividade com propósitos muito 23 “Na França, denomina-se diretor artístico o estilista à frente da criação de uma grande marca, como Karl Lagerfeld para Chanel, John Galliano para Christian Dior e Nicolas Ghesquière para Balenciaga, entre outros” (GARCIA in QUEIROZ, BOTELHO, 2007, p. 34). 116 diferentes), ou mudar os significados associados a outros tipos de objetos para redefini-los como adequados na forma de vestimenta (CRANE, 2006, p.308). Margiela se permite questionar radicalmente os parâmetros estipulados por cerca de cem anos de alta-costura sem, no entanto, ameaçar a posição central que ocupa no campo da moda contemporânea. Apesar de suas roupas serem erroneamente julgadas como anti-moda, Debo (in MOMU, 2008, p.3) afirma que não é intenção de Margiela fazer tabula rasa à história da moda; a filosofia da Maison fundamenta-se justamente na recusa em aceitar que a moda deve se reinventar inteiramente a cada estação. Assim, ideias de coleções anteriores, bem como elementos captados da memória coletiva da moda são continuamente inseridos nas novas coleções, prova do respeito e paixão pela iconografia do vestuário. Traços do processo de produção são literalmente virados pelo avesso, ou seja, as técnicas tradicionais de construção, modelagem e acabamentos internos – costuras, pences, ombreiras, forros, moldes de papel – usadas durante séculos pelos alfaiates e cuidadosamente escondidas pela altacostura são desvendadas, revelando os segredos de confecção que Margiela conhece em profundidade. Na Hermès, ele desenvolveu sua característica investigação em alfaiataria, embora dentro dos parâmetros de tradição da alta-costura. Ao longo das últimas duas décadas, a Maison Martin Margiela introduziu inúmeras variações em peças do vestuário que constituem o cânone da moda ocidental. Exemplos óbvios incluem o trench coat, o smoking, a camisa branca e calça jeans. Além de ser celebrações da memória coletiva da moda moderna, esses itens também demonstram que Margiela é um especialista em alfaiataria. Embora a Maison seja conhecida principalmente por seu conceptualismo e sua reinterpretação radical da moda, é o seu conhecimento íntimo da história que dota suas coleções de um caráter vanguardista. O mundo da moda é tão disposto a esquecer, que a verdadeira inovação só é possível quando fundamentada num domínio total do ofício e num rigoroso conhecimento histórico. (DEBO in MOMU, 2008, pp.11 e 12, tradução nossa) As coleções de Primavera-Verão de 1997 e de Outono-Inverno de 1997-1998 são exemplos contundentes dessa perspectiva desconstrutivista. Aqui, a forma de um busto-manequim com suas marcações são o ponto de partida para o desenvolvimento de toda a coleção, como uma crítica à tentativa de remodelar o corpo para padronizá-lo tal qual o tamanho-padrão de um manequim de alfaiate. Pelo contrário, o tamanho-padrão do busto-manequim é colocado sobre o corpo como uma armadura, na qual os elementos adicionais são fixados, ilustrando as várias fases do processo de construção da roupa (fig. 63). “Assim, a roupa deixa de ser um mediador entre o corpo e um boneco inanimado.” (DEBO in MOMU, 2008, p.12, tradução nossa) 117 Figura 63: Manequim de prova como referência Fonte: http://www.maisommartinmargiela.com O tema central da coleção Primavera-Verão de 2006 também faz referência ao processo de produç~o, porém culmina numa “obra inacabada”. Peças ícones do vestu|rio como trench coats, blazers, calças e vestidos foram finalizadas apenas num dos lados, sendo que o outro permanece incompleto (fig. 64). “É como se a roupa tivesse sido apagada num dos lados. Em alguns casos, o material ainda está ligado ao rolo de tecido, o qual é carregado pelas modelos”, relata Debo (in MOMU, 2008, p.12, traduç~o nossa). 118 Figura 64: Peças inacabadas Primavera-Verão 2006 Fonte: http://www.style.com A crítica à padronização, sempre com a intenção de desviar dos padrões de corpo impostos pela moda, aparece também na coleção Outono-Inverno de 1994-1995, num interessante exercício de proporção; diversas peças são reproduções fieis de roupas de boneca. Neste caso, o conceito de padronização parte do princípio de que bonecas como Barbie e Ken são versões miniaturizadas de um corpo adulto idealizado. Entretanto, é impossível diminuir aviamentos como zíperes e botões para a produção de suas roupas. Também acabamentos, justamente como as ocorrem fiapos falhas de desproporções linhas. e nos São descuidos presentes nas roupas portadas por esses bonecos que caracterizam