Revista Trimestral de Jurisprudência volume 209 – número 1 julho a setembro de 2009 páginas 1 a 488 Diretoria-Geral Alcides Diniz da Silva Secretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de Melo Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Leide Maria Soares Corrêa Cesar Seção de Preparo de Publicações Cíntia Machado Gonçalves Soares Seção de Padronização e Revisão Rochelle Quito Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da Silva Diagramação: Ludmila Araujo Capa: Núcleo de Programação Visual (Supremo Tribunal Federal — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal) Revista trimestral de jurisprudência / Supremo Tribunal Federal, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. – Ano 1, n. 1 (abr./jun. 1957)- . – Brasília: Imprensa Nacional, 1957-. v. 209-1; 22 cm. Três números a cada trimestre. Editores: Editora Brasília Jurídica, 2002-2006; Supremo Tribunal Federal, 2007- . ISSN 0035-0540 1. Direito - Jurisprudência - Brasil. I. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). CDD-340.6 Solicita-se permuta. Pídese canje. On demande l’échange. Si richiede lo scambio. We ask for exchange. Wir bitten um Austausch. STF/CDJU Anexo II, Cobertura Praça dos Três Poderes 70175-900 – Brasília-DF [email protected] Fone: (0xx61) 3217-4766 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20‑6‑2002), Presidente Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25‑6‑2003), Vice-Presidente Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17‑8‑1989) Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990) Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14‑12‑2000) Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25‑6‑2003) Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25‑6‑2003) Ministro EROS Roberto GRAU (30‑6‑2004) Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16‑3‑2006) Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21‑6‑2006) Ministro Carlos Alberto MENEZES DIREITO (5‑9‑2007) COMPOSIÇÃO DAS TURMAS Primeira Turma Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO, Presidente Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha Ministro Carlos Alberto MENEZES DIREITO Segunda Turma Ministra ELLEN GRACIE Northfleet, Presidente Ministro José CELSO DE MELLO Filho Ministro Antonio CEZAR PELUSO Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes Ministro EROS Roberto GRAU PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES COMISSÃO DE REGIMENTO Ministro MARCO AURÉLIO Ministra CÁRMEN LÚCIA Ministro CEZAR PELUSO Ministro MENEZES DIREITO – Suplente COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA Ministra ELLEN GRACIE Ministro JOAQUIM BARBOSA Ministro RICARDO LEWANDOWSKI COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO Ministro CEZAR PELUSO Ministro CARLOS BRITTO Ministro EROS GRAU COMISSÃO DE COORDENAÇÃO Ministro CELSO DE MELLO Ministro EROS GRAU Ministro MENEZES DIREITO SUMÁRIO Pág. ACÓRDÃOS ......................................................................................................... 9 ÍNDICE ALFABÉTICO ................................................................................ 451 ÍNDICE NUMÉRICO ................................................................................... 485 ACÓRDÃOS AÇÃO ORIGINÁRIA 150 — MG Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Autores: Elder Afonso dos Santos e outros — Ré: União Federal Ação ordinária. Juiz Federal. Interesse geral da Magistratura. Promulgação da atual Constituição Federal. Competência superveniente do Supremo Tribunal Federal. Adicional por tempo de serviço. Decreto-Lei 2.019/83 e Loman. Ausência de “repicão”. 1. Cuidando a demanda, proposta por Juízes Federais, do adicional por tempo de serviço destes, resta caracterizado o interesse geral da Magistratura, impondo-se a competência superveniente do Supremo Tribunal Federal para, a partir da promulgação da atual Constituição Federal, por força do seu art. 102, inciso I, alínea n, prosseguir com o feito. 2. Nula é a sentença proferida por Juiz de 1º grau após a entrada em vigor de norma constitucional que transfere a competência jurisdicional para o Supremo Tribunal Federal. 3. Na linha da orientação firmada no Plenário desta Corte, no julgamento da Rp 1.155-1/DF, Relator o Ministro Soares Munhoz, DJ de 16‑12‑83, a norma do Decreto-Lei 2.019/83 apenas interpretou e regulamentou, no âmbito da Magistratura Federal, o adicional por tempo de serviço, vantagem prevista no art. 65, inciso VIII, da Loman, que, nesta parte, tem natureza programática. Como conseqüência, o adicional disciplinado no referido decreto-lei não tem natureza de aumento de vencimento. 4. Interpretando o Decreto-Lei 2.019/83, em deliberação administrativa ocorrida em 4‑4‑83, o Plenário desta Corte afastou, expressamente, a possibilidade da ocorrência do denominado “repicão” (incidência de adicional sobre adicional anterior da mesma natureza), ao determinar que “(...) o cálculo da gratificação adicional será efetuado sobre o vencimento e a representação percebidos, não incidindo sobre o valor dos adicionais decorrentes de qüinqüênios anteriores”. 5. Ação ordinária e reconvenção julgadas improcedentes. 12 R.T.J. — 209 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em julgar improcedentes a ação ordinária e a reconvenção, nos termos do voto do Relator. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Menezes Direito, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Ação ordinária de revisão de vencimentos proposta por Elder Afonso dos Santos, Juiz Federal, contra a União Federal, buscando condenar a Ré “a pagar ao Suplicante os seus vencimentos com o percentual máximo de 140%, fixados pelo Decreto-lei nº 2.019/83, pagando-se os atrasados desde 05.09.84, acrescidos de correção monetária, juros de mora e honorários advocatícios de 20% sobre o valor da condenação” (fl. 5). Alega o Autor que tomou posse e entrou em efetivo exercício na Judicatura em 5‑9‑84, “passando a perceber, desde então, remuneração na forma da legislação específica, inclusive o adicional por tempo de serviço – o chamado ‘repicão’ – no percentual de 30% até o dia 28.12.84, e daí até hoje no percentual de 50%, face ao tempo de serviço averbado, tudo de acordo com o DecretoLei nº 2.019/83, que criou a referida vantagem para a Magistratura Nacional” (fl. 2). Entretanto, alega na inicial que, “desde sua posse, (...) vem percebendo por parte da Suplicada sua remuneração de maneira incompleta e incorreta, porque a vantagem concedida pelo referido Decreto-lei nº 2.019/83 não tem natureza Jurídica de adicional de tempo de serviço (...), não passando de verdadeiro vencimento disfarçado, devendo, portanto, ser pago ao Autor no seu percentual máximo de 140%, para que não seja violado o princípio constitucional de isonomia” (fls. 2/3). Para demonstrar que a vantagem concedida pelo Decreto-Lei 2.019/83 tem natureza de vencimento e que o adicional por tempo de serviço é disciplinado na Lei Complementar 35/79 (Loman), alega o Autor: (...) 2.1. Como é sabido, no final de 1982 e início de 1983, a Magistratura Federal passava por gravíssima crise salarial, não conseguindo sequer renovar quadros, face aos baixos vencimentos da classe, quando a imprensa chegou a noticiar que um Assessor da Câmara Federal percebia vencimento maior do que um Ministro do colendo S.T.F., o que levou a União Federal a estudar o assunto e, como não tinha condições de dar um aumento geral para todo seu funcionalismo, concedeu Ela à Magistratura, através do Decreto-lei nº 2.019/83, um disfarçado aumento de vencimentos, com a alteração da forma do pagamento do adicional de tempo de serviço. R.T.J. — 209 13 2.2. A gratificação de adicional por tempo de serviço é concedida ao funcionalismo público federal pelo artigo 145, inciso XI, da Lei nº 1.711/52, vindo a ser fixada posteriormente em 5% por qüinqüênio, por força da norma do art. 10, da Lei nº 4.345/64, podendo ser paga até o máximo de sete qüinqüênios. Assim, para o funcionalismo, adicional por tempo de serviço é uma gratificação a ser paga no percentual de 5% a cada cinco anos de serviço prestado. 2.3. Já no tocante aos Magistrados, o referido adicional por tempo de serviço tem tratamento específico na Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), através de seu art. 65, inciso VIII, que diz: “Art. 65. Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos Magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens: (...) VIII – gratificação adicional de cinco por cento por qüinqüênio de serviço, até o máximo de sete;” 2.4. Como se vê, a Lei Complementar nº 35/79 garantiu aos Magistrados o pagamento da gratificação de adicional por tempo de serviço, mas também fixou o seu montante máximo de cinco por cento por qüinqüênio de serviço, o que evidentemente não pode ser alterado por norma jurídica hierarquicamente inferior, como é o malsinado Decreto-lei nº 2.019/83. 3.1. Assim sendo, o Governo Federal, ao editar o Decreto-lei nº 2.019/83, não estava modificando a forma de pagamento da gratificação de adicional por tempo de serviço dos Magistrados, por não poder revogar Lei Complementar por meio de Decreto-lei, mas sim concedendo à Magistratura um disfarçado aumento de vencimentos, no que foi muito infeliz, ao criar a mais injusta e ilegal das distorções entre remunerações de Juízes do mesmo grau, com mais uma afronta à Lei Complementar nº 35/79. 3.2. O intérprete, ao examinar o conteúdo da norma do Decreto-lei nº 2.019/83 para conhecer a sua verdadeira natureza jurídica, não pode se ater apenas à sua nomenclatura e aparência, pois, se assim o fizer, chegará à leviana conclusão de que ali se estatui um adicional por tempo de serviço, gratificação que seria evidentemente inconstitucional, por ferir a norma do inciso VIII, do art. 65, da Lei Complementar nº 35/79. Mas, assim não é, porque a gratificação de adicional por tempo de serviço, como já dito, é tratada pela citada Lei Complementar, sendo que o referido Decretolei, na verdade, aumenta os vencimentos dos Juízes. 4.1. Ora bem, seja ou não inconstitucional o Decreto-lei nº 2.019/83, a verdade é que, a partir de sua posse no cargo de Juiz Federal, 05.09.84, o Suplicante vem recebendo seus vencimentos, como demonstram os documentos anexos, em montantes muito inferiores aos que percebem os Juízes Federais que possuem sete qüinqüênios de serviço, pois, ao invés de perceberem 35% de adicionais estão recebendo 140%, enquanto o Autor percebeu apenas 30% de 05.09.84 a 28.12.84 e 50% de 29.12.84 até a presente data, em flagrante ilegalidade. 4.2. No entanto, sendo a gratificação instituída pelo Decreto-lei nº 2.019/83 um verdadeiro vencimento, pois adicional por tempo de serviço não o é, não pode ela ser paga em percentuais diferentes a Juízes do mesmo grau, por vedação expressa da norma do parágrafo único, do art. 61, da Lei Complementar nº 35/79, que garante aos Juízes de mesmo grau de jurisdição iguais vencimentos, norma que vem sendo desrespeitada pela Suplicada, ferindo também o princípio da isonomia, consagrado no art. 153, § 1º, da Constituição Federal. 14 R.T.J. — 209 4.3. Assim, para que não seja violado o princípio constitucional da isonomia, a Juízes de mesmo grau de jurisdição e exercendo as mesmas atribuições, não podem ser pagas remunerações diferentes, como vem acontecendo a partir da edição do Decreto-lei nº 2.019/83, mesmo que os vencimentos sejam disfarçados e erroneamente rotulados de adicionais, porque situações iguais não podem ser tratadas diferentemente, princípio consagrado na Constituição Federal a ser respeitado não só pelos Administradores e Juízes, na aplicação das normas jurídicas, mas, principalmente, pelos Legisladores na elaboração das leis. (Fls. 3 a 5.) Em 3‑6‑88, os Juízes Federais Maria Luíza Pessoa de Mendonça e Alvarenga (fl. 14), João Batista de Oliveira Rocha, Luiz Gonzaga Barbosa Moreira, Plauto Afonso da Silva Ribeiro, Ângela Maria Catão Alves, Antônio Francisco Pereira, Arnaldo Esteves Lima, Assusete Dumont Reis Magalhães e Antônio de Paula Oliveira, todos representados pelo litisconsorte João Batista de Oliveira Rocha, também advogado do autor, ingressaram com pedido de admissão na causa como litisconsortes ativos (fls. 17 a 19), o que foi acolhido pelo Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais (fl. 29). A União Federal, em 25‑7‑88, apresentou reconvenção, postulando a “declaração da existência de obrigação da União Federal de pagar aos Reconvindos tão somente 5% (cinco por cento) para cada qüinqüênio de serviço, eis que inconstitucional o artigo 1º do Decreto-Lei 2019, e, conseqüentemente, a inexistência do direito dos Reconvindos de receberem qüinqüênios na forma de cálculo previsto naquele decreto-lei” (fl. 37), e contestação, requerendo a improcedência da ação, anotando que “a única infração constitucional, no caso, reside em se pagar o qüinqüênio de serviço, de forma outra que não a prevista na Loman, ou seja, todos os magistrados federais, a partir do segundo qüinqüênio de serviço, estão recebendo indevidamente o adicional por tempo de serviço calculado na forma prevista no decreto-lei 2.019” (fls. 38 a 51). O autor e os litisconsortes ativos contestaram a reconvenção e impugnaram a contestação da União Federal em 5‑8‑88 (fls. 88 a 95). O Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, em 17‑11‑88, julgou improcedente a reconvenção e procedente a ação ordinária, nos termos do pedido inicial. Consta da sentença que, “se a Lei Complementar não pode ser modificada por decreto-lei e fixou os adicionais em cinco por cento por qüinqüênio de serviço (LC 35, art. 65, VIII) sendo, como visto, uma disposição de ordem pública e, portanto, de interpretação escrita, forçoso é concluir-se com os Autores que o DL nº 2.019/83 instituiu verdadeiro aumento disfarçado de vencimentos. Esta conclusão ainda mais se legitima se se levar em conta que à época da edição deste diploma era moda a concessão de aumento de vencimentos a determinadas classes de servidores, sem que outras fossem beneficiadas, que o é de popular sabença” (fl. 110). Opostos embargos de declaração pelo autor e litisconsortes ativos, em 25‑11‑88, no tocante à verba honorária (fl. 118), foram rejeitados em 30‑11‑88, porque ausente qualquer omissão sobre o tema (fl. 119). R.T.J. — 209 15 A União Federal interpôs recurso de apelação em 19‑1‑89, requerendo a improcedência da ação e o acolhimento da reconvenção (fls. 120 a 127), alegando que: (...) O raciocínio dos Autores acolhido pela sentença não resiste à primeira abordagem. Argumenta-se que se o Decreto-Lei tivesse o propósito de modificar a LC 35/79, “por certo estaria infringindo o princípio essencial de que uma lei inferior não pode modificar outra hierarquicamente superior”. Mas, como não teve esse propósito, o princípio não foi infringido. Ademais, segundo a sentença, a Lei Complementar, por ser de ordem administrativa, deve ser interpretada restritivamente, segundo invocada lição de Carlos Maximiniano. Contudo, a regra de hermenêutica em questão não se aplica à espécie. Há um dispositivo na L. C. que proíbe, terminantemente, “a concessão de adicionais ou vantagens pecuniárias não previstas na presente Lei, bem como em bases e limites superiores aos nela fixados”. Ora, que fez o Decreto-Lei 2.019 se não fixar o adicional por tempo de serviço em limites superiores aos do inciso VIII, do artigo 65 da L.C. 35? A norma da L.C/35 fixou a gratificação adicional por tempo de serviço em cinco por cento por qüinqüênio de serviço. E o Decreto-lei 2019? Em cinco, dez, vinte, vinte e cinco, trinta e trinta e cinco por cento. É por demais evidente que o decreto-lei em apreço colide frontalmente com a Loman. VI – Não pode vingar o argumento de que a instituição do repicão é forma disfarçada de aumento de vencimentos porque à época os juízes ganhavam muito pouco. O elemento histórico que informa a interpretação de qualquer norma, pode ajudar o entendimento da edição dessa, mas não pode ser levado em consideração de tal forma que venha a negar o próprio preceito contido na norma. O Decreto-lei 2019 deixou claro que estava regulando de forma diferente a gratificação por adicional por tempo de serviço. Negar essa realidade, é negar a evidência da luz solar. Daí, que a única interpretação plausível é que houve violação de lei complementar, em razão do que a União Federal deve pagar tão somente 5% para cada qüinqüênio, afastando o malsinado repicão. Daí, a improcedência da pretensão dos autores. Daí, a procedência da reconvenção. VII – Mas há outro senão na sentença. É que foi ela prolatada já na vigência da atual Constituição Federal que acolheu no artigo 37, item XIV, a seguinte regra: “os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento.” E no ato das Disposições Transitórias está expresso: “Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em 16 R.T.J. — 209 desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.” Ora, a norma da disposição permanente não permite a existência do repicão. De forma que, face ao conteúdo do art. 17, das disposições transitórias, desde a edição da Constituição Federal em vigor que o artigo 1º do Decreto-lei 2019/83 perdeu sua eficácia. Em razão disso, a sentença deveria ter fixado o limite da condenação até a data da nova constituição. (Fls. 124 a 127.) Foram apresentadas contra-razões à apelação em 1º-2-89 (fls. 129 a 133). A Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região declinou da competência para esta Corte, estando o acórdão respectivo assim fundamentado: 01. A procedência do pedido, decretada pela sentença apelada e remetida, implicará aumento de vencimento para os autores, em razão da isonomia, da ordem 140%, e, indiretamente, para todos os membros da Magistratura, pela mesma razão, devendo incidir o adicional de tempo de serviço, na forma da Lei nº 35/79, artigo 65, VIII, sobre os vencimentos majorados com o citado percentual, também em relação a todos os membros da Magistratura. Vale dizer, se atendido o pleito, a conseqüência será um aumento de 140% de vencimentos, desde o início da vigência do Decreto-lei nº 2.019/83, para todos os membros da Magistratura. 02. Nestas condições, é do Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar o feito, originariamente, nos termos do artigo 102, I, n, da Constituição Federal, razão pela qual declino da competência para aquela Superior Instância. (Fl. 144.) Opina a Dra. Anadyr de Mendonça Rodrigues, Subprocuradora-Geral da República, em parecer aprovado pelo Dr. Aristides Junqueira Alvarenga, Procurador-Geral da República, pela nulidade da sentença diante da incompetência do Juiz Federal de primeira instância e, no mérito, pela improcedência da ação e da reconvenção, exarando a seguinte ementa: Gratificação adicional por tempo de serviço, devida à magistratura, por força do art. 65 da L. C. nº 35/79, e calculada segundo a forma autorizada pelo art. 1º do D.l. 2.019/83: nem o art. 65 da L.C. nº 35/79 chegou a vedar que lei ordinária viesse a instituir nova forma de cálculo da gratificação adicional que seu inciso VIII prevê – pois forma de cálculo não se confunde, obviamente, com a fixação, para as vantagens e adicionais estipulados, de “bases e limites superiores” (§ 2º da mesma disposição) –, nem o art. 1º do D.l. nº 2.019/83 autoriza que se encontre, em sua interpretação, “verdadeiro aumento disfarçado de vencimentos”, porquanto nenhum método hermenêutico fidedigno permite que, para se encontrar o espírito da norma a interpretar, modifiquem-se as próprias palavras utilizadas pelo texto legal. Inexistência de ofensa ao princípio da isonomia (art. 153, § 1º, da EC nº 1/69): como se tratou de conseqüência não adivinhada pelo legislador, ao editar a L.C. nº 35/79, esse diploma legal em nada se viu desrespeitado, com o advento do L.l. nº 2.019/83, o qual, em momento algum, modificou os vencimentos dos membros R.T.J. — 209 17 da magistratura, eis que se dedicou, tão só, a disciplinar a forma de cálculo do adicional, usando como base os vencimentos inalterados; com isso, só fez aumentar gratificação que, por sua própria natureza, na verdade distingue os desiguais, em razão de seu tempo de serviço, assim respeitado o princípio da isonomia, que pressupõe tratamento igual para os iguais. Constitucionalidade da forma de cálculo instituída pelo D.l. nº 2.019/83, sob a E.C. nº 1/69: ressalta, diante do fato de que a Carta de 1988, para aboli-la, teve a necessidade de inserir a novidade constitucional em que consiste o seu art. 37, XIV. Ação Originária e Reconvenção suscetíveis de serem julgadas improcedentes. (Fl. 151.) É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Cuidam os presentes autos de ação ordinária de revisão de vencimentos proposta por Elder Afonso dos Santos, Juiz Federal, contra a União Federal, buscando condenar a Ré “a pagar ao Suplicante os seus vencimentos com o percentual máximo de 140%, fixados pelo Decreto-lei nº 2.019/83, pagando-se os atrasados desde 05.09.84, acrescidos de correção monetária, juros de mora e honorários advocatícios de 20% sobre o valor da condenação” (fl. 5). Alega o Autor, para tanto, que tomou posse e entrou em efetivo exercício na Judicatura em 5‑9‑84, “passando a perceber, desde então, remuneração na forma da legislação específica, inclusive o adicional por tempo de serviço – o chamado ‘repicão’ – no percentual de 30% até o dia 28.12.84, e daí até hoje no percentual de 50%, face ao tempo de serviço averbado, tudo de acordo com o Decreto-lei nº 2.019/83, que criou a referida vantagem para a Magistratura Nacional” (fl. 2). Entretanto, “desde sua posse, o Suplicante vem percebendo por parte da Suplicada sua remuneração de maneira incompleta e incorreta, porque a vantagem concedida pelo referido Decreto-lei nº 2.019/83 não tem natureza Jurídica de adicional de tempo de serviço (...), não passando de verdadeiro vencimento disfarçado, devendo, portanto, ser pago ao Autor no seu percentual máximo de 140%, para que não seja violado o princípio constitucional de isonomia” (fls. 2/3). Outros Juízes Federais foram admitidos como litisconsortes ativos. Julgada procedente a ação e improcedente a reconvenção da União Federal, em sentença de 17‑11‑88, apelou a ré, tendo o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por sua Segunda Turma, em acórdão de 27‑8‑91, remetido os autos a esta Corte com base no art. 102, inciso I, alínea n, da Constituição Federal, que dispõe: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: (...) 18 R.T.J. — 209 n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados; Preliminarmente, de fato, a demanda é de interesse geral da Magistratura, incidindo a norma constitucional acima reproduzida, que disciplina a competência desta Corte. Neste caso, a nulidade da sentença, por incompetência absoluta superveniente do Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, há de ser decretada, tendo em vista que foi proferida quando já em vigor a atual Constituição Federal, promulgada em 5‑10‑88. Quanto ao mérito, a ação e a reconvenção devem ser julgadas improcedentes. A tese do autor e dos litisconsortes ativos reside no fato de que a vantagem concedida pelo Decreto-Lei 2.019/83 não tem natureza jurídica de adicional de tempo de serviço, mas de verdadeiro vencimento disfarçado. Assim, conforme alegado, deveria ser pago ao autor e aos litisconsortes ativos o percentual máximo de 140%, já recebido por outros Juízes Federais, para que não seja violado o princípio constitucional de isonomia. Sobre o tema, anoto, em primeiro lugar, que o Decreto-Lei 2.019/83, tem o seguinte teor: Art. 1º A gratificação de que trata o artigo 65, VIII, da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, em relação aos magistrados de qualquer instância, será calculada sobre o vencimento percebido mais a representação, nos percentuais de cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco, trinta e trinta e cinco, respectivamente, por qüinqüênio de serviço, neste compreendido o tempo de exercício da advocacia, até o máximo de 15 anos, e observada a garantia constitucional da irredutibilidade. A interpretação conferida pelo autor e pelos litisconsortes ativos esbarra na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, no tocante à gratificação disciplinada no Decreto-Lei 2.019/83, acolheu a sua natureza de gratificação adicional. A propósito, inicialmente, segundo consta da Ata da 1ª Seção Administrativa desta Corte, realizada no dia 4‑4‑83, presentes, além do Ministro Cordeiro Guerra, Presidente, “os Senhores Ministros Djaci Falcão, Moreira Alves, Soares Muñoz, Décio Miranda, Rafael Mayer, Néri da Silveira, Alfredo Buzaid, Oscar Corrêa, Aldir Passarinho e Francisco Rezek”, deliberou o Tribunal, a respeito do Decreto-Lei 2.019/83, por unanimidade, como se segue: (...) o cálculo da gratificação adicional será efetuado sobre o vencimento e a representação percebidos, não incidindo sobre o valor dos adicionais decorrentes de qüinqüênios anteriores. Proceder-se-á ao cálculo do seguinte modo: a) com 5 anos – 5%; b) com 10 anos – o valor correspondente aos 5%, mais 10% sobre o vencimento e a representação; c) com 15 anos – a soma dos valores correspondentes à incidência dos percentuais de 5% e 10%, e mais 15% sobre o vencimento e a representação; d) com 20 anos – a soma dos valores correspondentes à incidência dos percentuais de 5%, 10% e 15%, e mais 20% sobre o vencimento e a representação; e) com 25 anos – a soma dos valores correspondentes à incidência dos percentuais R.T.J. — 209 19 de 5%, 10%, 15%, e 20% e mais 25% sobre o vencimento e a representação; f) com 30 anos – a soma dos valores correspondentes à incidência dos percentuais de 5%, 10%, 15%, 20%, e mais 30% sobre o vencimento e a representação; g) com 35 anos – a soma dos valores correspondentes à incidência dos percentuais de 5%, 10%, 15%, 20%, 25% e 30%, e mais 35% sobre o vencimento e a representação. Vê-se que, logo após a edição do Decreto-Lei 2.019/83, mesmo administrativamente, esta Corte entendeu que a respectiva vantagem tinha natureza, sim, de gratificação adicional. Não cogitou da natureza de simples aumento de vencimentos, aqui alegada pelo autor e litisconsortes ativos. Judicialmente, o Plenário desta Corte, no julgamento da Rp 1.155-1/DF, Rel. Min. Soares Muñoz, DJ de 16‑12‑83, decidiu: Representação. Interpretação de lei em tese. – Representação conhecida para adotar-se o entendimento de que o art. 1º do Decreto-Lei 2.019, de 28‑3‑83, se aplica tão-somente aos magistrados remunerados pelos cofres da União, enquanto o art. 2º do mesmo decreto-lei incide sobre todos os magistrados, federais ou estaduais, de qualquer instância. Para firmar a orientação sumariada na ementa acima reproduzida, o Plenário desta Corte demonstrou com toda claridade a compatibilidade entre a Loman e o Decreto-Lei 2.019/83, no tocante à gratificação por tempo de serviço. Do voto do Ministro Soares Muñoz, Relator, merece destacada a passagem que se segue: Objeta-se, ainda, que o Decreto-Lei 2.019 é norma interpretativa do art. 65 da Lei Orgânica da Magistratura. Ocorre que o art. 65 é regra programática dirigida tanto ao legislador ordinário federal quanto ao estadual. O Decreto-Lei 2.019 é lei ordinária da União que consoa com aquela norma programática, de índole aliás facultativa, de sorte que poderão os Estados-membros outorgar aos seus magistrados, mediante lei da iniciativa dos respectivos Governadores, as vantagens previstas no sobredito art. 1º, observadas as disposições contidas nos arts. 65, § 2º, e 145, e seu parágrafo único, da Lei Complementar 35, de 14‑3‑79. O Ministro Aldir Passarinho, por sua vez, em seu voto-vogal, igualmente pôs adequadamente a matéria assim: Deste modo, se é certo que procurou a Lei Complementar 35, no seu art. 65, por expressa determinação constitucional, possibilitar a outorga de certas vantagens ao magistrado (e daí dizer ela que, além dos vencimentos, poderão ser outorgadas), deixou expresso quais as que poderiam ser outorgadas, e nos termos da lei, do que se tem que está há de ser estadual, se deferidas estas vantagens aos magistrados dos Estados, exatamente em respeito à autonomia destes. Assim, ficaram estabelecidos determinados parâmetros, a propósito, conforme previsto no parágrafo único do art. 112 da Constituição e, como ficou dito, com óbvio respeito às garantias e proibições do próprio Estatuto Fundamental. Ficou clara, em conseqüência, a já mencionada ressalva consignada na parte final daquele mesmo dispositivo, no pertinente à autonomia dos Estados; e, no referente aos vencimentos dos magistrados estaduais, expressamente fixado o critério constante do § 4º do art. 144, com a 20 R.T.J. — 209 rígida limitação inserida na parte final do mesmo dispositivo constitucional. Ainda pela autorização constitucional, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional fixou as limitações, nos parágrafos únicos dos arts. 65 e 145. Não vejo, assim, como dizer ser extensiva, abrangendo os magistrados estaduais, a vantagem prevista no art. 1º do Decreto-Lei 2.019, de 1983. (...) Deste modo, não me parece mesmo que se possa dizer que, em havendo a concessão de adicionais, estes tenham de ser obrigatoriamente fixados nos limites máximos previstos no art. 65, inciso VIII, da Lei Complementar 35, e que o Decreto-Lei 2.019 considerou que poderiam ser calculados na forma estipulada no seu § 1º, eis que não só o § 2º do aludido artigo estabelece um limite máximo como, a par disso, o próprio inciso VIII do mesmo preceito prevê que o número de qüinqüênios será até o máximo de sete. No mesmo sentido votou o Ministro Néri da Silveira, sendo oportuno ressaltar a passagem seguinte de seu voto: A gratificação, prevista no art. 65, VIII, da Lei Orgânica da Magistratura nacional, poderá, evidentemente, ser concedida aos Magistrados dos Estados, por via legislativa estadual. Cumpre, nessa linha, anotar que, na concessão pelos Estados, dessa vantagem, há de ser respeitada a norma do art. 65, § 2º, da Lei Complementar 35, vedando-se-lhes, dessa maneira, apenas, fazê-lo “em bases e limites superiores” aos fixados no Decreto-Lei 2.019/83. De outro lado e sem conseqüência de tais princípios, não será possível, na disciplina dessa gratificação, os Estados estipularem regime, aos vencimentos dos magistrados estaduais – formados estes pela parcela básica mais a representação (Loman, art. 65, § 1º) –, ultrapasse a soma dos vencimentos e gratificação adicional por qüinqüênios (art. 65, VIII) o teto previsto no art. 144, § 4º, in fine, da Constituição Federal. E o Ministro Moreira Alves ajuntou: A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, ao lado dos vencimentos, cataloga o máximo de vantagens que os magistrados podem ter. Não obriga a União Federal ou os Estados-membros a atribuirem todas essas vantagens aos magistrados, mas lhes veda que as ultrapassem. Ora, Senhor Presidente, se a Lei Orgânica da Magistratura estabelece apenas limites máximos, está a indicar que, dentro da órbita federal, com relação à Justiça estadual, os Poderes constituídos da União e os Poderes constituídos do Estado, no campo da sua competência legislativa, poderão optar pela concessão de todas as vantagens, ou somente de algumas, que entenderem devam atribuir aos seus magistrados. Não poderão ir além, mas poderão ficar aquém daquelas estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. O Decreto-Lei 2.019, interpretando uma dessas vantagens que a Lei Orgânica da Magistratura permite que se conceda aos magistrados em geral, deu-lhe o sentido que se encontra no seu art. 1º, e a concedeu aos magistrados. Mas, evidentemente, essa concessão, já que estamos em terreno estritamente financeiro-administrativo, só se dirige aos magistrados federais, pela singela razão de que não tem a União Federal competência para fazê-la em favor de membros de Poderes estaduais. A União Federal e os Estados – repito –, dentro dos limites máximos estabelecidos pela Lei Orgânica, podem conceder, cada um no seu âmbito de competência, R.T.J. — 209 21 essas vantagens. Não poderão fazê-lo, no entanto, sob pena de inconstitucionalidade das vantagens que outorgarem, além daquilo que está previsto na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Por isso, Senhor Presidente, não tenho dúvida alguma em concordar com as conclusões do voto do eminente Ministro Soares Muñoz. O art. 1º do DecretoLei 2.019 só concede a vantagem, nos termos que explicita, à Magistratura Federal. Já o art. 2º, que não diz respeito a problema de natureza funcional ou administrativa, e, sim, a problema de natureza tributária, na estrita esfera de competência da União, uma vez que concerne a imposto federal, se aplica a todos os magistrados, sejam federais, sejam estaduais. A orientação firmada no precedente acima, sem dúvida alguma, demonstra que a norma do Decreto-Lei 2.019/83 apenas interpretou e regulamentou, no âmbito da Magistratura Federal, o adicional por tempo de serviço, vantagem prevista no art. 65, inciso VIII, da Loman, que, nessa parte, tem natureza programática, na linha da orientação adotada no julgamento da Rp 1.155-1/DF. Enfim, não há como acolher a tese do autor e dos litisconsortes ativos, no sentido de que a vantagem disciplinada no referido decreto-lei teria natureza de simples aumento salarial. É, sim, um adicional por tempo de serviço, podendo-se citar, ainda, a título de ilustração, os seguintes precedentes, também, do Tribunal Pleno desta Corte, que confirmam a natureza de adicional da vantagem tratada no Decreto-Lei 2.019/83: Rp 1.225-5/PR, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 15‑8‑86; Rp 1.490-8/DF, Rel. Min. Carlos Madeira, DJ de 25‑11‑88; MS 21.606-9/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 14‑5‑93; MS 21.466-0/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 6‑5‑94. A reconvenção pede a “declaração da existência de obrigação da União Federal de pagar aos Reconvintes tão somente 5% (cinco por cento) para cada qüinqüênio de serviço, eis que inconstitucional o art. 1° do Decreto-lei 2019, e, conseqüentemente, a inexistência do direito dos Reconvindos de receberem qüinqüênios na forma de calculo prevista naquele decreto-lei” (fl. 37). E assim pede ao argumento de que teria havido quebra da hierarquia constitucional de normas. Todavia, na linha da jurisprudência firmada nesta Corte sobre o tema, não houve quebra da hierarquia constitucional das normas jurídicas, tendo em vista que o Decreto-Lei 2.019/83 não derrogou nem diverge da Loman, editada em lei complementar. Tão-somente, como afirmei, regulamentou e interpretou este último diploma no âmbito federal sem contrariá-lo. Sobre a vedação do denominado “repicão”, que consiste na incidência de adicional sobre adicional, ambos com a mesma natureza, restou invocada somente no recurso de apelação da União Federal, com base no art. 37, inciso XIV, da atual Constituição Federal, promulgada em 5‑10‑88, na sua redação original, com o seguinte teor: Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: 22 R.T.J. — 209 (...) XIV – os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento; A redação atual do dispositivo constitucional acima, decorrente da Emenda Constitucional 19/98, DJ de 5‑5‑98, dispõe: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XIV – os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores; Ocorre que a decisão administrativa do Plenário desta Corte, proferida em 4‑4‑83 e já aqui, neste voto, reproduzida, afastou, expressamente, a possibilidade da existência de “repicão”, ao assim determinar: (...) o cálculo da gratificação adicional será efetuado sobre o vencimento e a representação percebidos, não incidindo sobre o valor dos adicionais decorrentes de qüinqüênios anteriores. (Grifo meu.) Com efeito, nos termos da orientação adotada por esta Corte, dentro de sua competência constitucional, não há como incidir adicional sobre adicional da mesma natureza. Se tanto não bastasse, o Decreto-Lei 2.019/83 foi revogado, logo após a promulgação da Constituição Federal em vigor, de 5‑10‑88, pelas Leis 7.721, de 6‑1‑89, e 7.728, de 9‑1‑89. Ante o exposto, preliminarmente, declaro na nulidade da sentença de fls. 101 a 116 por incompetência absoluta do Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais e, no mérito, julgo improcedentes a ação ordinária e a reconvenção. Na ação ordinária, condeno o Autor e os Litisconsortes nas custas e honorários, estes fixados em 5% sobre o valor da causa (fl. 6). Na reconvenção, condeno a União Federal nos honorários advocatícios, fixados em 5% sobre o valor dado à reconvenção (fl. 37). EXTRATO DA ATA AO 150/MG — Relator: Ministro Menezes Direito. Autores: Elder Afonso dos Santos e outros (Advogado: Joao Batista de Oliveira Rocha). Ré: União Federal. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou improcedente a ação e a reconvenção, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Declarou impedimento o Ministro Carlos Britto. R.T.J. — 209 23 Ausentes, em representação do Tribunal no exterior, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente) e Eros Grau, justificadamente o Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 24 R.T.J. — 209 AÇÃO PENAL 439 — SP Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Revisor: O Sr. Ministro Gilmar Mendes Autor: Ministério Público Federal — Réu: Clodovil Hernandes Crime – Insignificância – Meio ambiente. Surgindo a insignificância do ato em razão do bem protegido, impõe-se a absolvição do acusado. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Su premo Tribunal Federal em julgar improcedente a ação, nos termos do voto do Relator e do Revisor, por unanimidade, em sessão presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 12 de junho de 2008 — Marco Aurélio, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: A Assessoria assim retratou as balizas desta ação penal: Consta do processo que o Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu denúncia contra Clodovil Hernandes, em 9 de outubro de 2003, imputando-lhe a prática do delito previsto no art. 40 da Lei 9.605/98. Recebida a peça acusatória e designada a data para a realização do interrogatório, o réu, apesar de citado e intimado, não teria atendido ao chamamento judicial, sendo decretada a revelia em 9 de março de 2006, após transcorridos dois anos do recebimento da denúncia (fl. 189). Houve a audiência de instrução, com oitiva das testemunhas arroladas pelo Ministério Público estadual (fls. 199 a 228). Em virtude da investidura do réu no cargo de Deputado Federal, o processo foi remetido ao Supremo (fl. 232). O Ministério Público Federal, às fls. 238 a 240, manifestou-se pelo prosseguimento da ação penal na fase em que esta se encontrava – na do art. 10 da Lei 8.038/90, realização de diligências. As partes nada requereram. Em alegações finais (fls. 304 a 340), a defesa argüiu nulidade da decretação da revelia, pois, no que concerne às intimações regularmente efetivadas, o nãocomparecimento do réu para a audiência de interrogatório estava justificado com atestados médicos e teriam sido admitidos os pedidos de adiamento da sessão pelo Juízo, como se vê às fls. 91, 94 e 114. Na seqüência, sustentou a falta de justa causa para a ação penal, ante o princípio da insignificância. Conforme Relatório de Vistoria de Campo 17/02, elaborado pela Coordenadoria de Informações Técnicas, Documentação e Pesquisa Ambiental – Instituto Florestal, Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, à fls. 22 à 24, o suposto dano teria alcançado a área de 0,0652 hectares – equivalente a 652 metros quadrados –, sendo que o custo para a recuperação do terreno é de R$ 130,40 (cento e trinta reais e R.T.J. — 209 25 quarenta centavos). Afirmou, também, a inépcia da denúncia, por faltar a prova da materialidade do delito – o laudo pericial teria sido formalizado somente por um perito, o que estaria em desacordo com o art. 159 do Código de Processo Penal –, e a nulidade por ausência de intimação do advogado constituído e do réu para a oitiva de testemunha por carta precatória, bem assim para requerer diligências. Relativamente ao mérito, aduz serem precárias as provas produzidas, acentuando as contradições verificadas nos diversos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação e a dúvida quanto à transposição das fotos anexadas à fl. 25 à 30 – prova emprestada –, por terem sido extraídas do Processo 1.361/98, que não está ligado ao fato em apuração. Destaca, à fl. 322, que o réu tem problemas pessoais com alguns vizinhos, insatisfação gerada em face das tentativas de vendas empreendidas sem êxito. A defesa, com amparo no princípio da eventualidade, se acaso não for rejeitada a denúncia, pede que, na hipótese de imposição de pena privativa de liberdade, seja a sanção substituída por uma restritiva de direitos, por cuidar-se de crime de menor potencial ofensivo, descrito no art. 38-A da Lei 9.605/98. O Procurador-Geral da República, em alegações finais (fls. 360 a 364), manifesta-se pela absolvição do réu Clodovil Hernandes, dada a aplicação do princípio da insignificância. Registro que, conforme documento de fl. 69, antes da diplomação do réu como candidato eleito para o exercício do cargo de Deputado Federal e da remessa do processo ao Supremo, o Ministério Público estadual deixou de oferecer proposta de suspensão condicional do processo, tendo em conta o fato de o réu estar respondendo à Ação Penal 137/99, em curso na 2ª Vara da Comarca de Ubatuba, Estado de São Paulo, na qual fora denunciado por suposta infração ao art. 40, § 1º, da Lei 9.605/98 – dano ao meio ambiente –, combinado com o art. 69 do Código Penal (4 vezes), e, ainda, ao art. 48 da aludida lei. Consoante a certidão de fl. 80, os fatos apurados na referida ação penal aconteceram em 13 de maio de 1998, a denúncia fora recebida em 30 de outubro de 2000 e o processo encontrava-se concluso para formalização de sentença em 16 de março de 2004. As anotações constantes nas cópias das fotos que instruem esta ação penal – fl. 25 a 30 – dizem respeito ao Procedimento 1.361, do ano de 1998, época em que ocorridos os fatos em apuração na ação penal mencionada. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): A manifestação do Titular da ação penal procede. Trata-se, na espécie, de prática cuja significação jurídica é de menor importância. Teria sido alterado o meio ambiente visando à construção de rua, considerado o Parque Estadual da Serra do Mar e área pertencente a Vitor Godinho da Silva. Lançaram-se mourões de concreto e arame galvanizado, calçando-se a estrada aberta com pequenos blocos de plantas exóticas para ornamentação. Pois bem, o perito que atuou no caso, integrante do Instituto Florestal da Secretaria do Meio Ambiente, constatou abrangência mínima, ou seja, de 0,0652 hectares. Então estimou a recuperação da área mediante gasto de cento e trinta reais. 26 R.T.J. — 209 Conforme lição de Francisco de Assis Toledo, contida em Princípios Básicos de Direito Penal, “segundo o princípio da insignificância, que se revela inteiro por sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”. Sufragando essa óptica, a Segunda Turma, ao julgar o HC 92.463-8/RS, Relator o Ministro Celso de Mello, ressaltou o princípio da intervenção mínima do Estado em matéria penal. A circunstância de ter-se como bem protegido o meio ambiente não é de molde a afastar esse entendimento. Em síntese, o fato apurado não consubstancia tipicidade suficiente a levar à condenação penal, presente a peculiaridade de se cogitar de desmatamento de vegetação capoeira em estágio inicial, conforme retratado na acusação (fl. 2). Voto pela absolvição do paciente, tal como preconizado pelo Procurador-Geral da República. VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Revisor): Em 9 de outubro de 2003, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE/SP) ofereceu denúncia perante o Juízo da 1ª Vara da Comarca de Ubatuba/SP em face de Clodovil Hernandes pela suposta prática do delito previsto no art. 40 da Lei 9.605/98 (fls. 2-3). Em 26 de novembro de 2003, a inicial acusatória foi recebida (fl. 73v.). Devidamente citado e intimado (fls. 94, 103/104, 116/117, 132, 145/146 e 185/186), o denunciado não atendeu ao chamamento judicial, sendo decretada a sua revelia em 9 de março de 2006 – mais de 2 anos após o recebimento da denúncia (fl. 189). Iniciada a instrução, foram ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação (fls. 199/200, 201/202, 203, 204/205 e 228), ressaltando-se a desistência manifestada pela acusação com relação à testemunha Douglas da Silva Menezes (fl. 194). Em face da diplomação do denunciado no cargo de Deputado Federal, o Juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Ubatuba/SP determinou a remessa do feito ao Supremo Tribunal Federal (fl. 233). O Ministro Relator Marco Aurélio, em 30 de junho de 2007, determinou a reautuação do processo como ação penal e a intimação das partes para o requerimento de diligências que considerassem necessárias nos termos do art. 10 da Lei 8.038/90 (fl. 244). As partes nada requereram na fase do art. 10 da Lei 8.038/90 (fl. 253). Prosseguindo no feito, o Ministro Marco Aurélio determinou a observância do art. 11 da Lei 8.038/90 (fl. 254). O Ministério Público Federal (MPF), pelo Procurador-Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, apresentou alegações finais nos seguintes termos: R.T.J. — 209 27 (...) 8. Descreveu a denúncia que Clodovil Hernandes causou danos diretos à Unidade de Conservação do Parque Estadual da Serra do Mar ao contratar pessoas que, por meio de terraplanagem, desmataram vegetação capoeira em estágio inicial e construíram uma estrada calçada. 9. As testemunhas comprovaram que o aterro e a instalação de bloquetes – que configuraram o dano à Unidade de Conservação – foram feitos por ordem do parlamentar com a finalidade de melhorar o acesso à sua residência (fls. 199/200, 201/202, 203, 204/205 e 228). 10. Ocorre que a área alterada pelo réu, segundo o Relatório de Vistoria de Campo realizado pelo Instituto Florestal da Secretaria do Meio Ambiente (fls. 22/30), foi de pequena extensão (0,0652 hectares) (...). 11. De acordo com a estimativa feita pelo perito do custo de recuperação da área – R$ 2.0000,00 por hectare – o custo previsto para a recuperação da área devastada pelo denunciado é de aproximadamente R$ 130,00. 12. Assim, muito embora tenham sido comprovadas a autoria e a materialidade do delito, a pequena extensão da área desmatada não justifica a imposição de uma sentença penal condenatória, uma vez que a atividade não afetou significativamente o meio ambiente. 13. Para o Professor Francisco de Assis Toledo, “segundo o princípio da insignificância, que se revela inteiro por sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”. 14. Apesar das discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da aplicação do princípio da insignificância penal em crimes contra o meio ambiente, prevalece o entendimento de que deve o julgador considerar as circunstâncias do caso concreto para aferir a relevância da conduta imputada ao infrator em relação ao meio ambiente e ao equilíbrio ecológico. 15. Essa corte já reconheceu que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público: “Princípio da insignificância – Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal – Conseqüente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material – Delito de furto simples, em sua modalidade tentada – ‘Res furtiva’ no valor (ínfimo) de R$ 20,00 (equivalente a 5,26% do salário mínimo atualmente em vigor) – Doutrina – Considerações em torno da jurisprudência do STF – Pedido deferido. O princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material da tipicidade penal. – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder 28 R.T.J. — 209 Público. O postulado da insignificância e a função do direito penal: ‘de minimis, non curat praetor’. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social (HC nº 92.463/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJ 31.10.2007).” Com estas razões, requeiro seja o denunciado Clodovil Hernandes absolvido da imputação criminal, dada a aplicação do princípio da insignificância. (Fls. 360-364.) A defesa de Clodovil Hernandes apresentou alegações escritas, aduzindo, em síntese: a) preliminar de nulidade da decretação da revelia do acusado; b) falta de justa causa para a ação penal em face da aplicação do princípio da insignificância; c) falta de prova da materialidade do delito considerando que o laudo pericial fora elaborado apenas por um perito criminal; d) nulidade do feito ante a ausência de intimação da defesa da expedição de carta precatória para a oitiva de testemunha da acusação; e) nulidade da intimação direta do acusado para requerer diligências na fase do art. 10 da Lei 8.038/90; f) atipicidade do fato pela inexistência de dano efetivo à área de preservação permanente; e g) pleiteia, por fim, que, caso seja recebida a denúncia, o acusado possa responder pelo tipo descrito no art. 38-A da Lei 9.605/98. O art. 40 da Lei 9.605/98 prevê pena de reclusão, de um a cinco anos, para quem “causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização”. Como se pode constatar, a norma penal protege o valor fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, assegurado pelo art. 225 da Constituição da República. A finalidade do Direito Penal é justamente conferir uma proteção reforçada aos valores fundamentais compartilhados culturalmente pela sociedade. Além dos valores clássicos, como a vida, liberdade, integridade física, a honra R.T.J. — 209 29 e imagem, o patrimônio etc., o Direito Penal, a partir de meados do século XX, passou a cuidar também do meio ambiente, que ascendeu paulatinamente ao posto de valor supremo das sociedades contemporâneas, passando a compor o rol de direitos fundamentais ditos de 3ª geração incorporados nos textos constitucionais dos Estados Democráticos de Direito. Parece certo, por outro lado, que essa proteção pela via do Direito Penal justifica-se apenas em face de danos efetivos ou potenciais ao valor fundamental do meio ambiente, ou seja, a conduta somente pode ser tida como criminosa quando degrade ou no mínimo traga algum risco de degradação do equilíbrio ecológico das espécies e dos ecossistemas. Fora dessas hipóteses, o fato não deixa de ser relevante para o Direito. Porém, a responsabilização da conduta será objeto do Direito Administrativo ou do Direito Civil. O Direito Penal atua, especialmente no âmbito da proteção do meio ambiente, como ultima ratio, tendo caráter subsidiário em relação à responsabilização civil e administrativa de condutas ilegais. Esse é o sentido de um Direito Penal mínimo, que se preocupa apenas com os fatos que representam graves e reais lesões a bens e valores fundamentais da comunidade. No caso em questão, o Réu, segundo consta da denúncia de fls. 2/3: causou danos diretos à Unidade de Conservação do Parque Estadual da Serra do Mar, consistente em desmatamento de vegetação capoeira em estágio inicial, bem como aterro por meio de terraplanagem e construção de uma estrada calçada. (Fl. 2.) Consta também da inicial acusatória que o denunciado suprimiu vegetação capoeira em estágio inicial e aterrou o local por meio de terraplanagem a fim de construir uma rua, em uma área de 0,0652 hectares no interior do Parque Estadual da Serra do Mar, área esta pertencente a Vitor Godinho da Silva. As circunstâncias do caso concreto levam-me a crer que a área alterada pelo réu foi de pequena extensão, não constituindo fato relevante para o Direito Penal. No caso, portanto, há que se realizar um juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como conseqüência da intervenção penal do Estado. A análise da questão, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pode justificar, dessa forma, a ilegitimidade da intervenção estatal por meio do processo penal. A jurisprudência desta Corte tem sido no sentido de que a insignificância da infração penal, que tenha o condão de descaracterizar materialmente o tipo, impõe o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 92.411/RS, Rel. Min. Carlos Britto, Primeira Turma, unânime, DJ de 9‑5‑08; HC 88.393/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, unânime, DJ de 8‑6‑07; HC 84.687/ MS, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, unânime, DJ de 27‑10‑06; HC 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, unânime, DJ de 19‑11‑04; e HC 83.526/CE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Primeira Turma, unânime, DJ de 7‑5‑04). 30 R.T.J. — 209 Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, unânime, DJ de 19‑11‑04). Destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante (R$ 130,40) e que a conduta não causou lesividade relevante à ordem social. Entendo, portanto, pela aplicação do princípio da insignificância tendo em vista o atendimento de seus requisitos objetivos. Sendo atípica a conduta, em razão da insignificância, a denúncia deveria ter sido rejeitada, nos termos do art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal. Ante o exposto, voto no sentido de acolher o parecer ministerial para julgar improcedente a ação penal e absolver o acusado. EXTRATO DA ATA AP 439/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Revisor: Ministro Gilmar Mendes. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Clodovil Hernandes (Advogado: Sandro Silva de Souza). Decisão: O Tribunal, por unanimidade, nos termos do voto do Relator e do Revisor, Ministro Gilmar Mendes (Presidente), julgou improcedente a ação. Ausente, justificadamente, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ViceProcurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 12 de junho de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 31 AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 889 — RJ Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Autor: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro — Réu: Ministério Público do Estado de São Paulo Direito processual penal. Conflito negativo de atribuições. caracterização. Ausência de decisões do Poder Judiciário. Competência do STF. Local da consumação do crime. Possível prática de extorsão (e não de estelionato). Art. 102, I, f, CF. Art. 70, CPP. 1. Trata-se de conflito negativo de atribuições entre órgãos de atuação do Ministério Público de Estados-membros a respeito dos fatos constantes de inquérito policial. 2. O conflito negativo de atribuição se instaurou entre Ministérios Públicos de Estados-membros diversos. 3. Com fundamento no art. 102, I, f, da Constituição da República, deve ser conhecido o presente conflito de atribuição entre os membros do Ministério Público dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro diante da competência do Supremo Tribunal Federal para julgar conflito entre órgãos de Estadosmembros diversos. 4. Os fatos indicados no inquérito apontam para possível configuração do crime de extorsão, cabendo a formação da opinio delicti e eventual oferecimento da denúncia por parte do órgão de atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo. 5. Conflito de atribuições conhecido, com declaração de atribuição ao órgão de atuação do Ministério Público onde houve a consumação do crime de extorsão. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, reconhecer a competência do Supremo Tribunal Federal para dirimir o conflito. No mérito, por unanimidade, reconhecer as atribuições do Ministério Público do Estado de São Paulo, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 11 de setembro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de conflito negativo de atribuições entre o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro a respeito dos fatos constantes de inquérito policial. 32 R.T.J. — 209 A vítima, residente no município de Santos, recebeu um telefonema de linha telefônica celular do município do Rio de Janeiro, dando conta de que sua filha teria sido “seqüestrada”, ocasião em que se exigiu determinada importância pecuniária. Após haver providenciado o depósito do dinheiro exigido em conta da agência localizada no Rio de Janeiro, a vítima recebeu novo telefonema, ocasião em que foi imposto novo depósito em outra conta, mas também do município do Rio de Janeiro. Verificou-se, posteriormente, que sua filha não estava em poder da pessoa com quem a vítima manteve contato telefônico. Relatório do delegado de polícia, sugerindo o encaminhamento dos autos ao município do Rio de Janeiro, localidade onde se encontram as duas contas que receberam os depósitos. 2. O promotor de justiça de Santos, ao considerar que a vantagem ilícita foi obtida no Rio de Janeiro, requereu a remessa dos autos ao Juízo de Direito da comarca do Rio de Janeiro (fl. 28). 3. A promotora de justiça do Rio de Janeiro suscitou conflito negativo de atribuição, ao entender que os fatos investigados se amoldam ao tipo penal da extorsão cometida por telefone contra vítima residente na cidade de Santos. Observa que não se trata de conflito de competência, eis que do juízo da 1ª Vara Criminal de Santos não examinou sua competência, tampouco o juízo de Vara Criminal do Rio de Janeiro. Considera que falece atribuição ao MP do Rio de Janeiro, eis que o crime praticado foi o de extorsão, e não estelionato (fls. 34/36). 4. O Senhor Procurador-Geral da República se manifestou no sentido da atribuição do Ministério Público do Estado de São Paulo, em parecer assim ementado (fl. 46): Conflito de atribuições entre membros do Ministério Público dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Atribuição para apreciação de fato cuja tipificação se amolda ao delito de extorsão, previsto no art. 158 do Código Penal. Crime formal. Consumação caracterizada pelo constrangimento eficaz, suficiente para ensejar a ação ou omissão da vítima, independente da efetiva obtenção da vantagem econômica indevida pelo agente ofensor. Parecer pelas atribuições do Ministério Público do Estado de São Paulo. É o relato do necessário. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A questão em debate, neste caso, consiste no suposto conflito de atribuições entre membros do Ministério Público dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, relacionados aos fatos investigados no inquérito policial instaurado na delegacia de Santos, Estado de São Paulo. R.T.J. — 209 33 2. O conflito negativo de atribuição se instaurou entre Ministérios Públicos de Estados-membros diversos, o que retira do procurador-geral de justiça sua resolução. Esta Corte já apreciou a questão sob o enfoque do não-conhecimento do conflito de atribuição, por considerar que não haveria comprometimento do pacto federativo, conforme se constata da seguinte ementa (Pet 1.503/MG, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, DJ de 14‑11‑02): Conflito negativo de atribuições. Ministério Público Federal e Estadual. Denúncia. Falsificação de guias de contribuição previdenciária. Ausência de conflito federativo. Incompetência desta Corte. 1. Conflito de atribuições entre o Ministério Público Federal e o Estadual. Empresa privada. Falsificação de guias de recolhimento de contribuições previdenciárias devidas à autarquia federal. Apuração do fato delituoso. Dissenso quanto ao órgão do Parquet competente para apresentar denúncia. 2. A competência originária do Supremo Tribunal Federal, a que alude a letra f do inciso I do art. 102 da Constituição, restringe-se aos conflitos de atribuições entre entes federados que possam, potencialmente, comprometer a harmonia do pacto federativo. Exegese restritiva do preceito ditada pela jurisprudência da Corte. Ausência, no caso concreto, de divergência capaz de promover o desequilíbrio do sistema federal. 3. Presença de virtual conflito de jurisdição entre os juízos federal e estadual perante os quais funcionam os órgãos do Parquet em dissensão. Interpretação analógica do art. 105, I, d, da Carta da República, para fixar a competência do Superior Tribunal de Justiça a fim de que julgue a controvérsia. Conflito de atribuições não conhecido. 3. No mesmo sentido, o Pleno confirmou o mesmo entendimento no conflito de atribuições entre promotores de justiça de Estados diversos (CC 7.117/ MG, Rel. Min. Sidney Sanches, Pleno, DJ de 21‑2‑03). Em decisão monocrática, já considerei inadmissível que a regra de competência originária contida no art. 102, I, f, da Carta Magna, endereçada às causas em que há risco de ruptura da harmonia federativa, não abrange os conflitos de atribuições surgidos entre os Ministérios Públicos Estaduais e o Ministério Público Federal (Pet 3.065, rel. Min. Nelson Jobim; Pet 3.005, rel. Min. Ellen Gracie; Pet 1.503, rel. Min. Maurício Corrêa; e CC 7.117, rel. Min. Sydney Sanches), casos nos quais se faz necessária a provocação, pelo Parquet, dos órgãos judiciários possivelmente competentes, para só então ter-se, eventualmente, um conflito positivo ou negativo de competência a ser resolvido, de acordo com o art. 105, I, d, da Constituição Federal, pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça (Pet 623-QO, Rel. Min. Maurício Corrêa). 4. Contudo, em julgados mais recentes, o Supremo Tribunal Federal alterou tal orientação, conforme se percebe da leitura do julgado sob a relatoria do Min. Cezar Peluso (Pet 3.631/SP, Pleno, DJ de 6‑3‑08): 1. Competência. Atribuições do Ministério Público. Conflito negativo entre MP de dois Estados. Caracterização. Magistrados que se limitaram a remeter 34 R.T.J. — 209 os autos a outro juízo a requerimento dos representantes do Ministério Público. Inexistência de decisões jurisdicionais. Oposição que se resolve em conflito entre órgãos de Estados diversos. Feito da competência do Supremo Tribunal Federal. Conflito conhecido. Precedentes. Inteligência e aplicação do art. 102, I, f, da CF. Compete ao Supremo Tribunal Federal dirimir conflito negativo de atribuição entre representantes do Ministério Público de Estados diversos. 2. Competência criminal. Atribuições do Ministério Público. Ação penal. Formação de opinio delicti e apresentação de eventual denúncia. Delito teórico de receptação que, instantâneo, se consumou em órgão de trânsito do Estado de São Paulo. Matéria de atribuição do respectivo Ministério Público estadual. Conflito negativo de atribuição decidido nesse sentido. É da atribuição do Ministério Público do Estado em que, como crime instantâneo, se consumou teórica receptação, emitir a respeito opinio delicti, promovendo, ou não, ação penal. No mesmo sentido: Pet 3.258/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, DJ de 28‑9‑05. 5. Desse modo, com fundamento no art. 102, I, f, da Constituição da República, deve ser conhecido o presente conflito de atribuição entre os membros do Ministério Público dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro diante da competência do Supremo Tribunal Federal para julgar conflito entre órgãos de Estados-membros diversos. 6. O Sr. Procurador-Geral da República assim se manifestou no seu parecer (fls. 48/49): 12. Com efeito, assiste razão à ilustre Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, pois, na espécie, o fato narrado adequa-se à figura típica prevista no art. 158 do Código Penal (extorsão), e não àquela constante do art. 171 do mesmo diploma (estelionato). 13. O crime de extorsão caracteriza-se pela coação incutida à vítima, mediante o emprego de violência física ou grave ameaça, para fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa, agindo o ofensor com o intuito de obter vantagem econômica indevida. Reside no constrangimento físico ou moral prenunciado à vítima o traço diferencial entre os delitos de extorsão e estelionato. 14. Se o meio empregado pelo agente para obtenção da vantagem ilícita atemorizou e coagiu a vítima, é de se reconhecer o crime de extorsão e não de simples estelionato. No uso da fraude, podem ocorrer duas hipóteses: ou esse meio coagiu a vítima, e há extorsão; ou a iludiu, havendo estelionato. 15. No caso ora examinado, verificou-se que a vítima, a partir de um mal extremamente grave prenunciado pelo criminoso, foi coagida a proceder aos depósitos bancários nas contas por ele indicadas. Num primeiro momento, a ameaça, ainda que falsa, dirigiu-se à sua filha. Já num segundo instante, a própria vítima foi ameaçada de morte, não lhe restando alternativa, senão se comportar de acordo com o ditado pelo criminoso. 16. Como bem ressaltou a Promotora de Justiça da 1ª Central de Inquéritos do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, às fls. 36, “o crime foi o de extorsão e não o de estelionato, eis que a vítima Maria, sucumbindo à grave ameaça – morte de sua filha e sua própria morte – perpetrada pelo criminoso, efetuou os depósitos em dinheiro nas contas bancárias determinadas pelo criminoso”. R.T.J. — 209 35 17. Assim, não obstante conjugados fraude e constrangimento no mesmo meio utilizado pelo agente para obter a vantagem indevida, é de se reconhecer o crime de extorsão, pois, no caso, a vítima cedeu pela coação, não importando que a eficácia desse meio tenha sido gerada pela fraude. 18. É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o delito de extorsão é crime formal; consuma-se independentemente do proveito econômico auferido pelo agente. Sendo eficaz o constrangimento, suficiente para ensejar a ação ou omissão da vítima, em detrimento do seu próprio patrimônio, perfaz-se o tipo previsto no art. 158 do Código Penal. 19. Portanto, no caso ora apreciado, a consumação do suposto delito de extorsão teria ocorrido na Comarca de Santos/SP, quando a Srª. Maria Aparecida Jacob Dib foi constrangida, mediante grave ameaça, a realizar os depósitos bancários nas contas indicadas pelo criminoso. 20. Estabelecidas tais premissas, conclui-se ser atribuição da 20ª Promotoria de Justiça da Comarca de Santos/SP o juízo sobre eventual propositura de ação penal relativamente aos fatos narrados, em face do que dispõe o art. 70 do Código de Processo Penal. 7. O crime de extorsão (CP, art. 158) tem a natureza de crime formal (não exige resultado naturalístico necessário), caracterizando-se pelo constrangimento causado à vítima, mediante violência ou grave ameaça, para fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa, com o intuito de o agente obter, para si ou para outrem, indevida vantagem econômica. O momento consumativo do crime de extorsão deve ser considerado a partir de três estágios relacionados à prática delitiva: a) o sujeito ativo constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça; b) o sujeito passivo exerce alguma atividade, fazendo, tolerando que se faça ou deixando de fazer alguma coisa; c) o sujeito ativo obtém a vantagem econômica por ele desejada. Para fins de consumação da extorsão, não se mostra necessário terceiro estágio, sendo necessário que haja o constrangimento causado pelo agente e a atuação da vítima. 8. A seu turno, o crime de estelionato (CP, art. 171) tem a natureza de crime material (exige, pois, o resultado naturalístico representado pela diminuição patrimonial do lesado) e, por isso, sua consumação somente ocorre com o efetivo prejuízo da vítima. 9. Assim, na eventualidade de se considerar a classificação dos fatos narrados como extorsão ou estelionato, há clara repercussão prática quanto à atribuição do órgão de atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo ou do Estado do Rio de Janeiro. 10. Nas duas ocasiões em que teve contato telefônico com o interlocutor, a vítima sofreu grave ameaça – morte de sua filha e sua própria morte – por parte da pessoa com quem ela se comunicava. Submetendo-se ao constrangimento, no contexto das circunstâncias em que se encontrava, a vítima atuou no mundo exterior, providenciando a retirada de numerário de sua conta para efetuar depósitos bancários nas contas indicadas pelo agente. 36 R.T.J. — 209 Registro que o meio utilizado pelo agente, em tese, foi idôneo a atemorizar e constranger a vítima que, assim, foi forçada a fazer alguma coisa (providenciar o numerário exigido para depositá-lo nas contas bancárias indicadas). 11. Assim, em tese, os fatos indicados nos autos apontam para possível configuração do crime de extorsão, cabendo a formação da opinio delicti e eventual oferecimento da denúncia por parte do órgão de atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo, diante do município de Santos haver sido o local onde supostamente consumou-se a infração (CPP, art. 70). 12. Desse modo, conheço do conflito de atribuição, declarando a atribuição do órgão de atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo. É como voto. O Sr. Ministro Menezes Direito: Quanto à admissibilidade, a Ministra Ellen Gracie já destacou que a posição anterior da Corte foi superada com decisões do Ministro Marco Aurélio e do Ministro Cezar Peluso. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Há um aspecto que consideraria. Construí mos a competência do Supremo, para esses conflitos de atribuição, a partir do envolvimento do Ministério Público Federal e do Estadual. Vislumbramos, portanto, um conflito federativo. Creio que, neste caso, até para evitar a sobrecarga do Supremo, devemos conferir interpretação integrativa ao art. 105 da Constituição Federal, no que prevê que compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar conflitos entre juízes vinculados a tribunais diversos para, até mesmo, por simetria, entender que ele deve afastar o impasse. Quanto ao mérito, subscrevo inteiramente o voto da relatora, porque, a se concluir que a atribuição seria do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, teríamos a própria vítima como partícipe do crime de extorsão, no que depositou o cheque em estabelecimento bancário no Rio de Janeiro. Agora, pediria licença apenas para ponderar este aspecto: em se tratando de conflito de atribuição, ou atribuições, entre Ministério Público de um Estado e Ministério Público de outro Estado, a solução quanto a quem deve atuar deve ser a mesma que se leva em conta – porque estamos aqui a construir – no conflito de competência em se tratando de juízes vinculados a tribunais diversos. O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Mas o argumento aqui desenvolvido, no caso do qual foi Relator o Ministro Cezar Peluso, é o conflito federativo. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministra Ellen Gracie, V. Exa. exclui, ou leu o parecer na parte em que excluído o conflito federativo? A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Eu adotei a posição, nova da Corte manifestada pelo Ministro Cezar Peluso em março deste ano, no sentido de conhecer do conflito. R.T.J. — 209 37 O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, não veria conflito federativo por imaginar que, nesse, há sempre interesse de Estados diversos. Aqui a atuação é do Ministério Público. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, peço vênia para entender que cumpre ao Superior Tribunal de Justiça dirimir esse conflito de atribuições. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, entendo na mesma linha da Ministra Ellen Gracie. Há uma decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça, pelo saudoso e querido Ministro Quaglia Barbosa, em que Sua Excelência fez uma análise detalhada da ausência de competência do Superior Tribunal de Justiça, com base no art. 105, para dirimir esses conflitos, considerando a própria natureza do conflito entre os ministérios públicos estaduais, que eventualmente têm repercussão até mesmo no conflito de jurisdição entre os Juízes das duas entidades federativas. Então, admito o conflito nessa configuração, dando competência ao Supremo Tribunal Federal. Eu queria só consultar a Ministra Ellen Gracie, se me permitisse. Tenho uma decisão monocrática similar ao caso que foi julgado. Era um conflito entre o Rio de Janeiro, também, e Minas Gerais, em torno de crime de estelionato iniciado na cidade do Rio de Janeiro e consumado em Belo Horizonte. Mas, nesse caso que decidi, havia intervenção inicial do Juiz, que teria declinado da sua competência, e foi a Promotora que promoveu o conflito. Decidi, então, que deveria se devolver o processo para o Juiz para que ele afirmasse ou não a sua incompetência. Não é o caso que nós estamos julgando, é? A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Não. O Sr. Ministro Menezes Direito: É um caso diferente porque nessa circunstância entendi que, como já estava judicializado, já estava com a intervenção do Juiz, não adiantava dizer que a competência era do Ministério Público do Rio de Janeiro ou do Ministério Público mineiro, porque tinha de se afirmar primeiro a competência jurisdicional. Se o Juiz entendesse que ele era competente, de nada adiantaria a decisão da Corte nessa direção, definindo o conflito entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Naquele caso, também entendi de deferir para o Estado do Rio de Janeiro, constando que o crime havia sido iniciado naquela localidade e que o Juiz havia recebido nessa direção. E verifico que V. Exa., nessa situação, também dá pela jurisdição daquele que praticou o crime iniciado lá, embora consumado em outro lugar. Iniciou-se em São Paulo e consumou-se no Rio de Janeiro. A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Exatamente. O Sr. Ministro Menezes Direito: Então, não sendo a mesma hipótese, acompanho o voto da Ministra Ellen Gracie. 38 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, fico vencido quanto à competência para julgar o conflito de atribuições. Entendo que ela é do Superior Tribunal de Justiça. Ultrapassada essa preliminar, no mérito acompanho a relatora. EXTRATO DA ATA ACO 889/RJ — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Autor: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Réu: Ministério Público do Estado de São Paulo. Decisão: O Tribunal, por maioria, reconheceu a competência do Supremo Tribunal Federal para dirimir o conflito, vencido o Ministro Marco Aurélio, que declinava da competência ao Superior Tribunal de Justiça. No mérito, por unanimidade, reconheceu as atribuições do Ministério Público do Estado de São Paulo, nos termos do voto da Relatora. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello, Carlos Britto e Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 11 de setembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 39 MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO CAUTELAR 1.109 — SP Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Carlos Britto Requerente: Banco Pontual S.A. — Requerido: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS Processo civil. Medida cautelar. Efeito suspensivo a recurso extraordinário. Instituição financeira. Contribuição previdenciária sobre a folha de salários. Adicional. § 1º do art. 22 da Lei 8.212/91. A sobrecarga imposta aos bancos comerciais e às entidades financeiras, no tocante à contribuição previdenciária sobre a folha de salários, não fere, à primeira vista, o princípio da isonomia tributária, ante a expressa previsão constitucional (Emenda de Revisão 1/94 e Emenda Constitucional 20/98, que inseriu o § 9º no art. 195 do Texto permanente). Liminar a que se nega referendo. Processo extinto. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, negar referendo à cautelar, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator) e Cármen Lúcia. E, também por maioria, julgar extinto o processo, vencido o Relator. Votou a Presidente. Brasília, 31 de maio de 2007 — Carlos Ayres Britto, Relator para o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Eis o teor da decisão mediante a qual emprestei eficácia suspensiva ao recurso extraordinário: Contribuição social – Instituição financeira – Acréscimo de 2,5% – Art. 22, inciso I, da Lei 8.212/91 – Ausência de precedente do Plenário – Recurso extraordinário admitido – Eficácia suspensiva. 1. O Autor, instituição financeira, impetrou mandado de segurança para ter reconhecido o direito de satisfazer a contribuição previdenciária sobre a folha de salários na alíquota de 20%, afastando o acréscimo de 2,5% decorrente do inciso I do art. 22 da Lei 8.212/91. Articulou com a transgressão das garantias constitucionais da igualdade, da isonomia tributária e da eqüidade no custeio da previdência. Logrou o deferimento de liminar, sendo-lhe desfavorável a decisão final. A apelação interposta foi desprovida e, em face da argüição de violência ao princípio da isonomia tributária e da eqüidade no custeio da seguridade social – artigos 5º, cabeça, 150, inciso II, 40 R.T.J. — 209 e 194, parágrafo único, inciso V, da Constituição Federal –, restou admitido o recurso extraordinário, em relação ao qual é pleiteado o empréstimo de eficácia suspensiva. 2. A matéria de fundo do extraordinário – a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei 8.212/91 que fixa o acréscimo de 2,5% na contribuição social das instituições financeiras – não chegou a ser apreciada pelo Plenário da Corte. O tema, dadas as garantias constitucionais, está a merecer crivo em julgamento regular do recurso extraordinário, ou seja, pelo Colegiado, cabendo notar que, sob o ângulo do tratamento igualitário, consideradas as contribuições sociais, somente com a Emenda Constitucional 20/98 previuse a possibilidade de haver alíquotas com base de cálculo diferenciadas em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra. Isso ocorreu mediante a inserção do § 9º no art. 195 do Diploma Maior. Vale dizer que, no período anterior à promulgação da Emenda, inexistia exceção à regra do tratamento isonômico. 3. Defiro a medida acauteladora para emprestar eficácia suspensiva ao recurso extraordinário interposto – admitido no último dia 18 de janeiro – no processo em que julgada, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a Apelação no Mandado de Segurança 231.107. 4. Com a autuação do extraordinário nesta Corte, procedam à apensação deste processo. 5. Em jogo a inconstitucionalidade de ato normativo abstrato autônomo, submeto ao Plenário o referendo desta medida. 6. Publiquem. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Proponho o referendo do Pleno à mencionada decisão. EXTRATO DA ATA AC 1.109-MC/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Requerente: Banco Pontual S.A. (Advogados: Angela Paes de Barros di Franco e outros e Vinícius Branco). Requerido: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (Advogado: Hermes Arrais Alencar). Decisão: Após o voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), que encaminhava pelo referendo, pediu vista dos autos o Ministro Carlos Britto. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 3 de maio de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 41 VOTO (Vista) O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Na sessão de 3‑5‑06, pedi vista dos autos para fazer um exame mais detido da questão. Questão que principiou com o ajuizamento de mandado de segurança, pelo Banco Pontual S.A., com o objetivo de ver reconhecido o seu direito de recolher a contribuição previdenciária de 20% (vinte por cento) sobre a sua folha de salários. Logo, sem o acréscimo de 2,5% (dois e meio por cento), a que se reporta o § 1º do inciso I do art. 22 da Lei 8.212/91. 2. Relembro que o impetrante apontou como fundamentos de sua pretensão os princípios constitucionais da igualdade, da isonomia tributária e da eqüidade no custeio da Previdência. 3. Digo, ainda, que a tese defendida pelo requerente foi rechaçada em primeira e segunda instâncias, o que motivou a interposição do recurso extraordinário. Recurso para o qual se pede, agora, atribuição de efeito suspensivo, por meio da presente ação cautelar. 4. Pois bem, nesta colenda Corte, o pleito cautelar foi deferido liminarmente pelo Relator, Ministro Marco Aurélio. Daí a submissão desse decisório ao referendo do Plenário, dado que o apelo extremo contém pedido de declaração da inconstitucionalidade do citado § 1º do art. 22 da Lei 8.212/91, cuja redação é esta: No caso de bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e de capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas, além das contribuições referidas neste artigo e no art. 23, é devida a contribuição adicional de dois vírgula cinco por cento sobre a base de cálculo definida nos incisos I e III deste artigo. 5. Pois bem, de acordo com o Requerente, “o princípio da igualdade, contido no art. 5º da Constituição Federal, é inteiramente aplicável às contribuições sociais, bem como o princípio da isonomia tributária, previsto no art. 150, inciso II, da Carta Magna” (fl. 20); ou seja, à União, aos Estados e aos Municípios é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por estes exercida. 6. Ainda nessa linha de raciocínio, o Recorrente sustenta que o princípio da capacidade contributiva, que poderia justificar a sobrecarga na tributação dos bancos, somente é de se cogitar quanto á fixação de impostos. Leia-se a Constituição, no ponto: 42 R.T.J. — 209 § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte (§ 1º do art. 145). 7. Muito bem. Diante desse quadro, cumpre-me observar, inicialmente, que a matéria de fundo é perceptível complexidade, tornando-se objeto de multifária legislação, seja no tocante à contribuição previdenciária sobre a folha de salários (caso dos autos), seja com respeito à Contribuição Social Sobre o Lucro (CSLL). E – devo dizer – essa complexidade ascende à própria Carta Constitucional. Menciono, como exemplos, a Emenda de Revisão 1/94 e a Emenda Constitucional 20/98 (esta, particularmente no ponto em que inseriu o § 9º no art. 195 do Texto Permanente). Sobre o assunto, juízes e tribunais do País têm proferido decisões de diferentes calibres. Tudo, é certo, a reclamar a orientação definitiva do Plenário desta egrégia Corte, cujos membros já se pronunciaram, monocraticamente, em alguns casos. 8. A propósito, lembro que, em 22‑10‑02, o Ministro Gilmar Mendes desacolheu a tese do contribuinte, ao negar seguimento ao RE 235.036, interposto pela Companhia de Seguros Gralha Azul. 9. Já em sede cautelar, colhem-se decisões conflitantes, embora não transitadas em julgado. Além da presente ação, em que houve deferimento da liminar, menciono a AC 1.115, também da relatoria do Ministro Marco Aurélio. Esta última, conquanto referendada pela Turma, foi alvo de embargos declaratórios, opostos pela União em 10‑10‑06. 10. Do outro lado – contra a concessão de efeito suspensivo –, menciono a AC 1.059-MC-AgR, Relator Ministro Joaquim Barbosa, cuja decisão foi confirmada pela Segunda Turma, o que motivou a interposição de embargos de declaração em 22‑5‑06. Na mesma linha, a AC 1.338, cujo indeferimento ensejou a interposição do agravo regimental do contribuinte. 11. Ora bem, é preciso reconhecer agora que esse entrechoque de decisões, longe de evidenciar a plasibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), sinaliza que a matéria é mesmo polêmica, extremamente árida, e multifacetada. Mostra que ainda hão de correr rios de doutrina sob a ponte do Supremo Tribunal, até que este Plenário decida sobranceiramente a questão, atento ao princípio da solidariedade que deflui do art. 195 da Carta Republicana. E até que isso aconteça, entendo que as instituições financeiras – se lhes aprouver – poderão valer-se de outras formas para a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, previstas no art. 151 do Código Tributário Nacional. Por enquanto, prevalece a orientação firmada no julgamento da Pet 1.823, Rel. Min. Moreira Alves, in verbis: Petição. Pedido de cautelar para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário admitido. R.T.J. — 209 43 – Não-ocorrência, no caso, de plano, do requisito da relevância da fundamentação jurídica suficiente para a concessão da medida pleiteada que é de caráter excepcional. Questão de ordem que se resolve com o indeferimento do pedido. 12. Ante o exposto, embora tenha votado pelo referendo da decisão proferida na mencionada AC 1.115, peço vênia ao eminente Relator para refazer meu ponto de vista no presente caso. Em conseqüência, voto pela não-concessão da cautelar. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhora Presidente, peço vênia ao Ministro Carlos Britto, mas acompanho o Relator, neste caso. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhora Presidente, peço vênia ao Relator, Ministro Marco Aurélio, para acompanhar a divergência. VOTO O Sr. Ministro Eros Grau: Senhora Presidente, peço vênia ao eminente Relator, mas até por coerência: na MC 1.632 e no RE 370.590, decidi no sentido da divergência. Acompanho a divergência. VOTO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhora Presidente, entendo que, sem uma detida análise do sistema de custeio da seguridade social e das circunstâncias do caso, é impossível afirmar a necessária, a densa probabilidade de conhecimento e provimento do recurso extraordinário quanto às teses que sustentam a proibição constitucional para tributação diferenciada das instituições financeiras, por violação da capacidade contributiva da isonomia tributária. Basta lembrar que, para as contribuições destinadas ao custeio da seguridade social, vigem os princípios da eqüidade e da universalidade, na forma de participação do custeio. Sem me comprometer de pronto com a tese de fundo, entendo ao menos plausível que tais princípios possam operar como fundamento da diferenciação do regime de tributação das instituições financeiras. Como observou o Ministro Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento do RE 209.014: (...) não há como pretender que a situação das empresas submetidas à contribuição adicional do art. 3º, § 2º, da Lei 7.787/89 – bancos comerciais, de 44 R.T.J. — 209 investimentos e desenvolvimento; caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento; sociedades de crédito imobiliário, corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários; empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas –, seja equivalente à das empresas industriais, comerciais ou prestadoras de serviço, para os fins do art. 150, II, da Constituição. Se existisse tal equivalência, não faria sentido a tradicional classificação da atividade econômica em segmentos ou setores, de que partiu o legislador para instituir o adicional questionado. Assim, sem prejuízo de um exame mais aprofundado por ocasião do julgamento de mérito, peço vênia ao eminente Relator para deixar de referendar a cautelar concessiva do efeito suspensivo. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhora Presidente, também peço vênia ao Ministro Relator, considerado sobretudo o disposto no art.194, V, que remete à disciplina da seguridade social ao critério de “eqüidade na forma de participação no custeio”, e do art.145, § 1º, que se remete ao princípio da capacidade contributiva. Em princípio, parece-me razoável a tese de que não há inconstitucionalidade alguma, se a contribuição é estabelecida em razão da capacidade e do poderio econômico do contribuinte. VOTO O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhora Presidente, também peço vênia ao eminente Relator para indeferir a cautelar. Com efeito, Senhora Presidente, a minha proposta é de indeferir, de logo, a medida cautelar, pois a orientação plenária, ainda não ultrapassada, é de que a medida cautelar, na pendência de recurso extraordinário, é um mero incidente deste, e não uma ação cautelar, de tal forma que é ocioso, a esta altura, dar-lhe prosseguimento, citação, etc., como se se tratasse de uma ação cautelar autônoma (v.g., Pet 1.158-AgR, Plenário, 14‑8‑96, Rezek, DJ de 11‑4‑97; Pet 1.414, Primeira Turma, 12‑12‑97, Moreira, RTJ 167/51; Pet 1.256, Plenário, 4‑11‑98, Pertence, DJ de 4‑5‑01). VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senhora Presidente, não adiro à proposição e tomo a cautelar realmente como ação. É o que tenho sustentado na Turma, é o que tenho implementado quando me defronto com processo versando pedido com esse alcance. Por isso, fico vencido na matéria. R.T.J. — 209 45 EXTRATO DA ATA AC 1.109-MC/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Ministro Carlos Britto. Requerente: Banco Pontual S.A. (Advogados: Angela Paes de Barros di Franco e outros e Vinícius Branco). Requerido: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS (Advogado: Hermes Arrais Alencar). Decisão: O Tribunal, por maioria, negou referendo à cautelar, vencidos o Ministros Marco Aurélio (Relator) e Cármen Lúcia. E, também por maioria, julgou extinto o processo, vencido o Relator. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 31 de maio de 2007 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 46 R.T.J. — 209 AÇÃO ORIGINÁRIA 1.412 — SP Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Autor: Lúcio Pereira de Souza — Ré: União Ação originária. Interesse da Magistratura. Art. 102, I, n, da Constituição da República. Abono variável. Lei 9.655/98. Cobrança de diferenças com base no valor estabelecido pela Lei 11.143/05. Fixação do subsídio ali previsto pela Lei 10.474/02 e não pela Lei 11.143/05, considerando que a Emenda Constitucional 19/98 não o fez. Valor das diferenças previsto na Lei 10.474/02. Precedentes da Suprema Corte. 1. É competente o Supremo Tribunal Federal para julgar ação de interesse de toda a magistratura nos termos do art. 102, I, n, da Constituição Federal. 2. No caso, a realidade dos autos afasta a pretensão do autor considerando que o parâmetro foi fixado pela Lei 10.474, de 2002, e não pela Lei 11.143, de 2005. 3. Como já decidiu esta Suprema Corte, no “período de 1º de janeiro de 1998 até o advento da Lei 10.474/02 não havia qualquer débito da União em relação ao abono variável criado pela Lei 9.655/98 – dependente à época, da fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Com a edição da Lei 10.474, de junho de 2002, fixando definitivamente os valores devidos e a forma de pagamento do abono, assim como com a posterior regulamentação da matéria pela Resolução 245 do STF, de dezembro de 2002, também não há que se falar em correção monetária ou qualquer valor não estipulado por essa regulamentação legal. Eventuais correções monetárias já foram compreendidas pelos valores devidos a título de abono variável, cujo pagamento se deu na forma definida pela Lei 10.474/02, em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais, iguais e sucessivas, a partir do mês de janeiro de 2003. Encerradas as parcelas e quitados os débitos reconhecidos pela lei, não subsistem quaisquer valores pendentes de pagamento” (AO 1.157/PI, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 16‑3‑07). 4. Ação julgada improcedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, julgar improcedente a ação, nos termos do voto do Relator. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Menezes Direito, Relator. R.T.J. — 209 47 RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Lúcio Pereira de Souza, Juiz do Trabalho, propôs à 8ª Vara da Justiça Federal da 3ª Região, em 10‑4‑06, ação ordinária contra a União Federal para cobrança de diferenças do abono variável de que cuidam as Leis 9.655, de 2 de junho de 1998, e 10.474, de 27 de junho de 2002. Sustenta que com a edição da Lei 9.655, de 2 de junho de 1998, ficou estabelecido o direito de um abono variável com efeitos financeiros retroativos a 1º-1-98 e até a promulgação da emenda constitucional que alteraria o inciso V do art. 93 da Constituição da República. Tal abono corresponderia à diferença entre o valor a ser fixado quando em vigor a referida emenda constitucional e o valor da remuneração mensal de cada Magistrado. Afirma que, não obstante a edição da Lei 10.474, de 27 de junho de 2002, que também dispôs sobre o abono, o valor do subsídio dos Magistrados somente veio a ser fixado através da Lei 11.143, de 26 de julho de 2005, a partir de 1º-1-05. Sendo assim, e tendo ingressado na Magistratura do Trabalho em 1996, alega ter direito ao recebimento da diferença entre o valor do novo subsídio (R$ 17.511,88) e o que efetivamente percebeu durante o período que medeia entre 1º-1-98 e 31‑12‑04, deduzindo-se o valor já recebido por conta da majoração já promovida pela Lei 10.474/02. Pede a condenação da ré ao pagamento de tal diferença, com juros e correção monetária, mais honorários advocatícios, e formula requerimento de antecipação da tutela. Com a inicial, entre outros documentos, cópias de contracheques (fls. 23 a 59). Por decisão de 9‑5‑06 (fls. 70/71), o Juiz Federal reconheceu o interesse de toda a Magistratura Federal na causa e, em atenção ao disposto no art. 102, I, n, da Constituição da República, remeteu os autos a este Supremo Tribunal Federal. A relatoria coube ao eminente Ministro Sepúlveda Pertence, meu antecessor. Citada, a União Federal apresentou contestação (fls. 85 a 101) em que alega a impossibilidade de concessão da tutela antecipada, por força do disposto na Lei 9.494/97 e da decisão que, na ADC 4-MC, reconheceu sua compatibilidade com a Constituição. Ainda que assim não fosse, a antecipação da tutela não poderia ser concedida em face da ausência do requisito de urgência. Em preliminar, aduz a inexistência de interesse de agir por parte do autor, uma vez que a Lei 10.474/02 teria compreendido “toda e qualquer verba relativa ou decorrente do abono variável”. No mérito alega: (i) a ocorrência de prescrição no que se refere às diferenças anteriores a 10‑4‑01, tendo em vista o comando previsto no Decreto 20.910, de 6 de janeiro de 1932; (ii) o recebimento, pelo Autor, dos “valores relativos ao abono variável desde a época em que foi possível regulamentar por lei (Lei 10.474/02) o exercício do direito” (fl. 97), pois a Lei 9.655/98 condicionara o “exercício desse direito ao advento de legislação futura que definisse o valor do 48 R.T.J. — 209 subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal” (fl. 96); e (iii) a sujeição do abono à incidência de tributos, ao contrário do que sustentava o autor, citando a decisão do eminente Ministro Nelson Jobim na SS 2.863, DJ de 8‑2‑06. Na réplica (fls. 106 a 113), o autor reconhece que o requerimento de antecipação de tutela ficou prejudicado pelo comando previsto no art. 1º da Lei 9.494/97 e reafirma seu interesse de agir, insistindo na tese exposta. Manifestou-se a Procuradoria-Geral da República (fls. 124 a 128) pela improcedência do pedido: (...) 17. No mérito, não há como prosperar o pleito. 18. O abono variável em questão foi instituído pela lei federal nº 9.655, de 1998, do seguinte modo: “Art. 6º. Aos membros do Poder Judiciário é concedido um abono variável, com efeitos financeiros a partir de 1º de janeiro de 1998 e até a data da promulgação da Emenda Constitucional que altera o inciso V do art. 93 da Constituição, correspondente à diferença entre a remuneração mensal atual de cada magistrado e o valor do subsídio que for fixado quando em vigor a referida Emenda Constitucional”. 19. Determinou a lei referida, como se vê, a concessão de abono aos magistrados em montante correspondente à remuneração mensal de cada um deles e o valor do subsídio que fosse posteriormente fixado, com efeitos financeiros no período compreendido entre 01.01.1998 e 04.06.1998, quando promulgada a Emenda Constitucional nº 19. 20. A fixação do valor necessária à concretização do pagamento do abono previsto em 1998 veio a ser efetivada em 2002, quando editada a Lei nº 10.474/02, que assim previu: Art. 1º Até que seja editada a Lei prevista no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal, o vencimento básico do Ministro do Supremo Tribunal Federal é fixado em R$ 3.950,31 (três mil, novecentos e cinqüenta reais e trinta e um centavos). (...) Art. 2º O valor do abono variável concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, com efeitos financeiros a partir da data nele mencionada, passa a corresponder à diferença entre a remuneração mensal percebida por Magistrado, vigente à data daquela Lei, e a decorrente desta Lei. 21. Se antes da fixação do teto não era possível a percepção do valor devido, consoante o teor da Lei nº 9.655, é razoável afirmar-se que a aquisição do direito ao abono somente se aperfeiçoou com o estabelecimento do subsídio, não havendo como ser acolhida a tese no sentido da impossibilidade de modificação da base de cálculo do abono pela Lei nº 10.474/02. 22. Em verdade, nem é certo falar em alteração da base de cálculo do abono variável. A lei instituidora do benefício determinou que o parâmetro a ser utilizado para o cálculo da diferença correspondente ao abono seria “o valor do subsídio que for fixado quando em vigor a referida Emenda Constitucional”. Foi o que fez a Lei nº 10.474/02: fixou o valor do subsídio para aquele fim e viabilizou, em conseqüência, o pagamento do abono. R.T.J. — 209 49 23. Pago o valor do benefício com base no subsídio fixado pela Lei nº 10.474/02 e esgotados, assim, os efeitos da lei instituidora daquele, sobre o cálculo do mesmo não há como fazer incidir a lei de 2005, fixadora do novo subsídio. Ante o exposto, o parecer é pela improcedência do pedido. (Grifos originais.) É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): A matéria é exclusivamente de direito, considerando que o valor pleiteado pelo Autor (ainda não liquidado) não foi impugnado em seu montante pela Ré. Esta pretende vê-lo reduzido, mas apenas como conseqüência da prescrição. Não se deu a antecipação da tutela. O próprio Autor admitiu sua inviabilidade. Qualquer discussão nesse sentido é estéril. É patente o interesse de agir. Vejamos. A presente ação é meio útil e necessário para o reconhecimento do direito pleiteado. Ao contrário do que entende a ré, o autor não considera que os valores de que trata a Lei 10.474/02 sejam suficientes para a satisfação de seu crédito. O que resta daí é matéria de mérito e com ele será decidido. A União Federal sustenta a ocorrência da prescrição, ao menos no que se refere a parte dos valores pleiteados, relativa às parcelas que seriam eventualmente devidas entre 1º-1-98 e 10‑4‑01. Para o Autor, a prescrição “deve ser afastada, pois, embora adquirido, o direito só pode ser exercido a partir da fixação do valor dos subsídios, previstos pela Lei 11.143/2005, o que afasta a hipótese de prescrição, já que a ação foi ajuizada dentro do qüinqüênio posterior à edição desta Lei” (fl. 113). Como se viu, a tese do autor ampara-se principalmente no argumento de que foi a Lei 11.143/05 que fixou os subsídios da magistratura. Para a União, o valor do abono foi estabelecido com a Lei 10.474/02. Ora, a prevalecer uma ou outra tese, o certo é que antes da determinação do valor do abono, não seria possível ao autor pleitear o direito de crédito e o pagamento que agora busca através desta ação. Portanto, mesmo que se considere que a diferença requerida pelo autor já fora fixada pela Lei 10.474, de 27‑6‑02, não terá se dado a prescrição, porque a presente ação foi proposta em 10‑4‑06, antes de decorrido o qüinqüênio. O art. 6º da Lei 9.655/98 é a base da tese defendida pelo autor: Art. 6º Aos membros do Poder Judiciário é concedido um abono variável, com efeitos financeiros a partir de 1º de janeiro de 1998 e até a data da promulgação da Emenda Constitucional que altera o inciso V do art. 93 da Constituição, correspondente à diferença entre a remuneração mensal atual de cada magistrado e o valor do subsídio que for fixado quando em vigor a referida Emenda Constitucional. 