Integrais de linha, funções primitivas e Cauchy Goursat Roberto Imbuzeiro Oliveira∗ 2 de Abril de 2015 1 Preliminares Nestas notas, U ⊂ C sempre será um aberto, γ : [a, b] → U uma curva retificável e f : U → C, uma função contı́nua. Vamos usar algumas vezes a seguinte estimativa. R Teorema 1 (Estimativa M L) | γ f | ≤ M L, onde L = L(γ) é o comprimento de γ e M = supt∈[a,b] f ◦ γ(t). Prova: Lembre que a integral é o limite de somas n X f (γ(ti−1 ) (γ(ti ) − γ(ti−1 )) i=1 sobre partições {a = t0 ≤ t1 ≤ · · · ≤ tn = b}. Para qualquer soma deste tipo, vale que | n X f (γ(ti−1 ) (γ(ti ) − γ(ti−1 ))| ≤ i=1 ≤ n X i=1 n X |f (γ(ti−1 )| |γ(ti ) − γ(ti−1 )| M (γ(ti ) − γ(ti−1 )) i=1 ≤ M L(γ). Portanto, o valor absoluto da integral, que é o limite de expressões do lado esquerdo, também satisfaz a mesma desigualdade. 2 ∗ IMPA, Rio de Janeiro, RJ, Brazil, 22430-040. 1 2 Integrais de linha e primitivas Teorema 2 Suponha γ é C 1 por partes e que ∃F : U → C tal que F 0 = f . Então Z f (z) dz = F ◦ γ(b) − F ◦ γ(a). γ Prova: Suponha primeiramente que γ ∈ C 1 . Neste caso, pode-se provar que a regra da cadeia (F ◦ γ)0 (t) = f (γ(t)) γ 0 (t) vale para todo t ∈ [a, b]. Aplicando esta fórmula às partes real e imaginária da expressão, o Teorema Fundamental do Cálculo garante que Z b Z f (z) dz = f (γ(t)) γ 0 (t) dt = F ◦ γ(b) − F ◦ γ(a). γ a No caso C 1 por partes, basta usar o fato de que a integral de uma concatenação de curvas é a soma das integrais, e somar as integrais sobre os pedaços C 1 . 2 3 Triângulos e suas fronteiras Um triângulo ∆ = ∆(z1 , z2 , z3 ) é definido como o fecho convexo de três pontos z1 , z2 , z3 ∈ C no plano. ∆(z1 , z2 , z3 ) := {λ1 z1 + λ2 z2 + λ3 z3 : λ1 , λ2 , λ3 ∈ [0, 1], λ1 + λ2 + λ3 = 1}. Exercı́cio 1 Mostre que qualquer ∆ é compacto. Prove ainda que: diam(∆) = sup |z − w| = max |zi − zj |. i,j=1,2,3 z,w∈∆ Exercı́cio 2 Suponha que w1 , w2 , w3 ∈ ∆. Mostre que ∆(w1 , w2 , w3 ) ⊂ ∆. Podemos definir curvas parametrizadas [z1 , z2 ] : t ∈ [0, 1] 7→ (1 − t) z1 + t z2 e, de forma semelhante, [z2 , z3 ] e [z3 , z1 ]. Chamamos de ∂∆ a curva parametrizada obtida pela concatenação destas três. Observação importante: há um abuso de notação aqui. A definição de ∂∆ depende da ordem dos pontos z1 , z2 , z3 , mas a de ∆ não depende. Para nós, a ordem sempre estará implı́cita no contexto. 2 Exercı́cio 3 Mostre que a definição faz sentido e que L(∂∆) = |z1 − z2 | + |z2 − z3 | + |z1 − z3 |. Prove ainda que a imagem da curva ∂∆ está contida no triângulo ∆. Exercı́cio 4 Suponha que U ⊂ C é dado, que f : U → C é contı́nua e que o intervalo [a, b] (definido como acima) tem imagem contida em U . Prove que Z Z f =− [a,b] 4 f. [b,a] Cauchy-Goursat Nesta seção, provamos o seguinte resultado. Teorema 3 (Cauchy-Goursat) Considere U ⊂ C aberto e f : U → C holomorfa (isto é, diferenciável em todo R ponto de U ). Então, dado um triângulo ∆ = ∆(z1 , z2 , z3 ) ⊂ U , tem-se ∂∆ f = 0. Esta prova terá duas partes. 