o design da coleção; ao serem ampliadas para o tamanho de um adulto, estas imperfeições saltam aos olhos (fig. 65). “Apesar de tudo, o visual provocado pelo aumento é tão inquietante quanto cômico”. (DEBO in MOMU, 2008, p.14, tradução nossa). Para efeito de nossa análise, cabe Figura 65: Camisa com as proporções de roupa de boneca Fonte: DEBO; VERHELST, 2008, p.91 ressaltar também sua abordagem quanto ao conceito de luxo. A “Coleç~o Artesanal” – criações únicas desenvolvida paralelamente à coleção principal – é uma resposta ao sistema tradicional de produção da alta-costura. A 119 maison se apropria do intenso trabalho feito à mão, marca intrínseca da alta-costura, porém abdica dos tecidos e materiais valiosos em prol de materiais recicláveis e não necessariamente pertencentes ao universo da moda. O luxo, neste caso, consiste no tempo de trabalho dedicado à produção de cada peça. (DEBO in MOMU, 2008, p.73). Um suéter feito de meias militares (fig. 66) ou um vestido de noiva produzido a partir de outras roupas, porém meticulosamente bem acabado, são exemplos de como Margiela desenvolve esse conceito. Figura 66: Suéter de meias militares e como fazê-las Fonte: http://www.resurrectionvintage.com/blog/?p=3689 e http://www.amagazinecuratedby.com/maisonmartinmargiela/ 120 Conclui-se, portanto, que a modelagem é um componente primordial na obra de Martin Margiela, uma vez que seu uso permeia todas as suas coleções, não apenas como técnica necessária à execução da coleção, mas como metodologia intrínseca ao processo de criação; com isso, a subversão em sua aplicação tradicional torna-se o conceito da roupa. 4.3 A modelagem criativa no design de moda nacional Nas últimas décadas, a moda brasileira está em evidente ascensão. A indústria do vestuário ocupa um espaço considerável na economia nacional; incentiva a criação de empresas, gera empregos diretos e indiretos, aquece as exportações e estimula a abertura de escolas formadoras de novos talentos. Mais especificamente na última década, designers brasileiros tiveram seus trabalhos reconhecidos internacionalmente, o que certamente voltou os olhos do mundo para o que é produzido por aqui. O mercado de prêt-à-porter de luxo nacional desenvolveu-se e atingiu um patamar de profissionalismo e qualidade equiparável às melhores marcas internacionais. Atualmente, marcas que estão no mercado há muitos anos têm suas trajetórias sedimentadas em criatividade e inovação. À frente destas empresas, os designers escolhidos para a análise incorporam a modelagem ao desenvolvimento de produto como um diferencial que garante os altos padrões de qualidade. Para levar adiante nossa investigação, elegemos algumas peças de dois designers brasileiros: Walter Rodrigues e Clô Orozco (Huis Clos), para “desconstruí-las” num exercício de engenharia reversa24. O critério de escolha destas roupas baseia-se na complexidade estrutural já que representam um desafio intelectual tanto para o estilista como para o modelista. Convém, no entanto, esclarecer que a produção dos estilistas citados é enorme, não se restringindo apenas a algumas peças ou coleções isoladas. São peças escolhidas pela possibilidade de exemplificar o uso da modelagem como parte determinante no processo criativo e consequente execução projetual, graças à documentação disponível para acompanhamento desse processo. 24 Processo de análise que consiste em desmontar um produto já acabado e examinar suas partes, a fim de identificar como foi construído. 121 Na moda, a cada estação, os temas se renovam; as coleções buscam referências em culturas e épocas distantes, interpretadas pela perspectiva única de cada designer e compostas de dezenas de itens, entre roupas e acessórios. No entanto, as peças selecionadas destes universos férteis nos dão uma pequena amostra do modus faciendi de cada designer e de suas respectivas equipes em relação à modelagem, ou seja, como ela se desenvolve e se estrutura. 