50 R.T.J. — 209 A emenda constitucional ali referida é a de número 19, de 1998, e, no que se refere ao inciso V do art. 93, assim dispôs: Art. 13. O inciso V do art. 93, o inciso III do art. 95 e a alínea b do inciso II do art. 96 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 93. (...) (...) V – o subsídio dos Ministros dos Tribunais Superiores corresponderá a noventa e cinco por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal e os subsídios dos demais magistrados serão fixados em lei e escalonados, em nível federal e estadual, conforme as respectivas categorias da estrutura judiciária nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa e cinco por cento do subsídio mensal dos Ministros dos Tribunais Superiores, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos arts. 37, XI, e 39, § 4º;” A Emenda Constitucional 19 entrou em vigor em 5 de junho de 1998, mas, como se vê, não fixou os subsídios da Magistratura. Em 27 de junho de 2002 editou-se a Lei 10.474/02, dispondo: Art. 1º Até que seja editada a Lei prevista no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal, o vencimento básico do Ministro do Supremo Tribunal Federal é fixado em R$ 3.950,31 (três mil, novecentos e cinqüenta reais e trinta e um centavos). § 1º Para os fins de quaisquer limites remuneratórios, não se incluem no cômputo da remuneração as parcelas percebidas, em bases anuais, por Ministro do Supremo Tribunal Federal em razão de tempo de serviço ou de exercício temporário de cargo no Tribunal Superior Eleitoral. § 2º A remuneração dos Membros da Magistratura da União observará o escalonamento de 5% (cinco por cento) entre os diversos níveis, tendo como referência a remuneração, de caráter permanente, percebida por Ministro do Supremo Tribunal Federal. § 3º A remuneração decorrente desta Lei inclui e absorve todos e quaisquer reajustes remuneratórios percebidos ou incorporados pelos Magistrados da União, a qualquer título, por decisão administrativa ou judicial, até a publicação desta Lei. Art. 2º O valor do abono variável concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, com efeitos financeiros a partir da data nele mencionada, passa a corresponder à diferença entre a remuneração mensal percebida por Magistrado, vigente à data daquela Lei, e a decorrente desta Lei. § 1º Serão abatidos do valor da diferença referida neste artigo todos e quaisquer reajustes remuneratórios percebidos ou incorporados pelos Magistrados da União, a qualquer título, por decisão administrativa ou judicial, após a publicação da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998. § 2º Os efeitos financeiros decorrentes deste artigo serão satisfeitos em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais e sucessivas, a partir do mês de janeiro de 2003. § 3º O valor do abono variável da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, é inteiramente satisfeito na forma fixada neste artigo. Art. 3º A remuneração total de servidor do Poder Judiciário da União, incluídos os valores percebidos pelo exercício de cargo em comissão ou função de R.T.J. — 209 51 confiança, não poderá ultrapassar a remuneração, em bases anuais, correspondente ao Magistrado do órgão a que estiver vinculado. Art. 4º As despesas resultantes da execução desta Lei correrão à conta das dotações orçamentárias, consignadas aos órgãos do Poder Judiciário da União. Art. 5º A implementação do disposto nesta Lei observará o art. 169 da Constituição Federal, as normas pertinentes da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, com efeitos financeiros a partir de junho de 2002, inclusive. Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. O autor sustenta que não obstante o que ficou estabelecido por essa lei, os subsídios de que cuida a Emenda Constitucional 19 somente foram fixados através da Lei 11.143, de 26 de julho de 2005: Art. 1º O subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal, referido no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal, será de R$ 21.500,00 (vinte e um mil e quinhentos reais) a partir de 1º de janeiro de 2005. Art. 2º O caput do art. 2º da Lei nº 8.350, de 28 de dezembro de 1991, passa a vigorar com a seguinte redação a partir de 1º de janeiro de 2005: “Art. 2º A gratificação mensal de Juízes Eleitorais corresponderá a 18% (dezoito por cento) do subsídio de Juiz Federal.” Art. 3º A partir de 1º de janeiro de 2006, o subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal será de R$ 24.500,00 (vinte e quatro mil e quinhentos reais) e a gratificação mensal de Juízes Eleitorais corresponderá a 16% (dezesseis por cento) do subsídio de Juiz Federal. Art. 4º As despesas resultantes da aplicação desta Lei correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas aos órgãos do Poder Judiciário da União. Art. 5º A implementação do disposto nesta Lei observará o disposto no art. 169 da Constituição Federal e as normas pertinentes da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, com efeitos financeiros a partir de 1º de janeiro de 2005. Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Na tese defendida pelo autor, a Lei 10.474/02 serviu apenas para regular temporariamente os vencimentos da Magistratura, contribuindo para amenizar a difícil questão remuneratória por que os magistrados passavam à época. Tanto é assim, que não fixou o valor do subsídio, previsto na Emenda Constitucional 019/1998, mas apenas disse que “até que seja editada a Lei prevista no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal (...)”. Ou seja, repete-se, tal lei não fixou o valor do subsídio; apenas provisoriamente indicou certo valor para adiantar aos juízes parte daquele abono previsto na Lei 9655/98. (Fl. 5.) De modo algum teria servido como solução definitiva para atender ao que determinava a Lei 9.655/98. Para ele, somente a Lei 11.143/05 o fez. A Lei 10.474/02, sustenta, não poderia “suprimir o direito adquirido do autor a receber o abono, na forma e período previstos na lei anterior que tratou da matéria (Lei 9655/98)” (fl. 6). Para a União Federal, contudo, a Lei 10.474/02 teve o exato propósito de determinar o valor do subsídio: 52 R.T.J. — 209 Extrai-se do simples cotejo da lei que “o valor do abono variável concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, com efeitos financeiros a partir da data nele mencionada, passa a corresponder à diferença entre a remuneração mensal percebida por Magistrado, vigente à data daquela Lei, e a decorrente desta Lei. (Grifos da contestação – fl. 90.) Não haveria, nos termos da contestação, e em virtude de que o abono variável foi inteiramente satisfeito na forma do § 3º do art. 2º da referida lei, qualquer espaço para se embasar um pedido relacionado a supostas diferenças, nem tampouco a correção monetária sobre tais importâncias, que necessariamente foram abarcadas pelo montante previsto na Lei nº 10.474/2002, com incidência, ressalte-se, retroativa à vigência da lei nº 9655/98. (Fl. 90.) Esta Corte já teve oportunidade de apreciar pedidos relacionados ao abono variável. Na AO 869/SP, Relator o Ministro Carlos Britto, em que a autora, também Juíza do Trabalho, pleiteava o pagamento do abono previsto na Lei 9.655/98 com base em decisão administrativa deste Tribunal, de 14‑4‑97, o Relator considerou que, com a edição da Lei 10.474/02 (que se deu posteriormente ao ajuizamento), a ação perdeu seu objeto: Entendo que a ação perdeu o objeto, por fato superveniente à sua propositura, ligado à promulgação da Lei 10.474, de 27‑6‑02. Assim também pensa a ilustrada Subprocuradora-Geral da República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos, que, em parecer aprovado pelo insigne Procurador-Geral, assim se pronunciou (fls. 250/252): “Com efeito, na conformidade das afirmações da própria autora, prejudicado o objeto principal do presente feito, em decorrência da nova disciplina emanada da Lei nº 10.474/02, cujo art. 2º, § 2º, reconhece, expressamente, o direito vindicado, isto é, a parcela remuneratória denominada abono variável, prevista no art. 6º da Lei nº 9.655/98, a ser paga em 24 prestações, verbis: ‘Art. 2º O valor do abono variável concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, com efeitos financeiros a partir da data nele mencionada, passa a corresponder à diferença entre a remuneração mensal percebida por Magistrado, vigente à data daquela Lei, e a decorrente desta Lei. § 2º Os efeitos financeiros decorrentes deste artigo serão satisfeitos em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais e sucessivas, a partir do mês de janeiro de 2003.’ Por conseguinte, sendo certo que a sentença deve refletir o estado de fato, e de direito, no momento da sua prolação, tem aplicação a regra constante do art. 462 do Código de Processo Civil, que assim determina: ‘Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença’. A detida análise dos autos revela que a autora carece de uma das condições da ação: o interesse de agir, que se traduz na efetiva necessidade da providência jurisdicional postulada. No caso sub oculis judices, não se faz presente a aludida condição, na medida em que o direito pleiteado, a percepção do abono, previsto no art. 6º da Lei nº 9.655/98, foi atendido pela Lei nº 10.474/2002, esvaindo-se o objeto da demanda. Nesse R.T.J. — 209 53 diapasão, impõe-se a extinção do processo, sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil, porque faltante dos requisitos fundamentais para o prosseguimento da respectiva tramitação, ou seja, a insatisfação do titular do direito postulado. (...)” Ante o exposto, julgo prejudicado o pedido, em decorrência da perda de seu objeto, nos termos do art. 21, inciso IX, do RISTF, e do art. 38 da Lei 8.038/90, sem condenar a autora em honorários advocatícios, visto que a privação de seu interesse processual decorreu de fato superveniente à propositura da ação. Na AO 1.292/MG, Relator o Ministro Carlos Velloso, e na AO 1.157/PI, Relator o Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, discutia-se ser ou não devida a correção monetária das parcelas do abono variável. Nesta última, foi lavrada a seguinte ementa: Ação originária. Correção monetária sobre o abono variável previsto na Lei 9.655, de 2 de julho de 1998, e na Lei 10.474, de 27 de junho de 2002. 1. Interesse peculiar da magistratura. Competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, inciso I, alínea n, da Constituição). Precedentes: AO 1.151/SC – referendo de tutela antecipada –, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 18‑5‑05; AO 1.292-AgR/ MG, Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno 24-11-05. 2. Correção monetária sobre o abono variável. A própria Lei 10.474/02 veda a incidência de correção monetária ou qualquer outro tipo de atualização ou reajuste do valor nominal das parcelas correspondentes ao abono variável. Tal proibição também está prescrita na Resolução 245 do STF, quando estabelece o pagamento do abono variável em parcelas iguais, sem qualquer menção à atualização monetária dos valores devidos. No período de 1º de janeiro de 1998 até o advento da Lei 10.474/02 não havia qualquer débito da União em relação ao abono variável criado pela Lei 9.655/98 – dependente, à época, da fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Com a edição da Lei 10.474, de junho de 2002, fixando definitivamente os valores devidos e a forma de pagamento do abono, assim como a posterior regulamentação da matéria pela Resolução 245 do STF, de dezembro de 2002, também não há que se falar em correção monetária ou qualquer valor não estipulado por essa regulamentação legal. Eventuais correções monetárias já foram compreendidas pelos valores devidos a título de abono variável, cujo pagamento se deu na forma definida pela Lei 10.474/02, em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais, iguais e sucessivas, a partir do mês de janeiro de 2003. Encerradas as parcelas e quitados os débitos reconhecidos pela lei, não subsistem quaisquer valores pendentes de pagamento. 3. Ação julgada procedente, por maioria de votos. É de se registrar que o autor destaca a peculiaridade do presente caso diante desses precedentes, seja quanto à AO 869/SP (“aquela ação fora ajuizada antes da Lei 10.474/2002, pois nenhum valor ainda havia sido pago, a título de abono previsto pela Lei 9655/98” – fl. 108), seja quanto à correção monetária: “na correção monetária discutida, os pressupostos eram de que estava correta a base de cálculo, mas apenas o valor nominal deveria ser corrigido. Aqui, não. O próprio valor nominal está sendo posto em cheque (...)” (idem). De fato, o pedido aqui é diverso e a tese defendida original, mas não se pode desconsiderar o que foi discutido naquelas ocasiões. 54 R.T.J. — 209 O autor afirma ter direito adquirido ao abono estabelecido pela Lei 9.655/98 e na forma ali definida, ou seja, no valor equivalente à diferença entre o subsídio dos Juízes Federais fixado durante a vigência da Emenda Constitucional 19 e o valor efetivamente percebido. E ainda alega que esse ponto, entre outros, seria incontroverso por não haver impugnação na contestação apresentada pela União Federal. Ora, não há que se tomar o ônus de impugnação específica dos fatos narrados (art. 302 do Código de Processo Civil – CPC) por um suposto dever de atacar um a um todos os argumentos deduzidos pelo autor. No caso do art. 302 do CPC, relacionado aos fatos, estes são reputados verdadeiros, o que não ocorre quanto à matéria de direito, que cabe ao Juiz conhecer, na forma do vetusto brocardo jura novit curia. Lembre-se de que mesmo no que concerne aos fatos, pode não operar a presunção de veracidade se ela afronta a defesa como um todo (art. 302, III). Dessa forma, havendo ou não impugnação específica da União Federal sobre os argumentos formulados pelo Autor, resta claro que a forma de cálculo, a base de cálculo e o valor do abono variável defendidos pelo autor não são matérias fáticas, mas teses jurídicas, argumentos legais e questões de interpretação. Matérias de direito, portanto, submetidas à apreciação desta Corte. E não obstante a originalidade da argumentação do Autor, essas matérias já foram objeto de discussão na Suprema Corte que, nos acórdãos citados, manifestou-se sobre a natureza da Lei 10.474/02 e sua relação com a Lei 9.655/98. Por isso, o que neles discutido repercute na presente ação. Entendeu-se que a Lei 10.474/02 satisfez inteiramente o valor do abono variável, não havendo lugar para a incidência de correção monetária ou qualquer outro tipo de atualização ou reajuste. Nesse sentido, o voto do eminente Ministro Gilmar Mendes na AO 1.157: O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): (...) No mérito, não tenho qualquer dúvida a respeito da total procedência da ação. Isso porque a própria Lei 10.474, de 27 de junho de 2002, em seu art. 2o, § 3o, prescreve, de forma categórica, que “o valor do abono variável da Lei nº 9.655, de 2 de julho de 1998, é inteiramente satisfeito na forma fixada neste artigo.” E, observe-se bem, o referido artigo em nenhum momento trata de correção monetária a incidir sobre o abono variável. Eis o teor do art. 2º da Lei 10.474/02: “Art. 2º O valor do abono variável concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, com efeitos financeiros a partir da data nele mencionada, passa a corresponder à diferença entre a remuneração mensal percebida por Magistrado, vigente à data daquela Lei, e a decorrente desta Lei. § 1º Serão abatidos do valor da diferença referida neste artigo todos e quaisquer reajustes remuneratórios percebidos ou incorporados pelos Magistrados da União, a qualquer título, por decisão administrativa ou judicial, após a publicação da Lei no 9.655, de 2 de junho de 1998. § 2º Os efeitos financeiros decorrentes deste artigo serão satisfeitos em 24 (vinte e quatro) parcelas mensais e sucessivas, a partir do mês de janeiro de 2003. R.T.J. — 209 55 § 3º O valor do abono variável da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, é inteiramente satisfeito na forma fixada neste artigo.” (Ênfases acrescidas.) Da mesma forma, a Resolução 245, deste Supremo Tribunal Federal, de 12 de dezembro de 2002, que “dispõe sobre a forma de cálculo do abono de que trata o art. 2º e parágrafos da Lei 10.474, de 27 de junho de 2002”, em nenhum momento previu qualquer incidência de correção monetária sobre o abono. O texto da resolução é o seguinte: “O Presidente do Supremo Tribunal Federal, no uso das atribuições que lhe confere o art. 13, XVII, combinado com o art. 363, I, do Regimento Interno; Considerando o decidido pelo Tribunal, na sessão administrativa de 11 de dezembro de 2002, presentes os Ministros Moreira Alves, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes; Considerando a vigência do texto primitivo – anterior à Emenda 19/98 – da Constituição de 1988, relativo à remuneração da magistratura da União; Considerando a vigência da Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979; Considerando o direito à gratificação de representação – art. 65, inciso V, da Lei Complementar 35, de 1979, e Decreto-Lei 2.371, de 18 de novembro de 1987, nos percentuais fixados; Considerando o direito à gratificação adicional de cinco por cento por qüinqüênio de serviço, até o máximo de sete qüinqüênios – art. 65, inciso VIII, da Lei Complementar 35, de 1979; Considerando a absorção de todos e quaisquer reajustes remuneratórios percebidos ou incorporados pelos magistrados da União, a qualquer título, por decisão administrativa ou judicial pelos valores decorrentes da Lei 10.474, de 27 de junho de 2002 – arts. 1º, § 3º, e 2º, § 1º, § 2º e § 3º; Considerando o disposto na Resolução STF 235, de 10 de julho de 2002, que publicou a tabela da remuneração da Magistratura da União, decorrente da Lei 10.474, de 2002; Considerando o escalonamento de cinco por cento entre os diversos níveis da remuneração da magistratura da União – art. 1º, § 2º, da Lei 10.474, de 2002; Considerando a necessidade de, no cumprimento da Lei Complementar 35, de 1979, e da Lei 10.474, de 2002, adotar-se critério uniforme, a ser observado pelos órgãos do Poder Judiciário da União, para cálculo e pagamento do abono; Considerando a publicidade dos atos da Administração Pública; Resolve: Art. 1º É de natureza jurídica indenizatória o abono variável e provisório de que trata o art. 2º da Lei 10.474, de 2002, conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal. Art. 2º Para os efeitos do art. 2º da Lei 10.474, de 2002, e para que se assegure isonomia de tratamento entre os beneficiários, o abono será calculado, individualmente, observando-se, conjugadamente, os seguintes critérios: 56 R.T.J. — 209 I – apuração, mês a mês, de janeiro/98 a maio/2002, da diferença entre os vencimentos resultantes da Lei 10.474, de 2002 (Resolução STF 235, de 2002), acrescidos das vantagens pessoais, e a remuneração mensal efetivamente percebida pelo Magistrado, a qualquer título, o que inclui, exemplificativamente, as verbas referentes a diferenças de URV, PAE, 10,87% e recálculo da representação (194%); II – o montante das diferenças mensais apuradas na forma do inciso I será dividido em vinte e quatro parcelas iguais, para pagamento nos meses de janeiro de 2003 a dezembro de 2004. Art. 3º Serão recalculados, mês a mês, no mesmo período definido no inciso I do art. 2º, o valor da contribuição previdenciária e o do imposto de renda retido na fonte, expurgando-se da base de cálculo todos e quaisquer reajustes percebidos ou incorporados no período, a qualquer título, ainda que pagos em rubricas autônomas, bem como as repercussões desses reajustes nas vantagens pessoais, por terem essas parcelas a mesma natureza conferida ao abono, nos termos do art. 1º, observados os seguintes critérios: I – o montante das diferenças mensais resultantes dos recálculos relativos à contribuição previdenciária será restituído aos magistrados na forma disciplinada no Manual Siafi pela Secretaria do Tesouro Nacional; II – o montante das diferenças mensais decorrentes dos recálculos relativos ao imposto de renda retido na fonte será demonstrado em documento formal fornecido pela unidade pagadora, para fins de restituição ou compensação tributária a ser obtida diretamente pelo magistrado junto à Receita Federal. Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.” Como se vê, a Resolução 245 do STF é clara ao estabelecer que o pagamento do montante apurado ocorreria “em vinte e quatro parcelas iguais”. Alega a União que, “ante a ausência completa de previsão legal, não poderia a Juíza Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, no exercício de atividade eminentemente administrativa, inovar o ordenamento jurídico, autorizando o indevido pagamento de correção monetária” (fl. 13). Não se trata apenas de falta de previsão legal, o que já seria suficientemente grave, tal como assentado em precedentes desta Corte (ADI 2.093, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 18‑6‑04; ADI 2.105-MC, Rel. Min. Celso de Mello). No caso, como se pode atestar pela expressão literal de seu art. 2º, a própria Lei 10.474/02 veda a incidência de correção monetária ou qualquer outro tipo de atualização ou reajuste do valor nominal das parcelas correspondentes ao abono variável. Tal proibição também está prescrita na Resolução 245 do STF, quando estabelece o pagamento do abono variável em parcelas iguais, sem qualquer menção à atualização monetária dos valores devidos (...). Ao contrário do que sustenta o Autor, se da Lei 10.474/02 não cabe mera correção monetária, exatamente porque o valor é aquele definido peremptoriamente, muito menos cabe discutir o valor principal a ser recebido pelos Magistrados. Essa fixação definitiva do valor fica clara nas discussões que se seguiram ao voto do Relator: R.T.J. — 209 57 O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, eu conversava aqui, lateralmente, com o Ministro Gilmar Mendes, que neste caso é preciso definir a natureza jurídica dessa mais nova lei, Lei 10.474, mais nova em relação à Lei 9.655. A lei mais nova teve caráter interpretativo ou instrumental ou regulamentar da primeira ou ela se dotou de uma natureza verdadeiramente integrativa ou integradora do comando da primeira, porque a primeira emitia um comando regratório insuficiente ou deficiente, de modo a não produzir por si mesma os efeitos a que se preordenava? Então, a lei mais nova surgiu para preencher uma lacuna, colmatar uma lacuna normativa. Daí porque ela, parece-me, definiu a própria compostura financeira do abono, ela disse em que o abono consistiria. Assim, ela portou um elemento verdadeiramente conceitual, de sorte que o direito só passou a existir cabalmente com a existência da nova lei. O direito só nasceu com o nascimento da nova lei. Portanto, se o direito subjetivo só nasceu com o nascimento da nova lei, essa nova lei se dotou de um caráter conceitualmente elementar do próprio direito, de sorte que ela poderia dispor sobre o modo como o direito seria pago, liquidado, e esse modo parcelado, essa forma parcelada de pagar seria da substância do direito. De maneira que, ao fim da última parcela, não há débito a corrigir, porque é da lógica dessa lei integradora dispor sobre um direito que ela tornou exeqüível, exigível sobre a forma como esse pagamento se dará. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro Carlos Britto, não lhe parece que seria um paradoxo assentar-se que, no caso, o valor se mostrou corrigido até então, junho de 2002, e que, a partir daí, teremos o congelamento para satisfação em vinte e quatro meses? O Sr. Ministro Carlos Britto: Ministro Marco Aurélio, essa lei foi uma lei resolutiva de um conflito localizado, daí por que ela dispôs de modo a se esvair no tempo, foi uma lei de eficácia pro tempore, assumindo a típica função ou eficácia de solução de compromisso. A lei deu resposta a um conflito pendente e assumindo, portanto, esse papel de solucionadora de um conflito pontual ou tópico ou localizado. Quer dizer, é preciso atentar para a natureza jurídica dessa lei nova. Parece-me que ela se predispôs a impedir qualquer idéia de correção monetária ao prever no seu § 3º do art. 2º: “Art. 2º (...) (...) § 3º O valor do abono variável da lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998 – outra vez faz remissão à lei anterior, padecente à lei anterior de suficiência regratória – é inteiramente satisfeito na forma fixada neste artigo.” Então, o parcelamento, a forma parcelada é da substância do ato, da substância do direito, não remanesce, portanto, nenhum débito a corrigir. Foi o que me impressionou sobremodo o voto do eminente Relator. Senhora Presidente, estou antecipando, se todos permitirem, meu voto no sentido, com a devida vênia do voto do Ministro Marco Aurélio, de aderir ao voto de Sua Excelência o Ministro Gilmar Mendes. (Grifei.) Foi essa a intenção do legislador, o que se extrai das justificativas do projeto que resultou na Lei 10.474/02: 58 R.T.J. — 209 O projeto soluciona ainda a questão concernente ao “abono variável” concedido pelo art. 6º da Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, mediante a qual se instituiu um abono “correspondente à diferença entre a remuneração mensal” percebida pelo magistrado, vigente à data daquela lei, é valor do subsídio que viesse a ser fixado quando entrasse em vigor a emenda constitucional que, então, tramitava no Congresso. A Lei nº 9.655/98 referia-se ao subsídio advindo do inciso XV do art. 48 da Carta, que veio a ser acrescido pelo art. 7º da Emenda Constitucional nº 19, promulgada em 4 de junho de 1998. Pelo projeto, o mencionado abono passará a ter como parâmetro não mais o subsídio do inciso XV do artigo 48 do Diploma Maior, mas a remuneração decorrente do projeto, tudo na forma da Lei nº 9.655/98.” (Grifei.) O certo é que o abono variável previsto na Lei 9.655/98 veio a se materializar com a edição da Lei 10.474/02, cuja finalidade era precisamente garantir a sua concretização através da fixação da remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e, conseqüentemente, de toda a Magistratura e não a disciplina de uma situação provisória. A edição da Lei 11.143/05, longe de ser a satisfação do comando da Lei 9.655/98, foi mera, porém importantíssima, atualização dos vencimentos da Magistratura por meio da fixação dos subsídios dos Ministros desta Corte. Fosse outra a interpretação estar-se-ia desqualificando a própria natureza da Lei 1.474/02. O programa original contido na Lei 9.655/98 envolvia a definição do abono com base na fixação do subsídio. Tal programa, contudo, ficou inviabilizado pela demora nessa providência que, recorde-se, dependia de lei de iniciativa conjunta dos três Poderes. Foi então substituído pelo programa do legislador da Lei 10.474/02 que, verificando a dificuldade de se obter um consenso entre os representantes dos Poderes da República, acabou por se contentar com a fixação do abono com base na fixação dos vencimentos dos Ministros desta Corte. Essa passou a ser a sua base de cálculo, para efeito do abono variável, como ficou explicitado na justificativa do projeto. O parecer da Procuradoria-Geral da República deixou bem claro esse cenário ao assinalar que a “lei instituidora do benefício determinou que o parâmetro a ser utilizado para o cálculo da diferença correspondente ao abono seria ‘o valor do subsídio que for fixado quando em vigor a referida Emenda Constitucional’. Foi o que fez a Lei 10.474/02: fixou o valor do subsídio para aquele fim e viabilizou, em conseqüência, o pagamento do abono.” (fl. 128.) Com as razões acima deduzidas, julgo improcedente o pedido. Custas na forma da lei. Honorários advocatícios em 10% do valor da causa. EXTRATO DA ATA AO 1.412/SP — Relator: Ministro Menezes Direito. Autor: Lúcio Pereira de Souza. (Advogados: Helen Cristina Vitorasso Souza e outros). Ré: União (Advogado: Advogado-Geral da União). R.T.J. — 209 59 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou improcedente a ação, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso (VicePresidente). Ausentes, em representação do Tribunal no exterior, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente) e Eros Grau, justificadamente o Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 60 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO INQUÉRITO 2.051 — TO (Inq 2.051-QO na RTJ 195/5) Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Agravante: Jader Fontenelle Barbalho — Agravado: Ministério Público Federal — Indiciados: Jorge Francisco Murad Júnior, Teodoro Hübner Filho, José Artur Guedes Tourinho, Maurício Benedito Barreira Vasconcelos, Maria Auxiliadora Barra Martins, Antônio José Costa de Freitas Guimarães, Valmor Felipetto, Amauri Cruz Santos, Magaly Hubner, Ulbi Arlant, Roderjan Busato, Alexandre Rizzotto Falcão, Adaljor Dlugonski Lemos, Paulo Ivan Alberti, Márcia Pastor da Silva Pinheiro, Antonio dos Santos Ferreira Neto, Raimundo Rogério Dias Magalhães, Madson Antônio Brandão da Costa, Antônio Alves de Oliveira Filho, Mário Jorge de Macêdo Bríngel, Honorato Luís Lima Cosenza Nogueira, Admilson Fernando de Oliveira Monteiro e Maria José Corrêa Alves Direito processual penal. Agravo regimental. Decisão de desmembramento de inquérito. Improvimento. 1. Agravo regimental contra decisão monocrática que determinou a separação do inquérito relativamente aos demais investigados, mantendo-o apenas em relação ao deputado federal. 2. Razões do agravo regimental não se revelaram suficientes e idôneas para alteração do conteúdo e resultado da decisão monocrática. 3. Esta Corte decretou a nulidade da denúncia e de seu recebimento, e considerou prejudicado o requerimento de desmembramento do inquérito, fundamentalmente em razão de a denúncia nula haver descrito “a suposta atuação de uma ‘organização criminosa’, o que não autoriza, pelo menos neste momento, a divisão do feito”. 4. A circunstância de o julgamento haver se realizado em junho de 2005 e até o presente momento não se haver avançado significativamente no inquérito, é indicativa clara da existência de dificuldades para o encerramento das investigações, dado o número elevado de investigados, e a complexidade dos fatos objeto de apuração, como foi destacado na decisão agravada. 5. O art. 129, I, da Constituição da República atribui ao Ministério Público, com exclusividade, a função de promover a ação penal pública (incondicionada ou condicionada à representação ou requisição) e, para tanto, é necessária a formação da opinio delicti. 6. Existência de inquérito que tramita perante o STF, sendo certo que ainda não há qualquer indicação por parte do Senhor Procurador-Geral da República acerca de qual imputação poderá o agravante ter que responder. 7. Ausência de cerceamento de defesa, eis que não existe acusação validamente formulada contra o agravante. Não tendo R.T.J. — 209 61 ainda sido instaurado o litígio processual, descabe cogitar de violação ao contraditório e à ampla defesa. 8. Relativamente à investigação sobre possível crime de quadrilha, esta Corte já decidiu que há possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução penal, (...) “também em relação aos crimes de quadrilha ou bando.” 9. Agravo regimental improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão monocrática que determinou a separação do inquérito relativamente aos demais investigados, mantendo apenas em relação ao Deputado Federal Jader Barbalho. A decisão teve o seguinte teor (fls. 2.202/2.206): 1. Trata-se de inquérito instaurado para apurar possíveis crimes de formação de quadrilha, estelionato em detrimento de entidade de direito público, lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e peculato (CP, arts. 288, 171, § 3º, c/c 61, g, 62, I, e 29; Lei 9.613/98, art. 1º, V e VII; e CP, art. 312, § 1º). O Plenário desta Corte, em sessão realizada no dia 16 de junho de 2005, por maioria, resolveu questão de ordem para o fim de decretar a nulidade da denúncia e seu recebimento, além de julgar prejudicado o pedido de desmembramento do inquérito, nos termos do voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes (fls. 2181/2182). 2. Após o julgamento da questão de ordem, sobreveio parecer do Ministério Público Federal (fls. 2194/2197), destacando-se os seguintes trechos: “Anuladas a denúncia e seu recebimento, entende o Ministério Público, data venia, suficientemente configurados os motivos ensejadores à separação do inquérito policial. Cabe ressaltar, preliminarmente, que o simples fato de se investigar, no presente inquérito, suposta organização criminosa não impede o desmembramento do feito. Neste sentido, vale transcrever julgado em que figurou como agravante justamente o ora Deputado Federal Jader Barbalho: ‘Ementa: constitucional. Processual penal. Penal. Crime de quadrilha. Foro por prerrogativa de função. Separação dos processos. CPP, art. 80. Número excessivo de acusados. Prejuízo da defesa: inexistência. I. O fato de um dos co-réus ser Deputado Federal não impede o desmembramento do feito com base no art. 80 do Código de Processo Penal. 62 R.T.J. — 209 II. A possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução penal é aplicável também em relação ao crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal). III. Agravos não providos’ (AP-AgR 336/TO, Relator Min. Carlos Velloso, DJ 10.12.2004, p. 29). Como já destacado anteriormente, estão sendo investigadas no presente inquérito 25 (vinte e cinco) pessoas. Na data de hoje, o processo já conta com 12 (doze) volumes e 38 (trinta e oito) apensos. Para o julgamento do recebimento ou não de eventual nova denúncia, faz-se necessária a notificação de todos os acusados para oferecimento de respostas (art. 4º da Lei nº 8.038/90). Como a maioria dos investigados reside fora do Distrito Federal, em diferentes cidades, seria indispensável a expedição de cartas de ordem para cumprimento das notificações. Tal providência certamente acarretaria meses de espera e, possivelmente, anos, em franca oposição à celeridade processual. Há tempos, tem sustentado o Ministério Público Federal que a existência de um único réu com prerrogativa de foro perante esse Excelso Tribunal não deve ser obstáculo ao desmembramento do feito criminal. No presente inquérito, a competência ratione personae desse Supremo Tribunal Federal se dá exclusivamente em razão de um dos investigados ser o ora Deputado Federal Jader Barbalho. Assim, não se vislumbra conveniente atrair todo o feito à apreciação dessa Colenda Suprema Corte Federal. Não se afigura viável a tramitação de inquérito policial que conta com tantos outros investigados. Evidencia-se, portanto, a inviabilidade de processamento e julgamento de todas essas pessoas por essa Excelsa Corte. Esta insuperável dificuldade autoriza exceção ao princípio do simultaneus processus”. (...) Ora, o grande número de investigados consubstancia, sem dúvida, motivo hábil a recomendar o desmembramento do feito. Trata-se de medida em prol da administração da justiça e de um julgamento mais célere. Assevere-se que tal providência se dá no interesse não só da Justiça Pública, mas também em favor dos investigados que aguardam uma definição do Poder Judiciário quanto a eventual culpabilidade ou não. Revela-se, portanto, de todo aconselhável o desmembramento do feito, a fim de que esta Excelsa Corte, em conformidade coma norma inserta na alínea b do inciso I do art. 102 da Constituição da República, processe e julgue tão só o Deputado Federal Jader Barbalho”. 3. A regra, em tema relativo à determinação da competência por conexão ou continência, é a prevalência da jurisdição de maior graduação quando houver concurso de jurisdições de diversas categorias (CPP, art. 78, inciso III). Contudo, é facultativa a separação dos processos nos casos em que as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo e lugar diferentes, houver excessivo número de acusados, se constatar delonga na prisão processual de algum dos acusados ou existir outro motivo relevante (CPP, art. 80). Esta Corte, na linha do raciocínio exposto pelo Ministério Público Federal, já admitiu a separação do processo com fundamento na conveniência da instrução processual (AP 336-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10‑12‑04) e na racionalização dos trabalhos (AP 351, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 17‑9‑04). R.T.J. — 209 63 4. Assim, deve permanecer perante esta Corte apenas o inquérito relativo ao parlamentar Jader Barbalho, em virtude da prerrogativa de foro. Deve ocorrer o desmembramento dos autos, com encaminhamento dos originais ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, diante da circunstância do investigado José Artur Guedes Tourinho exercer o mandato eletivo de deputado estadual do Pará. 5. Para tanto, acolho a manifestação do Senhor Procurador-Geral da República (fls. 2196/2197 itens 15 a 17), determinando a extração de cópia das peças indicadas pelo MPF dos autos principais e dos apensos 1 a 15 e 19, para formação dos autos de inquérito policial tendo como investigado somente o Deputado Federal Jader Barbalho, determinando, em seguida, a remessa destes autos ao TRF da 1ª Região. 2. O Agravante argumenta, em síntese, que esta Corte entendeu prematura qualquer decisão a respeito do desmembramento do feito, diante da insubsistência da denúncia, tendo o Relator consignado que a investigação tratava de suposta “organização criminosa”. Narra que, após a publicação do acórdão, a Procuradoria-Geral da República, sem qualquer fato novo, requereu o desmembramento pela segunda vez. Observa, pois, que não houve qualquer alteração fática ou jurídica que justificasse o desmembramento neste momento processual, cuidando-se de questão já examinada e decidida pelo Plenário do STF. A determinação da separação dos processos geraria cerceamento de defesa, eis que não se tem conhecimento dos termos de eventual e futura acusação. Registra a possibilidade de que sejam proferidas decisões conflitantes, em grave prejuízo à isonomia constitucional. Aduz que a instrução criminal ficará prejudicada sem que o Agravante possa participar da formação das provas requeridas em relação aos demais pretensos integrantes da quadrilha. Considera conveniente a manutenção da unidade do processo diante da complexidade do feito e das supostas condutas investigadas. Reitera que não há quadrilha ou bando constituído por um só membro, daí a inconveniência do desmembramento. Assim, requer o provimento do agravo, seja pelo juízo de retratação, seja por decisão do Plenário do STF. 3. Manifestação da Procuradoria-Geral da República no sentido do improvimento do agravo regimental (fls. 2238/2241). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A matéria ora submetida a julgamento foi bem exposta pela Procuradoria-Geral da República em trecho de sua manifestação, que aproveito para transcrever (fls. 2239/2241): Não assiste razão ao agravante, tendo em vista que não mais subsistem os motivos que impediam o desmembramento do Inquérito, sendo certo que a decisão 64 R.T.J. — 209 atacada está em consonância com a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A decisão observou com rigor os ditames do Código de Processo Penal, que admite a separação de processos em nome da conveniência da instrução. Ressalte-se, ademais, que demonstrada sua conveniência, a separação de processo pode ser adotada a qualquer momento, seja na fase investigatória, seja na fase judicial. Assim, não prospera a alegação de que não houve alteração fática ou jurídica que justifique a mudança do entendimento consignado em 16/06/2005, quando a Corte deliberou pela anulação da denúncia e seu recebimento. Desde então, a jurisprudência sobre a matéria evoluiu significativamente, notadamente quanto à possibilidade de separação dos processos que envolvem o crime de quadrilha. São inúmeras as decisões que, reportando-se ao precedente da Ação Penal nº 336, autorizaram o desmembramento de processos nos quais se apurava o crime de quadrilha, inclusive inquéritos. Dentre as mais recentes, podem ser citadas as decisões proferidas no Inquérito nº 2.635, de relatoria do Ministro Eros Grau, no Habeas Corpus nº 87.867, do Ministro Celso de Mello e no Inquérito nº 2.239, da Ministra Cármen Lúcia. (...) Quaisquer que sejam os termos da denúncia, a mesma versará sobre as condutas imputadas ao agravante, que a partir daí terá todos os elementos necessários à formulação de sua defesa. Ao reiterar o pedido de desmembramento, o Ministério Público deixou implícita a convicção de que eventuais delitos atribuídos ao agravante poderão ser analisados independentemente das condutas dos demais, ainda que fique caracterizado o crime de quadrilha. Caso houvesse a possibilidade de prejuízo para a formação da opinio delicti, seria mantida a unidade do processo. Nem mesmo a possibilidade de que sejam proferidas decisões conflitantes impede o desmembramento pois, conforme já decidiu essa Corte, “a regra do art. 79 do Código de Processo Penal – competência por conexão ou continência – é abrandada pelo teor do art. 80 do Código de Processo Penal, (...)”. Ademais, essa providência visa, acima de tudo, atender ao postulado do art. 5°, LXXVIII, da Constituição, que assegura ao cidadão a razoável duração do processo e a celeridade em sua tramitação, garantias estas que seriam simplesmente fulminadas caso fossem processados no Supremo Tribunal Federal todos os 25 (vinte e cinco) envolvidos. Aqui, é desnecessário invocar o precedente do Inquérito nº 2.245 – atual Ação Penal nº 470 – porque naquela hipótese observou-se que a separação dos processos inviabilizaria o julgamento dos delitos imputados aos agentes detentores de prerrogativa de foro, dada a intensa ligação das condutas de uns e outros. Em verdade, a Corte chegou a admitir a possibilidade de desmembramento, mas ao constatar que tal providência não reduziria significativamente o número de réus, houve por bem mantê-los no mesmo processo. No caso em análise, todavia, não há razão para manter todos os envolvidos num único processo, pois apenas o agravante faz jus à prerrogativa de foro. A leitura da denúncia anulada revela que a participação de Jader Barbalho está bem especificada, bem como esclarecida a atuação de cada membro da quadrilha, razão por que deve ser mantida a decisão de desmembramento. R.T.J. — 209 65 Por fim, não se pode deixar de mencionar que o presente recurso tem nítido caráter protelatório e visa postergar ainda mais o trâmite deste Inquérito, que já se arrasta há pelo menos 6 (seis) anos. Diante disso, o provimento do agravo, longe de resguardar o alegado direito de defesa do agravante, acabará por inviabilizar a investigação dos fatos. Com efeito, eventual prejuízo decorrente do desmembramento poderá ser argüido por ocasião da resposta à denúncia, quando o agravante, ciente dos termos da acusação, poderá indicar objetivamente os pontos que obstam o exercício de sua defesa. 2. Realmente, as razões do agravo regimental não se revelaram suficientes e idôneas para alteração do conteúdo e resultado da decisão monocrática por mim proferida. Na sessão plenária realizada em 16‑6‑05, esta Corte decretou a nulidade da denúncia e de seu recebimento, e considerou prejudicado o requerimento de desmembramento do inquérito (fl. 2182), fundamentalmente em razão de a denúncia nula haver descrito “a suposta atuação de uma ‘organização criminosa’, o que não autoriza, pelo menos neste momento, a divisão do feito” (fl. 2176). 3. A circunstância de o julgamento haver se realizado em junho de 2005 e até o presente momento não se haver avançado significativamente no inquérito é indicativa clara da existência de dificuldades para o encerramento das investigações, dado o número elevado de investigados e a complexidade dos fatos objeto de apuração, como foi destacado na decisão agravada. No próprio voto proferido pelo então Relator, Ministro Gilmar Mendes, ficou assentado que naquela época considerou-se inoportuno o desmembramento, mas não houve qualquer impedimento à reavaliação da hipótese, mesmo porque a formação da opinio delicti é atribuição do Ministério Público (CF, art. 129, I). 4. O art. 129, I, da Constituição da República atribui ao Ministério Público, com exclusividade, a função de promover a ação penal pública (incondicionada ou condicionada à representação ou requisição) e, para tanto, é necessária a formação da opinio delicti. Como já pontuou o Ministro Celso de Mello, “a formação da opinio delicti compete, exclusivamente, ao Ministério Público, em cujas funções institucionais se insere, por consciente opção do legislador constituinte, o próprio monopólio da ação penal pública (CF, art. 129, I). Dessa posição de autonomia jurídica do Ministério Público, resulta a possibilidade, plena, de, até mesmo, não oferecer a própria denúncia” (HC 68.242/ DF, Primeira Turma, DJ de 15‑3‑91). Apenas o órgão de atuação do Ministério Público detém a opinio delicti a partir da qual é possível, ou não, instrumentalizar a persecução criminal (Inq 2.341-QO/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ de 17‑8‑07). 5. Registro que, em razão do decreto de nulidade da denúncia anteriormente oferecida e do ato de seu recebimento, o que existe, na realidade, é o inquérito que tramita perante o STF, sendo certo que ainda não há qualquer 66 R.T.J. — 209 indicação por parte do Senhor Procurador-Geral da República acerca de qual imputação poderá o Agravante ter que responder. Além disso, não é caso de se cogitar de eventual cerceamento de defesa, eis que não existe acusação validamente feita contra qualquer indiciado, tampouco o Agravante. Não tendo ainda sido instaurado o litígio processual, descabe cogitar de violação ao contraditório e à ampla defesa, sendo que uma das alternativas conferidas ao Ministério Público, inclusive, é o pedido de arquivamento do inquérito, o que não foi cogitado pelo Agravante. 6. Não resiste à mais aprofundada análise o argumento segundo o qual o Agravante não poderá se valer dos requerimentos de produção de prova dos outros investigados. Ora, a lei brasileira atribui à defesa técnica do acusado a faculdade de deduzir requerimentos de produção de prova e, assim sendo, poderá o Agravante promover sua eventual defesa (na eventualidade de vir a ser validamente denunciado) com todos os meios a ela inerentes, inclusive com requerimento de produção de prova. Ademais, há a possibilidade de se admitir a prova emprestada, no caso de os demais investigados produzirem determinada prova nos autos em que poderão vir a ser processados e, assim, tal elemento probante servir para demonstração de determinado fato alegado pelo Agravante. 7. Relativamente à investigação sobre possível crime de quadrilha, esta Corte já decidiu que há “a possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução penal, (...) também em relação aos crimes de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal)” (AP 336-AgR/TO, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10‑12‑04). Reafirmo, inclusive, que, em se tratando de desmembramento determinado a requerimento do Ministério Público, por óbvio o Parquet assume o ônus decorrente de sua postura, o que permitirá a esta Corte aferir a higidez e idoneidade de eventual denúncia a ser oferecida, inclusive acerca de possível imputação do crime de formação de quadrilha, tendo apenas o Agravante como denunciado perante o STF. 8. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É como voto. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, acompanho a Relatora no voto proferido, reportando-me ao que consignado no HC 89.056-3/MS, porque concluo, não sob o ângulo da conveniência de manter-se ou não o processo com os demais Co-réus no Supremo, mas considerado o fato de a competência desta Corte ser de direito estrito. Eis o que assentado: (...) As normas definidoras da competência do Supremo são de Direito estrito. Cabe ao Tribunal o respeito irrestrito ao art. 102 da Constituição Federal. Sob o ângulo das infrações penais comuns, cumpre-lhe processar R.T.J. — 209 67 e julgar originariamente o Presidente e o Vice-Presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os próprios ministros que o integram e o Procurador-Geral da República, mostrando-se mais abrangente a competência, a alcançar infrações penais comuns e crimes de responsabilidade, considerados os ministros de Estado, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, inciso I, da Carta da República, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente – alíneas b e c do inciso I do art. 102 da Constituição Federal. Então, forçoso é concluir que, em se tratando do curso de inquérito voltado à persecução criminal, embrião da ação a ser proposta pelo Ministério Público, a tramitação sob a direção desta Corte, presentes atos de constrição, pressupõe o envolvimento de autoridade detentora da prerrogativa de foro, de autoridade referida nas citadas alíneas b e c. Descabe interpretar o Código de Processo Penal conferindo-lhe alcance que, em última análise, tendo em conta os institutos da conexão ou continência, acabe por alterar os parâmetros constitucionais definidores da competência do Supremo. Argumento de ordem prática, da necessidade de evitar-se, mediante a reunião de ações penais, decisões conflitantes não se sobrepõe à competência funcional estabelecida em normas de envergadura maior, de envergadura insuplantável como são as contidas na Lei Fundamental. O argumento calcado no pragmatismo pode mesmo ser refutado considerada a boa política judiciária, isso se fosse possível colocar em segundo plano a ordem natural das coisas, tal como contemplada no arcabouço normativo envolvido na espécie. O Supremo, hoje, encontra-se inviabilizado ante sobrecarga invencível de processos. Então, os plúrimos, a revelarem ações penais ajuizadas contra diversos cidadãos, viriam a emperrar, ainda mais, a máquina existente, projetando para as calendas gregas o desfecho almejado. A problemática do tratamento igualitário – e cada processo possui peculiaridades próprias, elementos probatórios individualizados – não é definitiva, ante a recorribilidade prevista pela ordem jurídica e, até mesmo, a existência da ação constitucional do habeas corpus. Em síntese, somente devem tramitar sob a direção do Supremo os inquéritos que envolvam detentores de prerrogativa de foro, detentores do direito de, ajuizada ação penal, virem a ser julgados por ele, procedendo-se ao desdobramento conforme ocorrido na espécie. (...) EXTRATO DA ATA Inq 2.051-AgR/TO — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Agravante: Jader Fontenelle Barbalho (Advogados: Edison Messias de Almeida e outros e José Eduardo Rangel de Alckmin). Agravado: Ministério Público Federal. Indiciados: Jorge Francisco Murad Júnior (Advogados: Antônio Carlos de Almeida Castro e outros), Teodoro Hübner Filho (Advogados: Eduardo Casillo Jardim e outros), José Artur Guedes Tourinho (Advogados: Alessandra de Cássia Fonseca Tourinho e outros), Maurício Benedito Barreira Vasconcelos (Advogados: Alberto da Silva Campos e outros), Maria Auxiliadora Barra Martins (Advogada: Maria do Socorro Miralha de Paiva Neves), Antônio José Costa de Freitas Guimarães 68 R.T.J. — 209 (Advogado: Edison Messias de Almeida), Valmor Felipetto (Advogados: Antonio Acir Breda e outros), Amauri Cruz Santos (Advogados: Domingos Caporrino Neto e outros), Magaly Hubner (Advogados: Emerson Luiz Laurenti e outros), Ulbi Arlant (Advogados: Fausto Pereira de Lacerda Filho e outros), Roderjan Busato (Advogado: Paulo César Hertt Grande), Alexandre Rizzotto Falcão (Advogado: Eduardo José Leal Moreira), Adaljor Dlugonski Lemos (Advogado: Marcos Gomes Salvador), Paulo Ivan Alberti (Advogado: Gerson Massignan Mansani), Márcia Pastor da Silva Pinheiro (Advogado: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa), Antonio dos Santos Ferreira Neto (Advogado: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa), Raimundo Rogério Dias Magalhães (Advogados: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa e outros), Madson Antônio Brandão da Costa (Advogados: Sábato Giovani Megale Rossetti e outros), Antônio Alves de Oliveira Filho (Advogada: Rita Conceição Lopes de Matos), Mário Jorge de Macêdo Bríngel (Advogado: Sílvio da Costa Batista), Honorato Luís Lima Cosenza Nogueira (Advogado: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa), Admilson Fernando de Oliveira Monteiro (Advogados: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa e outros), e Maria José Corrêa Alves (Advogados: Angelo Demetrius de Albuquerque Carrascosa e outros). Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, negou provimento ao recurso de agravo. Ausentes, em representação do Tribunal no exterior, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente) e Eros Grau e, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 23 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 69 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.089 — DF Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Joaquim Barbosa Requerente: Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR — Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional Ação direta de inconstitucionalidade. Constitucional. Tributário. Itens 21 e 21.01. da lista anexa à Lei Complementar 116/03. Incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. Constitucionalidade. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/03, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). Alegada violação dos arts. 145, II, 156, III, e 236, caput, da Constituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza permitiria a incidência do tributo tão-somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Ademais, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofenderia o art. 150, VI, a e § 2º e § 3º, da Constituição, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados. As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º, da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva. A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen 70 R.T.J. — 209 Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por votação majoritária, julgar improcedente a ação direta, vencido o Ministro Carlos Britto (Relator), que a julgava procedente. Brasília, 13 de fevereiro de 2008 — Joaquim Barbosa, Relator para o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: A Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG) propõe ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar. Ação de inconstitucionalidade, essa, que tem como alvo os itens 21 e 21.01 da lista de serviços anexa à Lei Complementar Federal 116, de 31 de julho de 2003. Listas, a seu turno, que autorizam os Municípios brasileiros a fazer da prestação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais uma hipótese da incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). 2. A pretensão da autora lastreia-se na tese de que o referido imposto não deve incidir sobre a prestação dos atos notariais e de registros públicos, dado que, não obstante a possibilidade de sua delegação a particulares, tais atividades são de natureza pública (art. 236, CF). Daí por que a requerente invoca, em seu favor, o princípio da imunidade recíproca (art. 150, inciso VI, a, CF), para concluir que serviços e atividades públicas em geral não podem ser objeto de impostos. Noutro dizer, a Anoreg sustenta que são multiplamente inconstitucionais os itens 21 e 21.01 da lista anexa à Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, por violação aos arts. 145, inciso II; 150, inciso VI, a; 150, § 2º e § 3º, e art. 236, todos da Constituição Federal de 1988. 3. Pois bem, chegados os autos ao meu gabinete, em 15 de dezembro de 2003, despachei, no dia seguinte, adotando o rito previsto no art. 12 da Lei 9.868/99. E assim procedi, por me convencer da relevância da matéria sobre que recai esta ação direta e o seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica. O que me fez solicitar informações aos requeridos para, em seguida, conceder vista ao Advogado-Geral da União e à Procuradoria-Geral da República, nessa ordem. 4. Em atendimento à notificação para prestar informações, o Congresso Nacional se fez presentar pela Advocacia-Geral do Senado Federal. É dizer, essa unidade de consultoria e assistência jurídica foi que elaborou a petição de fls. 135/148, na qual se lê a defesa da constitucionalidade dos anexos legais impugnados, conforme a seguinte síntese: (...) os serviços notariais, muito embora sejam serviços de natureza pública, são exercidos conforme dispõe o art. 236 da Constituição Federal, em caráter privado, ou seja, têm os delegados plena responsabilidade na administração e condução dos serviços prestados à população, e embora cobrem obedecendo tabela de emolumentos fixada pelo Poder Judiciário, recebem por conta própria, têm R.T.J. — 209 71 liberdade de aplicação dos recursos auferidos, sendo por conseguinte responsáveis pela manutenção da infra-estrutura necessária aos serviços (...) Por tais razões as atividades dos titulares de delegação notarial em nada diferem dos demais autorizados, concessionários e permissionários de serviço público, como aqueles que exercem permissão para prestação de serviços de transporte coletivo, ou aqueles que recebem concessão, permissão e autorização para prestação de serviços de iluminação pública, serviços de água e esgoto, telecomunicações, radiofônicos, saúde, educação fundamental, todas atividades precipuamente estatais à luz da própria Constituição Federal, daí porque a Lista Anexa à Lei Complementar nº 116, de 2003, fez constar igualmente os serviços de registros públicos e notariais na relação dos fatos geradores em que incide o imposto, que lembre-se, é sobre serviços de qualquer natureza, não se aplicando portanto alguns limites próprios do ISS pela Autora. (...) 5. Disse ainda o órgão de defesa do Congresso Nacional que a incidência do imposto sobre os atos de registros públicos e notariais, autorizada pela Lei Complementar 116/03, se revela como “política de justiça tributária”. Isto porque não seria justo cobrar o imposto sobre os serviços prestados pelos permissionários, autorizatários e concessionários de serviços públicos e deixar de fazê-lo sobre as atividades públicas exploradas em regime de delegação. 6. Já o Presidente da República, em sua respeitável peça informativa, reconhece a inconstitucionalidade dos referidos itens da lista apensa à lei em causa (fls. 152/153). No que foi integralmente seguido, acresça-se, pelo insigne Advogado-Geral da União (fls. 155). 7. Enfim, às fls. 157/167 dos autos, a douta Procuradoria-Geral da República também se manifestou pela procedência da ação direta. 8. Este o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): 9. Reconheço, de pronto, a legitimidade ativa da Anoreg. No que adiro ao pensar jurisprudencial desta Suprema Corte, notadamente pelo que foi decidido na ADI 1.751, Rel. Min. Moreira Alves. Além disso, entendo satisfeito o requisito da pertinência entre as finalidades institucionais da acionante e o centrado objeto desta ação. Assim como tenho por satisfeito o requisito da adequação entre a via processual de que se valeu a acionante e o objeto em si da discussão jurídica. 10. Explico. Tenho como de feição normativa os itens 21 e 21.01 da lista apensa à Lei Complementar federal 116/03 – objeto desta ação direta de inconstitucionalidade –, visto encerrarem comandos que não se exaurem com o ato em si de sua aplicação por lei municipal. É exprimir, permanecem eles como fundamento de validade de quantas leis municipais venham a ser editadas no sentido da instituição do ISS que neles se prevê. Noutros termos, trata-se de itens que se revestem da qualidade de lei em sentido material, por veicular enunciados 72 R.T.J. — 209 normativos abstratos. Enunciados ou relatos, como sabido, que se traduzem num vínculo funcional duradouramente renovável entre a hipótese de incidência e o mandamento (conseqüência) que lhes compõem a estrutura lógica1. 11. Passando agora ao exame de mérito da questão, relembro que a autora manejou a presente ação direta sob o fundamento de que os precitados itens 21 e 21.01, ao autorizar os Municípios a instituírem o ISSQN sobre “os serviços de registros públicos, cartorários e notariais”, violaram os arts. 145, inciso II; 150, inciso VI, a; 150, § 2º e § 3º, e art. 236, todos da Constituição Federal de 19882. 12. Pois bem, sobre o tema, começo por dizer que sua correta solução passa pela análise da natureza jurídica dos tais “serviços de registros públicos, cartorários e notariais”, que a Lei Maior da República sintetizou sob o nome de “serviços notariais e de registro” (art. 236, cabeça e § 2º). Quero dizer, a formulação de qualquer juízo de validade ou invalidade dos itens legais postos em xeque deve ser precedida de um cuidadoso exame do tratamento constitucional conferido às atividades notariais e de registro (registro “público” já é adjetivação feita pelo inciso XXV do art. 22 da Constituição, versante sobre a competência legislativa que a União detém com privatividade). 13. Com este propósito, anoto que as atividades em foco deixaram de figurar no rol dos serviços públicos que são próprios da União (incisos XI e XII do art. 21, especificamente). Como também não foram listadas enquanto competência material dos Estados, ou dos Municípios (arts. 25 e 30, respectivamente). Nada obstante, é a Constituição mesma que vai tratar do tema já no seu 1 A respeito da estrutura lógica da proposição jurídica, Lourival Vilanova comenta: “Como se vê, no interior desta fórmula, destacamos a hipótese e a tese (ou o pressuposto e a conseqüência). A estrutura interna desse primeiro membro da proposição jurídica articula-se em forma lógica de implicação: a hipótese implica a tese ou o antecedente (em sentido formal) implica o conseqüente. A hipótese é o descritor de possível situação fáctica do mundo (natural ou social, social juridicializada, inclusive), cuja ocorrência na realidade verifica o descrito na hipótese” (in As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 51). 2 “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...) II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; (...)” “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI – instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; § 2º A vedação do inciso VI, a, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. § 3º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exoneram o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.” R.T.J. — 209 73 derradeiro título permanente (o de número IX), sob a denominação de “disposições gerais”, para estatuir o seguinte: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normais gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 14. Mas não fica por aqui a regração constitucional-federal sobre a matéria, porque o ADCT também dispôs sobre o mesmo assunto, nos seguintes termos: Art. 32. O disposto no art. 236 não se aplica aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo poder público, respeitando-se o direito de seus servidores. 15. Pois bem, daqui se infere que, tirante os serviços notariais e de registro já oficializados até o dia 5 de outubro de 1988, todos os outros têm o seu regime jurídico fixado pela parte permanente da Constituição Federal. Mais precisamente, os demais serviços notariais e de registro têm o seu regime jurídico entralmente estabelecido pelo art. 236 da Lei Republicana. Um regime jurídico, além do mais, que pensamos melhor se delinear pela comparação com o regime igualmente constitucional dos serviços públicos, versados estes, nuclearmente, no art. 175 da Lei Maior3. Por isso que, do confronto entre as duas categorias de atividades públicas, temos para nós que os traços principais dos serviços notariais e de registro sejam os seguintes: I – serviços notariais e de registro são atividades próprias do Poder Público (logo, atividades de natureza pública), porém obrigatoriamente exercidas em caráter privado (CF, art. 236, caput). Não facultativamente, como se dá, agora sim, com a prestação dos serviços públicos, desde que a opção pela via estatal (que é uma via direta) ou então pela via privada (que é uma via indireta) se dê por força de lei de cada pessoa federada que titularizar tais serviços; II – cuida-se de atividades estatais cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação. Não por conduto dos mecanismos da concessão ou 3 “Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II – os direitos dos usuários; III – política tarifária; IV – a obrigação de manter serviço adequado.” 74 R.T.J. — 209 da permissão, normados pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dos serviços públicos; III – a delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. Ao revés, exprime-se em estipulações totalmente fixadas por lei. Mais ainda, trata-se de delegação que somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma “empresa” ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público; IV – para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos. Não por adjudicação em processo licitatório, regrado pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público; V – está-se a lidar com atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo (sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos). Atividades, enfim, que não se remunera por “tarifa” ou preço público, mas por uma tabela de emolumentos que se pauta por normas gerais estabelecidas em lei federal. Características de todo destoantes daquelas que são inerentes ao regime dos serviços públicos. 16. Numa frase, então, serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Categorizam-se como função pública, a exemplo das funções de legislação, justiça, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo senhorio estatal, passam a se confundir com serviço público4. Quero dizer: cometimentos que se traduzem em atividades jurídicas do Estado, sem adentrar as fronteiras da prestação material em que os serviços públicos consistem. 17. Em palavras outras, assim como o inquérito policial não é processo judicial nem processo administrativo investigatório, mas inquérito policial mesmo (logo, um tertium genus); assim como o Distrito Federal não é um Estado nem um Município, mas tão-somente o próprio Distrito Federal; assim como os serviços forenses não são mais uma entre tantas outras modalidades de serviço público, mas apenas serviços forenses em sua peculiar ontologia, ou autonomia entitativa, também assim os serviços notariais e de registro são serviços notariais e de registro, simplesmente, e não qualquer outra atividade estatal. 4 Como deflui da segura doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello (ver Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 15. ed., p. 611/620), dois elementos se combinam para a conceituação do serviço público: a) um elemento formal, que é o seu regime de Direito Público (centrado no art. 175 da Constituição, aduzimos), a significar sua regência por normas consagradoras tanto de prerrogativas quanto de encargos ou sujeições especiais; b) um elemento material, traduzido na efetiva ou na potencial oferta de comodidades ou utilidades materiais aos respectivos usuários, préstimos, esses, tão específicos quanto divisíveis. Leia-se: “Serviço Público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público (...)” (in Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 620). R.T.J. — 209 75 Sendo assim, não se prestam como “fato gerador” de nenhum imposto, porquanto protegidos pela regra geral da imunidade que se lê na alínea a do inciso VI do artigo constitucional de n. 150, in verbis: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – (...) VI – instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros. 18. Certo é, contudo, que a jurisprudência deste STF tem os serviços notariais e de registro como espécie de serviço público. Atividade estatal, sim, porém da modalidade serviço público. Em desabono, portanto, da qualificação jurídica aqui pessoalmente empreendida5. O que tangenciaria a questão para o âmbito material de incidência da regra exceptiva que se contém no § 3º do mesmo artigo constitucional federal de n. 150. É dizer: o que deflagraria, por exceção, o afastamento da imunidade recíproca entre as pessoas federadas e respectivas autarquias e fundações, em matéria de imposto. Exceção que o § 3º do art. 150 da Magna Carta Republicana assim verbaliza: Art. 150. (...) § 3º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exoneram o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel. 19. Bem vistas as coisas, porém, nem por isso a regra geral da imunidade recíproca seria de se afastar. É que também faz parte da jurisprudência da Casa o firme entendimento de que, sobre não pressupor o desempenho de atividade econômica, as custas dos serviços forenses e os emolumentos das atividades notariais e de registro têm caráter tributário. São verdadeiras taxas (e não tarifas ou preços públicos), remuneratórias de atividade estatal do tipo “vinculado”, atinentemente ao contribuinte; ou seja, taxas que têm por fato gerador uma individualizada atuação estatal de préstimo ao sujeito tributado. E isto já significa excluir a incidência do ISSQN, dado que a natureza desse tributo só pode ter por fato gerador uma situação desvinculada de qualquer atividade estatal voltada para o contribuinte6. Salvo se a própria Constituição admitisse o contrário, explicitamente, como de fato admitiu, ressalte-se, quanto às operações relativas 5 Veja-se, à guisa de ilustração, o que restou decidido no RE 209.354, Rel. Min. Carlos Velloso; ADI 865-MC, Rel. Min. Celso de Mello; ADI 1.709, Rel. Min. Maurício Corrêa; ADI 1.378, Rel. Min. Celso de Mello; e ADI 1.778, Rel. Min. Nelson Jobim; entre outras. 6 Art. 16 do Código Tributário Nacional: “Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.” 76 R.T.J. — 209 a energia elétrica e serviços de telecomunicações (passíveis de se tornar fatos geradores do ICMS, a teor do § 3º do art. 155)7. 20. Diante disso, ou seja, sob a categorização de atividade estatal nãoconstitutiva de serviço público, os serviços notariais e de registro escapam à incidência do ISSQN. É como dizer: trata-se de atividade genuinamente estatal que não se presta como fato gerador do imposto municipal, a despeito da regra geral de competência que se lê na alínea a do inciso III do art. 146 da Constituição, assim legendada: “Art. 146. Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.” 21. É o quanto me basta para votar pela procedência do pedido, declarando atentatórios da alínea a do inciso VI do art. 150 da Constituição de 1988 os itens 21 e 21.01 da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003. DEBATE O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro Carlos Ayres Britto, a atividade é exercida em caráter privado. O art. 236 da Constituição Federal refere-se a emolumentos. Se levarmos às últimas conseqüências essa óptica, quanto à prestação de serviços públicos, o que teremos em relação à permissão, à concessão? O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: No início da sessão de hoje, o advogado de uma concessionária de portos, serviço público, não discutiu, pelo contrário, se orgulhava de quanto contribui com um imposto sobre serviços. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Pois é. Uma empresa de sociedade de economia mista, uma empresa estatal. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Mas, assim, faremos da atividade notarial e de registro base imponível de duas exações: a primeira, taxa de polícia, por efeito da fiscalização que sobre... O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Quantos contribuintes submetem-se à taxa de polícia e a imposto sobre serviços? O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): A taxa de polícia em função do poder de polícia, próprio do Judiciário sobre essas atividades. O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): São questões diferentes. Fatos geradores diferentes. 7 Cujos dizeres são estes: “À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.” R.T.J. — 209 77 O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Então, estaremos a admitir um novo fato gerador. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É primoroso no voto de V. Exa. dizer que atividade notarial e de registro não é atividade privada, não é serviço público, é atividade notarial de serviço público e tem uma fisionomia toda própria. Agora, a minha primeira intervenção foi exatamente esta: se vamos levar essas definições para outros efeitos, às últimas conseqüências, a renda do cartório é tributária. Então como incidir o imposto de renda sobre uma renda tributária? VOTO (Antecipação) O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, peço vênia para antecipar o meu voto – claro, com o desejo de ouvir, ou daqui ou de lá, o voto do Ministro Joaquim Barbosa – para, com todas as vênias do eminente Relator, julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade. Creio que é atividade estatal delegada, tal como exploração de serviços públicos essenciais, mas, enquanto atividade privada, a meu ver, é um serviço sobre o qual nada impede a incidência do imposto sobre serviços. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Aliás, nos termos do art. 150, § 3º, ainda que fosse prestada pelo Estado diretamente, ficaria sujeita, porque relacionada com exploração econômica. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): A atividade é pública; agora, prestada em caráter privado. EXTRATO DA ATA ADI 3.089/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR (Advogados: Frederico Henrique Viegas de Lima e outros). Requeridos: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União) e Congresso Nacional. Decisão: Após o voto do Ministro Carlos Britto (Relator), julgando procedente a ação direta, e do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, julgando-a improcedente, pediu vista dos autos o Ministro Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, as Ministras Ellen Gracie (Presidente) e Cármen Lúcia. Falou pela requerente o Dr. Frederico Henrique Viegas de Lima. Presidência do Ministro Gilmar Mendes (Vice-Presidente). Presidência do Ministro Gilmar Mendes (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 20 de setembro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 78 R.T.J. — 209 VOTO (Vista) O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhora Presidente, trata-se de ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a e p, da Constituição) ajuizada pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) contra os itens 21 e 21.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/03. Sustenta a Requerente que as normas impugnadas violam os arts. 145, II, 156, III, e 236, caput, da Constituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) permite a incidência do tributo tão-somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Segundo entende a requerente, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofende o art. 150, VI, a e § 2º e § 3º, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados. Opinou o Procurador-Geral da República pela procedência da ação (fls. 157-167). Iniciado o julgamento na sessão de 20 de setembro de 2006, ponderou o eminente Ministro Relator, Carlos Britto, que as atividades notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas que não se subsumiam ao conceito de serviços públicos. Com base em tal juízo, S. Exa. desenvolveu duas linhas de argumentação para concluir pela procedência da ação. Inicialmente, apontou o eminente Ministro Relator que os serviços notariais possuem inequívoca índole estatal e representam o exercício de função pública, sendo, portanto, imunes à tributação recíproca por impostos (art. 150, VI, a, da Constituição). Em seguida, observou S. Exa. que o ISS, por se tratar de tributo necessariamente não-vinculado ao desempenho de atividade estatal, não poderia incidir sobre a atividade notarial. Tais serviços somente podem ser tomados como hipóteses de incidência de taxas, que são tributos vinculados. Iniciados os debates, ponderou o eminente Ministro Marco Aurélio acerca do alcance da orientação adotada pelo Ministro Relator à tributação dos serviços públicos cuja execução é concedida ou permitida ao particular. Tal ponderação foi acompanhada pelo Ministro Sepúlveda Pertence ao adiantar o respectivo voto. Pedi vista dos autos para melhor bbbanalisar a matéria. Os autos vieram conclusos ao Gabinete em 10‑11‑06. Peço vênia ao eminente Ministro Relator para divergir. Examino, em primeiro lugar, a extensão da imunidade recíproca aos serviços notariais. Considero que a tributação a título de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, recebidos por particulares como contraprestação pelo exercício delegado de serviços notariais e de registro (art. 236, caput, da Constituição), não viola a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição. R.T.J. — 209 79 Assim entendo, pois a tributação, nessas bases, é coerente com as garantias federativas que a Constituição busca assegurar com o implemento da imunidade recíproca. Inicialmente, anoto que a atividade notarial é sempre exercida por entes privados, mediante contraprestação com viés lucrativo, posto que de índole estatal, submetida ao poder de polícia do Judiciário (art. 236, caput e § 1º e § 2º, da Constituição). A circunstância de a atividade ser remunerada, isto é, explorada com intuito lucrativo por seus delegados já atrairia, por si somente, a incidência do art. 150, § 3º, da Constituição, que textualmente dispõe: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) VI – instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; (...) § 3º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel. (Grifei). Ademais, não há como conciliar a função a que se destina a imunidade recíproca com o efeito jurídico e pragmático pretendido pela requerente. Observo que a imunidade tributária recíproca opera como mecanismo de ponderação e calibração do pacto federativo, destinado a assegurar que entes desprovidos de capacidade contributiva vejam diminuída a eficiência na consecução de seus objetivos definidos pelo sistema jurídico. Por outro lado, a imunidade recíproca também é uma clara salvaguarda contra o risco de utilização de tributos como instrumento de pressão econômica entre os membros do pacto federativo. McCulloch v. Maryland, conhecido lead ing-case de 1819, é referência máxima na matéria. Nesse sentido, tanto os objetivos como os efeitos do reconhecimento da aplicação da imunidade recíproca são passíveis de submissão ao crivo jurisdicional, em um exame de ponderação e proporcionalidade, não bastando a constatação objetiva da natureza pública do serviço que se está a tributar. Assim, a imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Vale a pena citar, a propósito, as judiciosas palavras do Juiz Stone, da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, que, com as devidas ressalvas, lançam luzes esclarecedoras sobre a questão em debate: 80 R.T.J. — 209 Assinalou-se (nos precedents Helvering v. Mountain Producers Corporation e Helvering v. Gerhardt) que a imunidade implícita de um governo e de seus entes administrativos em relação à taxação por outro (ente governamental), como princípio de interpretação constitucional, deve ser objeto de interpretação restritiva. É que a expansão da imunidade de um ente federativo restringe, em igual medida, o poder soberano de tributar de outra entidade federativa, e quando a imunidade é invocada pelo particular ela tende a operar em seu próprio benefício, às expensas do poder tributante e sem o benefício correspondente para o ente governamental em cujo nome a imunidade é invocada. (Graves v. N.Y. ex rel. O´Keefe, 306 U.S. 483 1938 – Grifei.) Registro, ainda, semelhante opinião de Misabel Derzi, verbis: [...] a imunidade recíproca não beneficia particulares, terceiros que tenham direitos reais em bens das entidades públicas, nem créditos ou rendas de outrem contra tais entidades como queria Pontes de Miranda – cessando os “odiosos” privilégios de funcionários públicos, magistrados, parlamentares ou militares; não se estende, pelos mesmos fundamentos, aos serviços públicos concedidos, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar impostos relativamente ao bem imóvel. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed., at. Misabel Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 295.) Entendo que a circunstância objetiva de o serviço tributado ter índole pública não justifica que a imunidade tributária tenha como efeito colateral a concessão de vantagem que não se coadune com os objetivos salvaguardados pela medida. Assim entendo, em primeiro lugar, porque a tributação de serviço de índole pública, mas explorado economicamente por particular não implica risco algum ao equilíbrio entre os entes federados e, em segundo, porque os agentes notariais demonstram capacidade contributiva objetiva, por se dedicarem com inequívoco intuito lucrativo à atividade. Com efeito, a tributação em exame onera riqueza destinada à incorporação ao patrimônio de particulares, e não a renda ou o patrimônio dos entes federados. Assumindo-se, com base na teoria de Paulo de Barros Carvalho8, que a base de cálculo do tributo reflete o respectivo critério material da hipótese de incidência, não há impedimento para que o ISSQN incida sobre o serviço, na medida em que aproveita financeiramente ao prestador e não ao Estado. Reconhecer a aplicabilidade da imunidade recíproca à tributação de serviço público explorado com intuito lucrativo por particulares redundaria, em última análise, a privilegiar a exploração econômica particular, e não o pacto federativo. Por fim, sob o ângulo da relevância do pacto federativo e da capacidade contributiva, a atividade notarial é em tudo semelhante aos demais serviços públicos concedidos, como o fornecimento de energia elétrica (art. 21, XII, b, da 8 Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 332. R.T.J. — 209 81 Constituição – incidência de ICMS), os serviços locais de fornecimento de gás canalizado (art. 25, § 2º, da Constituição – incidência de ICMS), a prestação de serviços de telecomunicação (art. 21, XI, da Constituição – incidência de ICMS), a manutenção e conservação de estradas de rodagem (incidência de ISSQN) etc. Em todos os casos, a presença de um agente com propósito de lucro, que deverá suportar inicialmente o ônus da tributação, afasta o risco ao equilíbrio entre os entes federados e confirma, objetivamente, que o tributo será suportado por quem demonstre capacidade contributiva. A circunstância de o valor das taxas, e, conseqüentemente, do valor destinado ao notário como contraprestação pelo serviço, sujeitarem-se à definição pelo poder público não impressiona, já que os serviços concedidos, e normalmente tributados, também podem se submeter ao mesmo tipo de restrição. As qualidades intrínsecas da Pessoa Política, em especial a imunidade tributária, não se comunicam ao delegatário. A imunidade recíproca só se aplica quando o ente político presta o serviço. Se este é prestado por permissionários, concessionários ou delegatários, em caráter privado, não há que se falar em imunidade. Assim, as atividades notariais e de registro se subsumem à exceção prevista no art. 150, § 3º, da Constituição, pelo que podem ser tributadas a título do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, tal como previsto nos itens 21 e 21.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/02. Passo a examinar a incidência do imposto sobre atividade vinculada à atuação estatal. Como bem observou o eminente Ministro Carlos Britto, a jurisprudência predominante da Corte reconhece a índole estatal dos serviços, bem como que tal materialidade constitui hipótese de incidência típica de taxa. Contudo, como busquei expor, não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas. A tributação de ambos os tipos de atividade se justifica mediante o exame da capacidade contributiva tanto da atividade quanto dos agentes que a exploram com viés econômico. A Constituição comete expressamente aos municípios e ao Distrito Federal competência para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, ainda que públicos, quando desempenhados por particulares mediante remuneração. A circunstância de os serviços notariais delegados corresponderem a uma terceira classe não afasta suas demais notas, especialmente a de ser prestação de fazer onerosa, executada por particular com interesse econômico próprio. Trata-se, portanto, de serviço de qualquer natureza, não compreendido no âmbito do Imposto sobre Serviços de Comunicações e Transportes Intermunicipais (ICMS). Do exposto, e renovando o pedido de vênia ao eminente Relator, julgo improcedente esta ação direta de inconstitucionalidade. É como voto. 82 R.T.J. — 209 VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhora Presidente, ouvi com todo interesse e atenção o cuidadoso e belo voto do Ministro Joaquim Barbosa; porém, peço vênia a S. Exa. para persistir no meu ponto de vista, cuja base lógica principia com essa distinção que venho fazendo, já de algum tempo, entre serviços notariais e de registros, de uma parte, e, outra, de serviços públicos. Entendo que a Constituição deixa bem claro que os serviços notariais e de registros são atividades estatais sim, como são atividades estatais as de diplomacia, segurança pública, defesa nacional, atividade legislativa e a própria jurisdição. Mas, nem por isso, significam ou se traduzem essas atividades em serviço público. Daí, eu peço vênia para reproduzir: “I – serviços notariais e de registro são atividades própria do Poder Público (logo, atividades de natureza pública)” (fls. 5, voto escrito), mas com uma peculiaridade: elas são “obrigatoriamente exercidas em caráter privado”, salvo aquelas oficializadas quando da edição da nossa Constituição. Não são atividades facultativamente exercidas em caráter privado, e sim obrigatoriamente. Os serviços públicos podem ser prestados tanto de modo direto pelo poder público como de modo indireto pelos particulares. Os serviços públicos são traspassados para os particulares – diz o art. 175 – por permissão ou concessão; as atividades notariais e de registro, não. O seu transpasse ou traspasse se dá obrigatoriamente por delegação. A delegação que timbra essa funcionalidade dos serviços notariais e de registro não se traduz, não se faz por conduto de contrato, não se faz pela via da contratação. Ao revés, ela se exprime em estipulações totalmente fixadas por lei. É a lei que fixa as condições da própria delegação. Ainda mais: trata-se de delegação que só “pode recair sobre pessoa natural” (fl. 6, voto escrito). Não se delega uma atividade notarial e de registro a uma empresa, e sim, obrigatoriamente, a uma pessoa natural, prestadora de concurso público e de provas. Os serviços públicos não podem ser concedidos ou permitidos a uma pessoa natural. Têm que ser por uma empresa – a Constituição fala em empresa – e mediante licitação, obrigatoriamente. São serviços que não podem ser objeto de contrato sem a precedência de licitação. Os serviços públicos são fiscalizados pelo Poder Executivo, quando delegados ou concedidos. As atividades de que estamos a cuidar são fiscalizadas pelo Poder Judiciário. Os serviços públicos, quando entregues o seu exercício ou a sua prestação à iniciativa privada, são remunerados por tarifa ou preço público. Ao passo que as atividades notariais e de registro são remuneradas por emolumentos, que têm a natureza, segundo o Supremo Tribunal, de tributo – mais de perto –, de taxa. Os emolumentos têm a natureza jurídica de taxas. Aliás, uma das R.T.J. — 209 83 razões pelas quais entendo que os emolumentos, correspondendo à remuneração do titular da delegação, revestindo a natureza de taxa, não podem servir de base de cálculo para o imposto, que não pode ter por base de cálculo aquela que já serviu para incidência de uma taxa. Recentemente, encontrei no magistério de Clélio Chiesa, dizendo, depois de citar jurisprudência do STJ e do Supremo: Vê-se então que, consoante entendimento jurisprudencial e doutrinário, os serviços notariais e de registro têm natureza pública e a contraprestação paga aos serventuários tem natureza tributária de taxa: Logo, com espeque nessas premissas, as atividades dos cartórios não podem ser tributadas por meio de ISSQN, haja vista que os valores pagos a título de taxa não podem integrar a base de cálculo de um imposto. Sem falar que imposto pressupõe um atividade estatal desvinculada do contribuinte, e, aqui, o que se tem é uma atividade estatal vinculada ao contribuinte; ou seja, essa taxa que se paga para remunerar o titular da delegação significa uma atividade materialmente vinculada ao próprio usuário – vou chamar usuário impropriamente –, ao próprio utente dos serviços notariais e de registro. No voto do Ministro Joaquim Barbosa, pareceu-me que – se estiver errado peço a S. Exa. que me corrija – o principal fundamento foi o § 3º do art. 150 da Constituição. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Ele e mais a essência da imunidade tributária recíproca. Enquanto V. Exa. põe ênfase na natureza do serviço, ponho ênfase naquilo que poderíamos chamar de a essência dos objetivos, a finalidade da imunidade recíproca, que não é beneficial ao particular. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Esse § 3º excepciona a regra da imunidade tributária recíproca quanto a imposto. Como excepciona, deve ser interpretado restritivamente. O fato que se diz é o seguinte: § 3º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas [não é o caso] regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário (...). Entendo que a Constituição, ao falar de preços ou tarifas, não o fez aleatoriamente; a Constituição foi técnica, soube distinguir preço, tarifa e emolumentos. Acho que a Constituição, quando quer empregar preços ou tarifas e usuários, está se referindo aos serviços públicos. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Ministro, mas há uma alternativa genérica: contraprestação. Aí, abrange taxa. 84 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Contraprestação ou pagamento de quê? De preços ou tarifas. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Não, o texto não é esse. De contraprestação ou pagamento de preço ou tarifa – são duas hipóteses. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Sim, mas contraprestação sem citar emolumentos. Convenhamos que V. Exa. esteja certo, contraprestação seja uma terceira modalidade, inconfundível com preço ou tarifa; o fato é que a Constituição conferiu aos serviços notariais e de registro um tratamento em apartado, art. 236, específico e até detalhado, traçou o regime jurídico da atividade. Penso que, se a Constituição quisesse fazer dessa atividade uma exceção a mais à regra da imunidade tributária recíproca, teria dito. De todo modo, nós já decidimos que sobre as atividades notariais e de registro pode incidir uma taxa de polícia, em favor do Poder Judiciário. Se admitirmos, agora, que também pode incidir sobre essas atividades o ISS, estaremos sobre a mesma atividade, a mesma base de cálculo, fazendo incidir um imposto e uma taxa. De qualquer sorte, homenageio o Ministro Joaquim Barbosa, que oferece as V. Exas. uma alternativa de voto, muito bem fundamentada; porém, peço vênia para porfiar no meu ponto de vista. O Ministro Sepúlveda Pertence já havia votado, então estendo as minhas homenagens a S. Exa. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Eu não as mereço, porque é um voto, ao que me lembro, de duas palavras. As honras são do Ministro Joaquim Barbosa que produziu um voto exemplar. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Mas o Ministro Sepúlveda Pertence é reconhecidamente o mestre de todos nós. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Já estou me entusiasmando pela tese. Como advocacia é função essencial à Justiça, também vamos reivindicar imunidade tributária, que paga taxa de polícia, contribuição de OAB, imposto sobre serviços. Se há outra contraprestação de serviços que não seja preço ou tarifa, previstos na Constituição, acho que outra forma típica de contraprestação de uso de serviços estatais é a taxa. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): De todo modo estaremos inovando, parece-me, no sentido de admitir a incidência de um imposto sobre uma atividade estatal específica em relação ao contribuinte, e não inespecífica. Mas, persisto no voto, com todas as vênias. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhora Presidente, eu também vou pedir muitas vênias ao Ministro Carlos Britto, cujo voto, agora relembrado por ele, foi muito bem fundamentado; porém já me manifestei até em parecer sobre a matéria, e, portanto, vou acompanhar a divergência iniciada com o Ministro R.T.J. — 209 85 Sepúlveda Pertence, numa sessão a que estive ausente, e, agora, com as achegas muito bem postas pelo brilhante voto do Ministro Joaquim Barbosa. Voto, portanto, pela improcedência, acompanhando a divergência. VOTO O Sr. Ministro Eros Grau: Senhora Presidente, quero inicialmente me reportar à ADI 2.602, da qual fui Relator para o acórdão. E vou pedir vênia ao Ministro Carlos Britto para também divergir. Aqui, não se trata de serviço público. Há uma atividade estatal exercida em caráter privado, por delegação do poder público. São serviços. Lembro-me que há uma distinção, que não tem nada de jurídico, que fazem os bibliotecários para classificar livros jurídicos: em um número determinado, “serviço público”; em outro número, “serviços públicos”. Precisamos fazer essa distinção fundamental. Como aqui não há serviço público, não há que falar em patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. Porque a alusão do art. 150 é a serviço público. E, aqui, nitidamente, há atividade estatal vinculada à idéia de poder de polícia, registro da propriedade. Aliás, uma função bem própria do Estado que atua entre nós, o Estado defensor da propriedade. De todo modo, quero dizer que não vejo serviço público aí, nos termos referidos pelo art. 150. Essas conclusões são coerentes com inúmeros outros votos que tenho dado sobre a matéria. Peço vênia ao Ministro Carlos Britto para acompanhar a divergência. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhora Presidente, também peço vênia ao Ministro Carlos Britto para acompanhar a divergência. VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Senhora Presidente, eu também confesso que, inicialmente, fiquei bastante impressionado com o voto proferido pelo Ministro Carlos Britto; todavia, a mim me parece, e como já foi observado aqui pelo Ministro Sepúlveda Pertence, hoje pelo Ministro Joaquim Barbosa e, agora, pelos que o seguiram, temos uma ampliação significativa dessa idéia de serviço público a ser coberta pelo conceito de imunidade recíproca. Em relação a esta matéria, realmente, temos algumas ambigüidades institucionais a partir do modelo constitucional, fixado na Constituição de 1988. A própria idéia de delegação acaba por gerar esse tipo de ambigüidade e ambivalência. De resto, como bem observou o Ministro Joaquim Barbosa, este conceito há de ser utilizado, talvez, tendo em vista a finalidade ou certa concepção estrita, na medida em que – vamos usar o termo apenas para fins de esclarecimento – se 86 R.T.J. — 209 privatizam, retiram o caráter público de determinadas atividades, e, hoje, são tantas as que têm sido objeto desse tipo de ação por razões as mais diversas, e se mantivermos a idéia de que esse serviço continua a ser público, vamos ter de enfrentar alguns dilemas. É claro que, aqui ou acolá, estaremos diante de algum dilema hermenêutico, tendo em vista uma interpretação teleológica que se reclama. Lembrava, creio, o Ministro Pertence, que, se adotássemos essa idéia de imunidade recíproca em relação a esses serviços, certamente nós chegaríamos a ter que discutir, ou poderemos discutir, em breve, a imunidade desses serviços em relação à própria incidência do imposto de renda. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A tentativa de extinção está muito bem feita no memorial, mas dela não me convenci, é expresso que a imunidade tributária envolve patrimônio, rendas e serviços. O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Também não me parece que seja de aceitar a tese, muito bem posta pelo Ministro Carlos Britto, de que, aqui, estaríamos tendo a cobrança de um imposto sobre taxa, na verdade é sobre o próprio serviço, usa-se, eventualmente, a taxa ou os emolumentos como índice, ou como referência apenas para fins de cobrança. O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Essa taxa é cobrada do usuário, o imposto sobre serviços é do delegatário. O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas o argumento é muito bem posto, porque, de fato, enquanto taxa, é típico serviço público, nós teríamos, então, uma incongruência interna. Na verdade, por definição, o imposto sobre serviços é imposto sobre a atividade ou serviço. Pedindo as vênias devidas ao Ministro Carlos Britto, acompanho a divergência instaurada a partir do voto do Ministro Sepúlveda Pertence. EXTRATO DA ATA ADI 3.089/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR (Advogados: Frederico Henrique Viegas de Lima e outros). Requeridos: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União) e Congresso Nacional. Decisão: Após o voto-vista do Ministro Joaquim Barbosa, acompanhando a divergência inaugurada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que julgava improcedente a ação, no que foi acompanhado pela Ministra Cármen Lúcia e pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Gilmar Mendes, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e R.T.J. — 209 87 Cármen Lúcia. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 26 de abril de 2007 — Luiz Tomimatsu, Secretário. VOTO (Vista) O Sr. Ministro Marco Aurélio: A Associação dos Notários e Registradores (ANOREG) questiona os itens 21 e 21.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/03, que prevêem, como fato gerador do Imposto Sobre Serviços (ISS), os serviços de registros públicos cartoriais e notariais. A Associação sustenta que a inclusão de tais atividades no rol de incidência do ISS fere o art. 236 da Constituição Federal, conforme o qual os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. O argumento da entidade é que esses serviços são públicos, derivados de delegações da atividade estatal, e a cobrança de valores para a respectiva prestação possui a natureza jurídica de taxa, estabelecida pelo Estado. A premissa da Anoreg é única: sendo a atividade notarial um serviço público e considerada a previsão constitucional da imunidade tributária recíproca, vedada a instituição, pelos entes federados, de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços de cada qual, a cobrança do ISS sobre a atividade notarial implica o pagamento de exação, destinada aos municípios com base em fato gerador que configura serviço de titularidade do Estado. O Relator acolheu o pedido formulado, apontando que os serviços notariais e de registro estão alcançados pela regra do inciso VI do art. 150 da Carta da República. O tributo em causa, segundo S. Exa., somente pode ter por fato gerador uma situação desvinculada de qualquer atividade estatal voltada para o contribuinte. Evocou o disposto no § 3º do art. 155 do Diploma Maior, afirmando que somente seria possível a incidência caso a Constituição Federal explicitamente a contemplasse, como o fez, em tal preceito, quanto às operações relativas à energia elétrica e aos serviços de telecomunicações. O Ministro Sepúlveda Pertence antecipou o voto. Consignou, em síntese, que o serviço notarial e de registro constitui atividade estatal delegada, tal como a exploração de serviços públicos essenciais, mas, enquanto atividade privada, é um serviço sobre o qual nada impede a incidência do ISS. Seguiu-se pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, que também divergiu do Relator, ressaltando: a – a atividade notarial é exercida por entes privados, havendo o viés lucrativo; b – a imunidade mostra-se uma garantia de entidades políticas federativas, e não de particulares; c – a tributação de serviços de índole pública, mas em atividade explorada economicamente por particular, não implica risco à harmonia federativa; 88 R.T.J. — 209 d – os agentes notariais possuem capacidade contributiva, por se dedicarem a atividade lucrativa; e – a atividade notarial é, em tudo, semelhante aos demais serviços públicos concedidos, não existindo motivo para tributar os serviços públicos concedidos e deixar de fazê-lo quanto às atividades delegadas. Essa corrente foi endossada pela Ministra Cármen Lúcia e pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Gilmar Mendes. Formulei o pedido de vista em abril de 2007, examinando o processo em 25 de janeiro de 2008, ou seja, com o sacrifício das férias coletivas. Apresento motivos para a demora na liberação deste processo. Difícil é conciliar celeridade e conteúdo em razão da carga invencível de processos que vem sendo suportada pelo Supremo. No ano passado, liberei 13.275 processos, número que somente se justifica ante casos repetidos. Também respalda a demora a circunstância de vir atuando simultaneamente, sem dispensa de distribuição, exceto de processos urgentes em curtos períodos – nos três meses anteriores e no mês posterior ao pleito eleitoral, art. 67, § 5º, do Regimento Interno –, nesta Corte e no Tribunal Superior Eleitoral, cumulando, neste último, a parte administrativa e judicante. Lanço o registro para efeito de simples documentação e histórico. Reporto-me ao voto proferido no RE 178.236-6/RJ, que posteriormente reiterei na apreciação da ADI 2.602-2/MG. Também ao votar relativamente ao pedido de concessão de medida acauteladora na ADI 1.800-1/DF, frisei que uma nova realidade foi inaugurada com a Constituição de 1988, dando-se ênfase à atuação cartorária em caráter privado. Procedi à releitura do art. 236 do Diploma Maior, a estabelecer que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. Então, ressaltei: (...) Ora, podemos interpretar esse preceito pinçando e potencializando o vocábulo “delegação”, olvidando normas contidas na própria Constituição? Olvidando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que são ínsitos à Constituição Federal, à Lei Maior do País? Penso que não, isso a ponto de simplesmente indeferirmos a liminar pleiteada. A referência à delegação não me sensibiliza, porque o serviço deve ser exercido e sabemos que existem despesas; sabemos que, no caso, os Cartórios devem contratar empregados, devem funcionar em um certo local e, portanto, têm despesas a serem executadas. Indispensável é que haja uma fonte de receita. O Estado, pela simples circunstância de lançar mão da delegação, não pode, sob pena de desrespeitar-se o texto da própria Carta da República, chegar ao ponto de inviabilizar o serviço que esta delegação visa alcançar. (...) A Constituição Federal é um grande todo e os dispositivos que a integram, considerado certo conflito de interesses, devem ser interpretados de forma sistemática. O figurino constitucional quanto ao tributo em causa revela competir aos municípios instituir impostos “sobre serviços de qualquer R.T.J. — 209 89 natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Os serviços excluídos dizem respeito ao transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação, inclusive quando as prestações se iniciem no exterior. Consta do art. 150 a vedação de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituírem impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. De início, o preceito encerra visão única sobre a atuação pública, pressupõe que a relação jurídica estabelecida envolva diretamente um dos entes mencionados – União, estados, Distrito Federal ou municípios. Vale dizer: exclui o art. 150 da Constituição Federal a colocação de qualquer deles como contribuinte. Ora, isso não ocorre quando se trata de serviço notarial e de registro exercido em caráter privado por terceiro, pouco importando que o seja por delegação do poder público. O terceiro mostra-se um contribuinte em potencial. Há mais. Continuando na interpretação sistemática de dispositivos da Carta da República, o que se pode constatar no tocante às operações relativas à energia elétrica, aos serviços de telecomunicações, aos derivados de petróleo, aos combustíveis e minerais do País? A própria Constituição Federal disciplinou a incidência de tributos. Admitiu como regra, é certo, a não-incidência, mas contemplou exceção no que se refere a operações alusivas à circulação de mercadorias e à prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação, ao imposto de importação de produtos estrangeiros e ao de exportação para o exterior de produtos nacionais ou nacionalizados. Em síntese, o preceito permite a incidência sobre a prestação de serviços, muito embora o faça de modo limitado. Pois bem, quanto aos serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, há regra limitadora da incidência de tributos? A resposta é desenganadamente negativa e, inexistente a vedação constitucional, deve-se entender adequada a cobrança. O fato de o serviço ser remunerado mediante emolumentos, mediante taxa, não exclui a incidência do ISS. Conclusão diversa implicaria desconhecer a incidência deste, afastadas as exceções contempladas na Constituição Federal, relativamente a serviços explorados economicamente, tomado este vocábulo de forma linear. Da mesma maneira que se mostra consentânea com a Carta a previsão alusiva ao Imposto de Renda – art. 8º da Lei 7.713/88 –, tem-se como constitucional a lei complementar em questão, a versar a satisfação do Imposto Sobre Serviços. No tocante à base de incidência, descabe a analogia – profissionais liberais, Decreto-Lei 406/68 –, caso ainda em vigor o preceito respectivo, quando existente lei dispondo especificamente sobre a matéria. O art. 7º da Lei Complementar 116/03 estabelece a incidência do tributo sobre o preço do serviço. Acompanho, com a vênia do Relator, a corrente iniciada, com antecipação de voto, pelo Ministro Sepúlveda Pertence e julgo improcedente o pedido formulado na inicial. É como voto na espécie. 90 R.T.J. — 209 VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhora Presidente, quero fazer um breve relato do meu posicionamento jurídico nesta ação direta de inconstitu cionalidade. Os eminentes Ministros que discordaram do meu voto, no fundo, basearamse, como se baseiam, no entendimento de que a atividade notarial e de registro é constitutiva de serviço público e, como tal, cai na exceção de que trata o art. 150, § 3º, da Constituição. Vale dizer, o art. 150 consagra como regra geral a imunidade tributária ao dizer que é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros. Essa é a regra geral da imunidade tributária ou de impostos. Mas o mesmo art. 150 diz que: § 3º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados [e vem a parte que mais interessa] ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário (...) A parte final é a que interessa para a solução da lide. Venho defendendo, convictamente, a tese de que serviço notarial e de registro não é serviço público; é atividade estatal, genuína, necessária; é uma função do Estado, como sucede com a diplomacia, o trânsito e a própria jurisdição. É uma atividade estatal, sem dúvida, mas não constitutiva de serviço público. Regime Jurídico, como sabemos, é o modo normativo de ser de uma figura de direito, de um instituto, de uma instituição. Quando fazemos uma comparação entre o regime jurídico dos serviços notariais e de registro e o Regime Jurídico do Serviço Público, só encontramos discrepâncias, e não convergências. Por isso, no meu voto, disse o seguinte: I – serviços notariais e de registro são atividades próprias do poder público (logo, atividades de natureza pública), porém obrigatoriamente exercidas em caráter privado (CF, art. 236, caput). Refiro-me às serventias extrajudiciais. O exercício da atividade ao particular não é facultado; não há discricionariedade. O serviço notarial e de registro há de ser transpassado para o particular. Este recebe, por delegação, a atividade, habilitando-se não em licitação, mas num concurso público. Ao passo que o serviço público que é transpassado para a iniciativa privada só pode ser a ela repassado, no seu exercício, mediante licitação e assinatura de contrato – de permissão ou de concessão. O notário não assina contrato algum; não há vínculo contratual entre ele e o poder público. Ele se investe na titularidade do serviço notarial e de registro R.T.J. — 209 91 mediante concurso público e por um ato unilateral do poder público chamado delegação. A contraprestação remuneratória da atividade do notário não se dá mediante tarifa ou preço público, mas por emolumento, ou emolumentos, os quais, segundo o Supremo Tribunal, têm caráter tributário, correspondem à taxa. Demais disso, enquanto o serviço público só pode ser transpassado para a iniciativa privada em benefício de uma empresa, o serviço notarial e de registro, não: é insuscetível de transpasse para o exercício empresarial; só pode ser exercido por delegação a um particular, ou seja, a uma pessoa natural. Portanto, avulta da Constituição toda essa pletora de diferenciação de regime jurídico. Para mim, não há como confundir serviço notarial e de registro com serviço público. Ora, sendo assim, se não é serviço público, nenhuma relação tem com a inserção de que trata o § 3º do art. 150 da Constituição. A regra geral a aplicar é a da imunidade do imposto. Se não bastasse, no caso, está a acontecer o seguinte: o município pretende instituir o imposto sobre serviços de qualquer natureza, mas tendo por base de cálculo uma taxa (emolumentos, dissemos). Quero dizer, é um imposto sobre taxa. Uma taxa imposta aos usuários dos serviços notariais, o que não é juridicamente possível. Para arrematar, sabemos que imposto pressupõe uma atividade estatal desvinculada do contribuinte. Ou seja, o Estado, quando institui imposto, não se vincula ao contribuinte por um serviço a este prestado; por uma atividade vinculada ao contribuinte. No caso, não: o serviço notarial é uma atividade diretamente vinculada ao usuário do cartório. Não se trata de atividade estatal desvinculada do contribuinte, para, então, servir como base de cálculo para o imposto. Por essas razões é que mantendo o meu voto. EXPLICAÇÃO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Ministro Carlos Ayres Britto, se V. Exa. me permite, tenho até algumas dúvidas quanto à natureza jurídica do que recolhido por aqueles que acorrem visando à prestação desses serviços. Num primeiro passo – é uma idéia que ainda será objeto de reflexão –, quando a Constituição Federal, no art. 145, se refere a taxa, ela o faz quanto a uma cobrança direta – é a regra, pelo menos –, efetuada pela pessoa jurídica de direito público. No caso, a atividade é exercida em caráter privado, e o numerário satisfeito por aqueles que buscam o serviço público não é recolhido aos cofres públicos. Daí haver, por exemplo, a incidência do imposto de renda. O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): É o único caso em que um tributo é recolhido pelo particular em benefício do particular, o que faz parte do regime jurídico da atividade notarial e de registro. Trata-se de uma atividade tão peculiar que até nisso se distingue de qualquer outra, sobretudo do serviço público. 92 R.T.J. — 209 A atividade, em si, é pública, porém o seu exercício é delegado a uma pessoa privada singular, pessoa natural, jamais a uma empresa. É o único serviço público, nesse caso, que não seria entregue a uma empresa, porque todos os outros o são, por delegação ou concessão. Esse não tem nada a ver com uma empresa, é um particular que se habilitou em concurso público de provas e de provas e títulos. EXTRATO DA ATA ADI 3.089/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Relator para o acórdão: Ministro Joaquim Barbosa. Requerente: Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR (Advogados: Frederico Henrique Viegas de Lima e outros). Requeridos: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União) e Congresso Nacional. Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por votação majoritária, julgou improcedente a ação direta, vencido o Ministro Carlos Britto (Relator), que a julgava procedente. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Redigirá o acórdão o Ministro Joaquim Barbosa, ora licenciado, mas com voto proferido em assentada anterior. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 13 de fevereiro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 93 AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 3.208 — RN Relator: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski Agravante: Estado do Rio Grande do Norte — Agravado: Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal (Proc 001.97.007853-7) — Interessados: Anaíde Bezerra Revoredo e outros Agravo regimental em reclamação. Vencimentos. Servidor público estadual. URV. Inaplicabilidade do entendimento sedimentado na ADI 1.797/PE. Limitação temporal. Impossibilidade. Agravo improvido. I – O objeto da ADI 1.797/PE é ato administrativo restrito aos membros e servidores do Tribunal Regional do Trabalho (6ª Região), matéria estranha à debatida nestes autos. Ausência de identidade material. Precedente: Rcl 2.916/RN, Rel. Min. Gilmar Mendes. II – O entendimento firmado na ADI 1.797/PE foi superado no julgamento da ADI 2.323-MC/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, pois não se trata de reajuste ou aumento de vencimentos. Incabível, portanto, a limitação temporal. III – Agravo regimental improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, negar provimento ao recurso de agravo. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Celso de Mello, Ellen Gracie e Menezes Direito e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, 25 de junho de 2008 — Ricardo Lewandowski, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental interposto pelo Estado do Rio Grande do Norte contra decisão proferida às fls. 207-209, em que o então Min. Carlos Velloso negou seguimento à presente reclamação proposta contra decisão proferida pelo Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal, que determinou a implantação do índice de correção de 11,98%, referente à conversão de cruzeiros reais para URV sobre o vencimento dos interessados, desconsiderando compensações supostamente devidas e os eventuais limites temporais. 94 R.T.J. — 209 Irresignado, o Estado do Rio Grande do Norte interpôs o presente recurso de agravo regimental. Alega-se afronta ao decidido na ADI 1.797/PE, sustentando-se que, apesar da mencionada ação direta de inconstitucionalidade fazer referência a servidores públicos e membros da magistratura federal, com a aplicação da vinculação dos motivos determinantes da sentença, poder-se-ia aplicar o julgado ao caso em comento. À fl. 226, o Ministro Carlos Velloso solicitou informações à Procuradoria-Geral da República, que assim se manifestou (fls. 228-230): Conforme já ressaltado pelo Ministro Relator, a ADI 1.797 não tem aplicabilidade ao presente caso. Naquele julgamento o Supremo Tribunal Federal apreciou uma decisão administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (Recife/PE), que estendeu a seus servidores e magistrados a diferença remuneratória de 11,98%, decorrente de erro verificado na conversão de cruzeiros reais em URV. Outro, porém, é o caso aqui versado. A decisão impugnada nessa reclamatória é do Juízo de Direito do Estado do Rio Grande do Norte. Apesar de o tema de fundo guardar semelhança com a matéria debatida na ADI 1.797 – conversão do valor dos vencimentos dos servidores públicos de cruzeiro real para URV –, constata-se que o provimento reclamado buscou fundamento em ato normativo diverso daquele impugnado na ação direta sob comento, até mesmo porque a decisão administrativa ali questionada tem incidência restrita aos membros e servidores do TRT da 6ª Região. Nestes termos, exsurge evidente a impropriedade do paradigma invocado. E não tem aqui aplicação, como pretende o Estado agravante, a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Apesar de haver sido invocada em algumas poucas decisões desse Supremo tribunal, essa tese não encontra amparo na jurisprudência consolidada desta Corte. É que, em recente julgamento da Questão de Ordem na Rcl 4.219, esse Colendo Tribunal retomou a discussão sobre a possibilidade de se atribuir efeitos irradiantes aos motivos determinantes da decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, oportunidade em que alguns ministros já se pronunciaram pela negativa da adoção dessa tese. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Bem reexaminada a questão, verifica-se que a decisão não merece reforma, visto que a agravante não aduz novos argumentos capazes de afastar as razões expendidas na decisão ora atacada. Como consignado na decisão agravada, o objeto da ADI 1.797/PE é um ato administrativo restrito aos membros e servidores do Tribunal Regional do Trabalho (6ª Região), matéria estranha à debatida nestes autos. Desse modo, não há identidade material entre a decisão reclamada e o acórdão apontado como paradigma. R.T.J. — 209 95 Nesse sentido é a jurisprudência deste Supremo Tribunal. Transcrevo, aqui, trecho da decisão proferida na Rcl 2.916/RN, pelo Rel. Min. Gilmar Mendes: Trata-se de reclamação, com pedido liminar, proposta pelo Estado do Rio Grande do Norte em face de decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal/RN que, nos autos do Processo 001.99.014982-0, em suposta afronta a autoridade de decisão proferida por este Excelso Pretório, teria determinado a imediata implantação do índice de 11,98% sobre os vencimentos dos autores, servidores públicos estaduais, decorrente da conversão da URV, sem levar em consideração as devidas compensações e sem estabelecer qualquer limite temporal para tanto. Visa o Reclamante a garantir a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal, assegurada no art. 102, inciso I, alínea l, da Constituição Federal, em especial aquela proferida nos autos da ADI 1.797-0/PE, cuja eficácia e integridade estariam sendo comprometidos com a manutenção da decisão reclamada. (...) No caso em análise, a decisão judicial que determinou a incorporação do índice de 11,98% aos vencimentos dos servidores do Estado do Rio Grande do Norte foi proferida com base na Lei 8.880/1994, ato normativo distinto do que foi declarado inconstitucional na ADI 1.797/PE. Ademais, é de se observar que, na ADI 1.797/PE, a decisão administrativa objeto de controle tinha incidência restrita aos membros e servidores do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, com jurisdição apenas sobre o Estado de Pernambuco. Portanto, apesar da similitude entre matérias, não se pode invocar, no presente caso, afronta à decisão proferida pelo STF na ADI 1.797/PE. No mesmo sentido, arrolo os seguintes precedentes desta Corte: Rcl 2.990/RN, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 5‑4‑05; Rcl 3.742/RN, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 28‑9‑05; Rcl 2.967-MC/ RN, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 29‑11‑04; Rcl 3.098/RN, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 11‑3‑05. Assim sendo, nego seguimento à presente reclamação (RISTF, art. 21, § 1º), ficando cassada a liminar anteriormente deferida. (Grifo nosso.) Ademais, o entendimento firmado na ADI 1.797/PE foi superado no julgamento da ADI 2.323-MC/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, uma vez que não se trata de reajuste ou aumento de vencimentos. O acórdão recebeu a seguinte ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Objeto: decisão do Conselho de Administração do Superior Tribunal de Justiça, de 4‑10‑00, que aprovou a incorporação, aos vencimentos básicos dos servidores da referida Corte, da diferença de 11,98%. Fundamento: alegada ofensa ao princípio da legalidade e aos arts. 96, II, b; e 169, ambos da Constituição Federal. Ausência de relevância do fundamento da inicial. Plausibilidade do entendimento de que a diferença em destaque resultou de erro – que o ato impugnado visou corrigir – no critério de conversão dos respectivos valores, de Cruzeiros Reais em URVs (Unidades Reais de Valor), verificado em abril de 1994. Medida cautelar indeferida. Isso posto, nego provimento ao agravo regimental. 96 R.T.J. — 209 EXTRATO DA ATA Rcl 3.208-AgR/RN — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Estado do Rio Grande do Norte (Advogados: PGE/RN – Idálio Campos e outros). Agravado: Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal (Processo 001.97.007853-7). Interessados: Anaíde Bezerra Revoredo e outros (Advogados: Ana Veruschka Aristóteles de S. Filgueira e outros). Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso de agravo. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Celso de Mello, Ellen Gracie, Menezes Direito e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 25 de junho de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 97 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.592 — DF Relator: O Sr. Ministro Gilmar Mendes Requerente: Partido Socialista Brasileiro – PSB — Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 41-A da Lei 9.504/97. Captação de sufrágio. 2. As sanções de cassação do registro ou do diploma previstas pelo art. 41-A da Lei 9.504/97 não constituem novas hipóteses de inelegibilidade. 3. A captação ilícita de sufrágio é apurada por meio de representação processada de acordo com o art. 22, incisos I a XIII, da Lei Complementar 64/90, que não se confunde com a ação de investigação judicial eleitoral, nem com a ação de impugnação de mandato eletivo, pois não implica a declaração de inelegibilidade, mas apenas a cassação do registro ou do diploma. 4. A representação para apurar a conduta prevista no art. 41-A da Lei 9.504/97 tem o objetivo de resguardar um bem jurídico específico: a vontade do eleitor. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, julgar improcedente a ação direta, nos termos do voto do Relator. Brasília, 26 de outubro de 2006 — Gilmar Mendes, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em face da expressão “cassação do registro ou do diploma”, constante do art. 41-A da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, o qual possui o seguinte teor: Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil UFIR, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. 98 R.T.J. — 209 O Requerente alega, em síntese, que o referido dispositivo teria criado nova hipótese de inelegibilidade, sem observância da reserva constitucional de lei complementar para tratar do assunto, prevista no art. 14, § 9 º, da Constituição. Sustenta, ainda, que o dispositivo impugnado também teria afrontado o § 10 e o § 11 do art. 14 da Constituição, na medida em que estabeleceu hipótese de perda de mandato eletivo em decorrência de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude, sem observar, no entanto, o procedimento previsto para a ação de impugnação de mandato eletivo. Distribuídos a mim os autos, apliquei à ação o rito do art. 12 da Lei 9.868/99. O Presidente da República prestou informações às fls. 89-180, concluindo pela constitucionalidade do dispositivo impugnado. Baseando-se na doutrina e na jurisprudência eleitoral, afirma que: Ab initio, é necessário aduzir que o art. 41-A é fruto de um projeto de iniciativa popular, liderado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Central Única dos Trabalhadores – CUT, Associação dos Juízes para a Democracia e inúmeros outros movimentos sociais. A intenção precípua desejada pela norma guerreada é a de que o processo eleitoral transcorra da forma mais correta possível, ou seja, que os candidatos captem o voto dos eleitores por meio das propagandas eleitorais, dos debates, da divulgação das propostas, etc.; e não por meio de subterfúgios que quebrem a lisura da disputa e que tornem a vontade dos eleitores viciada. (...) Nesse sentido, cumpre destacar, ainda, que a cassação prevista no dispositivo questionado não configura hipótese de inelegibilidade. Pois, conforme acima afirmado, não é verdadeiro aduzir que quaisquer circunstâncias que impliquem na impossibilidade de ser votado configura imperiosamente hipótese de inelegibilidade. (...) De fato, o art. 41-A comina pena de cassação de mandato e estabelece sanção de natureza pecuniária, que, em ambas as hipóteses, não configuram inelegibilidade, uma vez que o apenado continua na plenitude do gozo de seus direitos políticos e, por conseqüência, pode disputar quaisquer outras eleições subseqüentes. O Congresso Nacional prestou informações às fls. 183-192, nas quais sustenta que “a norma do art. 41-A não criou situação nova de inelegibilidade. A menção feita ao art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 diz respeito unicamente à esfera procedimental, e portanto não enseja confusão meritória entre a cassação de registro ou diploma por captação de sufrágio e a investigação judicial eleitoral.” A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela improcedência do pedido formulado (fls. 202-217). O parecer da Procuradoria-Geral da República é pela constitucionalidade do dispositivo impugnado (fls. 219-226). É o relatório. R.T.J. — 209 99 VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): A presente ação impugna a expressão “cassação do registro ou do diploma” constante do art. 41-A da Lei das Eleições. Com o advento da Lei 9.840/99, que introduziu o art. 41-A na Lei 9.504/97, surgiram na doutrina e na jurisprudência de alguns Tribunais eleitorais teses sobre a inconstitucionalidade desse dispositivo, por se tratar de nova hipótese de inelegibilidade criada por lei ordinária, e não por lei complementar, como exige o art. 14, § 9º, da Constituição. Atualmente, todavia, o Tribunal Superior Eleitoral já possui jurisprudência consolidada no sentido de que as sanções de cassação de registro ou de diploma, previstas por diversos dispositivos da Lei das Eleições, não constituem novas hipóteses de inelegibilidade (Ac. 25.241, de 22‑9‑05, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; no mesmo sentido o Ac. 882, de 8‑11‑05, Rel. Min. Marco Aurélio; Ac. 25.295, de 20‑9‑05, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha; Ac. 5.817, de 16‑8‑05, Rel. Min. Caputo Bastos; Ac. 25.215, de 4‑8‑05, Rel. Min. Caputo Bastos; no mesmo sentido o Ac. 25.289, de 25‑10‑05, do mesmo Relator; Ac. 25.227, de 21‑6‑05, Rel. Min. Gilmar Mendes; Ac. 4.659, de 19‑8‑04, Rel. Min. Peçanha Martins; Ac. 612, de 29‑4‑04, Rel. Min. Carlos Velloso; Ac. 21.221, de 12‑8‑03, Rel. Min. Luiz Carlos Madeira; Ac. 21.169, de 10‑6‑03, Rel. Min. Ellen Gracie; Ac. 21.248, de 3‑6‑03, Rel. Min. Fernando Neves; Ac. 19.644, de 3‑12‑02, Rel. Min. Barros Monteiro). A sanção de cassação de registro ou do diploma cominada pelo art. 41-A da Lei 9.504/97 não se confunde com a declaração de inelegibilidade diante da ocorrência de alguma das hipóteses definidas no art. 14 da Constituição e na Lei Complementar 64/90. Assim, quanto à constitucionalidade do art. 41-A da Lei 9.504/97, em face do § 9º do art. 14 da Constituição, o parecer do Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, bem esclarece a questão, verbis: Não procedem as alegações de inconstitucionalidade da expressão “e cassação do registro ou do diploma”, contida no artigo 41-A, da Lei nº 9.504/97, com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9.840/99. Em primeiro, é preciso observar que, ao contrário do sustentado pelo requerente em sua petição inicial, o aludido dispositivo não cria nova hipótese de inelegibilidade, razão pela qual não se observa a sustentada violação ao artigo 14, § 9º, da Constituição Federal. Em verdade, o dispositivo sob análise se refere, especificamente, à captação ilícita de sufrágio, impondo como sanções, a pena de multa e a cassação do registro ou do diploma, não se confundindo estas hipóteses com a inelegibilidade. Com efeito, ao discorrer sobre o tema das inelegibilidades, o Ministro Moreira Alves destacou que estas se caracterizam como “impedimentos que, se não afastados por quem preencha os pressupostos de elegibilidade, lhe obstam concorrer a eleições ou, – se supervenientes ao registro ou se de natureza constitucional – servem de fundamento à impugnação de sua diplomação, se eleito”. Verifica-se, portanto, que distintas são as situações de inelegibilidade e de captação ilícita de sufrágio, porquanto esta impõe 100 R.T.J. — 209 uma sanção que decorre de prática de corrupção eleitoral, enquanto aquela impõe um impedimento, um obstáculo que não se caracteriza como sanção, embora dela possa resultar. Dessa forma, não se pode concluir que a disposição insculpida no artigo 41-A, da Lei nº 9.504/97 se apresenta como obstáculo à cidadania passiva, isto é, como espécie de inelegibilidade, porquanto, na realidade, o que fez o legislador foi impor uma forma de sanção ao candidato que vicia a vontade do eleitor, através da doação, oferecimento, promessa ou entrega de bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, e a punição é restrita ao pleito em que ocorreu a captação ilícita. Tal diferença resta evidenciada no acórdão nº 16.242, do Tribunal Superior Eleitoral, no qual o Ministro Nelson Jobim, relator, destacou em seu voto: “(...) Mas lembro que a lei complementar exige, para efeito da prática de abuso de poder econômico, o risco de perturbação da livre manifestação popular. É isso que tem que ser demonstrado. Ou seja, quando a captação de sufrágio foi criada pelo art. 41-A da Lei nº 9.840/99, não se falou de inelegibilidade, e sim em captação do sufrágio com o fim de obter o voto. No caso concreto poder-se-ia pensar em captação de sufrágio, mas captação de sufrágio não leva à inelegibilidade, que exige o risco de perturbação da livre manifestação popular. Esta é a diferença fundamental. Ou seja, se estivéssemos perante a captação de sufrágio, sim, porque estaríamos discutindo o problema com o fim de obter o voto do art. 41-A; todavia, não é a hipótese” Assim sendo, resta claro que não se pode atribuir à sanção decorrente da captação ilícita de sufrágio a natureza de inelegibilidade, de sorte que não procede o argumento do requerente no sentido da necessidade de previsão em lei complementar. (Fls. 221-222.) No mesmo sentido manifestou-se o Advogado-Geral da União, nos seguintes termos: Em que pesem os argumentos colacionados à inicial, percebe-se que o autor parte da equivocada premissa de que o disposto no artigo 41-A da mencionada lei estaria criando uma nova hipótese de inelegibilidade. Todavia, isso não ocorreu, conforme se demonstrará a seguir. A Constituição Federal traça em seu bojo condições de elegibilidade (art. 14, §§ 3º e 8), bem como hipóteses de inelegibilidades (art. 14, §§ 4º a 7º). Por fim, possibilita ao legislador complementar criar novas hipóteses de inelegibilidade, com o fito de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função cargo ou emprego na administração pública direta ou indireta (art. 14, § 9º). Dessa forma, para que um cidadão comum possa pretender ocupar algum cargo eletivo deverá possuir condições de elegibilidade (nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição, filiação partidária e idade mínima), bem como não poderá se enquadrar em qualquer das hipóteses de inelegibilidade previstas no art. 14 da Carta Maior e na Lei Complementar nº 64/90. Nesse diapasão, o autor afirma, com acerto, que, afora as hipóteses de inelegibilidades elencadas na Constituição Federal e na legislação complementar, não poderia o legislador ordinário inovar. Cabe asseverar que, no caso dos autos, não houve tal inovação ao introduzir o artigo 41-A no bojo da Lei nº 9.504/97. Em nenhuma passagem da lei em apreço há menção a pena da inelegibilidade como conseqüência jurídica do R.T.J. — 209 101 descumprimento dos preceitos nela contidos. Ao revés disso, as sanções previstas no artigo 41-A são expressas, quais sejam, a pena de multa e a cassação do registro ou do diploma. Não se menciona inelegibilidade, porquanto de inelegibilidade não se trata. Na realidade, as sanções correlatas ao cometimento da captação de sufrágio pelo eventual candidato – pena de multa ou cassação do registro ou do diploma – não impõem, por si mesmas, a sua inelegibilidade. O sentido do preceito sob análise é o de afastar, de imediato, o candidato da disputa eleitoral. Assim, ele não incidirá em qualquer condição de inelegibilidade, mas tão-somente restará proibido de participar de um pleito eleitoral específico. (Fls. 204-205.) Deve ser levado em conta também que, em recente julgamento (ADI 3.305/ DF, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 13‑9‑06), o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 77 da Lei 9.504/97, entendendo que tal dispositivo, ao cominar a sanção de cassação de registro da candidatura, não trata de nova hipótese de inelegibilidade. Retiro as referências deste julgado do Informativo STF 440, verbis: O Tribunal julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Liberal (PL) contra o art. 77 e seu parágrafo único da Lei federal 9.504/97, que, respectivamente, proíbe os candidatos a cargos do Poder Executivo de participar, no trimestre que antecede o pleito, de inaugurações de obras públicas, e comina, ao infrator, a pena de cassação do registro da candidatura. Sustentava-se, na espécie, ofensa ao art. 14, § 9º, da CF, por se ter estabelecido, sem lei complementar, nova hipótese de inelegibilidade, bem como a inobservância do princípio da isonomia, já que a norma alcançaria exclusivamente os candidatos a cargo do Poder Executivo. Entendeu-se que a referida vedação não afronta o disposto no art. 14, § 9º, da CF, porquanto não consubstancia nova condição de elegibilidade, destinando-se apenas a garantir igual tratamento a todos os candidatos e a impedir a existência de abusos. Além disso, concluiu-se pela inocorrência de violação ao princípio da isonomia, por se considerar haver razão adequada para a diferenciação legal, qual seja, a de exercer o Poder Executivo função diversa da do Poder Legislativo, de gerir a administração pública e de, conseqüentemente, decidir sobre a realização de obras. Precedente citado: ADI 1.062-MC/DF (DJU de 1º-7-94). Assim, tendo em vista que a sanção de cassação de registro ou do diploma não implica declaração de inelegibilidade, não vislumbro inconstitucionalidade no art. 41-A da Lei 9.504/97 em face do disposto no § 9º do art. 14 da Constituição. Da mesma forma, não vejo qualquer inconstitucionalidade em relação ao § 10 e ao § 11 do art. 14 da Constituição. É certo que a captação de sufrágio, definida pelo art. 41-A da Lei 9.504/97, deverá ser apurada de acordo com o procedimento da ação de investigação judicial eleitoral, previsto no art. 22 da LC 64/90, o qual dispõe, em seus incisos XIV e XV, o seguinte: XIV – julgada procedente a representação, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, 102 R.T.J. — 209 cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos três anos subseqüentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder de autoridade, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e processo-crime, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; XV – se a representação for julgada procedente após a eleição do candidato serão remetidas cópias de todo o processo ao Ministério Público Eleitoral, para os fins previstos no art. 14, §§ 10 e 11 da Constituição Federal, e art. 262, inciso IV, do Código Eleitoral. Tais incisos, no entanto, não se aplicam ao procedimento da representação para apuração da conduta descrita no art. 41-A da Lei 9.504/97, como já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral (Ac. 19.587, de 21‑3‑02, Rel. Min. Fernando Neves; Ag. 3.042, de 19‑3‑02, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). O procedimento do art. 22, a ser observado na aplicação do art. 41-A, é aquele previsto nos incisos I a XIII. Isso porque, diferentemente da ação de investigação judicial eleitoral, a representação para a apuração da captação de sufrágio não implica a declaração de inelegibilidade, mas apenas a cassação do registro ou do diploma. Por isso, a decisão fundada no art. 41-A da Lei 9.504/97, que cassa o registro ou o diploma do candidato, tem eficácia imediata, não incidindo, na hipótese, o que previsto no art. 15 da LC 64/90, que exige o trânsito em julgado da decisão para a declaração de inelegibilidade do candidato. Os recursos interpostos contra tais decisões são regidos pela regra geral do art. 257 do Código Eleitoral, segundo a qual os recursos eleitorais não têm efeito suspensivo. Assim, não há necessidade de que seja interposto recurso contra a diplomação ou ação de impugnação de mandato eletivo para o fim de cassar o diploma. Estabelece-se, dessa forma, a distinção entre (a) a ação de impugnação de mandato eletivo, instaurada para a apuração de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude, a seguir o rito previsto no art. 14, § 10 e § 11, da Constituição e no art. 3º da LC 64/90; (b) a ação de investigação judicial eleitoral, instaurada para apurar uso indevido, desvio ou abuso de poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, que deve seguir o procedimento do art. 22, incisos I a XV, da LC 64/90; (c) e a representação para apurar a conduta descrita no art. 41-A da Lei 9.504/97, que segue o procedimento dos incisos I a XIII do art. 22 da LC 64/90. Com esses fundamentos, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade no art. 41-A da Lei 9.504/97 em face do art. 14, § 9º, § 10 e § 11, da Constituição. O art. 41-A foi introduzido na Lei 9.504/97, por meio da Lei 9.840/99, com a finalidade de reforçar a proteção à vontade do eleitor, combatendo, com a celeridade necessária, as condutas ofensivas ao direito fundamental ao voto. Ou seja, enquanto a ação de investigação judicial eleitoral visa proteger a lisura do pleito, R.T.J. — 209 103 a representação para apurar a conduta prevista no art. 41-A da Lei 9.504/97 tem o objetivo de resguardar um bem jurídico específico: a vontade do eleitor. Nos termos da Constituição, a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14, caput). Embora não esteja explícito nessa norma constitucional, é evidente que esse voto tem uma outra qualificação: ele há de ser livre. Somente a idéia de liberdade explica a ênfase que se conferiu ao caráter secreto do voto. O voto direto impõe que o voto dado pelo eleitor seja conferido a determinado candidato ou a determinado partido, sem que haja uma mediação por uma instância intermediária ou por um colégio eleitoral. Não retira o caráter direto da eleição a adoção do modelo proporcional para a eleição para a Câmara de Deputados (CF, art. 45, caput), que faz a eleição de um parlamentar depender dos votos atribuídos a outros ou à própria legenda. É que, nesse caso, decisivo para a atribuição do mandato é o voto atribuído ao candidato ou ao partido e não qualquer decisão a ser tomada por órgão delegado ou intermediário. O voto secreto é inseparável da idéia do voto livre. A ninguém é dado o direito de interferir na liberdade de escolha do eleitor. A liberdade do voto envolve não só o próprio processo de votação, mas também as fases que a precedem, inclusive relativas à escolha de candidatos e partidos em número suficiente para oferecer alternativas aos eleitores. Tendo em vista reforçar essa liberdade, enfatiza-se o caráter secreto do voto. Ninguém poderá saber, contra a vontade do eleitor, em quem ele votou, vota ou pretende votar. Portanto, é inevitável a associação da liberdade do voto com uma ampla possibilidade de escolha por parte do eleitor. Só haverá liberdade de voto se o eleitor dispuser de conhecimento das alternativas existentes. Daí a inevitável associação entre o direito ativo do eleitor e a chamada igualdade de oportunidades ou de chances (Chancengleichheit) entre os partidos políticos. A igualdade do voto não admite qualquer tratamento discriminatório, seja quanto aos eleitores, seja quanto à própria eficácia de sua participação eleitoral. A igualdade de votos abrange não apenas a igualdade de valor numérico (one man one vote) (Zahlwertgleichheit), mas também, fundamentalmente, a igualdade de valor quanto ao resultado (Erfolgswertgleichheit). A igualdade de valor quanto ao resultado é observada se cada voto é contemplado na distribuição dos mandatos. A igualdade de valor quanto ao resultado associa-se, inevitavelmente, ao sistema eleitoral adotado, se majoritário ou proporcional, à admissão ou não de cláusula de desempenho ou de barreira para as agremiações partidárias, e à solução que se adote para as sobras ou restos, no caso da eleição proporcional. 104 R.T.J. — 209 Ressalte-se que o caráter livre e secreto do voto impõe-se não só em face do poder público, mas também das pessoas privadas em geral. Com base no direito alemão, Pieroth e Schlink falam de uma eficácia desse direito não só em relação ao poder público, mas também em relação a entes privados (Drittwirkung) (Cf. Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatrecht II, 2005 p. 277). Assim, a preservação do voto livre e secreto obriga o Estado a tomar inúmeras medidas com o objetivo de oferecer as garantias adequadas ao eleitor, de forma imediata, e ao próprio processo democrático. Essa é a teleologia da norma do art. 41-A da Lei das Eleições. O rito sumário previsto nos incisos I a XIII do art. 22 da LC 64/90, assim como a possibilidade de execução imediata da decisão que cassa o registro ou o diploma do candidato que pratica captação ilícita de sufrágio, traduzem salutar inovação em nossa legislação, pois permitem a rápida apuração e conseqüente punição daqueles que atentam contra a incolumidade da vontade do eleitor. Dessa forma, a regra vem integrar o plexo normativo de garantias processuais do direito fundamental ao voto. Os resultados obtidos pela aplicação do art. 41-A da Lei 9.504/97 pela Justiça Eleitoral em todo o país têm demonstrado a importância de mecanismos processuais céleres para a proteção eficaz da liberdade do eleitor, o que só tem contribuído para o aperfeiçoamento da democracia. Com essas considerações, voto pela improcedência desta ação direta de inconstitucionalidade. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, voto com o Relator, mas faço questão de dizer que, a meu sentir, o Ministro Gilmar Mendes proferiu um voto magnífico e fixou um entendimento, que me parece irretocável, quanto à verdadeira finalidade da Lei 9.504, no dispositivo agora impugnado, art. 41-A. Visa-se, realmente, garantir o eleitor, impedindo que o eleitor, sobretudo o economicamente mais sacrificado, seja cooptado, capturado pelos que elegíveis e até eventualmente eleitos tentem viciar essa vontade, levando o eleitor, sobretudo por uma carência econômica, a votar pensando no seu interesse pessoal, e não no interesse da pólis. O voto de S. Exa. cumpre essa função, já embutida no dispositivo alvo da ação direta de inconstitucionalidade: fazer uma verdadeira profilaxia éti co-cívica. De sorte que não resisto a esse ímpeto de dizer que o voto de S. Exa. é emblemático e, se imediatamente vê no art. 41-A esse propósito de salvaguardar o eleitor, o soberano – que exerce sua soberania sobretudo nesse momento do voto R.T.J. — 209 105 em eleição geral –, mediatamente visa assegurar a autenticidade do regime democrático-representativo ou, em outras palavras, a lisura do processo eleitoral. Com o Relator, portanto. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, as causas de inelegibilidade hão de estar previstas na Constituição ou em lei complementar, e os preceitos respectivos se mostram exaustivos. Vale dizer que, fora das situações contempladas, não cabe concluir pela inelegibilidade. O que é dado encontrar na Lei 9.504, de 1997, iniludivelmente ordinária? Um dispositivo que prevê a existência do candidato. Assenta-se, de início, a premissa de que, surgida essa condição, mediante o deferimento do registro, não se pode vislumbrar inelegibilidade, óbice a esse mesmo registro. O que está no art. 41-A é a disciplina da conduta do candidato, a disciplina voltada a homenagear um princípio, um fundamento da própria República – a dignidade do homem –, respeitando-se o eleitor, não se valendo o candidato da situação concreta do eleitor para lograr, mediante benesses, o respectivo voto. Não encerra o art. 41-A uma causa de inelegibilidade; não envolve a previsão de uma causa pretérita de inelegibilidade, nem posterior de inelegibilidade, porque, incidindo o candidato na prática vedada, a conseqüência não é o assentamento da inelegibilidade por um certo período, mas, simplesmente, a cassação do registro e a cassação do diploma, se já formalizado. Acompanho o Ministro Gilmar Mendes, julgando improcedente o pedido formulado na inicial desta ação direta de inconstitucionalidade. VOTO O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhora Presidente, quando integrei o Tribunal Superior Eleitoral após a vigência desse dispositivo – o art. 41-A da Lei 9.504 – vale dizer, na minha segunda “encarnação” eleitoral –, de início, o tema me levou a uma reflexão mais aprofundada, mas, em seus pontos cardeais, as razões da minha convicção se identificam, exatamente, com o preciso voto que acaba de proferir o eminente Ministro Gilmar Mendes e os que o acompanharam. Julgo improcedente a ação direta. VOTO (Aditamento) O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, permito-me dizer que, quando a Constituição faz do voto direto, secreto, universal e periódico uma cláusula pétrea, nos remete àquela preocupação. No entanto, o voto deve ser livre, além de direto, secreto etc. Claro que, ao dizer, secreto, já está a Constituição laborando no plano da liberdade do voto, mas esse tipo de dispositivo legal cumpre 106 R.T.J. — 209 uma função adicional de tornar o voto livre, desapegado desse tipo de coação, dessa tentativa de cooptação. É apenas um reforço ao voto magnífico do eminente Ministro Gilmar Mendes. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente): Na esteira de pronunciamentos anteriores perante o Tribunal Superior Eleitoral, acompanho o brilhante voto do eminente Relator. EXTRATO DA ATA ADI 3.592/DF — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Requerente: Partido Socialista Brasileiro – PSB (Advogado: Leonardo Pinheiro Lopes). Requeridos: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União) e Congresso Nacional. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou improcedente a ação direta, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso e Cármen Lúcia. Falou pelo Ministério Público Federal o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Vice-Procurador-Geral da República. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Vice-Procurador-Geral da República, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 26 de outubro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 107 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.647 — MA Relator: O Sr. Ministro Joaquim Barbosa Requerente: Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB — Requerida: Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Cons tituição do Estado do Maranhão. Impedimento ou afastamento de governador ou vice-governador. Ofensa aos arts. 79 e 83 da Constituição Federal. Impossibilidade de “acefalia” no âmbito do Poder Executivo. Precedentes. Ação direta julgada pro cedente. A ausência do Presidente da República do País ou a ausência do Governador do Estado do território estadual ou do País é uma causa temporária que impossibilita o cumprimento, pelo Chefe do Poder Executivo, dos deveres e responsabilidades inerentes ao cargo. Desse modo, para que não haja acefalia no âmbito do Poder Executivo, o presidente da República ou o Governador do Estado deve ser devidamente substituído pelo vice-presidente ou vice-governador, respectivamente. Inconstitucionalidade do § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, com a redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05. Em decorrência do princípio da simetria, a Constituição Estadual deve estabelecer sanção para o afastamento do Governador ou do Vice-Governador do Estado sem a devida licença da Assembléia Legislativa. Inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 62 da Constituição maranhense, com a redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05. Repristinação da norma anterior que foi revogada pelo dispositivo declarado inconstitucional. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos e, nos termos do voto do Relator, em julgar improcedente a ação direta, ressaltando-se o voto do Ministro Marco Aurélio que dava interpretação conforme ao § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, e, quanto ao parágrafo único do art. 62, declarava a inconstitucionalidade tão-só da expressão “do Estado”, nos termos do voto de seu voto. Brasília, 17 de setembro de 2007 — Joaquim Barbosa, Relator. 108 R.T.J. — 209 RELATÓRIO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, ajuizada pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em face do § 5º do art. 59 e do parágrafo único do art. 62, ambos da Constituição do Estado do Maranhão, com redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05. Eis o teor dos dispositivos impugnados: Art. 59. Substituirá o Governador, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á no de vaga, o Vice-Governador. (...) § 5º Não se considera impedimento, para efeito de substituição prevista no caput, o afastamento do Governador por até quinze dias, do país ou do Estado. Art. 62. O Governador residirá na capital do Estado. Parágrafo único. O Governador e o Vice-Governador não poderão, sem licença da Assembléia Legislativa, ausentar-se do país ou do Estado, por período superior a quinze dias. O Requerente alega ofensa aos arts. 79 e 83 da Constituição Federal de 1988. Afirma que a norma do § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão “ao modificar o comando da Constituição Federal que disciplina a matéria para estabelecer que não é impedimento o afastamento do Governador, do Estado ou do País, é visivelmente inconstitucional porque, na realidade, cria uma hipótese de ‘não impedimento’ não contemplado pela Constituição da República. (...) Estabelecer que o afastamento do Governador, do Estado ou do País, não é impedimento, é violar as diretrizes da Constituição Federal sobre a matéria”. Cita precedentes da Corte. Em relação ao parágrafo único do art. 62 da Constituição estadual maranhense, o qual determina a necessidade de autorização da assembléia legislativa estadual para que o governador e o vice-governador se ausentem do País ou do Estado, o Requerente afirma que a supressão da expressão “sob pena de perda do cargo” viola a determinação expressa de perda do cargo nesses casos, estabelecida pelo art. 83 da Constituição Federal. Requer, portanto, a declaração de inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos. A Ministra Ellen Gracie, no exercício da Presidência, em 29‑12‑05, deferiu a medida liminar em relação ao § 5º do art. 59 da Constituição estadual, ad referendum do Plenário, nos seguintes termos: 4. No presente caso, mostra-se evidente a ocorrência de uma limitação do papel jurídico-institucional a ser desempenhado pelo vice-governador. Chega a ser temerária a previsão de um afastamento do chefe do Executivo do próprio território brasileiro sem que o vice possa assumir o comando do Estado nos primeiros quinze dias de ausência do titular do cargo em questão. Em pelo menos três R.T.J. — 209 109 oportunidades, este Supremo Tribunal decidiu suspender a vigência de dispositivos de Constituições estaduais que restringiam os impedimentos do Governador aos casos de licença, férias ou doença, conflitando, assim, com o modelo traçado pela Constituição Federal, já que não abarcavam as hipóteses de ausências temporárias, tão comuns e necessárias aos atuais governantes. Aponto, neste sentido, a ADI 644-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 21‑2‑92; a ADI 887-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 27‑8‑93; e a ADI 819-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2‑4‑93. (...) 5. Assim como a plausibilidade jurídica, acima demonstrada, também é patente o periculum in mora, consubstanciado na irreparabilidade do dano representado pela subtração, ainda que parcial, “do conteúdo do exercício de um mandato político” (ADI 644-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence) ou na possibilidade de ocorrência de “situações de possível acefalia no Poder Executivo do Estado” (ADI 819-MC, Rel. Min. Celso de Mello). 6. Por todas estas razões, somadas ao que previsto no art. 10, caput, da Lei 9.868/99 e no art. 13, VIII, do RISTF, defiro o pedido de medida liminar ad referendum do Plenário e até o julgamento final desta ação, suspendendo, com efeitos ex nunc, a eficácia do art. 59, § 5º, da Constituição do Estado do Maranhão, introduzido pelo art. 1º da Emenda Constitucional 48, de 15‑12‑05, daquela unidade da Federação. Verificando que o objeto da presente ação direta é mais amplo do que o veiculado no pedido de medida liminar, a Ministra Ellen Gracie adotou o rito do art. 12 da Lei 9.868/99. Solicitadas as informações, a Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão afirma que atuou nos estritos limites da autonomia dos Estados, conforme preceitua o art. 25, caput e § 1º, da Constituição federal. O Advogado-Geral da União, às fls. 103-116, manifesta-se pela procedência parcial do pedido, para que seja declarada apenas a inconstitucionalidade do § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, com a redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05. No mesmo sentido, manifesta-se o Procurador-Geral da República às fls. 122-127. Tendo em vista que a presente ação direta encontra-se instruída e pronta para julgamento, submeto diretamente ao plenário o julgamento de seu mérito, ficando prejudicado o referendo da decisão. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Senhora Presidente, em relação ao § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, com a redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05, entendo que, na linha da jurisprudência desta Corte, o Estado-membro não pode criar hipótese de exclusão de impedimento do Governador para fins de sua substituição pelo Vice-Governador. 110 R.T.J. — 209 Segundo determina o art. 79 da Constituição Federal de 1988, “o VicePresidente substituirá o Presidente no caso de impedimento”. Impedimento, nas palavras de José Afonso da Silva, “é qualquer causa que obsta ao exercício de cargo ou função pública. Esse obstáculo pode ser de fato ou de direito. Uma doença é um fato que impede o exercício do cargo ou função. Uma licença é um obstáculo jurídico, porque o titular do cargo ou função se afasta de seu exercício por um ato jurídico. É verdade que a doença, fato, é pressuposto para o afastamento jurídico, mediante licença para tratamento da saúde. (...) O impedimento é, assim, uma situação temporária, de fato ou de direito, que não permite ao titular cumprir os deveres e responsabilidades de seu cargo ou função. Por isso se lhe dá substituto enquanto durar essa situação” (Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 477-480). Portanto, a ausência do Presidente da República do País ou a ausência do Governador do território estadual ou do País é uma causa temporária que o impossibilita de cumprir os deveres e responsabilidades inerentes ao seu cargo ou à sua função. Desse modo, para que não haja acefalia no âmbito do Poder Executivo, o Presidente da República ou o Governador do Estado deve ser devidamente substituído pelo Vice-Presidente ou Vice-Governador, respectivamente. Nessas condições, resulta cristalino que o legislador estadual não pode excluir das causas de impedimento, para fins de substituição, o afastamento do Governador por até 15 dias do País ou do Estado. Ora, quem cumprirá os deveres inerentes ao cargo de Governador durante sua ausência, ainda que por breve período de tempo? Como muito bem pontuou a Ministra Ellen Gracie ao deferir a medida liminar, “chega a ser temerária a previsão de um afastamento do chefe do Executivo do próprio território brasileiro sem que o vice possa assumir o comando do Estado nos primeiros quinze dias de ausência do titular do cargo em questão”. E S. Exa. relembrou a vasta jurisprudência da Corte sobre o tema, a qual aqui reproduzo para corroborar o entendimento pela inconstitucionalidade do dispositivo atacado. Confira-se: Ação direta de inconstitucionalidade – Constituição estadual do Estado de Roraima (art. 57, § 1º) – Impedimento do Governador – Substituição pelo ViceGovernador – Hipóteses estabelecidas em numerus clausus – Alegada limitação às funções típicas do Vice-Governador – Plausibilidade jurídica do pedido – Suspensão cautelar deferida. A função jurídico-institucional típica inerente ao mandato de Vice-Governador – além daquela de suceder ao chefe do Poder Executivo no caso de vaga – concretiza-se no ato de substituí-lo, em caráter temporário, sempre que ocorrentes hipóteses de impedimento. A noção constitucional de impedimento identifica-se com a existência de qualquer obstáculo, de fato ou de direito, que iniba o exercício das atribuições deferidas ao cargo de chefe do Poder Executivo. R.T.J. — 209 111 Verificado o impedimento, impõe-se, como necessária conseqüência de ordem constitucional, a convocação do Vice-Governador do Estado, para o efeito de exercer, em plenitude e em caráter temporário, a chefia do Poder Executivo local. A taxatividade de rol que, inscrito em Carta estadual, define, em numerus clausus, as hipóteses configuradoras de impedimento, parece revelar-se incompatível com a destinação constitucional do cargo de substituto eventual do Chefe do Executivo, na medida em que impõe, de modo aparentemente ilegítimo, restrição ao pleno desempenho das atividades peculiares ao ofício de Vice-Governador. (ADI 819-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 2‑4‑93.) Ação direta de inconstitucionalidade (liminar): decreto normativo do Governador do Estado do Amapá, no curso dos trabalhos da Assembléia Constituinte estadual – baixado sob invocação do art. 5º, § 2º, LC 41/81 c/c art. 14, § 2º, ADCT/88 – para limitar a convocação do Vice-Governador a assumir o Governo aos casos de “moléstia, licença ou férias, e de ausência do Estado do Amapá por prazo superior a 15 dias” do titular: suspensão cautelar do ato impugnado que se defere. Relevância da argüição de inconstitucionalidade formal do ato impugnado: o alcance de normas constitucionais transitórias há de ser demarcado pela medida da estrita necessidade do período de transição, que visem a reger, de tal modo a que, tão cedo quanto possível, possa ter aplicação a disciplina constitucional permanente da matéria; no caso do Amapá, a posse do Governador eleito coincidiu com a dos Deputados estaduais: ainda que fosse de admitir, em tese, a ressurreição, por força da remissão do art. 14, § 2º, ADCT, do decreto-lei previsto na LC 41/81 – o que é altamente duvidoso (ADI 460-MC, 22‑3‑91, Pertence) –, em concreto, a presença do legislador natural, a Assembléia Legislativa, afastaria por si só a necessidade transitória de confiar-se ao Executivo a função legislativa, na espécie, aliás, de alçada constitucional. Relevância da argüição de inconstitucionalidade material: se se trata de tema constitucional, e ainda não se promulgou a Constituição do Estado, a fonte natural da sua regência provisória não é da lei ordinária local e, menos ainda, de um decreto executivo, que se arrogue o poder de fazer-lhe as vezes, mas, sim, o padrão federal similar, o do Vice-Presidente; no que diz com o impedimento por ausência temporária do titular, ainda que por breves períodos, uma prática constitucional invariável, que vem do Império, tem atravessado os sucessivos regimes da República, a impor a transferência do exercício do Governo ao Vice-Presidente, e, na falta ou impedimento deste, ao substituto desimpedido: nos Estados; portanto, esse vetusto costume constitucional parece ser a fonte provisória de solução do problema. Periculum in mora: a subtração ao titular, ainda que parcial, do conteúdo do exercício de um mandato político e, por si mesma, um dano irreparável. (ADI 644-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ de 21‑2‑92.) Ementa: Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade do § 3º do art. 118 da Constituição do Estado do Amapá, segundo o qual: “consideram-se impedimentos do Governador, quando em gozo de férias ou por motivo de doença, que o impeça de exercer efetivamente a função”. 1. Considera-se impedimento do Governador qualquer fato que o impeça, temporariamente, de exercer suas funções, não podendo a Constituição estadual limitá-lo às hipóteses de gozo de férias e de doença, para, só nesses casos, admitir sua substituição pelo Vice-Governador. 112 R.T.J. — 209 2. Ação direta julgada procedente para declaração de inconstitucionalidade do § 3º do art. 118 da Constituição do Estado do Amapá. 3. Decisão unânime. (ADI 887-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 27‑8‑93.) Portanto, voto pela confirmação da medida cautelar, para declarar a inconstitucionalidade do § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, com a redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05. Em relação ao parágrafo único do art. 62 da Constituição estadual maranhense, não vislumbrei, em princípio, ofensa à Constituição Federal. A alteração deste dispositivo, efetuada pela Emenda Constitucional estadual 48/05, apenas retirou do texto constitucional estadual a expressão “sob pena de perda do cargo”. Veja-se a redação anterior e a atual do parágrafo único do art. 62 da Constituição estadual maranhense: Redação anterior “Art. 62. (...) Parágrafo único. O governador e o vice-governador não poderão se ausentar do Estado por mais de quinze dias consecutivos, nem do território nacional por qualquer prazo, sem prévia autorização da Assembléia Legislativa, sob pena de perda do cargo.” (Grifei.) Redação dada pela Emenda Constitucional estadual 48/05: “Art. 62. (...) Parágrafo único. O Governador e o Vice-Governador não poderão, sem licença da Assembléia Legislativa, ausentar-se do País ou do Estado, por período superior a quinze dias.” A redação atual do dispositivo acima transcrito praticamente reproduz o teor do art. 83 da Constituição Federal de 1988, exceto pela subtração da sanção cabível ao descumprimento da norma, que é a perda do cargo. Confira-se o teor do art. 83 da Constituição Federal: Art. 83. O Presidente e o Vice-Presidente da República não poderão, sem licença do Congresso Nacional, ausentar-se do País por período superior a quinze dias, sob pena de perda do cargo. (Grifei.) Muito embora o legislador estadual não tenha expressamente determinado a penalidade cabível ao Governador ou Vice-Governador que se ausente do Estado ou do País, por mais de 15 dias, sem autorização da Assembléia Legislativa, entendi, num primeiro momento, que, pelo princípio da simetria, esta conseqüência seria decorrente da aplicação direta do próprio art. 83 da Constituição Federal. Em outras palavras, a perda do cargo estaria prevista implicitamente no art. 62, parágrafo único, da Constituição do Estado do Maranhão, o qual deveria ser lido em conformidade com o art. 83 de Constituição Federal de 1988. R.T.J. — 209 113 Contudo, como bem pontuou o Ministro Carlos Britto, a norma da Constituição do Estado do Maranhão, ora atacada, incidiu em inconstitucionalidade justamente por não estabelecer uma sanção para o Governador ou Vice-Governador do Estado que se afaste do respectivo Estado, sem autorização da Assembléia Legislativa, tal como prevê o art. 83 da Constituição Federal. Assim, alinho-me ao entendimento de que a supressão do dispositivo relativo à sanção de perda do cargo, em razão do afastamento do Governador e do Vice-Governador sem a autorização da Assembléia Legislativa (norma que reproduz parcialmente dispositivo da Constituição Federal), gera sua inconstitu cionalidade. Registro, ainda, que a declaração de inconstitucionalidade conduz à repristinação da norma anterior que foi revogada pelo dispositivo que ora se declara inconstitucional. Do exposto, julgo procedente a presente ação direta para declarar, com efeitos ex tunc, a inconstitucionalidade do § 5º do art. 59 e o parágrafo único do art. 62, ambos da Constituição do Estado do Maranhão, com a redação dada pela Emenda Constitucional 48/05, voltando o parágrafo único do art. 62 à sua redação anterior. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhora Presidente, acompanho o Relator, apenas vou-me reservar. Fiz um levantamento uma época atrás da jurisprudência do Supremo Tribunal sobre a matéria, que é realmente muito vasta, como citado. Esses impedimentos, que são apenas motivos de substituição e não de sucessão, têm origem histórica no início do presidencialismo. E havia um motivo: a saída de um Presidente, de um Governador do Estado, faria com que houvesse, como acentuado por S. Exa., uma acefalia. Hoje, com os mecanismos atuais – fax, telefone –, sabemos que pode estar, às vezes, um Vice-Presidente ou um ViceGovernador, mas quem comanda realmente é o Presidente ou o Governador de fora. Essas normas sempre aparecem nas Constituições estaduais – não digo o parâmetro, porque S. Exa. citou exatamente o princípio da simetria – basicamente quando há desacordo dos partidos que apóiam, às vezes, o Governador e o Vice, e não se quer passar o cargo; introduz-se, então, esse tipo de norma. A meu ver, há de se levar em consideração que o mundo mudou. Hoje, às vezes, no interior de Minas Gerais, um Governador fica inacessível, mas está perfeitamente acessível na Europa para dar ordens. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): O que não resolve problemas de crise grave, de catástrofes. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Claro. Por isso digo que acompanho V. Exa. Apenas me permito repensar, pois há o dado histórico, as responsabili- 114 R.T.J. — 209 dades, o próprio povo questiona por que o Governador não estava presente, mas na Europa. Apenas me permito repensar esse tema pelo menos para efeito doutrinário, mas, aqui, acompanho o voto do Relator – sabendo que se trata de um dado histórico que a tecnologia, em grande parte, superou. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhora Presidente, acompanho o eminente Relator. Também assento a inconstitucionalidade do § 5º do art. 59 da Constituição estadual, que cria uma nova restrição ao impedimento, em ofensa ao princípio da simetria. Julgo parcialmente procedente esta ação direta de inconstitucionalidade, deixando de fora, como fez o eminente Relator, o parágrafo único do art. 62, que meramente repete, com uma pequena diferença, o art. 83 da Carta Magna. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, o eminente Relator, na primeira parte do seu voto, parece-me ter deixado bem expresso o que subjaz aos dispositivos constitucionais na matéria. A Constituição não quer mesmo a acefalia do Poder Executivo. Por isso, fez-se até regulamentar; deu-se ao trabalho de avocar a disciplina da matéria, de modo minudente, a ponto de dispor sobre a ordem de sucessão. E, como acaba de salientar o Ministro Ricardo Lewandowski, cria óbice à investidura da chefia do Poder Executivo pelo ViceGovernador, aqui, nos casos de impedimento. É caminhar mesmo na contramão da Constituição. Esta quer que a substituição seja instante, imediata, automática – ao que me parece. Quanto à segunda parte, o eminente Relator chancela uma redação sem sanção; uma espécie de “norma penal em branco”. O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não chancela, censura. O Sr. Ministro Carlos Britto: Não. Ele, ao manter a atual redação, deixa que o desrespeito à norma fique sem nenhuma sanção, sem nenhuma resposta. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Não, eu disse que se aplica o dispositivo federal que contém sanção. Ou seja, dou interpretação conforme. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sim, mas é como se o legislador estadual pudesse eliminar essa sanção. O Sr. Ministro Carlos Britto: Sim. E a meu ver, não pode fazê-lo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente porque ele não pode eliminar é que a norma é inconstitucional. R.T.J. — 209 115 O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Não eliminei. Eu disse que, tendo em vista o princípio da simetria, podemos entender que a norma federal se aplica diretamente ao Estado, não obstante a norma estadual. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Quanto a isso não tenho dúvida, mas o risco de interpretação é muito grande. O Sr. Ministro Carlos Britto: Exato. Ministro Joaquim Barbosa, se V. Exa. considerasse totalmente procedente a ação direta de inconstitucionalidade, ocorreria a repristinação, muito mais consentânea com a Constituição. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Prefiro adotar a interpretação conforme e salvar o dispositivo. O Sr. Ministro Carlos Britto: A redação anterior é consentânea com a Constituição, e tem sanção. O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Se o objetivo do dispositivo foi só esse... O Sr. Ministro Carlos Britto: Foi só este: tirar a sanção. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Se tirarmos o parágrafo único do art. 62, essa norma que exige a licença da assembléia legislativa desaparece. Até que se faça uma alteração na Constituição do Estado, o Governador e o ViceGovernador poderão sair do País ou do Estado sem licença. O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Por isso está-se propondo a declaração de inconstitucionalidade. Essa é a tese do Ministro Carlos Britto. Propõe-se a declaração de inconstitucionalidade da própria norma estadual. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Repristina-se a norma velha, a norma anterior. O Sr. Ministro Carlos Britto: Sim, porque não há sanção nenhuma; repristina-se a outra que tinha sanção. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente. A outra norma previa a perda. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Entendo que ambas as soluções resolvem o problema: tanto faz deixar a norma atual em vigor, adotando interpretação conforme para que a ela seja aplicado um dispositivo da Constituição Federal, ou deixar que se repristine. O Sr. Ministro Cezar Peluso: É melhor já deixar claro. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Como já há a pendência da ação direta, talvez conviesse evoluir no sentido proposto. Fica mais explícito. VOTO (Retificação) O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Senhora Presidente, reajusto o meu voto no sentido das considerações feitas pelo Ministro Carlos Britto. Dou pela procedência integral da ação. 116 R.T.J. — 209 VOTO (Retificação) A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhora Presidente, continuo acompanhando o voto do Relator, razão pela qual reajusto o meu voto. VOTO (Retificação) O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhora Presidente, também reajusto o meu voto, desde que fique expresso que houve uma repristinação. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, a perplexidade da Ministra Cármen Lúcia também é minha. Apenas no Brasil temos um dirigente no País e outro no exterior. Apenas no Brasil, penso, pelo que conheço. Não mais se justifica o fato de haver substituição quer do Presidente da República, quer do Governador, quer do Prefeito, quando empreenda viagem oficial ao exterior. E vejo que o preceito define impedimento, e o define de uma forma, para mim, pelo menos, incongruente, porque, a um só tempo, o Governador passa a estar impedido no território nacional e pode estar no exterior representando o próprio Estado, ou seja, atuando como Governador do Estado. Por isso, quanto a esse preceito, peço vênia ao Relator e julgo procedente o pedido formulado, emprestando ao dispositivo atacado interpretação conforme à Carta da República, vislumbrando, de qualquer modo, o impedimento quando a viagem não for oficial. É como voto quanto a esse dispositivo. No tocante ao segundo, não se trata de pedido considerada a inconstitucionalidade por omissão e, então, tendo simplesmente a afastar do preceito a regra que não guarda – a meu ver, na minha leitura – sintonia com a Constituição Federal, ou seja, a abrangência que se dá ao afastamento do Governador: Art. 62. O Governador residirá na capital do Estado. Parágrafo único. O Governador e o Vice-Governador não poderão se ausentar do Estado por mais de quinze dias consecutivos, nem do território nacional por qualquer prazo, sem prévia autorização da Assembléia Legislativa, sob pena de perda do cargo. Admito que ele possa se ausentar do Estado. E não cogito, porque passaria até mesmo a atuar como legislador positivo, da inserção no preceito de uma pena, muito embora em sintonia com a Constituição Federal, que seria a de perda do cargo. R.T.J. — 209 117 Então, quanto ao parágrafo único do art. 62, voto no sentido de expungir a expressão “do Estado”. Relativamente ao § 5º do art. 59, a ele confiro interpretação conforme à Carta para não ter como impedido o Governador que viaje em missão oficial e que, portanto, empreenda viagem oficial. EXTRATO DA ATA ADI 3.647/MA — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Requerente: Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB (Advogados: Marcos Alessandro Coutinho Passos Lobo e outros). Requerida: Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão. Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta, ressaltando-se o voto do Ministro Marco Aurélio que dava interpretação conforme ao § 5º do art. 59 da Constituição do Estado do Maranhão, e, quanto ao parágrafo único do art. 62, declarava a inconstitucionalidade tão-só da expressão “do Estado”, nos termos de seu voto. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello, Eros Grau e Menezes Direito. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 17 de setembro de 2007 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 118 R.T.J. — 209 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.817 — DF Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia Requerente: Governadora do Distrito Federal — Requeridos: Governador do Distrito Federal e Câmara Legislativa do Distrito Federal — Interessados: Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL/Brasil, Associação dos Delegados de Polícia do Distrito Federal – ADEPOL/DF, Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais – FENAPRF e Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal – ADPF Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 3º da Lei distrital 3.556/05. Servidores das carreiras policiais civis cedidos à administração pública direta e indireta da União e do Distrito Federal: Tempo de serviço considerado pela norma questionada como de efetivo exercício de atividade policial. Ampliação do benefício de aposentadoria especial dos policiais civis estabelecido no art. 1º da Lei Complementar federal 51, de 20‑12‑85. Ação julgada procedente. 1. Inexistência de afronta ao art. art. 40, § 4º, da Constituição da República, por restringir-se a exigência constitucional de lei complementar à matéria relativa à aposentadoria especial do servidor público, o que não foi tratado no dispositivo impugnado. 2. Inconstitucionalidade formal por desobediência ao art. 21, inciso XIV, da Constituição da República que outorga competência privativa à União legislar sobre regime jurídico de policiais civis do Distrito Federal. 3. O art. 1º da Lei Complementar federal 51/1985 – que dispõe que o policial será aposentado voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial – foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. A combinação desse dispositivo com o art. 3º da Lei distrital 3.556/05 autoriza a contagem do período de vinte anos previsto na Lei Complementar 51/85 sem que o servidor público tenha, necessariamente, exercido atividades de natureza estritamente policial, expondo sua integridade física a risco, pressuposto para o reconhecimento da aposentadoria especial do art. 40, § 4º, da Constituição da República: inconstitucionalidade configurada. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello (art. 37, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), R.T.J. — 209 119 na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em julgar procedente a ação direta e declarar a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei 3.556, de 18 de janeiro de 2005, do Distrito Federal, nos termos do voto da Relatora. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente. Brasília, 13 de novembro de 2008 — Cármen Lúcia, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, ajuizada pela Governadora do Distrito Federal, em 1º-11-06, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º da Lei distrital 3.556, de 18‑1‑05, que preceitua: Art. 3º Será considerado como de efetivo exercício de atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal, até a data da publicação desta Lei. 2. A Autora afirma que o “referido dispositivo (...) acabou por elastecer o benefício de aposentadoria especial de policial estabelecido no artigo 1º da Lei Complementar Federal nº 51, de 20 de dezembro de 1985, in verbis”: Art. 1º O funcionário policial será aposentado: I – voluntariamente, com proveitos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial. (Fl. 3.) Sustenta que, “ao ampliar o conceito de exercício de atividade policial para fins de aposentadoria especial, o artigo 3º da Lei Distrital n. 3.556/2005, acabou por violar o parágrafo 4º do artigo 40 da Constituição Federal, que exige lei complementar para definição dos requisitos e critérios para aposentadoria especial de servidor público” (fl. 3, grifos no original). Ressalta que o art. 3º da lei distrital questionada também padeceria de inconstitucionalidade material, pois a aposentadoria especial somente poderia ser concedida em casos “em que as atividades tenham sido exercidas exclusivamente sob condições especiais que justifiquem a diferenciação”, nos termos do art. 40, § 4º, da Constituição da República (fl. 4, grifos no original). Sustenta que com a adoção da lei impugnada, poderia ocorrer “a concessão de aposentadoria especial àqueles que não tenham exercido atividades estritamente policiais” (fl. 4). Requer liminar para a suspensão dos efeitos da norma questionada e, no mérito, “seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei Distrital n. 3.556/2005, em face ao art. 40, § 4º da Constituição Federal, com efeitos ex tunc e erga omnes” (fl. 6). 120 R.T.J. — 209 3. Em 1º-11-06 adotei o rito do art. 12 da Lei 9.868/99. 4. Solicitadas as informações, em 20‑11‑06 o Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal manifestou-se pela constitucionalidade do artigo ora questionado, “vez que a lei não trata diretamente sobre aposentadoria. Cuida somente de regulamentar as restritas hipóteses de cessão de servidores policiais” e que, dessa forma, não teria invadido a competência da União nem teria ocorrido qualquer outra inconstitucionalidade (fl. 18). 5. Em 1º-1-07, o Advogado-Geral da União manifestou-se pela improcedência do pedido por entender que “a análise do dispositivo distrital atacado revela que ele não define requisitos e/ou critérios para a concessão de aposentadoria aos servidores integrantes das carreiras da Polícia Civil do [Distrito Federal]” e que “na verdade, há apenas norma reguladora da contagem do tempo de serviço desses agentes públicos, quando de sua cessão a órgãos da Administração Pública Direta ou Indireta de qualquer dos poderes da União ou do Distrito Federal” (fls. 56-64). 6. O Procurador-Geral da República opinou, em 10‑8‑07, pela improcedência da ação, com ressalva ao aspecto de que tal manifestação depende da premissa de que a legislação anterior à Constituição da República de 1988 não fora recepcionada, sem a qual a orientação vergaria em sentido oposto, indo pela manifesta procedência (fls. 66-71). 7. Em 13‑8‑07 vieram-me os autos conclusos. 8. Admiti como amici curiae a Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FENAPRF) e a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. Afirma a Autora, na presente ação, que o dispositivo impugnado da Lei distrital 3.556/05 “acabou por elastecer o benefício de aposentadoria especial de policial estabelecido no artigo 1º da Lei Complementar Federal nº 51, de 20 de dezembro de 1985” e que, por esse motivo, haveria afronta ao art. 40, § 4º, da Constituição da República. A afronta seria formal porque o art. 40, § 4º, da Constituição da República exigiria lei complementar “para definição de requisitos e critérios para aposentadoria especial do servidor público” (fl. 3). Haveria, ainda, ofensa material à Constituição, pois, nos termos daquele mesmo dispositivo constitucional, “a aposentadoria especial só pode[ria] ser concedida nas hipóteses em que as atividades (...) [tivessem] sido exercidas exclusivamente sob condições especiais que justifi[cassem] a diferenciação” (fls. 3-4). 2. O dispositivo questionado não trata, diretamente, da questão da aposentadoria especial. Estabelece ele tão-somente que “será considerado como R.T.J. — 209 121 de efetivo exercício de atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal”. Não se sustenta, portanto, a tese de inconstitucionalidade formal pelo aspecto lançado na petição inicial da ação, porque a exigência de lei complementar pelo art. 40, § 4º, da Constituição da República restringe-se à matéria relativa à aposentadoria especial do servidor público. 3. Entretanto, a despeito de ter argüido inconstitucionalidade formal da norma em foco ao argumento de ter havido descumprimento da previsão constitucional de ser necessária lei formal para se tratar da matéria relativa à aposentadoria de servidor público – alegação que acabo de rejeitar, como acima assentado – tenho que há outro e relevantíssimo aspecto formal a ser considerado neste caso. Sabe-se que, no exercício de controle abstrato de constitucionalidade, este Supremo Tribunal não fica adstrito à fundamentação jurídica trazida pelo Autor. É possível, assim, a análise do dispositivo impugnado em face de outros artigos da Constituição da República além do que venha a ser apontado como paradigma na petição inicial (ADI 1.896-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ de 28‑5‑99). Daí a consideração de que, conquanto não oferecida, expressamente, como questão a ser considerada por este Supremo Tribunal, é de se verificar se a norma distrital questionada na presente ação incorreria em inconstitucionalidade formal, por desobediência ao art. 21, inciso XIV, da Constituição da República. O dispositivo impugnado cuida do tempo de serviço de policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal. E preceitua o art. 21, inciso XIV, da Constituição brasileira: Art. 21. Compete à União: (...) XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; (norma da Emenda Constitucional nº 19, de 1998) A interpretação e aplicação deste dispositivo constitucional por este Supremo Tribunal Federal firmaram-se no sentido de que compete privativamente à União legislar sobre regime jurídico de policiais civis do Distrito Federal. Assim se decidiu, por exemplo, no julgamento da SS 1.154-AgR/DF: Ao prescrever a Constituição (art. 21, XIV) que compete à União organizar e manter a polícia do Distrito Federal – apesar do contra-senso de entregá-la depois ao comando do Governador (art. 144, § 6º) – parece não poder a lei distrital dispor sobre o essencial do verbo “manter”, que é prescrever quanto custará pagar os 122 R.T.J. — 209 quadros de servidores policiais: desse modo a liminar do Tribunal de Justiça local, que impõe a equiparação de vencimentos entre policiais – servidores mantidos pela União – e servidores do Distrito Federal parece que, ou impõe a este despesa que cabe à União ou, se a imputa a esta, emana de autoridade incompetente e, em qualquer hipótese, acarreta risco de grave lesão à ordem administrativa. (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 6‑6‑97.) Ainda nesses termos o que assentado pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1.136/DF: Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei distrital 709/94. Autorização concedida ao Poder Executivo para promover ex-componentes da polícia militar e do corpo de bombeiros não beneficiados por decreto anterior à CB/88. Regime jurídico dos policiais e bombeiros militares do Distrito Federal. Competência exclusiva da União. Violação do art. 21, XIV, da Constituição do Brasil. 1. A Lei distrital 709/94 é inconstitucional, visto que dispõe sobre matéria de competência exclusiva da União. O texto normativo atacado diz respeito à promoção de ex-componentes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal – regime jurídico dos policiais militares e membros do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal – afrontando o disposto no art. 21, inciso XIV, da Constituição do Brasil. 2. Pedido julgado procedente para declarar inconstitucional a Lei distrital 709/94. (Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJ de 13‑10‑06. Julgada em 16‑8‑06.) Na assentada de 4‑3‑04, no julgamento da ADI 2.988/DF, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, a questão foi assim posta: 2. É dupla a inconstitucionalidade orgânica, ou formal. 2.1. Quanto à primeira, esta Corte já apreciou casos análogos, reconhecendo a impossibilidade de edição, pelo Distrito Federal, de lei sobre organização e manutenção da polícia civil, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar, dada a competência legislativa privativa da União, na matéria (art. 21, inciso XIV, da CF): (...) O art. 21, XIV, deve ser interpretado em conjunto com os arts. 32, § 4º, e 144, § 6º, todos da Constituição Federal: (...) Dessa conjugação normativa tira-se que compete à União Federal organizar e, em sentido amplo, manter as polícias civil e militar e o corpo de bombeiros militar (art. 21, XIV), bem como dispor, mediante lei, sobre sua utilização pelo Distrito Federal (art. 32, § 4º), cabendo ao Governador apenas o comando dos efetivos. Tais restrições não excluem ao Distrito Federal competência para conceder a membros das polícias, designados para serviços distritais próprios, benefícios pecuniários específicos, custeados por recursos do seu orçamento, porque é o que decorre do disposto no art. 32, § 1º, como já o notou a Corte: (...) A ressalva não aproveita, contudo, ao caso, em que a Lei distrital impugnada estabelece vantagem financeira “a todos os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal matriculados em estabelecimentos de formação e aperfeiçoamento”, sem vinculação, pois, R.T.J. — 209 123 ao exercício de funções próprias mas atípicas, conquanto se suponha debitada a despesa à conta do orçamento do Distrito Federal, de modo que vulnera a regra do art. 21, inciso XIV, da Constituição da República. (DJ de 26‑3‑04.) Ainda nesse sentido: SS 846-AgR/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 8‑11‑96; RE 241.494/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, Tribunal Pleno, DJ de 14‑11‑02; ADI 2.102-MC/DF, Rel. Min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, DJ de 7‑4‑00; ADI 1.475/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, Tribunal Pleno, DJ de 4‑5‑01; ADI 1.359/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ de 11‑10‑02; ADI 2.881/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ de 13‑10‑06. 4. Assim, por descumprir o que posto no art. 21, inciso XIV, da Constituição brasileira, o dispositivo questionado eiva-se da mácula de inconstitucionalidade, não podendo subsistir no ordenamento. 5. Haveria, ainda, o aspecto material, que há de ser examinado apenas porque foi erigido como igualmente comprometido pela norma impugnada. É certo que o art. 3º da Lei distrital 3.556/05 não define, expressamente, critérios para a concessão de aposentadoria especial aos policiais civis do Distrito Federal, não desobedeceria, por si só, o art. 40, § 4º, da Constituição da República. Todavia, a inconstitucionalidade emergiria da análise, interpretação e aplicação combinadas do dispositivo em causa com o art. 1º da Lei Complementar federal 51/85, que dispõe que o policial será aposentado voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial. A combinação dos dispositivos das duas leis poderia ensejar a interpretação de que policiais que não exercem efetiva e estritamente atividades de natureza estritamente policial e, portanto, não cumprem as exigências constitucionais do risco a que se expõem, à periculosidade que autoriza o tratamento diferenciado da sua situação pela norma, estariam abrigados pelo benefício de aposentadoria especial dos policiais civis. E tanto sobrevém exatamente porque o inc. I do art. 1º da Lei Complementar 51, de 20‑12‑85, dispõe: Art. 1º O funcionário policial será aposentado: I – voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos, 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial (...). Daí ter a Procuradoria-Geral da República opinado no sentido de que, se recepcionada pelo sistema constitucional vigente, ter-se-ia a inconstitucionalidade da norma distrital na forma alegada pela Autora da ação, porque se teria aposentadoria especial de servidores policiais, alguns dos quais, na forma da norma distrital, chegariam àquela aposentadoria sem o desempenho necessário 124 R.T.J. — 209 da atividade de risco, pois, pela cessão a outros órgãos da administração pública, poder-se-ia contar o período de vinte anos prevista na Lei Complementar 51/85 sem o exercício de atividades de natureza estritamente policial. Como se manifesta a Procuradoria-Geral da República pela não-recepção daquela norma complementar pela Constituição de 1988, não haveria que se concluir pela inconstitucionalidade alegada. 6. Não partilho, entretanto, da conclusão da nobre Procuradoria-Geral da República. A Lei Complementar 51, de 20‑12‑85, foi editada com fundamento no art. 103 da Emenda 1, de 1969, que estabelecia: Art. 103. Lei complementar, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, indicará quais as exceções às regras estabelecidas, quanto ao tempo e natureza de serviço, para aposentadoria, reforma, transferência para a inatividade e disponibilidade. O texto deixou ao legislador complementar, a partir de iniciativa exclusiva do Presidente da República, a escolha das atividades que se submeteriam a regras outras de aposentadoria que não aquelas previstas no art. 102 daquele documento. Assim se estabeleceu, quanto à atividade policial, que o direito à aposentadoria voluntária seria obtido mediante a comprovação de trinta (30) anos de serviço, dos quais pelo menos vinte (20) desses em cargo de natureza estritamente policial (art. 1º, inciso I, da Lei Complementar 51/85). A Constituição de 1988 definiu novo regime constitucional para os servidores públicos, fixando alguns parâmetros para a exceção à regra geral de aposentadoria, o que também haveria de ser pormenorizado pelo legislador complementar. A norma originária do texto constitucional de 1988 (§ 1º do art. 40) estabelecia: § 1º Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, a e c, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas. As normas dos dispositivos mencionados no parágrafo mencionado cuidavam dos requisitos para a concessão de aposentadoria voluntária. O Projeto de Lei que se veio a converter na Lei Complementar 51/85 emanou do Presidente da República, reconhecendo-se, desde então, o direito à aposentadoria especial daquele que desempenha atividade estritamente policial, como bem demonstrado em memorial apresentado pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. Este policial expõe-se a permanente risco em sua integridade física e psicológico, a perigos permanentes em benefício de todos os cidadãos, o que justifica o cuidado legal, na esteira da previsão R.T.J. — 209 125 c onstitucional. Ora, não houve alteração quanto às exigências com o advento da nova Constituição. E, conforme realçado pelo Procurador-Geral da República em seu parecer (fl. 69), as alterações procedidas pelas emendas constitucionais posteriores à promulgação da Constituição de 1988 (números 20/98 e 47/05) não subtraíram a distinção conferida à atividade considerada perigosa ou de risco. A propósito pode-se verificar na norma agora em vigor sobre a matéria: Art. 40. (...) § 4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores: I – portadores de deficiência; II – que exerçam atividades de risco; III – cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Enquadrada a natureza especial da atividade policial no critério de perigo ou risco, e, ainda, considerando ter sido a matéria objeto da mesma espécie normativa exigida pela Constituição atual (lei complementar), tenho como recepcionada a Lei Complementar 51/85 pela Constituição de 1988. 7. E assim é que, ao cuidar de estender a definição legal de “efetivo exercício de atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal, até a data da publicação desta Lei”, a norma questionada inovou a) em primeiro lugar, a matéria no que concerne à restrição dos titulares do direito à aposentadoria especial aos que estivessem no desempenho de atividades estritamente policiais; b) não observou o critério que poderia ensejar o cuidado legislativo da matéria, que se tem no inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição (norma atual), pois a cessão pode significar – e em geral ou, pelo menos, na maioria dos casos, significa – o afastamento do policial significa exatamente das condições de risco ou prejuízo à sua integridade física; c) alterou por lei distrital matéria adstrita à lei nacional ou federal. 8. Por todas as razões assim expostas, considerando recepcionada a Lei Complementar 51/85, voto pela procedência da presente ação, declarando inconstitucional formal e materialmente o art. 3º da Lei distrital 3.556, de 18 de janeiro de 2005. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, a base do voto proferido seria o disposto no inciso XIV do art. 21 da Constituição Federal? