O último filme (sátira) de João César Monteiro Daniel Lacerda Cinema português que nos é mostrado em França no circuito comercial traz um sinal de qualidade que devia motivar o público lusófono a maior curiosidade e sentido de identidade cultural para não dizer respeito pelo seu património cultural. Se assim fosse, filmes como Cinco Dias, Cinco Noites (de Fonseca e Costa) ; Casa de Lava (de Pedro Costa) e este, como outros anteriores de João César Monteiro, teriam aqui, na região de Paris, uma frequentação muito superior, que colocaria os nossos realizadores noutro plano de competitividade com os seus iguais estrangeiros. Latitudes propõe-se, porém, estar ao lado da criatividade lusófona e, mesmo à distância dos acontecimentos, relatará o que se destaca e faz remexer a massa cinzenta. Apesar disso ou contra isso, continua neste momento a passar no Latina Le Bassin de J. W.*, uma vez que depois dos prémios conquistados em Veneza e do entusiástico acolhimento de uma parte da imprensa cinéfila francesa à sua irreverência e audácia, J.C. Monteiro conquistou aqui um público. Mas a sátira insolente que se esconde nos planos desta fita, que começa num título nada comercial como manda a (sua) lei, (quem vai deduzir que J. W é John Waine ?), dividiu perfeitamente a crítica. Enquanto os estéticos Cahiers deitam abaixo a película embora lhe acordem uma página, o circunspecto Le Monde roga, a quatro colunas, que corram depressa ver a obra-prima. De que se ri César Monteiro nesta nova charge à sociedade portuguesa, e não só? O filme está cheio de referências (citações) à inspiração de autores diversos, as quais efectivam o carácter parasita do realizador, um parasita talentoso ou com pretensões a artista! É assim que vai parasitar os aterros da exposição mundial, lá para Cabo Ruivo, para gozar a televisão (para parolos) e homenagear o desaparecido Marco Ferreri no buraco dos O n° 2 - février 98 Halles, a filmar o “western” Ne touchez pas à la femme blanche ; ou Felini nas gruas e funiculares das suas paródias labirínticas à Orson Welles. No começo, deparamos com as tautologias Diabo/Deus que imortalizaram Gil Vicente e perduram - hoje e aqui - nas mentalidades infantis e populares ao lado da bruxa e das mezinhas da felicidade eterna, tudo bem cantado num gregoriano versão Monteiro. Noutra sequência de fino recorte estético, nos antípodas do miserabilismo exibicionista que coroaram a (sua) inultrapassável cena do nocturno-lisboeta com a voluptuosa prostituta, associa-se o passado juvenil da MP com as investidas dos grupos Ocidente, à mistura com folclore, TV e pedofilia. Uma salada, de actualidade, aqui e algures. Noutro assomo da modernidade que fez tonitruar a imprensa francesa a propósito do último filme de Alain Resnais: On connais la chanson, J. C. Monteiro encerra diversas sequências ou réplicas com um verso ou trecho de canção conhecidos. Estará ele já a parasitar também o coleccionador de prémios Delluc ? Finalmente, nesta rábula indisciplinada do Deus João César, se não assistimos à cena prometida do cair de beiço feminino pelo jogo de ancas de John W. pistoleiro (conceito mítico do malogrado Daney), vamos dali para casa (cama) tão enamorados dum burrinho-actor, belo e sensual, como das vaporosas e miríficas Bardots de antanho. E a RTPI levou bem o recado, que podemos (devemos) sublinhar: vejam bem, Srs. directores de programas, para que raça de marcianos estão a falar ! * As iniciais J. W. do célebre actor norteamericano (cujos filhos não terão autorizado J. C. Monteiro a utilizar o seu nome) são retiradas da frase do malogrado crítico francês Serge Daney que inspirou o realizador: “J’ai rêvé que J.W. jouait merveilleusement du bassin, au pôle Nord”. ACTUALIDADE CULTURAL/ACTUALITÉ CULTURELLE CINEMA/CINÉMA 51