4.3.1 Walter Rodrigues A produção do estilista Walter Rodrigues provém de um repertório eclético de referências artísticas, histórias, étnicas, cosmopolitas e, principalmente de conhecimentos consistentes em modelagem e tecidos preciosos. Seu interesse pelas artes e por diversas manifestações culturais permeia todo o trabalho e representa um manancial de onde extrai formas diferenciadas e surpreendentes, texturas e cartelas de cores. A marca Walter Rodrigues surgiu em 1992, mas sua passagem anterior por grandes empresas foi determinante para compreender a dinâmica do prêt-à-porter brasileiro, conforme depoimento: [...] a Cori me chamou para fazer parte da equipe de estilo. [...] Era uma fábrica de 2000 empregados! Isso aconteceu em abril de 1984 e eu fui aprendendo todo o esquema de como era desenhar, passar pela modelagem até a peça ser aprovada e entrar na coleção seguindo para o mostruário, para depois passar para a sala de vendas e, finalmente, para a linha de produção (RODRIGUES in BUONO E YAMASHITA, 2008, pp.2 e 3). Apesar da experiência na indústria do vestuário, Rodrigues é um autodidata que pesquisa incessantemente o trabalho dos criadores de moda que admira. Entre eles, figuram a francesa Madeleine Vionnet e o espanhol Cristobal Balenciaga, cuja relevância para o entendimento da modelagem no processo de criação foi analisada nos capítulos anteriores. Essa investigação o levou a correlacionar o trabalho de ambos e a considerar o impacto que o material escolhido tem sobre as formas: Quando comecei a estudar os volumes de Madeleine Vionnet, descobri a sua fluidez e a sua leveza; o crepe georgette foi sempre fascinante para mim, e de 1998 a 1999 todo mundo estava usando o crepe georgette. Nesse período, era fácil de encontrar o tecido, era uma febre. Assim, quis trabalhar com o oposto, com tecidos mais estruturados, isso fez sentido, porque na época estava estudando os volumes de Cristobal Balenciaga. [...] Descobrindo mais o Balenciaga, fui entendendo o grande luxo que é o trabalho desse gênio. Ele foi um estudioso do trabalho de Vionnet, ele se interessou por sua técnica de trabalhar a geometria, e utilizou isso em suas criações. Porque, se você abrir o molde do Balenciaga e o da Vionnet, vai perceber que o princípio é o mesmo, mas a genialidade está na mudança do tecido, ele substitui os tecidos fluidos por tecidos 122 estruturados, e com a mudança da matéria o desenho reage de uma forma completamente diferente, com volumes muito poderosos. (RODRIGUES in BUONO e YAMASHITA, 2008, pp.13 e 14) A influência dos estilistas japoneses contemporâneos também é considerável, com ênfase na obra de Yohji Yamamoto, reconhecido pelo conceito de desconstrução e reconfiguração. Isso nos leva a constatar que Rodrigues também busca conhecimento nas metodologias e técnicas desenvolvidas pelos mestres do corte para compor seu arcabouço de referências. Rodrigues utiliza a moulage na criação de suas peças desde 1996. Na época, sua marca era patrocinada por malharias ligadas à Rhodia25 que lhe enviavam quantidades significativas de tecidos variados, os quais eram colocados sobre o manequim e modelados instintivamente. Depois de alfinetados, alinhavados e costurados, estes experimentos transformavam-se em vestido únicos. “Isso foi se transformando em um h|bito e descobri que tinha mais facilidade para explicar minhas idéias à equipe através do pano e da moulage. Fui procurar fazer um curso [...] e, ao mesmo tempo, fomos descobrindo a planificação da moulage”. (RODRIGUES in BUONO e YAMASHITA, 2008, p.16) Entretanto, Rodrigues admite que nem tudo precisa ser feito em moulage. Ao observar mulheres vestidas com roupas soltas de malha flexível, provavelmente adquiridas em grandes lojas de varejo, percebe que o princípio da moulage está ali, embora a produção de tais peças só seja possível em larga escala quando existe um molde plano que possibilite o corte do enfesto por máquina de corte. (RODRIGUES in BUONO e YAMASHITA, 2008, p.16). A planificação e gradação desses modelos, mesmo quando elaborados pela modelagem tridimensional, ocorrem por técnicas ligadas à modelagem plana que traduzem e racionalizam as formas, tornando-as inteligíveis para o processo industrial. Existe aí uma integração entre ambos os métodos de modelagem, que ratifica a análise do capítulo anterior. Há um terceiro momento em que a Moulage é conjugada à modelagem plana – ao visualizar o projeto, é possível traçar uma linha de pensamento para alcançar o resultado. As partes visuais já resolvidas no desenho são executadas na modelagem plana e aquelas que demandam ainda uma investigação são rapidamente resolvidas na Moulage. Em geral, peças resolvidas na Moulage podem demorar ou não a serem concluídas, porém é uma escolha do profissional, e por vezes revela-se mais eficaz ou de melhor resolução para um determinado projeto. As duas técnicas são utilizadas em conjunto para facilitar ou adiantar o processo que aqui denominamos “Moulage experimental”, que se insere na contemporaneidade de diversas marcas. (YAMASHITA, 2009, p.68) 25 Importante indústria de fios sintéticos e grande patrocinadora da moda no Brasil. 