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Também, Ministro. Porque, conforme assinalei, haveria algumas desavenças entre a norma impugnada, já que considerei – por isso fiz questão de chamar a atenção – recepcionada a Lei 126 R.T.J. — 209 Complementar 51, que garante uma aposentadoria especial. Então, por isso, eu disse: “Aquilo que se dispõe (...)”. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Sim, porque o preceito atacado não versa aposentadoria. Versa o trato de situação jurídica em que o policial é cedido a outro órgão da administração. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): É porque considera que esse período de cessão é contado como sendo de atividade policial, o que significa dizer: contado como de atividade policial para os efeitos de aposentadoria especial... O Sr. Ministro Marco Aurélio: Seria, então, uma inconstitucionalidade por tabela, tendo em conta possível conseqüência que se resolveria em outro campo, não no do processo objetivo? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não uma conseqüência necessária. Realmente, ao dispor que se considera esse tempo como de efetivo exercício, quando a Lei Complementar 51 – que criou exatamente aquela situação de uma aposentadoria especial – fixou que era para atividades de natureza estritamente policial. A Constituição só garante essa aposentadoria especial para situações de risco à integridade física ou, antes, consideradas perigosas. Além da questão formal, também aqui teria a questão da matéria inicialmente tratada por uma norma nacional e que passou a ser tratada por uma norma distrital, porque se fez realmente a diferenciação que a autora pedia que se considerasse e, neste caso, houve o elastecimento – expressão usada pela autora. Por todos esses motivos é que julgo procedente a ação. O Sr. Ministro Carlos Britto: O alvo do art. 3º é a aposentadoria; a serventia dele é a aposentadoria. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Obviamente. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, o que imagino é que o cotejo da norma deve ser único – tal como ela se contém – com a Constituição Federal. Não podemos buscar outras disciplinas para, agregando-as ao que previsto no dispositivo atacado, chegar à conclusão sobre a inconstitucionalidade. Quanto ao inciso XIV do art. 21 da Constituição Federal, que revela realmente competir à União organizar as polícias, não o temos levado às últimas conseqüências, sob pena de afastarmos qualquer diploma local que verse até mesmo a questão, por exemplo, da disciplina da tropa. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Eu penso que não, neste caso, por causa das conseqüências sobre a aposentadoria. Exatamente. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não chego a esse extremo. Distingo as situa ções e tento perceber até que ponto a lei local implicou a usurpação da competência da União de organizar, em si, as polícias no Distrito Federal. R.T.J. — 209 127 Agora, quanto ao preceito, Presidente, não busco as conseqüências. Apenas verifico que o alvo foi afastar a apenação do servidor no que, cedido – e cedido, presumo, em virtude de necessidade pública – a órgão da administração, viria a ter o tempo respectivo alijado, considerada a qualificação de policial. Peço vênia para entender que não está em jogo a recepção ou não da Lei Complementar 51, de 1985. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Eu deixei claro, Ministro. Eu realmente falei que só estava cuidando dessa matéria exatamente porque, como a petição inicial expressamente faz referência a isso, o Procurador-Geral fez referência a isso e o Advogado-Geral também, então eu pensei que não devia. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas, então, seria o conflito da norma atacada com a Lei Complementar 51? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não, nesse caso não caberia ação direta de inconstitucionalidade. Por isso mesmo, eu disse, antes de ler, que estou cuidando desse assunto exclusivamente porque foi tratado para dar o quadro normativo geral sobre aposentadoria dos policiais. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, vou-me permitir adiantar o voto. Não vislumbro inconstitucionalidade no dispositivo. E lembraria a jurisprudência, no campo do controle concentrado, que é no sentido de exigir que se tenha uma inconstitucionalidade realmente evidente. O que se constata na espécie? Dispositivo que, levando em conta o interesse da administração pública, previu que o tempo alusivo à cessão do servidor é contado presente a qualificação na origem. Não se foi adiante para estabelecer, considerados outros aspectos, as conseqüências do preceito. Parou-se aí. Indago: tal como se contém, o citado art. 3º em exame discrepa da Carta da República? A meu ver, não. Mesmo porque, em caso de cessão – e presumo o que normalmente ocorre e não o extravagante, o teratológico –, o interesse é da administração pública. A cessão não se verifica por interesse direto do servidor. Ora, se há a cessão e se, no caso, numa opção política legislativa, previu-se que essa cessão não implica a apenação do cedido – devendo o tempo respectivo ser contado como tempo alusivo à qualificação primitiva –, creio que a norma é razoável. Não imagino que alguém cedido possa ser prejudicado na carreira de origem. Peço vênia à relatora para não proceder à conjugação de dispositivos legais e chegar a um preceito que não está sendo atacado nesta ação, assentando a inconstitucionalidade. Não vou perquirir quais são as conseqüências jurídicas da contagem do tempo de cessão como tempo alusivo ao serviço policial. Paro na apreciação objetiva da matéria e não adentro a subjetiva. Por isso, peço vênia para julgar improcedente o pleito formulado na inicial. 128 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, pensando alto: não seria o caso de se dar interpretação conforme ao art. 3º para excluir do seu campo de incidência a aposentadoria especial? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Presidente, se me permite. Eu até cogitei disso numa passagem. Ocorre que, nesse caso, nós teríamos que transpor a inconstitucionalidade formal, que é a minha conclusão também. O Tribunal teria que concluir também nesse sentido. Enfim, só para informação de V. Exa. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não sabemos sequer se a lei complementar aludida foi recepcionada ou não. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, o dispositivo impugnado tem a seguinte redação: Art. 3º Será considerado como de efetivo exercício da atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal até a data da publicação desta Lei. Ou seja, o que se objetivou concretamente com o dispositivo foi estender a natureza da função policial a qualquer tipo de cessão realizada nos órgãos públicos. Como todos nós sabemos, os que já transitamos pela atividade administrativa, essas cessões podem se dar efetivamente em cargos de natureza policial, por exemplo, várias vezes os policiais são cedidos para os Tribunais de Justiça para efeito de realização de segurança, e, nesses casos, evidentemente, existe uma prorrogação da atividade policial na cessão, e, outras vezes, essas cessões ocorrem independentemente desta natureza estritamente policial, porque são requisitados para funções burocráticas e, neste caso, de fato, a requisição não se dá em função estritamente policial. Eu dispenso, a Ministra Relatora insistiu nesse aspecto, e acompanho S. Exa., até mesmo a comparação com a Lei Complementar 51, porque entendo que é desnecessária para o efeito de aferir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo. Na minha compreensão, é suficiente que se tenha presente essa idéia de que essa requisição pode ocorrer tanto para o exercício de atividade policial como para o exercício de atividade não-policial, como é o caso das atividades burocráticas. Isso acontece freqüentemente. Se não me falha a memória, há até um decreto federal que equipara essas requisições de natureza de serviços policiais para outros órgãos da administração, quando no exercício de atividade policial. Ora, se essa compreensão explicita a realidade da questão que está sendo posta em julgamento, e, no meu entender, explicita, o que se vai verificar é que esse dispositivo pretendeu dar uma abrangência genérica, independentemente da disciplina R.T.J. — 209 129 do art. 40 da Constituição Federal. Por quê? Porque o art. 40 da Constituição Federal estabelece que é possível a adoção de requisitos e critérios diferenciados, desde que preenchidos um dos três requisitos que a própria Constituição enumera. Ou seja, a questão dos portadores de deficiência, o exercício de atividades de risco e cujas atividades sejam exercidas em condições especiais que possam agredir a saúde ou a integridade física. Se nós admitirmos que essa equiparação pode-se dar em qualquer circunstância, é evidente que existe uma flagrante confrontação com a disciplina constitucional, ou seja, numa palavra, se essa interpretação que se dá, e parece que essa é a interpretação que se está dando, ao dispositivo do art. 3º estende, sem nenhuma discriminação, à natureza da função exercida, no caso dos requisitados, não há dúvida de que se esbarra na ausência de critérios específicos que a Constituição estabelece para o gozo da aposentadoria. Por quê? Porque, especialmente, essa requisição, quando se faz a contagem do tempo, se quer dizer que se contará o tempo para a aposentadoria que se dará naquela função originariamente exercida. Essa é a razão pela qual, Senhor Presidente, independente mesmo do art. 21, inciso XIV, que seria o outro lastro para a declaração de inconstitucionalidade, faz-me acompanhar o belíssimo voto da eminente Ministra Relatora, pedindo vênia ao Ministro Marco Aurélio na conclusão de declarar a inconstitucionalidade do art. 3º da lei distrital. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, peço vênia à divergência para assentar a inconstitucionalidade. Lendo o art. 3º da Lei distrital 3.556/05... O Sr. Ministro Carlos Britto: Inconstitucionalidade material, não é Excelência? O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Material. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Senhor Presidente, eu queria fazer uma retificação, se me permite. Eu insisti no final na inconstitucionalidade formal, mas estou concluindo pela inconstitucionalidade formal e material, para ficar claro. Eu só chamei a atenção para o 21. Eu disse “considerando”, só para chamar a atenção. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu não conclui ainda, mas me encaminharia no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade tanto formal quanto material. Lendo o art. 3º, eu verifico o seguinte: Art. 3º Será considerado como de efetivo exercício da atividade policial [portanto, para qualquer efeito, inclusive para efeito de aposentadoria] o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal até a data da publicação desta Lei. 130 R.T.J. — 209 Ou seja, para qualquer dos efeitos. Portanto, é possível, e parece que esta foi a intenção da emenda parlamentar ao projeto de lei distrital encaminhado pelo chefe do Poder Executivo, se contornar, tornar mais elástica a regra do art. 40, § 4º, da Constituição Federal, que não apenas estabelece algumas balizas mínimas para a aposentadoria especial, como também estabelece que a matéria deve ser regulada por lei complementar. Portanto, nesse aspecto, eu verifico que esse dispositivo afronta não apenas essa necessidade da matéria ser regida por uma lei de âmbito nacional, como exige a Constituição, como também ela é materialmente inconstitucional, porque colide frontalmente com o artigo 40, § 4º, do Texto Maior. De outra parte, eu relembro que recentemente este Plenário considerou inconstitucional uma lei paulista que estendia a aposentadoria especial para integrantes da carreira do magistério que exerciam as suas funções fora da sala de aula, exatamente fora daquelas condições especiais que a Constituição exige para a obtenção da aposentadoria especial. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: O resultado foi o contrário. Nós man tivemos. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Não. Nós mantivemos apenas para as professoras; aquelas que efetivamente exerciam o magistério nas salas de aula. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relator): Não precisava estar em sala de aula, mas tinha que estar na escola. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: O resultado não foi pela inconstitu cionalidade. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Exatamente. Nós afastamos a aposentadoria especial daqueles que não estavam em sala de aula. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Quem estivesse afastado da escola, Ministro Joaquim... Nós fomos vencidos. Mas, para quem estava na escola, o Ministro Ricardo Lewandowski tem razão. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: A situação me parece assemelhada. O Sr. Ministro Menezes Direito: Naquele caso, tinha a questão dos orientadores pedagógicos. O Sr. Ministro Marco Aurélio: A diferença, considerado o precedente, é que, no caso concreto, não temos, no preceito, alusão à aposentadoria especial. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Eu também acho. Eu também me limito à inconstitucionalidade formal, sem considerações acerca da inconstitucionalidade material. Não vejo nenhuma alusão à questão da aposentadoria no dispositivo. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Na medida em que esse tempo pode ser contado para qualquer efeito, implicitamente está incluída a aposentadoria especial. R.T.J. — 209 131 O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não há cláusula remetendo a efeitos, não se tem a expressão “qualquer efeito”. Então, vejo um dispositivo que não reflete o atacado. O que está no art. 3º? Art. 3º Será considerado como de efetivo exercício da atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal, cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal até a data da publicação desta Lei. Não revela o preceito a conseqüência. E creio que a conseqüência terá que ser examinada em situação concreta. VOTO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, acompanho o voto da Relatora, mas apenas pelo fundamento da inconstitucionalidade formal. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, era minha intenção, conforme enunciado, superar a questão formal e, sob o aspecto material, dar uma interpretação conforme para excluir do âmbito de incidência funcional do art. 3º, agora adversado, a aposentadoria do policial civil. Depois, pensei até num outro modo de propor a interpretação conforme, já na linha do pensamento, numa distinção muito bem-feita pelo Ministro Menezes Direito. É para, em última análise, cingir a aplicabilidade da norma àquelas requisições que significassem um prolongamento lógico da atividade do policial civil a implicar, portanto, risco de vida. Porém, atentando melhor aos debates travados a partir do belo voto da Relatora, também entendo que há uma dupla inconstitucionalidade: a formal e a material. A formal, porque, de fato, está explícito no art. 21, inciso XIV, da Constituição brasileira: Art. 21. Compete à União: (...) XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal (...). Como competência explícita da União. E, quanto à interpretação não literal, porém, lógica, do art. 3º, também entendo que ele é compreensivo na projeção de um dos seus efeitos da aposentadoria. Leio o texto logicamente pela seguinte forma: “Será considerado como de efetivo exercício”, para todos os fins e efeitos. Porque o papel da interpretação lógica não é exatamente reciclar a interpretação gramatical? Não é superá-la, policiar até semanticamente também a interpretação gramatical para ver se nela se esconde um sentido lógico mais abrangente? 132 R.T.J. — 209 Então, do ponto de vista da interpretação lógica, parece-me que o Ministro Ricardo Lewandowski fez uma intervenção absolutamente procedente na linha do voto da eminente Relatora. Em suma, pedindo vênia aos que pensam diferentemente, acompanho a eminente Relatora em todos os termos. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, também reconheço a inconstitucionalidade tanto formal quanto material e, portanto, acompanho o voto brilhante da eminente Relatora. EXTRATO DA ATA ADI 3.817/DF — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Requerente: Governadora do Distrito Federal (Advogados: PGDF – Luiz Lucas da Conceição e outros). Requeridos: Governador do Distrito Federal e Câmara Legislativa do Distrito Federal. Interessados: Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL/BRASIL, Associação dos Delegados de Polícia do Distrito Federal – ADEPOL/DF (Advogado: Wladimir Sérgio Reale), Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais – FENAPRF (Advogado: Emanuel Santos de Lima), Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal – ADPF (Advogado: Francisco Rezek). Decisão: O Tribunal, por votação majoritária, julgou procedente a ação direta e, em conseqüência, declarou a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei 3.556, de 18 de janeiro de 2005, do Distrito Federal, nos termos do voto da Relatora, vencido o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente. Votou o Presidente, Ministro Celso de Mello (art. 37, I, do RISTF). Ausentes, porque em representação do Tribunal no exterior, o Ministro Gilmar Mendes (Presidente), justificadamente o Ministro Eros Grau e, neste julgamento, o Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Falaram, pelos amici curiae, Associação dos Delegados de Polícia do Distrito Federal (ADEPOL/DF) e Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), respectivamente, o Dr. Wladimir Sérgio Reale e o Dr. Francisco Rezek e, pelo Ministério Público Federal, o Vice-Pro curador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 13 de novembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 133 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.857 — CE Relator: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski Requerente: Procurador-Geral da República — Requeridos: Governador do Estado do Ceará e Assembléia Legislativa do Estado do Ceará — Interessado: Sindicato dos Servidores Públicos Civis do Grupo Tributação, Arrecadação e Fiscalização do Ceará – SINTAF Ação direta de inconstitucionalidade. Lei do Estado do Ceará. Provimento derivado de cargos. Inconstitucionalidade. Ofensa ao disposto no art. 37, II, da CF. Ação julgada procedente. I – São inconstitucionais os artigos da Lei 13.778/06, do Estado do Ceará que, a pretexto de reorganizar as carreiras de auditor adjunto do Tesouro Nacional, técnico do Tesouro Estadual e fiscal do Tesouro Estadual, ensejaram o provimento derivado de cargos. II – Dispositivos legais impugnados que afrontam o comando do art. 37, II, da Constituição Federal, o qual exige a realização de concurso público para provimento de cargos na administração estatal. III – Embora sob o rótulo de reestruturação da carreira na Secretaria da Fazenda, procedeu-se, na realidade, à instituição de cargos públicos, cujo provimento deve obedecer aos ditames constitucionais. IV – Ação julgada procedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria, julgar inteiramente procedente a ação direta, nos termos do voto do Relator, contra o voto do Ministro Marco Aurélio, que a julgava parcialmente procedente. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Não votou o Ministro Eros Grau por não ter assistido ao relatório. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 18 de dezembro de 2008 — Ricardo Lewandowski, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, ajuizada pelo Procurador-Geral da República em face dos arts. 14, § 2º; 26, parágrafo único; 27; 28; 29 e 31; todos da Lei 13.778/06 do Estado do Ceará. 134 R.T.J. — 209 Eis o teor dos dispositivos impugnados: Art. 14. (...) § 2º Fica assegurado ao Auditor Adjunto do Tesouro Estadual e Técnico do Tesouro Estadual, que atualmente encontra-se nas Classes A1 a D5, as competências de lançamento de documentos fiscais, nos livros próprios e antecipação de registro ou aproveitamento indevido de crédito fiscal. (...) Art. 26. (...) Parágrafo único. Os servidores da Administração Direta que se encontrem, na data da publicação desta Lei em exercício na Secretaria da Fazenda a mais de treze anos, passam a integrar o grupo ocupacional Tributação, Arrecadação e Fiscalização mediante expressa opção a ser feita no prazo máximo de até 60 (sessenta) dias sendo enquadrados na referência inicial, da classe I, do cargo/função de Auditor Adjunto da Receita Estadual. Art. 27. Ficam redenominados os cargos/funções de Auditor do Tesouro Estadual, Auditor Adjunto do Tesouro Estadual, Fiscal do Tesouro Estadual, Técnico do Tesouro Estadual e Analista do Tesouro Estadual de acordo com o anexo V desta Lei. Art. 28. Os cargos/funções de Auditor Adjunto da Receita Estadual e Fiscal da Receita Estadual, que integram a administração tributária, atividade essencial ao funcionamento do Estado, passam a integrar carreira única em extinção, na medida da vacância dos atuais cargos/funções, com atribuições e competências definidas na forma do anexo VI desta Lei. Art. 29. A carreira em extinção a que se refere o art. 28 desta Lei fica organizada na forma do seu anexo VII. (...) Art. 31. (...) Parágrafo único. Os servidores enquadrados nos cargos/funções Auditor Fiscal da Receita Estadual, Fiscal da Receita Estadual e Auditor Adjunto da Receita Estadual, detentores de condições de enquadramento na classe I e classe II, que possuam título de pós-graduação serão enquadrados na referência inicial da classe III da carreira respectiva. Sustenta o Autor, em suma, que os citados dispositivos colidem com o art. 37, II, da Lei Maior, visto que permitem o provimento derivado de cargos públicos, com significativa mudança na remuneração dos servidores beneficiados pela medida, além de alterarem os níveis de escolaridade para o exercício de atribuições distintas das originais, cuja alteração não se confunde com uma mera reclassificação de funções. Diz, mais, que o parágrafo único do art. 26 ora impugnado possibilita o aproveitamento de servidores integrantes de qualquer carreira da administração direta nos quadros da Secretaria de Fazenda estadual. Recebidos os autos, adotei o rito previsto no art. 12 da Lei 9.868/99, solicitando informações ao governador do Estado do Ceará e as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República (fl. 114). R.T.J. — 209 135 O governador do Estado do Ceará pronunciou-se no sentido da improcedência da ação, nos seguintes termos (fls. 241-254): (...) ao contrário do que alegado pelo promovente, a Lei nº 13.778 de 6 de junho de 2006, que aprovou o plano de cargos e carreiras do Grupo Ocupacional Tributação, Arrecadação e Fiscalização – TAF, da Secretaria de Fazenda do Estado do Ceará, não instituiu caso de provimento derivado de cargos públicos, na medida que não concretizou alterações essenciais das funções de cargos pré-existentes. Na realidade, a lei estadual em referência, em seus Art. 27 e 31, e no anexo V a que se referem, vergastados pelo promovente, deu nova denominação a cinco cargos da estrutura organizacional da Secretaria de Fazenda do Estado do Ceará, quais sejam: (1) Auditor do Tesouro Estadual; (2) Analista do Tesouro Estadual; (3) Auditor Adjunto do Tesouro Estadual; (4) Técnico do Tesouro Estadual, e; (5) Fiscal do Tesouro Estadual. Para tanto, unificou os dois primeiros cargos (Auditor do Tesouro Estadual e Analista do Tesouro Estadual), denominando-os Auditor Fiscal da Receita Estadual. Na mesma linha, unificou os cargos de Auditor Adjunto do Tesouro Estadual e Técnico do Tesouro Estadual, denominando-os Auditor Adjunto da Receita Estadual. E ao cargo de Fiscal do Tesouro Estadual, conferiu-lhe a nova denominação de Fiscal da Receita Estadual. Nesse processo de reorganização dos antigos cargos da Carreira Auditoria Fiscal, Administração Fazendária e de Fiscalização e Arrecadação da Secretaria de Fazenda do Estado do Ceará, o legislador estadual optou por unificar os cargos referidos – simplificando a estrutura organizacional –, por se tratarem de cargos com funções praticamente iguais, sem qualquer diferença essencial, a justificar e autorizar, portanto, a fusão em um único cargo. De fato, sem qualquer dificuldade, observa-se na legislação estadual pretérita, disciplinadora do plano de Cargos e Carreiras do Grupo Ocupacional Tributação, Arrecadação e Fiscalização – TAF (Lei Estadual nº 12.582, de 30 de abril de 1996 – cópia em anexo), no Anexo VI a que se refere o seu art. 5º, que a função dos antigos cargos de Auditor do Tesouro Estadual e de Analista do Tesouro Estadual, comparando-os em cada classe, eram essencialmente coincidentes, resumindo-se à única diferença na atribuição de constituição do crédito tributário, prevista para o cargo de Auditor do Tesouro Estadual. Na mesma forma, coincidentes eram as funções dos cargos de Auditor Adjunto do Tesouro Estadual e Técnico do Tesouro Estadual, resumindo-se à única diferença na atribuição de constituir o crédito tributário, obedecidos os critérios de competência estabelecidos na legislação pertinente. (...) Reconhecer inconstitucionalidade nas especificações e acréscimos nas funções do cargo de Auditor Adjunto da Receita Estadual, como pretende o promovente, nada mais é do que legitimar, sem base jurídica consistente e de forma inadmissível, o engessamento da organização dos cargos e carreiras, inviabilizando, nos cargos anteriores ou em cargos resultantes de fusão, a racionalização e a eficiência dos serviços públicos, que exigem a atualização permanente das funções de seus cargos, dentro do mesmo universo de atuação (no caso, a área tributária). (...) 136 R.T.J. — 209 No mais, destaque-se que a Lei nº 13.778, de 6 de junho de 2006, estipula, no anexo I a que se referem os seus Arts. 2º, 3º e 4º (não impugnados nesta ADI), o nível de escolaridade superior para todos os cargos nela previstos (embora, na estrutura anterior, somente os cargos de Auditor do Tesouro Estadual e Analista do Tesouro Estadual exigissem esse requisito – Ver Anexo I a que se refere o Art. 4º da anterior Lei nº 12.582, de 30 de abril de 1996), mas não determina nem autoriza, em qualquer dos preceitos impugnados, o enquadramento funcional dos ocupantes dos cargos de Auditor Adjunto do Tesouro Estadual, Técnico do Tesouro Estadual e Fiscal do Tesouro Estadual (de nível de segundo grau ou inferior – ver Anexo citado da Lei nº 12.582, de 1996) nos cargos, respectivamente, de Auditor Adjunto da Receita Estadual (os dois primeiros), e Fiscal da Receita estadual, de nível superior. (...) Em resumo, a Lei estadual nº 13.778, de 6 de junho de 2006, não enquadrou os ocupantes dos antigos cargos de Auditor Adjunto do Tesouro Estadual e Técnico do Tesouro Estadual em cargos novos, mas somente fundiu aqueles cargos, de atribuições coincidentes, como já reiteradamente acentuado. Outrossim não os enquadrou em cargos de nova escolaridade (nível superior), reservando-os para os futuros concursados (Auditor Adjunto da Receita Estadual). E no referente ao vencimento, com fundamento em isonomia de retribuição por exercício de funções idênticas, não vedada pela Carta da República, embora por ela não mais garantida especificamente, conferiu-lhes a mesma Tabela de Vencimento; tudo com arrimo em precedentes desta Egrégia Corte. (Grifos no original.) A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República opinaram pela procedência do pedido (fls. 290-298 e fls. 300-304). O Sindicato dos Servidores Públicos Civis do Grupo Tributação, Arrecadação e Fiscalização do Ceará (SINTAF) formulou pedido de intervenção no feito na condição de amicus curiae (fls. 307-374), o qual foi por mim deferido (fl. 503). É o relatório, do qual serão expedidas cópias aos Exmos. Srs. Ministros. VOTO (Esclarecimento) O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Senhor Presidente, peço vênia para esclarecer que há um concurso, que foi já realizado no Estado do Ceará, para o provimento dos cargos ora impugnados e que está praticamente perto do prazo da sua decadência. Esta seria a última sessão para decidirmos a questão. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Bem examinados os autos, entendo que assiste razão ao autor da presente ação direta. R.T.J. — 209 137 Com efeito, embora impressionem, data venia, não convencem os argumentos, apresentados pelo Governador do Estado do Ceará. É que a exigência de concurso público para a investidura em cargos e empregos públicos, em todos os níveis político-administrativos da Federação, configura imperativo constitucional, que somente pode ser excepcionado em situações especialíssimas, apontadas no próprio texto magno, a exemplo do que ocorre com as contratações temporárias a que refere o art. 37, IX. A questão colocada à apreciação desta Suprema Corte consiste em saber se a reorganização das carreiras dos servidores da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará, nos termos dos dispositivos legais impugnados, configura ou não a vedada hipótese de transposição de cargos públicos. Como bem ressaltou a Advocacia-Geral da União, os comandos normativos atacados nesta ação direta, a um só tempo, transformaram antigos cargos auditor adjunto do Tesouro estadual e técnico do Tesouro estadual e fiscal da Receita estadual, de nível médio, em cargos de auditor adjunto da Receita estadual e fiscal da Receita estadual, para os quais se exige graduação em cursos de nível superior. Com efeito, os cargos criados demandam, para o seu provimento, nível superior de escolaridade, observadas as respectivas especificidades, conforme prevê o Anexo I da Lei. Em consonância com essa exigência, a remuneração dos ocupantes dos cargos em comento é maior do que aquela paga aos que integram cargos para os quais se admite o nível médio de escolaridade. Mas não só, a escolaridade exigida para o provimento do cargo de auditor adjunto da Receita estadual e sua remuneração é que foram objeto de alteração. Também as atribuições desse cargo foram substancialmente modificadas, as quais passaram a incluir: o levantamento e análise de dados econômico-fiscais e cadastrais da Secretaria da Fazenda e do contribuinte; a confecção de relatórios, processos e informações, a participação na elaboração de planos operacionais, respondendo por sua execução; a prestação de suporte operacional e instrumental para a elaboração de procedimentos e processos; a realização de diligências cadastrais e fiscais; a constituição de crédito tributário em procedimentos específicos de fiscalização; a prolação de decisões monocráticas em processos administrativo-fiscais; a orientação dos sujeitos passivos, no tocante à aplicação da legislação tributária, por intermédio de ato normativo e solução de consultas; a realização de perícias, a manifestação em consultas, regimes especiais, isenção, anistia, moratória, remissão, parcelamento e outros benefícios fiscais definidos em lei. Essas alterações de fundo, no tocante ao regime funcional e remuneratório dos servidores em comento, não passaram despercebidas à Procuradoria-Geral da República, que assim se pronunciou sobre o diploma normativo impugnado: Primeiramente, criou um novo cargo com remuneração, denominação, atribuições e requisitos de escolaridade também novos. Num segundo momento, deu aos cargos antigos a mesma denominação, com a só ressalva de que estariam em extinção. Posteriormente acrescentou a este chamado cargo em extinção as mesmas 138 R.T.J. — 209 atribuições inerentes ao cargo novo. Finalmente, sob a justificativa da isonomia, igualou a remuneração do cargo em extinção com o do cargo novo. O resultado desse processo consiste em se ter dado a cargos ocupados por servidores de nível médio a mesma denominação, atribuições e vencimentos devidos a servidores ocupantes de cargo privativo de servidores de nível superior. A esta prática dá-se o nome de transposição de cargos públicos, vedada pela ordem constitucional vigente. No que tange à previsão do atacado art. 26, constata-se que a referida lei cearense, ao contrário do que se narrou anteriormente, não despendeu maiores esforços para “maquiar” a aludida transposição, ao permitir, sem maiores dificuldades, a inclusão indiscriminada de qualquer servidor da Administração Direta, em exercício na Secretaria de Fazenda a mais de treze anos, nos quadros de carreira por ela criada. Nessa hipótese, fica ainda mais clara a ofensa ao disposto no inciso II do art. 37 da Lei Fundamental. E ainda que se afirme que não foram instituídas novas carreiras e nem cargos distintos, como assinalado acima, tendo ocorrido apenas a unificação de cargos com funções assemelhadas, a realidade é que houve não só uma mudança de nomenclatura, mas também de escolaridade exigida para o seu exercício, bem como de remuneração e atribuições. Os dispositivos atacados, a pretexto de levar a efeito uma mera reorganização na carreira dos servidores que integram a administração fazendária do Estado, na verdade criaram novos cargos, permitindo o seu provimento por simples transposição, em inequívoca burla à exigência constitucional de concurso público, que objetiva, em essência, dar concreção aos princípios abrigados no caput do art. 37 da Lei Maior, em especial aos da moralidade e impessoalidade. Nas palavras de Lucas Rocha Furtado, Ao adotar o concurso público como critério básico para o ingresso no serviço público, a Constituição Federal busca observar, em termos materiais, o sistema do mérito, em que será escolhido para ocupar o cargo público aquele que obtiver a melhor qualificação em seleção objetiva aberta a todos os que preencham os requisitos legais.1 É certo que a lei pode prever o provimento derivado de cargos. Mas essa hipótese só pode ocorrer licitamente por meio de promoções. Como assevera o já mencionado Lucas Furtado, “o agente é investido no cargo inicial da carreira após a aprovação em concurso público, e para alcançar os cargos mais elevados será promovido”.2 O servidor, porém, será sempre submetido a concurso público para ingressar no primeiro degrau da carreira. Recordo, por oportuno, que esta Suprema Corte já se posicionou acerca do tema, na ADI 3.061/AP, Rel. Min. Carlos Britto, que apreciava situação semelhante, em afronta à Súmula 685 do STF, de cuja ementa transcrevo o seguinte trecho: 1 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 900. 2 FURTADO, Lucas. Ob. cit. p. 901. R.T.J. — 209 139 (...) a Lei amapaense 538/02 é materialmente inconstitucional, porquanto criou um diferenciado quadro de pessoal na estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para aproveitar servidores de outras unidades da Federação, oriundos de qualquer dos três Poderes. Possibilitou, então, movimentação no espaço funcional em ordem a positivar um provimento derivado de cargos públicos. Mas tudo isso fora de qualquer mobilidade no interior de u’a mesma carreira. E sem exigir, além do mais, rigorosa compatibilidade entre as novas funções e os padrões remuneratórios de origem. Violação, no particular, à regra constitucional da indispensabilidade do concurso público de provas, ou de provas e títulos para cada qual dos cargos ou empregos a prover na estrutura de pessoal dos Poderes Públicos (Súmula 685 do STF). – Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do instrumento normativo impugnado. (Grifos nossos.) Isso posto, julgo procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade a fim de declarar materialmente inconstitucionais os arts. 14, § 2º; 26, parágrafo único; 27; 28; 29; e 31; todos da Lei 13.778/06 do Estado do Ceará, por violação ao art. 37, II, da Constituição Federal. É o meu voto. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, em primeiro lugar, eu gostaria de assinalar que, com relação à ADI 1.251, que foi julgada no dia 15 de outubro de 2008, a preliminar, que não foi engenhosa, mas foi bem fundamentada, engenhosa daria uma outra conotação, mas foi muito bem fundamentada pelo Ministro Marco Aurélio, a sessão só foi suspensa porque não havia quórum e, tratando-se de matéria relativa ao conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade, impunha-se a existência de quórum. Por essa razão é que o tema não foi examinado, segundo os registros que estão nos assentos do Tribunal. Com relação ao mérito dessa ação direta, Senhor Presidente, o que me chama atenção, o eminente Ministro Relator teve a cautela de destacar, e eu verifiquei do memorial que recebi daqueles que fazem concurso público, é que nós temos uma transposição, por exemplo, de motoristas que ocupavam esses cargos de agente prisional de datilógrafo e que, por via desta lei, passaram especificamente à condição de auditor; ou seja, saíram de cargos de nível médio para cargos de nível superior. Pelo menos é o que consta de memorial que foi aqui distribuído. E essa, realmente, é uma matéria que a Corte já enfrentou, ou seja, impedindo que existisse essa transposição, independentemente de qualquer condição, como explicitou o eminente Ministro Relator, invocando, de resto, o precedente de que foi Relator o eminente Ministro Carlos Britto. Por esta razão é que eu estou acompanhando por inteiro o voto do eminente Ministro Ricardo Lewandowski. 140 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, seria interessante discutirmos um pouco mais a matéria, porque temos no Tribunal três precedentes alusivos aos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul placitando a junção. Perdoe-me o Ministro Menezes Direito, creio que o art. 27 é suficientemente explícito no que revela a junção de cargos/funções de auditor do Tesouro Nacional, auditor adjunto do Tesouro Nacional, fiscal do Tesouro estadual, técnico do Tesouro estadual e analista do Tesouro estadual, de acordo com o anexo V. Quer dizer, o que ocorreu no Ceará foi o conserto da situação – e é sempre muito difícil arrumar a Casa – e conforme ressaltado da tribuna, dois governadores, o Governador Lúcio Alcântara e o Governador Cid Gomes, placitaram essa lei, endossaram essa lei aprovada pela Assembléia estadual, que veio a resultar na racionalização da própria carreira. Com muita ética, os dois Advogados fizeram sustentações claras e não veicularam a valia constitucional do parágrafo único, este sim a abrir uma avenida quanto a aproveitamento de prestadores de serviços diversos, no que cogita, sem especificidade considerado o cargo, de servidores da administração direta há mais de treze anos integrando a área, gênero, de arrecadação do próprio Estado. Penso que estamos diante – e lembro sempre que a divergência que maior descrédito ocasiona é a intestina – de um caso concreto, relativo ao Estado do Ceará, que se mostra idêntico àqueles que resultaram nos precedentes mencionados no memorial do Sindicato: dois precedentes envolvendo Santa Catarina e um o Rio Grande do Sul. Quando somei o voto aos dos relatores desses casos – nem sempre divirjo –, placitei as leis. A esta altura, se outro for o enfoque, haverá, mesmo, o dom da multiplicação de cargos, desarrumando as finanças do Estado do Ceará, no que serão mantidos os cargos pretéritos e se terá, para atendimento, quem sabe, realmente, de uma nova clientela, os novos cargos. Eu caminharia no sentido, sim, de declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 26, que versa: Art. 26. (...) Parágrafo único. Os servidores da Administração Direta [gênero] que se encontrem, na data da publicação desta Lei em exercício [simples exercício, pouco importando a função] na Secretaria da Fazenda há mais de treze anos [aqui, se esqueceu que teria o verbo “haver”], passam [aqui, passarão] a integrar o grupo ocupacional Tributação (...) No mais, não. No mais, tivemos junção de atividades que se mesclam, como também tivemos no tocante às leis dos Estados a que me referi. Claro que o Tribunal, hoje, está com uma composição totalmente diversa, mas nos três casos anteriores – um deles sob a relatoria do Ministro Gallotti; outro ficou vencido, no caso do Rio Grande do Sul, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes; e outro sob a relatoria da Ministra Ellen Gracie, penso que esse R.T.J. — 209 141 último é referência contida em uma das ementas – julgamos a partir da Carta de 1988 e entendemos que, nesse caso, de junção de atividades semelhantes, praticamente iguais, não se verifica o drible pernicioso ao concurso público. VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Senhor Presidente, mantenho o meu voto e verifico que recebemos um grande número de memoriais que transcrevem os Diários Oficiais do Estado do Ceará, os quais dão conta que motoristas, datilógrafos, desenhistas, agentes prisionais, orientadores de menores, técnico de estrada, técnico agrícola, visitador sanitário, auxiliar de pesquisa, agente municipalista e assim por diante tiveram os seus cargos transformados em auditor fiscal da Receita estadual e auditor adjunto da Receita estadual, com competência plena. Isso está documentado. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro Ricardo Lewandowski, concordo com V. Exa. Realmente, se o Estado, o Executivo, acionou o parágrafo único do art. 26, acabou aproveitando, indevidamente, esses servidores. Daí dizer que, a rigor, a rigor – e essas publicações, penso que estiveram respaldadas por esse parágrafo único –, temos a inconstitucionalidade desse dispositivo no que abriu o leque quanto ao aproveitamento na nova carreira. Agora, se expungirmos esse parágrafo único, ficando apenas o art. 27, o que teremos? A junção de cargos/funções de auditor do Tesouro estadual, auditor adjunto do Tesouro estadual, fiscal do Tesouro estadual, técnico do Tesouro estadual e analista do Tesouro estadual, que, até pela nomenclatura, podemos afirmar possuidores de atribuições ao menos assemelhadas. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Veja V. Exa., por exemplo, o art. 14, § 2º, que eu estou declarando inconstitucional... O Sr. Ministro Marco Aurélio: O parágrafo único, realmente, viabilizou o aproveitamento de motoristas, de contínuos, desde que estivessem há mais de treze anos na Secretaria, o que não se coaduna com os ditames constitucionais. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): E não apenas isso. Ampliação de competência. Se V. Exa. pegar cada um desses dispositivos que eu, pelo meu voto – e salvo melhor juízo dos eminentes Pares –, estou declarando inconstitucional, verá que há uma ampliação de competências que são privativas de agentes que têm nível superior. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro, como ressaltado da tribuna, a exigência da escolaridade decorreu da nova lei, mas se preservaram situações em homenagem à realidade, no que anteriormente não se exigia, quando do concurso público efetivado, escolaridade maior. Então, apenas se congelou essa situação, como disse, para racionalizar, para sanear-se a diversificação que havia no próprio Estado. 142 R.T.J. — 209 Estou seguro de que, expungido o parágrafo único do art. 26, não haverá a possibilidade, considerados os demais dispositivos, de aproveitamento de servidores ocupantes de cargos totalmente estranhos à arrecadação considerada a via direta. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Mantenho o meu voto pelos motivos que expus. VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, também vou manter o meu voto, pedindo vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio. Estou entendendo que, no caso, e a Procuradoria da República teve o cuidado de destacar esse aspecto, houve uma burla ao sistema de concurso público. Maquiou-se, por via da transposição, a oportunidade de criação de um cargo novo e, por via da criação deste cargo novo, ao invés de fazer-se o concurso diretamente, criou-se um sistema de aproveitamento. E esse sistema de aproveitamento configura nitidamente uma transposição que é vedada pelo sistema da Carta de 88. Tenho a consciência absoluta de que, pelo menos até onde posso ir com a memória, a nossa jurisprudência tem assentado, nesta composição, esse tipo de entendimento. Por essa razão, pedindo vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio, eu acompanho o voto do Ministro Ricardo Lewandowski. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, acompanho o Relator às inteiras. Considero que houve burla ao art. 37, inciso II, razão pela qual tenho como inconstitucionais os dispositivos, com as vênias do Ministro Marco Aurélio, claro. VOTO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, também peço vênia ao Ministro Marco Aurélio para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo por entender que há manifesta violação ao princípio do concurso público. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, entendo que a mobilidade vertical no interior de uma carreira funcional é perfeitamente possível, basta lembrar os cargos de professor, todo cargo de professor e todo cargo de carreira R.T.J. — 209 143 jurídica, seja Magistratura, Ministério Público, Advocacia Pública, Defensorias Públicas, todos esses cargos são organizados em carreira. Evidente que um modo de valorizar o servidor é assegurar a sua movimentação no espaço funcional de modo – como disse o eminente Relator Ricardo Lewandowski – ascensionalmente, chamando-se a isso de promoção. Aliás, para que essa movimentação no espaço funcional se dê validamente é preciso concomitância de certos requisitos, por exemplo, a exigência da mesma escolaridade para ingresso no cargo inicial da carreira, a mesma escolaridade; segundo, que os níveis de vencimento, quando se faz a redenominação – eu também a admito a redenominação –, permaneçam os mesmos, não podem ser vencimentos diferentes, por efeito mesmo dessa redenominação. O que é mais? Que as atribuições também sejam assemelhadas. Presentes concomitantemente esses requisitos, eu me pronunciaria pelo desprovimento da ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, pela sua improcedência. Entretanto, o eminente Relator me convenceu de que, no caso, não é o que está acontecendo. Depois, a unificação em si de carreiras, pura e simplesmente, no âmbito das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mesmo com esse propósito de racionalização, de simplificação, de aumento de eficiência, essas unificações hoje parecem contrariar o inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal, cuja dicção é esta: Art. 37. (...) XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas (...) Ou seja, indicando carreiras específicas no âmbito das administrações tributárias. Isso me parece também abonar o voto do eminente Relator. Razão por que, Senhor Presidente, sigo S. Exa. por completo, pedindo vênia ao Ministro Marco Aurélio. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, reporto-me ao voto que proferi na ADI 1.591-5/RS, quando procurei revelar as peculiaridades do caso, quando procurei revelar que o ato normativo atacado teve como objetivo sanear a própria organização funcional nesse campo tão sensível dos tributos do Estado. E torno a frisar, Presidente – não sou defensor intransigente da jurisprudência do Tribunal, alguns dizem, inclusive, que sou muito rebelde a certos precedentes –, que já julgamos, em passado recente, situações idênticas, placitando as leis – a lei do Estado de Santa Catarina na ADI 1.561-3, Relator Ministro Sydney Sanches, e a lei do Estado do Rio Grande do Sul na ADI 1.591-5, Relator Ministro Octavio Gallotti –, e entendemos que não haveria, nessa junção de 144 R.T.J. — 209 a tribuições idênticas, o drible ao concurso público, ao salutar concurso público, com o qual é homenageado o mérito. Na ADI 2.335-7, de Santa Catarina, relatada pelo Ministro Gilmar Mendes, S. Exa. teve o cuidado de mencionar os precedentes: ADI 1.591-5/RS, Relator Ministro Octavio Gallotti; ADI 2.713-1/DF, Relatora Ministra Ellen Gracie. Ações em que, reafirmo, placitamos a junção dessas carreiras referidas de forma específica, mediante preceito exaustivo, no art. 27 da lei em análise pelo Plenário. O que, a meu ver, conflita, a mais não poder, com a Constituição Federal é a abertura do leque, em termos de aproveitamento, contida no parágrafo único do art. 26, que viabilizou os casos escancarados pelo relator de aproveitamento, como auditor, de, até mesmo, motoristas na nova carreira de arrecadação da Secretaria do Tesouro estadual. Exagerou, quanto a isso, na dose normativa. Agora, teremos essa situação a gerar perplexidade, a estampar, sob a minha óptica, talvez não seja a dos Colegas, a incongruência absoluta: validadas pelo Supremo as legislações dos dois Estados a que me referi – Rio Grande do Sul e Santa Catarina – e glosada – aqui, não estou me valendo, Presidente, da condição, por outorga, de cidadão cearense – uma lei idêntica do Estado do Ceará. Vejam o questionamento sob o ângulo da escolaridade. Evidentemente, para ocorrer a junção, considerada a disciplina pretérita de ingresso dos titulares desses cargos mencionados no art. 27, ter-se-ia o abandono da nova escolaridade – a merecer elogio. Mas a situação é residual, tendendo a findar com a aposentadoria desses servidores. Peço vênia, Presidente, para, no caso, assumir a postura que normalmente assumia, neste Plenário, o Ministro Sepúlveda Pertence na defesa da jurisprudência do Tribunal e assentar apenas a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 26. Mais uma vez registro a postura técnica e irrepreensível dos dois advogados que estiveram na tribuna, a do Procurador-Geral do Estado do Ceará e a do advogado Doutor Mauro de Azevedo Menezes, que sustentou pelo Sindicato. É como voto. EXTRATO DA ATA ADI 3.857/CE — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Requerente: Procurador-Geral da República. Requeridos: Governador do Estado do Ceará e Assembléia Legislativa do Estado do Ceará. Interessados: Sindicato dos Servidores Públicos Civis do Grupo Tributação, Arrecadação e Fiscalização do Ceará – SINTAF (Advogados: Roberto de Figueiredo Caldas e outros). Decisão: O Tribunal julgou inteiramente procedente a ação direta, nos termos do voto do Relator, contra o voto do Ministro Marco Aurélio, que a julgava parcialmente procedente. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Não votou o Ministro Eros Grau por não ter assistido ao relatório. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes (Presidente). Falaram, pelo requerido, o Dr. Fernando Antônio Costa de Oliveira, R.T.J. — 209 145 Procurador-Geral do Estado e, pelo amicus curiae, o Dr. Mauro de Azevedo Menezes. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 18 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 146 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO 4.174 — SP Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Agravante: José Carlos Tallarico Júnior — Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo Agravo regimental. Decisão que negou seguimento à reclamação. Recurso que não ataca todos os fundamentos no qual se assenta o ato impugnado. 1. A reclamação constitucional, prevista na alínea l do inciso I do art. 102 da Constituição Federal, destina-se a impedir usurpação da competência deste Supremo Tribunal Federal e a garantir a autoridade de suas decisões. Trata-se, portanto, de uma importante ferramenta processual com a finalidade de proteger o próprio guardião da Lei Maior. 2. A jurisprudência deste Tribunal vem reconhecendo ser a reclamação um instrumento apto à proteção dele mesmo, Supremo Tribunal, contra atos de terceiros (Rcl 2.106 e Rcl 1.775). Atos de terceiros que impliquem, lógico, usurpação de competência da Corte, ou, então, desrespeito à autoridade das decisões por ele, STF, exaradas. Logo, o cabimento da reclamação pressupõe a prática de atos externa corporis ou extramuros desta Corte Maior de Justiça. Donde a desembaraçada ilação de que os atos protagonizados pelo Presidente da Corte, suas Turmas e seus Ministros Relatores são reputados como de autoria do Supremo Tribunal mesmo. 3. No caso, a reclamação se volta contra a decisão tomada no AI 481.829-AgR-ED-EDv-AgR, da relatoria do Ministro Celso de Mello. 4. De outra parte, o Reclamante aponta o descumprimento da decisão da Rcl 2.138, cujo julgamento, à época do ajuizamento da reclamação, ainda não havia se encerrado. De mais além, ante a natureza subjetiva do processo, a decisão nela proferida não teria efeito vinculante. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, negar provimento ao agravo regimental na reclamação, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 27 de novembro de 2007 — Carlos Ayres Britto, Relator. R.T.J. — 209 147 RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão que negou seguimento à reclamação. Decisão assim legendada: Cuida-se de reclamação, com pedido de medida liminar, proposta pelo Prefeito do Município de Capão Bonito, Estado de São Paulo. 2. Sustenta o Reclamante que: “(...) o Ministério Público do Estado de São Paulo ingressou com Ação Civil Pública em face do Reclamante que tem como conseqüência a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos. Com efeito, nos autos do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência nos Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 481.829-6 – São Paulo (doc. 03), o Tribunal pleno, acolhendo o voto proferido pelo Eminente Relator Min. Celso de Mello, negou provimento ao referido agravo, cuja decisão foi publicada no DJ de 17/02/2006. Dessa forma, referida decisão, em se transitando em julgado, o que está para ocorrer no próximo dia 06 de março de 2006, o Reclamante terá como conseqüência a perda de sua função pública e de seus direitos políticos.” 3. O Acionante prossegue para dizer que, “estando a Reclamação nº 2.138 pendente de julgamento pelo Pleno desse Egrégio Tribunal, já havendo seis (06) votos favoráveis ao entendimento do Eminente Relator Ministro Nelson Jobim, o sobrestamento dos autos 481829/SP, em trâmite perante essa E. Supremo Corte seria medida de prudência e de resguardo da segurança jurídica que deve nortear as decisões judiciais” (sic, fl. 52). 4. Pois bem, após declinar os fundamentos jurídicos da sua pretensão de ver julgada procedente esta reclamação, o proponente formula o pedido, pugnando pela declaração de nulidade da Ação Civil Pública 1.314/95. Já em sede de liminar, postula o sobrestamento do AI 481.829-AgR-ED-EDv-AgR/SP, até o julgamento de mérito da Rcl 2.138. Alternativamente, requer a concessão do provimento cautelar para que “seja determinado ao D. Juízo Monocrático que se abstenha de proceder a execução da r. sentença proferida, até decisão ulterior dessa Corte de Justiça e do trânsito em julgado da presente Reclamação” (fl. 58). 5. Este o abreviado relatório. 6. Passo a decidir. Fazendo-o, anoto que o pedido é manifestamente inviável. É que a reclamação constitucional (alínea l do inciso I do art. 102 da CF) se revela como uma importante via processual para o fim de preservar a competência desta colenda Corte e de garantir a autoridade de seus atos decisórios. No entanto, os autos não noticiam nenhum desrespeito a decisões proferidas por este Supremo Tribunal Federal. 7. Poder-se-ia alegar – com algum esforço, diga-se de passagem – que o reclamante elegeu, como paradigma, a Rcl 2.138. Sucede que o Plenário desta excelsa Corte ainda não encerrou o julgamento do mencionado processo. Ademais, o decisum que dele brotará não se dotará de efeito vinculante e de eficácia erga omnes. Razão pela qual o pronunciamento jurisdicional a ser exarado nesse feito apenas terá por finalidade atar as partes nele envolvidas. 8. Muito bem. Ainda que assim não fosse, a reclamatória também se mostra escancaradamente incabível por uma outra razão. Explico. É que a reclamatória em tela se volta contra o decisum tomado no bojo do AI 481.829-AgR-ED-EDvAgR. E o fato é que, na linha dos precedentes desta Corte Suprema, a reclamação 148 R.T.J. — 209 é vista como uma ferramenta constitucional apta à proteção dele mesmo, Supremo Tribunal, contra ato de terceiros (Rcl 2.106, Rcl 1.775 e Rcl 3.916). Ato de terceiros que implique, lógico, usurpação de competência desta Suprema Corte, ou, então, desrespeito à autoridade das decisões por ela exaradas. Portanto, o cabimento da reclamação pressupõe a prática de ato externa corporis ou extra-muros desta Corte Maior de Justiça. Logo, ato necessariamente oriundo de instâncias diferenciadas dela própria. 9. Nessa ampla moldura, nego seguimento ao pedido, restando prejudicada a medida liminar postulada (§ 1º do art. 21 do RISTF). 2. Pois bem, irresignado, o Recorrente interpõe o presente recurso, pugnando pela reforma da decisão acima transcrita. 3. A seu turno, o Procurador-Geral da República opinou pelo não-conhecimento do agravo. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Sobre a espécie, assim se manifestou o ilustre Procurador-Geral da República: (...) Em dissonância com entendimento jurisprudencial firmado por este Excelso Pretório, ele não impugnou, como lhe competia, todos os fundamentos jurídicos em que se assentou a decisão agravada. Ele não refutou, v.g., o entendimento firmado por Vossa Excelência, segundo o qual “o pedido é manifestamente inviável. É que a reclamação constitucional (alínea ‘l’ do inciso I do art. 102 da CF) se revela como uma importante via processual para o fim de preservar a competência desta colenda Corte e de garantir a autoridade de seus atos decisórios. No entanto, os autos não noticiam nenhum desrespeito a decisões proferidas por este Supremo Tribunal Federal”. De igual sorte, não impugnou a tese segundo a qual “a reclamação é vista como uma ferramenta constitucional apta à proteção dele mesmo, Supremo Tribunal, contra ato de terceiros (Reclamações 2.106, 1.775 e 3.916). Ato de terceiros que implique, lógico, usurpação de competência desta Suprema Corte, ou, então, desrespeito à autoridade das decisões por ela exaradas. Portanto, o cabimento da reclamação pressupõe a prática de ato externa corporis ou extramuros desta Corte Maior de Justiça. Logo, ato necessariamente oriundo de instâncias diferenciadas dela própria” – fls. 173/174. Conforme entendimento jurisprudencial externado por este Excelso Pretório, “o instrumento processual da reclamação – enquanto medida de direito constitucional vocacionada a preservar a integridade da competência do Supremo Tribunal Federal e a fazer prevalecer a autoridade de suas decisões (CF, art. 102, I, l) – não se revela admissível contra atos emanados dos Ministros ou das Turmas que integram esta Corte Suprema, pois os julgamentos monocráticos ou colegiados, por eles proferidos, qualificam-se como decisões juridicamente imputáveis ao próprio Supremo Tribunal Federal. (...)” R.T.J. — 209 149 6. Tenho como irretocável o parecer. Como bem anotou o douto presentante do Ministério Público Federal, o Recorrente não rebateu os fundamentos da decisão atacada. Fato, por si só, idôneo a justificar o desprovimento do presente agravo regimental (cf. Rcl 3.121-AgR, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence; Rcl 1.956-AgR e Rcl 1.602-AgR, estas da relatoria do Ministro Néri da Silveira). 7. Esse quadro, nego provimento ao agravo. 8. É como voto. EXTRATO DA ATA Rcl 4.174-AgR/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravante: José Carlos Tallarico Júnior (Advogados: Maria Fernanda Pessatti de Toledo e outros). Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental na reclamação, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidiu o julgamento o Ministro Carlos Britto. Ausente, justificadamente, o Ministro Marco Aurélio, Presidente. Não participou, justificadamente, deste julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Primeira Turma, 27‑11‑07. Decisão: Retirado da mesa do Plenário por indicação do Relator. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 29 de novembro de 2007 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 150 R.T.J. — 209 MANDADO DE SEGURANÇA 24.890 — DF Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Impetrante: Kelly Cristine Prado Santana Martins — Impetrado: Presidente da República Mandado de segurança. Desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Desmembramento do imóvel após seis meses da data da comunicação para levantamento de dados e informações. Divisão do imóvel antes da edição do decreto presidencial. Impedimento à desapropriação. Lei 8.629/93, art. 2º, § 4º. Constituição Federal, art. 185, inciso I. 1. A divisão de imóvel rural, em frações que configurem médias propriedades rurais, decorridos mais de seis meses da data da comunicação para levantamento de dados e informações, mas antes da edição do Decreto Presidencial, impede a desapropriação para fins de reforma agrária. 2. Não-incidência, na espécie, do que dispõe o § 4º do art. 2º da Lei 8.629/93. 3. Existência de precedentes. 4. Segurança concedida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, deferir o mandado de segurança, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 27 de novembro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado contra ato do Presidente da República, consubstanciado no Decreto de 3 de fevereiro de 2004, publicado no DOU de 4 de fevereiro de 2004, que declarou de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel denominado “Fazenda Bugiu”, de propriedade do genitor da Impetrante, com área de 375,64 ha (trezentos e setenta e cinco hectares e sessenta e quatro ares), objeto da matrícula 25, Livro 2-A, do Cartório de Registro de Imóveis do Primeiro Ofício da Comarca de Cristinápolis, Estado de Sergipe (Processo Incra/ SR-23/nº 54370.001001/2002-62). 2. A Impetrante alega, em resumo, que o ato presidencial é manifestamente nulo e viola o art. 4º, III, a e parágrafo único, da Lei 8.629/93, bem como o art. 185, I, da Constituição Federal. Afirma que a propriedade, objeto do decreto R.T.J. — 209 151 expropriatório, foi desmembrada em duas outras de 189,5 ha cada, mediante escritura pública de compra e venda, datada de 4 de agosto de 2003, após o prazo de seis meses da notificação da vistoria preliminar para fins de desapropriação (22‑10‑02) e antes do decreto expropriatório. Esclarece que uma das partes desmembradas, agora denominada “Fazenda Jatobá”, foi adquirida por ela, Impetrante. Por se enquadrarem as duas novas propriedades desmembradas como médias propriedades rurais, elas são insuscetíveis de desapropriação. Invoca, em prol de sua tese, decisões desta Corte. Conclui pela existência de direito líquido e certo, fumus boni iuris e periculum in mora e postula a concessão de medida liminar, inaudita altera pars, para que o Incra se abstenha de aplicar qualquer procedimento tendente à interposição da ação expropriatória, e, ao final, requer seja concedida a segurança, para declarar nulo o decreto impugnado. 3. A autoridade coatora, a fls. 48/226, sustenta a inexistência do alegado direito líquido e certo e defende a validade do decreto presidencial. Diz, ainda, em síntese, que: – a Impetrante não provou o demembramento ficto (de pai para filha) nem a data de registro do imóvel no período previsto no § 4º do art. 2º da Lei 8.629/93, mas tão-só juntou aos autos certidão positiva de bens. Causa estranheza o fato de a “Fazenda Jatobá”, desmembrada da “Fazenda Bugiu”, não ter limites com essa última. O documento anexado aos autos não comprova que a Fazenda Jatobá é resultante de compra e venda de parte do imóvel rural declarado de interesse social; – “o imóvel rural não é propriedade rural”, mas, mesmo que tivesse sido dividido após 180 dias da comunicação da vistoria, nem por isso resultaria em impedimento à desapropriação. Primeiro, porque a venda de pai para filha deixa de constituir objeção legal, depois porque, com 10,4 Módulos Fiscais, Grau de Utilização da Terra – GUT de 67,44%, Grau de Eficiência da Exploração – GEE de 100% e classificada como média propriedade improdutiva, sujeita-se à expropriação, a despeito da vedação do art. 185, I, CF, porquanto o proprietário Luis Fernando de Santana, o pai da impetrante, é titular de outro imóvel rural; – o grau de utilização da terra ou o grau de eficiência da exploração são questões de fato que não podem ser examinadas no mandado de segurança, como não se pode, desde logo, avaliar se existe a área de reserva legal, suscitando dúvidas; – o imóvel presta-se ao assentamento de vinte famílias com lotes de dez hectares para criação de animais de pequeno porte. Invoca, ainda, a autoridade impetrada, a seu favor, votos e manifestações de vários Ministros desta Corte em casos análogos. 4. A fls. 228/230, deferi a medida liminar, para suspender o decreto expropriatório impugnado no que diz respeito exclusivamente ao imóvel da Impetrante, uma vez que o dono da outra metade, o pai da impetrante, não está no pólo ativo, e, por outro lado, consta dos autos ser ele proprietário de outro imóvel (fl. 170). 152 R.T.J. — 209 A Procuradoria-Geral da República manifestou-se (fls. 242/245) pela denegação da segurança, em parecer assim ementado: Mandado de segurança. Desapropriação. Alegação de venda de parcela do terreno objeto do Decreto presidencial à impetrante. Conseqüente nulidade deste, por não se conformar à real situação do imóvel. Venda realizada com o intuito evidente de se frustrar o processo expropriatório. Situação diversa da ocorrida nos precedentes invocados pela decisão concessiva de medida liminar. Simulação que, ainda que não se configure de modo evidente, é suficiente para afastar a necessária liquidez e certeza do direito pleiteado. Parecer pela denegação da ordem, com a revogação da liminar concedida. (Fl. 242.) É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A compra e venda do imóvel, objeto do decreto impugnado, foi registrada no dia 4‑8‑03, conforme observado na certidão passada pelo oficial de registro de imóveis da Comarca de Cristianápolis, Estado de Sergipe. De fato, não veio com a inicial, como apontam as informações, a cópia da escritura de compra e venda. Encontra-se, porém, nos autos, a fls. 26 e 46, a certidão do registro da escritura, com a data de 4‑8‑03. Com base nessa certidão da transação referida, portanto, vejo que ela se deu antes de 3‑2‑04, data do decreto impugnado, e após decorridos mais de seis meses de 22‑10‑02, data da comunicação para levantamento de dados e informações. Do confronto entre essas datas, verifico a não-incidência, pois, da ineficácia prevista no § 4º do art. 2º da Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, verbis: Não será considerada, para os fins desta Lei, qualquer modificação, quanto ao domínio, à dimensão e às condições de uso do imóvel, introduzida ou ocorrida até seis meses após a data da comunicação para levantamento de dados e informações de que tratam os §§ 2º e 3º. Por outro lado, a certidão do registro de imóveis, como sabido, tem fé pública. A prova negativa, em hipóteses como a presente, cabe ao poder expropriante, até porque o Incra tem livre acesso aos Registros de Imóveis de todo país. 2. Quanto a não estar registrado na certidão referida que a desmembrada Fazenda Jatobá faça divisa com a Fazenda Bugiu, considero o fato de menor relevância, pois o número de matrícula (0025) e o Livro (2-A) referentes ao registro do imóvel conferem com os trazidos nas informações da autoridade impetrada, a fl. 76, relativos ao imóvel objeto do decreto impugnado. 3. No que diz respeito à legalidade do desmembramento, o Supremo Tribunal Federal firmou orientação de que a divisão de imóvel rural, decorridos R.T.J. — 209 153 mais de seis meses da data da comunicação para levantamento de dados e informações, mas antes do decreto presidencial, em frações que configurem médias propriedades impede a desapropriação para fins de reforma agrária. Cito, entre outros: Esta Corte tem se orientado no sentido de que, se do desdobramento do imóvel, ainda que ocorrido durante a fase administrativa do procedimento expropriatório, resultarem glebas, objeto de matrícula e registro próprios, que se caracterizam como médias propriedades rurais, e desde que seu proprietário não possua outra, não será possível sua desapropriação-sanção para fins de reforma agrária. É o que sucede, no caso, em virtude de doação a filhos como adiantamento de legítima. Impossibilidade de em mandado de segurança se desconstituir o registro pelo exame da ocorrência, ou não, de simulação ou de fraude. (MS 22.591, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 14‑11‑03.) Reforma agrária: desapropriação: imóvel desmembrado, passados mais de seis meses da vistoria, em duas glebas rurais médias, doadas, cada uma, às duas filhas do expropriado; desapropriação inadmissível (CF, art. 185, I, c/c Lei 8.629/93, art. 2º, § 4º, cf. MP 2.183/01): mandado de segurança concedido. (MS 24.171, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 12‑9‑03.) A divisão do imóvel rural, por constituir direito assegurado ao condômino pelo ordenamento positivo, pode ocorrer mesmo quando já iniciada a fase administrativa do procedimento expropriatório instaurado para fins de reforma agrária. Se, da divisão do imóvel, resultarem glebas que, objeto de matrícula e registro próprios, venham a qualificar-se como médias propriedades rurais, tornar-se-á impossível a desapropriação-sanção prevista no art. 184 da Carta Política. Sendo assim, não se reveste de legitimidade jurídico-constitucional a declaração expropriatória do Presidente da República veiculada em decreto publicado em momento posterior ao do registro do título consubstanciador do ato de divisão do imóvel rural. A alegação governamental de que essa divisão do imóvel rural, por frustrar a execução do projeto de reforma agrária, qualificar-se-ia como ato caracterizador de fraude ou de simulação, que constituem vícios jurídicos que não se presumem, reclama dilação probatória incomportável na via sumaríssima do mandado de segurança. O argumento que imputa conduta maliciosa ao particular que sofre a expropriação-sanção não pode prevalecer contra a eficácia jurídico-real que deriva da norma inscrita no art. 252 da Lei dos Registros Públicos. (MS 21.919, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 6‑6‑97.) 4. Com base nesses precedentes, concedo a segurança. EXTRATO DA ATA MS 24.890/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Impetrante: Kelly Cristine Prado Santana Martins (Advogados: Silvio Roberto L. Bastos e outros e David José Cabral Ferreira da Costa). Impetrado: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União). 154 R.T.J. — 209 Decisão: Após o voto da Ministra Ellen Gracie (Relatora), concedendo a segurança, pediu vista dos autos o Ministro Carlos Britto. Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 15 de março de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário. VOTO (Vista) O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de mandado de segurança, aparelhado com pedido de liminar, impetrado por Kelly Cristine Prado Santana Martins, contra ato do Presidente da República. Ato consubstanciado no decreto de 3 de janeiro de 2004, pelo qual a “Fazenda Bugio”, situada no Município de Cristinápolis/SE, foi declarada de interesse social para fins de reforma agrária. 2. Argúi a Autora que o referido imóvel pertencia a seus genitores, Luiz Fernando de Santana e Yara Prado de Santana. Afirma que o Superintendente Regional do Incra no Estado de Sergipe, em 22‑10‑02, comunicou aos proprietários o levantamento de dados e informações do imóvel (§ 2º do art. 2º da Lei 8.629/93) e expediu ofício ao titular do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Cristinápolis/SE, para os fins do § 4º do art. 2º da Lei 8.629/93. 3. Diz a Impetrante que, decorridos mais de seis meses da data da comunicação da vistoria prévia, mais precisamente em 4 de agosto de 2003, adquiriu de seus pais metade da “Fazenda Bugio”, constituindo novo imóvel rural, denominado “Fazenda Jatobá”, cuja escritura pública de compra-e-venda foi devidamente registrada (fl. 26). Daí requerer a concessão da segurança, dado que o imóvel se enquadraria como média propriedade rural e ela, autora, não possui outro, incidindo, assim, a vedação do inciso I do art. 185 da Constituição Federal. 4. Muito bem. A Ministra Ellen Gracie, Relatora, na sessão de 15‑3‑06, concedeu a segurança. Fundamentou seu voto na jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, que firmou a orientação “de que a divisão de imóvel rural, decorridos mais de seis meses da data da comunicação para levantamento de dados e informações, mas antes do decreto presidencial, em frações que configurem médias propriedades impede a desapropriação para fins de reforma agrária”. S. Exa. citou os seguintes precedentes: MS 22.591, da relatoria do Ministro Moreira Alves; MS 24.171, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence; MS 21.919, da relatoria do Ministro Celso de Mello. 5. Pedi vista dos autos para maior reflexão sobre a matéria, principalmente ante o novo entendimento majoritário desta nossa Corte no sentido de que o conceito jurídico de imóvel rural apanha a unidade do bem quanto a sua exploração econômica, não se confundindo, portanto, com a pura e tradicional R.T.J. — 209 155 noção de propriedade rural. Daí por que me remeto para o debate ocorrido no julgamento do MS 24.573, em que prevaleceu o entendimento do Ministro Eros Grau. Naquela oportunidade, decidiu esta nossa Corte que “a saisine torna múltipla apenas a titularidade do imóvel rural, que permanece uma única propriedade até que sobrevenha a partilha”. Também foi assentado que “o conceito de imóvel rural do art. 4º, I, do Estatuto da Terra, contempla a unidade da exploração econômica do prédio rústico, distanciando-se da noção de propriedade rural”. Nesse mesmo tom, foi dito que “o registro público prevalece nos estritos termos de seu conteúdo, revestido de presunção iuris tantum”. 6. Embora diverso o caso destes autos, entendo que as teses agasalhadas no julgamento do MS 24.573 hão de ser aqui prestigiadas. O que se tem, aparentemente, é uma tentativa do genitor da Autora de se furtar ao processo de desapropriação do seu imóvel. Resta saber: a) se se cogita de uma tentativa legítima, ou não; b) se configura um óbice intransponível ao processo desapropriatório. 7. Quanto ao primeiro ponto, nada tenho a acrescentar ao voto da Ministra Ellen Gracie. De fato, segundo o § 4º do art. 2º da Lei 8.629/93, a modificação quanto ao domínio, à dimensão e às condições de uso do imóvel, introduzida ou ocorrida após seis meses da data da comunicação para levantamento de dados e informações há de ser considerada pelo poder público. Não seria razoável impor ao proprietário rural uma restrição eterna a seu direito de propriedade. Nem caberia, em sede de mandado de segurança, a apuração de eventual fraude. 8. Ocorre que, mesmo na suposição da legitimidade da transferência parcial do domínio da “Fazenda Bugio”, verificada após o referido prazo de seis meses e devidamente inscrita no registro de imóveis, tenho que não fica inviabilizada a desapropriação da área. Explico. 9. Conforme assentou este Supremo Tribunal Federal no julgamento do MS 24.573, o objeto da desapropriação para o fim de reforma agrária é o imóvel rural, considerado este como a “unidade de exploração econômica do prédio rústico”. Sendo assim, o que importa saber é se a unidade de exploração econômica configura pequena, média ou grande área, e se o imóvel é produtivo, ou não. Em outras palavras, se os 189,5 hectares de terra de propriedade da autora (“Fazenda Jatobá”), não obstante sua alteração cartorial, continuam a integrar, juntamente com a outra metade da “Fazenda Bugio”, uma só unidade de exploração econômica. Isto pela óbvia razão de que, se afirmativa a resposta, não poderá ela, impetrante, furtar-se ao transpasse compulsório do seu domínio para o Poder desapropriante. 10. Com isso – advirto –, não quero nulificar os efeitos da inscrição no registro de imóveis. Valho-me, ainda uma vez, das conclusões a que chegou este Plenário no MS 24.573 para afirmar que o registro público se reveste de presunção juris tantum. Da mesma forma que uma grande área de terra registrada sob única matrícula pressupõe uma só unidade econômica de exploração (mesmo sendo titularizada por numerosos condôminos), aquelas em cujo registro há 156 R.T.J. — 209 d ivisão se presumem unidades de exploração diversas. O que não impede, no caso concreto, a prova em contrário. 11. Já me encaminhando para a conclusão, torno a analisar a lide posta nestes autos. Faço-o para anotar que, no cartório de registro de imóveis da Comarca de Cristinápolis/SE, consta a “Fazenda Jatobá”, de propriedade da autora, como imóvel individualizado, desmembrado da “Fazenda Bugio” em data posterior aos seis meses a que se refere o § 4º do art. 2º da Lei 8.629/93. Dessa forma, legitimada está a presunção juris tantum de se tratar de unidade de exploração econômica única. Poderia o Incra superar essa presunção? Sim! Desde que, após a data do registro imobiliário da transação comercial, produzisse prova que desse conta da continuidade da conjugada exploração econômica (novo laudo de vistoria, por exemplo). 12. Sucede que não há nos autos nenhuma prova que afaste a presunção do que se encontra retratado no registro público. O Laudo Agronômico de Fiscalização de fls. 83/100 data de 27 de dezembro de 2002, antes, portanto, da alteração registral. 13. Ante o exposto, e com este acréscimo de fundamentação, acompanho a Relatora para conceder a segurança. 14. É como voto. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, tenho dificuldade para conceder, na espécie, a segurança. O Ministro Carlos Ayres Britto apontou que, no tocante à transmissão do domínio, há a presunção iuris tantum de valia, de validade, e essa presunção é afastada, no caso concreto, por texto legal. Refiro-me ao § 4º do art. 2º da Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, no que afasta a legitimidade da transferência, se verificada em certo período crítico: Art. 2º (...) § 4º Não será considerada, para os fins desta Lei, qualquer modificação, quanto ao domínio, à dimensão e às condições de uso do imóvel, introduzida ou ocorrida até seis meses após a data da comunicação para levantamento de dados e informações de que tratam os §§ 2º e 3º. E nos vem, mais, do próprio Código Civil em vigor preceito – o da citada lei é específico e teríamos a solução do caso pelo critério da especialidade – que revela ser nulo o negócio jurídico quando vise a certo fim. E o que houve? A transmissão do domínio pelo genitor à própria impetrante, procedendo-se à divisão da fazenda e, com isso, não mais existindo área passível de desapropriação para efeito de reforma agrária. Esse dado concreto, extremo de dúvidas, levou o Procurador-Geral da República a preconizar o indeferimento da ordem. Verdadeiro como é, não tenho R.T.J. — 209 157 como desconhecê-lo e assentar a validade da transmissão no que verificada pelo registro da escritura no Cartório de Imóveis. Peço vênia para indeferir a ordem. O Sr. Ministro Carlos Britto: A transferência foi posterior aos seis meses. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não posso dizer que esse preceito é inconstitucional, porque não encontraria base para concluir dessa forma. Ao contrário, ele estabelece presunção de vício do ato de vontade de transferência da propriedade, quando verificado no período a que me referi. EXTRATO DA ATA MS 24.890/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Impetrante: Kelly Cristine Prado Santana Martins (Advogados: Silvio Roberto L. Bastos e outros e David José Cabral Ferreira da Costa). Impetrado: Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União). Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, deferiu o mandado de segurança, nos termos do voto da Relatora, vencido o Ministro Marco Aurélio. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado o Ministro Joaquim Barbosa, justificadamente os Ministros Celso de Mello e Menezes Direito e, neste julgamento, o Ministro Eros Grau. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau e Cármen Lúcia. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 27 de novembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 158 R.T.J. — 209 RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.833 — DF Relator: O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Marco Aurélio Recorrentes: Idevandi Senefonte Guiraldi e outros — Recorrida: União Mandado de segurança – Causas de pedir – Vinculação. O órgão julgador do mandado de segurança está vinculado às balizas subjetivas e objetivas da impetração. Anistia – Portaria 1.104/64 da Aeronáutica. A anistia, considerada a Portaria 1.104/64 da Aeronáutica, apenas beneficia os integrados à Força Aérea em data anterior à edição da norma. Processo administrativo – Anistia – Reexame – Prazo decadencial. Observado o qüinqüênio previsto no art. 54 da Lei 9.784/99, possível é o reexame de ato que tenha implicado, à margem da ordem jurídica, revisão de anistia. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, negar provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança, por unanimidade, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 9 de setembro de 2008 — Marco Aurélio, Presidente e Relator do acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Recurso em mandado de segurança contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que tem a seguinte ementa: Mandado de segurança. Ministro da Justiça. Anistiados. Ausência do alegado direito líquido e certo. O alegado direito líquido e certo não foi demonstrado de plano, considerando-se informações trazidas pela autoridade coatora no sentido de que inúmeras anistias teria sido irregularmente concedidas, ensejando o procedimento de revisão de tais atos. Ordem denegada. Os embargos de declaração interpostos foram rejeitados (fls. 1164/1166). Daí o recurso ordinário, no qual se alega direito líquido e certo ao restabelecimento da Portaria que declarou os impetrantes anistiados políticos. As contra-razões foram apresentadas (fls. 1215/1223). É o relatório. R.T.J. — 209 159 VOTO O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Relator): Impertinente a alegação de invalidade formal da ato que anulou a concessão da anistia. É que as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório foram atendidas: consta dos autos a intimação do impetrante e a apresentação de sua defesa. Quanto ao princípio invocado da segurança jurídica, incidem as Súmulas 246 e 473. II Não há comprovação nem qualquer indício de que o impetrante tenha sido vítima de ato de exceção por motivação política ou ideológica, sequer na impetração existe alegação nesse sentido: o único fundamento é a edição da portaria questionada. Questão semelhante, com os mesmos contornos de fato e de direito, já foi examinada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RMS 25.581 (Velloso, DJ 16‑12‑05): Constitucional. Administrativo. Militar. Anistia. Portaria 1.104/64. I – Cabo da Força Aérea Brasileira licenciado por conclusão do tempo de serviço, oito anos, na forma da Portaria 1.104. Não foi demitido, portanto, da Força, por motivação político-ideológica. Inocorrência de direito à anistia política. II – Recurso não provido. Na linha do precedente, nego provimento ao recurso: é o meu voto. EXTRATO DA ATA RMS 25.833/DF — Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Recorrentes: Idevandi Senefonte Guiraldi e outros (Advogados: Mauro Machado Chaiben e outros). Recorrida: União (Advogado: Advogado-Geral da União). Decisão: Após o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, Relator, negando provimento ao recurso em mandado de segurança, pediu vista do processo o Ministro Marco Aurélio. Falou pelo recorrente o Dr. Mauro Machado Chaiben. Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Ricardo Lewandowski. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 16 de maio de 2006 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. VOTO (Vista) O Sr. Ministro Marco Aurélio: Com o mandado de segurança, objetivou-se ver declarado insubsistente ato do Ministro de Estado da Justiça que afastou do 160 R.T.J. — 209 cenário jurídico o reconhecimento dos impetrantes como anistiados, presente a Lei 10.559/02. Colho da inicial de fls. 2 a 45 a assertiva de que não teria sido instaurado processo administrativo de revisão das anistias, fato a implicar cerceio de defesa e ofensa ao princípio do devido processo legal. Num próximo passo, busca-se demonstrar que não era condição para a anistia a qualidade de cabo em data anterior à Portaria 1.104/64. Discorre-se sobre a interpretação a ela conferida, tentando-se comprovar a impossibilidade de mudança de entendimento vir a prejudicar os Impetrantes. Nas informações de fls. 1014 e seguintes, afirmou-se que, ante a concessão de anistias em desacordo com a Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, houve necessidade de reexame dos casos, sendo assegurado aos interessados o direito de defesa. Segundo o noticiado, a situação dos impetrantes não foi apanhada pela Portaria 1.104/GM3-1964, aplicando-se-lhes as normas próprias sobre engajamento e reengajamento e prazos para a permanência no serviço militar. A ordem foi indeferida pelo Superior Tribunal de Justiça. Entendeu-se que, tendo ocorrido a incorporação do impetrante ao serviço militar em data posterior à citada portaria, a ele não poderia ser reconhecido o direito à regência anterior. Na sessão em que iniciado o julgamento do recurso ordinário, o relator votou no sentido do desprovimento, seguindo-se o pedido de vista por mim apresentado. Inicialmente, aponto a inviabilidade de examinar temas não evocados como causas de pedir na impetração. Nesta se articulou, como consta do relatório contido no acórdão do Superior Tribunal de Justiça, com a violação do princípio do contraditório, em razão da ausência de processo administrativo de revisão das anistias, e o atendimento dos requisitos da Lei 10.559/02 pelos impetrantes bem como com a impossibilidade de o Ministro da Justiça adotar entendimento contrário à Comissão de Anistia, de a administração observar retroativamente nova interpretação e de haver a anulação das anistias depois do decurso de um ano e meio das respectivas concessões. No mais, não há como agasalhar as causas de pedir versadas. O direito à anistia far-se-ia restrito àqueles que estavam integrados à Aeronáutica na data da Portaria 1.104/64 no que esta teria deixado de observar situações constituídas. Ora, conforme ficou demonstrado nas informações, os Impetrantes ingressaram em data posterior, não se podendo concluir haverem sofrido, na situação funcional militar, a alteração perpetrada. Também improcede o que asseverado quanto à impossibilidade de revisão do ato administrativo que implicara a anistia. Constatou-se extensão à margem da ordem jurídica e a revisão, mediante processo, ocorreu sem que houvessem transcorrido dois anos do ato implementado. O caso não revela interpretação diversa da consagrada anteriormente, mas erro na consideração das circunstâncias em que os impetrantes ingressaram na Força Aérea. Acompanho o Relator no voto proferido e desprovejo o recurso. R.T.J. — 209 161 EXTRATO DA ATA RMS 25.833/DF — Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Relator para o acórdão: Ministro Marco Aurélio. Recorrentes: Idevandi Senefonte Guiraldi e outros (Advogados: Mauro Machado Chaiben e outros). Recorrida: União (Advogado: Advogado-Geral da União). Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Ministro Marco Aurélio. Primeira Turma, 20‑6‑06. Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança. Unânime. Relator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, Presidente. Não participou, justificadamente, deste julgamento, o Ministro Menezes Direito. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot. Brasília, 9 de setembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 162 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE SEGURANÇA 26.471 — DF Relator: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski Agravante: Município de São João — Agravado: Presidente do Tribunal de Contas da União (Decisão Normativa 79/06) Agravo regimental em mandado de segurança. Instrução normativa editada em conformidade com a Constituição Federal. Observância das disposições legais. Violação ao direito adquirido e ao princípio da legalidade. Inocorrência. Agravo improvido. I – A instrução normativa impugnada foi editada em consonância com o dispositivo constitucional que estabelece a competência do TCU para o cálculo das quotas de participação de cada Município no FPM. II – As disposições legais foram observadas quando da edição da instrução normativa e, em nenhum momento, a LC 91/97 veda que a quota de participação no fundo de um Município sujeito a redutor seja inferior a de outro Município que não sofre a referida redução. III – A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que a LC 91/97 não viola os princípios constitucionais do direito adquirido e da legalidade. Precedentes. IV – Agravo regimental improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, negar provimento ao recurso de agravo. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Celso de Mello, Ellen Gracie e Menezes Direito. Brasília, 25 de junho de 2008 — Ricardo Lewandowski, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de agravo regimental contra decisão que denegou a segurança. O mandado de segurança foi impetrado pelo Município de São João contra ato do Presidente do Tribunal de Contas da União que, na Decisão Normativa 79/06, aplicou a redução de 90% do seu coeficiente de participação no Fundo de Participação dos Municípios, nos termos da Lei Complementar 91/97. R.T.J. — 209 163 Alega o Impetrante, em síntese, que, em decorrência da citada decisão normativa, no ano de 2007 irá receber menos verbas que outros municípios integrantes da mesma faixa populacional à sua. Estaria, portanto, contrariada a mens legis da LC 91/97 (fl. 6). Isso porque “a LC 91/97 estabeleceu os redutores de forma gradativa para evitar o impacto que seria causado por uma brusca redução nos repasses para os Municípios que possuem debilitada situação financeira” (fl. 6). Requisitei prévias informações (fl. 34), que foram prestadas pela autoridade impetrada às fls. 40-50, e indeferi o pedido de medida liminar em 16‑10‑07 (fls. 53-55). A Procuradoria-Geral da República opinou pela denegação da ordem (fls. 55-59). Acolhi o parecer e deneguei a segurança (fls. 61-62). Eis o teor da decisão: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado pelo Município de São João/PR em face da Decisão Normativa 79, de 14 de novembro de 2006, emanada do Tribunal de Contas da União (fl. 17), que altera os valores referentes aos coeficientes destinados ao cálculo das quotas do Fundo de Participação dos Municípios, inclusive quanto ao do Município de São João/PR. O Município impetrante argumenta que “vem recebendo, já no exercício de 2007, não o mesmo valor que outro de população equivalente (...), mas valor inferior, o que é incompreensível” (fl. 5). Aduz, ainda, que “está a questionar a constitucionalidade da Decisão Normativa nº 79/2006, promulgada pelo Tribunal de Contas da União em 14 de novembro de 2006 (D.O.U. de 20.11.2006, p. 74) operando os efeitos a partir de 1º de janeiro de 2007. Tudo, portanto, com fiel respeito ao prazo de 120 (cento e vinte dias) previsto no artigo 18 da Lei nº 1.533/51, que dispõe sobre o mandado de segurança” (fl. 7 – grifo no original). Às fls. 52-53, indeferi o pedido de medida liminar sob o argumento de que esta Corte vem reconhecendo a constitucionalidade da aplicação dos redutores financeiros pelo TCU, utilizadas em hipóteses previstas na legislação. Às fls. 55-59, opinou a Procuradoria-Geral da República pela denegação da segurança, nos seguintes termos: “A decisão normativa nº 79, de 14 de novembro de 2006, objeto do mandamus, foi editada em estrita observância ao disposto no art. 161, II, e parágrafo único da Constituição Federal, que prevê a competência do Tribunal de contas da União para o cálculo das quotas relativas ao fundo de participação dos municípios com base nas estimativas populacionais do IBGE. Este Colendo Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que ‘não há ofensa ao direito adquirido e ao princípio da legalidade no ato do Tribunal de Contas da União que aplicou redutor de coeficiente da quota do Fundo de Participação dos Municípios, na forma da legislação em vigor (Lei complementar 91/77)’. No mesmo sentido – MS nº 24.014/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 14/6/2002, p. 128.” (Grifos no original.) Passo a decidir. 164 R.T.J. — 209 Acolho integralmente a manifestação da Procuradoria-Geral da República, não sem antes ressaltar recente decisão proferida no MS 26.469/DF, Rel. Min. Eros Grau, também lembrada no parecer da Procuradoria-Geral da República, que indeferiu o pedido de medida liminar em hipótese idêntica ao presente caso. Ante o exposto, conheço do presente mandado de segurança para, no mérito, denegá-lo pelas razões expostas. O Agravante sustenta, em suma, que houve erro na aplicação da LC 91/97, haja vista receber, já no ano de 2007, valor inferior ao de outros Municípios com a mesma faixa populacional que a. Aduz, ainda, que a equiparação dos valores somente se realizaria em 2008. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Reexaminada a questão, verifico que não há qualquer reparo a ser feito na decisão atacada. Com efeito, verifica-se que a instrução normativa impugnada foi editada em consonância com o dispositivo constitucional que estabelece a competência da Corte de Contas da União para o cálculo das quotas de participação de cada Município no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), art. 161, II, da Constituição Federal. Ademais, quanto ao apontado erro de aplicação da LC 91/97, constata-se das informações prestadas pela autoridade impetrada, que as disposições legais foram observadas quando da edição da instrução normativa e que, em nenhum momento, a referida lei complementar veda que a quota de participação no fundo de um Município sujeito a redutor seja inferior a de outro Município que não sofre a referida redução. Verifico, outrossim, que a jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que a LC 91/97 não viola os princípios constitucionais do direito adquirido e da legalidade. Nesse sentido, cito, entre outras, as seguintes decisões: MS 22.751/PR e MS 23.399/GO, Rel. Min. Ellen Gracie; MS 24.218/DF, Rel. Min. Cezar Peluso. Por fim, quanto à possibilidade de recebimento de valor inferior a de outros Municípios de mesma faixa populacional do Impetrante, oportuna a transcrição de trecho da decisão proferida pelo Min. Eros Grau quando do julgamento do MS 26.469/DF: (...) 15. A situação dita “incompreensível” pelo impetrante pode ser explicada matematicamente. No que tange aos Municípios sujeitos ao fator redutor, o impacto do crescimento populacional no período sobre o coeficiente fixado em 1997 e aplicado nos anos seguintes conduz a uma diferença cada vez menor. Da aplicação do fator redutor pode resultar uma quantia menor do que a correspondente a outro Município do mesmo patamar demográfico que não esteja sujeito R.T.J. — 209 165 à redução. Isso porque o fator redutor cresce ano a ano, ao passo que a população pode aumentar, diminuir ou permanecer estável. Tudo depende do ritmo de crescimento demográfico do Município. (...) (Grifos nossos.) Isso posto, nego provimento ao agravo regimental. EXTRATO DA ATA MS 26.471-AgR/DF — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Agravante: Município de São João (Advogados: Maria Tereza Calil Nader e outros). Agravado: Presidente do Tribunal de Contas da União (Decisão Normativa 79/06). Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso de agravo. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Celso de Mello, Ellen Gracie e Menezes Direito. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 25 de junho de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. 166 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE SEGURANÇA 26.836 — SP Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia Agravante: Money Forte Ltda. — Agravado: Juiz de Direito do Juizado Especial Cível da Comarca de Piracicaba Agravo regimental em mandado de segurança. Autoridade impetrada não elencada no rol do art. 102, inciso I, alínea d, da Constituição da República. Incompetência do Supremo Tribunal Federal para conhecer do mandado de segurança. Agravo regimental que não infirma os fundamentos da decisão agravada. Parcial provimento para declinar da competência ao Juizado Especial Cível da Comarca de Piracicaba/SP. 1. Incompetência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, mandado de segurança contra ato de Juiz de Direito integrante de Juizado Especial. 2. O agravo regimental limitou-se a reiterar toda a argumentação expendida na inicial do mandado de segurança, sem, entretanto, infirmar os fundamentos da decisão agravada. 3. Agravo regimental parcialmente provido para declinar da competência para o Tribunal a quo. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, em dar parcial provimento ao agravo regimental no mandado de segurança. Brasília, 25 de junho de 2008 — Cármen Lúcia, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Agravo regimental no mandado de segurança, interposto por Money Forte Ltda., em 3‑9‑07, contra decisão pela qual neguei seguimento à ação ao fundamento de que: 4. O mandado de segurança não pode ser conhecido. O art. 102, inciso I, alínea d, da Constituição da República estabelece as hipóteses de competência do Supremo Tribunal Federal para conhecer de mandado de segurança: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: R.T.J. — 209 167 d) o ‘habeas-corpus’, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o ‘habeas-data’ contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.” (Grifei.) No rol dos casos subsumidos constitucionalmente à competência deste Supremo Tribunal, não se inclui a atribuição para processar e julgar, originariamente, pedido de ordem de segurança em que figure como autoridade coatora Juiz de Direito de Juizado Especial Cível. A matéria não comporta discussão mínima, por se cuidar de regra de competência constitucional expressa, que não possibilita interpretação extensiva. 