4.1 Primeira parte: triângulos dentro de triângulos O primeiro estágio da prova consiste em provar o seguinte resultado. Lema 1 Existe um triângulo ∆(1) ⊂ ∆ com diam(∆(1) ) = diam(∆/2, L(∂∆(1) ) = L(∂∆)/2 e Z Z 1 f ≥ f . 4 (1) ∂∆ ∂∆ A receita para provar este lema é achar triângulos ∆i , 1 ≤ i ≤ 4: com as seguintes propriedades: 1. Cada ∆i ⊂ ∆. 2. Cada ∆i tem diam(∆i ) = diam(∆)/2 e L(∂∆i ) = L(∂∆)/2. 3. A soma das integrais nos ∆i é a integral no ∆: Z f= ∂∆ 4 Z X i=1 3 ∂∆i f. Estes itens garantem (pela desigualdade triangular) Z ∂∆ 4 X f ≤ i=1 Z ∂∆i f , portanto o triângulo ∆i de maior valor absoluto de integral (ou um deles) é o triângulo ∆(1) que procuramos. Agora vamos aos detlahes da construção dos triângulos. Começamos observando que Z Z Z Z f, (1) f+ f+ f= ∂∆ [z3 ,z1 ] [z2 ,z3 ] [z1 ,z2 ] já que ∂∆ é a concatenação das três curvas do lado direito. Considere os pontos médios dos lados do triângulo ∆. z 1 + z2 z 2 + z3 z3 + z1 , w2 := , w3 := . 2 2 2 Veja que estes pontos estão todos em ∆ (exercı́cio!). Além disso, podemos escrever Z Z Z f= f+ f w1 := [z1 ,z2 ] [z1 ,w1 ] [w1 ,z2 ] porque [z1 , z2 ] é a concatenação de [z1 , w1 ] e [w1 , z2 ]. Aplicamos raciocı́nio semelhante a [z2 , z3 ] e [z3 , z1 ] e combinamos o resultado com (1) para obtermos: Z Z Z f = f+ f ∂∆ [z1 ,w1 ] [w1 ,z2 ] Z Z + f+ f [z2 ,w2 ] [w2 ,z3 ] Z Z + f+ f. (2) [z3 ,w3 ] [w3 ,z1 ] Definimos os quatro triângulos como ∆1 = ∆(z1 , w1 , w3 ) ∆2 = ∆(w1 , z2 , w2 ) ∆3 = ∆(w1 , w2 , w3 ) ∆4 = ∆(w2 , z3 , w3 ). Exercı́cio 5 Prove que L(∂∆i ) = L(∂∆)/2 e diam(∆i ) = diam(∆)/2. 4 Falta provar a condição sobre a soma das integrais de cada triângulo ∆i . Para isto, aplicamos o raciocı́nio de (1) e somamos os resultados para obter. 4 Z X i=1 f Z Z Z = f+ f+ ∂∆i [w3 ,z1 ] [w1 ,w3 ] [z1 ,w1 ] Z Z + Z f+ f+ [w1 ,z2 ] [z2 ,w2 ] Z Z Z f+ Z f+ f+ + [w2 ,w3 ] [w1 ,w2 ] Z Z + f+ [w2 ,z3 ] f [w2 ,w1 ] [z3 ,w3 ] f [w3 ,w1 ] f. [w3 ,w2 ] Comparando esta expressão com (2), vemos que a diferença 4 Z X i=1 Z f− ∂∆i f ∂∆ é a soma das integrais de f sobre os segmentos [w1 , w3 ], [w2 , w1 ], [w1 , w2 ], [w3 , w1 ], [w2 , w3 ] e [w3 , w2 ]. No entanto, estas soma se cancela: cada segmento aparece nas duas direções possı́veis e sabemos que inverter a direção inverte o sinal da integral. Portanto, 4 Z X i=1 Z f− ∂∆i f = 0, ∂∆ como querı́amos demonstrar. 4.2 Parte 2 - iterando e estimando Nesta segunda parte da prova nós usamos o lema anterior para deduzir que existem triângulos encaixados (e não vazios) ∆(0) = ∆ ⊃ ∆(1) ⊃ ∆(2) ⊃ . . . , todos obviamente contidos em U , que satisfazem: 1. diam(∆(i) ) = diam(∆)/2i ; 2. L(∂∆(i) ) = L(∂∆)/2i ; R R 3. | ∂∆(i) f | ≥ | ∂∆ f |/4i . 