123 Para compreender seu pensamento construtivo, foram escolhidas duas peças executadas com materiais e métodos diferentes, cada qual pertencente a coleções distintas e modeladas por esta pesquisadora sob orientação do designer. Além de orientar os detalhes específicos para cada colaborador, é interessante observar que Rodrigues sempre procurou explicar cada coleção como um todo, apresentando as referências de sua pesquisa para melhor compreensão por parte de toda a equipe envolvida no processo. A primeira peça pertence à coleção de inverno de 2002, inspirada na cavalaria medieval representada nos quadros do pintor flamengo Antoon Van Dyck (1599 – 1641), conforme figura 67, e também nos antigos samurais japoneses (QUEIROZ e BOTELHO, 2007, p.85). É um casaco (fig. 67) com basque26 e mangas longas, usado sobre saia com um leve baloné27. Confeccionado em denim28 e adornado nas costuras por vivos29 de couro, o fechamento da peça ocorre pelo zíper frontal. Rodrigues apresentou a ideia para a equipe de modelagem numa moulage experimental para que fosse retrabalhada conforme os parâmetros industriais e nas medidas da modelo que a usaria no desfile. Para configurar a peça, esta pesquisadora optou por desenvolver uma base nas medidas da modelo, montá-la no morim30, vesti-la no manequim técnico e, sobre ela, riscar os recortes de acordo com a ideia original do estilista. A tela marcada foi então recortada e planificada no papel, onde recebeu as margens de costura e todas as indicações necessárias para corte no tecido definitivo. As mangas foram desenvolvidas diretamente na modelagem plana. Essa estratégia de integração de métodos possibilitou visualizar o modelo por todos os ângulos e otimizar o trabalho. O molde finalizado apresenta várias partes que compõem os forros e os recortes, nos quais se inserem os vivos de couro que evidenciam as costuras. 26 Continuação da parte superior do vestuário, logo abaixo da cintura, em forma de aba levemente projetada. 27 Volume que se obtém franzindo a barra e prendendo-a a um forro mais curto e justo. 28 Tecido de algodão resistente em que se misturam fios azuis na trama e brancos na urdidura, ou viceversa. 29 Tira roliça de cor contrastante que se insere numa costura de fechamento e ressalta o recorte. 30 Tecido de algodão rústico, geralmente branco ou cru, de preço baixo e muito utilizado na confecção de moulages provisórias e telas. 124 Figura 67: Casaco jeans da coleção Inverno 2002 e modelagem Fonte: Ilustração a partir de QUEIROZ e BOTELHO, 2007, p.97 e http://www.wga.hu (quadro de Van Dyck) 125 A segunda peça escolhida faz parte da coleção de verão 2004 e é mais um exemplo de como os métodos de modelagem aliados podem conduzir a resultados satisfatórios. Nesta coleção, os desfiles aconteceram em agosto de 2003 em Medelín, na Colômbia, e em outubro em Paris, durante a semana de moda (QUEIROZ e BOTELHO, 2007, p.153). Na época, Rodrigues defendia um estilo sensual, porém elegante, e a modelagem foi um dos itens que o ajudaram a compor as formas com que propõe valorizar o corpo feminino sem vulgarizá-lo. Os demais modelos da referida coleção partem de exercícios feitos com tecidos inteiros, que contornam o corpo ajustando-se em alguns pontos e mantendo-se fluidos em outros. O macacão amarelo luminoso (fig. 68) foi apresentado a essa pesquisadora por meio de uma ficha técnica. Através da observação do desenho, foi possível transportar para o manequim as proporções e os volumes desejados pelo designer. A peça foi confeccionada em malha com lycra, de acabamento fosco, desenvolvida especialmente pela malharia Marles para que o resultado chegasse próximo ao toque, caimento e gramatura de um crepe georgette, porém com mais elasticidade para promover a aderência desejada (YAMASHITA, 2009, p.106). Construído primordialmente por moulage, mas planificada para posterior gradação, o modelo é composto por quatro partes, sem contar as alças, sendo que as duas principais são simétricas e determinam o modelo, enquanto as outras servem de suporte para sustentação e acabamento. Os segmentos que envolvem frente e costas têm a forma de uma espiral ou jabot, como também é conhecido o efeito ondulado produzido por esse tipo de corte. O traje configura-se conforme análise semiótica empreendida por Yamashita; O tecido parte de uma altura logo abaixo do ombro e desce em diagonal passando pela cintura, contornando o quadril