5. Pelo exposto, nego seguimento à ação, por incabível (art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), prejudicado, como é óbvio, o requerimento de liminar. (Fls. 99-101 – DJ de 20‑8‑07.) 2. Argumenta a Agravante que “o caso trata-se de cerceamento de defesa imposta pelo Juizado Especial da Comarca de Piracicaba-SP (...) [tendo ficado] demonstrado (...) que na falta de outros recursos, e pela ilegalidade demonstrada por autoridade judicial, outra saída não teve a Agravante senão em apelar a essa Corte Suprema, via Mandado de Segurança para preservar seu direito líquido e certo” (fl. 106). Afirma que o “mandado de segurança interposto se deu em razão da negativa de seguimento de recurso extraordinário, de competência desse Supremo Tribunal Federal, logo (...) na ausência de outro foro competente, somente a esta Casa de Justiça Suprema caberia julgar o recurso em debate” (fl. 107). E conclui: “se não há previsão legal, na ausência ou na falta de qualquer outra, poderá ser admitido o presente recurso, excepcionalmente, por se tratar de inconstitucionalidade cometida por autoridade judicial cuja competência para resolver atos dessa natureza é esse C. Tribunal” (fl. 107). Pede, por isso, “seja o Mandado de Segurança submetido à apreciação dos (...) Ministros que compõem essa Casa de Justiça Suprema, para a devida apreciação e julgamento” (fl. 108). Em 10‑9‑07, vieram-me os autos conclusos. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. Não assiste razão de direito à Agravante. 2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica quanto à impossibilidade de conhecimento de mandado de segurança impetrado contra ato pretensamente coator praticado por Juiz de Direito integrante de Juizado Especial, em face de sua absoluta incompetência. 168 R.T.J. — 209 A teor do que dispõe o art. 102, inciso I, alínea d, da Constituição da República, dúvidas não remanescem de que a autoridade tida como coatora não está elencada naquele rol, que é taxativo, sendo, portanto, incompetente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o presente mandado de segurança. Na assentada de 3‑5‑06, no julgamento do MS 25.432-AgR/DF, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, por unanimidade, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu: 1. O Coordenador-Geral de Recursos Humanos do Ibama não se encontra no rol de autoridades, relacionadas em numerus causus, no art. 102, I, d, da Constituição Federal, contra as quais é competente o Supremo Tribunal Federal para o julgamento de mandado de segurança. 2. Agravo improvido. (DJ de 26‑5‑06.) E, ainda, Ementa: Agravo regimental em mandado de segurança. Incompetência do Supremo Tribunal Federal para apreciar mandado de segurança contra atos de outros tribunais. Súmula 624/STF. Requerimento de conversão do writ em argüição de relevância. Pedido manifestamente incabível. A decisão atacada está de acordo com a sumulada jurisprudência do STF, dado que incumbe ao próprio Superior Tribunal de Justiça apreciar e julgar mandados de segurança contra atos de suas Turmas. É manifestamente incabível o pedido de conversão do mandamus em argüição de relevância, que não mais subsiste no Direito brasileiro. Agravo regimental a que se nega provimento. (MS 25.145-AgR/DF, Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ de 25‑8‑06.) Ementa: Mandado de segurança. Agravo regimental. Embargos de declaração. Turmas recursais dos Juizados Especiais. Incompetência do STF. Inexistência de omissão, obscuridade ou contradição na decisão embargada. Embargos rejeitados. O Supremo Tribunal Federal não tem competência para julgar mandado de segurança impetrado contra decisões de juizados especiais ou turmas recursais. Precedentes. Inexiste omissão, obscuridade ou contradição no acórdão recorrido. Embargos de declaração rejeitados. (MS 26.427-AgR-ED/PE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ de 29‑6‑07.) Na mesma linha: MS 26.054-AgR/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ de 29‑6‑07; MS 26.001-AgR/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ de 22‑6‑07; MS 26.427-AgR/PE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ de 13‑4‑07; MS 25.865-AgR/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ de 18‑8‑06; e MS 24.344/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, decisão monocrática, DJ de 16‑9‑02. 3. Não bastasse isso, a Agravante limitou-se a reiterar toda a argumentação expendida na inicial do mandado de segurança, sem, entretanto, infirmar os fundamentos da decisão agravada. R.T.J. — 209 169 O art. 317, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal estabelece: Art. 317. Ressalvadas as exceções previstas neste Regimento, caberá agravo regimental, no prazo de cinco dias de decisão do Presidente do Tribunal, de Presidente de Turma ou do Relator, que causar prejuízo ao direito da parte. § 1º A petição conterá, sob pena de rejeição liminar, as razões do pedido de reforma da decisão agravada. A considerar que o agravo regimental não infirmou os fundamentos da decisão agravada, de se concluir pela sua rejeição, sendo exemplo disso: Agravo regimental. Suspensão de segurança deferida. Ofensa à ordem e à economia públicas demonstrada. Ausência de impugnação dos fundamentos da decisão agravada. 1. O que se leva em conta na suspensão de segurança é se estão demonstradas as graves lesões elencadas na lei (Lei 4.348/64, art. 4º). 2. No caso em exame, a alegada lesão à ordem e à economia públicas foi comprovada, não tendo a parte agravante rebatido todos os fundamentos da decisão. 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido da inviabilidade do agravo regimental que não ataca cabalmente os fundamentos da decisão agravada. 4. Agravo regimental improvido. (SS 2.722-AgR/MS, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ de 2‑2‑07.) E: Mandado de segurança impetrado contra o Presidente do Superior Tribunal de Justiça – Seguimento denegado – Incompetência do Supremo Tribunal Federal – Agravo regimental – Recurso que não infirma os argumentos da decisão – Improvimento – Embargos de declaração – Descabimento contra decisão monocrática do Relator. – Falece competência ao Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, mandado de segurança contra atos emanados de qualquer tribunal judiciario ou de seus respectivos presidentes, inclusive do Superior Tribunal de Justiça. – A jurisprudência do STF tem sistematicamente recusado provimento ao agravo cujas razoes não questionam a motivação do ato decisorio contra o qual se insurge. – Não cabem embargos de declaração contra decisão monocrática proferida, ao Supremo Tribunal Federal, pelo Ministro Relator. (MS 21.717-AgR-ED/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ de 27‑5‑94.) No mesmo sentido: SS 2.906-AgR/PA, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ de 1º-12-06; SS 259-AgR/SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, Tribunal Pleno, DJ de 6‑5‑94; AI 583.219-AgR/BA, de minha relatoria, Primeira Turma, DJ de 3‑8‑07; Rcl 4.767-AgR/CE, de minha relatoria, Primeira Turma, DJ de 11‑5‑07; AI 650.238-AgR/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 31‑8‑07; AI 652.312-AgR/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 31‑8‑07; RE 464.888-AgR/AL, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ de 20‑4‑06; AI 367.499-AgR/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJ de 24‑8‑07; e AI 632.817-AgR/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ de 6‑9‑07. 170 R.T.J. — 209 4. Pelo exposto, mantenho a decisão agravada pelos seus próprios fundamentos e voto, entretanto, no sentido de dar parcial provimento ao presente Agravo Regimental para declinar a competência para processamento e julgamento do Mandado de Segurança ao Tribunal a quo. EXTRATO DA ATA MS 26.836-AgR/SP — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Agravante: Money Forte Ltda. (Advogado: Abel Manoel dos Santos). Agravado: Juiz de Direito do Juizado Especial Cível da Comarca de Piracicaba. Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, deu parcial provimento ao recurso de agravo. Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Celso de Mello, Ellen Gracie, Menezes Direito e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidiu o julgamento o Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presidência do Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 25 de junho de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 171 HABEAS CORPUS 73.552 — SP Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello Paciente: Erick Paul Favre Meroni — Impetrantes: Antonio Eduardo de Lima Machado Ferri e outro — Coator: Relator da PPE 220 Habeas corpus – Extradição – Prisão preventiva decretada para efeitos extradicionais – Pretendida concessão de liberdade vigiada – Impossibilidade – Art. 84, parágrafo único, da Lei 6.815/80 – Inaplicabilidade do enunciado da Súmula 2/STF – Extraditando casado com brasileira e que possui filho brasileiro – Irrelevância para o processamento e eventual deferimento do pedido de extradição – Súmula 421/STF – Prisão cautelar – Pressuposto indispensável ao regular processamento do pedido de extradição passiva – Eficácia temporal limitada – Superveniência do pedido extradicional devidamente instruído – Novação do título jurídico legitimador da prisão do súdito estrangeiro – Descaracterização de eventual excesso de prazo – Pedido indeferido. – O enunciado inscrito na Súmula 2/STF já não mais prevalece em nosso sistema de direito positivo, desde a revogação, pelo DL 941/69 (art. 95, § 1º), do art. 9º do Decreto-Lei 394/38, sob cuja égide foi editada a formulação sumular em questão. Doutrina. Precedentes. – A circunstância de o súdito estrangeiro possuir cônjuge brasileiro, ou ter filhos impúberes nascidos no Brasil, ou exercer, em território nacional, atividade lícita e honesta não constitui impedimento jurídico ao processamento e eventual deferimento do pedido de extradição passiva. Precedentes. – A prisão do súdito estrangeiro constitui pressuposto indispensável ao regular processamento da ação de extradição passiva. A privação da liberdade individual do extraditando deve perdurar até o julgamento final, pelo Supremo Tribunal Federal, do pedido de extradição. Doutrina. Precedentes. – Eventuais defeitos de ordem formal existentes no decreto judicial de prisão cautelar reputam-se superados e sanados com a superveniente formalização do pedido de extradição, desde que este se apresente devidamente instruído com a documentação exigida pela lei brasileira ou, quando existente, pelo tratado bilateral de extradição. – Com a instauração do processo extradicional, opera-se a novação do título jurídico legitimador da prisão do súdito estrangeiro, descaracterizando-se, em conseqüência, eventual excesso de prazo que possa estar configurado. É da essência da ação de extradição passiva a preservação da anterior custódia que tenha sido cautelarmente decretada contra o extraditando. Precedentes. 172 R.T.J. — 209 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em indeferir o pedido de habeas corpus. Impedido o Ministro Ilmar Galvão. Brasília, 10 de abril de 1996 — Celso de Mello, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Celso de Mello: Trata-se de “habeas corpus” impetrado contra ato do eminente Ministro ILMAR GALVÃO, que, na condição de Relator da PPE 220/República Oriental do Uruguai, decretou a prisão preventiva do ora Paciente Erick Paul Favre Meroni. Postula-se, no presente “writ” constitucional, a concessão de liberdade vigiada ao ora Paciente, porque preso por prazo superior àquele referido no enunciado da Súmula 2 do Supremo Tribunal Federal. Os Impetrantes sustentam, em síntese, que (fls. 3/4): (...) O Extraditando é Uruguaio por acidente, porque ali nasceu, mas vive no Brasil há quase 20 anos, tendo vindo para aqui com tenra idade, sendo que seus pais aqui residiram conforme se comprova pelo Contrato de Locação firma em 20 de dezembro de 1.976, onde residia na Rua Geórgia nº 60, firmado por seu Pai Sr. Enrique Sixto Favre Ramos e o senhorio Sr. Emílio Rosenthal, possui residência fixa no Brasil na Rua Fernandes Moreira Nº 781 – Chácara Santo Antonio em SÃO PAULO–SP. Tem o Extraditando uma irmã brasileira, Alexandra Meroni Favre, nascida em 10.5.78. Cert. de Nasc. do Reg. de Pessoas Nat. do 34º Subdistrito de São Paulo. O Extraditando é, declarante do Imposto de Renda por trabalhar e prestar serviços de 1.988 – Doc. anexo aos autos principais. E vem prestando serviços no Brasil de longa data, tem um grande lastro de conhecimento conforme atestam as declarações ora acostadas. EXTRADITANDO é casado com brasileira, Sra. ANGÉLICA AMICHETTI FAVRE, em 20 de dezembro de 1.990 – conforme Certidão de Casamento acostada e expedida pelo art. do Reg. Civil – 30º Subdistrito de São e ambos tem um filho de apenas 4 (quatro) anos de idade, PABLO FAVRE – Nascido em São Paulo, aos 16 de junho de 1.991. Tem o Extraditando Visto de Permanência para ficar e trabalhar no Brasil, não tendo o mesmo requerido até a presente data sua naturalização, simplesmente por descuido, porque condições para tanto já as tinha. Assim, por todo o exposto, sendo o extraditando CASADO COM BRASILEIRA, tendo FILHO BRASILEIRO, estando radicado aqui no Brasil por mais de 23 anos, trabalhador e não tendo nenhuma passagem criminal e nada constando em seu desabono. (...) O eminente Ministro ILMAR GALVÃO, Relator da PPE 220/República Oriental do Uruguai, ora apontado como autoridade coatora, ao prestar as R.T.J. — 209 173 informações que lhe foram solicitadas, assim esclareceu a situação jurídico-processual em que presentemente se encontra o Paciente (fls. 18/19): A prisão do ora paciente foi decretada, para fins extradicionais, nos autos da Extradição 660, requerida pelo Governo do Uruguai, havendo sido efetivada na cidade de São Paulo, onde se encontrava na Superintendência da Polícia Federal, até 23 de fevereiro passado, quando autorizei a sua remoção para o Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo, acatando solicitação do Chefe da Divisão de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras, que alegara estar a custódia do Departamento da Polícia Federal na referida capital sob interdição ordenada pela Justiça Federal. Em razão de o extraditando estar custodiado na mencionada cidade, deleguei competência para seu interrogatório à Justiça Federal da Seção Judiciária de São Paulo, para onde foram remetidos os autos, que retornaram a esta Corte em 3 de outubro de 1995, tendo sido, a seguir, encaminhados à Procuradoria-Geral da Republica, onde se encontram, até a presente data. (...). O Ministério Público Federal, ao apreciar o presente “writ”, opinou pelo indeferimento do pedido, em parecer assim ementado (fl. 25): “Habeas Corpus”. Indeferimento. Desde o Dl 941/69 não mais se admite, em processo extradicional, a concessão de liberdade vigiada (...). (Grifei.) É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Trata-se de “habeas corpus” impetrado em favor de súdito estrangeiro, contra quem foi deduzido pedido extradicional formulado pelo Governo da República Oriental do Uruguai. Postula-se, neste “writ”, a concessão de liberdade vigiada em favor do ora Paciente, eis que, consoante sustentado, revelar-se-ia inteiramente aplicável a ele o disposto na Súmula 2 do Supremo Tribunal Federal, posto que se acha preso por período superior a sessenta dias. Sustenta-se que a pretensão ora deduzida reveste-se de plena legitimidade jurídica, pois o ora Paciente – além de ter uma irmã brasileira (fl. 3) – possui cônjuge e filho brasileiros, achando-se domiciliado no Brasil por mais de 23 anos, aqui exercendo trabalho lícito e honesto, sem quaisquer antecedentes penais (fl. 4). O pedido em causa, contudo, Senhor Presidente, não pode ser deferido, eis que o Estatuto do Estrangeiro, ao dispor sobre a prisão do extraditando, prescreve que esta “perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitida a liberdade vigiada” – que é exatamente o pretendido no presente “writ” constitucional –, “a prisão domiciliar, nem a prisão albergue” (Lei 6.815, art. 84, parágrafo único – grifei). 174 R.T.J. — 209 Nem se poderia invocar, de outro lado, o que se contém na Súmula 2/ STF, para, em função de seu enunciado, postular-se, em favor do ora Paciente, a concessão de liberdade vigiada. É que o enunciado inscrito na Súmula 2/STF já não mais prevalece em nosso sistema de direito positivo, desde a revogação, pelo DL 941/69 (art. 95, § 1º), do art. 9º do Decreto-Lei 394/38, sob cuja égide foi editada a formulação sumular em questão. Daí a observação de ROBERTO ROSAS (“Direito Sumular”, p. 9, 7ª ed., 1995, Malheiros), cujo magistério enfatiza, a esse respeito, que “A lei (...) não prevê a liberdade vigiada”, entendimento este igualmente perfilhado por GILDA MACIEL CORRÊA MEYER RUSSOMANO (“A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro”, p. 137/138, nota 269, 3ª ed., 1981, RT), que sustenta não mais subsistir, presentemente, o enunciado constante da Súmula 2/STF, aduzindo, sob tal perspectiva, que “(...) o direito atual não admite a possibilidade de concessão ao extraditando de liberdade vigiada”, eis que a legislação federal acima referida “revogou (...) a mencionada Súmula” (grifei). O fato de o extraditando ser casado com brasileira, ter irmã brasileira e possuir filho brasileiro não obsta, só por si, o deferimento do pedido de extradição, e, com maior razão, não impede a mera decretação da prisão cautelar do súdito estrangeiro, consoante tem sido enfatizado pelo magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal: A circunstância de o súdito estrangeiro possuir cônjuge brasileiro, ou ter filhos impúberes nascidos no Brasil, ou exercer, em território nacional, atividade lícita e honesta não constitui impedimento jurídico ao deferimento da extradição passiva. (HC 71.402/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno.) A orientação em causa – que se apóia na formulação consubstanciada na Súmula 421/STF – tem invariavelmente prevalecido na jurisprudência desta Suprema Corte (Ext 653/República da Itália, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU de 23‑2‑96), cujos pronunciamentos, na análise desse específico aspecto da questão, enfatizam que: Não impede a extradição a circunstância de o súdito estrangeiro ser casado com brasileira, ou ser pai de filho brasileiro, ou, ainda, desenvolver atividade empresarial lícita no Brasil. Súmula 421/STF (...). (Ext 579/República Federal da Alemanha, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 15‑4‑94.) Os ora Impetrantes sustentam, ainda, que já se acharia superado o prazo de permanência do paciente na prisão. Impõe-se ressaltar, desde logo, que a medida constritiva da liberdade individual do ora Paciente, objeto de impugnação nesta sede de “habeas corpus”, reveste-se de eficácia temporal limitada, considerada a norma inscrita no art. 82, § 2º, do Estatuto do Estrangeiro, ressalvada, no entanto, disposição de ordem R.T.J. — 209 175 convencional em contrário, eis que a existência de tratado bilateral de extradição, constitui, no tema, verdadeira “lex specialis” em face da legislação interna brasileira, consoante proclama o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RT 554/434 – RTJ 70/333 – RTJ 100/1030 – RTJ 164/420-421, v.g.) No caso, Senhor Presidente, o Tratado de Extradição Brasil-Uruguai, celebrado no Rio de Janeiro em 1916, e o respectivo protocolo adicional, assinado em Montevidéu em 1921, nada dispõem a respeito dessa matéria, razão pela qual é aplicável, à espécie, a norma inscrita no art. 82, § 2º, do Estatuto do Estrangeiro. Cumpre ressaltar, por necessário, que a alegada ocorrência de excesso de prazo, ainda que estivesse efetivamente caracterizada, não teria o condão de restaurar o “status libertatis” do ora Paciente, eis que o pedido de extradição passiva já foi formulado pelo Estado estrangeiro interessado – Ext 660/República Oriental do Uruguai, Rel. Min. ILMAR GALVÃO –, achando-se, atualmente, incluído em pauta, para fins de julgamento final. Essa circunstância – o ajuizamento da ação de extradição passiva – assume relevante qualificação de ordem processual, pois tem o condão de descaracterizar possível superação dos prazos legais ou convencionais, concernentes ao tempo de duração da prisão cautelar dos súditos estrangeiros. É preciso ter presente, na análise do pedido ora formulado, que o ordenamento jurídico brasileiro revela-se extremamente severo no tratamento normativo dispensado ao extraditando, pois, além de impor a efetivação de sua prisão como pressuposto necessário ao regular processamento da ação de extradição passiva, também prescreve que o ato constritivo da liberdade do súdito estrangeiro “(...) perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão-albergue” (Lei 6.815/80, art. 84, parágrafo único). A prisão do súdito estrangeiro constitui pressuposto indispensável ao regular processamento da ação de extradição passiva. A privação da liberdade individual do extraditando, ora paciente, – ressalvada a hipótese excepcional de prisão preventiva (Lei 6.815/80, art. 82, § 2º e § 3º) – não está sujeita a prazos predeterminados em lei, devendo perdurar até o julgamento final da extradição pelo Supremo Tribunal Federal (HC 71.172/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno). É por essa razão que o magistério da doutrina (MIRTÔ FRAGA, “O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado”, p. 339, 1985, Forense) – refletindo o entendimento jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte (RTJ 125/1037, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 140/136, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RTJ 149/374, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) – observa: A prisão do extraditando deve perdurar até o julgamento final da Corte. Não se admitem a fiança, a liberdade vigiada, a prisão domiciliar ou a prisão-albergue. A privação da liberdade, nessa fase, é essencial ao julgamento, é condição “sine qua non” para o próprio encaminhamento do pedido ao Supremo Tribunal. Ela não tem nenhuma relação com a maior ou menor gravidade da infração, maior ou 176 R.T.J. — 209 menor periculosidade do agente; ela visa, tão-somente, possibilitar a entrega, se a extradição vier a ser deferida. Afinal de contas, existe, no estrangeiro, uma ordem de prisão (art. 78, II) expedida contra o extraditando e há, em conseqüência, a presunção de que esteja fugindo à ação da Justiça do Estado requerente. (Grifei.) Torna-se relevante observar, desse modo, na apreciação do pedido ora formulado, que, “com a instauração do processo extradicional, opera-se a novação do título jurídico legitimador da prisão do súdito estrangeiro, descaracterizandose, em conseqüência, eventual excesso de prazo que possa estar configurado. É da essência da ação de extradição passiva a preservação da anterior custódia que tenha sido cautelarmente decretada contra o extraditando” (HC 71.402/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno). Vê-se, assim, que a existência de fato superveniente – formulação da extradição passiva pelo Estado estrangeiro – reveste-se de significativa importância jurídica, pois, além de neutralizar os efeitos que derivariam do reconhecimento de possível excesso de prazo da prisão cautelar (RTJ 140/136), faz com que o “writ” constitucional de “habeas corpus”, quando impetrado, perca, até mesmo, o seu objeto: A superveniente formalização do pedido extradicional prejudica o “habeas corpus”, quando este, tendo por objeto a prisão preventiva do extraditando que foi anteriormente decretada, insurge-se contra o próprio ato judicial que ordenou a privação cautelar da liberdade individual do súdito estrangeiro. (HC 71.402/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno.) Sendo assim, pelas razões expostas, indefiro o presente “writ”. É o meu voto. EXTRATO DA ATA HC 73.552/SP — Relator: Ministro Celso de Mello. Paciente: Erick Paul Favre Meroni. Impetrantes: Antonio Eduardo de Lima Machado Ferri e outro. Coator: Relator da PPE 220-3. Decisão: Por votação unânime, o Tribunal indeferiu o pedido de habeas corpus. Impedido o Ministro Ilmar Galvão. Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Francisco Rezek e Maurício Corrêa. Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro. Brasília, 10 de abril de 1996 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 177 HABEAS CORPUS 81.369 — PB Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello Paciente: Fernando de Medeiros Cadete — Impetrantes: Carlos Fábio Ismael dos Santos Lima e outros — Coator: Tribunal Superior Eleitoral Recurso criminal eleitoral – Alegação de cerceamento do exercício do direito à sustentação oral por ausência de prévia publicação da pauta de julgamento – Inocorrência – Antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas de publicação da pauta que foi observada no caso – Habeas corpus indeferido. – A sustentação oral constitui ato essencial à defesa. A injusta frustração dessa magna prerrogativa afeta, de modo substancial, o princípio da amplitude de defesa que vem proclamado no próprio texto da Constituição da República. – O ordenamento positivo brasileiro não impõe que a pauta de julgamento seja publicada com a precisa indicação da data em que os processos dela constantes deverão ser julgados pelo Tribunal. O que se revela essencial, sob pena de nulidade, é que a publicação da pauta de julgamento, no Diário da Justiça, ocorra com a antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, em relação à sessão em que os processos serão chamados. Inocorrência de cerceamento ao direito de defesa do Paciente, eis que o julgamento do recurso criminal por ele interposto efetuou-se na primeira sessão após decorrido o prazo legal de 48 horas. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir a ordem. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Ilmar Galvão e Nelson Jobim. Presidiu o julgamento, sem voto, o Ministro Marco Aurélio. Brasília, 12 de dezembro de 2001 — Celso de Mello, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Celso de Mello: O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. EDINALDO DE HOLANDA BORGES, assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 95/96): SINOPSE: IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA CONTRA DECISÃO DO E. SUPERIOR TRIBUNAL ELEITORAL, O QUAL, EXAMINANDO IMPETRAÇÃO 178 R.T.J. — 209 ALI MANEJADA, INDEFERIU O “WRIT”. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO POR DESCUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. SUSTENTAÇÃO ORAL. PUBLICAÇÃO DE PAUTA. IMPROCEDÊNCIA DA IMPETRAÇÃO. INDEFERIMENTO DO “WRIT”. Trata-se de “habeas corpus”, impetrado contra decisão do E. Tribunal Superior Eleitoral, o qual, examinando impetração promovida contra acórdão de Tribunal Eleitoral da Paraíba, entendeu por indeferir o pleito, consignando que ao publicar a pauta de processos a serem julgados deve-se obedecer, por imposição legal, o prazo mínimo para o eventual julgamento do feito, não existindo na lei qualquer determinação prevendo prazo máximo para julgamento (acórdão de fls. 11/17). Daí a impetração atual, onde o paciente pugna pela anulação do mencionado acórdão, ao argumento de que, em resumo, o Tribunal do Estado “não fez inserir na publicação da pauta o dia e hora da respectiva sessão” (fls. 02/10). Liminar indeferida (fls. 76/77). Não procede a impetração. Em que pese a combatividade do Il. causídico impetrante, percebe-se das informações prestadas às fls. 82/87 que a pauta referente ao julgamento do processo respectivo fora devidamente publicada no DJ do dia 18 de maio de 2001, ao passo que o julgamento do processo ocorrera aos 28 dias do mesmo mês. Ora, havendo publicação de pauta, não cabe falar-se em cerceamento de defesa, máxime porque as 48 horas mínimas entre a publicação e o julgamento foram devidamente obedecidas (RITRE – PB). Por outro lado, improcede a pretensão do impetrante em ter a especificação exata do dia e da hora do julgamento, posto inexistir previsão expressa impondo referido procedimento. Caberia, assim, à parte, fiscalizar atentamente as sessões seguintes à publicação da pauta, não sendo atribuição do Tribunal, nesse caso, intimar pessoalmente as partes dos atos processuais. Na linha do que liminarmente já anuncia o r. despacho do Em. Ministro Relator, opina o MPF pelo indeferimento do “writ”. (Grifei.) O pedido de medida liminar foi por mim indeferido (fls. 76/77). O E. Tribunal Superior Eleitoral, por intermédio de seu ilustre Presidente, prestou as informações que lhe foram requisitadas (fls. 82/91). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Os ora Impetrantes insurgemse contra decisão denegatória de “habeas corpus” proferida pelo E. Tribunal Superior Eleitoral e consubstanciada em acórdão assim ementado (fl. 11): PROCESSO PENAL. “HABEAS CORPUS”. PAUTA. PUBLICAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. DENEGADA A ORDEM. R.T.J. — 209 179 I – Segundo entendimento da Corte, após a publicação da pauta, há que se observar o prazo mínimo previsto regimentalmente para o julgamento do feito em sessão, não havendo previsão quanto ao prazo máximo. II – Salvo caso em que ocorra injustificado excesso, o feito pode ser apreciado nas sessões subseqüentes àquela na qual foi incluído originariamente. III – Na espécie, inocorreu a alegada irregularidade, tendo o processo sido apreciado na primeira sessão hábil. (Grifei.) Esse julgamento, realizado na sessão de 6‑9‑01, foi presidido pelo eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, e teve a participação dos Senhores Ministros CARLOS VELLOSO e ELLEN GRACIE, desta Corte, figurando, como Relator, o eminente Ministro SÁLVIO FIGUEIREDO TEIXEIRA, havendo sido unânime a decisão proferida. Os Impetrantes sustentam que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que manteve o acórdão emanado do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, teria ocasionado injusto constrangimento ao “status libertatis” do Paciente – condenado a dois anos de reclusão, e multa (com “sursis” pelo prazo de dois anos – fl. 89), pela prática do crime tipificado no art. 299 do Código Eleitoral (corrupção eleitoral) –, pelo fato de haver considerado processualmente válida a realização do julgamento de determinado recurso criminal dez (10) dias após a publicação da respectiva pauta. A douta Procuradoria-Geral da República, ao opinar pelo indeferimento deste pedido de “habeas corpus”, sustentou inocorrer, no caso ora em exame, qualquer situação de abuso processual, ou de injusto constrangimento do direito de defesa, pois, além de haver sido respeitado o prazo mínimo de 48 horas, a contar da regular publicação da pauta, o julgamento do recurso criminal interposto pelo ora Paciente efetuou-se na primeira sessão após decorrido aquele prazo legal. Com efeito, a Pauta 27/2001, em que foi incluído o Processo 2357 – Classe 15 – no qual figurava como Recorrente o ora Paciente – foi publicada no Diário de Justiça do Estado da Paraíba de 18‑5‑01, sexta-feira, viabilizando-se, o julgamento respectivo, a partir de 23‑5‑01, quarta-feira, inclusive. Tendo em vista a relevantíssima circunstância – devidamente certificada pela Secretaria Judiciária do TRE/PB (fl. 38) – de que, entre 18‑5‑01 (data da publicação da pauta no TRE/PB) e 30‑5‑01, houve sessões, naquela Corte regional, nos dias 18, 21, 28 e 29 de maio, e considerando que o recurso interposto pelo ora Paciente somente poderia ser julgado a partir de 23‑5‑01, inclusive, torna-se fácil concluir que o julgamento em questão ocorreu na primeira sessão em que poderia ser ele validamente realizado, ou seja, na sessão de 28 de maio de 2001. E foi, precisamente, o que ocorreu na espécie, realizando-se, o julgamento do recurso, exatamente seis (6) dias após a data em que esgotado o prazo legal de 48 horas, referente à publicação da pauta de julgamento. 180 R.T.J. — 209 Daí a decisão proferida pelo E. Tribunal Superior Eleitoral, objeto do presente “writ”, no qual o eminente Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Relator, em voto acompanhado pela unanimidade dos ilustres Juízes daquela Alta Corte, fez consignar o que se segue (fl. 16): 4. Na espécie, é ainda de considerar-se que a publicação da pauta se deu no dia 18 de maio de 2001 (sexta-feira) e o julgamento do recurso ocorreu no dia 28 do mesmo mês (segunda-feira). E, conforme se extrai da certidão de fl. 27, “durante o período compreendido entre os dias 18 a 30 de maio de 2001, foram realizadas cinco sessões no egrégio TRE, assim distribuídas: dias 18, 21 e 29, apenas uma sessão em cada dia; no dia 28, duas sessões”. Destarte, como a publicação da pauta se verificou no dia 18 (sexta-feira) e o prazo de quarenta e oito horas do RITRE-PB se completou no dia 22 (terçafeira), tem-se que o julgamento ocorreu na primeira sessão seguinte após cumprido aquele lapso temporal, no dia 28 de maio de 2001 (segunda-feira). Diante desses fatos, resta duplamente afastada a alegação dos Impetrantes de que o Tribunal haveria demorado excessivamente para julgar o processo, que já se encontrava com pauta publicada. (Grifei.) Cumpre referir, neste ponto, que não se questiona o caráter essencial da publicação da pauta, que pode gerar, até mesmo, declaração da nulidade do julgamento, ante a ausência de intimação dos defensores. No que se refere a esse específico aspecto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sensível à grave importância jurídico-constitucional que assume o exercício do direito à sustentação oral, tem prestigiado essa particular expressão da liberdade de defesa, que assiste a qualquer acusado em juízo penal. Com efeito, este Supremo Tribunal, nos vários pronunciamentos sobre a matéria, tem invalidado os julgamentos proferidos por Cortes judiciárias, sempre que, por razões não imputáveis aos próprios acusados ou aos seus defensores, seja injustamente negado, a estes, o exercício do direito à sustentação oral (RTJ 140/926, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 176/1142, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 177/1231, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 67.556/MG, Rel. Min. PAULO BROSSARD). É preciso salientar, neste ponto, que a sustentação oral constitui ato essencial à defesa. A injusta frustração dessa magna prerrogativa processual afeta, de modo substancial, o princípio da amplitude de defesa que vem proclamado no próprio texto da Constituição da República. Ocorre, no entanto, que, no caso ora em exame, a pauta foi publicada com a antecedência legal necessária, realizando-se, o julgamento do recurso interposto pelo ora Paciente, em uma das sessões subseqüentes àquela na qual o feito foi originariamente incluído. Foi por essa razão que o E. Tribunal Superior Eleitoral, a propósito da matéria em discussão, enfatizou, com absoluta correção, que, “(...) após a publicação da pauta, há que se observar o prazo mínimo previsto regimentalmente R.T.J. — 209 181 para o julgamento do feito em sessão, não havendo previsão quanto ao prazo máximo” (fl. 11 – grifei). Cabe reconhecer, ainda, tal como destacado no julgamento objeto da presente impetração, que, no caso, não se registrou qualquer irregularidade, “Tendo, o processo, sido apreciado na primeira sessão hábil” (fl. 11 – grifei). Entendo, bem por isso, que as razões constantes do próprio acórdão questionado nesta sede processual desautorizam a pretensão ora deduzida pelos ilustres Impetrantes. Desse modo, tendo presentes as razões que venho de expor, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, indefiro o pedido de “habeas corpus”. É o meu voto. EXTRATO DA ATA HC 81.369/PB — Relator: Ministro Celso de Mello. Paciente: Fernando de Medeiros Cadete. Impetrantes: Carlos Fábio Ismael dos Santos Lima e outros. Coator: Tribunal Superior Eleitoral. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, indeferiu a ordem. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Ilmar Galvão e Nelson Jobim. Presidiu o julgamento, sem voto, o Ministro Marco Aurélio. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie. Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro. Brasília, 12 de dezembro de 2001 — Luiz Tomimatsu, Coordenador. 182 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 83.516 — SP Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Paciente: Wagner Meira Alves — Impetrantes: Caio Marcus Mourão de Almeida e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça Ação penal. Homicídio. Prisão preventiva. Decreto fundado em necessidade de assegurar a conveniência da instrução criminal. Providência tendente a evitar eventual fuga do réu ou intimidação de testemunhas. Inadmissibilidade. Medida cautelar. Natureza instrumental. Sacrifício da liberdade individual. Excepcionalidade. Necessidade de se ater às hipóteses legais. Sentido do art. 312 do CPP. Medida extrema que implica sacrifício à liberdade individual, a prisão preventiva deve ordenar-se com redobrada cautela, à vista, sobretudo, da sua função meramente instrumental, enquanto tende a garantir a eficácia de eventual provimento definitivo de caráter condenatório, bem como perante a garantia constitucional da proibição de juízo precário de culpabilidade, devendo fundar-se em razões objetivas e concretas, capazes de corresponder às hipóteses legais (fattispecie abstratas) que a autorizem. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de habeas corpus em favor do Paciente e acolher o pedido de extensão formulado por Airton Gilio, indeferir os demais pedidos de extensão, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Eros Grau e Ellen Gracie. Brasília, 6 de maio de 2008 — Cezar Peluso, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de habeas corpus, impetrado originalmente em favor de Wagner Meira Alves, contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que lhe indeferiu a ordem requerida nos autos do HC 14.508. A defesa havia impetrado habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, buscando a revogação da prisão preventiva do ora Paciente, sob alegação de falta de fundamentação. Denegada a ordem, foi impetrado, perante o Superior Tribunal de Justiça, habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Sustentou-se que o Paciente, preso preventivamente desde fevereiro de 2000, seria inocente, tendo confessado, R.T.J. — 209 183 mediante tortura, o crime previsto no art. 121, § 2º, I, III e IV, c/c o art. 62, I, e o art. 29, caput, todos do Código Penal. Pretendia-se a revogação da prisão preventiva por ausência de fundamentação. A ordem, porém, foi indeferida, em 28 de junho de 2001, pela Quinta Turma da Corte Superior de Justiça, sob o argumento de que: A alegação de inocência do paciente, enseja, para sua plena verificação, o profundo exame de todo material cognitivo, o que é incompatível com o rito célere do habeas corpus. Em um primeiro momento, indeferi a liminar, por não vislumbrar, então, o fumus boni iuris, mas determinei ao Juízo que prestasse informações (fls. 201203). A Procuradoria-Geral da República requereu cópia de decisão que decretou a prisão preventiva do Paciente original (fls. 217-221), o que foi determinado. O Juízo informou que os autos da ação penal se encontravam no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desde 9 de março de 2003, em razão de recurso em sentido estrito interposto pelo Paciente. E veio aos autos cópia da decisão que decretou a prisão preventiva (fl. 265). Diante disso, a Procuradoria-Geral da República opinou pela concessão parcial da ordem (fls. 268-272), nos seguintes termos: 3. A tese de negativa de autoria do paciente deve ser levantada em sede própria, que é a instrução criminal, onde ele poderá se defender amplamente. Demais, de concreto, tem-se que a prisão preventiva imposta ao paciente reveste-se dos requisitos legais autorizadores de sua decretação, nada importando que o paciente seja réu primário, portador de bons antecedentes e possua residência fixa. Com efeito, o decreto de prisão preventiva (fls. 265/265v.), e que encampa a representação da autoridade policial e a manifestação do Promotor de Justiça (fls. 263/264), encontra suporte na conveniência da instrução criminal e na garantia da aplicação da lei penal: “em liberdade certamente os acusados irão procurar obstar a ação da Justiça, quer abandonando o distrito da culpa, quer intimidando testemunhas” (fls. 265v.). 4. Por outro lado, as informações prestadas pelo juízo de primeiro grau às fls. 210 noticiam que o paciente foi pronunciado em 13.08.2001, e os autos da ação penal encontram-se desde 11.12.2002 no Tribunal de Justiça para julgamento de recurso em sentido estrito da defesa. Assim, mesmo afastado o excesso de prazo, por já ter sido proferida a sentença de pronúncia, cabe determinar o Tribunal de Justiça que inclua de imediato o feito na pauta de julgamentos. 5. Isto posto, opino pelo deferimento parcial do writ. (Fls. 271-272.) O Impetrante requereu reapreciação do pedido e, em razão dos novos elementos carreados aos autos, concedi a liminar (fls. 295-298), e a estendi, ainda, aos Co-réus Antonio Roberto Cerato (fls. 328-331), Aírton Gílio (fls. 451-453) e José Roberto Garcia (fls. 454-457), por estarem todos na mesma situação processual. Neguei, todavia, a extensão dos efeitos da liminar a Altair Gílio, porque preso a título diverso, em razão de decisão condenatória já transitada em julgado (fls. 679-681). 184 R.T.J. — 209 Das informações prestadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Juízo de Primeiro Grau, verifico que o processo movido contra o Paciente e o Co-réu Antonio Roberto Cerato aguarda julgamento pelo Tribunal do Júri (fls. 849-852); quanto ao Co-réu Airton Gillio, informa-se que foi condenado (fl. 851) e, em consulta ao sítio eletrônico do TJSP, verifico que sua defesa interpôs recurso de apelação, ainda não julgado. Altair Gillio foi julgado e condenado, já com trânsito em julgado da sentença (fls. 696-697). Também José Roberto Garcia já foi julgado e condenado, com igual trânsito em julgado (fl. 811). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. A decisão que decretou a prisão preventiva dos Pacientes tem o seguinte teor: 1) Atendendo à representação da digna Autoridade Policial (fls. 591/592), digo, (583/588)), que contou com o parecer favorável do Ministério Público (591/592), decreto a prisão preventiva dos réus, e o faço como forma de garantir o regular deslinde da causa e a efetiva aplicação da lei penal, pois em liberdade, certamente os acusados irão procurar obstar a ação da Justiça, quer abandonando o distrito de culpa, quer intimidando testemunhas. Expeçam-se mandado de prisão com prazos de validade até 20 de fevereiro de 2.020. (Fl. 265 e v.) 2. Dessa curta forma, despida de qualquer referência a elementos concretos que revelassem indícios de perigo de fuga ou de intimidação de testemunhas, decretou, a magistrada, a prisão dos Pacientes. 3. Medida extrema, que implica sacrifício à liberdade individual, a prisão preventiva deve ordenar-se com redobrada cautela, à vista, sobretudo, da sua função meramente instrumental, enquanto tende a garantir a eficácia de eventual provimento definitivo de caráter condenatório, bem como perante a garantia constitucional da proibição de prévia consideração de culpabilidade, devendo fundar-se em razões objetivas e concretas, capazes de corresponder às hipóteses legais (fattispecie abstratas) que a autorizem. Daí já ter decidido este Tribunal: A prisão preventiva enquanto medida de natureza cautelar não tem por finalidade punir, antecipadamente, o indiciado ou o réu. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo poder público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre R.T.J. — 209 185 a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerte, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. (HC 79.857, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 4‑5‑01.) Decretada no curso do processo, somente encontra justificação “na excepcionalidade de situações em que a liberdade do acusado possa comprometer o regular desenvolvimento e a eficácia da atividade processual”.1 E por isso, tal como toda medida excepcional que importa constrangimento à liberdade de ir e vir, deve necessariamente ser cautelar, para coexistir com o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República. 4. Prisão no curso do processo só pode ser decretada, portanto, para lhe garantir eventual resultado útil, pressupondo, assim, referência expressa a elementos concretos que revelem ameaça à instrução processual ou risco à aplicação de pena. Ora, a decisão que decretou a prisão preventiva dos Pacientes não aponta fatos concretos que indiquem o motivo pelo qual a liberdade dos Réus prejudicaria a instrução da causa ou eventual aplicação da lei penal. Desajudado ou carente de base factual, o apelo retórico a possível risco à aplicação da pena não pode sustentar decretação de prisão preventiva, como tenho decidido (cf. HC 86.371-MC; HC 86.140-MC; HC 83.516-MC). Assim, a despeito das razões que imprimiriam caráter cautelar à prisão imposta aos Pacientes, a decisão carece de qualquer substrato fático, limitando-se a repetir os termos da norma contida no art. 312 do Código de Processo Penal, sem, porém, indicar dados que convencessem da necessidade de, com a prisão, “garantir o regular deslinde da causa e a efetiva aplicação da lei penal, pois em liberdade, certamente os acusados irão procurar obstar a ação da Justiça, quer abandonando o distrito de culpa, quer intimidando testemunhas” (fl. 265). Em resumo: não há, na decisão que decretou a prisão do Paciente, nenhum dos requisitos legais que a autorizariam. 5. A prisão decretada na pronúncia (fls. 369-378) incorreu no mesmo equívoco, ao mencionar apenas que “os réus não poderão aguardar o julgamento em liberdade, visto que permanecem inalterados os motivos que ensejaram a decretação da prisão preventiva (fl. 692 e verso). Oficie-se, recomendando-se os acusa dos ao diretor do estabelecimento onde estão custodiados” (fl. 377). Temos reiteradamente decidido que, se a pronúncia, para conservar preso o acusado, se remete aos fundamentos do decreto de prisão processual anterior, a eventual inidoneidade deles contamina de nulidade a prisão processual e, por isso, não prejudica o habeas corpus que a impugne (HC 86.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 9‑12‑05; HC 86.703, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 2‑12‑05; RHC 83.465, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 19‑12‑03). 1 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 65. 186 R.T.J. — 209 Por isso, a prisão, tendo por fundamento da decisão de pronúncia, não pode igualmente subsistir. 6. Não houve resposta a ofício que, dirigido ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, solicitou fosse remetida a esta Corte cópia de eventual decisão sobre pedido de prisão do Acusado Airton Gílio (fl. 840, reiterado à fl. 872). Mas, considerando a longa tramitação do presente writ – que foi impetrado ainda em 2003 –, creio se lhe impõe o imediato julgamento. 7. Do exposto, concedo a ordem para anular o decreto de prisão preventiva contra o Paciente. Com fundamento no art. 580 do Código de Processo Penal, defiro o pedido formulado por Airton Gilio e estendo-lhe a ordem, para que aguarde em liberdade o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, se por al não estiver preso. Vê-se, contudo, que há novo decreto de prisão preventiva contra o Paciente Wagner Meira Alves (fls. 855/856) e, também, contra o Co-réu Antônio Roberto Cerato (fl. 858). Estão, portanto, presos a títulos diversos daquele atacado pelo presente writ, os quais, por conseqüência, não são alcançados, na prática, por esta decisão. Denego, também, o pedido de extensão formulado em favor de Altair Gilio e José Roberto Garcia, porque já transitadas em julgado as sentenças que os condenaram (fls. 696-697 e 811-812). É como voto. EXTRATO DA ATA HC 83.516/SP — Relator: Ministro Cezar Peluso. Paciente: Wagner Meira Alves. Impetrantes: Caio Marcus Mourão de Almeida e outros (Advogados: Wladimir Cabello e outro, Anna Luiza Rachel Nogueira Leite e outros e Daniel Leon Bialski e outro). Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas corpus em favor do Paciente e acolheu o pedido de extensão formulado por Airton Gilio, indeferidos os demais pedidos de extensão, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Eros Grau e Ellen Gracie. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Eros Grau e Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves. Brasília, 6 de maio de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. R.T.J. — 209 187 HABEAS CORPUS 83.554 — PR Relator: O Sr. Ministro Gilmar Mendes Paciente: Henri Philippe Reichstul — Impetrante: José Gerardo Grossi — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. 2. Responsabilidade penal objetiva. 3. Crime ambiental previsto no art. 2º da Lei 9.605/98. 4. Evento danoso: vazamento em um oleoduto da Petrobrás 5. Ausência de nexo causal. 6. Responsabilidade pelo dano ao meio ambiente nãoatribuível diretamente ao dirigente da Petrobrás. 7. Existência de instâncias gerenciais e de operação para fiscalizar o estado de conservação dos 14 mil quilômetros de oleodutos. 8. Não-configuração de relação de causalidade entre o fato imputado e o suposto agente criminoso. 8. Diferenças entre conduta dos dirigentes da empresa e atividades da própria empresa. 9. Problema da assinalagmaticidade em uma sociedade de risco. 10. Impossibilidade de se atribuir ao indivíduo e à pessoa jurídica os mesmos riscos. 11. Habeas corpus concedido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 16 de agosto de 2005 — Gilmar Mendes, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Henri Philippe Reichstul contra o Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus, em decisão assim ementada, verbis: Processo penal – Crime ambiental – Trancamento da ação penal – Ausência de justa causa e inépcia da denúncia – Inocorrência – Alegações que exigem dilação probatória – Inviabilidade. – No âmbito deste Colegiado, tem-se consagrado que o trancamento de ação, pela via estreita do writ, somente se viabiliza quando, pela mera exposição dos fatos narrados na denúncia, constata-se que há imputação de fato penalmente atípico ou que inexiste qualquer elemento indiciário demonstrativo da autoria do delito pelo paciente. Tais circunstâncias inocorrem no caso vertente. – Recurso desprovido. (Fl. 20.) 188 R.T.J. — 209 O Paciente foi denunciado, na qualidade de Presidente da empresa Petrobras, como incurso no art. 54 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, nos seguintes termos, constantes da denúncia: No dia 16 de julho de 2000, a denunciada PETROBRAS – Petróleo Brasileiro S/A, explorando empreendimento de refino de petróleo em unidade situada no Município de Araucária – Estado do Paraná, denominada Refinaria Presidente Getúlio Vargas – REPAR, juntamente com os denunciados Henri Philippe Reichstul, Presidente da empresa, e Luiz Eduardo Valente Moreira, Superintendente da refinaria, acabaram por poluir os Rios Barigüi e Iguaçu e suas áreas ribeirinhas, por meio do vazamento de aproximadamente quatro milhões de litros de óleo cru, provocando a mortandande de animais terrestres e da fauna ictiológica, além da destruição significativa da flora, porque embora tenham colocado em risco o meio ambiente pela exploração e gerenciamento de atividade altamente perigosa, deixaram em contrapartida de adotar medidas administrativas e de impor o manejo de tecnologias apropriadas – dentre as disponíveis – para prevenir ou minimizar os efeitos catastróficos que uma mera falha técnica ou humana poderia provocar em atividades desta natureza. (Fls. 28/29.) O parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra da Subprocuradora-Geral da República, Dra. Delza Curvello Rocha, de fls. 59-71, assim resumiu a controvérsia: Contra essa decisão, impetra-se a presente ordem de habeas corpus, insistindo, o impetrante, no pedido de trancamento da ação penal, sob os mesmos argumentos, alegando falta de justa causa para o seu prosseguimento, acrescentando que “a propósito do derramamento de óleo ocorrido na dia 18/01/2000, na Baía de Guanabara (Refinaria Duque de Caxias – REDUC), mencionado na denúncia acima transcrita, que, também, aí, o paciente Henri Phillipe Reichstul foi denunciado pelo Ministério Público Federal; que a denúncia foi recebida; que foi impetrada ordem de habeas corpus em favor do paciente, concedida pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região para trancar a ação penal (...)”. Acrescenta, ainda, que a denúncia imputa ao paciente a prática de um crime omissivo impróprio, alegando que “Será humanamente inexigível que o paciente fiscalize a conduta funcional de cada funcionário da Petrobras (...)” e que, é “impossível” atribuir ao paciente, “na sua condição de presidente da companhia”, “o concreto dever inscrito em uma relação vital, em estreito vínculo com o ‘bem jurídico’ de evitar vazamento em cada centímetro dos 14.627 quilômetros de oleodutos operados pela Petrobras” e que, “é típico de responsabilização objetiva por fato alheio” (fls. 14). O Ministério Público Federal manifestou-se pelo indeferimento do writ. O Impetrante apresentou memoriais, sustentando que a condenação do Paciente configuraria responsabilidade penal objetiva, pois o art. 2º da Lei 9.605, de 1998, se caracteriza como crime omissivo impróprio, independente da existência de relação concreta entre os representantes da pessoa jurídica e seus servidores. É o relatório. R.T.J. — 209 189 VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): Conforme relatei, pretende-se, no caso, a incriminação de ex-Presidente de uma instituição do porte da Petrobras tendo em vista a ocorrência de derramamento de óleo em determinado empreendimento de refino de petróleo. Seguindo a perspectiva analítica do crime (fato típico, ilícito e culpável, sendo o fato típico composto por conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade), e consideradas as circunstâncias do caso, penso que precisamos aqui realizar um exame cuidadoso da conduta considerada criminosa, assim como a análise do nexo de causalidade entre essa conduta e o resultado considerado lesivo ao meio ambiente. A conduta Na referida perspectiva analítica, o primeiro elemento do fato crime é a conduta, que deve ser dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva. Não há crime sem conduta, essa é uma garantia elementar do direito penal moderno, a afastar qualquer perspectiva de punição do pensamento, da forma de ser, de características pessoais, etc. Conforme bem advertem Zaffaroni e Pierangeli, não obstante a aparente obviedade do princípio de que não há crime sem conduta, no momento atual não faltam tentativas de suprimir ou de obstaculizar essa garantia. Zaffaroni e Pierangeli, entre outras questões, discutem, especificamente, a legitimidade da responsabilização da pessoa jurídica (Manual de Direito Penal, Parte Geral. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 409). Essa não é, certamente, uma discussão pertinente ao presente caso. O que quero enfatizar aqui é que a primeira baliza para a análise do fato crime é a correta percepção da conduta exteriorizada pelo suposto autor do delito. A conduta, em uma perspectiva finalista, consiste em um comportamento voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer. A finalidade da conduta, conforme lições de Rogério Greco, pode ser ilícita – e aqui temos o dolo − ou lícita, hipótese em que a existência de crime estará vinculada a previsão legal expressa no sentido da incriminação de ato culposo (Curso de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus. p. 166). No caso em exame, ao final da denúncia formulada contra o Paciente, o Ministério Público afirma que “incorreram os denunciados nas sanções do art. 54 da Lei 9.605/98”. O referido artigo prevê a incriminação tanto da modalidade dolosa quanto da modalidade culposa. Todavia, a denúncia não explicita em qual modalidade pretende o Ministério Público ver o Réu condenado. Considero necessário, nesse ponto, registrar os trechos da denúncia em que são descritas especificamente condutas do Paciente (destaques nossos): No dia 16 de julho de 2000, a denunciada PETROBRAS – Petróleo Brasileiro S/A, explorando empreendimento de refino de petróleo em unidade 190 R.T.J. — 209 situada no Município de Araucária – Estado do Paraná, denominada Refinaria Presidente Getulio Vargas – REPAR, juntamente com os denunciados Henri Philippe Reichstul, Presidente da empresa, e Luiz Eduardo Valente Moreira, Superintendente da refinaria, acabaram por poluir os Rios Barigüi e Iguaçu e suas áreas ribeirinhas, por meio do vazamento de aproximadamente quatro milhões de litros de óleo cru, provocando na mortandade de animais terrestres e da fauna ictiológica, além da destruição significativa da flora, porque embora tenham colocado em risco o meio ambiente pela exploração e gerenciamento de atividade altamente perigosa, deixaram em contrapartida de adotar medidas administrativas e de impor o manejo de tecnologias apropriadas – dentre as disponíveis – para prevenir ou minimizar os efeitos catastróficos que uma mera falha técnica ou humana poderia provocar em atividades desta natureza. (Fls. 28/29.) A Petrobras está sob o comando do denunciado Henri Philippe Reichstul desde maio de 1999. A sua administração representa um grande paradoxo. De um lado a Petrobras obteve o melhor desempenho econômico de sua história – um lucro líquido de quase 5 bilhões de dólares – e o valor de mercado da empresa quase que triplicou (passou de 9 bilhões de dólares em janeiro de 1999 para 30 bilhões em janeiro deste ano) – (Reportagem da Revista Exame, edição 737, de 04 de abril de 2001 – páginas 46/47). Em contrapartida, a Petrobras se envolveu em três grandes e graves acidentes em pouco mais de quatorze meses: o derrame de óleo combustível na Baia de Guanabara, o derrame de petróleo nos Rios Barigüi e Iguaçu e o acidente na P-36 no campo de Roncador, a 120 Km da costa do litoral fluminense, fora os de menor gravidade, elencados nas informações da Agência Nacional do Petróleo. (...) Os acidentes têm ocorrido em progressão geométrica em todo o país não por mero acaso. Todos eles têm relação direta com uma política empresarial preordenada, implantada pelo seu Presidente, buscando em primeiro lugar a auto-suficiência na produção de petróleo. Ocorre que não há como aumentar abruptamente os níveis de produtividade e faturamento numa atividade deste tipo sem comprometer os níveis de segurança. Assume-se um risco calculado. (...). O denunciado Reichstul instituiu “profunda metamorfose administrativa” na empresa (reportagem acima citada – p. 47), adotando um planejamento estratégico, dividiu a Petrobras em 40 unidades de negócios, que funcionam com metas e resultados próprios. Segundo a reportagem mencionada, com a criação de unidades de negócios voltadas para uma gestão de resultados, não há dúvida de que existe uma pressão para que ocorra um aumento na produtividade na empresa. Afinal, o Presidente da Petrobras pretende transformá-la na maior empresa de energia do Hemisfério Sul. (Fls. 41/42.) Das medidas adotadas depois dos vazamentos da Baía da Guanabara e dos Rios Barigüi e Iguaçu: Após o vazamento na Baía da Guanabara, ocorrido em janeiro de 2000, o denunciado Henri, Presidente da Petrobras, decidiu investir em um projeto ambiental de prevenção de acidentes, batizado de PEGASO – Programa de Excelência em Gestão Ambiental e Segurança Operacional. A medida foi adotada R.T.J. — 209 191 tardiamente, sendo que ainda não alcançou os resultados almejados na prevenção de acidentes. Este fato foi reconhecido por Henri P. Reichstul, quando afirmou em entrevista concedida à Folha de São Paulo em 15 de agosto de 2000, no caderno “cotidiano”, em anexo, que a Petrobras só alcançará a excelência ambiental em 2003, sendo impossível garantir que novos vazamentos de petróleo não irão ocorrer até lá. Quando aconteceu o vazamento nos Rios Barigüi e Iguaçu, nova resolução foi tomada pela denunciada Petrobras, por meio de seu Presidente denunciado Henri, ou seja, foi criado o programa chamado de vigilância máxima. Com este programa procurou-se colocar em prática desde procedimentos até pequenas obras destinadas a minimizar os efeitos de um vazamento. Estas medidas deveriam ter sido tomadas anteriormente ao fato, pela empresa denunciada, por meio de seu Presidente Henri P. Reichstul e do então Superintendente da Repar denunciado Luiz Eduardo Valente Moreira. (Fls. 44/45.) O vazamento da Repar é um exemplo claro de que o oleoduto não estava sofrendo manutenção preventiva e controle adequado. O vazamento, portanto, era previsível pelo então Superintendente da Repar e pelo Presidente da Petrobras, que se omitiram em adotar medidas prévias que pudessem evitá-lo, com conhecimento da situação de perigo. A adoção prévia das medidas até aqui mencionadas pela Petrobras, através do então Superintendente da Repar e pelo seu Presidente, teria evitado o derrame. Ambos tinham o dever de cuidado pelas posições por eles ocupadas na empresa e a responsabilidade de evitar o vazamento, o que não fizeram a fim de atingir a meta de redução de custos com pessoal, segurança e manutenção, assumindo o risco de produzir o resultado, mesmo depois do grande vazamento de óleo ocorrido na Baía de Guanabara, que chamou atenção da empresa para as dificuldades relacionadas ao funcionamento dos oleodutos. Particularmente, o dever de cuidado do denunciado Henri era ainda mais acentuado na época do fato imputado nesta denúncia, uma vez que ajuste organizacional realizado na Petrobrás, em abril de 2000, aprovado pelo seu Conselho de Administração, cumulou na pessoa desse denunciado seis funções corporativas: estratégia corporativa, gestão de desempenho empresarial, desenvolvimento de novos negócios, comunicação institucional, jurídico e meio ambiente (documento procedimento MPF , vol. 2 – fls. 534/535). (Fls. 45/46.) São essas, portanto, as condutas praticadas pelo Paciente, nos termos denúncia. Estabelecidos os limites das condutas efetivamente praticadas pelo Paciente, passo a analisar o nexo de causalidade entre a conduta e o evento danoso. O nexo de causalidade O nexo de causalidade encontra previsão no art. 13 do Código Penal, verbis: Relação de causalidade Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. 192 R.T.J. — 209 Superveniência de causa independente § 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. Relevância da omissão § 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Conforme sintetiza Rogério Greco, entre as várias teorias que cuidaram da relação de causalidade destacam-se três: a teoria da causalidade adequada; a teoria da relevância jurídica; e a teoria da equivalência dos antecedentes causais, verbis: Pela teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries, causa é a condição necessária e adequada a determinar a produção do evento. Na precisa lição de Paulo José da Costa Júnior, “considera-se a conduta adequada quando é idônea a gerar o efeito. A idoneidade baseia-se na regularidade estatística. Donde se conclui que a conduta adequada (humana e concreta) funda-se no quod plerumque accidit, excluindo acontecimentos extraordinários, fortuitos, excepcionais, anormais. Não são levados em conta todas as circunstâncias necessárias, mas somente aqueles que, além de indispensáveis, sejam idôneas à causação do evento”. No exemplo de Beling, não existiria relação causal entre acender uma lareira no inverno e o incêndio produzido pelas fagulhas carregadas pelo vento. A teoria da relevância entende como causa a condição relevante para o resultado. Luis Greco, dissertando sobre o tema, procurando descobrir o significado do juízo de relevância, diz que “primeiramente, ele engloba dentro de si o juízo de adequação. Será irrelevante tudo aquilo que for imprevisível para o homem prudente, situado no momento da prática da ação. Só o objetivamente previsível é causa relevante. Mezger vai um pouco além da teoria da adequação, ao trabalhar, simultaneamente, com um segundo critério: a interpretação teleológica dos tipos. Aqui, não é possível enumerar nada de genérico: será o telos específico de cada tipo da parte especial que dirá o que não pode mais ser considerado relevante”. Assim, no conhecido exemplo daquele que joga um balde d’água em uma represa completamente cheia, fazendo com que se rompa o dique, não pode ser responsabilizado pela inundação, pois que sua conduta não pode ser considerada relevante a ponto de ser-lhe imputada a infração penal tipificada no art. 254 do Código Penal. Pela teoria da equivalência dos antecedentes causais, de Von Buri, adotada pelo nosso Código Penal, considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Isso significa que todos os fatos que antecedem o resultado se equivalem, desde que indispensáveis à sua ocorrência. Verifica-se se o fato antecedente é causa do resultado a partir de uma eliminação hipotética. Se, suprimido mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último. Pela análise do conceito de causa concebido pela teoria da conditio sine qua non, podemos observar que, partindo do resultado naturalístico, devemos fazer R.T.J. — 209 193 uma regressão almejando descobrir tudo aquilo que tenha exercido influência na sua produção. (Curso de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus. p. 241/242.) Na teoria da equivalência dos antecedentes (ou da conditio sine qua non), como visto, afigura-se essencial que a causa seja indispensável na produção do resultado. Para se verificar se o fato é causador do resultado, é feito o chamado “teste da eliminação hipotética”. Suprimido mentalmente o fato, se ocorrer uma modificação no resultado, isso evidenciaria que o fato é sim relevante à produção do resultado. Tomemos como exemplo um crime de homicídio praticado com arma de fogo. Admitida a referida teoria, nos contornos até aqui apresentados, chegaríamos à responsabilização não apenas daquele que efetuou o disparo, mas também do próprio vendedor ou mesmo do fabricante da arma. E aqui surge uma das críticas à teoria, pois ela estaria na verdade a permitir um problemático “regresso ao infinito”. Mas há uma correção doutrinária para esse problema. Para se evitar a regressão ao infinito, interrompe-se a cadeia causal no momento em que não houver dolo ou culpa por parte daquelas pessoas que tiveram alguma importância na produção do resultado (Greco, cit., p. 244). Voltando ao exemplo do crime cometido com arma de fogo, não se poderia imputar o crime à indústria que produziu e vendeu licitamente a arma de fogo. Essa restrição a uma perspectiva de regresso ao infinito, para fins de responsabilização, também ocorre no campo civil. Lembro-me aqui do conhecido precedente desta Corte no RE 130.764, sob a relatoria de Moreira Alves (DJ de 7‑8‑92). Discutia-se, ali, a responsabilização do Estado por crime praticado por foragidos de estabelecimento prisional. Consta da ementa: Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido vários meses antes. – A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no art. 107 da Emenda Constitucional 1/69 (e, atualmente, no § 6º do art. 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros. – Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no art. 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também a responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada. – No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, é inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no art. 107 da Emenda Constitucional 1/69, a que corresponde o § 6º do art. 37 da atual Constituição. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão 194 R.T.J. — 209 não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido. Estamos aqui no âmbito penal, em que os rigores para se alcançar uma punição certamente são maiores. Olhando especificamente para o caso deste habeas corpus, ainda que pudéssemos conceber hipóteses de responsabilização criminal de um dirigente de uma pessoa jurídica da complexidade da Petrobras, em razão de um evento danoso ocorrido em um de seus oleodutos, certamente teríamos que, no mínimo, zelar por um compromisso de consistência em relação a esse aspecto elementar do direito penal, que é a vinculação entre fato e autor do fato. No caso concreto, considerando a palavra “causa” em sua perspectiva penalmente relevante, indago: O Paciente praticou fato que constituiu causa para a ocorrência do vazamento? Com o devido respeito, sequer uma relação causal naturalista está bem descrita na denúncia. A descrição do evento danoso está clara. Trata-se de um vazamento em um oleoduto da Petrobras. Tal vazamento teria causado danos ambientais. As causas para a ruptura de um oleoduto podem ser várias. Mas isso não vem ao caso, essa é uma matéria de prova que não me parece necessária na presente discussão. Mas a relação de causa e efeito entre a conduta do Paciente e o vazamento do oleoduto não estão nada claras. Considerando as circunstâncias do caso, penso que é inevitável, a partir dos elementos de que dispomos nos autos, sobretudo a partir dos fatos descritos na denúncia, perquirir se há essa condição mínima para a persecução penal, qual seja, a descrição de um liame consistente entre conduta e resultado. Não estamos aqui a discutir responsabilidade de pessoa jurídica. E talvez isso seja um fator para uma certa confusão na peça acusatória, que se refere conjuntamente à Petrobras e a seu dirigente. O problema aqui refere-se aos limites de responsabilização penal dos dirigentes de pessoas jurídicas em relação a atos praticados sob o manto da pessoa jurídica. Essa distinção, que parece óbvia, é importante no caso, tendo em vista a referida confusão estabelecida na peça acusatória. Trazendo a questão para o caso concreto, precisamos necessariamente conferir um tratamento diferenciado entre pessoa física e pessoa jurídica. A relação Petrobras–oleoduto não pode ser equiparada com uma relação Presidente da Petrobras–oleoduto! A responsabilização penal de pessoa física, não podemos esquecer, ainda obedece àqueles parâmetros legais de garantia que tem caracterizado o direito R.T.J. — 209 195 penal moderno, especialmente a partir do pensamento de Beccaria. E aqui não há espaço para o arbítrio. Entre outras inúmeras garantias do acusado, remanesce a perspectiva de que não há crime sem conduta, e também não há crime sem que exista um vínculo entre a conduta e o resultado. Nessa linha, indago: podemos equiparar, sem qualquer restrição, no âmbito penal, a conduta de pessoa jurídica com a conduta de seu dirigente? Podemos tratar, do mesmo modo, o nexo de causalidade entre atos de pessoa jurídica e evento danoso, e atos do dirigente da pessoa jurídica e evento danoso praticado em nome da pessoa jurídica? Não estou excluindo, obviamente, a possibilidade de prática de crimes por parte de dirigentes de pessoas jurídicas justamente na direção de tais entidades. Não é isso! O que quero enfatizar é que não podemos, para fins de responsabilização individual, admitir uma equiparação tosca entre atos de pessoa jurídica e atos de seus dirigentes. No caso em exame, penso que temos, nos autos, os elementos objetivos para o enfrentamento da questão. Não me impressiona o argumento utilizado pelo STJ, no sentido de que a apreciação das alegações exigiriam dilação probatória. Da leitura da denúncia, penso, resta evidente um grosseiro equívoco e uma notória lacuna na tentativa de vincular, com gravíssimos efeitos penais, a conduta do ex-Presidente da Petrobras e um vazamento de óleo ocorrido em determinado ponto de uma malha mais de 14 mil quilômetros de oleodutos! A par de um julgamento da gestão do Sr. Reichstul à frente da Petrobras, não há um elemento consistente a vincular o Paciente ao vazamento de óleo. Precisamos aqui refletir sobre isso. Houvesse relação de causa e efeito entre uma ação ou omissão do ex-Presidente da Petrobras, deveria o órgão do Ministério Público explicitá-la de modo consistente. E se houvesse consistência, penso, a cadeia causal dificilmente ocorreria diretamente entre um ato da Presidência da Petrobras e um oleoduto. Imagino que entre a Presidência da Petrobras, obviamente um órgão de gestão, e um tubo de óleo, há inúmeras instâncias gerenciais e de operação em campo. Não há uma equipe de engenheiros responsável pela referida tubulação? É o Presidente da Petrobras que examina, por todos os dias, o estado de conservação dos 14 mil quilômetros de oleodutos? Não há engenheiros de segurança na Petrobras? Obviamente não estou pressupondo uma responsabilização sequer dos engenheiros de segurança. Também para estes há o estatuto de garantias no âmbito penal. O que quero é evidenciar que, se há um evento danoso e se há uma tentativa de responsabilização individual, um pressuposto básico para isso é a demonstração consistente de relação de causalidade entre o suposto agente criminoso e o fato. Não vejo, com a devida vênia, como imputar o evento danoso descrito na denúncia ao ora Paciente. Caso contrário, sempre que houvesse um vazamento 196 R.T.J. — 209 de petróleo em razão de atos da Petrobras, o seu presidente inevitavelmente seria responsabilizado em termos criminais. Isso é, no mínimo, um exagero. Penso que, no caso, estamos diante de um quadro de evidente irracionalidade e de má compreensão dos limites do direito penal. Considerando apenas as condutas objetivamente imputadas ao Paciente, verifica-se que, no fundo, a única motivação para a denúncia seria uma contestação genérica à gestão do Sr. Reichstul à frente da Petrobras. E mais, a partir de uma confusão entre atos da pessoa jurídica e atos individuais − e essa distinção me parece fundamental quando estamos falando de direito penal! −, busca-se atribuir ao Presidente da instituição qualquer dano ambiental decorrente da atuação da Petrobras. E, com isto, chega-se ao exagero de buscar conferir ao ex-Presidente da Petrobras a pecha de criminoso. Cabe lembrar que a atuação institucional de uma autoridade que dirige uma instituição como a Petrobras dá-se em um contexto notório de risco. Lembro-me aqui do pensamento de Canotilho, acerca do chamado “paradigma da sociedade de risco” (CANOTILHO. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991. p. 1304). A possibilidade de erro em tais domínios não causa espanto, e os erros podem ser atribuídos tanto a agentes da instituição quanto à própria instituição. Há mecanismos de controle e de repressão a ambos. E também há gradações. Ainda que desconsideremos as diversas esferas de controle de atos administrativos, olhando o caso concreto, é inevitável indagar: Qual é o erro imputado objetivamente ao ex-Presidente da Petrobras?! Ou ainda: o dano ambiental atribuído à Petrobras pode ser imputado, em qualquer hipótese, a seu Presidente? Com o máximo respeito, acreditar que qualquer dano ambiental atribuível à Petrobras representa um ato criminoso de seu Presidente afigura-se, no mínimo, um excesso. Lembro-me aqui, na linha de Canotilho, que um dos problemas fundamentais da sociedade de risco é a assinalagmaticidade do risco. Tal observação é bastante pertinente para uma correta compreensão da atividade desempenhada por uma autoridade como o Presidente da Petrobras, e também para evidenciar a impropriedade em tentar conferir ao indivíduo e à pessoa jurídica os mesmos riscos. Enfim, não tenho como aceitável, sobretudo para fins penais, a tentativa de estabelecer uma equação no sentido de que todo e qualquer ato lesivo ao meio ambiente imputável à Petrobras implica um ato criminoso de seu dirigente. Conclusão Concluo meu voto no sentido do trancamento da ação penal em relação ao Sr. Henri Philippe Reichstul, tendo em vista que, diante dos fatos descritos na denúncia, manifestamente não há qualquer prática de crime pelo Paciente. VOTO O Sr. Ministro Carlos Velloso: Senhor Presidente, lembro-me das primeiras aulas de Direito Penal, na nossa velha Casa de Afonso Pena, nossa, vale dizer, do R.T.J. — 209 197 eminente advogado e minha. O velho mestre, Professor Lídio Machado, exemplificava, repelindo a teoria objetiva em Direito Penal. Dizia ele: se um automóvel bate em um poste de luz e o motorista morre, não se vai processar criminalmente o presidente da companhia força e luz. Acompanho o voto do eminente Ministro Relator. EXTRATO DA ATA HC 83.554/PR — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Paciente: Henri Philippe Reichstul. Impetrante: José Gerardo Grossi. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelo Paciente, o Dr. José Gerardo Grossi. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Subprocurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro. Brasília, 16 de agosto de 2005 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 198 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 85.701 — SP Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Paciente: Robson Geraldini de Oliveira — Impetrante: PGESP – Patrícia Helena Massa Arzabe (Assistência Judiciária) — Coator: Superior Tribunal de Justiça Ação penal. Condenação. Sentença condenatória. Crime de roubo consumado. Perdão judicial ou redução da pena. Benefícios denegados. Acerto. Confissão do fato. Ato que, no entanto, não permitiu localização da vítima com integridade física preservada. Colaboração, ademais, não voluntária. Não atendimento aos requisitos cumulativos previstos nos arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99. Habeas corpus denegado. Além de ser voluntária a colaboração aí prevista, são cumulativos os requisitos constantes dos arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Cezar Peluso, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de Robson Geraldini de Oliveira, contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em razão do trânsito em julgado do acórdão do REsp 415.838, começou a cumprir definitivamente a pena a que foi submetido. O Paciente foi condenado à pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime semi-aberto, pela prática do delito tipificado no art. 157, § 2º, I e II, em concurso de pessoas. A sentença ainda deixou de conceder o perdão judicial e a redução da pena previstos nos arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99 e requeridos pela defesa. As razões foram estas: Incogitável o reconhecimento do perdão judicial ou redução de pena, nos termos dos artigos 13 e 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, porque a colaboração do acusado na descoberta do roubo e das receptações não foi voluntária. A polícia tomou conhecimento de que o co-réu Robson estava praticando roubos graças a uma R.T.J. — 209 199 ligação anônima feita por parentes seus. Além disso, trata-se de crime grave, cometido em comparsia, mediante o emprego de arma de fogo. (Fl. 30.) Contra essa decisão, interpôs recurso de apelação, pugnando, entre outros, efeitos, pela aplicação do perdão judicial da Lei 9.087/99. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no entanto, negou provimento ao recurso, em acórdão assim ementado: Direito penal. Fixação da pena aquém da margem penal mínima pela presença de atenuantes. Inpossibilidade. “Apesar da existência de circunstâncias atenuantes, a pena não pode ser reduzida aquém da margem mínima prevista no preceito sancionatório. Incompatibilidade com o princípio da legalidade formal.” Precedentes. Perdão judicial ou diminuição da pena. Lei nº 9807/99. Inaplicabilidade aos casos de roubo qualificado. “A aplicação dos incisos I a III do art. 13, do supramencionado diploma, requisita que o agente colabore com a investigação ou com o processo criminal, apontando voluntária e conjuntamente os demais concorrentes; indique a localização da vítima e colabore com a recuperação total ou parcial do produto do crime. Pela natureza dessas circunstâncias, aquelas medidas de isenção ou atenuação de pena, estão destinadas aos autores de crimes de extorsão mediante sequestro, e não de mero roubo qualificado.” (Fl. 34.) A defesa, então, interpôs recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça, lá registrado sob o número 415.838. A Quinta Turma não conheceu o recurso, mas foram opostos embargos de declaração, que acabaram rejeitados. A defesa opôs novos embargos de declaração contra a decisão que rejeitou os anteriores. Dessa vez, os embargos foram acolhidos, mas para negar provimento ao recurso especial, cuja ementa a seguir se transcreve: Embargos de declaração. Contradição. Fundamentos do acórdão. Exame fático. Discussão acerca de extensão de norma. Arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99. Perdão judicial e diminuição da pena. Roubo qualificado. Inaplicabilidade. Incongruência com o permissivo legal. Os benefícios do perdão judicial e da diminuição da pena, sob a óptica dos arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99, não se aplicam ao roubo qualificado, pois a teleologia da norma buscou atender à situação permanente e duradoura do crime de extorsão mediante sequestro, situação visível pelo fato da colaboração se dar na investigação e no processo, realidades distantes do tempo de consumação do tipo do art. 157. Embargos acolhidos, porém para negar provimento ao recurso especial. (Fl. 68.) Alega a Impetrante que não há nada no texto da Lei 9.087/99 que restrinja a sua aplicação ao crime de roubo qualificado. Requer, liminarmente, a concessão de salvo-conduto em favor do Paciente até o julgamento final do presente writ e, no mérito, o reconhecimento do perdão judicial ou, subsidiariamente, a redução da pena, de acordo com a Lei 9.087/99. A liminar foi indeferida (fls. 76-78). 200 R.T.J. — 209 O Ministério Público opinou pela denegação da ordem (fls. 83-91). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Não há razoabilidade jurídica no pedido. A Impetrante requer a aplicação da Lei 9.807/99 para o crime de roubo consumado, ainda que as decisões das cortes inferiores lhe tenham limitado a incidência ao crime de extorsão mediante seqüestro. Alega que o Paciente faz jus ao benefício do perdão judicial, ou da redução da pena, porquanto confessou a prática do crime, e não há impedimento legal à aplicação do benefício a acusado por roubo qualificado. Tenho, no entanto, que a tese não é consistente. É que a sistemática dos benefícios instituídos pela Lei 9.807/99, diversamente do que faz crer a impetração, requer cumulatividade dos requisitos dos arts. 13 e 14, verbis: Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços. Assim, outra não pode ser a interpretação senão a de serem cumulativos esses requisitos. Conforme já afirmei em sede liminar, entendimento diverso conduziria a verdadeira incoerência jurídica: É que, se fora correta, o Réu cuja colaboração conduzisse ao alcance de um só resultado dentre os previstos no art. 13 (a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa, a localização da vítima com a sua integridade física preservada, ou a recuperação total ou parcial do produto do crime) faria jus a perdão judicial, com conseqüente extinção da punibilidade, e aqueloutro, cuja colaboração levasse à obtenção dos três resultados (a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa, a localização da vítima com a sua integridade física preservada e a recuperação total ou parcial do produto do crime), teria direito, tão-somente, a redução da pena de um a dois terços! Ou seja, conceder-se-ia maior benefício a quem prestasse colaboração menos eficiente do ponto de vista dos resultados. R.T.J. — 209 201 Análise mais detida sugere, porém, que a única diferença relevante entre as hipóteses legais está na primariedade do colaborador, exigida para o perdão judicial (art. 13), e não, para a redução da pena (art. 14). Esse relevo propicia tratamento homogêneo e lógico acerca da exigência da somatória dos resultados para consecução de ambos os benefícios: acaso primário o colaborador, ser-lhe-á concedido perdão judicial; se reincidente, redução da pena. Tudo, é claro, sem prejuízo do disposto no parágrafo único do art. 13. (Fl. 78.) Estou, portanto, em que é inadmissível a concessão dos benefícios da Lei 9.807/99 aos condenados por roubo qualificado e cuja colaboração não tenha permitido localização da vítima com integridade física preservada, o que torna impossível a satisfação cumulativa dos requisitos previstos pelo art. 13 daquele diploma legal. 2. Ainda que fosse aplicável ao caso, o benefício não poderia ser concedido ao Paciente. O caput do art. 13 determina que o benefício será concedido apenas nos casos em que o acusado “tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal”. Não é, contudo, a hipótese dos autos, como se verifica da leitura da sentença condenatória: [A] colaboração do acusado na descoberta do roubo e das receptações não foi voluntária. A polícia tomou conhecimento de que o co-réu Robson estava praticando roubos graças a uma ligação anônima feita por parentes seus. (Fl. 30.) Ora, se a colaboração do Paciente não foi voluntária, não tem lugar o benefício. 3. Ante o exposto, denego a ordem. EXTRATO DA ATA HC 85.701/SP — Relator: Ministro Cezar Peluso. Paciente: Robson Geraldini de Oliveira. Impetrante: PGE/SP – Patrícia Helena Massa Arzabe (Assistência Judiciária). Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por votação unânime, indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Julgamento presidido pelo Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 202 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 86.260 — CE Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Paciente: Cornelius Okwudili Ezeokeke — Impetrante: Luís Carlos Alencar de Bessa — Coator: Superior Tribunal de Justiça Ação penal. Tráfico de entorpecentes. Advogado constituído no inquérito policial, com poderes expressos para atuar durante a instrução criminal. Ausência de intimação para os atos processuais. Cerceamento de defesa. Caracterização. Direito de escolha de defensor de sua confiança. Violação. Ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa. Nulidade pronunciada. Habeas corpus concedido para esse fim. Aplicação do art. 5º, LV, da CF. Desde o recebimento da denúncia, é nulo o processo em que, dos atos processuais, não foi intimado o patrono constituído pelo réu, mas defensor público que o juízo lhe nomeou. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Brasília, 27 de maio de 2008 — Cezar Peluso, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Cornelius Okwudili Ezeokeke, nigeriano, contra decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que lhe denegou a ordem nos autos do HC 41.049, em decisão assim ementada: Processual Penal. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Tráfico internacional de entorpecente (cocaína). Advogado constituído na fase do inquérito policial. Citação do réu. Resposta preliminar não apresentada. Remessa dos autos ao defensor público. Revogação tácita do mandato judicial por ocasião do interrogatório judicial. Observância do procedimento legal. Inexistência de constrangimento ilegal. Prejuízo não demonstrado. Ordem denegada. 1. Não há previsão legal para a intimação do advogado constituído quando da instauração do inquérito policial, que é mera peça informativa, prescindível, inclusive, para dar início à ação penal, inexistindo constrangimento ilegal decorrente de ato judicial praticado com estrita observância de procedimento previsto na legislação de regência (Lei 10.409/2002, art. 38). R.T.J. — 209 203 2. Por outro lado, assistido por defensor público quando do interrogatório, não se insurgiu o paciente contra a ausência do advogado por ele anteriormente constituído, o que implica revogação tácita daquela procuração. 3. Com efeito, a prática pelo réu de ato incompatível com a manutenção de mandato judicial anteriormente outorgado acarreta revogação tácita do referido instrumento. 4. Por fim, para a declaração de eventual nulidade relativa, há que estar demonstrado o efetivo prejuízo. 5. Ordem denegada. O Paciente foi preso em flagrante e denunciado pela prática dos crimes previstos nos arts. 12, caput, c/c 18, inciso I, ambos da Lei 6.368/76, acabando condenado à pena de 12 (doze) anos de reclusão, em regime integralmente fechado. Alega o Impetrante, em síntese, que o Paciente teve cerceado o direito de defesa, pois seu advogado regularmente constituído não foi intimado para os atos processuais e, ainda, o defensor nomeado não desempenhou o ofício de maneira cabal, sobretudo por ter dispensado as testemunhas arroladas pela defesa. Aduz, ainda: “no caso do paciente possuir defensor constituído desde o inquérito policial (que é o caso dos autos) não poderia o juiz nomear defensor dativo antes de intimar o constituído para apresentar esta peça defensiva, sob pena de incidir em nulidade absoluta” (fl. 11). Requer a concessão da ordem, para que sejam sustados os efeitos da sentença condenatória, declarando-se a nulidade de todos os atos processuais, a partir do despacho inicial, com conseqüente liberdade do Paciente (fls. 16/17). A Procuradoria-Geral da República opinou pela denegação da ordem (fls. 108/115). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Assiste razão ao Impetrante. Verifico que o Paciente, cidadão estrangeiro, constituiu advogado de confiança para o exercício da defesa técnica (fl. 32). Tal fato não foi contestado pelo Juízo de primeiro grau, que, ao julgar embargos de declaração, afirmou: 3 – Inicialmente é de ser registrado que realmente existe uma procuração do réu em favor do advogado, datada de 24.11.2003 (três dias após a sua prisão em flagrante), às fls. 65 do inquérito policial que acompanha a denúncia, estranhamente preenchida de forma manuscrita e à caneta, na última linha, os “poderes especiais: acompanhar processo em uma das varas da Justiça Federal”. Esclareça-se, no entanto, que o réu compareceu em juízo para seu primeiro interrogatório no dia 28.01.2004 (fls. 20/22), sem advogado e em nenhum momento da instrução (segundo interrogatório e audiência de instrução foram realizados no dia 02.02.2004 – fls. 28/29), o réu manifestou interesse em ser defendido por quem quer que seja além dos nobres Representantes da Defensoria Pública Federal. (...) 204 R.T.J. — 209 Percebe-se, portanto e claramente, que o advogado Luiz Bessa apenas obteve procuração do réu ainda quando do interrogatório mas não aceitou a causa (por motivos econômicos ou particulares que só aos diretamente envolvidos interessa). Tanto assim é que o réu sequer sabia o endereço do ilustre causídico e com ele não mais teve contato por disposição própria de ambos até o réu saber o teor da sentença condenatória. Assim se depreende das afirmações manuscritas do réu (“(...) descobrir o nome e endereço do meu advogado constituído (...)”). 6 – Incabível e totalmente despropositado, pois, falar em “rejeição” por parte deste juízo de qualquer advogado que não apareceu nos autos do processo criminal e que só agora, após a condenação, é indicado pelo réu como seu defensor. Frise-se que a simples assinatura de uma procuração, ainda mais quando o réu estava no calor do flagrante, não impede a revogação tácita de tal mandato por ocasião dos interrogatórios, quando o réu não afirma ter advogado e aceita os préstimos da Defensoria Pública. (Fl. 49.) Vejo, também, que a procuração – que outorgava poderes expressos ao advogado para acompanhar processo-crime em uma das Varas da Justiça Federal – foi juntada aos autos do inquérito policial, ao final remetidos ao Juízo (fl. 36). Mas esse advogado constituído não foi intimado para nenhum ato processual, até receber comunicação da sentença condenatória (fl. 38). Alega o acórdão recorrido que houve apenas nomeação de defensor dativo para apresentação da defesa preliminar, depois de transcorrido o prazo legal sem manifestação da defesa. Ora, se o defensor constituído não foi intimado, não surpreende que a defesa preliminar não tenha sido apresentada, nem tampouco que o patrono não se tenha feito presente aos interrogatórios. Argumentar com que a ausência do defensor conduziu à “revogação tácita” do mandato é confundir a causa com o efeito. Se o defensor não foi intimado porque se lhe desconsiderou a procuração recebida, como afirmar-se tenha sido esta tacitamente revogada por força e a partir da ausência do defensor aos atos dos quais não teve prévio conhecimento? Ademais, o relato do juízo de primeiro grau deixa claro que, se o Réu deixou de afirmar que possuía advogado constituído, também não foi intimado para indicação de outro de sua confiança, antes de lhe ser designado defensor público. Ou seja, tenho por fatos incontroversos: (i) o Paciente constituiu, regularmente, advogado de confiança, com poderes para atuar no inquérito policial e no respectivo processo-crime; (ii) tal advogado não foi intimado para nenhum ato processual; e (iii) ainda quando se admita que a ausência do defensor ao interrogatório tenha conduzido à revogação tácita da procuração, ainda detinha ele o mandato no momento da apresentação da defesa preliminar, para o qual tampouco foi intimado. 2. A falta de intimação do defensor constituído é causa de nulidade absoluta. Não se objete não ter sobrevindo prejuízo ao Réu, dada a assistência por defensor público. O fato em si da condenação do Paciente basta ao reconhecimento R.T.J. — 209 205 do gravame e à pronúncia da nulidade do processo, como já ponderei alhures, com o apoio do Plenário desta Corte: Alegou-se – e, em casos análogos, se alega sempre – não ter sido demonstrado o prejuízo da defesa. Mas o dano, esse resulta do teor mesmo do julgamento contrário ao réu e, como tal, é certo e induvidoso. Tenho relevado este fato intransponível. O prejuízo da defesa, em casos semelhantes, é sempre certo. Presumida é apenas a relação jurídico-causal entre o vício do processo e o teor gravoso do julgamento. E tal relação não pode deixar de presumir-se ante a impossibilidade absoluta de se atribuir o resultado injurioso ao réu a causa jurídica independente. Só se poderia, deveras, afastar, quando menos, esse nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa, se o resultado concreto do julgamento, caso em que qualquer recurso seria absolutamente anódino e infrutífero, lhe tivesse sido favorável. Todas as vezes em que, sob argüição de vício processual na sessão de julgamento ou na decisão, a defesa saia de algum modo prejudicada, não é lícito opor argumentação baseada na hipótese de que, fosse outro o procedimento adotado, segundo a lei, o resultado teria sido o mesmo. É simplesmente impossível saber como se comportariam os julgadores, ou o prolator da decisão, se houvera sido observada a ordem legal do processo garantido pela Constituição! Noutras palavras, não há como nem por onde argumentar com o fato de que a defesa não seria capaz de demonstrar outro prejuízo, senão com resultado danoso do caso concreto, porque não se pode predizer, ou melhor, não se pode adivinhar que, se tivesse sido outra a ordem observada, o resultado do julgamento teria sido o mesmo. Por isso, esta Corte, não poucas vezes, aludiu à impossibilidade de o réu provar prejuízo, que eu nem diria mais concreto, porque não há nada mais concreto que ato de todo em todo contrário aos interesses da defesa, como é o juízo condenatório. A mim me parece, dessarte, que tal objeção, aliás acolhida no acórdão ora impugnado, não tem, com o devido respeito, consistência alguma, porque parte de lucubração, qual seja, a de que, eventualmente, o mesmo resultado seria obtido, se a defesa, no caso, por exemplo, se tivesse manifestado depois do representante do Ministério Público. Não sabemos se o seria. Podemos até imaginar que, se se repetir o julgamento, o resultado da causa será o mesmo. Mas isso fora puro exercício de imaginação, que nada tem a ver com a necessidade de resguardar a ordem do justo processo da lei (due process of law), garantido como direito fundamental pela Constituição da República. Até porque, doutro modo, se introduz este princípio incomentável: a ordem legal do processo pode ser sempre violada, desde que o resultado seja esse ou aquele! Isto é, outorga-se ao arbítrio do julgador, ao arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República, secundum eventum litis! (HC 87.926, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 20‑2‑08.) Com base em outros argumentos, essa Corte tem decidido que a inobservância da forma procedimental adequada traz ínsito o prejuízo ao Réu, por representar sempre limitação à defesa, de modo que, aparecendo incompatível com a garantia posta no art. 5º, LV, da Constituição da República, conduz à inexorável nulidade absoluta do processo: 206 R.T.J. — 209 II – Defesa – Entorpecentes – Nulidade por falta de oportunidade para a defesa preliminar prevista no art. 38 da Lei 10.409/02: demonstração de prejuízo: prova impossível (HC 69.142, Primeira Turma, 11‑2‑92, Pertence, RTJ 140/926; HC 85.443, Primeira Turma, 19‑4‑05, Pertence, DJ de 13‑5‑05). Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para a defesa preliminar, a denúncia não teria sido recebida. (HC 84.835, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26‑8‑05. Grifos nossos.) E, em casos similares, este Tribunal entendeu que a nomeação de defensor público não faz superada a nulidade conseqüente à falta de intimação do defensor constituído: Habeas corpus – Defesa prévia – Defensor constituído ausente ao ato de interrogatório judicial – Necessidade de sua notificação para oferecê-la – A questão da liberdade de escolha do defensor pelo réu – A garantia do devido processo legal – Direito do réu preso de ser requisitado e de comparecer ao juízo deprecado para os atos de instrução processual – Polêmica doutrinária e jurisprudencial em torno do tema – Anulação do procedimento penal – Concessão do writ – Consumação da prescrição punitiva do Estado – Vedação da reformatio in pejus indireta – Declaração da extinção da punibilidade. – O defensor constituído, quando ausente ao ato de interrogatório judicial do réu, deverá ser notificado para efeito de apresentação da defesa prévia. Esse ato de notificação, que é indeclinável, impõe-se como natural consectário da cláusula constitucional do devido processo legal. A falta dessa notificação constitui nulidade absoluta, apta a infirmar a própria validade do processo penal condenatório. – O réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da persecutio criminis específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição. Cumpre ao magistrado processante, em não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro advogado. Antes de realizada essa intimação – ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado – não e lícito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do Réu. (HC 67.755, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 11‑9‑92. Grifos nossos.) Ação penal. Defensor constituído. Indicação pelo réu. Negação de patrocínio, sob escusa de não ter sido constituído. Nomeação de defensor público, sem intimação do réu para indicação ou constituição de outro patrono. Atuação apenas da defensoria pública, com a qual não manteve contato pessoal no curso do processo. Condenação. Nulidade processual absoluta caracterizada. Cerceamento de defesa. Ofensa ao direito de se comunicar com o patrono. Habeas corpus concedido para anular o processo desde o interrogatório, inclusive. Precedentes. É nulo o processo, desde o momento em que se recusou o advogado indicado pelo réu ao patrocínio da defesa, sob escusa de não ter sido constituído, se, sem intimação do réu para indicação de outro, lhe foi designado defensor público, R.T.J. — 209 207 que atuou até a condenação, sem ter mantido nenhum contato ou comunicação pessoal com o acusado. (HC 85.200, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 3‑2‑06. Grifos nossos.) 3. Ante ao exposto, concedo a ordem, para anular o processo desde o recebimento da denúncia, exclusive, determinando que o juízo proceda à intimação do advogado constituído pelo Paciente para apresentação da defesa preliminar de que trata o art. 38 da Lei 10.409/02. Determino, ainda, de ofício, a imediata expedição de alvará de soltura em favor do Paciente, se por al não estiver preso, diante do evidente excesso de prazo da prisão cautelar. EXTRATO DA ATA HC 86.260/CE — Relator: Ministro Cezar Peluso. Paciente: Cornelius Okwudili Ezeokeke. Impetrante: Luís Carlos Alencar de Bessa. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Presidiu, este julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves. Brasília, 27 de maio de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 208 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 86.414 — PE Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Paciente: José Valter de Albuquerque — Impetrantes: Fernando José Alves de Souza e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça Sentença de pronúncia – Fundamentação. A sentença de pronúncia há de estar alicerçada em dados constantes do processo, não se podendo vislumbrar, na fundamentação, excesso de linguagem. Sentença de pronúncia – Leitura no Plenário do Júri – Impossibilidade. Consoante dispõe o inciso I do art. 478 do Código de Processo Penal, presente a redação conferida pela Lei 11.689/08, a sentença de pronúncia e as decisões posteriores que julgarem admissível a acusação não podem, sob pena de nulidade, ser objeto sequer de referência, o que se dirá de leitura. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido de habeas corpus, por unanimidade de votos, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 9 de dezembro de 2008 — Marco Aurélio, Presidente e Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: A Assessoria assim resumiu as balizas desta impetração: O Paciente, denunciado por infração aos arts. 121, § 2º, incisos I e IV, e 129, combinado com o art. 69 do Código Penal, foi pronunciado pelo Juízo da Primeira Vara e Privativa do Júri da Comarca de Bezerros, Estado de Pernambuco (fls. 24 a 102). Irresignado com as qualificadoras mantidas na sentença de pronúncia, o Réu interpôs recurso em sentido estrito, ao qual a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria, negou provimento. Os embargos infringentes protocolados contra essa decisão foram desprovidos. O Réu interpôs recurso especial e, concomitantemente, impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, alegando que o Juízo da pronúncia teria procedido com excesso de linguagem. O pedido restou indeferido. O acórdão está assim fundamentado (fls. 108 e 109): (...) a motivação da pronúncia é condição de sua validade e, não, vício que lhe suprima a eficácia, limitando-a, contudo, em intensão e extensão, a sua natureza específica de juízo de admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri. É que, versando sobre o mesmo fato-crime e sobre o mesmo homem-autor, nos processos do júri, o judicium accusationis tem por objeto a admissibilidade da acusação perante o Tribunal Popular e o judicium causae o julgamento dessa acusação por esse Tribunal Popular, do que resulta R.T.J. — 209 209 caracterizar o excesso judicial na pronúncia, usurpação da competência do Tribunal do Júri, a quem compete, constitucionalmente, julgar os crimes dolosos contra a vida (Constituição da República, artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”). A observância, portanto, dos limites da pronúncia pelo magistrado, enquanto juízo de admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri, é elemento da condição de validade da pronúncia que se substancia na sua motivação. 4. É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as qualificadoras só podem ser afastadas da pronúncia quando não houver nenhum apoio na prova dos autos, ou seja, quando forem manifestamente infundadas. Nesta impetração, o Paciente volta-se contra esse ato. Argumenta que, conforme o disposto no art. 408 do Código de Processo Penal, não é permitido ao juiz, na decisão de pronúncia, adentrar o mérito da causa, matéria que está inserida na competência exclusiva do Conselho de Sentença. Requer a concessão da ordem, para, reformando-se o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, seja determinada a prolação de nova sentença (fl. 13). Não veiculou pleito de deferimento de liminar. O pronunciamento judicial atacado encontra-se às fls. 108 a 116. O Ministério Público Federal, à fl. 126, propôs a realização de diligência, com solicitação de informações ao Juízo da Primeira Vara e Privativa do Júri da Comarca de Bezerros/PE sobre o andamento da AP 7.572/95, em que o Paciente é acusado. Noticiou-se, então, que o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, acolhendo o Pedido de Desaforamento 114.254-9, determinara a remessa do processo à Comarca de Recife. A Procuradoria-Geral da República, em nova manifestação, opina pelo indeferimento da ordem (fls. 144 a 148). Destaca-se do parecer o seguinte trecho (fls. 145 e 146): (...) 4. O Supremo Tribunal Federal vem sempre enfatizando, quanto à sentença de pronúncia, “o difícil equilíbrio entre o dever de motivação e o exagero nela, de modo a fugir do dilema entre ser nula por excesso ou por escassez” [AI nº 406.566/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 30.9.2002, p. 50]. No caso, conforme asseverou o acórdão impugnado, nos estreitos limites do art. 408 do Código de Processo Penal, o juiz “limitou-se a declarar a materialidade do delito, os indícios de autoria e a confirmar, fundamentadamente, as qualificadoras, reservando, contudo, ao Conselho de Sentença sua apreciação”. 5. Assim, nos limites da sentença de pronúncia, que “constitui juízo fundado de suspeita e não juízo de certeza que se exige para a condenação” (HC 70.965-RJ, rel. Min. Carlos Velloso, DJU 10.06.94), o magistrado, ainda que de forma peculiar, fez um longo relatório acerca de toda a instrução, transcrevendo a denúncia, interrogatórios, depoimentos das testemunhas, defesa prévia e, inclusive, o habeas corpus impetrado em favor do paciente, nos mínimos detalhes, da impetração à concessão da ordem, sem com isso ter maculado a sentença de pronúncia. 6. Além da comprovada materialidade, da autoria confessada, tudo em atendimento ao art. 408 do CPP, o juiz ao analisar a incidência 210 R.T.J. — 209 das qualificadoras, mantendo-as, consignou: “nada obsta que o defensor do réu convença o Tribunal do Júri de que as qualificadoras citadas não possam prevalecer”, o mesmo ocorrendo em relação à excludente de legítima defesa da honra, argüida pelo impetrante. Em tais condições, não cabe crítica à motivação da pronúncia, que se revela adequada ao momento processual, “não contendo linguagem ou raciocínio capaz de influir indevidamente no ânimo dos jurados.” (HC 69.990-MS, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 16-4-93.) (...) À fl. 152, V. Exa. determinou a realização de diligência no sentido de virem ao processo os acórdãos proferidos no recurso em sentido estrito e nos embargos infringentes e informação a respeito do estágio da ação penal. A documentação foi juntada às fls. 163 a 193. O Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco negou provimento ao recurso em sentido estrito, consignando não constituir nulidade da pronúncia o fato de o magistrado alongar-se na fundamentação da sentença, pois ateve-se a considerações da acusação (fl. 166). Também os embargos infringentes foram rejeitados. Assentou o Tribunal ser evidente o interesse em reabrir discussão de matéria relacionada com a sentença de pronúncia, sobre a qual a Corte já teria emitido juízo no sentido da subsistência do ato (fl. 180). Consoante relatório de andamento processual (fl. 193), o Presidente do Tribunal do Júri determinou, em 11 de junho de 2008, a inclusão do processo na pauta de julgamento. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): A longa sentença de pronúncia de fls. 24 a 102 revela transcrição de inúmeras peças e resposta do Juiz prolator a possível glosa de ato no qual, ao determinar a prisão do Paciente, lançou mão de versos, isso presente o que decidido pelo Tribunal de Justiça na via do habeas corpus. Sob o ângulo do art. 408 do Código de Processo Penal, a rigor, há as referências contidas a partir da fl. 94. Então, aludiu-se à materialidade do crime e à autoria confessada em juízo, que também teria sido sinalizada por testemunhas e informantes nas fases inquisitória e instrutória. No tocante às qualificadoras, fez-se ver o motivo fútil – o crime fora praticado ante namoro da vítima com a atual esposa do Paciente. Consignou-se, mais, a utilização de meio a impossibilitar a defesa pela vítima. Eis o teor da decisão de pronúncia (fl. 95): No que concerne ao homicídio, deve ser acolhida a qualificadora do Inciso II, do Artigo 121, do Código Penal, alegada na denúncia, segundo a qual o crime teria sido praticado por motivo fútil, ou seja, porque Milton teria namorado com a atual esposa de Valter, de nome Josefa, há cerca de trinta anos atrás, época em que a mesma ainda seria solteira. Em tal aspecto, o crime teria sido praticado por motivo fútil, ou seja, banal, de somenos importância e desproporcional ao resultado morte. R.T.J. — 209 211 Há de prosperar, também, a qualificadora do Inciso IV, do § 2º, do Artigo 121, do Código Penal – sustentada pelo Órgão Ministerial e pela respectiva Assistência – e segundo a qual o réu teria dissimulado a sua ação e, com isso, surpreendido a vítima e impossibilitado suas chances de defesa. Com efeito – pelo motivo já dito – o réu Valter teria ido até a casa de Milton e, próximo da residência deste, fez-se acompanhar da esposa de Milton e, simulando que queria falar-lhe, efetuou-lhe um disparo de revólver, depois que Milton fora atendê-lo no portão da casa, sem que Milton, desprevenido, esperasse o ataque, pois ele estaria descontraído, na companhia dos filhos, assistindo a um jogo de futebol, pela TV, e teria saído, desarmado do interior de sua residência, dificultando, tornando impossível ou pelo menos reduzindo, as chances de defesa da vítima. O Magistrado ainda teve o cuidado de ressaltar (fl. 96): Todavia, nada obsta que o defensor do réu convença o Tribunal do Júri de que as qualificadoras citadas não possam prevalecer. Ora, a Constituição Federal impõe que todo e qualquer pronunciamento do Judiciário com carga decisória tenha fundamentação. A par desse aspecto, de não haver excesso de linguagem, observem mais que a última reforma do Código de Processo Penal veio a obstaculizar a leitura da sentença de pronúncia quando dos trabalhos no Plenário do Júri. Eis como ficou o art. 478 do Código de Processo Penal, com a redação decorrente da Lei 11.689/08: Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo. Indefiro a ordem. EXTRATO DA ATA HC 86.414/PE — Relator: Ministro Marco Aurélio. Paciente: José Valter de Albuquerque. Impetrantes: Fernando José Alves de Souza e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus. Unânime. Ausente, justificadamente, o Ministro Carlos Britto. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Ausente, justificadamente, o Ministro Carlos Britto. Subprocurador-Geral da República, Dr. Mario José Gisi. Brasília, 9 de dezembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 212 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 86.645 — SP Relator: O Sr. Ministro Gilmar Mendes Paciente: Liberato Batista — Impetrante: Rogério Rodrigues Urbano — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. 2. Quadrilha. Adulteração de combustível. 3. Alegação de ausência de fundamentação do decreto da prisão preventiva. 4. Ordem devidamente fundamentada na garantia da ordem pública e econômica, vez que diante da continuidade das práticas do paciente, que faz parte de quadrilha organizada de adulteração de combustíveis, ocasionaria danos ao mercado, aos consumidores e ao meio ambiente 5. Precedentes. 6. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie (RISTF, art. 37, II), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 28 de março de 2006 — Gilmar Mendes, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Liberato Batista contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou ordem de habeas corpus, em decisão assim ementada (fl. 177): Criminal. Habeas corpus. Quadrilha. Adulteração de combustível. Crime contra o meio ambiente. Prisão preventiva. Garantia da ordem pública. Possibilidade concreta de continuidade da prática criminosa. Necessidade da custódia demonstrada. Excesso de prazo. Feito complexo. Expedição de cartas precatórias. Pluralidade de réus. Greve dos serventuários da Justiça. Demora justificada. Princípio da razoabilidade. Prazo para a conclusão da instrução que não é absoluto. Trâmite regular. Constrangimento ilegal não demonstrado. Ordem denegada. I. Hipótese em que o paciente foi denunciado pela suposta prática de crime contra o meio ambiente, formação de quadrilha e adulteração de combustíveis. II. Não se vislumbra ilegalidade no decreto de prisão preventiva exarado contra o paciente, tampouco no acórdão confirmatório da custódia, se demonstrada a necessidade da segregação, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. III. A possibilidade concreta de continuidade da prática delituosa revelada pela facilidade de tratativas para a aquisição e transporte de combustível adulterado, condutas explicitadas na denúncia, autoriza a decretação da custódia para a garantia da ordem pública e da ordem econômica. R.T.J. — 209 213 IV. Não se trata de suposições e probabilidades a respeito de eventual reiteração criminosa, mas de fundamentação concreta e vinculada à realidade do réu, o que é perfeitamente hábil a fundamentar a segregação. V. Por aplicação do Princípio da Razoabilidade, justifica-se eventual dilação de prazo para a conclusão da instrução processual, quando a demora não é provocada pelo Juízo ou pelo Ministério Público, mas sim devido à observância de trâmites processuais sabidamente complexos, como a expedição de cartas precatórias, à greve dos serventuários da justiça e à pluralidade de réus. VI. O prazo de 81 dias para a conclusão da instrução criminal não é absoluto. VII. O constrangimento ilegal por excesso de prazo só pode ser reconhecido quando a demora for injustificada. VIII. Ordem denegada. O Impetrante, sustentando a ilegalidade da prisão preventiva decretada, alega que: a) a garantia da ordem pública não restará abalada pela revogação da prisão preventiva, porquanto esta constitui uma verdadeira aberração jurídica injusta e ilegal; b) o Paciente está encarcerado indevidamente há mais de 420 dias, sendo primário e sem antecedentes criminais, de forma que não foram respeitados os requisitos legais; c) o despacho que decretou a prisão preventiva não respeitou os ditames do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988, nem do art. 315 do Código de Processo Penal, pois não foram demonstradas as circunstâncias concretas do art. 312 do referido Código. Outro argumento por ele sustentado é o de que as meras conjecturas acerca da possibilidade de continuidade da prática delituosa, pela suposta facilidade do Paciente em manter tratativas para a aquisição e transporte de combustível adulterado, não se revelam suficientes para fundamentar o decreto de prisão preventiva. Indeferi o pedido de liminar (fls. 183-185). O parecer da Procuradoria-Geral da República é pela denegação da ordem (fls. 211-223). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): No presente habeas corpus, discute-se a legalidade do decreto da prisão preventiva do Paciente. Foram estas as razões do decreto da prisão preventiva: Quanto ao pedido de prisão preventiva dos denunciados constato que, os documentos de fls. (...) finalmente, os laudos técnicos emitidos pela Agência Nacional de Petróleo e Unicamp comprovam que o material apreendido no pátio da empresa Transportes Rodoviários Batistão Ltda. se trata de combustível impróprio para uso automotivo, o que revela, em tese, a prática de crimes contra a ordem econômica e 214 R.T.J. — 209 meio ambiente (art. 1º, I da Lei nº 8176/91 e art. 56, “caput” da Lei nº 9.605/98), sem falar em dano potencial aos consumidores. Também foram apreendidos objetos de origem criminosa e utensílios destinados à adulteração de combustível (fls. 07). Considerando que o sócio majoritário da empresa Transportes Rodoviários Batistão Ltda, Liberato Batista, reside no mesmo endereço do sócio majoritário da empresa TRB Comércio e Transportes Ltda, Luiz Ribeiro Batista, bem como constatando que esta empresa tem por objeto o comércio a varejo de combustíveis lubrificantes para veículos automotores, para garantia da ordem pública e econômica, com a finalidade de evitar a continuidade da transação comercial destes produtos adulterados, protegendo-se a sociedade e visando a preservar a credibilidade das instituições públicas, decreto a prisão preventiva de Liberato Batista e Luiz Ribeiro Batista, com fundamento no artigo 312 do Código de Processo Penal. (Fl. 72.) Conforme se observa a fundamentação do decreto de prisão preventiva ficou adstrito a dois argumentos: i) a garantia da ordem pública, com ênfase no aspecto de evitar a continuidade da transação comercial dos produtos adulterados, protegendo-se a sociedade e visando a preservar a credibilidade das instituições públicas; e ii) por garantia da ordem econômica, uma vez que se trata de venda de combustível adulterado, que acarreta dano à ordem econômica, ao meio ambiente e aos consumidores. É evidente que há circunstâncias concretas no decreto prisional, que justificam a prisão preventiva do Paciente. Verifica-se que a ordem pública e econômica poderiam ficar abaladas com a continuidade das práticas do Paciente, que, ao que parece, faz parte de quadrilha organizada, utilizando a fachada da empresa de transportes rodoviários, para adulterar combustíveis, lesando ao mercado, aos consumidores e ao meio ambiente. Sobre a questão, vale destacar os seguintes precedentes colacionados no parecer da Procuradoria-Geral da República, de lavra da Subprocuradora-Geral da República, Dra. Delza Curvello Rocha (fls. 211-223), verbis: Prisão preventiva – Comprovação da necessidade de sua decretação – Decisão fundamentada – Motivação idônea que encontra apoio em fatos concretos – Legalidade da decisão que decretou, no caso, a prisão cautelar – Primariedade e bons antecedentes da acusada – Possibilidade, mesmo assim, de decretação da medida cautelar de constrição da liberdade individual – Recurso improvido. A prisão preventiva constitui medida cautelar de natureza excepcional. – A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. A prisão preventiva – enquanto medida de natureza cautelar – não tem por finalidade punir, R.T.J. — 209 215 antecipadamente, o indiciado ou o réu. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. Demonstração, no caso, da necessidade concreta de decretar-se a prisão preventiva da acusada. – Revela-se legítima a prisão preventiva, se a decisão, que a decreta, encontra suporte idôneo em elementos concretos e reais que – além de se ajustarem aos fundamentos abstratos definidos em sede legal – demonstram que a permanência em liberdade da suposta autora do delito comprometerá a garantia da ordem pública e frustrará a aplicação da lei penal. Primariedade e bons antecedentes da ré. – A mera condição de primariedade do agente, a circunstância de este possuir bons antecedentes e o fato de exercer atividade profissional lícita não pré-excluem, só por si, a possibilidade jurídica de decretação da sua prisão cautelar, pois os fundamentos que autorizam a prisão preventiva – garantia da ordem pública ou da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou necessidade de assegurar a aplicação da lei penal (CPP, art. 312) – não são neutralizados pela só existência daqueles fatores de ordem pessoal, notadamente quando a decisão que ordena a privação cautelar da liberdade individual encontra suporte idôneo em elementos concretos e reais que se ajustam aos pressupostos abstratos definidos em sede legal. Precedentes. (STF – RHC 81.395/TO – Relator: Ministro Celso de Mello – Órgão julgador: Segunda Turma – Publicação: DJ de 15‑8‑03.) Prisão preventiva – Requisitos de legitimação – Decisão que se ajusta às exigências legais – Habeas corpus indeferido. – A privação cautelar da liberdade individual – por revestir-se de caráter excepcional – somente deve ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face do sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. Precedentes. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. – A mera condição de primariedade do agente, a circunstância de este possuir bons antecedentes, a sua espontânea apresentação à autoridade pública (RT 533/437) e o fato de exercer atividade profissional lícita não pré-excluem, só por si, a possibilidade jurídica de decretação da sua prisão cautelar, pois os fundamentos que autorizam a prisão preventiva – garantia da ordem pública ou da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou necessidade de assegurar a aplicação da lei penal (CPP, art. 312) – não são neutralizados pela só existência daqueles fatores de ordem pessoal, notadamente quando a decisão, que ordena a privação cautelar da liberdade individual, encontra suporte idôneo em elementos concretos 216 R.T.J. — 209 e reais que se ajustam aos pressupostos abstratos definidos em sede legal e que demonstram que a permanência em liberdade do suposto autor do delito frustrará a consecução daqueles Precedentes. (STF – HC 74.666/RS – Relator: Ministro Celso de Mello – Órgão julgador: Primeira Turma – Publicação: DJ de 11‑10‑02.) Habeas corpus. Prisão preventiva. Falta de fundamentação. Excesso de prazo. 1. Tratando-se de crime hediondo, praticado por quadrilha organizada, cujos membros denotam alta periculosidade, havendo inclusive um co-réu foragido, a prisão preventiva se impõe como garantia da aplicação da lei penal. Decreto de custódia cautelar que não padece de falta de fundamentação, inexistindo ofensa ao art. 93, IX da Constituição Federal. 2. Não há constrangimento ilegal quando o excesso de prazo para a conclusão da instrução criminal deriva das circunstâncias e da complexidade do processo, não sendo eventual retardamento fruto de inércia e desídia do Poder Judiciário (HC 71.610/DF, Rel. o Min. Sepúlveda Pertence; e RHC 71.498/‑RJ, Rel. o Min. Paulo Brossard). Habeas corpus indeferido. (STF – HC 91.905/PE – DJ de 16‑5‑03 – Primeira Turma – Relatora: Ministra Ellen Gracie.) Habeas corpus. Excesso de prazo. Processo que se encontra na fase do art. 499 do Código de Processo Penal. Ausência de constrangimento ilegal quando tal excesso deriva das circunstâncias e da complexidade do processo, não sendo eventual retardamento fruto de inércia e desídia do Poder Judiciário (HC 71.610/DF, Rel. o Min. Sepúlveda Pertence; e RHC 71.498/RJ, Rel. o Min. Paulo Brossard). Habeas corpus indeferido. (STF – HC 81.957/MA – DJ de 28‑6‑02 – Primeira Turma – Relatora: Ministra Ellen Gracie.) Nestes termos, indefiro o presente pedido de habeas corpus. Meu voto, portanto, é pela denegação da ordem. EXTRATO DA ATA HC 86.645/SP — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Paciente: Liberato Batista. Impetrante: Rogério Rodrigues Urbano. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Presidiu este julgamento a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves. Brasília, 28 de março de 2006 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. R.T.J. — 209 217 HABEAS CORPUS 86.961 — SP Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Paciente: Ednaldo Cernichiaro — Impetrante: Luciano Alves da Silva — Coator: Superior Tribunal de Justiça Pena – Regime de cumprimento aberto – Requisitos. O regime aberto pressupõe não ser o condenado reincidente e haver pena igual ou inferior a quatro anos, presentes ainda circunstâncias judiciais positivas. Pena – Regime de cumprimento – Progressão – Exame – Competência. Cabe ao Juízo da execução a análise do direito do custodiado à progressão no regime de cumprimento da pena. Pena – Regime de cumprimento – Definição. A definição do regime de cumprimento de pena há de ocorrer considerado o título judicial condenatório. Pena – Prescrição executória. O exame da prescrição da pretensão executória da pena consubstancia direito do condenado, devendo ser procedido pelo Juízo da execução. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em deferir, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator e por unanimidade, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 28 de outubro de 2008 — Marco Aurélio, Presidente e Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Adoto como relatório as informações prestadas pela Assessoria: V. Exa., ao deferir a medida acauteladora, consignou (fls. 37 e 38): Pena – Regime de cumprimento. 1. O Paciente foi condenado à pena de um ano, seis meses e vinte dias de reclusão e à de oito dias-multa em regime fechado, como incurso no tipo do art. 155, § 4º, inciso IV, combinado com o art. 14, inciso II, do Código Penal, no Processo 00/08419, da 27ª Vara Criminal de São Paulo. Interposta apelação pela defesa, permaneceu em liberdade, ante a circunstância de, na instrução criminal, haver sido relaxada a prisão. Desprovido tal recurso, ajuizou-se Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça – número 37.651 –, vindo-se a lograr a substituição do regime fechado pelo semi-aberto. Sustenta o Impetrante a existência de condições suficientes a terse o regime aberto, porquanto o Paciente estaria integrado à família, com dois filhos menores, contando com residência fixa e atividade profissional. 218 R.T.J. — 209 Assevera que ficou preso, em regime fechado, por período que se revela praticamente um terço da pena imposta e que, se for preso, o será, até a obtenção da transferência para o regime semi-aberto, em regime fechado. Pleiteia o reconhecimento ao Paciente do direito ao regime aberto ou, sucessivamente, seja-lhe assegurado o direito de aguardar vaga em estabelecimento que possibilite a observância do regime semi-aberto. Sob o ângulo da liminar, requer a suspensão da expedição de mandado de prisão até o julgamento desta medida. À inicial anexou os documentos de fls. 6 a 10. À fl. 14, prolatei despacho, consignando a ausência, no processo, do ato indicado como configurador do constrangimento ilegal e determinei fossem solicitadas informações ao Superior Tribunal de Justiça, alertando o Impetrante para, querendo, trazer ao processo o ato atacado. Após a reiteração do pedido de informações, veio à balha o pronunciamento cabível, ressaltando-se que o acórdão ainda não foi confeccionado. Procedeu-se à juntada, ao ofício, do relatório e voto do Ministro Paulo Gallotti, Relator do habeas corpus, bem como da manifestação do Ministério Público. (...) O Superior Tribunal de Justiça, mediante o ofício de fl. 61, informa que a Sexta Turma daquela Corte, na assentada do dia 24 de maio de 2006, deferiu a ordem para garantir ao Paciente o direito de iniciar o cumprimento da pena no regime semi-aberto. A ementa do acórdão está assim redigida (fl. 62): Habeas corpus. Roubo qualificado. Tentativa. Sentença condenatória. Pena-base fixada no mínimo legal. Regime inicial de cumprimento da pena mais grave do que o legalmente previsto. Impossiblidade. Artigos 33, §§ 2º e 3º, e 59 do Código Penal. Réu reincidente. Condenação igual ou inferior a 4 anos. Regime semi-aberto. Incidência do Enunciado nº 269 da Súmula desta Corte. Ordem concedida. 1. Fixada a pena-base no mínimo legal, é inadmissível a estipulação de regime prisional mais rigoroso do que aquele previsto para a sanção corporal aplicada, não servindo como justificativa tratar-se de crime de roubo, cuja natureza e gravidade recomendariam sua adoção. 2. É de rigor a adoção do regime semi-aberto a réu reincidente condenado a pena igual ou inferior a 4 anos, se favoráveis as circunstâncias judiciais. Inteligência da Súmula nº 269 do STJ. 3. Ordem concedida para garantir ao paciente o direito de iniciar o cumprimento da pena no regime semi-aberto. Em atendimento ao que solicitado por V. Exa., a autoridade apontada como coatora trouxe ao processo cópias dos acórdãos do recurso de apelação e dos embargos de declaração interpostos (fls. 75 a 87). A Procuradoria-Geral da República opinou, à fl. 89, pelo deferimento da ordem, para que fosse afastada a proibição de progressão do regime prisional. Em nova manifestação, o Ministério Público Federal disse da impossibilidade de progressão de regime para o aberto, por cuidar-se de réu reincidente. Requereu, no entanto, antes de emitir pronunciamento definitivo, a realização de diligência, no sentido da solicitação de cópia da sentença condenatória e do acórdão do Superior Tribunal de Justiça (fl. 92). Elucidou que, ante a circunstância de o processo encontrar-se instruído com o julgado do Superior Tribunal (fl. 62), expediu-se ofício tão-só ao Juízo da 27ª Vara Criminal Central da Comarca da Capital de São Paulo, vindo cópia integral da sentença (fls. 101 a 105). R.T.J. — 209 219 Houve nova remessa do processo à Procuradoria-Geral da República (fls. 109 a 111). O Ministério Público Federal anota que, nos termos do art. 33, § 2º, alínea c, do Código Penal, o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. No caso, cuida-se de réu reincidente. Opina, por isso, pelo indeferimento da ordem. Lancei visto no processo em 20 de outubro de 2008, liberando-o para ser julgado na Turma a partir de 28 seguinte, isso objetivando a ciência do Impetrante. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Realmente, o regime aberto é restrito àqueles que não se mostrem reincidentes e cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos – art. 33, § 2º, alínea c, do Código Penal. O Paciente não goza da qualificação de não reincidente. Ocorre que há de se levar em conta o pedido subseqüente formalizado bem como a circunstância de haver cumprido parte da pena em regime fechado. São veiculados pedidos sucessivos para ser reservada vaga ao Paciente em penitenciária que conte com regime semi-aberto, que lhe foi imposto. Então, concedo parcialmente a ordem para: a) vir o Juízo da Vara de Execuções a examinar o direito de o Paciente, ante o cumprimento de parte da pena em regime fechado, progredir. b) caso não caiba a substituição do regime semi-aberto pelo aberto, assegurar ao Paciente o cumprimento da pena tal como prevista no título executivo judicial – no regime semi-aberto. c) que o Juízo da Vara de Execuções aprecie possível incidência da prescrição da pretensão executória. É como voto na espécie. EXTRATO DA ATA HC 86.961/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Paciente: Ednaldo Cernichiaro. Impetrante: Luciano Alves da Silva. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma deferiu, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Não participou, justificadamente, deste julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 28 de outubro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 220 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 89.083 — MS Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Paciente: Joseph Georges Sleiman — Impetrante: José Roberto Rodrigues da Rosa — Coator: Superior Tribunal de Justiça Competência penal – Prerrogativa de foro – Extensão – Coréus – Impropriedade. A competência do Superior Tribunal de Justiça está delimitada na Constituição Federal, não sofrendo alteração considerados institutos processuais comuns – a conexão e a continência. Precedentes do Plenário: HC 91.273-7/RJ, acórdão divulgado no Diário da Justiça Eletrônico de 31 de janeiro de 2008, HC 89.056-3/MS, acórdão veiculado no Diário da Justiça Eletrônico de 2 de outubro de 2008, ambos de minha relatoria, e Inq 1.720-5/RJ, acórdão publicado no Diário da Justiça de 14 de dezembro de 2001, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Sigilo de dados – Quebra – Indícios. Embora a regra seja a privacidade, mostra-se possível o acesso a dados sigilosos, para o efeito de inquérito ou persecução criminais e por ordem judicial, ante indícios de prática criminosa. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, deferir, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator e por unanimidade, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 19 de agosto de 2008 — Marco Aurélio, Presidente e Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ao apreciar o pedido de concessão de medida acauteladora e indeferi-lo, assim resumi os parâmetros deste habeas corpus (fl. 154): Habeas corpus – Quebra de sigilo telefônico – Afastamento – Inadequação. 1. O pedido de concessão de liminar está direcionado à suspensão do pronunciamento mediante o qual o Ministro Francisco Falcão determinou a quebra do sigilo telefônico do Paciente. Colho da longa inicial de fls. 2 a 25, como causas de pedir, a incompetência da autoridade apontada como coatora e a falta de fundamentação válida do ato. Alega o Impetrante ter havido mera referência a suspeita de envolvimento em atividade delituosa. Discorre sobre processo em curso na Justiça comum do Estado de São Paulo, relativo a homicídio, asseverando que dele o Paciente foi excluído. Afirma não incumbir ao Superior Tribunal de Justiça conduzir inquérito, no que, voltado a apurar participação, em crime, de ex-governador e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, acabou por R.T.J. — 209 221 alcançar o Paciente. O pleito final visa a tornar definitiva a impossibilidade de quebra do sigilo telefônico, trancando-se o inquérito no tocante ao Paciente. À fl. 58, despachei registrando a inexistência, no processo, da decisão atacada e determinando fossem solicitadas informações à Corte Superior de Justiça. Ao mesmo tempo, instei o Impetrante a providenciar a juntada do ato. À fl. 64, está o ofício do Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça, encaminhando peças concernentes ao inquérito. O Impetrante peticionou à fl. 140, também anexando elementos necessários à apreciação do pedido. (...) A Procuradoria-Geral da República, no parecer de fls. 157 a 159, preconiza o indeferimento da ordem. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Duas são as matérias envolvidas na impetração – a competência do Superior Tribunal de Justiça e a fragilidade do ato mediante o qual determinada a quebra do sigilo dos dados telefônicos do Paciente. Valho-me do que tenho sustentado no Plenário no sentido de legislação instrumental referente à continência e à conexão não poder alterar competência fixada na Carta Federal: (...) As normas definidoras da competência do Supremo são de Direito estrito. Cabe ao Tribunal o respeito irrestrito ao art. 102 da Constituição Federal. Sob o ângulo das infrações penais comuns, cumpre-lhe processar e julgar originariamente o Presidente e o Vice-Presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os próprios Ministros que o integram e o Procurador-Geral da República, mostrando-se mais abrangente a competência, a alcançar infrações penais comuns e crimes de responsabilidade, considerados os ministros de Estado, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, inciso I, da Carta da República, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente – alíneas b e c do inciso I do art. 102 da Constituição Federal. Então, forçoso é concluir que, em se tratando do curso de inquérito voltado à persecução criminal, embrião da ação a ser proposta pelo Ministério Público, a tramitação sob a direção desta Corte, presentes atos de constrição, pressupõe o envolvimento de autoridade detentora da prerrogativa de foro, de autoridade referida nas citadas alíneas b e c. Descabe interpretar o Código de Processo Penal conferindo-lhe alcance que, em última análise, tendo em conta os institutos da conexão ou continência, acabe por alterar os parâmetros constitucionais definidores da competência do Supremo. Argumento de ordem prática, da necessidade de evitar-se, mediante a reunião de ações penais, decisões conflitantes não se sobrepõe à competência funcional estabelecida em normas de envergadura maior, de envergadura insuplantável como são as contidas na Lei Fundamental. O argumento calcado no pragmatismo pode mesmo ser refutado considerada a boa política judiciária, isso 222 R.T.J. — 209 se fosse possível colocar em segundo plano a ordem natural das coisas, tal como contemplada no arcabouço normativo envolvido na espécie. O Supremo, hoje, encontra-se inviabilizado ante sobrecarga invencível de processos. Então, os plúrimos, a revelarem ações penais ajuizadas contra diversos cidadãos, viriam a emperrar, ainda mais, a máquina existente, projetando para as calendas gregas o desfecho almejado. A problemática do tratamento igualitário – e cada processo possui peculiaridades próprias, elementos probatórios individualizados – não é definitiva, ante a recorribilidade prevista pela ordem jurídica e, até mesmo, a existência da ação constitucional do habeas corpus. Em síntese, somente devem tramitar sob a direção do Supremo os inquéritos que envolvam detentores de prerrogativa de foro, detentores do direito de, ajuizada ação penal, virem a ser julgados por ele, procedendo-se ao desdobramento conforme ocorrido na espécie. (...) Quanto à questão alusiva à falta de fundamentos do ato mediante o qual determinada a quebra do sigilo de dados, reporto-me ao que consignei ao indeferir a cautelar. Há referência à suspeita de envolvimento do Paciente no crime que o inquérito visa a elucidar (fls. 64 a 137). Segundo análise feita pela Polícia Federal, para dar seqüência ao projeto de “eliminar” desafetos e tomar posse das terras e da riqueza ali existente, o Conselheiro Júlio teria contado com o apoio dos advogados Keila de Lima Arar Falcão e Joseph Georges Sleiman – o ora Paciente – , que teriam providenciado a contratação dos acusados e do suporte logístico para a perpetração dos crimes (fls. 69 e 70). Defiro a ordem para determinar o desmembramento do inquérito em curso no Superior Tribunal de Justiça, nele permanecendo apenas os autos relativamente ao detentor da prerrogativa de foro – Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso (fl. 35). EXTRATO DA ATA HC 89.083/MS — Relator: Ministro Marco Aurélio. Paciente: Joseph eorges Sleiman. Impetrante: José Roberto Rodrigues da Rosa. Coator: Superior G Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma deferiu, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Não participaram, justificadamente, deste julgamento os Ministros Carlos Britto e Menezes Direito. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 19 de agosto de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 223 HABEAS CORPUS 91.505 — PR Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Cezar Peluso Paciente e Impetrante: Cleiton José Assumpção — Coator: Superior Tribunal Militar Ação penal. Crime militar. Causa processada perante a Justiça estadual. Suspensão condicional do processo. Aceitação. Benefício não revogado. Instauração de nova ação penal na Justiça castrense, pelo mesmo fato. Inadmissibilidade. Preclusão consumada. Habeas corpus concedido. Voto vencido. Estando em curso suspensão condicional do processo penal, não pode, pelo mesmo fato, outro ser instaurado, ainda que em Justiça diversa. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, vencida a Relatora, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Ministro Cezar Peluso. Falou, pelo Paciente, o Dr. Gustavo de Almeida Ribeiro. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Brasília, 24 de junho de 2008 — Cezar Peluso, Relator para o acórdão. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra ato do Superior Tribunal Militar que, no julgamento do recurso criminal, reformou a decisão do juízo a quo e, assim, recebeu a denúncia em acórdão assim ementado (fl. 46): Recurso em sentido estrito. Denúncia rejeitada. Imputação de furto. Delito julgado antes no foro comum, com base na Lei nº 9.099/95. Entendimento “a quo” de coisa julgada. Ocorrência meridiana, “in casu” de crime de competência exclusiva da Justiça Militar. Decisão de 1º grau cassada. Inconformismo do “Parquet” das Armas ante rejeito de prefacial fundamentada no Art. 240, “caput”, do CPM. Perpetração de ilicitude, furto de motocicleta, por militar da ativa contra militar na mesma situação. “Persecutio criminis” que se revela deveras própria e de competência unicamente da Justiça Militar. Inteligência do Art. 9°, inciso II, alínea a, do CPM. Nesse sentido, tem-se corrente majoritária firmando a jurisprudência do STM, com respaldo no STF, para ter como nulo todo e qualquer ato jurisdicional relativo a crime militar, como “in casu”, emanado de Órgão não integrante da Justiça Militar. Provido o colacionado recurso ministerial, dando-se por recebida, no grau “ad quem”, a respectiva denúncia, com determinação de baixa dos autos ao Juízo de origem para prosseguimento da devida ação penal castrense contra o imputado. Decisão unânime. 224 R.T.J. — 209 Argumenta o Impetrante que, mesmo que o Réu venha a ser submetido a julgamento por juiz incompetente, não há como prevalecer a abertura de nova persecução penal sobre os mesmos fatos, devendo “prevalecer o princípio do ne bis in idem” (fl. 4). Observa que, tendo o Paciente sido submetido a julgamento perante a Justiça estadual, ocasião em que foram aplicados dispositivos da Lei 9.099/95, com a formação da coisa julgada, não cabe mais discutir questão referente à competência ou jurisdição. Requer a concessão da ordem para determinar o trancamento do processo instaurado no âmbito da Justiça Militar da União. 2. Decisão que indeferiu o pedido de medida liminar (fls. 95/99). 3. Informações prestadas pela juíza de direito do Juizado Especial Criminal da Comarca de Palmeira/PR (fls. 130/132). 4. Manifestação da Procuradoria-Geral da República no sentido da denegação da ordem (fls. 135/139). 5. Petição da Impetrante para fins de requerer sua intimação acerca da data da realização da sessão de julgamento (fls. 147/148). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A questão jurídica debatida nestes autos envolve a jurisdição da Justiça Militar da União, possível incompetência da justiça estadual do Paraná e o instituto da coisa julgada material no Direito Processual Penal. O Superior Tribunal Militar deu provimento ao recurso criminal interposto pelo Ministério Público Militar da União contra decisão que rejeitara denúncia oferecida contra o Paciente. Da leitura do voto do Relator, destaco os seguintes trechos (fls. 49/51): A decisão de 1º grau, fls. 159, decorre do entendimento do Juiz-Auditor signatário, Dr. Antonio Monteiro Seixas, que a ilicitude referida no libelo do “Parquet” das Armas, já restou devidamente julgada na esfera da Justiça Ordinária, à luz da Lei nº 9.099/95, se caracterizando, destarte, como coisa julgada, e sobre a qual “não cabe mais discutir possível conflito de competência ou de jurisdição”. Na jurisprudência deste Tribunal não se sustenta o entendimento expresso pelo insigne Magistrado “a quo”. (...) Ao tratar “Da aplicação da Lei Penal Militar”, o CPM cuidou de elencar, como entre os crimes militares, a hipótese prevista na alínea a do inciso II, do art. Art. 9ª, quando especifica: (...) A ocorrência envolvendo o agente e a vítima, respectivamente, os Sds. Ex. Cleiton José Assumpção e Éder Marciano Lindebeck, emoldura-se, R.T.J. — 209 225 de forma inconteste e meridiana, pelos dispositivos da Lei Substantiva Castrense acima enfocados, decorrente do fato de se encontrarem como militares da ativa do EB. Exposto isto, para afastar quaisquer dúvidas no tocante à plena competência da Justiça Militar há de se analisar o aspecto da coisa julgada, tido como pedra de toque para decidir, como se decidiu, no Juízo da Aud/5ª CJM. (...) Naquele feito, a decisão desta Corte Superior Castrense foi atacada no STF, em sede de “Habeas corpus” (nº 84.027-2), que, tendo como Relator o Eminente Ministro Carlos Veloso, mereceu a seguinte Ementa: “Habeas corpus. Inquérito arquivado pela Justiça Comum. Justiça Militar. Denúncia. Exceção de coisa julgada. Delito militar. Incompetência absoluta. I – ‘Writ’ não conhecido quanto ao princípio da indivisibilidade da ação penal, dado que tal questão não foi posta à apreciação do STM. II – Não há o que se falar em ofensa à Coisa Julgada, dada a incompetência absoluta da Justiça Comum para processar e julgar o feito”. Em face desse Julgado do Excelso Pretório, o STM tem se pautado, em corrente majoritária, no sentido de considerar nulo todo e qualquer ato jurisdicional relativo a crime militar que emane de Órgão não integrante da Justiça Militar, haja vista ser esta que, de acordo com o Art. 124 da CF, “compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Por conseguinte, neste feito, não há de se cogitar sobre “coisa julgada”, como se observa a decisão que rejeitou a denúncia ofertada pelo MPM contra o Sd. Cleiton José Assumpção, como incurso no caput do Art. 240 do CPM, ou seja, por cometimento de “furto simples”. 2. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de enfrentar a questão no julgamento do HC nº 84.027-2/RJ (rel. Min. Carlos Veloso, 2ª Turma, DJ 21.05.2004), destacando-se a seguinte passagem do voto do relator: “(...) Não há que se falar em coisa julgada, tendo em vista a incompetência absoluta da Justiça Comum para julgar o feito. É que, de acordo com o disposto no art. 9° do Código Penal Militar, é da justiça castrense a competência para processar e julgar crime praticado por militar contra militar em local sujeito à administração militar. No caso, conforme se vê dos autos, o paciente está sendo acusado da prática do delito de lesão corporal, porque teria, na Base Aérea de Santa Cruz/RJ, agredido um soldado da aeronáutica, quando ambos ali estavam em serviço. Assim, sendo competente a Justiça Militar para o julgamento do feito, é manifestamente nula a decisão proferida pelo XIX Juizado Especial Criminal da Comarca da Capital. (...) Acrescente-se, ademais, que a circunstância de a decisão da Justiça Comum já haver transitado em julgado não tem o condão de lhe conferir eficácia, certo que somente configuraria coisa julgada se tivesse sido proferida pelo juízo competente. (...).” 2. O julgamento realizado pelo Superior Tribunal Militar foi fundamentado na noção da inexistência de coisa julgada devido à incompetência absoluta da 226 R.T.J. — 209 justiça estadual para processar e julgar crimes militares (CF, art. 124). Como o vício é insanável, o processo se encontra contaminado de nulidade absoluta que, não sendo passível de convalidação, não permite a formação de coisa julgada material. Observo que o fato apontado nos autos – possível ocorrência de furto praticado por militar em situação de atividade contra militar na mesma situação – , em tese se amolda à previsão contida no art. 9º, inciso II, a, do Código Penal Militar, sendo clara hipótese de competência da justiça militar. 3. Registro, ademais, que, conforme informação prestada pela juíza de direito da Comarca de Palmeira, o processo instaurado no âmbito da justiça estadual encontra-se suspenso nos termos do art. 89 da Lei 9.099/95, o que evidencia não ter havido a formação de coisa julgada, eis que não houve condenação, absolvição ou declaração de extinção da punibilidade. Assim, ainda que se admitisse a tese exposta na inicial – a respeito da impossibilidade de violação à coisa julgada formada por sentença proferida por juiz absolutamente incompetente –, a hipótese não seria de acolhimento da pretensão deduzida no writ, porquanto não houve sentença condenatória, absolutória ou declaratória de extinção da punibilidade. Poder-se-ia apenas admitir a existência de litispendência. Contudo, em se tratando de processo instaurado no âmbito de juiz absolutamente incompetente – no caso, o juiz de direito –, descabe conceder a ordem. 4. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus. É como voto. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhora Presidente, segundo o que consta do parecer da douta Procuradoria e do próprio voto de V. Exa., o Paciente já foi julgado na Justiça comum? A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Não, foi-lhe oferecida a suspensão. Ele não foi julgado. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ele não foi julgado pela Justiça comum. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: E o prazo de dois anos já transcorreu? A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Teria de ver os autos. Pois, não, Doutor. O Dr. Gustavo de Almeida Ribeiro (Advogado): Eminente Ministro, a certidão que consta dos autos indica que o Paciente aceitou a suspensão em 29‑4‑05 e que não houve qualquer causa de suspensão, ou interrupção, ou revogação da benesse. A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Mas é inteiramente incompetente a Justiça estadual. R.T.J. — 209 227 O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sim, mas, de certo modo, a Justiça estadual já aplicou. A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): É como se o vigário da igreja lhe aplicasse uma penitência. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não. Neste caso, a Justiça estadual aplicou expediente legal substitutivo da sentença, o qual deve ter, em termos de impossibilidade de novo processo pelos mesmos fatos, igual conseqüência jurídica. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Como surgiu a questão da incompetência? O Sr. Ministro Cezar Peluso: Surgiu depois. A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Depois. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Depois do cumprimento? A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Não sei se depois do cumprimento. Ele está sendo processado perante a Justiça Militar. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Se a questão da incompetência surgiu durante o período de prova, bastava transferir o processo para a Justiça Militar. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senão, se ele já cumpriu, cumpriu sem nenhum incidente, sem descumprir qualquer das condições impostas pelo art.89. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ele se sujeitou ao que o Estado acusador lhe impôs. O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Impôs. Eu concordo. Não faz sentido submetê-lo novamente à prova. O Sr. Ministro Cezar Peluso: A outro processo. EXTRATO DA ATA HC 91.505/PR — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Relator para o acórdão: Ministro Cezar Peluso. Paciente e Impetrante: Cleiton José Assumpção (Advogada: Defensoria Pública da União). Coator: Superior Tribunal Militar. Decisão: A Turma, por maioria, vencida a Relatora, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Ministro Cezar Peluso. Redigirá o acórdão o Ministro Cezar Peluso. Falou, pelo Paciente, o Dr. Gustavo de Almeida Ribeiro. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Presidiu este julgamento a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi. Brasília, 24 de junho de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 228 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 91.551 — RJ Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio Pacientes: Nélio Seidl Machado, Luís Guilherme Vieira, João Mestieri, Délio Lins e Silva Júnior, Renato Tonini, Amilcar Siqueira, Márcio Gesteira Palma, Rodrigo de Oliveira Ribeiro, Lívia Novak, Aline Amaral de Oliveira, Renata dos Santos Bayer, Fernando Goulart, Manoel de Jesus Soares, Ubiratan de P. Guedes e Gustavo Alves Pinto Teixeira — Impetrantes: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e outros — Coator: Relator do Inq 2.424 do Supremo Tribunal Federal Habeas corpus – Prevenção. Surge a prevenção no tocante a habeas corpus quando tem origem em procedimento que desaguou na distribuição de idêntica medida. Inquérito – Representantes processuais – Envolvimento como investigados – Impropriedade. Verifica-se a impropriedade de inquérito relativamente a representantes processuais de envolvidos em certa investigação quando as peças existentes, o contexto revelado, não conduzem a indícios de participação em prática delituosa como é a que implique a publicidade de dados cobertos por sigilo. Habeas corpus – Ato de integrante do Supremo – Inadequação. Na óptica da ilustrada maioria, em relação à qual guardo reservas, mostra-se incabível habeas corpus contra ato de integrante do Supremo. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em, preliminarmente, superar questão relativa à distribuição do processo e, em seguida, não conhecer do habeas corpus, mas conceder a ordem de ofício, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 4 de dezembro de 2008 — Marco Aurélio, Relator. Questão de Ordem O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, pelo visto, hoje é o dia das questões de ordem. Antes de proceder ao relato deste caso, devo expor questão de ordem, já que cada qual dos integrantes do Supremo está submetido a Órgão maior, que é o Colegiado. De certa forma, os Ministros, no exame da questão de ordem, apreciarão atos praticados por mim próprio e pelo Presidente. R.T.J. — 209 229 Então, no tocante à questão de ordem, informo que este habeas foi a mim distribuído em 30 de maio de 2007, assentando-se, na oportunidade, a prevenção considerado o HC 91.174-9/RJ. Registro que, na dinâmica dos trabalhos, não é dado implementar análise de distribuição – acerto ou desacerto da distribuição verificada. O ato formalizado sob o comando da Presidência do Tribunal goza da presunção de acerto, da harmonia com a ordem jurídica em vigor, especialmente com o Regimento Interno do Tribunal. Recebido o processo, o relator atua a partir de tal premissa – ou seja, o acerto da distribuição. Pois bem, nas segundas informações, prestadas em agosto de 2007, veio o Relator do Inq 2.424-4/RJ, apontado – simplesmente apontado – como autoridade coatora deste habeas corpus – Ministro Cezar Peluso –, a lançar: (...) 4. Mas, ainda que o tivesse – ainda que ele tivesse praticado o ato que impugna –, por mera licença retórica – que me calou fundo, devo confessar –, tal pedido não poderia ter sido distribuído a V. Exa. por prevenção, como o foi, pela razão óbvia e decisiva de que os fatos objeto de investigação no Inq 2.549 – que trata de violação de sigilo legal – não têm a mais remota conexão ou ligação com os fatos do Inq 2.424 – que trata de outros crimes, imputados a outras pessoas. Assim, o Plenário há de pronunciar-se quanto ao que levantado por S. Exa. Não chego a perceber que S. Exa. não quer que atue como Relator neste processo. Não é isso. De minha parte, digo que a definição do relator tem como escopo maior a organicidade dos trabalhos na Corte. Pouco importa que o processo seja relatado por este ou por aquele integrante do Tribunal. A atuação fazse sem a óptica individualizada, porque de todo imprópria. Na administração pública, especialmente na Judiciária, prevalece o critério da impessoalidade. A prevenção, como já salientado, é instituto calcado na racionalização dos atos a serem formalizados. Cumpre deixar registrado que, à época da distribuição deste processo, o Plenário não havia ainda enfrentado o HC 91.174-9/RJ – em que figurou como autoridade coatora o Ministro Cezar Peluso, Relator do Inq 2.424-4/RJ, do Supremo –, o qual gerou a prevenção – porque me foi distribuído. Veio a fazê-lo em 20 de junho de 2007. Eis a síntese do acórdão proferido: Inquérito – Remembramento – Acusados sem prerrogativas de foro – Conexão – Continência – Supremo. Não concorre a indispensável relevância da causa de pedir do remembramento de inquérito, presente a competência do Supremo definida na Constituição Federal, considerada a disciplina legal da conexão e da continência. Esclareço que a Corte não só indeferiu a cautelar como também negou seguimento ao referido habeas corpus. O Plenário assim decidiu julgando em definitivo o tema que estaria a respaldar o pedido final de remembramento. Repito, à época da distribuição deste habeas, estava pendente o de número 91.174-9/RJ, mas a autoridade apontada como coatora em ambas as impetrações afirma 230 R.T.J. — 209 peremptoriamente, nas informações complementares (item 4 de fl. 138), a impropriedade da distribuição por prevenção e o faz negando o elo entre os inquéritos envolvidos – os de números 2.424-4/RJ e 2.549-6/DF. A premissa não se sustenta. O ato atacado neste habeas corpus foi praticado, tal como aquele impugnado no de n. 91.174-9/RJ – gerador da prevenção –, no bojo do Inq 2.424-4/RJ. Encontra-se às fls. 65 a 69 e consta do respectivo cabeçalho: Inquérito 2.424-4 — Rio de Janeiro Relator: Ministro Cezar Peluso Autor: Ministério Público Federal Sem deixar de consignar alguma perplexidade quanto à dúvida levantada por colega do próprio Tribunal, tenho que a distribuição se verificou presente o objetivo da norma do art. 69 do Regimento Interno, apesar de não se poder enquadrar inquérito como ação. Compreendo o preceito como a estabelecer prevenção também em medidas sucessivas intentadas considerados autos de inquérito, no que se afasta a possibilidade de diversos integrantes da Corte relatarem incidentes que tenham origem no mesmo procedimento, nos mesmos autos. Eis a razão da prevenção – evitar esforço desnecessário, homenagear a celeridade e economia próprias ao ofício judicante. Vale frisar a mais não poder: uma coisa é o relator suscitar dúvida quanto à distribuição a si. Outra é colega com o qual ombreia, figurando como autoridade coatora, vir a fazê-lo. Nestes dezoito anos de Tribunal, jamais presenciei esse fato, constatando-o, lastimavelmente, pela vez primeira. Esclareço que episódio anterior envolveu simples substituição ante a ausência, em Brasília, do relator de sorteio e mesmo assim resultou em processo administrativo – 320.275 –, com a glosa do que assacado. Manifesto-me, portanto, no sentido de encontrar-se correto o ato da Presidência do Tribunal – e não, desenganadamente, de minha autoria – que implicou a distribuição e esclareço que, neste processo, já formalizei decisão, muito embora precária e efêmera – a alusiva à liminar para os pacientes não se verem obrigados a comparecer à Polícia Federal, em face de convite por esta endereçado. Voto (Sobre questão de ordem) O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, pelo que eu verifico, aqui, das informações, há também uma outra questão que eu não sei se precederia, ou não, a essa, que é quanto à competência do Tribunal. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não precede, porque a primeira que coloquei está ligada à definição do relator. Primeiro, precisamos ter um relator, para depois, então, proceder à análise dos demais aspectos envolvidos. O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): É a questão de ordem apenas. R.T.J. — 209 231 O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Primeiro, precisamos ter como pacífica a atuação do Relator, para, depois, feito o relato – seja por quem for –, chegar-se aos votos. O Sr. Ministro Menezes Direito: Então, já que vamos deixar essa questão de competência para depois de decidida essa preliminar, eu gostaria de fazer apenas uma observação. Eu não enxergo, pedindo vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio, que as informações ou a alegação feita pela autoridade coatora tenha representado qualquer laivo de atingir o eminente Colega na medida em que o Ministro Marco Aurélio acentuou isso de forma muito clara. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Disse que não assento a premissa de que a autoridade apontada como coatora não me quer como juiz relator. Não assento. O Sr. Ministro Menezes Direito: O Ministro Marco Aurélio teve a cautela de afirmar essa questão. Portanto, fica bem claro que isso é apenas uma questão de natureza técnica. Tanto isso é verdade que o fundamento que foi adotado para que se questionasse a distribuição por competência foi porque os fatos objetos dessa investigação seriam distintos daqueles outros que são objeto do Inq 2.424. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Isso é que não procede. O Sr. Ministro Menezes Direito: Mesmo porque, evidentemente, a distribuição não cabe a nenhum de nós, cabe à Presidência. Então, qualquer ato que seja praticado com fulcro, com apoio, com lastro na distribuição, não é um ato que venha do próprio Ministro, de qualquer dos Ministros. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): V. Exa. me permite? O Sr. Ministro Menezes Direito: Claro, com muito prazer. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Confesso que não sindicalizei o acerto da distribuição. A partir das segundas informações, aí sim, fui ver se procedia ou não o que alegado pela autoridade apontada como coatora e cheguei à conclusão de que não procede. Por que não? Porque o ato impugnado neste habeas foi praticado no Inq 2.424-4/RJ, ou seja, nesse inquérito, deu-se o vazamento de dados sigilosos e, então, o relator lançou decisão determinando a remessa de peças à Polícia Federal para apurar a origem desse vazamento. O elo é evidente, considerado o habeas inicialmente distribuído, o habeas que gerou a prevenção a esta impetração. Trata-se de incidente relativo ao mesmo inquérito. Agora, o subsequente resultou da providência para apurar-se o vazamento. O Sr. Ministro Menezes Direito: Porque, se me permite o Ministro Marco Aurélio, S. Exa. poderá me ajudar no raciocínio, pelo que eu verifiquei, a Presidência distribuiu este habeas corpus por prevenção considerando que a matéria era relativa. Os dois inquéritos ficariam vinculados. 232 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Confesso que ficaria numa situação até mais confortável, recebendo menos um processo, caso este não tivesse sido distribuído a mim. O Sr. Ministro Menezes Direito: O que eu verifiquei é que a Presidência, ao formular a distribuição, o fez considerando a identidade ou, pelo menos, a ligação entre os fatos relativos aos dois inquéritos, embora, especificamente este segundo inquérito, que é o 2.549, sequer esteja mais aqui, porque houve desmembramento e foi, portanto, declinado ao 1º grau. E o eminente Ministro Presidente, ao formular a distribuição, considerou também esse aspecto e entendeu que havia, portanto, ligação. Então, no tocante à prevenção, eu também entendo que foi distribuído corretamente, nos termos do ato da Presidência. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senhor Presidente, presto um esclarecimento antes de proceder ao relato deste habeas. O Inq 2.549-6/DF resultou do ato praticado no de número 2.424-4/RJ. É um inquérito que corre sob a direção do Supremo, tendo, pelo menos ainda está assim sob o ângulo formal, como autor o Departamento de Polícia Federal. RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Eis as informações prestadas pela Assessoria, que, a esta altura, são tomadas visando a compor o relatório deste habeas: Por meio da decisão de fls. 105 a 107, V. Exa. indeferiu a medida acauteladora, consignando: Habeas corpus – Liminar – Ato do Supremo – Apreciação pelo Plenário – Inviabilidade – Parecer da Procuradoria-Geral da República – Julgamento final. 1. Eis as informações prestadas pelo Gabinete: O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil impetra este habeas corpus em favor dos advogados Nélio Seidl Machado, Luís Guilherme Vieira, João Mestieri, Delio Lins e Silva Júnior, Renato Tonini, Amílcar Siqueira, Márcio Gesteira Palma, Rodrigo de Oliveira Ribeiro, Lívia Novak, Aline Amaral de Oliveira, Renata dos Santos Bayer, Fernando Goulart, Manoel de Jesus Soares, Ubiratan de P. Guedes e Gustavo Alves Pinto Teixeira. Argumenta que os Pacientes estão sofrendo constrangimento ilegal em razão de o ministro Cezar Peluso haver determinado à Polícia Federal a instauração de inquérito para apurar vazamento de informações dos fatos investigados, sob sigilo, no Inq 2.424-4/RJ, apontando-os, desde logo, como suspeitos. Afirma o Impetrante que, “conquanto tudo indique que o franqueamento às provas dos autos, impropriamente chamado de vazamento, somente possa ter partido de quem já tinha acesso aos autos – policiais federais, membros e funcionários do Ministério Público Federal ou servidores do Tribunal –, todos os advogados estão R.T.J. — 209 233 sendo instados, por telefone, para comparecer à sede da Polícia Federal e prestar esclarecimentos sobre os fatos, tendo como mola propulsora exatamente a circunstância de que cada profissional intimado assinou o recibo da mídia, ou seja, pesa sobre cada um dos advogados que milita no processo a suspeita de ter sido o autor da quebra do sigilo” (fl. 11). Acrescenta ser notória a circunstância de, antes de os advogados terem vista dos autos, a imprensa já estampar todo o conteúdo da escuta e informações da investigação. Alega não se mostrar admissível que os pacientes sejam colocados sob suspeição somente porque, para o exercício da defesa, impunha-se-lhes o acesso às provas colhidas. Assevera não se opor, nem os pacientes, à instauração de inquérito para apurar eventual violação de sigilo funcional alusivo ao vazamento de informação sigilosa. Repele a “apriorística, constrangedora e injusta” condição de suspeitos que lhes foi atribuída pela autoridade coatora no ato mediante o qual determinou a instauração do inquérito policial. Requer a concessão de liminar para suspender as oitivas dos pacientes na Polícia Federal, até o julgamento final do habeas corpus. No mérito, pleiteia o trancamento do inquérito policial a que estão submetidos todos os advogados que tiveram acesso aos autos do Inq 2.424-4/RJ ou, alternativamente, seja redimensionado o foco da investigação. O processo está instruído com a decisão do Ministro Cezar Peluso no Inq 2.424-4/RJ, deferindo aos advogados vista dos autos (fls. 34 a 37); com notícias e artigos jornalísticos (fls. 38 a 57) e com requerimento subscrito por advogados, solicitando ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a tomada de providências contra as imputações que lhes foram lançadas. O ato atacado mediante esta impetração encontra-se às fls. 65 a 69. Nele se consignou que o sigilo das investigações foi mantido, “assim por esta Corte, pela Procuradoria-Geral da República e pela autoridade policial, desde a instauração do inquérito em fins de agosto do ano passado”, mas que “com surpresa (...), depois da autorização de acesso aos autos, verifiquei, como fato público e notório, as notícias da imprensa, nas quais foram revelados trechos textuais de transcrições de interceptações constantes dos autos” (fl. 67). V. Exa. solicitou informações à autoridade impetrada (fl. 79), que esclarece ter determinado a instauração de inquérito policial para apurar eventuais vazamentos de informações, considerada a reprodução, pela imprensa, “de trechos textuais de transcrições de interceptações constantes dos autos (...), revelando evidentíssimo conhecimento da documentação do inquérito”. Assevera haver agido por dever de ofício e instruído a comunicação à Polícia Federal com cópia do pronunciamento em que constou a advertência sobre o sigilo e da decisão mediante a qual deferida a entrega dos CDs aos advogados, oportunidade em que foi salientado serem esses os “únicos elementos documentais” de que se dispunha para início das investigações. Observa Sua Exa. que nesse ato não indicou como autor, suspeito ou investigado “quem quer que seja”, apenas cuidou de enviar à autoridade policial os dados até então disponíveis, narrando o fato, que aparentava 234 R.T.J. — 209 ser ilícito e típico. Consigna que, caso contrário – se fosse possível indicar a autoria ou o suspeito –, teria determinado a remessa das informações ao Ministério Público, nos termos do art. 40 do Código de Processo Penal. 2. Está-se diante de pleito de concessão de medida acauteladora somente passível de ser apreciada pelo Plenário. Reitero o que tenho consignado a respeito: (...) a organicidade própria ao Direito é conducente a concluirse que não cabe atuação individual na análise de pedido de concessão de medida acauteladora direcionado contra pronunciamento de integrante deste Tribunal. É que se encontram o autor do ato e o Relator no mesmo patamar judicante e, aí, conflito de enfoque somente atrairia o descrédito para a Corte. Surge campo propício a atentar-se para o art. 191 do Regimento Interno, constante do capítulo “Habeas Corpus”, no que direciona à observação do inciso IV do art. 21 do citado regimento – a suspensão de ato de integrante do Tribunal somente é possível mediante atividade de Colegiado. No caso, não há urgência excepcional a ditar o crivo individualizado. Então, cumpre aparelhar o processo para julgamento final do pedido. 3. Colham o parecer do Procurador-Geral da República. 4. Publiquem. A Procuradoria-Geral da República, no parecer de fls. 109 a 114, opina pelo não-conhecimento do pedido e, no mérito, pelo indeferimento da ordem. Os argumentos da manifestação do Ministério Público Federal estão sintetizados na seguinte ementa: Habeas corpus. Requisição de investigação acerca do vazamento de dados sigilosos. Alegada indicação dos Pacientes como suspeitos da conduta. Inocorrência. Incompetência da Corte para o julgamento do writ. Requisição de inquérito como dever funcional da autoridade que toma conhecimento de fatos delituosos. Inteligência dos arts. 5º, II, e 40, ambos do CPP. Impossibilidade de trancamento do inquérito pela via do habeas corpus. Inaptidão do ato atacado para ameaçar a liberdade de locomoção dos Pacientes. Parecer pelo não conhecimento do pedido e, no mérito, pela denegação da ordem. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da petição de fls. 125 a 127, sustenta a existência de fato novo, relevante, a justificar o exame do pedido de liminar, sob pena de perecimento do direito. Aponta que, em 28 de agosto, agentes da Polícia Federal intimaram, por telefone, diversos advogados, alguns indicados na impetração como pacientes e outros que atuaram no Inquérito 2.424, para prestar depoimentos no Inquérito 4/07, instaurado em razão do ato praticado pela autoridade apontada como coatora. Ressalta demonstrar esse fato o constrangimento a que estão submetidos os advogados, “na medida em que injustamente colocados na condição de principais suspeitos” da divulgação do conteúdo das interceptações telefônicas. Requer a concessão da medida acauteladora, determinando a sustação do trâmite do Inquérito Policial 4/07, ordenando à autoridade policial que “se abstenha de colher depoimentos de todos os advogados objeto da investigação”. R.T.J. — 209 235 A petição foi recebida no Gabinete da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (fl. 125). V. Exa., ante o quadro, deferiu a medida acauteladora para suspender a seqüência do inquérito, eximindo os Pacientes, por ora, do interrogatório (fl. 127). Nas informações prestadas às fls. 137 e 138, acompanhadas do documento de fls. 139 a 146, a autoridade apontada como coatora esclarece que, por não constar “envolvimento, como suspeito ou investigado, de nenhuma pessoa sujeita à competência originária”, determinou a remessa do inquérito ao Juízo Federal de primeira instância. Afirma que, desde então, o Inq 2.549 (numeração originária) já não está – “nunca esteve” – sob jurisdição desta Corte. Sustenta, então, a incompetência absoluta do Supremo para apreciar questões atinentes à instrução do inquérito. Ressalta que o presente processo não poderia ter sido distribuído a V. Exa. por prevenção, porquanto os fatos objeto de investigação no Inq 2.549 – relativo a violação de sigilo legal – não têm conexão com os do Inq. 2.424, alusivo a outros crimes, imputados a outras pessoas. O Chefe da Seção de Processos Diversos do Plenário, à fl. 147, informa que, em 21 de junho de 2007, o Inq 2.549 baixou definitivamente à Justiça Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, em cumprimento à decisão proferida pelo Ministro Cezar Peluso. A Procuradoria-Geral da República, no parecer de fls. 149 a 152, manifesta-se pelo não-cabimento do habeas, em virtude da incompetência do Supremo para o julgamento do processo, conforme disposto no art. 102, inciso I, alíneas d e i, da Constituição Federal. Aduz não haver fato novo a ser considerado, mas reprise do que alegado quando do pedido de concessão de liminar. Por isso, opina pela revogação do ato mediante o qual foi deferida a medida acauteladora. Acrescenta que, se outro for o entendimento de V. Exa., ao menos sejam restringidos os efeitos do provimento cautelar – para permitir o prosseguimento do Inquérito Policial 4/07 em relação a outras pessoas que não os pacientes – e apresentado o habeas à apreciação do Plenário da Corte. Lancei visto no processo em 25 de julho de 2008, liberando-o para ser julgado no Pleno a partir de 6 de agosto seguinte, isso objetivando a ciência dos Impetrantes. Em 28 de agosto de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil requereu a juntada de cópia da petição subscrita pelo paciente Nélio Machado em 15 de abril de 2007. Buscou comprovar que, anteriormente à decisão do Ministro Cezar Peluso deferindo aos ora Pacientes vista do inquérito policial relacionado à “Operação Hurricane”, a Rede Globo de Televisão já anunciava matéria a ser veiculada no programa “Fantástico” sobre os bastidores da referida operação. Daí a assertiva de que eventual vazamento de informação teria ocorrido antes do acesso dos Pacientes à documentação. Em 8 último requereu-se novamente a juntada da citada petição e da íntegra do inquérito em curso na Polícia Federal. É o relatório. 236 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Sob o ângulo da autoria do pronunciamento atacado mediante este habeas, em que pese à circunstância de o Ministro Cezar Peluso haver afirmado que não determinou, “em momento algum, indiciamento, interrogatório, nem outro ato qualquer no Inq 2.549, de modo que não posso ser apontado como autoridade supostamente coatora neste caso”, improcede, também aqui, o que é suscitado. A impetração está dirigida contra a decisão – assim rotulada e rotulada com acerto – de fls. 65 a 69. O Relator do Inq 2.424-4/RJ – Ministro Cezar Peluso –, após discorrer, com percuciência, sobre a publicidade dos atos processuais, citando a melhor doutrina – Antônio Scarance Fernandes, em Processo Penal Constitucional –, asseverou que (fl. 67): (...) Tal sigilo foi, aliás, rigorosamente, mantido, assim por esta Corte, pela Procuradoria-Geral da República e pela autoridade policial, desde a instauração do inquérito em fins de agosto do ano passado. 3. Foi, portanto, com surpresa que, depois da autorização de acesso aos autos, verifiquei, como fato público e notório, as notícias da imprensa, nas quais foram revelados trechos textuais de transcrições de interceptações constantes dos autos. O fato é dos mais graves e intoleráveis. Palavras de S. Exa. o Ministro Cezar Peluso. Após aludir à Lei 9.296/96, a revelar que “constitui crime realizar interceptações de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”, bem como aos arts. 154 e 325 do Código Penal, relativos ao sigilo funcional, consignou S. Exa. (fls. 68 e 69): 4. (...) Ante, pois, os gravíssimos fatos noticiados, requisito, nos termos no disposto do art. 5º, inciso II, do Código de Processo Penal, a imediata instauração de inquérito policial. A fim de instruir a requisição, determino o envio de cópia da decisão na qual adverti sobre o sigilo, bem como das cópias que o acompanham, enquanto únicos elementos documentais de que se dispõe agora para início de investigações. Para esse fim, oficie-se à Superintendência da Polícia Federal de Brasília, e dê-se ciência ao Procurador-Geral da República. Forçoso é concluir que restou sinalizado, de forma categórica, clara e precisa, que vazamento de dados sigilosos teria ocorrido após viabilizado o acesso a esses dados aos profissionais da advocacia. Eis como o Ministro Cezar Peluso, na decisão proferida, deixou ressaltada a matéria (fl. 66): (...) Friso: mantive o sigilo a terceiros, e disto adverti, mediante decisão explícita, suposto desnecessária à vista do ordenamento, que não poderia ser ignorado, a todos os advogados que pudessem, com procuração, ter acesso aos autos e a cópias magnéticas do seu inteiro conteúdo. Os que o tiveram, tomaram ciência dos termos da decisão e do sigilo. R.T.J. — 209 237 Entendo que, sob os ângulos subjetivo e objetivo, o habeas não merece censura. Tanto é assim que, instaurado o inquérito, buscou-se, desde logo, ouvir, como envolvidos no episódio, os profissionais da advocacia em atuação no citado inquérito – o de número 2.424 –, que figuram como pacientes nesta impetração, formalizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. No mais, devem-se reconhecer a fé pública dos advogados e, como regra, admitida logicamente a exceção, a inviolabilidade destes – art. 133 da Carta Federal e Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906/94. Há de presumir-se que não tenha partido dos advogados – conhecedores das balizas do sigilo de dados e dos deveres próprios à defesa dos interesses dos constituintes – atos que resultaram nas publicações estampadas em veículos de comunicação. Supõe-se o que normalmente ocorre e não o excepcional, o teratológico, mormente quando alcancem o perfil de profissionais, de pessoas compromissadas com a prevalência do Direito em vigor e, sobretudo, com os interesses patrocinados. Em síntese, não divulgariam os zelosos profissionais da advocacia fatos que, em última análise, seriam contra os constituintes. Se agissem dessa forma, atrairiam a incidência do disposto no art. 355 do Código Penal – patrocínio infiel: “trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado”. Assim o é – repito – ante o caráter negativo da publicidade dos dados resultantes da quilométrica interceptação telefônica. Qual o interesse em “queimar o filme” dos defendidos? Masoquismo afastado, a suposição consignada no ato em exame não se sustenta, discrepa da presunção do razoável. Aliás, venho advertindo que, nos dias de hoje, parte-se do pressuposto de que todos são salafrários até prova em contrário. Tem-se verdadeiro paradoxo: em visão de toda míope, diz-se que hoje os advogados criminalistas surgem ao lado de acusados. No caso, acontece justamente o inverso ao sinalizar-se que estariam fazendo verdadeiro “gol” contra. E há mais, a robustecer a ilação de não terem os profissionais da advocacia comprometimento com a quebra do sigilo. O acesso aos dados foi viabilizado ante deferimento de pedidos de vista em 16 de abril de 2007 (fls. 34 e 37). Pois bem, conforme ressaltado na inicial, a Folha de S. Paulo, exemplar de 16 de abril do citado ano, já criticava, em espaço próprio a tanto, a veiculação de informações sigilosas na imprensa, consignando a ouvidoria do jornal: (...) O mais grave na cobertura da Folha tem origem no fato de os grampos que fundamentaram as ordens de prisão e os mandados de busca não terem sido divulgados. Mas o jornal poderia ter ido mais longe. O “Estado” e o “Globo” informaram, com base em apuração na PF, que um dos presos, o desembargador Carreira Alvim teria dito em uma conversa: “Minha parte [eu] quero em dinheiro”. É informação importante. Não a li não Folha” 238 R.T.J. — 209 Do documento protocolado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 28 de agosto de 2008, também se depreende que o vazamento de informações ocorreu antes do deferimento do pedido de vista formulado. Em 15 de abril de 2007, domingo, fora recebido pela Dra. Ana Luíza Veras, então Secretária Judiciária desta Corte, às 13h45, petição subscrita pelo advogado Nélio Machado e dirigida ao Ministro Cezar Peluso, relator do Inq 2.424-4/ RJ. Na referida peça, formalmente protocolada no dia seguinte, o advogado alega que, apesar de à defesa não ter sido facultado o acesso ao procedimento policial, noticiava-se no “Jornal Nacional”, da Rede Globo de Televisão, no dia 14 de abril, sábado, matéria jornalística acerca dos “bastidores da operação Hurricane”, a ser veiculada no programa dominical “Fantástico” (fl. 2743 do anexo). As cópias do inquérito em curso revelam ainda que a decisão do Ministro Cezar Peluso, mediante a qual deferido o requerimento de cópias, tanto pelo método reprográfico, como por meio magnético (CD room), a serem entregues aos patronos constituídos pelos indiciados, está datada de 17 de abril de 2007, terçafeira (fl. 2875 do anexo). Às fls. 2926 a 2941 e 2953, 2955 e 2960, encontram-se os termos de ciência da decisão pelos advogados e o termo de recebimento de cópia integral do inquérito em meio magnético (CD), no dia 17 de abril de 2007. Entre as peças anexadas à referida petição, está a cópia dos depoimentos prestados por jornalistas no Inquérito Policial 4/2007 – DFIN/DCOR/DPF, instaurado por determinação do Ministro Cezar Peluso para apurar a violação de sigilo. Neles os jornalistas reconheceram a autoria da reportagem, mas recusaram-se declinar a fonte de informação. Os jornalistas Marcelo Xavier Rocha, Leonardo Leite de Souza e Ranier de Assis e Bragon – fls. 85, 87 e 90, respectivamente – afirmaram que lhes foi dado acesso às informações do inquérito na véspera da veiculação da reportagem, que foi ao ar em 17 de abril de 2007. Então, conforme declarado, o conhecimento quanto à documentação teria ocorrido no dia 16 anterior. Ora, a atribuição do vazamento de dados, como consta na decisão impugnada, de início, aos profissionais da advocacia é ato que veio a implicar a quebra da organicidade do próprio Direito, o afastamento dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ante o necessário comparecimento à Polícia Federal, para serem interrogados em inquéritos como verdadeiros investigados. Mostra-se algo contrário aos respectivos perfis. Concedo a ordem para, tornando definitiva a liminar deferida, afastar a obrigatoriedade de comparecimento, sem prejuízo de o inquérito prosseguir para apurar os autores do vazamento verificado. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, é evidente que o voto do eminente Ministro Marco Aurélio, como de hábito, a todos nos encanta pela R.T.J. — 209 239 minuciosa análise que fez dos autos. Peço vênia a S. Exa., mas não vou conhecer do habeas corpus. Não vou conhecer do habeas corpus, Senhor Presidente, porque não tenho como presente nenhum ato coator capaz de justificar a impetração. É que o Relator do Inq 2.424, tomando conhecimento dos fatos graves relativos à possível violação do segredo de justiça decretado, fez a devida requisição com a notícia de crime. Nesse despacho, com efeito, não há um conteúdo jurisdicional, mas, sim, um cumprimento de dever funcional. Trata-se de dever de ofício, e os fatos, no meu entender, corroboram essa orientação. É que, no curso do Inq 2.424, a imprensa publicou trechos textuais de transcrições de interceptações telefônicas constantes dos autos, o que estaria a demonstrar o pleno conhecimento de documentação daqueles autos, com severa violação do segredo de justiça antes determinado. Ora, diante desse fato específico, outra atitude não caberia, salvo aquela tomada pelo Relator, de determinar a investigação dos fatos. Se assim não o fizesse, estaria infringindo o dever de ofício. Note-se que o fato de comandar a investigação não significa, sob nenhum ângulo, que haja incriminação de qualquer natureza, mas, tão-somente, a obrigação que tem a autoridade judiciária de mandar seja feita a apuração de fatos que podem significar, concretamente, a violação do segredo de justiça. Anote-se que a decisão contemplou claramente a questão relativa ao sigilo, sendo enviada cópia da decisão respectiva e encaminhamento de cópias da ciência da decisão e de entrega dos CDs aos advogados, destacando que eram esses os elementos disponíveis até o momento. Veja-se, ademais, que não houve a indicação como autor, suspeito ou investigado de qualquer pessoa, mas, sim, a remessa dos dados então existentes. Trata-se, portanto, pelo menos na minha avaliação, de dever de ofício, não podendo representar ato jurisdicional de constrangimento ilegal capaz de amparar a impetração do habeas corpus. Veja-se também que eventual interrogatório determinado pela autoridade policial está fora da esfera de competência da Suprema Corte, o que desautoriza ainda mais a identificação do Relator do Inq 2.424 como autoridade coatora. Por essa razão, não estou conhecendo do habeas corpus. Quero fazer um registro especial, até por um dever de lealdade de uma velha admiração e amizade, que isso não vai nenhuma restrição, nenhuma eiva, nenhuma suspeita com relação aos eminentes advogados que atuam nesta Corte, e peço permissão para destacar, de modo muito particular, o Doutor Nélio Machado, por quem tenho uma antiga e velha amizade e admiração e, vez por outra, deleito-me com seu habeas corpus; habeas corpus abre as asas sobre nós. Então, este voto não tem nenhuma restrição no que concerne aos eminentes advogados, mas tem, sim, com meu convencimento, pedindo vênia ao meu querido amigo e companheiro de sempre, irmão fraterno, para dele divergir no sentido de apenas não conhecer pelas razões expostas. É esse o meu voto. 240 R.T.J. — 209 VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, começo por louvar o voto do Ministro Marco Aurélio, que realmente é, como sempre, primoroso tanto no relatório quanto no mérito de nos dar notícia de tudo o que se passou. Louvo também o voto do Ministro Menezes Direito. Penso que nem precisaria falar das sustentações orais tanto dos advogados quanto do Procurador-Geral. Fico em uma situação meio complicada, apesar de estar a dois anos e meio na condição de magistrada, mas como a minha vida inteira foi feita como advogada, a segunda pele que adquiri ainda faz com que eu não me contenha, talvez mais que os outros, para não saudar, porque parece purpurina jogada para o ar. Na verdade, a advocacia brasileira tem honrado a história do Brasil, e o Estado democrático de direito tanto depende dos advogados – isso não está em discussão para ninguém, nem mesmo para o Ministro tido como autoridade coatora –, porque a ninguém é dado desconhecer que a história das grandes lutas pelas liberdades no Brasil foi feita exatamente pelos advogados, historicamente desde o Império. Neste caso específico, primeiro, o que o Ministro Marco Aurélio pôs – e eu acentuo que realmente pode-se levar perfeitamente ao enquadramento dado – no sentido de que os advogados poderiam ser tidos, e foram tidos, como se investigados fossem ou pudessem ser, e, não fora a liminar concedida, parece-me que não constou expressamente do ato, ou não me convenceu, de que eles devessem assim ser tidos; porque é direito realmente que estaria sendo, de alguma forma, lesado ou pelo menos ameaçado quando foram assim considerados. Mas não vejo o ato tido como coator dotado das condições que os colocariam nessa situação. Razão pela qual eu considero que, realmente, não poderia ser conhecido o habeas corpus, porém, como foi entendido, pelo menos parece que foi entendido nessa situação – tanto que o Ministro Marco Aurélio deu a liminar para que eles não precisassem comparecer –, eu não conheço do habeas corpus, mas concedo, de ofício, a ordem. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): V. Exa. me permite? A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Claro! O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Estava com essa bala na agulha considerado o art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal e o precedente do célebre caso Ibsen Pinheiro – quando cessada a competência do Supremo, haveria a remessa do processo-crime ao Tribunal do Rio Grande do Sul –, mas o Pleno, configurada a ilicitude, concedeu a ordem, de ofício, para trancar, como se impunha, a ação penal. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Eu prefiro conceder a ordem de ofício para que continue o inquérito, sim, porém os advogados que estão cumprindo o que deve cumprir o advogado, o seu dever – vou deixar de considerar os advogados atuais, por conhecer uma gama enorme de advogados que foram meus colegas e R.T.J. — 209 241 que todos cumpririam muito bem –, e honram sempre os princípios norteadores da advocacia brasileira, independente de lei, da Constituição, para honrar a história, quem sempre fez história, a melhor história, a melhor parte da história das liberdades no Brasil. Por isso, peço vênia ao Ministro Marco Aurélio, para não conceder na forma de V. Exa., embora os efeitos sejam os mesmos, mas eu não conheço do habeas. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Vencido no conhecimento, se o for, coisa que não acredito, acreditando, votarei, evidentemente, no sentido da formal, apenas formal, concessão de ofício. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: V. Exa., por muito pouco, chega perto da minha Terra e vira um “Riobaldo”: “não sei de muita, mas desconfio de quase tudo”. Eu também, como V. Exa., não vejo sombra em buraco, mas sempre ando com o meu guarda-chuva. De toda sorte, eu me encaminho neste sentido, não conheço do habeas corpus, porque não considero que o Ministro Cezar Peluso, no ato tido como coator, tenha incluído nessa condição os advogados. E, para que os advogados, como foram assim considerados, possam continuar a cumprir o seu papel e, como a autoridade tida aqui como coatora também, realmente, tinha obrigação, e o fez, de dar ciência e requisitar que a investigação fosse feita por fatos realmente graves, concedo a ordem, de ofício, para que os advogados, na forma dita por V. Exa., não sejam considerados nessa condição, e o inquérito prossiga na forma da legislação vigente. É como voto. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, cumprimento inicialmente os nobres advogados que assomaram à tribuna. Compartilho, com os representantes da gloriosa Ordem dos Advogados as preocupações que veicularam, mas eu vou pedir vênia tanto ao eminente Relator quanto à Ministra Cármen Lúcia, para aderir ao voto do Ministro Menezes Direito, e o faço por razões de caráter estritamente técnico, e tendo em conta também o grande número de habeas corpus que temos recebido contra atos de Ministros que integram este Plenário. Eu verifico que, neste caso, o Ministro da Corte apontado como autoridade coatora, simplesmente, em cumprimento de indeclinável dever de ofício, ao se deparar com fatos que entendeu delituosos, determinou abertura de uma investigação criminal; verifico também que o referido Ministro desta Casa, ao fazê-lo, não nominou, não identificou qualquer suspeito e também não pediu o indiciamento de quem quer que seja. É possível, eventualmente, mas não me convenci disto, possa haver, implicitamente, uma sugestão nesse sentido, mas isso, para mim, não ficou claro. Se houver eventualmente, algum constrangimento ilegal a ser corrigido 242 R.T.J. — 209 mediante uma medida judicial, este constrangimento ilegal há de ser imputado à autoridade policial que determinou a oitiva dos Pacientes como suspeitos. Portanto, o remédio para isto, a meu ver, deve ser buscado na primeira instância. Em razão disso, Senhor Presidente, pelo meu voto, eu não conheço do habeas corpus. VOTO O Sr. Ministro Eros Grau: Senhor Presidente, o Ministro Cezar Peluso não praticou nenhum ato coator. Em função disso eu não conheço, mas, por outro lado, e o lembrou o Ministro Marco Aurélio, o § 2º do art. 654 do Código de Processo Penal diz: § 2 Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Aqui está dito mais do que se lê: os juízes e os tribunais têm o dever de expedir de ofício. É o que faço, nos termos exatos formulados pela Ministra Cármen Lúcia. Não conheço o habeas corpus, mas cumpro o dever de, em uma situação como esta, conceder de ofício a ordem. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, o fato é que tudo que veio à lume pela grande Imprensa foi prejudicial aos investigados no inquérito. Isso me parece de uma evidência solar, auto-evidente a comprovar que os advogados dos investigados inquisitorialmente não teriam nenhum interesse nessa divulgação prejudicial às pessoas e à causa por eles defendidas. Isso me leva à uma conclusão de ordem prática, de ordem até silogística, melhor dizendo. Os advogados deveriam estar pré-excluídos, absolutamente afastados de qualquer suspeita quanto a um vazamento que lhes era auto-evidentemente prejudicial. Por isso, pedindo vênia ao eminente Ministro da Casa que supervisionou o inquérito, exerceu a supervisão sobre o inquérito e continua a exercer, e também aos eminentes Ministros Lewandowski e Carlos Alberto Direito para seguir integralmente o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, conhecendo do habeas corpus para deferi-lo. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, não vejo, no despacho proferido pelo eminente Relator do Inq 2.424, qualquer imputação minimamente demeritória, quer à Instituição da advocacia, quer aos nobres patronos que defendem os acusados naquele feito. R.T.J. — 209 243 S. Exa. – e o Ministro Menezes Direito foi absolutamente preciso ao caracterizá-lo –, apenas e tão-somente, cumpriu o dever funcional que lhe cabia de determinar a investigação. Não significa isso que se deva, desde logo, excluir dessa investigação quem quer que seja. No entanto, apesar das razões que trouxe o Ministro Carlos Britto – quanto à eventual prejudicialidade da divulgação de dados aos próprios clientes desses advogados – não é argumento que me sensibilize. Dou maior ênfase à impossibilidade lógica, e bem o demonstrou o Relator, de que houvesse divulgação por parte deles, os advogados, de dados aos quais tiveram acesso posteriormente. De modo que acompanho a linha iniciada pela Ministra Cármen Lúcia para não conhecer da impetração, porém, deferir, de ofício, o habeas corpus. Explicação O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Presidente, tinha até colocado um guardanapo no Código de Processo Penal, na folha alusiva ao art. 654, para justamente utilizar o precedente por mim relatado no Plenário – e a decisão mostrouse unânime –, em que, cessada a competência do Supremo, concedemos ordem, de ofício, para trancar a ação penal – não foi nem para trancar inquérito – contra o ex-deputado à época, hoje novamente deputado federal, porque resgatado, quanto ao perfil, pela população do Rio Grande do Sul, Ibsen Pinheiro. Continuo convencido, Presidente, de que a sinalização foi escancarada no tocante à origem do vazamento. Continuo convencido de que essa ação de envergadura maior – diria uma ação nobre – que é o habeas corpus, porque voltada à preservação do direito de locomoção, para se mostrar cabível, basta que nela se articule ato, dito ilícito, a alcançar a liberdade de ir e vir e exista, acima daquele que o formalizou, órgão competente para apreciar o pedido veiculado na peça primeira do habeas corpus. Há um aspecto que não pode ser colocado em segundo plano. Estamos a cogitar de ato de constrangimento – e creio que a maioria conclui estar configurado e à margem da ordem jurídica –, praticado em inquérito que corre sob os auspícios do Supremo, ou seja, o Inq 2.549-6/DF, que não se mostra como o decorrente do desmembramento do primitivo, o de número 2.424-4/RJ, em curso no Rio de Janeiro. Mas, pela própria numeração – tive o cuidado de confirmar esse aspecto –, trata-se do inquérito resultante do ato do Relator do de número 2.424-4/RJ. Então, vencido na parte do conhecimento, a minha concepção é de que o Tribunal não pode simplesmente lavar as mãos e deixar de conceder essa ordem, até mesmo firmando um princípio que não necessitava sequer firmar: da presunção, da postura que se aguarda – já não digo dos advogados em geral – do homem médio. Estava pronto, mas não quis interromper, não quis inclusive me pronunciar após o voto do Ministro Menezes Direito, porque acreditava piamente no conhecimento deste habeas corpus, para, em face da barreira do conhecimento, propor a concessão de ofício. Então, ante o convencimento de que salta aos olhos o ato de constrangimento ilegal a reclamar o crivo, a glosa, do Supremo, concedo a ordem. 