5 Nosso objetivo final é provar que provar que R ∂∆ f = 0. Pelos itens acima, basta Z Objetivo secundário: lim 4 i→+∞ i ∂∆(i) f = 0. Para chegar a este ponto, observe que, como os ∆(i) são compactos encaixados e não-vazios, existe um ponto z0 contido em todos eles; portanto z0 ∈ U também. Segue que f é diferenciável em z0 e podemos escrever: f (z) = g(z) + r(z), onde g(z) := f (z0 ) + (z − z0 ) f 0 (z0 ) e r é função contı́nua com r(0) = 0, |r(z)|/|z − z0 | → 0 quando z → z0 (tratamos z0 como “constante”; só z varia!). Observe que g = G0 para a função G(z) = f (z0 ) (z − z0 ) R+ f 0 (z0 ) (z − 2 z0 ) /2. Como cada ∂ ∆(i) é C 1 por partes, deduzimos que ∂ ∆(i) g = 0. Portanto, Z Z f = (f − g) (i) ∂ ∆(i) Z∂ ∆ = r ∂ ∆(i) (i) (estimativa ML) ≤ L(∂ ∆ ) sup |r(z)|. z∈∆(i) Recorde ainda que z0 ∈ ∆(i) , logo sup |r(z)| ≤ diam(∆(i) ) z∈∆(i) sup 0<|z−z0 |≤diam(∆(i) ) |r(z)| . |z − z0 | Deduzimos destas estimativas e dos itens 1 e 2 acima que Z i sup 4 f ≤ 4i diam(∆(i) ) L(∂∆(i) ) (i) 0<|z−z0 |≤diam(∆(i) ) ∂∆ = L(∂∆) diam(∆) sup 0<|z−z0 |≤diam(∆(i) ) |r(z)| |z − z0 | |r(z)| . |z − z0 | Como diam(∆(i) ) → 0 e |r(z)|/|z − z0 | → 0 quando z → z0 , deduzimos que o supremo na última desigualdade acima vai a 0 quando i cresce. Como L(∂∆) diam(∆) é fixo, obtemos nosso objetivo secundário. Isto termina a prova do teorema de Cauchy Goursat. 6 5 Uma consequência direta de Cauchy Goursat Teorema 4 Suponha que f : U → C é contı́nua em todo U e diferenciável em U \{a}, onde a R ∈ U . Seja ∆ ⊂ U um triângulo com vértices z1 = a, z2 6= a, z3 6= a. Então ∂∆ f = 0. Prova: [Esboço] Tome ε ∈ (0, 1) e defina pontos w2 = (1 − ε) a + ε z2 , w3 = (1 − ε) a + ε z3 . Chame de ∆ε o triângulo ∆(a, w2 , w3 ). Veja que Z Z Z Z Z f+ f+ f= f+ [z2 ,z3 ] [w2 ,z2 ] ∂∆ε ∂∆ Z f+ [z3 ,w3 ] f. [w3 ,w2 ] Ou seja, a integral de f em ∆ é a soma da integral sobre o triângulo pequeno com a a integral sobre as arestas de um quadrilátero contido em ∆. Observando os contornos, e tomando uma diagonal do quadrilátero, vemos que a integral sobre o quadriátero pode ser escrita como a soma de integrais sobre dois triângulos contidos em V := U \{a}. Como V é aberto, podemos usar Cauchy Goursat sobre estes dois triângulos e deduzir que Z Z Z Z f+ f+ f+ f = 0. [w2 ,z2 ] [z2 ,z3 ] [z3 ,w3 ] [w3 ,w2 ] Isto implica que Z Z | f| = | ∂∆ f | ≤ sup |f (z)| L(∂∆ε ). z∈∆ε ∂∆ε Quando ε → 0, L(∂∆ε ) → 0. Além disso, sup |f (z)| é limitado por sup |f (z)|, z∈∆ε z∈∆ que é uma quantidade finita posto que ∆ é compacto. Deduzimos que Z f | ≤ sup |f (z)| L(∂∆ε ) → 0, | ∂∆ ou seja, R ∂∆ z∈∆ f = 0. 2 7 6 Domı́nios convexos e a fórmula de Cauchy Teorema 5 Sejam U ⊂ C um aberto convexo e f : U → C uma função contı́nua que é diferenciável em U \{a}, a ∈ U . Então f = F 0 para alguma função F : U → C. R Prova: O importante é saber que ∂∆ f = 0 para qualquer triângulo ∆ ⊂ U , e depois usar a proposição 2.3 do livro de Ullrich. 2 8