e envolvendo a metade da região posterior. Sequencialmente, delineia-se o gancho traseiro passando o tecido para a parte frontal e envolvendo a parte entrepernas para subir até a altura da cintura e, então unir a parte postero-lateral. A junção dos dois tecidos se estabelece pelo gancho da calça (YAMASHITA, 2009, p.105). Observa-se pelo desenho técnico que o modelo não suscita recursos de como zíperes ou abotoamentos, uma vez que pode ser vestido por baixo com acesso pelo decote, graças à elasticidade da malha. Para evitar a transparência, aspecto que poderia eventualmente tornar a peça vulgar, as partes internas foram cortadas duplicadas. Para acabamento das bordas optou-se pela bainha “lenço”, costura extremamente delicada, geralmente empregada em tecidos planos, mas que foi adaptada para malha, neste caso. 126 As alças que sustentam a parte superior do traje são feitas de rolotê 31 da própria malha que constitui o modelo. Figura 68: Macacão amarelo da coleção Verão 2004 e modelagem Fonte: Ilustração a partir de acervo Walter Rodrigues (ficha técnica, foto do catálogo e modelagem) 31 Cordão fino, muito utilizado em alças, feito com o próprio tecido da peça cortado em tira e no viés. 127 Partindo da análise das peças escolhidas e com base no convívio com o designer, observa-se a ênfase da modelagem, principalmente da moulage, no processo criativo de Walter Rodrigues é determinante para o sucesso do resultado final. 4.3.2 Huis Clos “Huis Clos”, uma express~o francesa que significa “quest~o encerrada”, foi o nome escolhido por Clô Orozco em 1978 para representar uma das mais conceituadas marcas de prêt-à-porter de luxo brasileira. Garcia (2008, p.21) relata que a escolha justificava-se porque “rimava com seu apelido, o que dava uma graça, era francês, o que dava um charme e tinha um quê intelectual, apropriado à socióloga recém-formada que optara pelo mundo da moda” (GARCIA in QUEIROZ e BOTELHO, 2008, p.21). A autora narra ainda que Orozco aprendeu com sua tia as coisas do métier como alinhavar, modelar pela moulage, tirar defeitos provando a roupa várias vezes até deixá-la perfeita, como faziam os mestres da alta-costura a quem aprecia; À maneira de mademoiselle Chanel, em seu ateliê, de tailler (Chanel, claro), bijoux, chapéu palheta, cigarro no canto da boca, alfinetando uma cava, que ela ensinava ser fundamental para a queda da roupa. Como o austero Cristobal Balenciaga de guardapó alvo, impecável, analisando, como hábil cirurgião, a costura das costas do tailleur no corpo da manequim de prova (GARCIA in QUEIROZ; BOTELHO, 2008, p.25) Além do hábito de interagir no processo de construção da roupa, Orozco assemelha-se a Chanel em outro aspecto; o gosto pelo vestuário masculino reformulado nas roupas femininas. Elementos da indumentária masculina como a alfaiataria, tecidos, texturas, proporções, calça com pregas afunilada na barra são transportadas para o universo feminino num exercício da sensualidade sutil que caracteriza seu estilo. (GARCIA in QUEIROZ; BOTELHO, 2008, p.40) “Para modernizar o traje masculino, Clô trabalha com moulage e acrescenta volume ao que seria um simples paletó [...]. A moulage renova e a alfaiataria garante a estrutura. O corte é impec|vel.” A citação de Garcia (in QUEIROZ e BOTELHO, 2008, p.40) comprova como a interconexão dos gêneros realiza-se também através da integração dos métodos de modelagem, como se a moulage representasse o feminino e a alfaiataria, o masculino (fig. 69). A marca Huis Clos começou a despontar no cenário nacional do prêt-à-porter no início dos anos 1980 justamente quando os designers japoneses causavam a revolução estética na moda européia que viria atingir todo o mundo. “A arte, o conceito, a moulage, 128 principalmente, no caso do Yohji Yamamoto, era art-wear, uma roupa para colocar no manequim e observá-la como exercício de estilo” (OROZCO in GARCIA in QUEIROZ e BOTELHO, 2008, p.28). Clô Orozco deixou-se influenciar pelas experiências dos designers japoneses e, junto com sua própria bagagem, interpretou-as para a realidade brasileira. Figura 69: Alfaiataria e tecido masculinos trabalhados em moulage Fonte: QUEIROZ; BOTELHO, 2008, pp.49 e 57 Em termos de qualidade, Orozco admite perseguir os conceitos da Hermès, marca francesa de luxo que simboliza elegância e discrição, e admira particularmente o período em que o belga Martin Margiela era seu diretor artístico. “O produto de qualidade não deixa margem para erro, dúvida ou engano. É o resultado de muito trabalho, pesquisa, inovação, risco, mistura de passado e futuro, renovação, novas idéias e, finalmente, de produtos e de serviço” (GARCIA in QUEIROZ e BOTELHO, 2008, p.34). Minimalista, Clô Orozco gosta de fazer uma moda funcional e repudia os enfeites gratuitos. Peças consideradas esportivas como parcas e macacões estão sempre presentes a cada estação, porém são confeccionadas com tecidos e acabamentos nobres. Os laços, que à primeira vista podem parecer apenas decorativos, surgem como soluções aliadas à moulage e sempre de forma funcional (fig. 70). 