244 R.T.J. — 209 EXTRATO DA ATA HC 91.551/RJ — Relator: Ministro Marco Aurélio. Pacientes: Nélio Seidl Machado, Luís Guilherme Vieira, João Mestieri, Délio Lins e Silva Júnior, Renato Tonini, Amilcar Siqueira, Márcio Gesteira Palma, Rodrigo de Oliveira Ribeiro, Lívia Novak, Aline Amaral de Oliveira, Renata dos Santos Bayer, Fernando Goulart, Manoel de Jesus Soares, Ubiratan de P. Guedes e Gustavo Alves Pinto Teixeira. Impetrantes: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e outros. Coator: Relator do Inq 2.424 do Supremo Tribunal Federal. Decisão: Preliminarmente, o Tribunal superou questão relativa à distribuição do processo. Em seguida, por maioria, não conheceu do habeas corpus, mas concedeu a ordem de ofício, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Menezes Direito e Ricardo Lewandowski. Ausentes, justificadamente, o Ministro Celso de Mello, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Ministro Cezar Peluso. Falaram, pelos Impetrantes, o Dr. Alberto Zacharias Toron e o Dr. Nélio Seidl Machado e, pelo Ministério Público Federal, o Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 4 de dezembro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 245 HABEAS CORPUS 91.709 — CE Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia Paciente: Francisco de Assis Scomparin — Impetrante: Defensoria Pública da União — Coator: Superior Tribunal Militar Habeas corpus. Crime militar. Substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Impossibilidade na espécie. Habeas corpus denegado. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de não se admitir a aplicação da Lei 9.714/98 para as condenações por crimes militares, sendo esta de aplicação exclusiva ao direito penal comum. Precedentes. 2. A conversão da pena privativa de liberdade aplicada pela Justiça Militar por duas restritivas de direito poderá ocorrer, pelo menos em tese, desde que o Paciente tenha de cumprir pena em estabelecimento prisional comum e a pena imposta não seja superior a dois anos, nos termos previstos no art. 180 da Lei de Execução Penal, por força do que dispõe o art. 2º, parágrafo único, daquele mesmo diploma legal. 3. Na espécie, contudo, a pena fixada ao Paciente foi de dois anos, nove meses e dezoito dias de reclusão. Não há, portanto, como ser reconhecido a ele o direito de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. 4. Habeas corpus denegado. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, à unanimidade, indeferir o pedido de habeas corpus. Brasília, 16 de dezembro de 2008 — Cármen Lúcia, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Francisco de Assis Scomparin, ex-Sargento do Exército, contra acórdão do Superior Tribunal Militar, que, em 24 de abril de 2007, nos autos da Apelação 2006.01.050341‑2, Rel. Min. José Coêlho Ferreira, manteve, parcialmente, a condenação do Paciente pelo Conselho Especial de Justiça da Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária Militar de Fortaleza/CE, nos termos seguintes: 246 R.T.J. — 209 O Tribunal, por unanimidade, rejeitou a preliminar de incompetência da Justiça Militar da União suscitada pela Defesa e, no mérito, deu provimento parcial ao Apelo Defensivo para absolver o Apelante do crime previsto no art. 251, caput, do CPM, com fulcro no art. 439, alínea “b”, do CPPM, mantendo inalterada a Sentença a quo no que se refere à condenação pelo delito capitulado no art. 251, § 3º, do CPM, c/c o art. 71 do CP comum, fixando a pena em 02 anos, 09 meses e 18 dias de reclusão, estabelecendo o regime aberto para o cumprimento da pena, nos termos do art. 33, § 2º, alínea “c”, do Código Penal comum e confirmando a pena acessória de exclusão das Forças Armadas prevista no art. 102 do CPM. (Fl. 40 – Grifos no original.) 2. Tem-se, nos autos, que o Paciente foi condenado pelo Conselho Especial de Justiça da Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária Militar de Fortaleza/CE à pena de cinco anos, um mês e dezoito dias de reclusão e, ainda, na pena acessória de exclusão das Forças Armadas, pelos crimes do art. 251, caput (estelionato), (oito vezes) e art. 251, § 3º (agravação da pena) (cinco vezes), do Código Penal Militar, tendo sido fixado o regime semi-aberto para o cumprimento da pena. Foi concedido ao Paciente o direito de recorrer em liberdade (fl. 39). 3. Em 24 de abril de 2007, o Superior Tribunal Militar julgou parcialmente procedente a apelação interposta pela defesa do Paciente, reduzindo a pena imposta para dois anos, nove meses e dezoito dias de reclusão, estabelecendo o regime aberto para o cumprimento da pena, nos termos do art. 33, § 2º, alínea c, do Código Penal. Manteve a pena acessória de exclusão do Paciente das Forças Armadas (fl. 40). 4. Sustenta a Impetrante que “ao fixar a pena reduzida [ao Paciente], lhe impuseram o regime aberto, nos termos do artigo 33 § 2º, alínea ‘c’, do Código Penal Comum, já que o mesmo deixou de ser militar em face da pena acessória de expulsão das Forças Armadas”. E que, portanto, “o paciente está sob a égide da legislação penal comum, no que se refere à execução da pena, valendo indagar o motivo pelo qual o Juízo Colegiado do Superior Tribunal Militar deixou de aplicar as penas restritivas de direitos, conforme a Lei nº 9.714 de 25 de novembro de 1998” (fl. 4). Requer o deferimento de liminar, “a fim de substituir o regime aberto pela aplicação de duas penas restritivas de direito”, e, no mérito, pede “a concessão da ordem, determinando-se a definitiva aplicação das penas restritivas de direitos” (fl. 6). 5. Em 21 de junho de 2007, solicitei informações ao Superior Tribunal Militar, dando vista, na seqüência, ao Ministério Público Federal (fl. 66), para, só então, apreciar o pedido de liminar. 6. As informações foram prestadas pela autoridade impetrada em 2 de julho de 2007 (fls. 72-97). 7. A Procuradoria-Geral da República opinou sobre o mérito pelo “indeferimento do writ” (fl. 100). É o relatório. R.T.J. — 209 247 VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. O presente habeas corpus tem como objetivo possibilitar ao Paciente a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. 2. Os fundamentos fáticos e jurídicos expostos na inicial da impetração não me parecem possibilitar conduzir à concessão da ordem pleiteada. 3. A reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de não se admitir a aplicação da Lei 9.714/98 para as condenações por crimes militares, sendo esta de aplicação exclusiva ao direito penal comum. A Lei 9.174/88, que trata das penas restritivas de direitos, limitou-se a alterar o art. 44 do Código Penal, alteração que não se estende ao Código Penal Militar. Nesse sentido: Ementa: I – Recurso extraordinário: norma constitucional de direito intertemporal e interpretação das normas infraconstitucionais em alegado conflito. Para solver a questão de direito intertemporal relativa à incidência do art. 5º, XL, da Constituição, é necessário – e, por isso, admissível, mesmo em recurso extraordinário – interpretar as normas infraconstitucionais de modo a aferir da existência do conflito no tempo entre elas. II – Direito Penal Militar: penas restritivas de direito: a Lei 9.174, limitada à alteração do art. 44 Código Penal comum, não se aplica aos crimes militares, objeto de lei especial diversa no ponto. (RE 273.900, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 8‑9‑00.) E, ainda, Ementa: habeas corpus. Condenação pela Justiça Militar. Conversão de pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Militar da reserva. Nãoaplicação do regime aberto. Conhecimento parcial. Ordem denegada. O Supremo Tribunal Federal não é competente para julgar habeas corpus em que se impugne ato de juiz-auditor da Justiça Militar. Não-conhecimento da impetração no ponto. A Lei 9.174/98, que trata das penas restritivas de direitos, limitou-se a alterar o Código Penal nessa matéria. Tal alteração não alcança os crimes militares, objeto de lei especial distinta no ponto – o Código Penal Militar. O fato de o Paciente encontrar-se na reserva não o subtrai ao campo de incidência do Código Penal Militar, cujas normas sua conduta violou. A conversão da pena restritiva de liberdade em pena restritiva de direitos só é viável nas condenações não superiores a dois anos. Denegação da ordem. (HC 86.079, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 6‑11‑06 – Grifos nossos.) 4. Por outro lado, não procede a alegação do Impetrante no sentido de que, “ao fixar a pena reduzida [ao Paciente], lhe impuseram o regime aberto, nos termos do artigo 33 § 2º, alínea ‘c’, do Código Penal Comum, já que o mesmo deixou de ser militar em face da pena acessória de expulsão das Forças Armadas”. E que, portanto, “o paciente está sob a égide da legislação penal comum, no que se refere à execução da pena”. 248 R.T.J. — 209 A conduta ilícita praticada pelo Paciente tem a sua tipicidade prevista no Código Penal Militar, e não no Código Penal comum. O que poderá eventualmente ocorrer é que o Paciente tenha de cumprir pena em estabelecimento prisional comum, passando o cumprimento da pena – e não a existência da pena em si – a ser regido pela Lei de Execuções Penais. O próprio Código Penal Militar prevê situações em que o cumprimento da pena aplicada pela Justiça Militar ocorrerá em estabelecimentos prisionais comuns (arts. 61 e 62)1. Se tal situação se vier a figurar na espécie poderá ocorrer que se venha, pelo menos em tese, a se permitir a conversão da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito, desde que a pena imposta não seja superior a dois anos, nos termos previstos no art. 180 da Lei de Execução Penal, por força do que dispõe o art. 2º, parágrafo único, daquele mesmo diploma legal. Na espécie, contudo, a pena fixada ao Paciente no julgamento da apelação (decisão transitada em julgado para a defesa em 22‑6‑07 – fl. 73) foi de dois anos, nove meses e dezoito dias de reclusão. Não há, portanto, como ser reconhecido a ele o direito de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, qualquer que seja o foco sob o qual se aprecie o caso. 5. Pelo exposto, voto pela denegação da ordem de habeas corpus pleiteada. Vista O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, interessante. À medida que a Ministra Cármen Lúcia lia o seu – como sempre bem fundamentado – voto, ia me remetendo para o espírito protetivo, tutelar de todo o art. 5º da Constituição brasileira que visa, sobretudo, ao indivíduo perante o poder público. É histórico isso. Sabemos que as constituições, no campo dos direitos individuais, erguem em torno do ser humano, da pessoa natural, do indivíduo, portanto, uma paliçada defensiva contra, principalmente, as arremetidas do Estado, do Poder. O fato é que, quando a Lei Maior brasileira, no inciso XLVI do art. 5º, dispõe sobre os tipos de pena possíveis de aplicação no âmbito do poder punitivo do Estado, não faz nenhuma distinção entre civis e militares. Ao contrário do que sucede com o inciso LXI desse mesmo art. 5º: LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; 1 “Art. 61. A pena privativa da liberdade por mais de 2 (dois) anos, aplicada a militar, é cumprida em penitenciária militar e, na falta dessa, em estabelecimento prisional civil, ficando o recluso ou detento sujeito ao regime conforme a legislação penal comum, de cujos benefícios e concessões, também, poderá gozar.” (Redação dada pela Lei 6.544, de 30-6-78.) Pena privativa da liberdade imposta a civil “Art. 62. O civil cumpre a pena aplicada pela Justiça Militar, em estabelecimento prisional civil, ficando ele sujeito ao regime conforme a legislação penal comum, de cujos benefícios e concessões, também, poderá gozar.” (Redação dada pela Lei 6.544, de 30-6-78.) R.T.J. — 209 249 Isso me leva a uma suspeita de que, dogmaticamente ou teoricamente, ou a Constituição exclui de forma expressa os militares do campo de proteção dos civis, ou a condição de militar não significa deixar de aplicar indistintamente todas essas normas de proteção individual. Por isso vou pedir vista, para aprofundar uma investigação neste sentido: será que as leis infraconstitucionais estão certas ao endurecer para o lado dos militares o caráter persecutório dessa ou daquela política criminal? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Apenas lembrando, Ministro, a despeito dessas observações extremamente relevantes, o que definiu o meu voto foi a circunstância de que, mesmo para o civil, quando se ultrapassam os dois anos, como foi a pena, não há a permissão, como chamou a atenção o Presidente. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É isso, quanto à execução, à fase posterior. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Exatamente. E a substituição. O Sr. Ministro Carlos Britto: Então V. Exa. não está defendendo rasamente, secamente, essa tese? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não, o problema é que a pena ultrapassa dois anos. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Permita-me uma observação? Creio que o pedido de vista tem razão de ser porque há o estágio anterior. O art. 180 da Lei de Execuções cogita da fase de execução. Discute-se, também, a substituição considerado o processo de conhecimento, no que o Paciente foi apenado com menos de quatro anos: dois anos e nove meses. Seria o art. 44 do Código Penal. É interessante a elucidação, até para pensarmos melhor sobre o caso. O Sr. Ministro Carlos Britto: Para pensarmos um pouco mais detidamente. É que, quando a Constituição quer excluir os militares, ela diz expressamente. E em se tratando de pena, de tipo de pena, prestação social alternativa, suspensão e interdição de direito, os militares não foram excluídos. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Principalmente em época de paz. O Sr. Ministro Carlos Britto: Em época de paz. De todo modo é bom um reestudo. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Acho que convém. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O que se evoca – e vim conferir no Código Penal – é o art. 44, tendo presente a redação da Lei 9.714/98, ou seja, a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos quando não exceda a quatro anos. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): E neste caso não excedeu. 250 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Carlos Britto: A minha pergunta é: excluir os militares dessa possibilidade é de acordo com a Constituição? Ou seja, encontra amparo? Que o direito infraconstitucional dispõe sobre isso é lógico. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A jurisprudência está pacificada quanto à regência especial. O Sr. Ministro Carlos Britto: É torrencial a jurisprudência. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Agora, sob o ângulo da constitucionalidade, é interessante discutir a matéria. Aguardemos então. EXTRATO DA ATA HC 91.709/CE — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Paciente: Francisco de Assis Scomparin. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal Militar. Decisão: Após o voto da Ministra Cármen Lúcia, Relatora, que indeferia a ordem de habeas corpus, pediu vista do processo o Ministro Carlos Britto. Ausente, justificadamente, o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto e Cármen Lúcia. Ausente, justificadamente, o Ministro Ricardo Lewandowski. Subprocurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot. Brasília, 4 de setembro de 2007 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. VOTO (Vista) O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de habeas corpus, aparelhado com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão proferido pelo Superior Tribunal Militar. Acórdão que manteve, parcialmente, a sentença condenatória do Paciente (§ 3º do art. 251 do CPM) e fixou a respectiva pena privativa de liberdade em 2 (dois) anos, 9 (nove) meses e 18 (dezoito) dias de reclusão – em regime inicial aberto. Isso não obstante, deixou de aplicar a regra do artigo 44 do Código Penal comum (com a redação dada pela Lei 9.714/98), que autoriza a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. 2. Pois bem, a Ministra Cármem Lúcia (Relatora) votou pelo indeferimento da ordem. Ao fazê-lo, consignou que “a Lei nº 9.714/98, que trata das penas restritivas de direitos, limitou-se a alterar o art. 44 do Código Penal, alteração que não se estende ao Código Penal Militar (...)”. Entendimento, esse, que encontra apoio na pacífica jurisprudência desta Suprema Corte. A título de amostragem, citou o RE 273.900, Ministro Sepúlveda Pertence (Primeira Turma); assim como o HC 86.079, Ministro Joaquim Barbosa (Segunda Turma). R.T.J. — 209 251 3. Na oportunidade, a eminente Relatora recusou, ainda, a aplicação do art. 61 do CPM, combinado com o art. 180 da Lei de Execução Penal. Isto porque “a pena fixada ao Paciente no julgamento da apelação (decisão transitada em julgado para a defesa em 22-6-07 – fl. 73) foi de dois anos, nove meses e dezoito dias de reclusão (...)”. Logo, não há como “ser reconhecido a ele o direito de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, qualquer que seja o foco sob o qual se aprecie o caso (...)”. 4. Por se tratar de tema sensível, porque imbricado com a garantia constitucional da individualização da pena, pedi vista dos autos para um mais detido exame da causa. O que fiz notadamente porque o inciso XLVI do art. 5º CF/88, ao remeter à lei a incumbência de regular a individualização da pena, não fez nenhuma distinção entre os civis e os militares. 5. Feito este breve retrospecto, passo a votar. Fazendo-o, leio, de saída, o inciso XLVI do art. 5º da CF/88: XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; 6. Dessa leitura, dá para concluir que, de fato, os militares não foram excluídos da garantia constitucional da individualização da pena. Digo isto porque, de ordinário, a Constituição Federal de 1988, quando quis dar um tratamento diferenciado aos servidores militares, o fez explicitamente. Nessa direção, é o que se contém no inciso LXI do art. 5º do Magno Texto. Dispositivo segundo o qual “ninguém será preso em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Outra amostragem está na consideração de que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares” (§ 2º do art. 142). Isto sem contar que são proibidas a sindicalização e a greve, por parte do militar em serviço ativo, bem como a filiação partidária (incisos IV e V do §3º do art. 142). 7. De se ver que esse tratamento particularizado tem uma nítida razão, a saber: decorre do fato de que as Forças Armadas são instituições nacionais regulares e permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, destinadas à Defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (cabeça do art. 142). Regramento singular, esse, que toma em linha de conta as “peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra” (inciso X do art. 142). 8. Isto não obstante, Senhor Presidente, penso que a solução desta causa está na adoção do princípio da especialidade das leis. Isto porque a disciplina jurídica da matéria não pode mesmo ser – tal como acentuou a eminente Relatora – o 252 R.T.J. — 209 art. 44 do Código Penal, com a redação da Lei 9.714/98. Lei, essa, que se restringiu à regulação de condutas assumidas pelo criminoso comum. 9. Com efeito, entendo que somente a inexistência de um regramento específico em sentido contrário é que permitiria a aplicação da referida legislação comum mais benéfica. Premissa que, no caso concreto, não se faz presente, pois o próprio Código Penal Militar cuidou de regular o instituto da individualização da pena. Refiro-me ao Título V do Estatuto Penal militar: Título V Das penas Capítulo I Das penas principais Art. 55. As penas principais são: a) morte; b) reclusão; c) detenção; d) prisão; e) impedimento; f) suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função; g) reforma. (...) Art. 64. A pena de suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função consiste na agregação, no afastamento, no licenciamento ou na disponibilidade do condenado, pelo tempo fixado na sentença, sem prejuízo do seu comparecimento regular à sede do serviço. Não será contado como tempo de serviço, para qualquer efeito, o do cumprimento da pena. Parágrafo único. Se o condenado, quando proferida a sentença, já estiver na reserva, ou reformado ou aposentado, a pena prevista neste artigo será convertida em pena de detenção, de três meses a um ano. Art. 65. A pena de reforma sujeita o condenado à situação de inatividade, não podendo perceber mais de vinte e cinco avos do soldo, por ano de serviço, nem receber importância superior à do soldo. 10. Daqui se segue que a garantia constitucional da individualização da pena foi atendida pelo Código Penal Militar. Código, esse, que não se limitou ao estabelecimento de penas privativas de liberdade, pois, de parelha com isso, estabeleceu punições que se afeiçoam às penas restritivas de direitos. Refiro-me às penas de suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função; e de reforma (incisos f e g do art. 55). Sabido que as penas restritivas de direitos não são outra coisa senão “penas alternativas às privativas de liberdade, expressamente previstas em lei, tendo por fim evitar o encarceramento de determinados criminosos, autores de infrações penais consideradas mais leves, promovendo-lhes a recuperação através de restrições a certos direitos (...)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 8. ed. Revista dos Tribunais, p. 355). Tudo isso, penso, em perfeita sintonia com a garantia constitucional da individualização da pena; mas, lógico, de um modo todo particularizado, e mais rigoroso, quando o assunto é a atuação estatal para aqueles que atuam no âmbito da caserna. R.T.J. — 209 253 11. Se é assim, não vejo como se mesclar o regime penal comum e o regime penal castrense, de modo a selecionar aquelas regras mais favoráveis ao acusado. Fato que geraria um hibridismo incompatível com o princípio da especialidade das leis. Noutros termos: uma coisa é querer operar a aplicação da garantia da individualização da pena aos criminosos militares, na falta de um regramento específico; coisa bem diferente é baralhar as situações, de modo a misturar os regimes jurídicos diversos, em manifesta contrariedade a uma deliberada opção legislativa que encontra apoio na própria Constituição Federal de 1988. 12. Externando por outro modo a idéia: encontro, no próprio estatuto penal militar, dispositivos que me parecem cumprir a garantia constitucional da individualização da pena. Quero dizer: embora por um modo mais rigoroso, o fato é que o Código Penal castrense atendeu ao inciso XLVI do art. 5º da CF/88. Pelo que não enxergo ilegalidade, ou abuso de poder, na impossibilidade de extensão do art. 44 do Código Penal comum ao criminoso militar. Sendo certo que a imposição de uma pena superior ao patamar de dois anos de reclusão impede até mesmo a aplicação do instituto da conversão da reprimenda (art. 61 do CPM, combinado com o art. 180 da Lei de Execuções Penais), tal como enfatizado no HC 86.079, Ministro Joaquim Barbosa. 13. Por tudo quanto posto, acompanho o voto proferido pela Ministra Cármem Lúcia para denegar a ordem. É como voto. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, aqui existe uma ressalva, no parecer do Ministério Público – que me parece talvez mereça a atenção que sempre damos aos pareceres do Ministério Público. A Lei de Execução Penal, em seu art. 2º, estabelece: Art. 2º (...) Parágrafo único. Esta lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária. Trata-se de ex-militar. Esse dispositivo, segundo o parecer do Ministério Público, há de ser combinado com o art. 62 do Código Penal Militar, que diz: Art. 62. O civil cumpre a pena aplicada pela Justiça Militar, em estabelecimento prisional civil, ficando ele sujeito ao regime conforme a legislação penal comum, de cujos benefícios e concessões, também, poderá gozar. Na conjugação desses dois benefícios e sendo aqui o paciente um ex-militar, pode-se concluir que se ele for cumprir a pena em estabelecimento comum e não militar, por força do art. 2º, parágrafo único, da LEP, combinado com o art. 62 do Código Penal Militar, ele fará jus aos benefícios que a Lei de Execução Penal estabelece. Aí poderá o juiz da execução, com fundamento no art. 180 desta 254 R.T.J. — 209 mesma lei especial, que é a Lei de Execução Penal, eventualmente, se reunidas as condições necessárias, conceder exatamente essa substituição ou determiná-la. O Sr. Ministro Carlos Britto: Só que aí, Exa., me permita, quando a pena é inferior a dois anos. Aqui foi superior a dois anos. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: A pena é superior a dois anos. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Por isso é que nós dizíamos, e foi esse o objeto nuclear da questão, que não se poderia, retirando direitos de um e de outro regime, criar um terceiro regime, e era o que se pretendia – como o Ministro Gilmar Mendes costuma dizer: o melhor dos mundos, sempre é o que é mais favorável –, e considerando exatamente essa circunstância, que não teria, portanto, aplicação este dado. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Como isso consta do parecer do Ministério Público, eu me dou por satisfeito e acompanho os votos da Relatora e do eminente Ministro Carlos Britto. EXTRATO DA ATA HC 91.709/CE — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Paciente: Francisco de Assis Scomparin. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal Militar. Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Ministro Carlos Britto. Unânime. Primeira Turma, 11‑3‑08. Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 16 de dezembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 255 HABEAS CORPUS 91.859 — SP Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Paciente: Marcos José de Souza — Impetrante: Defensoria Pública da União — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Processo penal. Lei paulista 11.819/05. Interrogatório por videoconferência. Inconstitucionalidade formal já reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Violação do inciso I do art. 22 da Constituição Federal. Ordem condedida. 1. No julgamento do HC 90.900, Relator para o acórdão o Ministro Menezes Direito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou, por expressiva maioria de votos, a inconstitucionalidade formal da Lei 11.819/05 do Estado de São Paulo. Isso por entender que tal diploma legal ofende o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, na medida em que disciplina matéria eminentemente processual. 2. Na concreta situação dos autos, em que pese a discordância da defesa, o Paciente foi interrogado pelo sistema de videoconferência, nos termos do art. 1º da Lei 11.819/05. Ordem concedida para anular, desde o interrogatório (inclusive), o processo-crime, expedindo-se alvará de soltura se por outro motivo paciente não tiver que permanecer preso. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em deferir o pedido de habeas corpus, com a expedição de alvará de soltura, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 4 de novembro de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, aparelhado com pedido liminar, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que validou o interrogatório do Paciente por videoconferência. Esta a ementa do julgado: Habeas corpus. Roubo tentado. Interrogatório por videoconferência. Nulidade. Não-ocorrência. Ordem denegada. 256 R.T.J. — 209 1. A estipulação do sistema de videoconferência para interrogatório do réu não ofende as garantias constitucionais do réu, o qual, na hipótese, conta com o auxílio de dois defensores, um na sala de audiência e outro no presídio. 2. A declaração de nulidade, na presente hipótese, depende da demonstração do efetivo prejuízo, o qual não restou evidenciado. 3. Ordem denegada. 2. Pois bem, a Defensoria Pública da União requer a anulação do processocrime a que responde o Paciente desde o interrogatório. O que faz sob a alegação de que a videoconferência não constitui meio constitucionalmente válido para a condução do interrogatório do suposto autor de fato-crime. Mais: diz ser inconstitucional a Lei 11.819/05 do Estado de São Paulo. Em primeiro lugar, porque, ao regulamentar o uso de aparelhos de videoconferência, adentrou em matéria de competência exclusiva da União. Em segundo, porque o interrogatório mediante videoconferência ofende o princípio do contraditório e da ampla defesa. 3. Prossigo neste relato para anotar que a liminar foi indeferida, no período de férias forenses, pela então Presidente do Supremo Tribunal Federal. Na seqüência, os autos foram com vista à Procuradoria-Geral da República. Órgão que opinou pelo indeferimento da ordem. O que fez por entender que: a) a lei do Estado de São Paulo não avançou em matéria exclusivamente de competência da União, pois disciplina, tão-somente, norma de procedimento; b) a videoconferência é instrumento utilizado pela comunidade internacional e está prevista em Convenções Internacionais de Cooperação contra organizações criminosas. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. Fazendo-o, anoto, de saída, que, na sessão plenária de 30 de outubro de 2008, o Supremo Tribunal Federal, por expressiva maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade formal da Lei paulista 11.819/05. O que fez por entender que tal diploma legal ofende o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, na medida em que disciplina matéria eminentemente processual. Na ilustre companhia do Ministro Marco Aurélio, ainda assentei a flagrante inconstitucionalidade material da teleaudiência para fins do interrogatório do acusado. Isso por entender que a ouvida do réu por meio do sistema de videoconferência colide frontalmente com o fim último das garantias do devido processo legal (inciso LIV do art. 5º da CF), da ampla defesa (inciso LV do art. 5º da CF), do juiz natural (inciso LIII do art. 5º da CF) e da igualdade (dado que o uso de videoconferência termina por incidir somente sobre réus que se postam nos patamares inferiores da pirâmide social. Isso sem falar que o interrogatório do réu é o ponto culminante ou o próprio ápice do seu personalíssimo direito à autodefesa). 6. Pois bem, esse o quadro, penso que a ordem é de ser deferida. É que, na concreta situação dos autos, o Paciente, denunciado por tentativa de roubo, foi interrogado no próprio estabelecimento penal, por meio do sistema de R.T.J. — 209 257 videoconferência, nada obstante a expressa discordância de sua defesa. Interrogatório, esse, disciplinado pelo art. 1º da Lei estadual 11.819/051 (SP). 7. Com efeito, assentada a inconstitucionalidade formal deste dispositivo legal pelo Plenário o Supremo Tribunal Federal, concedo a ordem. O que faço para anular, desde o interrogatório (inclusive), a Ação Penal 050.05.099887-0, da 25ª Vara Criminal de São Paulo (Barra Funda), e determinar a expedição de alvará de soltura em nome de Marcos José de Souza. Alvará a ser cumprido, se por outro motivo o Paciente não tiver que permanecer preso. 8. É como voto. EXPLICAÇÃO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Presidente, só quero fazer um registro a latere, que não tem a ver com o processo em si. O parecer do Ministério Público, do Doutor Edson Oliveira de Almeida, que tem nos assistido algumas vezes, em raríssimos casos pela denegação, mas hoje, neste caso, em que já há até o pronunciamento do Supremo, ele o denega. Das minhas anotações, apenas cinco vezes eu o vi ser pela denegação. EXTRATO DA ATA HC 91.859/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Marcos José de Souza. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator, com a expedição de alvará de soltura. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 4 de novembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 1 “Art. 1º Nos procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e à audiência de presos, poderão ser utilizados aparelhos de videoconferência, com o objetivo de tornar mais célere o trâmite processual, observadas as garantias constitucionais.” 258 R.T.J. — 209 RECURSO EM HABEAS CORPUS 93.144 — SP Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Recorrente: Evaldo José de Lima — Recorrido: Ministério Público Federal Recurso ordinário em habeas corpus. Delitos de roubo. Unificação das penas sob a alegação de continuidade delitiva. Nãoocorrência das condições objetivas e subjetivas. Impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório para esse fim. Recurso desprovido. Precedentes. 1. Para configurar o crime continuado, na linha adotada pelo Direito Penal brasileiro, é imperioso que o agente: a) pratique mais de uma ação ou omissão; b) que as referidas ações ou omissões sejam previstas como crime; c) que os crimes sejam da mesma espécie; d) que as condições do crime (tempo, lugar, modo de execução e outras similares) indiquem que as ações ou omissões subseqüentes efetivamente constituem o prosseguimento da primeira. 2. É assente na doutrina e na jurisprudência que não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subseqüentes continuação do primeiro. 3. O entendimento desta Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado. 4. Incensurável o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, ora questionado, pois não se constata, de plano, ocorrerem as circunstâncias configuradoras da continuidade delitiva, não sendo possível o revolvimento do conjunto probatório para esse fim. 5. Recurso desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus. Brasília, 18 de março de 2008 — Menezes Direito, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Recurso ordinário em habeas corpus interposto pela Defensoria Pública da União contra acórdão da Quinta Turma do R.T.J. — 209 259 Superior Tribunal de Justiça, que denegou a ordem no HC 70.997/SP, Relator o Ministro Gilson Dipp, impetrado naquele Tribunal em favor de Evaldo José de Lima, buscando a unificação das penas a ele impostas pela prática de dois crimes de roubo, nos termos do art. 71 do Código Penal (fl. 134). Sustenta a Recorrente que: Ao contrário do que faz crer o acórdão ora recorrido, não pode prevalecer a decisão no sentido da inviabilidade da unificação das penas, no caso em tela, pois Evaldo, mediante duas ações praticou dois crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, foi, de fato, subseqüente continuação do primeiro. Com efeito, o reeducando apresenta os requisitos para a caracterização da continuidade delitiva. O curto espaço temporal – exatamente (5) cinco dias entre um e outro – a proximidade dos locais – ruas vizinhas, com distância de um quarteirão, na mesma comarca e cidade de Marília – e a adoção do mesmo ‘modus operandi’ – abordar as vítimas em ruas próximas, anunciar o assalto e colocar as mãos sob as blusas somente simulando portar arma de fogo – preenche, portanto, os requisitos objetivos. O envolvimento subjetivo que entrelaça os atos delituosos nos roubos se caracteriza pela unidade de desígnios, fruto de um plano único. Os delitos foram praticados pelo sujeito, aproveitando-se das mesmas relações de oportunidade encontrada e com a utilização de ocasiões nascidas na primitiva situação. (Fl. 139 – Grifos no original.) Ao final, requer “seja o presente recurso conhecido e, após regular tramitação, seja provido, a fim de que seja cassado o acórdão proferido pela Quinta Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça, e que seja viabilizada a unificação das penas com fundamento no art. 71 do CP” (fl. 141 – grifo no original). Não houve pedido de informações. Encaminhados os autos à Procuradoria-Geral da República, o Ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida opinou pelo desprovimento do recurso. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Volta-se a Recorrente contra acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 70.997/SP, Relator o Ministro Gilson Dipp, que denegou a ordem no habeas corpus submetido à apreciação daquela Corte. O acórdão impugnado fundou-se no argumento de não estariam evidenciados os requisitos indispensáveis à caracterização do crime continuado, não sendo cabível, nos estreitos limites do habeas corpus, maior aprofundamento na apreciação de fatos e provas constantes dos autos para a verificação das circunstâncias objetivas e subjetivas imprescindíveis ao reconhecimento da ocorrência, ou não, da continuidade delitiva (fl. 134). 260 R.T.J. — 209 Não enxergo nenhuma ilegalidade no julgado apta a ensejar a concessão da ordem ora pleiteada. O acórdão contra o qual se insurge a Impetrante tem seguinte ementa: Criminal. Habeas corpus. Roubos qualificados. Continuidade delitiva. Pressupostos. Modus operandi distinto. Matéria probatória. Impropriedade da via eleita. Ordem denegada. I. Hipótese em que o paciente foi condenado em duas ações penais pela prática de crimes de roubo qualificado e requer a unificação das penas com base na regra do crime continuado. II. Para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento dos requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, espaço e modus operandi) e subjetivo (unidade de desígnios). III. Não evidenciados, no caso, os requisitos indispensáveis à caracterização do crime continuado, é incabível, nos estreitos limites do habeas corpus, um maior aprofundamento na apreciação dos fatos e provas constantes do processo, para a verificação das circunstâncias objetivas e subjetivas imprescindíveis ao reconhecimento da ocorrência, ou não, da continuidade delitiva. IV. Ordem denegada. (Fl. 134.) Inicialmente, impõe-se examinar o instituto do crime continuado (ou continuidade delitiva) a fim de delinear os limites de análise do caso concreto trazido nos autos. Apenas como dado histórico sobre o instituto, Heleno Cláudio Fragoso acentuou: “Em Farinaccio encontramos a idéia de que o furto deveria reputar-se único se várias ações fossem praticadas, em diversos lugares, na mesma noite. Aparece a noção de crime continuado no Código Bávaro de 1813 (art. 110) e no Código Toscano (art. 80), passando à legislação e à jurisprudência dos tempos modernos com diversos critérios” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993). Diz-se, então, que há crime continuado quando o agente, mediante mais de uma conduta, comete mais de um crime da mesma espécie. Necessário também que os crimes guardem liame no que diz respeito ao tempo, ao lugar, à maneira de execução e a outras características que façam presumir a continuidade delitiva. Assim é que o conceito de crime continuado é extraído do preceito trazido no art. 71 do Código Penal, segundo o qual crime continuado é aquele que ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, devendo os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, desde que para tanto favoreçam as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças. Vê-se, pois, que para configurar o crime continuado, na linha adotada pelo Direito Penal brasileiro, é imperioso que o agente: a) pratique mais de uma ação ou omissão; b) que as referidas ações ou omissões sejam previstas como crime; c) que os crimes sejam da mesma espécie; d) que as feições adverbiais do crime (tempo, R.T.J. — 209 261 lugar, modo de execução e outras similares) indiquem que as ações ou omissões subseqüentes efetivamente constituem o prosseguimento da primeira. Além da teoria objetiva acolhida no art. 71 do Código Penal, temos, ainda, a teoria subjetiva e a objetivo-subjetiva. Cezar Roberto Bitencourt ensina que para a teoria subjetiva “não têm importância os aspectos objetivos das diversas ações, destacando como caracterizador do crime continuado somente o elemento subjetivo, consistente na unidade de propósito ou de desígnio”. Já para a teoria objetivo-subjetiva, o crime continuado, “além dos requisitos objetivos, exige unidade de desígnios, isto é, uma programação inicial, com realização sucessiva” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, vol. 1, 10. ed. Saraiva: São Paulo, 2006. p. 721/722). Registro que, em alguns casos, esta Corte decidiu que a homogeneidade objetiva entre as várias ações criminosas é suficiente para a configuração da continuidade delitiva, não sendo necessária a unidade de desígnios (pressuposto subjetivo). Cito, por exemplo, o HC 74.173/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25‑10‑96, e o HC 36.989/SP, esse mais antigo, do Tribunal Pleno, sendo Rel. Min. Nelson Hungria, DJ de 25‑11‑59. Esses julgados tiveram como fundamento a teoria objetiva pura, inspirada no art. 71 do Código Penal e difundida por Nelson Hungria em contraposição às teorias subjetiva e objetivo-subjetiva. Embora exista discussão teórica sobre o crime continuado, a doutrina e a jurisprudência majoritárias caminham no sentido de que não basta que haja identidade entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário, também, que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subseqüentes continuação do primeiro (teoria objetivo-subjetiva), avançando, assim, sobre a teoria objetiva. Nesse sentido: Habeas corpus. Crime continuado. Caracterização. 1. A continuidade delitiva (CP, art. 71) não pode prescindir dos requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução) e subjetivo (unidade de desígnios). 2. Impossibilidade de reexame, na via do habeas corpus, dos elementos de prova que o acórdão impugnado levou em consideração para não admitir a continuidade. Precedentes. 3. Recurso ordinário em habeas corpus improvido. (RHC 85.577/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 2‑9‑05.) Nesse julgado, a Ministra Ellen Gracie destacou que: (...) Os três crimes de roubo qualificado pelo emprego de armas e concurso de pessoas (CP, art. 157, § 2º, incisos I e II) foram praticados em dias de um mesmo mês e ano – abril de 1988 –, numa mesma cidade – Araruama –, e mediante a utilização de mesma maneira de execução. Porém, no tocante à circunstância subjetiva (unidade de desígnios), esta não foi comprovada. As instâncias ordinárias não reconheceram o nexo de continuidade 262 R.T.J. — 209 delitiva. E esse entendimento, segundo o aresto atacado, por envolver o reexame de fatos e circunstâncias, não poderia ser revisto no âmbito restrito do habeas corpus. 2. O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça está em conformidade com a orientação desta Corte. Quer no tocante à necessidade do duplo requisito objetivo e subjetivo (HC 70.794, Rel. Min. Celso de Mello, Ementário 2.095-2), para a caracterização do crime continuado, quer no que diz respeito à impossibilidade de, pela via do habeas corpus, proceder-se ao reexame dos elementos de prova que o acórdão impugnado levou em consideração para não admitir a continuidade (HC 85.113, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 1º-7-05; HC 85.153, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 18‑2‑05). No mesmo sentido, por exemplo, o HC 72.024/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 26‑5‑95; o RE 85.318/DF, Segunda Turma, Rel. Min. Cordeiro Guerra, DJ de 15‑9‑76; o RHC 46.880, antigo Estado da Guanabara, Segunda Turma, Rel. Min. Themistocles Cavalcanti, DJ de 8‑8‑69. Sem fazer exame aprofundado de fatos e de provas, passo ao caso concreto para observar, primeiramente, as razões que levaram o Juiz da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Marília/SP a indeferir o pedido de unificação lá formulado. Tem-se na decisão: Assiste razão o M.P. quanto às circunstancias que cercam cada caso e que impedem o reconhecimento da continuidade. O período entre os crimes não indica possibilidade de continuidade delitiva e as formas de execução indicam que os delitos não guardam entre si qualquer relação. De uma análise mais apurada de cada caso verifica-se que os delitos foram planejados e executados em ações independentes, por isso não há como reconhecer elementos suficientes para deferir a unificação desejada. Havendo variação do “modus operandi” e de vítimas é inequívoco que os delitos não nasceram da primeira ideação criminosa, impondo-se a exclusão da ficção jurídica do crime continuado, eis que tal fato demonstra apenas que o delinqüente se encontra totalmente estruturado na criminalidade. (...) Com essas considerações indefiro a unificação pretendida. (Fl. 14 – Grifo no original.) Assim, havendo variação de vítimas e do modo de agir, não há como considerar que o segundo crime tenha sido continuidade do primeiro, principalmente porque ficou demonstrado que faltou o liame entre as condições de tempo e lugar, evidenciando, pelo contrário, que o Paciente fazia desses pequenos roubos um meio de vida. Isso ficou bem demonstrado também no acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando negou provimento ao agravo em execução interposto pelo Paciente contra a decisão que indeferiu o pedido de unificação, antes mencionada. Verbis: (...) Conquanto praticando roubos em curto espaço temporal e em locais próximos, nem por isso pode-se admitir a continuidade que justificaria a unificação de penas. R.T.J. — 209 263 Tal instituto, criado pelos práticos para evitar pena de morte quando de uma terceira infração, percorreu largos períodos, conhecendo aplicações diversas, com profundas incursões doutrinárias, mas que na verdade só serviam para incentivar o delinqüente, já que, em linhas gerais, quanto mais ofensas, menor a pena chegando o crime a compensar. A desnaturação dos princípios informadores em nada concorre em benefício da sociedade diuturnamente agredida; só atende aos interesses do mal, escorado em posições que, data venia, não desestimulam à prática do crime; ao contrário. Tem esta C. Câmara, salvo exceções que se não atendidas seriam aberrantes, entendido que se não houve aproveitamento das mesmas relações de oportunidade, ou como bem, anotado por Damásio, “que os delitos tenham sido praticados pelo sujeito aproveitando-se das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização de ocasiões nascidas da primitiva situação (Código Penal Adotado, pág. 2002, Ed. Saraiva, 1.997)”, incabível o reconhecimento da continuidade. De seu turno, o Colendo Superior Tribunal de Justiça já assentou que “Ausente a unidade de desígnio, perpetrados que foram os roubos em lugares diversos contra vítimas mais diversas, sem aproveitamento das mesmas relações e chances até advindos do fato criminoso anterior, caracteriza-se a mera reiteração criminosa, sem conotação de continuidade delitiva para justificar a unificação de penas” (RSTJ, 25/361, Rel. Min. José Dantas). No mesmo sentido, V. Acórdão da lavra do eminente Juiz Pires Neto “Crime continuado. Demonstração da unidade de desígnios entre os delitos praticados, bem como a identidade de ‘modus operandi’. Reconhecimento. Necessidade: – Para o reconhecimento da figura do crime continuado é necessária a demonstração da unidade de desígnios entre os delitos praticados, bem como a identidade de ‘modus operandi’, sendo certo que, ao criminoso habitual, que faz do crime contra o patrimônio seu meio de vida, não pode ser concedido o benefício da continuidade delitiva” (Rev. 295.596 – j. 20/03/97, Primeiro Grupo de Câmaras). No mesmo sentido, Agravo em Execução 1.183.425/1, j. 8/6/00, Rel. Di Rissio Barbosa, RJTacrim 48/22). Na hipótese, trata-se de delinqüente habitual, com diversas condenações por crimes contra o patrimônio (fls. 12/18), que faz da odiosa rotina infracional seu modo de vida e sobrevivência; destarte, também por não vislumbrar o nascedouro em comum das perpetrações, não se pode atender ao pretendido. (Fls. 22/23 – Grifos no original.) Da mesma forma, a jurisprudência mais moderna desta Suprema Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado, conforme se tem no seguinte julgado: Crime continuado: descaracterização. 1. A jurisprudência do Tribunal – com reservas do relator, que a entende desbordante da teoria objetiva pura, definida no art. 71, caput, Código Penal (cf. HC 68.661, 17‑8‑91, Pertence, Lex 155/313) –, se vem firmando no sentido da descaracterização do crime continuado, quando independentemente da homogeneidade das circunstâncias objetivas, a natureza dos fatos e os antecedentes do agente identificam reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional (v.g., na Primeira Turma: HC 68.214, 18‑12‑90, C. Mello, RTJ 133/1191; HC 69.799, M. Alves, 29‑6‑93, Lex 183/282; HC 70.580, 264 R.T.J. — 209 10‑5‑94, C. Mello); da Segunda Turma: HC 68.626, 18‑6‑91, Borja, Lex 157/306: RTJ 137/764; HC 69.831, 24‑11‑92, Brossard, RTJ 145/569. (HC 70.891/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º-7-94.) No mesmo sentido: HC 70.794/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 13‑12‑02; HC 71.019/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 19‑12‑94; entre outros já mencionados no precedente acima. A descaracterização da continuidade delitiva pela habitualidade criminosa justifica-se pela necessidade de se evitar a premiação de criminosos contumazes, que acabam tornando-se profissionais do crime, inclusive com especialização em determinadas modalidades delituosas. Veja-se o magistério de Guilherme de Souza Nucci mostrando que a delinqüência habitual ou profissional não autoriza a aplicação do art. 71 do Código Penal porque o criminoso, em tal cenário, “não merece o benefício – afinal busca valer-se de institutos fundamentalmente voltados ao criminoso eventual. Note-se que, se fosse aplicável, mais conveniente seria ao delinqüente cometer vários crimes, em seqüência, tornando-se sua ‘profissão’, do que fazê-lo vez ou outra. Não se pode pensar em diminuir o excesso punitivo de quem faz do delito um autêntico meio de ganhar a vida” (Código Penal Comentado. 7. ed. 2. tiragem. São Paulo: RT, 2007. p. 518). Reconheço a validade do instituto como forma de racionalizar a apenação, mas que seja aplicado aos casos que, realmente, se mostrem dignos de serem considerados como tais. Dessa forma, tenho como incensurável o acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ora questionado, pois não se constata, de plano, ocorrerem as circunstâncias configuradoras da continuidade delitiva, não sendo possível o revolvimento do conjunto probatório para esse fim. Ante o exposto nego provimento ao recurso. EXTRATO DA ATA RHC 93.144/SP — Relator: Ministro Menezes Direito. Recorrente: Evaldo José de Lima (Advogado: Defensoria Pública da União). Recorrido: Ministério Público Federal. Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus. Unânime. Não participou, justificadamente, deste julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 18 de março de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 265 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 94.067 — RO Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia Agravante: Augusto Jerônimo da Silva ou Augusto Gerônimo da Silva — Agravado: Superior Tribunal de Justiça Agravo regimental no habeas corpus. Constitucional. Incompetência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar habeas corpus impetrado contra ato de juiz de direito. Prescrição da pretensão punitiva: ausência de plausibilidade jurídica do pedido. Precedentes. Agravo regimental ao qual se nega provimento. 1. A competência do Superior Tribunal de Justiça para julgar habeas corpus é determinada constitucionalmente em razão do paciente ou da autoridade coatora (art. 105, inciso I, alínea c, da Constituição da República). Nesse rol constitucionalmente afirmado, não se inclui a atribuição daquele Superior Tribunal para processar e julgar, originariamente, ação de habeas corpus na qual figure como autoridade coatora juiz de direito. 2. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que o benefício da redução dos prazos da prescrição não é aplicável aos casos em que o agente completa setenta anos de idade depois da publicação da sentença penal condenatória e dos acórdãos que mantiveram essa decisão. Precedentes. 3. Agravo regimental ao qual se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, negar provimento ao agravo regimental no habeas corpus, nos termos do voto da Relatora. Vencido o Ministro Marco Aurélio, Presidente. Ausentes, justificadamente, deste julgamento os Ministros Ricardo Lewan dowski e Menezes Direito. Brasília, 28 de outubro de 2008 — Cármen Lúcia, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Em 17 de março de 2008, neguei seguimento ao presente habeas corpus impetrado por Augusto Jerônimo da Silva, líder religioso, por seus advogados, contra decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em 20 de setembro de 2007, negou conhecimento ao Habeas Corpus 78.649, Rel. Min. Hamilton Carvalhido. 266 R.T.J. — 209 2. Este o teor do julgado no Superior Tribunal de Justiça, verbis: Habeas corpus. Direito Penal. Homicídio. Redução do prazo prescricional. Matéria não debatida pela instância a quo. Supressão de instância. 1. Não se conhece de habeas corpus cuja matéria que não se constituiu em objeto de decisão da Corte de Justiça Estadual, pena de supressão de um dos graus de jurisdição. 2. Writ não conhecido. (Fl. 44 – Grifos no original.) 3. Tem-se, nas informações prestadas pelo Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Porto Velho/RO ao Superior Tribunal de Justiça em 11‑5‑07, que: (...) O paciente foi denunciado por infração ao art. 121, § 2º, incs. II e IV c.c. art. 14, inc. II do CP porque, no dia 23.9.93, por volta das 14 horas, em razão de discussão de somenos importância, efetuou quatro disparos de arma de fogo contra a vítima Antonio Manzi, atingindo-a pela costas, apenas não causando a morte por circunstâncias alheias a sua vontade. A denúncia foi recebida no dia 08/11/93 e no dia 30/10/99 o paciente foi pronunciado nos termos da exordial. Interposto Recurso em Sentido Estrito, a sentença de pronúncia foi confirmada pelo e. Tribunal de Justiça em julgamento realizado no dia 24/2/00. No dia 05/4/02 o paciente foi submetido a julgamento pelo Júri Popular e condenado a pena de seis (6) anos e seis (6) meses de reclusão, a ser cumprida integralmente no regime fechado, tendo a decisão transitado em julgado para a acusação. O paciente interpôs Recurso de Apelação, o qual foi julgado no dia 22/8/02 e, à unanimidade, provido parcialmente apenas o fim de possibilitar o cumprimento da pena no regime inicial fechado. Inconformado, o paciente ofertou Recurso Especial no dia 22/10/02, o qual foi improvido em julgamento realizado no dia 15/6/04. O Acórdão foi publicado no dia 25/10/04. Na seqüência, o paciente interpôs Embargos Declaratórios, julgado no dia 24/11/04 e publicado em 14/2/05, e, em pós, Recurso Extraordinário, que, em decisão proferida pelo Ministro Presidente no dia 22/4/05, não foi admitido. Cumpre anotar, que não há registro nos autos da data da publicação da decisão que não admitiu o RE, nem da data de interposição do Agravo de Instrumento em RE. Registro, ainda, que a decisão condenatória até a presente data não transitou em julgado para a defesa, pois pende ainda de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal o AI/RE. Os autos retornaram à comarca de origem e no dia 12/12/05 foi determinada a expedição de mandado de prisão para início do cumprimento da pena. O paciente, por intermédio de advogado constituído, se manifestou nos autos pedindo o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva e, conseqüente, extinção da punibilidade, com fundamento no art. 110, § 1º, art. 109, inc. III e art. 115, todos do CP. R.T.J. — 209 267 Sustentou a incidência do art. 115 do CP alegando que o acusado havia completado 70 anos de idade no dia 25/4/04, isto é, “antes do ‘julgamento pelo TJRO” (sic). Em consonância com o parecer ministerial, o pedido foi indeferido ao argumento de que a redução do lapso prescricional, preconizada pelo art. 115 do CP, só poderia ocorrer caso o acusado tivesse completado 70 anos no dia do julgamento em Plenário, o que ocorreu nos autos. Nesta ocasião, esclareceu ainda, o Magistrado, que a aplicação do art. 115 do CP aos acórdãos dos tribunais somente seria possível se se tratasse de ação originária ou, então, quando houvesse reforma da sentença absolutória de 1º grau. (Fls. 627-629 do apenso 3.) 4. Contra a decisão do Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Porto Velho/RO que indeferiu o pedido de extinção da punibilidade do crime, foi impetrado o Habeas Corpus 78.649, no Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que, por ter o Impetrante completado setenta anos de idade em 25‑4‑04, a prescrição da pretensão punitiva estatal haveria de ter sido reconhecida entre o recebimento da denúncia (8‑9‑93) e a intimação da sentença da pronúncia (2‑12‑99). Em 20 de setembro de 2007, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça não conheceu o Habeas Corpus 78.649 por ter havido supressão de instância (fl. 44). 5. Impetrou-se então a presente ação, na qual se afirma que, “conquanto [o Superior Tribunal de Justiça] tenha assentado não conhecer do writ, incorre em coação ilegal, à medida que induvidosamente emitiu tese sobre a inocorrência da extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva” (fl. 4). Ressalta o ora Agravante que “está extinta a punibilidade do paciente, porquanto o art. 115 do Código Penal merece interpretação lato sensu, de modo a considerar sua incidência quando o acusado completar 70 anos antes do trânsito em julgado da condenação, ou pelo menos antes do Recurso Especial que enfrentou o mérito da condenação, devendo-se ademais contar a interrupção da prescrição somente com o advento da intimação da decisão de pronúncia e não da data de sua prolação” (fl. 8). 6. Por entender incabível o exame, per saltum, de fundamentos não apreciados pelo órgão judiciário apontado como coator no Superior Tribunal de Justiça, neguei seguimento ao presente habeas corpus em 17‑3‑08. 7. Publicada essa decisão no DJ de 27‑3‑08 (fl. 65), interpõe Augusto Jerônimo da Silva, ora Agravante, em 31‑3‑08, tempestivamente, agravo regimental (fls. 70-89), reiterando os mesmos argumentos da impetração e requerendo, basicamente, o provimento do recurso “quer para, desde logo, conceder-se a ordem de habeas corpus, quer para restabelecer a tramitação do pedido” (fl. 89). 8. A Procuradoria-Geral da República ofereceu resposta ao presente recurso, requerendo e opinando pelo “não provimento do agravo regimental” (fl. 94-97). É o relatório. 268 R.T.J. — 209 VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. Apesar da argumentação apresentada no habeas corpus e no presente agravo regimental, não assiste razão de direito ao Agravante, pois pretende ele o julgamento per saltum das questões que não poderiam ter submetidas à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. 2. A decisão questionada na presente ação – de não-conhecimento do Habeas Corpus 78.649 pelo Superior Tribunal de Justiça – guarda perfeita consonância com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal (confiram-se, a propósito, os seguintes julgados: HC 89.938, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º-11-06; HC 91.807, de minha relatoria, DJ de 1‑8‑07; e HC 86.320, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 24‑11‑06). 3. O Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Porto Velho/RO, apontado como coator no Habeas Corpus 78.649, não tem os seus atos judiciais sujeitos à apreciação direta e originária do Superior Tribunal de Justiça. Como plenamente consabido, a competência daquele Superior Tribunal para julgar habeas corpus é determinada constitucionalmente em razão do paciente ou da autoridade coatora (art. 105, inciso I, alínea c, da Constituição da República). Naquele rol constitucionalmente afirmado, não se inclui a atribuição do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, ação de habeas corpus na qual figure como autoridade coatora Juiz de Direito, estando os seus atos sujeitos ao primeiro controle do Tribunal de Justiça estadual. A matéria não comporta discussão mínima, por ser expressa a regra de competência constitucional e, para os fins de julgamento válido, não possibilita extensão. 4. Ademais, ao ressaltar que a ordem no Habeas Corpus 78.649 haveria de ser denegada, o Superior Tribunal de Justiça não adentrou no mérito daquela impetração, mas apenas afastou a alegação de estar-se diante de caso excepcional. Confira-se, por fim, trecho do voto do Ministro Hamilton Carvalhido, que, ao negar conhecimento ao Habeas Corpus 78.649, acertadamente considerou inexistente a prescrição da pretensão punitiva estatal, verbis: (...) Tem-se, assim, que se cuida de habeas corpus impetrado contra Juiz de Direito, sendo manifesta a incompetência deste Superior Tribunal de Justiça para dele conhecer originariamente (Constituição Federal, artigo 105, inciso I, alíneas “a” e “c”), pena de supressão de um dos graus da jurisdição. De qualquer forma, a ordem, a meu ver, haveria de ser denegada. Primeiro, é de se ter em conta que, quando o paciente completou 70 anos (25 de abril de 2004 – fl. 66), o feito já se encontrava nesta instância excepcional, 2 meses antes da Sexta Turma negar provimento ao recurso especial interposto, com trânsito em julgado em 2005. E na compreensão deste Superior Tribunal de Justiça, o termo “sentença”, estabelecido para a redução de que cuida o artigo 115 do Código Penal, compreende, na melhor das hipóteses, o acórdão do recurso de apelação. R.T.J. — 209 269 (...) Segundo, e fundamental, é que, ainda que se considere a redução pela metade do prazo prescricional, entre o recebimento da denúncia (8 de novembro de 93 – fl. 311) e a publicação da sentença de pronúncia (30 de outubro de 99 – fl. 463v) – ou entre qualquer outro marco –, não decorreu o prazo extintivo de 6 anos, nada importando a data da intimação pessoal do réu da pronúncia (2 de dezembro de 99 – fl. 467v). Com efeito, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é firme em que a interrupção do curso da prescrição se dá, em regra, com a publicação da sentença condenatória em cartório, que em nada se confunde com a intimação das partes, pessoalmente ou por intermédio do órgão de imprensa oficial. (...) Pelo exposto, não conheço do writ (...). (Fls. 48-53.) É que mesmo que fosse possível o conhecimento do Habeas Corpus 78.649, melhor sorte não acudiria, em princípio, os argumentos relativos à extinção da punibilidade do crime, sustentada pelo Impetrante, pois o benefício da redução dos prazos da prescrição não seria aplicável aos casos em que o agente completa setenta anos de idade depois da publicação da sentença penal condenatória e dos acórdãos que mantiveram essa decisão. Nesse sentido, entre outros, a Ext 1.007, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 2‑2‑07; e os HC 71.811, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 15‑12‑00; HC 86.320, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 24‑11‑06, este último assim sintetizado: Ementa: Penal. Processual penal. Habeas corpus. Agente maior de 70 (setenta) anos. Estatuto do Idoso. Redução de metade no prazo prescricional. Marco temporal. Sentença condenatória. I – A idade de 60 (sessenta) anos, prevista no art. 1º do Estatuto do Idoso, somente serve de parâmetro para os direitos e obrigações estabelecidos pela Lei 10.741/03. Não há que se falar em revogação tácita do art. 115 do Código Penal, que estabelece a redução dos prazos de prescrição quando o criminoso possui mais de 70 (setenta) anos de idade na data da sentença condenatória. II – A redução do prazo prescricional é aplicada, analogicamente, quando a idade avançada é verificada na data em que proferida decisão colegiada condenatória de agente que possui foro especial por prerrogativa de função, quando há reforma da sentença absolutória ou, ainda, quando a reforma é apenas parcial da sentença condenatória em sede de recurso. III – Não cabe aplicar o benefício do art. 115 do Código Penal quando o agente conta com mais de 70 (setenta) anos na data do acórdão que se limita a confirmar a sentença condenatória. IV – Hipótese dos autos em que o agente apenas completou a idade necessária à redução do prazo prescricional quando estava pendente de julgamento agravo de instrumento interposto de decisão que inadmitiu recurso extraordinário. V – Ordem denegada. 5. Pelo exposto, voto no sentido de negar provimento ao presente agravo regimental. É como voto. 270 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Vou pedir vênia, por entender que o habeas corpus deve vir, sempre, devidamente aparelhado ao julgamento do Colegiado, não sendo possível a atuação individual por mais douta que seja. EXTRATO DA ATA HC 94.067-AgR/RO — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Agravante: Augusto Jerônimo da Silva ou Augusto Gerônimo da Silva (Advogados: Manoel Lopes de Sousa e outros). Agravado: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: Por maioria de votos, a Turma negou provimento ao agravo regimental no habeas corpus, nos termos do voto da Relatora; vencido o Ministro Marco Aurélio, Presidente. Não participaram, justificadamente, deste julgamento os Ministros Ricardo Lewandowski e Menezes Direito. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 28 de dezembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 271 HABEAS CORPUS 94.237 — RS Relator: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski Paciente: Luciano Ferreira Ferraz — Impetrante: Defensoria Pública da União — Coator: Superior Tribunal de Justiça Roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo. Apreensão e perícia para a comprovação de seu potencial ofensivo. Desnecessidade. Circunstância que pode ser evidenciada por outros meios de prova. Ordem denegada. I – Não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo empregada no roubo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que tal qualidade integra a própria natureza do artefato. II – Lesividade do instrumento que se encontra in re ipsa. III – A qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal pode ser evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima – reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente – ou pelo depoimento de testemunha presencial. IV – Se o acusado alegar o contrário ou sustentar a ausência de potencial lesivo da arma empregada para intimidar a vítima, será dele o ônus de produzir tal prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. V – A arma de fogo, mesmo que não tenha o poder de disparar projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves. VI – Hipótese que não guarda correspondência com o roubo praticado com arma de brinquedo. VII – Precedente do STF. VIII – Ordem indeferida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por decisão unânime, indeferir o pedido de habeas corpus. Brasília, 16 de dezembro de 2008 — Ricardo Lewandowski, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de habeas corpus, impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Luciano Ferreira Ferraz, contra decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 961.826-AgRg/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 272 R.T.J. — 209 Narra a Impetrante, em suma, que o Paciente foi denunciado pela prática de roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo e pelo concurso de pessoas (art. 157, § 2º, I e II, do Código Penal), sendo condenado à pena de sete anos e seis meses de reclusão em regime inicial fechado (fl. 2). Afirma que, no exame da apelação ministerial, o TJRS reformou a sentença para excluir a majorante do emprego de arma de fogo uma vez que ela não foi apreendida. Registra, ainda, que, após o Parquet estadual apresentar recurso especial, o STJ reformou o acórdão e assentou, em síntese, ser pacífica a sua jurisprudência “quanto à prescindibilidade da apreensão da arma para a caracterização da causa de aumento de pena do crime de roubo (art. 157, § 2º, I, do Código Penal, ao argumento de ser desnecessária a apreensão ou perícia na arma de fogo, quando outros elementos sua utilização (fl. 31)”. Dessa decisão foi interposto agravo regimental, o qual restou improvido ao fundamento de que não logrou “o agravante trazer argumentos hábeis a ensejar a modificação da decisão impugnada”. Eis a ementa da decisão (fl. 35): Penal. Embargos de declaração no recurso especial. Art. 157, § 2º, incisos I e II, do Código Penal. Aplicação da majorante do emprego de arma de fogo. Arma não apreendida. Incidência. Contradição. Inocorrência. A contradição ensejadora do incidente de declaração pressupõe a existência de termos inconciliáveis no corpo da decisão, o que não restou demonstrado in casu (Precedentes). Sustenta a Impetrante, em síntese, a inaplicabilidade da majorante do inciso I do § 2º do art. 157 – violência ou ameaça exercida com o emprego de arma – uma vez que o instrumento não foi apreendido e, portanto, não foi provado o seu potencial lesivo (fl. 3). Afirma, mais, ser indispensável a realização de perícia para atestar a potencialidade lesiva da arma, de maneira a ensejar a aplicação da majorante. Nesse sentido assevera que “entender ser prescindível a demonstração do potencial lesivo da arma de fogo é o mesmo que se admitir como qualificadora do roubo o uso de arma de brinquedo” (fl. 7). Requer, ao final, a concessão da ordem para que seja excluída do cálculo da pena a circunstância do emprego da arma de fogo (fl. 7). O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves, opinou pelo indeferimento da ordem pleiteada (fls. 44-47). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Bem examinados os autos, verifico que o caso é de denegação da ordem. R.T.J. — 209 273 A matéria de fundo a ser apreciada neste writ é a mesma daquela julgada no HC 92.871, de relatoria da eminente Ministra Carmen Lúcia, em que proferi voto-vista divergindo, sendo acompanhado pela maioria dos integrantes desta colenda Turma. Na ocasião, pedi vênia para discordar da Relatora, pois entendo que o pleito referente à exclusão da causa especial de aumento de pena relativa ao emprego de arma de fogo no delito de roubo não pode ser atendido. Com efeito, não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que tal qualidade integra a própria natureza do artefato. Sua lesividade encontra-se in re ipsa. Supor o contrário significaria dar guarida à exceção, àquilo que normalmente não ocorre. Iria de encontro ao id quod plerumque accidit. Se por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima – reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente – ou pelo depoimento de testemunha presencial ficar comprovado o emprego de arma de fogo, esta circunstância deverá ser levada em consideração pelo magistrado na fixação da pena. Caso o acusado alegue o contrário ou sustente a ausência de potencial lesivo da arma empregada para intimidar a vítima, será dele o ônus de produzir tal evidência, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal, segundo o qual a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. Sim, porque incumbe à acusação demonstrar os fatos criminosos imputados ao acusado, cabendo a este, contudo, caso o alegue, provar eventual causa excludente de tipicidade, antijuricidade, culpabilidade ou extintiva da punibilidade. Como se sabe, a lei processual civil e penal outorga à parte o direito e, ao mesmo tempo, a obrigação de demonstrar fato que alega em seu interesse. Não seria razoável exigir da vítima ou do Estado-acusador comprovar o potencial lesivo da arma, quando o seu emprego tiver sido evidenciado por outros meios de prova, mormente quando esta desaparece por ação do próprio acusado, como usualmente acontece após a prática de delitos dessa natureza. É de se ter em conta, no caso concreto, que a efetiva utilização da arma de fogo foi comprovada por meio de relatos das testemunhas, conforme se verifica em trecho extraído do voto condutor da apelação julgada pelo TJSP, in verbis: Débora Soares Conceição, balconista do referido estabelecimento, asseverou que se encontrava na parte interior da loja e assistiu aos acontecimentos, através do circuito interno de TV. Inclusive seus relatos contêm detalhes acerca do numerário subtraído, da exibição da arma portada pelo apelante (...) Daiane Farias Santos, vítima da violência, relatou a ocorrência com riqueza de detalhes e deixou claro que reconheceu o acusado sem sombra de dúvidas, aduzindo que ele portava arma de fogo e a ameaçou (...). (Fl. 17.) Ademais, a arma de fogo, mesmo que, eventualmente, não tenha o poder de disparar projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves, como sangramentos e fraturas, não sendo raros, na crônica 274 R.T.J. — 209 policial e forense, os relatos de coronhadas e chuçadas desferidas com cabos e canos de revólveres, pistolas e artefatos afins, desferidas contra vítimas inermes. A hipótese não guarda nenhuma correspondência com o roubo perpetrado com o emprego de arma de brinquedo – exemplo frequentemente invocado pelos que defendem a necessidade de perícia para caracterização da forma qualificada do delito –, em que o tipo penal fica circunscrito àquele capitulado no caput do art. 157 do Código Penal, porquanto a ameaça contra a vítima restringe-se apenas ao plano psicológico, diante da impossibilidade material de que lhe sobrevenha qualquer mal físico. Esta Suprema Corte, ademais, já afastou, expressamente, a tese veiculada pela defesa neste writ, no julgamento, pela Segunda Turma, do HC 84.032-9/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, assim ementado: Roubo. Uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I) 1. A qualificadora de uso de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I) independe da apreensão da arma, principalmente quando, como ocorreu nos autos, a arma foi levada pelos comparsas que conseguiram fugir. Naquele julgamento ficou assentado que o emprego de arma de fogo no assalto a um estabelecimento bancário – embora não tenha sido ela recuperada – foi comprovado por testemunhas, sendo assim apto a caracterizar a respectiva qualificadora, repelindo-se, no acórdão, o precedente invocado pelo Impetrante, “que cuidou de crime praticado com arma de brinquedo”. Não se olvide, de resto, que constitui dever da autoridade judicial não apenas zelar para que os direitos fundamentais do acusado sejam estritamente respeitados, mas também velar para que a norma penal seja aplicada com vistas à prevenção do crime e ao cerceamento da delinqüência. Nesse sentido, observa Guilherme de Souza Nucci, a política criminal – da qual o magistrado também é um executor – exige uma “postura crítica permanente do sistema penal, tanto no campo das normas em abstrato quanto no contexto da aplicação das leis aos casos concretos, implicando, em suma, na postura do Estado no combate à criminalidade”.1 Exigir uma perícia para atestar a potencialidade lesiva da arma de fogo empregada no delito de roubo, ainda que cogitável no plano das especulações acadêmicas, teria como resultado prático estimular os criminosos a desaparecer com elas, de modo a que a qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal dificilmente possa ser aplicada, a não ser nas raras situações em que restem presos em flagrante, empunhando o artefato ofensivo. Significaria, em suma, beneficiálos com a própria torpeza, hermenêutica que, à toda evidência, não se coaduna com a boa aplicação do Direito. Isso posto, denego a ordem. 1 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 59. R.T.J. — 209 275 VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, vou só fazer uma referência rapidíssima à divergência. Lembro-me de que, nos outros casos, eu até disse que eu me afirmava em face das peculiaridades daqueles casos e pela tese, mas eu acompanho V. Exa. neste caso. EXTRATO DA ATA HC 94.237/RS — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Paciente: Luciano Ferreira Ferraz. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 16 de dezembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 276 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 94.526 — SP Relatora: A Sra. Ministra Cármen Lúcia Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski Pacientes: Adilson Ferreira, Edson de Jesus Santos e Gilvan Silva Soares. Impetrante: Ulysses da Silva. Coator: Relator do HC 95.110 do Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Execução penal. Regime de cumprimento. Semi-aberto. Ausência de vagas. Deficiência do Estado. Regime mais benéfico. Ordem concedida. I – Consignado no título executivo o regime semi-aberto para o cumprimento da pena, cabe ao Estado o aparelhamento do sistema penitenciário para atender à determinação. II – À falta de local adequado para o semi-aberto, os condenados devem aguardar em regime mais benéfico até a abertura de vaga. III – Ordem concedida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, deferir o pedido de habeas corpus para que se observe o cumprimento da pena tal como previsto no título judicial. Inexistente vaga em estabelecimento próprio, que se aguarde a vaga em regime aberto; vencida a Ministra Cármen Lúcia, Relatora. Não participou, justificadamente, deste julgamento o Ministro Menezes Direito. Brasília, 24 de junho de 2008 — Ricardo Lewandowski, Relator para o acórdão. RELATÓRIO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: 1. Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pelo advogado Ulysses da Silva em favor de Adilson Ferreira, Edson Jesus Santos e Gilvan Silva Soares, contra decisão proferida pelo eminente Ministro Paulo Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça, que, em 2 de abril de 2008, expôs o caso e negou seguimento ao Habeas Corpus 95.110, nos termos seguintes: Decisão Cuida-se de habeas corpus impetrado em favor de Adilson Ferreira, Edson de Jesus Santos e Gilvan Silva Soares, apontada como autoridade coatora o Tribunal de Justiça de São Paulo. R.T.J. — 209 277 Os autos foram a mim distribuídos por prevenção com o HC nº 88.118/SP, em que concedi a ordem para garantir aos pacientes o direito de iniciarem no regime semi-aberto o cumprimento da sanção imposta na ação penal aqui tratada. Buscam no presente writ ver reconhecido o direito de aguardar em regime aberto ou em liberdade o surgimento de vaga em estabelecimento adequado ao regime intermediário. Sustentam que “a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informou que os pacientes terão que iniciar o cumprimento de suas reprimendas em regime fechado, informação esta confirmada pela mm. Juíza das Execuções Criminais da Comarca de Osasco – SP.” (fl. 3) Indeferida a liminar, e prestadas as informações, o Ministério Público Federal manifestou-se pela concessão da ordem. Tenho, contudo, que o pedido não merece seguimento. Isto porque a questão que aqui posta não foi submetida a exame do Tribunal de origem, não podendo ser enfrentada, desde já, por esta Corte, vedada a supressão de instância. De outro lado, conforme precedentes desta Corte, não há como se reconhecer a existência de constrangimento ilegal se o réu, que tem contra si mandado de prisão expedido para que cumpra a pena no regime semi-aberto, sequer se apresentou para a execução, afirmando abstratamente inexistir vagas em estabelecimento próprio, valendo ressaltar que o impetrante não trouxe qualquer documento a comprovar a alegação de que os pacientes serão necessariamente recolhidos no regime fechado. Confiram-se: A – “Habeas corpus. Penal. Roubo qualificado. Cumprimento da pena em regime mais gravoso do que o imposto na sentença. Alegação de inexistência de vagas no estabelecimento apropriado. Réu foragido. 1. Não constando dos autos determinação do Juízo das Execuções de recolhimento do réu no regime fechado, nem manifestação do mesmo a respeito da eventual ausência de vaga no regime semi-aberto e estando o paciente foragido há mais de 02 (dois) anos, não se vislumbra o alegado constrangimento ilegal. 2. Parecer do MPF pela concessão da ordem. 3. Ordem denegada.” (HC nº 50.946/SP, Relator o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJU de 6/8/2007.) B – “Habeas corpus. Direito Processual Penal. Execução. Progressão de regime. Requisitos subjetivos. Dilação probatória. Via inadequada. Regime semi-aberto fixado na sentença. Alegação de inexistência de vaga em estabelecimento adequado. Ausência de comprovação. (...) Não há como ser acolhida alegação de constrangimento ilegal quando, ainda não cumprido o mandado de prisão, encontrando-se o paciente foragido, limita-se o impetrante a meras conjecturas, abstendo-se de demonstrar, mediante a apresentação de elementos concretos, a efetiva ausência de vaga em estabelecimento adequado ao cumprimento da pena no regime estabelecido na sentença. Habeas corpus de que se conhece em parte, e, nessa extensão, denegada a ordem.” (HC nº 36.014/SP, Relator o Ministro Paulo Medina, DJU de 16/11/2004.) 278 R.T.J. — 209 Ante o exposto, com fundamento no artigo 34, XVIII, do Regimento Interno deste Superior Tribunal de Justiça, nego seguimento ao presente habeas corpus. (Fls. 15-17 – Grifos no original.) 2. Reitera-se, na presente impetração, a alegação de ausência de vagas para o cumprimento da pena imposta aos Pacientes no regime semi-aberto. Relata o Impetrante não terem sido cumpridos até a presente data os mandados de prisão expedidos em desfavor dos Pacientes, ressaltando ter o Juízo das Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP determinado o recolhimento dos Pacientes “em regime fechado para início de cumprimento de pena” (fl. 3). Afirma que “os pacientes estão dispostos a iniciar o cumprimento da pena em regime adequado, ou seja, o semi-aberto, porém a informação que a Secretária de Administração Penitenciária de São Paulo, informou que os pacientes terão que iniciar o cumprimento de suas reprimendas em regime fechado, informação esta confirmada pela MM. Juíza das Execuções Criminais de Osasco-SP” (fl. 3, transcrição conforme o original). 3. Este o teor dos pedidos: (...) Sendo assim, é a presente para requerer a concessão da medida liminar, a fim de que os pacientes cumpram a pena que lhes foi imposta em regime inicial semi-aberto (entregando-se diretamente em colônia agrícola penal), ou, subsidiariamente, que possa aguardar a vaga para o regime semi-aberto em regime aberto, até que o juízo das execuções assegure vaga em estabelecimento adequado e, ao final, a concessão da ordem de habeas corpus impetrada (...) (Fl. 7 – Grifos no original.) 4. Em 30 de abril de 2008, indeferi o pedido de liminar e solicitei informações ao Juízo das Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP para que, na seqüência, fosse dada vista dos autos à Procuradoria-Geral da República (fls. 23-26). 5. As informações foram prestadas em 12‑5‑08 e encaminhadas a este Supremo Tribunal Federal em 13‑5‑08 (fls. 30-31). 6. Em 10 de junho de 2008, a Procuradoria-Geral da República opinou pela denegação da ordem (fls. 35-39). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. Conforme relatado, o Impetrante busca assegurar aos Pacientes o direito de aguardar em regime aberto ou em liberdade o surgimento de vagas para cumprimento das respectivas penas no regime semi-aberto, que, segundo alega, inexistiriam na Comarca de Osasco/SP. R.T.J. — 209 279 2. Entretanto, é de se ressaltar que não se comprova, nos autos, a presença de constrangimento ilegal a ferir direito dos Pacientes, nem ilegalidade ou abuso de poder a ensejar a concessão da presente ordem de habeas corpus, especialmente porque a impetração está precariamente instruída, sem a cópia de qualquer documento comprobatório da alegada ausência de vagas para cumprimento das penas no regime semi-aberto. Não cabe, aqui, decidir sobre o acerto ou o desacerto das decisões proferidas nas instâncias ordinárias e no Superior Tribunal de Justiça, em casos como o presente, no qual não se demonstra, cabalmente, a inexistência de vagas para cumprimento das respectivas penas impostas aos Pacientes. Observe-se que, na via tímida do habeas corpus, faz-se mister a apresentação de todos os elementos tendentes à demonstração das questões postas em análise, por inexistir, na espécie, dilação probatória. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite o conhecimento de habeas corpus quando os autos não foram instruídos com as peças necessárias à confirmação da efetiva ocorrência do constrangimento ilegal (nesse sentido: HC 91.226, de que fui Relatora, DJ de 17‑8‑07; e HC 91.399, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 11‑10‑07). Confira-se, por exemplo, o julgado do HC 68.698/SP: Habeas corpus – Extinção da punibilidade – Prescrição da pretensão executória do Estado – Paciente que constituiu defensor técnico – Pedido insuficientemente instruído – Indeferimento – Ressalva quanto à renovação do pleito. – A ação de habeas corpus – que possui rito sumaríssimo – não comporta, em função de sua própria natureza processual, maior dilação probatória, eis que ao Impetrante compete, na realidade – sem prejuízo da complementação instrutória ministrada pelo órgão coator –, subsidiar, com elementos documentais pré-constituídos, o conhecimento da causa pelo Poder Judiciário. – A utilização adequada do remédio constitucional do habeas corpus impõe, em conseqüência, seja o writ instruído, ordinariamente, com documentos suficientes e necessários à analise da pretensão de direito material nele deduzida. – A existência de dúvidas fundadas, especialmente quando relativas à própria consumação da prescrição penal, impõe o indeferimento do pedido, sem prejuízo de sua renovação, uma vez suficientemente instruído com os elementos de informação necessários a descaracterização da incerteza constatada. (Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 21‑2‑92.) Desse modo, a deficiente instrução do pedido inviabiliza a comprovação da ilegalidade questionada e, por conseqüência, o conhecimento da presente ação. No mesmo sentido, foi excerto do parecer do Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi, que ressaltou a precariedade das provas trazidas aos autos: 280 R.T.J. — 209 (...) O impetrante não se desincumbiu do ônus de acostar provas que demonstrem, de plano, a alegada inexistência de vagas no sistema semi-aberto, fato que, a princípio, impossibilitaria a análise da tese defensiva (...) (Fl. 38.) 3. Ademais, mesmo que se pudesse cogitar da suficiência das provas nessas condições, é de se ressaltar que, quanto à questão de fundo da presente impetração, nada há de se rever na decisão do Superior Tribunal de Justiça. É inegável que o regime determinado na sentença penal condenatória deve orientar a sua execução, não importando, contudo, em constrangimento ilegal o tempo de permanência necessário, nos limites do razoável, à transferência do condenado do estabelecimento próprio da prisão provisória para o do regime decretado na condenação imposta. Nesse período, cumpre ao juízo das execuções zelar pelo correto cumprimento da pena (art. 66, inciso VI, da Lei 7.210/84), adotando as providências necessárias para o ajustamento da execução da pena ao regime determinado na sentença penal condenatória. Na espécie vertente, inexiste qualquer determinação judicial no sentido de que os Pacientes sejam presos em regime prisional mais gravoso do que o fixado na condenação, nem processo de execução formalmente instaurado, sendo induvidoso, acrescente-se, que o Juízo de Direito da Vara do Júri e Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP não se manifestou sobre a existência, ou não, de estabelecimento próprio ao regime de cumprimento de pena imposto na sentença penal condenatória. Este o teor das informações prestadas por aquele Juízo: (...) Os pacientes foram condenados pelo Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Miracatu/SP, a pena de 05 anos, 07 meses e 14 dias de reclusão, em regime semi-aberto, por infração ao artigo 157, § 2º, incisos I, II e V do Código Penal. A defesa requereu que os pacientes iniciassem o cumprimento da reprimenda no regime penal estabelecido, ou, na hipótese de impossibilidade do pleito, que aguardassem em regime aberto vaga em estabelecimento penal adequado (fls. 02/09) Ocorre que, para início do cumprimento da pena, é necessária a prisão dos pacientes, de modo que, até a presente data, o cárcere não se efetivou e, conseqüentemente, não há processo de execução em trâmite neste Juízo, razão pela qual foi indeferido o pedido da defesa. Ademais, o processo de origem espera o cumprimento da custódia para, então, expedir a Guia de Recolhimento (...) (Fls. 30-31.) Como se vê, os Pacientes estão foragidos, não havendo, portanto, como se reconhecer o constrangimento, notadamente porque o processo de execução sequer foi instaurado e, ao contrário do que se alega na petição inicial, não existem nos autos elementos concretos que apontem a inexistência de vagas para o cumprimento do regime prisional fixado na sentença. R.T.J. — 209 281 Por derradeiro, a jurisprudência deste Supremo Tribunal assenta-se no sentido de não haver ilegalidade na expedição de mandado de prisão para fins de cumprimento de pena. Nesse sentido: Habeas corpus – Inexiste coação pela determinação, ao réu a que se concedeu o regime inicial semi-aberto, de que se expeça contra ele mandado de prisão, para que, cumprido este, se solicite, para ele, vaga em um dos estabelecimentos apropriados ao cumprimento desse regime. Habeas corpus indeferido. (HC 72.499, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 23‑2‑96.) 4. Pelo exposto, encaminho a votação no sentido de se denegar a ordem. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eminente Relatora, aí o fulcro da questão é que os Pacientes não foram removidos para o sistema semi-aberto. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não, eles não foram presos. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Eles foram condenados em regime semi-aberto, mas a premissa – e esta segue a ordem natural das coisas, a realidade brasileira – é a de que não haveria vaga para o cumprimento da pena nesse regime. Então, o que estão pretendendo? Que, realmente, se observe o regime semi-aberto. Fugiram por isso. Talvez, se não tivessem fugido, estariam hoje no regime fechado. Assim, estão pleiteando que se conceda a ordem para se observar o título quanto ao regime semi-aberto e, na impossibilidade de se ter esse regime, que fiquem em regime aberto. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Ministra Cármen Lúcia, V. Exa. está denegando a ordem? A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Estou denegando, Senhor Ministro, porque, primeiro, não há dados no processo. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Mas é a realidade, Ministra, não há vagas. Em São Paulo ainda temos colônias. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Mas eu não tenho como dizer isso. Na verdade, o juiz diz que a ordem de prisão foi expedida, e eles não foram presos. Estão foragidos, conforme diz o Ministro Presidente. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): A concessão da ordem seria para observar o título executivo-judicial, regime semi-aberto, e, ante impossibilidade por deficiência do Estado, tem-se deferido o regime aberto. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Mas eles não se apresentaram para o juiz dizer que não há vaga. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eminente Relatora, eu tenho uma antiga posição, desde o Tribunal de Alçada Criminal, no sentido de que, em não havendo vaga no semi-aberto, não se pode manter alguém preso em um regime mais rigoroso. 282 R.T.J. — 209 A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Mas eu não tenho dados aqui para dizer que não há, porque o juiz, nas informações prestadas, não afirma isso. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Conceda em parte, então. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Mas, então, vamos consignar isso, que se cumpra, realmente, a pena no regime previsto na decisão condenatória e, inexistente vaga, que eles fiquem, então, no regime aberto. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Talvez, nesse sentido, em vez de denegar simplesmente, consignar, usando a mesma argumentação, e conceder parcialmente a ordem para que, na eventualidade de prisão, seja respeitado o título originário que é o semi-aberto. Em não existindo vagas nesse tipo de estabelecimento, que sejam eles transferidos para o aberto, enquanto o Estado não se aparelhar. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Eles estão foragidos, como é que nós vamos conceder? Conceder, forçando que eles se apresentem? O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Sim. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Com essa concessão, com essa segurança, eles vão se apresentar. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Este é um ponto de vista que defendo há muitos anos, porque eu acho que, se o Estado não se aparelha adequadamente, não se pode imputar ao Réu qualquer culpa nesse sentido. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não, por favor. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Nós não vamos alterar o quadro decisório. O quadro decisório é o mesmo, a pena imposta e o regime semi-aberto. Agora, inexistente vaga, aí paciência. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): Eu entendo Ministro, pode votar sem problema algum quanto a isso. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu, data venia, vou discordar. Talvez conceder parcialmente nesse sentido. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É o que eles pedem. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eles estão apenas pedindo isso integralmente? O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Apenas. Não havendo vaga, até o surgimento desta, fiquem no aberto. A Sra. Ministra Cármen Lúcia (Relatora): O pedido é este: requerem a concessão para que cumpram a pena que lhes foi imposta no regime inicial semi-aberto ou, subsidiariamente, que possam aguardar a vaga para o regime semi-aberto em regime aberto até que o juiz assegure a vaga em estabelecimento adequado. É exatamente isso. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Então, vamos conceder esse segundo pedido. R.T.J. — 209 283 O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu concederia integralmente nesse sentido, data venia. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Para eles cumprirem, realmente, a pena tal como imposta e, inexistente a vaga, que aguardem o surgimento dela em regime aberto. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu tenho certeza que eles encontrarão uma vaga lá. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): V. Exa. concede? O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Eu concedo, data venia. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Acompanho o Ministro Ricardo Lewandowski no voto proferido. EXTRATO DA ATA HC 94.526/SP — Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Relator para o acórdão: Ministro Ricardo Lewandowski. Pacientes: Adilson Ferreira, Edson de Jesus Santos e Gilvan Silva Soares. Impetrante: Ulysses da Silva. Coator: Relator do HC 95.110 do Superior Tribunal de Justiça. Decisão: Por maioria de votos, a Turma deferiu o pedido de habeas corpus para que se observe o cumprimento da pena tal como previsto no título judicial. Inexistente vaga em estabelecimento próprio, que se aguarde a vaga em regime aberto; vencida a Ministra Cármen Lúcia, Relatora. Relator para o acórdão o Ministro Ricardo Lewandowski. Não participou, justificadamente, deste julgamento o Ministro Carlos Britto. Ausente, justificadamente, o Ministro Menezes Direito. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Ausente, justificadamente, o Ministro Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 24 de junho de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 284 R.T.J. — 209 RECURSO EM HABEAS CORPUS 94.750 — GO Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Recorrente: Juarez Lima de Sousa — Recorrido: Ministério Público Federal Recurso ordinário em habeas corpus. Trancamento de ação penal. Denúncia que, detalhadamente, descreve fato supostamente delituoso. Recurso desprovido. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser o trancamento da ação penal medida excepcional, restrita a situações que se reportem a conduta nãoconstitutiva de crime em tese, ou quando já estiver extinta a punibilidade, ou, ainda, se inocorrentes indícios mínimos da autoria (HC 87.310 e RHC 88.139, da minha relatoria; HC 87.293, da relatoria do Ministro Eros Grau; HC 85.740, da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski; HC 85.134, da relatoria do Ministro Marco Aurélio). 2. No caso, a denúncia atende aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, pois descreve, detalhadamente, fato supostamente delituoso e suas circunstâncias até então conhecidas. 3. Recurso a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em negar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 16 de setembro de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus, ajuizado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça. Acórdão que indeferiu a ordem ali requestada, por entender, na concreta situação dos autos, “(...) inviável o reconhecimento da falta de justa causa para a promoção da ação penal, posto que os fatos narrados na exordial constituem, com relação ao paciente, crime em tese” (fl. 86). 