129 Figura 70: Laços; decorativos e funcionais Fonte: QUEIROZ; BOTELHO, 2008, pp.126 e127 Considerando estas características atribuídas à grife Huis Clos, a peça escolhida para análise de construção é um macacão xadrez da coleção de Inverno 2008, a primeira assinada pela designer Sara Kawasaki, que já trabalhava com Orozco e assumiu a criação a partir desta estação. A coleção, inspirada no trabalho da fotógrafa Sarah Moon32, trazia peças volumosas e afastadas do corpo, com cinturas altas e em diversas padronagens. A peça analisada é amplo, com gancho33 baixo, laço no decote e bolsos laterais embutidos. O grande diferencial está nas mangas formadas por uma única faixa que se inicia numa das cavas contornando-a, insere-se no recorte raglan34, contorna o decote pela nuca e percorre o mesmo caminho pelo lado oposto do traje. A parte frontal da calça também é formada por uma única parte e possui uma espécie de nesga, denominada “taco”, na costura do entrepernas35. Esse recurso proporciona tridimensionalidade em peças que não possuem os recortes que formam o gancho da calça. As duas partes que compõem as costas transportam-se para frente e, unem-se ao recorte da cava raglan. O decote frontal, próximo ao pescoço, possui abotoamento arrematado por um laço. Segundo relato de Joseane Honorato36, modelista da empresa desde 2005 e responsável pela modelagem das peças mais elaboradas, o macacão se originou de um 32 Fotógrafa francesa que garantiu seu nome na história da moda graças a campanhas para grifes famosas como a Cacharel. 33 Recorte da calça que une as duas pernas. 34 Espécie de cava cujo recorte parte da axila em direção ao decote. 35 Costura de fechamento na parte interna das calças. 36 Em entrevista concedida à pesquisadora em 17/02/2011. 130 vestido desenvolvido em moulage pela designer Sara Kawasaki. A partir dos estudos de formas, a designer projetou o macacão e o encaminhou por meio de ficha técnica para que Honorato o desenvolvesse em modelagem plana. Os detalhes das mangas e do decote sofreram algumas modificações e está presente em outras peças confeccionadas em tecidos e padronagens diferentes, fato que garante a unidade da coleção. Figura 71: Macacão de lã xadrez e modelagem Fonte: Ilustração a partir de http://www.oglobo.globo.com e Catálogo Huis Clos Inverno 2008 131 É interessante observar que, as modelagens planificadas pouco lembram os trajes que constituem, talvez pela complexidade de sua construção ou quantidade de partes; cada molde relaciona-se com uma região do corpo e traz informações que possibilitam o correto posicionamento para corte no tecido e a conexão com as demais partes pela costura, resultando na forma final do traje. Tais informações contidas nos moldes só podem ser compreendidas por iniciados nos fundamentos da modelagem e representam um sistema, um projeto, uma matriz que permite a reprodução ilimitada do modelo. Assim como os moldes de cerâmica determinam a forma do material, o mesmo ocorre com a modelagem do vestuário, porém por outros meios; a forma vai se configurando em cada união das partes, seguindo uma sequência operacional específica para cada peça. Esse processo pode ser observado nas modelagens e nas suas respectivas instruções em anexo. Apesar das especificidades, esses moldes nos dão uma pista de como se desenvolve o raciocínio do designer e seus modelistas. O emprego da moulage como ferramenta criativa e meio de comunicação do designer com sua equipe, e a integração de métodos de modelagem plana e tridimensional para a resolução dos problemas de configuração validam a hipótese de que o design de moda beneficia-se dessa metodologia. O estudo desses processos comprova a participação efetiva da modelagem como metodologia no percurso criativo e elucida a importante participação do modelista no desenvolvimento de produto. O conjunto de moldes que compõe cada um dos modelos analisados, muito além de formas articuláveis, nos leva a refletir sobre a modelagem na condição de um projeto à parte, ou um projeto dentro do projeto de moda. Nesse sentido, ela poderia ser conceituada como o aspecto técnico/científico que torna real toda a fantasia sugerida pela moda. O exercício de desconstruir um artefato para compreendê-lo estabelece um diálogo entre o observador e o designer. Ao dissecar um traje e verificar sua estrutura, podemos compreender o raciocínio do designer, seu modus facendi. É como se ele nos relatasse uma história interessante e repleta de segredos, numa linguagem muito específica escrita nas entrelinhas dos tecidos, costuras, cortes, aviamentos e adornos. 132 Considerações finais Ao finalizar uma pesquisa em que o objeto está tão próximo do pesquisador a ponto de, a princípio, ter convicção de certo domínio do assunto, nos damos conta de que o campo é extenso e ainda há muito por desvendar. Por um lado, confirma-se o que se sabia, sistematizam-se as ideias ou retificam-se velhas crenças. Por outro, surge a inquietação de mergulhar em temas que se ampliam e apontam possibilidades interessantes, novos desdobramentos e, que certamente poderão ser investigadas mais adiante. A presente pesquisa sobre a modelagem conduziu esta pesquisadora a caminhos surpreendentes, embora esse tema lhe seja familiar desde a infância; o amor pelas roupas surgiu ao observar a mãe traçando, cortando e costurando tecidos que se transformavam em vestidos iguais aos das revistas de moda. Aquilo parecia mágica aos olhos da criança que tentava entender como os pedaços de tecido se juntavam e criavam vida quando vestidos pelas clientes. A opção pela profissão nasceu desse contato e, ao contrário de uma obrigação imposta pelo vínculo familiar, foi acolhida como herança, um patrimônio de conhecimento que se ampliou com o estudo dos métodos e suas técnicas, além de um ofício, um fazer, que traz muita satisfação para quem o executa com entusiasmo. Portanto, a análise dos tópicos que sustentam essa prática trouxe também a oportunidade de revisitar as próprias origens, organizar a experiência de muitos anos e vislumbrar um futuro promissor para a modelagem como recurso técnico e criativo. A análise dos aspectos que compõem a pesquisa amplia a visão para diversos universos, ao mesmo tempo em que nos traz de volta para o objeto com informações que proporcionam entendimento ao tema. Assim, pode-se dizer que a abordagem do Capítulo 1, que relaciona a forma e a matéria no design do vestuário, muito além de elucidar as questões relacionadas à adequação das roupas ao corpo, trouxe a oportunidade de verificar que a ciência da anatomia divide a forma corporal de maneira muito semelhante à metodologia utilizada na modelagem plana, onde as medidas são transpostas para um meio plano conforme cálculos, assim como na moulage quando se secciona o manequim técnico para delimitar a área a ser trabalhada. A análise dos aspectos ergonômicos alerta para o fato de que o corpo não pode ser visto como uma forma inerte e insensível, qual manequim inanimado. Dentre outros 133 elementos, as articulações, os músculos e a pele conformam o corpo humano, conferindo-lhe movimento e sensibilidade. O vestuário, assim como uma segunda pele, deve corresponder às necessidades desse corpo e a ele se integrar. Os tecidos são aqui considerados os materiais mais relevantes para a configuração do vestuário, embora a história traga muitos exemplos de aplicação de materiais inusitados às roupas. Eles se assemelham à pele humana e têm sofrido grandes modificações graças às descobertas científicas e tecnológicas. Nas últimas décadas, novas fibras e tratamentos favoreceram o desenvolvimento de uma gama de tecidos que não só influenciaram a moda como aumentaram o conforto e a praticidade das roupas. No Capítulo 2, foi possível investigar o percurso da modelagem implícito na história da indumentária. Como qualquer outro objeto, as roupas são produto de um “fazer” ou de uma “práxis” que foi se consolidando no decorrer dos tempos. Novas tecnologias e materiais impulsionaram o aperfeiçoamento das técnicas de feitio das roupas, e esse fato foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da moda como a conhecemos hoje; um fenômeno de renovação sazonal que afeta todos os objetos, mas principalmente o vestuário. Desde a pré-história até o prêt-à-porter, esse “fazer” se traduz em peças remanescentes de outras gerações que revelam muito do pensamento construtivo de épocas distantes. Os modos de produção atuais são produto dessa longa jornada, enfatizando a época em que o feitio das roupas era restrito a artífices associados às guildas de alfaiates, passando pela mecanização, até o uso extensivo da informática e outras tecnologias para confecção do vestuário. A alta-costura também é abordada com o intuito de avaliar a relevância desse sistema para a convenção dos fundamentos do design moderno na moda. Apesar do caráter artesanal e individualizado pertinente à alta-costura, a introdução da figura do couturier ou criador de moda – precursor dos atuais designers de moda –, a definição dos parâmetros de qualidade e a criação de coleções divididas sazonalmente foram alguns dos acontecimentos que organizaram as mudanças eventuais e aleatórias que determinavam a moda do final da Idade Média até meados do século XIX, e lançaram as bases para aperfeiçoar uma indústria da confecção que se mostrava uma das mais proeminentes desde o advento da Revolução Industrial. A união do refinamento estético da alta-costura com a produção em massa da confecção deu origem, no final da década de 1940, ao sistema de produção e comercialização que predomina até os dias atuais; o prêt-à-porter. O aperfeiçoamento dos métodos de modelagem foi fundamental para que 134 o prêt-à-porter cumprisse a função correlata ao design de produzir grandes quantidades de roupas prontas para o uso, com qualidade, estilo e preços acessíveis. No Capítulo 3, a relação entre a modelagem e o design é levada a cabo partindo da análise de seu desempenho no desenvolvimento de produtos de moda e também no âmbito das técnicas, métodos e processos. Ao verificar que a modelagem pode ser dividida em dois grandes métodos, e que cada um deles é composto por diversas técnicas, pode-se concluir que a modelagem é o processo que possibilita a transformação dos tecidos – bidimensionais em sua natureza – em peças tridimensionais que se correlacionam com o corpo e movimentação de seus usuários. Mediante a grande quantidade de formas que compõem a moda, a modelagem pode ser vista por várias perspectivas, sempre levando em consideração o objetivo formal que se quer atingir, os recursos materiais de que se dispõe e a habilidade de quem a executa. Tanto o designer de moda como o modelista devem conhecer os meandros da modelagem para, através deles, resolver os problemas de configuração e ampliar o repertório de referências técnicas. É aí que a integração dos métodos se mostra útil, não só na execução do projeto do vestuário, mas principalmente como ferramenta criativa, uma vez que se podem combinar as técnicas de modelagem plana e tridimensional para potencializar o processo criativo. Por fim, o último capítulo busca exemplificar a teoria abordada nos capítulos anteriores com a análise de modelos criados por designers contemporâneos, internacionais e nacionais, cuja produção é pautada pela busca de formas diferenciadas, associadas a materiais inovadores e às vezes inusitados, cujo conceito de construção aproxima-se de uma arquitetura “vestivel”. Partindo de um exercício de “desconstruç~o” dos modelos escolhidos foi possível verificar que a modelagem – abordada como processo – pode conferir versatilidade ao design de moda; o pleno exercício da modelagem nos permite reproduzir as formas do corpo tal como ele é – construção das bases –, desconstruir o formato anatômico e reconstruí-lo de novas maneiras, perpetrando o re-design do corpo através dos trajes. Em suma, a presente pesquisa ratifica a modelagem como elemento fundamental para o exercício do design de moda, não só ao garantir a configuração e reprodutibilidade das roupas, mas principalmente por apontar caminhos que engendram o processo criativo e culminam em produtos funcionais e esteticamente inovadores. 135 Referências ARAÚJO, Mário de. Tecnologia do vestuário. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. BAXTER, Mike. Projeto de produto: guia prático para o design de novos produtos. 2. ed. rev. São Paulo: Blucher, 2000. BAUDOT, François. Yohji Yamamoto. São Paulo: Cosac & Naif, 2000. ______. A moda do século. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. BERG, Ana Laura M.; ANCELMO, Ozenir. Método Senac de modelagem plana industrial feminina. In: COLOQUIO DE MODA, 5., 2009, Recife. Anais do 5º Colóquio de Moda. Recife: Faculdade Boa Viagem, 2009. BOUERI, José Jorge. Sob medida: antropometria, projeto e modelagem. In: PIRES, Dorotéia Baduy (Org.); et al. Design de moda: olhares diversos. 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