2. Pois bem, o Impetrante renova, aqui, a tese de falta de justa causa para a ação penal a que responde o paciente. Isso sob a alegação de que “a denúncia não relata qualquer conduta ativa do paciente, limitando-se a imputar-lhe conduta omissiva. Todavia, o Direito Penal não dá guarida a pretensões semelhantes à contida na denúncia” (fl. 115). R.T.J. — 209 285 3. Prossegue o recorrente para aduzir que o paciente é soldado da Polícia Militar do Estado de Goiás e que, na condição de soldado, não tem a obrigação de impedir prática delitiva de outro soldado, mormente quando presente na cena do crime um policial mais graduado (no caso, Sargento). Pelo que, na falta de qualquer relevância penal na conduta dita omissiva que a denúncia increpa ao Paciente, requer o trancamento do processo-crime em curso na Justiça do Estado de Goiás. 4. Averbo que a Procuradoria-Geral da República opinou pelo desprovimento do pedido. O que fez por entender que a questão agitada neste recurso é própria do rito mais espaçoso da ação criminal. Não do habeas corpus. 5. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. Fazendo-o, anoto, de saída, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser o trancamento da ação penal medida excepcional, restrita a situações que se reportem a conduta não-constitutiva de crime em tese, ou quando já estiver extinta a punibilidade, ou, ainda, se inocorrentes indícios mínimos da autoria (HC 87.310 e RHC 88.139, da minha relatoria; HC 87.293, da relatoria do Ministro Eros Grau; HC 85.740, da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski; HC 85.134, da relatoria do Ministro Marco Aurélio). 7. Dito isso, averbo que, no caso, a denúncia atende aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. É de se notar a preocupação do órgão ministerial público em descrever o fato supostamente delituoso e suas circunstâncias até então conhecidas. Descrição que não deixou passar em branco as circunstâncias de tempo, modo e lugar de execução do delito imputado ao paciente. Pois, como já salientou o Superior Tribunal de Justiça: A conduta atribuída ao ora paciente na denúncia, de maneira como nela se encontra narrada, constitui crime em tese, situação que, por si só, autoriza a promoção da ação penal. Sua atuação foi pormenorizadamente individualizada, possibilitando-lhe, assim, o pleno exercício da garantia constitucional da ampla defesa. (...) Além do mais, a simples presença de um colega de farda hierarquicamente superior não é capaz de atuar como causa excludente da culpabilidade do ora paciente, posto que a exculpante, nesta hipótese, somente se aperfeiçoa quando há ordem expressa ao agente. (...) Logo, inviável o reconhecimento da falta de justa causa para a promoção da ação penal, posto que os fatos narrados na exordial constituem, com relação ao paciente, crime em tese. (Fls. 85/86.) 286 R.T.J. — 209 8. Nesse rumo de idéias, é de se observar, ainda, que a narrativa ministerial pública enseja o amplo exercício do direito de defesa. Leia-se: Consta dos inclusos autos de sindicância policial militar que no dia 07 de janeiro de 2005, por volta de 17.00h, na Rua Goiás, qd. 01, lt. 31, Jardim Conquista, nesta Capital, o denunciado Decliê Guedes do Nascimento constrangeu o adolescente Francisley de Freitas Santana e Fabrício Moreira Ramos, mediante o emprego de violência física, causando-lhes sofrimento físico e mental, com o fim de obter informações sobre a localização de suposto criminoso. Os denunciados Wesley Soares da Silva e Juarez Lima de Sousa tendo presenciado as agressões físicas, omitiram-se e pois tinham o dever de evitar as agressões ou, pelo menos, comunicar a seus superiores o ocorrido, o que não fizeram. Apurou-se que os três denunciados em companhia do policial militar Zélio Alves de Oliveira, todos fardados e em serviço na equipe denominada “Giro”, que trabalha em motocicletas, foram informados que um suposto ladrão de residências de alcunha “Capetinha” estava escondido numa casa do Jardim Conquista. A casa era de propriedade de Aparecida de Freitas Santana mãe da vítima Francisley. No momento em que os policiais observaram a residência, que não tem muro, é cercada por arame e estava com a porta aberta, estavam no local as duas vítimas em companhia de crianças de 12, 10 e 09 anos de idade e uma criança de 02 anos de idade. Os três denunciados e o policial militar Zélio passaram, em frente a casa, montados nas motocicletas, observaram o interior, afastaram-se por volta de 30 metros e estacionaram as motocicletas que ficaram sob guarda de Zélio. Os três denunciados invadiram o quintal e o interior da residência, sem ordem judicial e sem autorização dos moradores, determinaram que todos que estavam na casa saíssem para fora, mandaram que Francisley e Fabrício colocar as mãos na parede e que as outras crianças saíssem para a rua. O denunciado Decliê revistou todos os cômodos da residência em busca de “Capetinha”, enquanto os outros dois denunciados vigiavam Francisley e Fabrício. Em seguida o denunciado Decliê retornou, perguntou o nome de Francisley e se ele era o “Capetinha”. Foi-lhe respondido que o tal “Capetinha” primo de Francisley mas este não sabia o seu paradeiro. Nesse momento, com o intuito de que Francisley lhe contasse onde estava o tal “Capetinha”, o denunciado Decliê, sempre observado pelos outros dois denunciados, deu dois tapas no pescoço de Francisley que atingiram sua orelha e a lesionaram porque ele usava brinco. Não satisfeito, o denunciado Decliê empunhou sua arma, uma pistola e batea, lateralmente, na altura das costelas do lado direito de Francisley. Com o mesmo objetivo, o denunciado Decliê também espancou Fabrício Moreira Ramos, com vários tapas, no momento em que ele estava com as mãos na parede. Após essas agressões, Decliê entrou novamente na casa, junto com outro denunciado e desarrumaram toda a casa, chegando a retirar os colchões das camas. Após, Decliê e outro denunciado voltaram e conduziram Francisley para o interior da residência onde o denunciado Decliê voltou a espancá-lo com tapas nas costas e chutes nas nádegas, sempre com o objetivo de obter informações sobre a localização do tal “Capetinha”. R.T.J. — 209 287 Os espancamentos só cessaram porque o denunciado que havia ficado do lado de fora da casa entrou para avisá-los de que a mãe de Francisley estava chegando. Quando a mãe viu que seu filho Francisley estava chorando e com marcas do espancamento, disse aos denunciados que eles não poderiam ter entrado na residência sem ordem judicial mas os denunciados responderam que “podiam entrar sim”. 9. Esse o quadro, nego provimento ao recurso. 10. É como voto. EXTRATO DA ATA RHC 94.750/GO — Relator: Ministro Carlos Britto. Recorrente: Juarez Lima de Sousa (Advogado: Henrique Barbacena Neto). Recorrido: Ministério Público Federal. Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Rodrigo Janot. Brasília, 16 de setembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 288 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 94.778 — ES Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Paciente: Gildair Junior Miranda — Impetrantes: Marcos Aurélio de Souza Santos e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Execução antecipada da pena privativa de liberdade. Pendência de recurso de natureza extraordinária. Réu que aguardou, em liberdade, o julgamento da apelação. Decreto de prisão carente de fundamentação válida. Garantia da fundamentação das decisões judiciais e direito à presunção de não-culpabilidade. Liminar deferida. Orientação do Plenário do Supremo Tribunal Federal. Ordem concedida. 1. No julgamento do HC 84.078, da relatoria do Ministro Eros Grau, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade da execução provisória da pena. Isso por entender que o exaurimento das instâncias ordinárias não afasta, automaticamente, o direito à presunção de não-culpabilidade. 2. Em matéria de prisão provisória, a garantia da fundamentação das decisões judiciais consiste na demonstração da necessidade da custódia cautelar, a teor do inciso LXI do art. 5º da Carta Magna e do art. 312 do Código de Processo Penal. A falta de fundamentação do decreto de prisão inverte a lógica elementar da Constituição, que presume a não-culpabilidade do indivíduo até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (inciso LVII do art. 5º da CF). 3. Na concreta situação dos autos, contra o paciente que aguardou em liberdade o julgamento da apelação interposta pelo Ministério Público foi expedido mandado de prisão, sem nenhum fundamento idôneo, por acórdão que se limitou a anotar: “Expeça-se mandado de prisão.” 4. Ordem concedida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em deferir o pedido de habeas corpus, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Carlos Ayres Britto, Relator. R.T.J. — 209 289 RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, aparelhado com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça. Acórdão que perfilhou a tese da legalidade da execução provisória da pena, na pendência de recurso de natureza extraordinária. Esta a ementa do julgado: Penal. Habeas corpus. Latrocínio. Execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação. Possibilidade. Recursos excepcionais. Efeito devolutivo. I – Contra a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, cabem, tão-somente, em princípio, recursos de natureza extraordinária – apelos especial e extraordinário – sem efeito suspensivo (art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90), razão pela qual se afigura legítima a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da respectiva condenação. (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ/Súmula 267-STJ). II – Não se vislumbrando, nos recursos excepcionais, tese plausível de aceitação, perde a razão de ser a suspensão da execução da condenação imposta em segundo grau. III – “A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a pendência do recurso especial ou extraordinário não impede a execução imediata da pena, considerando que eles não têm efeito suspensivo, são excepcionais, sem que isso implique em ofensa ao princípio da presunção da inocência.” (HC 90.645/PE, Primeira Turma, Rel. p/ o ac. Min. Menezes Direito, DJ de 14‑11‑07). Writ denegado. Liminar cassada. 2. Pois bem, o Impetrante renova, aqui, a tese de que a prisão do paciente é ilegal. Isso porque decretada tão-somente em função do julgamento da Apelação 035.03.014855-1 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Noutro falar, insurge-se a impetração contra decreto de prisão, exarado à míngua de qualquer circunstância ou elemento factual de pronto explicitados. 3. Prossigo neste relato da causa para retratar, em síntese, o quadro empírico da causa: I – Gildair Júnior Miranda, paciente, foi preso preventivamente, por decisão proferida pelo Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Vila Velha/ES; II – deu-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84.884, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, concedeu a ordem e deferiu o pedido de liberdade provisória a ele, Paciente. O que fez por entender insubsistentes os motivos da segregação cautelar (fls. 37/49); III – seguido o devido iter processual, o paciente foi condenado pelo delito de roubo tentado. Condenação, essa, reformada pelo Tribunal do Estado do Espírito Santo, que deu provimento ao apelo do Ministério Público e condenou o paciente, nos termos da denúncia, pelo delito de latrocínio. Na oportunidade do julgamento, o voto condutor do acórdão determinou o imediato recolhimento do ora paciente à prisão, nos termos seguintes: 290 R.T.J. — 209 A teor da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, fixo o regime inicialmente fechado para o início do cumprimento da pena (...) Não vislumbro fazer jus o apelado aos benefícios constantes nos artigos 44 e 77 do Código Penal Pátrio. Sem custas face a hipossuficiência financeira. Expeça-se mandado de prisão. (Grifei, fl. 88.) IV – foi contra essa decisão que o impetrante ajuizou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus que foi denegado, sob o fundamento de que os recursos de caráter excepcional não têm efeito suspensivo. Pelo que, exauridas as vias ordinárias, é possível o imediato cumprimento da pena privativa de liberdade. 4. Prossigo neste relato da causa para averbar que deferi a medida cautelar. O que fiz para suspender os efeitos do decreto de prisão. Na seqüência, solicitei informações ao Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. 5. À derradeira, pontuo que a Procuradoria-Geral da República opinou pela concessão da ordem. O que fez por entender que não há nenhum fundamento a legitimar a ordem prisional. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. Fazendo-o, anoto, de saída, que, na sessão plenária de 5 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade da execução provisória de títulos penais condenatórios. Execução assentada, tão-somente, no fundamento do exaurimento das instâncias ordinárias. O que fez por entender que o cumprimento antecipado da pena ofende a garantia da presunção de não-culpabilidade. Na oportunidade, consignei que a presunção de não-culpabilidade integra o patrimônio jurídico daquele que se ache na condição de processado, de maneira a traduzir-se, materialmente, em direito subjetivo do indivíduo. Não é só: anotei que apenas em uma passagem a Constituição Federal quebranta a força deste direito. Leia-se: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (inciso LXI do art. 5º). 8. Noutro dizer: o direito à presunção de não-culpabilidade integra o patrimônio jurídico do indivíduo e a sua mitigação só é admitida nos casos previstos pela própria Constituição Federal. Casos entre os quais não está o exaurimento das instâncias ordinárias. 9. Pois bem, esse o quadro, penso que a ordem é de ser deferida. É que, na concreta situação dos autos, o acórdão condenatório decretou a prisão do paciente sem lançar mão de qualquer fundamento válido. Leia-se: R.T.J. — 209 291 Pelo exposto, e em consonância com a douta procuradoria de Justiça, conheço do recurso, e dou-lhe provimento, para fins de reformar a r. sentença, e condenar o apelado Gildair Júnior Miranda como incurso nas sanções do artigo 157, § 3º, do Código Penal Pátrio. (...) Expeça-se mandado de prisão. (Fls. 87/88.) 10. Logo se vê que a ordem de prisão padece da falta de qualquer explicitado fundamento. O que ofende as garantias constitucionais que se lêem na segunda parte do inciso LXI do art. 5º e na parte inicial do inciso IX do art. 93 da Constituição. Vale dizer, não se enxerga no decreto prisional o conteúdo mínimo da garantia da fundamentação das decisões judiciais, sem o qual, segundo nossa Constituição Federal, não se viabiliza a validade da custódia antes do trânsito em julgado de condenação criminal. 11. Esse o quadro, voto pela cassação da desfundamentada ordem de prisão, expedida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, nos autos da Apelação 035.03.014855-1. 12. É como voto. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, apenas, evidentemente, curvo-me ao que foi decidido pelo Plenário, e ressalvo o meu ponto de vista pessoal, que, no entanto, não tem qualquer pendência, apenas como uma sinalização do que eu votei na semana passada, mas acompanho integralmente o Relator, na esteira do que foi decidido pelo Plenário. EXTRATO DA ATA HC 94.778/ES — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Gildair Junior Miranda. Impetrantes: Marcos Aurélio de Souza Santos e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Ayres Britto. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner de Castro Mathias Netto. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 292 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 94.809 — RS Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello Paciente: Alex Silva de Campos — Impetrante: Ministério Público Militar — Coator: Superior Tribunal Militar Habeas corpus impetrado por membro do Ministério Público Militar de primeira instância – Porte de substância entorpecente – Crime militar (CPM, art. 290) – Princípio da insignificância – Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal – Conseqüente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material – Delito de posse de substância entorpecente – Quantidade ínfima, para uso próprio – Delito perpetrado dentro de organização militar – Considerações em torno da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Doutrina – Precedentes – Pedido deferido. Habeas corpus impetrado, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, por membro do Ministério Público Militar de primeira instância. Legitimidade ativa reconhecida. Doutrina. Jurisprudência. – O representante do Ministério Público Militar de primeira instância dispõe de legitimidade ativa para impetrar habeas corpus, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, especialmente para impugnar decisões emanadas do Superior Tribunal Militar. Precedentes. O princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material da tipicidade penal. – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O postulado da insignificância e a função do Direito Penal: de minimis, non curat praetor. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos R.T.J. — 209 293 do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Aplicabilidade, aos delitos militares, inclusive ao crime de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, mesmo no interior de organização militar (CPM, art. 290), do princípio da insignificância. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade, aos crimes militares, do princípio da insignificância, mesmo que se trate do crime de posse de substância entorpecente, em quantidade ínfima, para uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar. Precedentes. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, preliminarmente, por votação unânime, em reconhecer a legitimidade ativa do membro do Ministério Público Militar de primeira instância, para, mesmo em sede originária, impetrar ordem de habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal. Prosseguindo no julgamento, a Turma, também por unanimidade, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Brasília, 12 de agosto de 2008 — Celso de Mello, Presidente e Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Celso de Mello: O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. WAGNER GONÇALVES, assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 89/95): “HABEAS CORPUS”. CRIME MILITAR. PORTE E USO DE MACONHA. ÍNFIMA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N.º 11.343/06. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A Justiça Militar, em nome da saúde, disciplina e hierarquia militares, ainda resiste à aplicação do princípio da insignificância, por menor que seja a ofensividade do ato em questão. Todavia, a conduta praticada pelo paciente – porte da ínfima quantidade de 0,25 gramas de maconha dentro de unidade militar – não possui alta periculosidade social, nem lesividade material a bens jurídicos. 294 R.T.J. — 209 2. O princípio da insignificância deve ser aplicado também no âmbito militar, sempre que atendidos seus requisitos objetivos. Sua aplicação ao caso vertente atende aos princípios da isonomia, racionalidade e proporcionalidade, porque, na prática, ocorreu um fato isolado, que não afetou a Instituição Militar, estando, o paciente, por isso mesmo, na mesma condição do civil. 3. Em decisão recente, essa Eg. Corte aplicou o princípio da insignificância em caso análogo. Na oportunidade, assentou: “(...) Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar. 9. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma, porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida.” (HC 92.961/SP, Rel. Min. Eros Grau, 11/12/2007). 4. Parecer pela concessão da ordem. EXCELENTÍSSIMO MINISTRO RELATOR 1. Trata-se de “habeas corpus” impetrado pelo Ministério Público Militar em favor de Alex Silva de Campos, tendo em vista o acórdão proferido pelo Superior Tribunal Militar na Apelação n.º 2006.01.050445-1, assim ementado (fl. 15): “SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. APF. LOCAL SOB ADMINISTRAÇÃO MILITAR. Militar preso em flagrante, trazendo consigo substância entorpecente, quando pretendia consumi-la no interior da Unidade. Materialidade delitiva configurada pelo Laudo de Constatação e laudo de Exame de Substância Vegetal, este realizado pelo DPF, constatando resultado positivo para ‘cannabis sativa L’, devido à presença de canabinóides, inclusive o Tetraidrocanabiol (THC). Autoria comprovada pela prova oral e confissão. Jurisprudência pretoriana no sentido de que: ‘A pequena quantidade de entorpecente apreendida não descaracteriza o crime de posse de substância entorpecente.’ Pleito recursal, visando a reforma da Sentença por motivos humanitários e pequena quantidade da droga apreendida, não pode ser acatado por estar em desacordo com a legislação penal militar e jurisprudência castrense. Sentença prolatada em plena consonância com o apurado, estando a reprimenda coerente com as condições subjetivas do Apelante. Negado provimento ao recurso. Decisão majoritária.” 2. Inicialmente, o Ministério Público Militar defende sua legitimidade para impetrar o presente “habeas corpus”, aduzindo que “o legislador constituinte originário não fez restrição à utilização deste instituto, razão pela qual o legislador ordinário ou até mesmo o intérprete deve ser extremamente cuidadoso se ousar restringi-lo, pois pode violar o princípio da vedação de proteção deficiente, uma das facetas da proporcionalidade.” (fl. 03). 3. No tocante ao mérito do “writ”, defende a aplicação do princípio da insignificância ao caso em tela, tendo em vista a pequena quantidade de droga apreendida em poder do paciente: 0,2 g (dois decigramas). Aduz que a Lei n.º 11.343/06 não prevê pena de prisão para o usuário, sendo desproporcional impôr ao militar uma pena privativa de liberdade de um a cinco anos de reclusão. Cita julgados dessa Eg. Corte e, no final, pugna pelo deferimento da liminar. R.T.J. — 209 295 4. Às fls. 62/68, o pedido de liminar foi deferido, tendo em vista que “esta Suprema Corte tem admitido a aplicabilidade, aos delitos militares, inclusive ao crime de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, mesmo no interior de Organização Militar, do postulado da insignificância” (fl. 64). É o relatório. 5. De início, deve-se registrar que o “Parquet” possui plena legitimidade para impetrar “habeas corpus”. Como já decidiu essa Eg. Corte, “a legitimidade do Ministério Público para impetrar ‘habeas corpus’ deve-se restringir aos casos em que haja interesse do paciente, especialmente relacionado à liberdade de ir e vir” (HC 90303/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE 065), como ocorre neste caso. Oportuno destacar, ainda, julgado da relatoria do Ministro Celso de Mello sobre o tema: “‘HABEAS CORPUS’ – IMPETRAÇÃO POR PROMOTOR DE JUSTIÇA DE PRIMEIRA INSTÂNCIA – POSSIBILIDADE – LEI DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE RONDÔNIA (LC Nº 94/93) – AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO JUIZ DE DIREITO TITULAR DE VARA DE AUDITORIA MILITAR, PARA, NELA, INCLUIR A ATRIBUIÇÃO DE PROCESSAR E JULGAR ‘FEITOS CRIMINAIS GENÉRICOS’ – ALEGADA OFENSA, POR REFERIDO DIPLOMA LEGISLATIVO, AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL – INOCORRÊNCIA – PEDIDO INDEFERIDO. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a possibilidade de o representante do Ministério Público, embora com atuação no primeiro grau de jurisdição, ajuizar, em nome do ‘Parquet’, ação originária de ‘habeas corpus’ perante esta Suprema Corte ou junto a qualquer outro Tribunal judiciário. Precedentes. – A LC nº 94/93 do Estado de Rondônia – que instituiu, nessa unidade da Federação, a respectiva Lei de Organização Judiciária – não transgride o postulado constitucional do juiz natural, revelando-se legítima no ponto em que defere, ao Juiz estadual que desempenha funções próprias da Vara de Auditoria Militar, a prática de outras atribuições jurisdicionais, inclusive o exercício da competência penal em face de réu civil acusado de suposto cometimento de crime desvestido de natureza militar. Esse diploma legislativo, na realidade, limitou-se a atribuir, ao titular da Vara de Auditoria Militar da comarca de Porto Velho/RO – que é magistrado estadual –, o exercício cumulativo tanto de funções peculiares à Justiça Militar local (CF, art. 125, § 4º) quanto de atribuições jurisdicionais próprias da Justiça Comum estadual. Precedentes.” (HC 85725/RO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/02/2007.) 6. Os autos noticiam que, em 09/11/2005, o paciente foi preso em flagrante por estar portanto, no interior da unidade militar em que servia, 0,25g de substância entorpecente do tipo “cannabis sativa”, vulgarmente conhecida como maconha. 7. O paciente foi condenado em primeiro grau a um ano de reclusão, sendo fixado o regime aberto e permitido o direito de recorrer em liberdade, sendo-lhe concedido o direito à suspensão condicional da pena. No Superior Tribunal Militar, a apelação foi desprovida, sob o fundamento de que “a pequena quantidade de entorpecente apreendida não descaracteriza o crime de posse de substância entorpecente” (fl. 15). 8. O presente “writ” deve ser concedido. 296 R.T.J. — 209 9. É certo que a Justiça Militar, em nome da saúde, disciplina e hierarquia militares, ainda resiste à aplicação do princípio da insignificância, por menor que seja a ofensividade do ato delituoso. 10. Todavia, a conduta praticada pelo paciente – porte da ínfima quantidade de 0,25 gramas de maconha – não possui alta periculosidade social, nem lesividade material a bens jurídicos. O paciente, como usuário e possível dependente da substância proibida, não deve ser confundido com o traficante de drogas, esse sim merecedor de todos os rigores da lei. 11. Entendo que o princípio da insignificância deve ser aplicado também no âmbito militar, sempre que atendidos seus requisitos objetivos, quais sejam: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica causada. Sua aplicação ao caso vertente atende aos princípios da isonomia, racionalidade e proporcionalidade porque, na prática, ocorreu um fato isolado, que não afetou a Instituição Militar. 12. De outro lado, a nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) preconiza que a distinção entre usuário de drogas e traficante continua tendo por base o caso concreto, devendo ser consideradas a natureza da droga, sua quantidade, local, antecedentes, modo de vida do agente, etc. Determina que ao usuário não se comina pena de prisão, nem contra o mesmo deve ser lavrado auto de prisão em flagrante, mas termo circunstanciado. 13. Nesse contexto, nada justifica a desproporção entre o tratamento penal que se dá ao usuário civil e ao militar, pois ao primeiro comina-se apenas advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa, enquanto ao militar impõe-se pena de prisão, nos termos do Código Penal Militar. Como bem ressaltou o impetrante, “a manifesta desproporção de tratamento penal exige que a conduta a ser apenada como crime militar tenha suficiente relevância jurídica a ponto de justificar tamanha diferença. Não é o que temos neste caso, onde o Paciente foi surpreendido portando um cigarro de maconha pesando 0,25 g (vinte e cinco decigramas), conforme o aditamento á denúncia, ou seja, sequer meio grama de maconha.” (fl. 11). 14. Sobre o tema, essencial destacar recente julgado dessa Excelsa Corte: “‘HABEAS CORPUS’. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. Paciente, militar, preso em flagrante dentro da unidade militar, quando fumava um cigarro de maconha e tinha consigo outros três. 2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não-aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares. 3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância. 4. A Lei n. 11.343/2006 – nova Lei de Drogas – veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. 5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. 6. O Superior Tribunal Militar R.T.J. — 209 297 não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º, III). 7. Paciente jovem, sem antecedentes criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando há lei que, em vez de apenar – Lei n. 11.343/2006 – possibilita a recuperação do civil que praticou a mesma conduta. 8. Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar. 9. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma, porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida.” (HC 92.961/SP, Rel. Min. Eros Grau, 11/12/2007.) 15. Por último, cumpre ressaltar que um fato penalmente irrelevante pode receber tratamento adequado em outros ramos do Direito. “In casu”, a aplicação ao paciente de sanções administrativo-disciplinares é suficiente à reprovabilidade da sua conduta. 16. Ante o exposto, opina a Procuradoria Geral da República pela concessão da ordem. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Reconheço (Relator), preliminarmente, a legitimidade ativa do membro do Ministério Público Militar de primeira instância, para, mesmo em sede originária, impetrar ordem de “habeas corpus” perante o Supremo Tribunal Federal, tal como sucede na espécie em exame (fl. 2). Impõe-se registrar, neste ponto, considerado o magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 1461, item n. 654.2, 7ª ed., 2000, Atlas, v.g.), que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a possibilidade de o representante do Ministério Público, embora com atuação nos graus inferiores de jurisdição, ajuizar, em nome do “Parquet”, ação originária de “habeas corpus” perante esta Suprema Corte (HC 84.307/RO, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 85.725/RO, Rel. Min. CELSO DE MELLO) ou junto a qualquer outro Tribunal judiciário: “Habeas corpus”. Impetração, pelo Ministério Público, em favor do réu. Legitimidade ativa “ad causam” em qualquer grau de jurisdição. Inteligência do art. 654 do CPP. (...) O Ministério Público, em qualquer grau de jurisdição, tem legitimidade ativa “ad causam” para impetrar “habeas corpus” em favor do réu, por força do disposto no art. 654 do CPP. (RT 764/485, Rel. Min. MOREIRA ALVES – Grifei.) 298 R.T.J. — 209 Recurso de “habeas corpus”. Impetração pelo Ministério Público. Impetração de “habeas corpus” como qualquer pessoa e como promotor público. Garantia constitucional da liberdade, tem o Ministério Público o direito de impetrá-lo e, conforme as circunstâncias, o dever de fazê-lo, se tem conhecimento de coação ilegal. Recurso de “habeas corpus” conhecido e provido para que o Tribunal de Justiça aprecie o mérito do pedido. (RT 603/432, Rel. Min. OSCAR CORRÊA – Grifei.) A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal Militar, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fl. 15): SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE – APF – LOCAL SOB ADMINISTRAÇÃO MILITAR. Militar preso em flagrante, trazendo consigo substância entorpecente, quando pretendia consumi-la no interior da Unidade. Materialidade delitiva configurada pelo Laudo de Constatação e Laudo de Exame de Substância Vegetal, este realizado pelo DPF, constatando resultado positivo para “cannabis sativa L”, devido à presença de canabinóides, inclusive o Tetraidrocanabinol (THC). Autoria comprovada pela prova oral e confissão. Jurisprudência pretoriana no sentido de que: “A pequena quantidade de entorpecente apreendida não descaracteriza o crime de posse de substância entorpecente.” Pleito recursal, visando a reforma da Sentença por motivos humanitários e pequena quantidade da droga apreendida, não pode ser acatado por estar em desacordo com a legislação penal militar e jurisprudência castrense. Sentença prolatada em plena consonância com o apurado, estando a reprimenda coerente com as condições subjetivas do Apelante. Negado provimento ao recurso. Decisão majoritária. (Grifei.) A parte ora impetrante postula “(...) a concessão da LIMINAR, e, no mérito, sua confirmação, reconhecendo faltar justa causa à condenação imposta na Apelação nº 2006.01.050445-1/RS (Doc. 1), tendo em vista inexistir a tipicidade material nas condutas imputadas ao Paciente, com a concessão do presente ‘writ’ (art. 648, I, do CPP)” (fl. 12 – grifei). Entendo assistir razão à douta Procuradoria-Geral da República, quando opina, no caso ora em exame, pela concessão do pedido de “habeas corpus”. É que, como se sabe, esta Suprema Corte tem admitido a aplicabilidade, aos delitos militares, inclusive ao crime de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, mesmo no interior de Organização Militar, do postulado da insignificância: O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. R.T.J. — 209 299 – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. – O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO.) Não custa assinalar, neste ponto, que esse entendimento encontra suporte em expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (LUIZ FLÁVIO GOMES, “Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato”, “in” Revista dos Tribunais, vol. 789/439-456; FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, “h”, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.). Revela-se significativa a lição de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva) a propósito da matéria em questão: Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (...) não tem previsão legal no direito brasileiro (...), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil “minimis non curat praetor” e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o 300 R.T.J. — 209 comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico. (Grifei.) Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI (“Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor –por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Cumpre também acentuar, por relevante, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido, na matéria em questão, a inteira aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes militares (HC 87.478/ PA, Rel. Min. EROS GRAU – HC 92.634/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA), mesmo que se cuide de delito de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, e ainda que se trate de ilícito penal perpetrado no interior de Organização Militar (HC 93.822/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 94.085/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Entendo importante destacar, neste ponto, fragmento do voto (vencido) do eminente Ministro FLÁVIO BIERRENBACH (que tem o beneplácito da jurisprudência desta Suprema Corte), proferido quando do julgamento, que, emanado do E. Superior Tribunal Militar, motivou a presente impetração (fls. 44/53, 44/47): Este é mais um caso de porte de entorpecente no interior de uma organização militar. Tenho sustentado sistematicamente, nesta Corte, a atipicidade da conduta de trazer consigo pequena quantidade de maconha. Sou convencido de que o porte de quantidade insignificante daquela substância específica é conduta incapaz de causar lesão significativa à saúde pública, enquanto bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. (...) Reputa-se insignificante um fato, ainda que formalmente típico, quando o seu resultado é desvalorizado, quando a lesão ao bem jurídico tutelado é considerada ínfima. Nessa hipótese, entende a jurisprudência que tal fato ou conduta é materialmente atípico e, portanto, não suscetível de gerar punição estatal. Disso depreende-se que o chamado “delito de bagatela” está intrinsecamente associado ao nível de lesão ao bem jurídico tutelado. A avaliação da R.T.J. — 209 301 tipicidade da conduta, portanto, exige a individualização do bem jurídico protegido pela norma incriminadora e a avaliação do grau de lesão por ele sofrido. (...) É sob essas premissas que a conduta de portar ou usar substância entorpecente, em área sob administração militar, deve ser analisada. Tal conduta encontrase tipificada e definida no art. 290 do Código Penal Militar, com o “nomen juris” de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar. (...) À toda evidência, o fato dito criminoso no caso em apreço não apresenta real ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. O soldado do Exército, Alex Silva de Campos, foi surpreendido com 3,0g (três gramas). Trata-se de quantidade ínfima, risível, incapaz de gerar a menor ameaça que seja à saúde e incolumidade públicas, bem jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora. É nesse sentido a jurisprudência dominante dos tribunais, aplicando a casos semelhantes o princípio da insignificância, por ausência de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico penalmente protegido, quando a quantidade encontrada é incapaz de gerar dependência química ou psicológica. (Grifei.) Sendo assim, pelas razões expostas, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, defiro o pedido de “habeas corpus”, para determinar a extinção definitiva do procedimento penal instaurado contra o ora Paciente (Processo 04/06-7 – 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar), invalidando todos os atos processuais desde a denúncia, inclusive, até a condenação imposta ao paciente, por ausência de tipicidade material da conduta que lhe foi imputada, considerado, para esse efeito, o princípio da insignificância. É o meu voto. EXTRATO DA ATA HC 94.809/RS — Relator: Ministro Celso de Mello. Paciente: Alex Silva de Campos. Impetrante: Ministério Público Militar. Coator: Superior Tribunal Militar. Decisão: A Turma, preliminarmente, por votação unânime, reconheceu a legitimidade ativa do membro do Ministério Público Militar de primeira instância, para, mesmo em sede originária, impetrar ordem de habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal. Prosseguindo no julgamento, a Turma, também por unanimidade, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 12 de agosto de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 302 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 94.904 — RJ Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Paciente: Antônio Carlos Abraão Pereira da Silva — Impetrante: Defensoria Pública da União — Coator: Superior Tribunal Militar Habeas corpus. Delito militar de abandono de posto. Alegado estado de necessidade. Exame incompatível com a via desta ação constitucional. Quadro fático destoante da pretensão defensiva. Crime de perigo. Efetiva possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado. Ordem denegada. 1. O quadro empírico assentado pelas instâncias judicantes competentes é contrário à pretensão defensiva do reconhecimento do estado de necessidade. Pelo que, considerado o pressuposto fático, não há como, nesta via processualmente contida do habeas corpus, chegar a conclusão diversa. 2. O delito increpado ao paciente é formal e de perigo, aperfeiçoando-se com a prática da conduta incriminada. No caso, presente a clara possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado, não há como afastar a tipicidade material da conduta. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido de habeas corpus, o que fazem por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 7 de outubro de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de habeas corpus, aparelhado com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal Militar. Acórdão que manteve a condenação do paciente pelo crime de abandono de posto (art. 195 do CPM.). 2. Pois bem, a Defensoria Pública da União alega que a conduta imputada ao paciente é atípica. Isso porque não lesionou, materialmente, o bem jurídico tutelado. Acrescenta que estão presentes os requisitos do estado de necessidade, pois “o paciente não possuía outra alternativa a não ser a de ir em socorro de sua família não lhe podendo ser razoavelmente exigida conduta diversa” (fls. 5/6). Pelo que requer a absolvição do paciente. 3. Prossigo neste relato da causa para consignar que Antônio Carlos Abraão Pereira da Silva, paciente, foi condenado pelo delito militar de abandono de R.T.J. — 209 303 posto. Isso porque a Justiça Castrense de 1º grau entendeu comprovadas a materialidade e a autoria delitivas. Mais: a 4ª Auditoria da 1ª CJM rechaçou a tese defensiva do estado de necessidade. O que fez embasada no quadro empírico da causa. Confira-se: O acusado trouxe como única testemunha sua mãe, que não manteve o alegado pelo mesmo no respeitante aos horários, pois Antônio Carlos alega ter recebido o telefonema depois da meia noite. As testemunhas de acusação, em tom uníssino, afirmaram que o acusado estava de serviço e que não ouviram o telefone do S2 Antônio Carlos tocar, mesmo quem também estava descansando com o S2 NE Emmanuel e 3S BMA Tiago. A defesa diz que o telefonema foi transmitido por um colega, mas não nominou tal militar e o próprio acusado disse que atendeu pessoalmente o telefone. Ressalte-se que não se pode falar em prejuízo, pois o perigo abstrato para a Unidade Militar existiu e, o próprio acusado disse, em seu interrogatório, que um companheiro que tirava serviço na guarda tinha se acidentado. O crime sub examem é de mera conduta e não há qualquer excludente de culpabilidade ou antijuridicidade que o beneficie. Provado está o crime quanto a tipicidade, ilicitude e culpabilidade. 4. Inconformada, a defesa apelou ao Superior Tribunal Militar. Corte Castrense que manteve a condenação em acórdão assim ementado: Abandono de posto. Condenação. Inconformismo da defesa. Autoria e materialidade incontestes. Estado de necessidade não comprovado. Crime de mera conduta e instantâneo. O crime de abandono de posto consuma-se com a existência de simples probabilidade hipotética de dano, ainda que este realmente não se efetive. Manutenção da sentença hostilizada. 5. Muito bem. A defesa insiste na tese de que o Paciente se afastou de seu posto para atender uma emergência familiar. Emergência, essa, que a inicial apresenta da seguinte forma: Por volta das 22h do dia 01 de setembro de 2006, o paciente ausentou-se do quartel sem autorização de seu superior, vindo a retornar às 02h50m. Ao retornar foi inquirido sobre sua ausência, confessando de imediato a sua conduta e justificando ter recebido uma ligação de sua mãe, dizendo que sua avó estava sentindo-se muitíssimo mal e precisava de dinheiro para levá-la ao hospital, o desespero que transparecia da voz de sua mãe era tal que o paciente saiu do quartel desesperado para ir em seu auxílio (...). (Fl. 3) 6. Já me encaminhando para o final deste relato, averbo que indeferi a liminar requestada, por entender ausentes os seus pressupostos. Na seqüência, abri vista dos autos à Procuradoria-Geral da República. Procuradoria que opinou pelo indeferimento da ordem. É o relatório. 304 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Conforme relatado, a questão a ser deslindada por esta nossa Primeira Turma é a da legalidade ou não da condenação do paciente pelo delito militar de abandono de posto. 9. Pois bem, sem delongas, penso que a ordem é de ser denegada. Isso porque toda a impetração está embasada na seguinte premissa: o paciente agiu em estado de necessidade. Sendo certo que as instâncias judicantes competentes analisaram e afastaram a tese da presença dos requisitos dessa exculpante1. Diz a sentença condenatória: O acusado ao ser interrogado, em juízo, deixou consignado que: “no dia do fato, ou seja no dia 01 para o dia 02/09 estava de serviço de sentinela da guarda armada; que conhece as testemunhas arroladas na denúncia cerca de 1 ano, nada tendo a alegar contra as mesmas; que é verdadeira a imputação que lhe é feita; que nunca foi processado anteriormente; que por volta das 20h um colega do corpo da guarda foi atropelado, sendo dispensado; que as 22h do dia 01/09 estava de serviço; que por volta das 23h15min recebeu um telefonema de sua mãe; que só deixou o quartel por volta de 0h45min do dia 02/09; tanto que o Cmt e o cabo da guarda não estavam, pois estavam descansando; que não chamou o sargento no banheiro porque estava nervoso; que sabia que deixar o serviço era crime; que também não providenciou qualquer outro militar para substituí-lo; que retornou ao quartel por volta de 2h45min da madrugada do dia 02/09; que não sabe dizer o que sua avó tinha, nem se foi atendida naquele dia; que o telefonema dado por sua mãe foi atendido por um colega; que na realidade apenas verificou que o telefone tinha tocado; que essa verificação foi feita pelo acusado; que na realidade aguardou que sua mãe ligasse novamente pois não tinha cartão, que tinha outros telefones para serem usados, mas preferiu aguardar outro telefonema, que não é comum sua mãe ligar no horário do trabalho.” O acusado trouxe como única testemunha sua mãe, que não manteve o alegado pelo menos no respeitante aos horários, pois Antônio Carlos alega ter recebido o telefonema de sua genitora às 23h15min, mas a mesma afirma que deu o telefonema depois da meia noite. As testemunhas de acusação, em tom uníssono, afirmaram que o acusado estava de serviço e que não ouviram o telefone do S2 Antônio Carlos tocar, mesmo quem também estava descansando com o S2 NE Emmanuel e 3S BMA Tiago. A defesa diz que o telefonema foi transmitido por um colega, mas não nominou tal militar e o próprio acusado disse que atendeu pessoalmente o telefone. Ressalte-se que não se pode falar em prejuízo, pois o perigo abstrato para a Unidade Militar existiu e, o próprio acusado disse, em seu interrogatório, que um companheiro que tirava serviço na guarda tinha se acidentado. O crime sub examen é de mera conduta e não há qualquer excludente de culpabilidade ou de antijuridicidade que o beneficie. (Fls. 38/39.) 1 Exculpante que, na justiça castrense, ora faz as vezes de excludente de ilicitude ora de excludente de culpabilidade. Confiram-se, a propósito, os arts. 39 e 42 do CPM. R.T.J. — 209 305 10. No mesmo tom, o acórdão que manteve a condenação consignou que: Em juízo, o 3S BMA Tiago Soares Teixeira (comandante da guarda no dia dos fatos), fls. 86/87, na soube informar a hora em que o acusado se ausentou, mas informou que este, ao retornar às 02h50min, não comprovou o alegado, ou seja, que sua avó deveria ser levada ao hospital. O S2 Diego Passarelli Lourenço e o S2 Emmanuel Fernandes de Souza, fls. 88/89, perante o CPJAer da 4ª Aud/1ª CJM não souberam dizer a que horas o acusado retornou, respondendo que não ouviu o telefone do acusado tocar no alojamento. (...) Extrai-se dos depoimentos testemunhais que não havia impedimento na comunicação entre superiores e subordinados naquela OM. Todavia, o réu não procurou qualquer superior para relatar seu caso e obter autorização para a saída do quartel. Célio Lobão, citando Manzini, aduz que o crime de abandono de posto é de mera conduta e instantâneo (Direito Penal Militar. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 358). Em que pese as alegações da defesa de que a ausência ocasional do réu não causou probabilidade de perigo concreto, frise-se que a jurisprudência desta Egrégia Corte Castrense é uníssona em considerar a tipicidade do delito em foco diante do perigo presumido (...). (Fls. 16-18.) 11. Assim postas as coisas, penso que não há como atender ao pedido que se contém na inicial. É que, à luz do pressuposto fático das instâncias competentes, não há como, nesta via processualmente contida do habeas corpus, chegar a conclusão diversa. É dizer: o habeas corpus não é a via processual adequada para o reexame da prova que embasou o título condenatório impugnado. Afinal, o habeas corpus, tal qual o mandado de segurança, é via processual de verdadeiro atalho. Isso no pressuposto do seu adequado ajuizamento, a se dar quando a petição inicial já vem aparelhada com material probatório que se revele, ao menos num primeiro exame, induvidoso quanto à sua faticidade mesma e enquanto fundamento jurídico da pretensão. A dispensar, portanto, a chamada “dilação probatória”. 12. No caso, a documentação que instrui a inicial vai contra a pretensão defensiva, pois evidencia que o alegado estado de necessidade foi rechaçado pelas provas testemunhais produzidas na ampla via da instrução criminal. 13. Já me encaminhando para o final deste voto, anoto que o delito increpado ao paciente se consuma com a prática em si do ato. É dizer: tratando-se de crime formal (ou de consumação antecipada) e de perigo, descabida a exigência da comprovação do dano para a sua perfectibilidade, pois o delito se aperfeiçoa com a prática da conduta incriminada. 14. Certo, não desconheço que a tipificação dos crimes de perigo tem suscitado os mais acirrados debates na dogmática penal-constitucional. De logo, porém, perfilho o entendimento de que a constitucionalidade da incriminação do 306 R.T.J. — 209 perigo (mormente do perigo presumido) está a depender da capacidade ou potencialidade lesiva da conduta do agente. Isso para que os clássicos princípios da lesividade2 e da subsidiariedade do Direito Penal sejam respeitados. 15. No caso, tenho por atendido o requisito da clara possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado. É que o objeto de proteção do tipo penal em questão (art. 195 do CPM.) – a própria segurança da instalação militar – é diretamente atingido, na medida em que a violação da norma deixa em estado de perigo toda uma guarnição militar. Como no presente caso, em que o paciente, no serviço de sentinela da Guarda Armada, ciente de que outro sentinela (acidentado) fora dispensado do posto, abandonou a proteção do portão principal da Base Aérea do Galeão. Esse o quadro, indefiro a ordem. EXTRATO DA ATA HC 94.904/RJ — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Antônio Carlos Abraão Pereira da Silva. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal Militar. Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 7 de outubro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 2 “Segundo o princípio da lesividade (nullum crimem sine iniuria), somente podem ser erigidos à categoria de criminosos comportamentos lesivos de bem jurídico alheio (por isso também conhecido como princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos), público (difuso ou coletivo) ou particular, entendendo-se como tal os pressupostos existenciais e instrumentais de que a pessoa necessita para a sua auto-realização na vida social, não comportando a criminalização de condutas que não ofendam, seriamente, bem jurídico determinado ou que representem apenas má disposição de interesse próprio, como automutilação, suicídio tentado ou dano à coisa própria.” (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 36-37.) R.T.J. — 209 307 RECURSO EM HABEAS CORPUS 95.000 — SP Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Recorrentes: Jaciara Ferreira Pires Ramos, Paulo de Sá Amorim e Dary de Souza Falcão — Recorrido: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Penal e processual penal. Crime de extorsão mediante seqüestro. Prisão temporária convertida em preventiva. Fundamentação idônea. Garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal (art. 312 do CPP). Acórdão da Corte Superior que não conheceu da impetração no tocante a um dos pacientes. Supressão de instância inadmitida. Excesso de prazo não configurado. Complexidade da causa. Quatorze acusados. Encerramento da instrução criminal. Precedentes. Ordem parcialmente conhecida e denegada. Precedentes. 1. É legítimo o decreto de prisão preventiva que ressalta, objetivamente, a necessidade de garantir a ordem pública, não em razão da hediondez do crime praticado, mas pela gravidade dos fatos investigados na ação penal (seqüestro de criança com 6 anos de idade pelo período de 2 meses) que bem demonstram a personalidade dos pacientes e dos demais envolvidos nos crimes, sendo evidente a necessidade de mantê-los segregados, especialmente pela organização e pelo modo de agir da quadrilha. 2. O Superior Tribunal de Justiça não conheceu da impetração quanto ao Paciente Dary de Souza Falcão. A apreciação dos temas, no caso desse paciente, de forma originária, neste momento, configuraria verdadeira dupla supressão de instância, inadmitida por esta Corte. 3. A jurisprudência desta Suprema Corte assentou que fica prejudicada a alegação de excesso de prazo quando a instrução criminal já chegou ao fim. Ademais, está presente a complexidade do feito, que envolve 14 acusados, bem como a expedição de cartas precatórias e a oitiva de elevado número de testemunhas, o que afasta a alegação de excesso de prazo. 4. Ordem conhecida em parte e, nessa parte, denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em conhecer, em parte, do recurso ordinário em habeas corpus e, nessa parte, denegá-lo, nos termos do voto do Relator. Brasília, 4 de novembro de 2008 — Menezes Direito, Relator. 308 R.T.J. — 209 RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Recurso ordinário em habeas corpus, com pedido de liminar, interposto pelo advogado João Carlos Vital em favor de Paulo de Sá Amorim, Dary de Souza Falcão e Jaciara Ferreira Pires Ramos, buscando a expedição de alvará de soltura em favor dos pacientes. O recurso é interposto contra acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que denegou a ordem no HC 87.319/SP, em que são Pacientes Paulo de Sá Amorim e Dary de Souza Falcão, e no HC 83.331/SP, referente à Paciente Jaciara Ferreira Pires Ramos, ambos de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, impetrados àquele Superior Tribunal com objetivos idênticos ao ora pretendido. Os pacientes Paulo de Sá Amorim e Jaciara Ferreira Pires Ramos foram denunciados como incursos nas penas do art. 159, §1º, c/c o art. 29, caput (extorsão mediante seqüestro consumado), e o paciente Dary de Souza Falcão como incurso nas penas do art. 159, §1º, c/c o art. 29, caput, e do art. 159, § 1º, c/c o art. 14, inciso II, e o art. 29, caput (extorsão mediante seqüestro consumado e tentado), na forma do art. 71, parágrafo único, todos do Código Penal. No presente recurso, os recorrentes alegam, em suma, estarem presos sem justa causa e além do prazo previsto para encerramento da instrução processual. Alegam para tanto que “a Ministra da 6ª Turma do STJ, não justificou o porquê, e qual interesse jurídico, da custódia processual e preventiva seria obrigatória no caso em tela, pois, limitou-se tão somente em sustentar a gravidade do delito imputado aos recorrentes, está, portanto, configurado de ilegalidade frente a falta de fundamentação e sobretudo pela inobservância do asseverado no artigo 315 do CPP c.c artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal” (fl. 5 – grifos no original). Aduzem, ainda, estar configurado constrangimento ilegal decorrente do excesso de prazo para a formação da culpa, pois “desde a data de suas prisões, ocorrida em 10 de julho de 2006, até 10 de março de 2008, ou seja, 01 (um) ano e 08 (oito) meses, já havia decorrido mais de 605 (seiscentos e cinco dias) e sequer houve o encerramento da instrução criminal” (fl. 6 – grifos no original). Requerem, ao final, liminarmente, a concessão da ordem para reformar o acórdão e a expedição do competente alvará de soltura. E, no mérito, que seja reconhecido o excesso de prazo para encerramento da instrução criminal, como também a falta de fundamentação idônea na decisão que indeferiu a revogação da prisão preventiva. Em 16 de junho de 2008, indeferi o pedido de liminar e solicitei informações ao Superior Tribunal de Justiça, bem como ao Juízo da 1ª Vara Distrital de Arujá – Comarca de Santa Isabel/SP (fls. 185 a 190). As informações foram prestadas pelo Superior Tribunal de Justiça (fls. 196 a 214) e pelo Juízo da 1ª Vara Distrital de Arujá (fls. 217 a 230). R.T.J. — 209 309 O Ministério Público Federal, pelo parecer da ilustre SubprocuradoraGeral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques, opinou pela denegação do writ (fls. 233 a 239). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Preliminarmente, anoto que o recurso ordinário de habeas corpus deve ser interposto “no prazo de cinco dias, nos próprios autos em que se houver proferido a decisão recorrida, com as razões do pedido de reforma” (art. 310 do RISTF), o que não ocorreu no caso. Por essa razão, conheço do pedido como habeas corpus substitutivo do recurso ordinário. Ressalto, ainda, em preliminar, que o acórdão impugnado que denegou a ordem no tocante ao Paciente Paulo de Sá Amorim, não conheceu da impetração quanto ao Paciente Dary de Souza Falcão, uma vez que o habeas corpus impetrado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fls. 104 a 113 do apenso) diz respeito apenas ao primeiro paciente. Com efeito, a apreciação desses temas, com referência ao paciente Dary de Souza Falcão, de forma originária, neste momento, configuraria verdadeira dupla supressão de instância, inadmitida por esta Suprema Corte. Nesse sentido: HC 92.264/SP, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 14‑12‑07; HC 90.654/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 25‑5‑07; HC 90.312/PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 27‑4‑07; e HC 86.997/DF, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 3‑2‑06, entre outros. Assim, conheço desta impetração somente no que se refere aos pacientes Paulo de Sá Amorim (HC 87.319/SP) e Jaciara Ferreira Pires Ramos (HC 83.331/ SP). O acórdão impugnado, que denegou a ordem em relação ao paciente Paulo de Sá Amorim, está assim fundamentado: Processual penal. Habeas corpus. Extorsão mediante seqüestro. Prisão preventiva. Falta de fundamentação. 1. Falta de apreciação da matéria com relação a um dos Pacientes. Supressão de instância. Writ não conhecido com relação a este. 2. Referência expressa a manifestação do Ministério Público. Acolhimento das razões ali invocadas. Análise. Necessidade. 3. Referência a intimidação a testemunhas. Envolvimento em outros crimes da mesma espécie. Alto grau de organização. Motivação idônea. Ocorrência. Garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal. 4. Condições pessoais favoráveis. Irrelevância. Existência de outras razões a justificar a custódia. 5. Excesso de prazo. Instrução encerrada. Súmula 52 STJ. Processo complexo. 14 réus, necessidade de expedição de precatórias e elevado número de testemunhas. Duração razoável do processo. 6. Alegação de ocorrência de excludente de culpabilidade. Análise aprofundada do conjunto probatório. Necessidade. Inviável na via eleita. 7. Ordem conhecida em parte, e, nesta parte, denegada. 310 R.T.J. — 209 1. Não havendo pronunciamento do tribunal a quo com relação à matéria aqui versada no que se refere a um dos pacientes, inviável se torna o conhecimento do writ com relação a este, sob pena de indevida supressão de instância. 2. Tendo o decreto prisional feito menção expressa às razões deduzidas em manifestação prévia do Ministério Público, indispensável se faz o conhecimento destas razões para a análise da legalidade da prisão. 3. Não é ilegal a prisão preventiva que se funda em dados concretos a indicar a necessidade da medida cautelar, especialmente informações colhidas no inquérito policial de intimidação sofrida pelas testemunhas, e probabilidade de reiteração delitiva, pelo envolvimento dos acusados em outros crimes da mesma natureza, demonstrando a necessidade da prisão para garantia da ordem pública e da instrução criminal. 4. Condições pessoais favoráveis, por si só, não são suficientes a amparar a concessão da liberdade provisória quando presentes outras razões para a manutenção da prisão preventiva. 5. Encerrada a instrução, não há que se falar em excesso de prazo para a formação da culpa (Súmula 52 STJ). Envolvendo o processo uma pluralidade de réus (quatorze no total), elevado número de testemunhas, assim como a necessidade de expedição de cartas precatórias para diversas localidades, torna-se razoável delonga no procedimento, excedendo-se a mera soma aritmética dos prazos processuais. 6. Inviável a análise aprofundada do conjunto probatório para a verificação da ocorrência de excludente de culpabilidade em favor da paciente na via eleita. 7. Ordem conhecida em parte, apenas com relação ao paciente Paulo de Sá Amorim, e, com relação a este, denegada. (Fl. 17.) Já o acórdão impugnado, que denegou a ordem em relação à paciente Jaciara Ferreira Pires Ramos, tem a fundamentação seguinte: Processual penal. Habeas corpus. Extorsão mediante seqüestro. Prisão preventiva. Falta de fundamentação. 1. Referência expressa a manifestação do Ministério Público. Acolhimento das razões ali invocadas. Análise. Necessidade. 2. Referência a intimidação a testemunhas. Envolvimento em outros crimes da mesma espécie. Alto grau de organização. Motivação idônea. Ocorrência. Garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal. 3. Condições pessoais favoráveis. Irrelevância. Existência de outras razões a justificar a custódia. 4. Alegação de ocorrência de excludente de culpabilidade. Análise aprofundada do conjunto probatório. Necessidade. Inviável na via eleita. 5. Ordem denegada. 1. Tendo o decreto prisional feito menção expressa às razões deduzidas em manifestação prévia do Ministério Público, indispensável se faz o conhecimento destas razões para a análise da legalidade da prisão. 2. Não é ilegal a prisão preventiva que se funda em dados concretos a indicar a necessidade da medida cautelar, especialmente informações colhidas no inquérito policial de intimidação sofrida pelas testemunhas, e probabilidade de reiteração delitiva, pelo envolvimento dos acusados em outros crimes da mesma natureza, demonstrando a necessidade da prisão para garantia da ordem pública e da instrução criminal. 3. Condições pessoais favoráveis, por si só, não são suficientes a amparar a concessão da liberdade provisória quando presentes outras razões para a manutenção da prisão preventiva. R.T.J. — 209 311 4. Inviável a análise aprofundada do conjunto probatório para a verificação da ocorrência de excludente de culpabilidade em favor da paciente na via eleita. 5. Ordem denegada. (Fl. 28.) Pelo que se tem nas decisões proferidas pela Sexta Turma do Superior Tri bunal de Justiça, não se vislumbra nenhuma ilegalidade, abuso de poder ou teratologia que justifique a concessão da ordem. Com efeito, os acórdãos proferidos por aquele Superior Tribunal encontram-se suficientemente motivados, pois tanto no HC 87.319/SP, em que são Pacientes Paulo de Sá Amorim e Dary de Souza Falcão, quanto no HC 83.331/SP, referente à paciente Jaciara Ferreira Pires Ramos, ambos de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, demonstraram as razões que entenderam suficientes à formação de seu convencimento. Ademais, entendo ser legítimo o decreto de prisão preventiva que, embora de forma sucinta, apontou, objetivamente, estarem presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, não sendo fortes os argumentos da impetração para afastar a cautelaridade demonstrada naquele título. Transcrevo a decisão, na parte que interessa: Trata-se de crime extremamente grave (extorsão mediante seqüestro), que vitimou criança de apenas seis anos de idade. A criança permaneceu seqüestrada por mais de dois meses, o que demonstra a organização dos criminosos. Assim, a prisão preventiva dos réus é necessária para garantia da ordem pública. A prisão preventiva também é necessária por conveniência da instrução criminal, pois as vítimas e as testemunhas precisam de tranqüilidade para serem ouvidas durante a instrução criminal, inclusive para tentativa de reconhecimento dos réus pelas vítimas. A prisão preventiva também é necessária para assegurar a eventual aplicação da lei penal, pois, se postos em liberdade, poderão os réus evadir-se do distrito da culpa, tendo em vista as penas previstas para tais crimes, que são inclusive considerados hediondos. Dessa forma, havendo prova da existência do crime e indícios suficientes de sua autoria, que pesam contra os réus, decreto a prisão preventiva dos réus. (Fl. 774 do apenso.) Como se vê, o Juízo processante ressaltou, objetivamente, a necessidade de garantir a ordem pública, frise-se, não em virtude da hediondez do crime praticado, mas pela gravidade dos fatos investigados na ação penal (seqüestro de criança com 6 anos de idade pelo período de 2 meses), que bem demonstram a personalidade dos pacientes e dos demais envolvidos nos crimes (14 acusados), sendo evidente a necessidade de mantê-los segregados, especialmente pela organização e pelo modo de agir da quadrilha. Aliás, conforme pontuou o Ministério Público Federal no parecer da ilustre Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques, “da decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça extraem-se informações que reforçam, ainda mais, a necessidade da custódia imposta aos pacientes” (fl. 236). 312 R.T.J. — 209 Transcrevo: (...) Em um primeiro momento, verifica-se que o Magistrado de primeiro grau fez menção expressa no decreto às razões trazidas pelo Ministério Público em sua representação pela prisão preventiva, impondo-se a análise também destas para o fim de verificar a legalidade da prisão. Embora a impetração não tenha trazido cópia desta representação ministerial, ela se encontra reproduzida no acórdão, já publicado, referente ao citado habeas corpus nº 75.100/SP, mostrando-se conveniente a sua leitura, porque permite a análise do decreto em sua inteireza: “(...) Outrossim, diante do que foi apurado até a presente data, imperativa a decretação da prisão preventiva de todos os denunciados, consoante o que estabelece a nossa Lei Instrumental Penal. De fato, consoante restou apurado, todos os denunciados participaram do delito de extorsão mediante seqüestro da vítima Lucas Ferreira da Silva, de 05 anos de idade, delito gravíssimo, que revoltou sobremaneira a sociedade. Ainda, é de ressaltar que eles fazem parte de uma organização criminosa e estão envolvidos em diversos crimes dessa natureza ocorridos na região, tanto que, ao estourarem o primeiro cativeiro, os policiais localizaram a vítima de outro seqüestro praticado pela mesma quadrilha. Sem dúvida, diante destas ponderações, tudo está a indicar serem eles um grande perigo à sociedade. Impõe-se garantir a ordem pública. Ademais, permanecendo soltos, seguramente poderão influir no ânimo e paz das testemunhas e pessoas com conhecimento dos fatos e de suas circunstâncias, de forma violenta, aliás, como já se percebe nos autos de inquérito policial. Necessário assegurar-se a instrução criminal, com a regular e segura colheita da prova. Assim, preenchidos os requisitos legais – prova da materialidade do crime e de sua autoria –, e previstos os fundamentos estatuídos nos artigos 311 e seguintes, do Código de Processo Penal – garantia da ordem pública, bem como assegurar-se a tranqüilidade da instrução criminal –, mister a sua segregação provisória, vez que a sociedade anseia pelo aniquilamento do sentimento de impunidade tão comum em agentes de condutas deste jaez, exigindo rápida e efetiva resposta daqueles que têm por dever a manutenção da ordem e da justiça. (...)” (...) A prisão preventiva teria, assim, um efeito de obstar a reiteração delitiva de crimes de extrema gravidade, como é o caso da extorsão mediante seqüestro. O fundamento há que ser aceito, especialmente tendo em vista o fato de que ao investigarem o seqüestro de uma das vítimas, os policiais acabaram encontrando no mesmo cativeiro ainda outra vítima, demonstrando a necessidade da prisão para garantia da ordem pública. O decreto prisional destacou, ademais, a necessidade da prisão preventiva para garantia da instrução criminal, diante do receio de que, em liberdade, pudessem os acusados intimidar as testemunhas. Tal assertiva baseou-se em indícios presentes no inquérito policial de que os acusados estariam procurando influir no ânimo das testemunhas de forma violenta (...) R.T.J. — 209 313 (...) O receio de que venham as testemunhas a sofrer algum tipo de intimidação, baseado em dados concretos colhidos dos autos, é fundamento suficiente para a manutenção da prisão (...) (...) Há, ainda, a referência ao alto nível de organização apresentado pelos acusados, que conseguiram manter uma criança, de apenas seis anos de idade, em cárcere por mais de dois meses sem que pudessem ser encontrados. Assim, estando o decreto prisional lastreado em elementos concretos colhidos dos próprios autos, não afastados pelo impetrante, não há que se falar em ilegalidade da custódia. As circunstâncias pessoais da paciente alegadas pelo impetrante, tais como primariedade e residência fixa não têm o condão, por si só, de afastar a necessidade da cautela. (Fls. 210 a 214.) Assim, entendo legítimos os fundamentos apresentados no decreto de prisão preventiva, que devem ser idôneos e suficientes para justificar a manutenção da prisão dos pacientes. Importante destacar, ainda, que o mesmo decreto de prisão preventiva foi analisado por esta Suprema Corte, em 11‑3‑08, por ocasião do julgamento do HC 92.839/SP, de minha relatoria, impetrado em favor do Co-réu Ademilson Alves de Brito, que, à unanimidade, denegou a ordem, mantendo a fundamentação do já citado decreto. Eis o teor daquele julgado: Habeas corpus. Penal e processual penal. Crime de extorsão mediante seqüestro. Prisão temporária convertida em preventiva. Fundamentação idônea. Garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal (art. 312 do CPP). Liberdade provisória. Impossibilidade de análise dos requisitos na via estreita do habeas corpus. Excesso de prazo não configurado. Complexidade da causa. Quatorze acusados. Precedentes da Suprema Corte. 1. É legítimo o decreto de prisão preventiva que ressalta, objetivamente, a necessidade de garantir a ordem pública, não em razão da hediondez do crime praticado, mas pela gravidade dos fatos investigados na ação penal (seqüestro de criança menor de idade pelo período de 2 meses), que bem demonstram a personalidade do paciente e dos demais envolvidos nos crimes, sendo evidente a necessidade de mantê-los segregados, especialmente pela organização e pelo modo de agir da quadrilha. Por outro lado, o fundamento da conveniência da instrução criminal, diante do temor das testemunhas ao paciente, que, sendo residente no mesmo condomínio das vítimas, causa evidente intranqüilidade caso permaneça em liberdade, merece relevado e mantido. 2. A existência dos pressupostos autorizadores da liberdade provisória só seria possível pela análise de fatos e de provas a confirmarem essas circunstâncias, sendo certo que não se admite dilação probatória no rito estreito do habeas corpus. 3. Ordem denegada. (DJ de 18‑4‑08.) 314 R.T.J. — 209 No tocante à alegação de excesso de prazo da prisão dos pacientes, não vislumbro constrangimento ilegal flagrante que justifique a concessão da ordem por esse fundamento. Com efeito, não há nos autos comprovação de que eventual demora estaria ocorrendo por inércia do Judiciário. Pelo contrário, os autos demonstram a adoção, pelo Juízo processante, de todas as providências necessárias ao bom andamento da ação penal, motivo pelo qual entendo não haver indício de que tenha ficado paralisada por culpa exclusiva do Poder Judiciário. Nesse sentido é a orientação desta Suprema Corte: Penal. Processual penal. Prisão preventiva. Excesso de prazo. Complexidade da instrução probatória. 1. O decreto de prisão preventiva, no caso, está devidamente fundamentado. 2. Afigura-se razoável o prazo da prisão cautelar diante da complexidade da causa e da respectiva instrução probatória. 3. Habeas corpus denegado. (HC 92.729/SP, Primeira Turma, no qual fiquei como Relator para o acórdão, DJ de 25‑4‑08.) E ainda: HC 89.847/BA, Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 27‑6‑08; HC 86.103/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 19‑5‑06; e HC 85.679/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 31‑3‑06, entre outros. Ademais, as informações trazidas pelo Juízo da 1ª Vara Distrital de Arujá – Comarca de Santa Isabel/SP – (fls. 224 a 230) afirmam que: (...) Em 10 de março de 2008, foi encerrada a fase de instrução processual (fl. 2501). Em 13 de março de 2008, foram apreciados os pedidos formulados pelo Ministério Público, na fase do art. 499 do CPP, assim como os pedidos de instauração de incidente de prova ilícita e de remessa de fotografias coloridas dos coréus Rogério Pereira Nunes e Emerson Braga, formulados pela defesa do acusado Ademilson (fls. 2502/2506, 2509, 2511/2512, 2519 e 2587). Em 30 de abril de 2008, foram apreciados alguns dos requerimentos formulados pelas partes na fase do art. 499 do CPP (fls. 2518/2519, 2540/2541, 2546/2546-verso, 2569/2570, 2572/2573 e 2579/2580). Em 28 de maio de 2008, foram apreciados outros requerimentos formulados pelas partes na fase do art. 499 do CPP (fls. 2588, 2610/2611 e 2618). Em 16 de junho de 2008, foram novamente apreciados requerimentos formulados pelas partes na fase do art. 499 do CPP (fls. 2568/2569, 2620, 2630/2631, 2632/2633 e 2634). (Fls. 228/229.) Com efeito, o entendimento firmado pela jurisprudência desta Suprema Corte é no seguinte sentido: “1. Não há se falar em excesso de prazo se já encerrada a instrução criminal. 2. Estando o feito na fase do art. 499 do CPP, não há constrangimento ilegal quando, em razão da complexidade da causa, não se observa a ocorrência de eventual retardamento fruto de inércia ou desídia do Poder Judiciário” (HC 85.611/DF, Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 17‑6‑05). R.T.J. — 209 315 Perfilhando esse entendimento, os seguintes precedentes: Habeas corpus. Constitucional. Penal e processual penal. Crime de roubo qualificado. Liberdade provisória. Excesso de prazo na formação da culpa não configurado. Encerramento da instrução criminal. Prisão em flagrante convertida em preventiva. Fundamentação idônea. Precedentes. 1. O entendimento adotado pelo acórdão impugnado está em sintonia com a jurisprudência desta Corte no sentido de que fica prejudicada a alegação de excesso de prazo quando a instrução criminal já chegou ao fim. Ademais, afigura-se razoável o prazo para o encerramento da formação da culpa do paciente e, conseqüentemente, da prisão cautelar diante da necessidade da respectiva instrução probatória, com expedição de precatórias para outras comarcas. 2. O decreto de prisão preventiva, no caso, está devidamente fundamentado, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, não evidenciando constrangimento ilegal amparável pela via do habeas corpus. 3. Habeas corpus denegado. (HC 93.475/SP, Primeira Turma, de minha relatoria, DJ de 23‑5‑08.) I – Habeas corpus e pronúncia: sedimentada a jurisprudência do Supremo em que, se a pronúncia, para conservar preso o réu, silencia totalmente a respeito ou se remete aos fundamentos do decreto de prisão cautelar anterior, a eventual inidoneidade deles contamina de nulidade a prisão processual e, por isso, não prejudica o habeas corpus pendente que a impugna. II – Prisão preventiva: excesso de prazo superado com o encerramento da instrução criminal e superveniência da pronúncia, esta ocorrida há pouco mais de um mês, intervalo que não sobrepuja os temperamentos admissíveis à luz do juízo de razoabilidade, ao qual o Tribunal tende a submeter a legitimidade da extensão temporal da prisão subseqüente à pronúncia, malgrado a lei não lhe predetermine limites rígidos de duração. III – Prisão preventiva: fundamentação cautelar: garantia da ordem pública: idoneidade. (HC 86.529/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 2‑12‑05.) Não se desconhece que essa orientação pode, em casos excepcionais, sofrer temperamento, mas as circunstâncias da hipótese vertente não autorizam referida mitigação. É que está presente a grande complexidade do feito, que envolve 14 acusados, bem como a expedição de cartas precatórias e a oitiva de elevado número de testemunhas. Nesses termos, com apoio na jurisprudência desta Corte, tenho que não prospera a alegação de excesso de prazo a justificar a concessão da ordem. Anote-se, a propósito: HC 88.435/GO, Primeira Turma, Rel. p/ o ac. Min. Cármen Lúcia, DJ de 5‑10‑07; HC 85.679/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 31‑3‑06; HC 90.907/CE, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 1º-6-07; HC 86.103/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 19‑5‑06. Inclusive, por todas essas razões aqui delineadas, não vislumbro, também, a hipótese da concessão da ordem, de ofício, ao Paciente Dary de Souza Falcão. Ante o exposto, conheço em parte da impetração e, na parte conhecida, denego a ordem de habeas corpus. 316 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Tenho votado entendendo que o encerramento da instrução não afasta a configuração do excesso. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): V. Exa. tem toda razão. Desde a data de suas prisões, ocorridas em 10 de julho de 2006, 10 de março de 2008, ou seja, um ano e oito meses. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Foi preso em 10 de julho de 2006. Há mais de dois anos, portanto. Continuo convencido de que o critério para aferir o excesso de prazo é estritamente objetivo – a passagem do tempo. Que o excesso de prazo diz respeito não à instrução do processo, mas à tramitação em tempo razoável, revelado este pelos prazos para a prática dos vários atos processuais. Por isso, peço vênia ao Relator e aos colegas que o acompanharam para, no caso, deferir a ordem, considerado o excesso de prazo, inclusive quanto ao paciente Dari de Sousa Falcão, estendendo-a aos demais co-réus – são dezesseis –, que se encontram em idêntica situação. EXTRATO DA ATA RHC 95.000/SP — Relator: Ministro Menezes Direito. Recorrentes: Jaciara Ferreira Pires Ramos, Paulo de Sá Amorim e Dary de Souza Falcão (Advogado: José Carlos Vital). Recorrido: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: Por maioria de votos, a Turma conheceu do habeas corpus, apenas quanto aos Pacientes Jaciara Ferreira Pires Ramos e Paulo de Sá Amorim, mas o indeferiu; vencido o Ministro Marco Aurélio, Presidente, que deferia a ordem, considerado o excesso de prazo, inclusive quanto ao Paciente Dari de Sousa Falcão, estendendo-a aos demais co-réus, já que são dezesseis, que se encontram em idêntica situação. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 4 de novembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 317 HABEAS CORPUS 95.116 — SC Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Paciente: Vera Lúcia Samagaia — Impetrantes: Cláudio Gastão da Rosa Filho e outros — Coator: Relator do Habeas Corpus 103.649 do Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Prisão preventiva. Fundamentação inidônea. Óbice da Súmula 691/STF. Ilegalidade evidenciada. Decreto preventivo que se apoiou no conteúdo de entrevista concedida a programa televisivo. Fundamento que, no caso, não se encaixa nos requisitos do art. 312 do CPP. Habeas corpus não conhecido. Concessão da ordem, de ofício. 1. A prisão cautelar da paciente se apoia, exclusivamente, no conteúdo de entrevista concedida a programa de televisão. Entrevista pela qual a paciente, com o legítimo propósito de autodefesa, narrou sua própria versão aos fatos criminosos a ela mesma imputados. 2. A análise dos autos evidencia ilegítimo cerceio à liberdade de locomoção da paciente. Circunstância que autoriza o abrandamento da Súmula 691/STF. 3. No caso, o Juízo processante indeferiu o direito de a paciente apelar em liberdade e decretou a sua prisão preventiva. Isso sob a alegação de surgimento de fato superveniente apto a justificar a prisão preventiva. Decisão que se apoiou, tão-somente, no conteúdo de entrevista televisiva, em que a Paciente simplesmente apresentou a sua versão para o fato pelo qual foi condenada a uma pena de 30 (trinta) anos de reclusão (crime de latrocínio). Fundamento que não tem a força de corresponder à finalidade do art. 312 do CPP. 4. O deferimento de liminar por Ministro do Supremo Tribunal Federal não prejudica o exame de mérito do habeas corpus, ajuizado no STJ. 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para permitir que a acusada aguarde o julgamento do respectivo recurso de apelação em liberdade. Salvo se por outro motivo tiver que permanecer presa. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em não conhecer do pedido de habeas corpus, mas conceder a ordem, de ofício, o que fazem nos termos do voto do Relator e 318 R.T.J. — 209 por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 3 de fevereiro de 2009 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de habeas corpus, aparelhado com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão proferida por Ministro do Superior Tribunal de Justiça (HC 103.649). Decisão que indeferiu o provimento cautelar ali requestado, na falta dos respectivos pressupostos (fls. 33/34). 2. Pois bem, os impetrantes postulam, de início, o abrandamento da Súmula 691 deste STF. Isso porque a “não concessão da liminar postulada junto a digna autoridade coatora perpetuou decisão manifestamente ilegal (...)” (fl. 5). 3. Prosseguem os impetrantes para rememorar que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a ilegalidade da prisão preventiva originariamente decretada em desfavor da Paciente – Vera Lúcia Samagaia. Ao fazê-lo, revogou a segregação cautelar imposta à acusada, mediante a assinatura de termo de comparecimento aos demais atos processuais (fl. 73). 4. Isso não obstante, e poucos dias após a soltura da Paciente, o Juízo processante da causa expediu novo decreto prisional. O que motivou a impetração de um outro writ no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, com o deferimento da ordem (HC 2007.05.2233-2 – fl. 9). 5. Sucede que a custódia cautelar da Paciente foi, ainda uma vez, decretada pelo Juízo originário da causa, após recebimento e processamento do recurso de apelação defensivo. Juízo que alegou a necessidade de garantia da ordem pública, “eis que a credibilidade da Justiça estaria abalada tendo em vista entrevista concedida pela mesma (...)” (fl. 9). 6. Pois bem, impetrado mais um habeas corpus no Tribunal de Justiça catarinense, a ordem não foi concedida. Pelo que a defesa manejou outra ação constitucional de habeas corpus para o Superior Tribunal de Justiça, sendo que o pedido liminar foi indeferido pelo Ministro Paulo Gallotti (HC 103.649). Daí a presente impetração, sob o fundamento de que há “humilhação desnecessária e uma perseguição injustificada a uma acusada que nada mais fez do que exercitar seu legítimo direito de defesa, através da livre manifestação do pensamento, ao conceder entrevista narrando fatos que anteriormente já tinha sido apresentados em seu interrogatório (...)” (fl. 12). Argumenta a defesa que o panorama processual continua o mesmo, dado que as declarações prestadas pela paciente em entrevista a programa de televisão não constituíram fato novo além do que já afirmado durante o respectivo interrogatório. Pelo que tais declarações não podem ser vistas como comprometedoras da ordem pública, conforme consignado no decreto prisional. 7. Avançam os impetrantes para acentuar que o precedente invocado pelo decreto de prisão preventiva (caso Suzane Von Richthofen) não guarda nenhuma R.T.J. — 209 319 relação com esta causa. Aduzem que a reversão da pena de trinta anos imposta à paciente pelo crime de latrocínio (§ 3º do art. 157 do CP) só será possível mediante criteriosa análise da Corte catarinense por ocasião do julgamento da apelação defensiva. Pelo que a entrevista jornalística dada pela paciente em nada influenciará tal decisão. 8. Presente essa moldura, os acionantes postulam a concessão de medida acauteladora, dada a manifesta falta de fundamentação idônea para legitimar a segregação cautelar da paciente. No mérito, pedem o deferimento do writ para que, em liberdade, a acusada possa aguardar o processamento de seu recurso de apelação. 9. Prossigo neste relato da causa para averbar que deferi a medida liminar requestada, por entender configurados os pressupostos autorizadores. Oportunidade em que requisitei informações ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, bem como ao Juízo da Vara Única da Comarca de Santo Amaro da Imperatriz/SC. 10. Na seqüência, abri vista dos autos à Procuradoria-Geral da República. Órgão que opinou pela concessão da ordem, de ofício, para que seja confirmada a liminar deferida às fls. 224/228. 11. À derradeira, pontuo que o Superior Tribunal de Justiça entendeu prejudicado o writ ali ajuizado. O que fez por efeito da concessão de medida liminar nestes autos (fls. 313/314). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. Fazendo-o, anoto, de saída, que, a partir de um exame prefacial dos autos e, sobretudo, embasado na documentação apresentada pelos impetrantes, deferi a medida liminar requestada. E o fiz por entender que o decreto preventivo carecia de fundamentação capaz de justificar a custódia cautelar da paciente. Pelo que afastei o Verbete 691 do STF, reservando-me para um mais detido exame da matéria por ocasião do julgamento de mérito do writ. 14. Pois bem, de imediato, passo à leitura do decreto prisional impugnado nestes autos (fls. 85/87): (...) Registre-se que a acusada Vera Lúcia Samagaia foi condenada por este Juízo a pena de 30 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, e 20 (vinte) diasmulta, em seu valor unitário correspondente a 5 (cinco) salários-mínimos vigentes à época do fato, por infração ao art. 157, § 3º, segunda parte, do Código Penal, sendolhe negado o direito de recorrer em liberdade. O egrégio Tribunal de Justiça, no entanto, concedeu em favor da ré ordem de habeas corpus nos autos n. 2007.052233-2, permitindo a sua liberdade até julgamento de apelo (...) (...) 320 R.T.J. — 209 Após a leitura da nota publicada no Diário Catarinense de 20.11.2007, na coluna de Cacau Menezes, com o título “Drama de uma Mulher” (fl. 72), e depois de assistir a entrevista concedida pela denunciada Vera Lúcia Samagaia (fl. 73), que foi veiculada no Jornal do Almoço (TV Globo – RBS), na mesma data, conclui-se que a intenção da ré em utilizar a imprensa para influenciar a opinião pública e os futuros julgamentos em seu favor, eis que omitidos os reais motivos pelos quais a ré foi condenada a 30 anos de prisão – matou para subtrair os dólares do ofendido, sendo a morte deste necessária para assegurar a impunidade do crime patrimonial, conforme sobejamente demonstrado na sentença condenatória. Assim, analisando a nota e a entrevista em comento, percebe-se que a ré buscou a mídia objetivando inverter os papéis, colocando-se na posição de vítima, inclusive com ofensas à vítima ao afirmar: “(...) Eu, eu, me relacionei, me apaixonei, tava numa relação doentia com uma pessoa de má-índole, uma pessoa má, uma pessoa é, que fazia falcatruas, que manipulava, e que montou um esquema, e eu apenas mudei o final (...)” (fl. 08). Contudo, em momento algum os leitores e espectadores foram informados dos fatos concretos analisados na oportunidade do decreto condenatório, que culminaram na condenação da ré pelo crime de latrocínio. Lamentável que os veículos de comunicação, maiores meios de formação de opinião pública, publiquem notas e entrevistas sem buscar a realidade dos acontecimentos, contribuindo para o intuito da defesa de vitimização da condenada perante a sociedade. (...) Como lembrado pelo representante ministerial, em caso semelhante foi restabelecida a prisão de Suzane Von Richthofen após entrevista ao programa televisivo “Fantástico”, exibido em 09.04.2006, sob o seguinte argumento: “Mais do que garantir a aplicação da lei penal e proteger uma testemunha, tem-se a necessidade de garantir a perfeita ordem de julgamento da ré e dos demais acusados, uma vez que se nota a clara intenção de criar fatos e situações novas, modificando, indevidamente, o panorama processual”, referindo-se o Julgador à entrevista concedida ao “Fantástico”. (fls. 13/14). Destarte, não há dúvidas da pretensão da ré de utilizar a imprensa para influenciar os futuros provimentos judiciais, invertendo a realidade dos fatos comprovados no decreto condenatório, com o fim de modificar o panorama processual, ocasionando perturbação à ordem pública com abalo à credibilidade da justiça. Ante o exposto, diante da superveniência de fato novo, decreto a prisão preventiva de Vera Lúcia Samagaia para proteger a ordem pública e a credibilidade da Justiça, com fundamento nos arts. 311, 312, 313 e 316 do Código de Processo Penal. 15. Presente essa moldura, tenho que assiste razão aos impetrantes. De saída, lembro que os mais recentes pronunciamentos jurisprudenciais desta Suprema Corte rechaçam a decretação da prisão preventiva, exclusivamente com base na necessidade de se resguardar a credibilidade da Justiça. Refiro-me aos HC 93.641, HC 93.315, HC 86.175, HC 88.497, HC 88.535 e HC 84.680, entre outros. 16. No caso dos autos, avulta, para mim, a inversão da ordem natural das coisas. Ordem segundo a qual incumbe ao titular da ação penal pública incondicionada o dever de demonstrar a responsabilidade criminal do acusado, mediante a produção de prova processualmente válida. Quero dizer: o simples fato de a paciente participar de programa televisivo, discorrendo sobre o quadro empírico do crime de latrocínio a que foi condenada, não tem a força de justificar a respectiva R.T.J. — 209 321 segregação cautelar. Pelo que tenho como inidôneo o fato superveniente, apontado pelo Juízo-processante da causa para a decretação da custódia provisória. Ainda mais – repito – quando esse fato não passou de uma entrevista concedida a emissora de televisão, ocasião em que a paciente simplesmente manifestou a sua própria versão sobre os fatos delituosos. Autodefendendo-se, portanto. 17. Com efeito, entendo que as palavras proferidas pela paciente em entrevista jornalística se traduziram no exercício do direito constitucional à “livre manifestação do pensamento” (inciso IV do art. 5º da CF/88) e de autodefesa, a mais natural das dimensões das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º da CF/88). A significar, então, que o legítimo exercício do direito subjetivo à exteriorização do pensamento, conjugado com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º da CF/88), não pode justificar, isoladamente, a decretação da custódia preventiva. 18. Por outro lado, a leitura dos dados empíricos contidos nestes autos de habeas corpus não parece demonstrar que a paciente esteja disposta a pôr em risco, concretamente, a aplicação da lei penal ou mesmo a ordem pública. Sabido que, em matéria de prisão cautelar, a garantia da fundamentação mínima implica assentar no art. 312 do CPP, demonstrativamente, a necessidade da custódia preventiva. 19. Acresce o pronunciamento ministerial público, do qual pinço a seguinte passagem (fl. 311): (...) 10. A entrevista dada pela paciente não coloca em risco a ordem pública, “traduzindo-se mais num desabafo, numa tentativa de esclarecer o que teria vivido em companhia do ofendido” (fl. 281). Nada poderia impedir que a paciente expressasse, naquela ocasião, suas posições pessoais sobre o crime, com nítido intuito de eximir-se de culpa. É o que diz o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém será obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF). 11. Fatos dessa natureza são comuns em reportagens divulgadas pela imprensa, quando réus/investigados negam a prática dos crimes que lhes são imputados. Tais afirmações, por certo, não têm o condão de interferir nos provimentos judiciais, já que os juízes decidem apenas com base nos elementos que constam dos autos. (...) 20. É o que me basta para entender configurada situação capaz de autorizar o abrandamento do Verbete 691 do STF. Motivo pelo qual não conheço do habeas corpus1; porém concedo a ordem, de ofício, confirmando a medida liminar deferida. O que faço para permitir que a paciente aguarde o julgamento do respectivo recurso de apelação em liberdade. Salvo, é claro, se por outro motivo não tiver que permanecer presa. 21. É como voto. 1 A decisão de fl. 313 dá conta de que o Relator no Superior Tribunal de Justiça (HC 103.649) julgou prejudicado o writ ali ajuizado. O que fez por efeito da medida liminar deferida nestes autos. Daí o não conhecimento do presente habeas corpus e a concessão da ordem de ofício, com a justificada supressão de instância. 322 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, há um detalhe que precisa ser destacado e o faço porque é fundamento para que acompanhe V. Exa. Mais uma vez o Superior Tribunal de Justiça julgou prejudicado o habeas corpus diante da medida liminar que foi deferida. Tenho a sensação, se V. Exa. me permitir, de que seria prudente, no próprio voto, nós, mais uma vez, reiterarmos, se possível, até mesmo na ementa, que esse comportamento não é pertinente. O Sr. Ministro Marco Aurélio: V. Exa. me permite? O Sr. Ministro Menezes Direito: Claro, com muito prazer. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Agora, quando ainda me defronto com habeas corpus em que há impetração em curso no Superior Tribunal de Justiça e concedo a liminar, tenho o cuidado de lançar que o deferimento, que é precário e efêmero, não prejudica aquela impetração. Aqui – e V. Exa. já ressaltou isso em outra oportunidade – , o paciente está sem jurisdição, porque não poderá ser ressuscitado aquele habeas corpus. O Sr. Ministro Menezes Direito: Daí a concessão de ofício, porque ele fica sem jurisdição nesse caso. O Sr. Ministro Marco Aurélio: E a causa de pedir – inclusive ela merece a adjetivação contida no parecer do Dr. Wagner Gonçalves –, a causa de pedir revela um enfoque extravagante. A autodefesa passa a ser um ato ilegal. EXTRATO DA ATA HC 95.116/SC — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Vera Lúcia Samagaia. Impetrantes: Cláudio Gastão da Rosa Filho e outros. Coator: Relator do Habeas Corpus 103.649 do Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma não conheceu do pedido de habeas corpus, mas concedeu a ordem, de ofício, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Britto. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Cláudia Sampaio Marques. Brasília, 3 de fevereiro de 2009 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 323 HABEAS CORPUS 95.464 — SP Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello Paciente: Claudinei Damascena Santos de Jesus ou Claudinei Damascena de Jesus — Impetrantes: Vagner da Costa e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus – Processo penal – Prisão cautelar – Excesso de prazo – Inadmissibilidade – Ofensa ao postulado constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) – Transgressão à garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) – Caráter extraordinário da privação cautelar da liberdade individual – Utilização, pelo magistrado, de critérios incompatíveis com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Situação de injusto constrangimento configurada – Pedido deferido. O excesso de prazo não pode ser tolerado, impondo-se, ao Poder Judiciário, em obséquio aos princípios consagrados na Constituição da República, o imediato relaxamento da prisão cautelar do indiciado ou do réu. – Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu. – O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. – A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. 324 R.T.J. — 209 Constituição Federal (art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/04. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O indiciado e o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes. A prisão cautelar constitui medida de natureza excepcional. – A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão decorrente de decisão de pronúncia, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do Indiciado ou do réu. – A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A prisão cautelar não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada do indiciado ou do réu. – A prisão cautelar não pode – e não deve – ser utilizada, pelo poder público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão decorrente de decisão de pronúncia – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A gravidade em abstrato do crime não constitui fator de legitimação da privação cautelar da liberdade. – A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. R.T.J. — 209 325 Ausência de demonstração, no caso, da necessidade concreta de decretar-se a prisão cautelar do Paciente. – Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão meramente processual. Prisão cautelar e possibilidade de evasão do distrito da culpa. – A mera possibilidade de evasão do distrito da culpa – seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou a validade da própria decisão de custódia cautelar – não basta, só por si, para justificar a decretação ou a manutenção da medida excepcional de privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. – A prisão cautelar – qualquer que seja a modalidade que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia ou prisão motivada por condenação penal recorrível) – somente se legitima, se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do réu. Precedentes. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, vencida a Ministra Ellen Gracie, em conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 3 fevereiro de 2009 — Celso de Mello, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Celso de Mello: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fl. 15): “HABEAS CORPUS” LIBERATÓRIO. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E CRIME DE RESISTÊNCIA. PRISÃO EM FLAGRANTE EM 25.03.2007 (1 ANO E 2 MESES). EXCESSO DE PRAZO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. INSTRUÇÃO ENCERRADA. SENTENÇA DE PRONÚNCIA PROFERIDA. SÚMULA 21/STJ. ORDEM DENEGADA. 326 R.T.J. — 209 1. A concessão de “Habeas Corpus” em razão da configuração de excesso de prazo é medida de todo excepcional, somente admitida nos casos em que a dilação (A) seja decorrência exclusiva de diligências suscitadas pela acusação; (B) resulte da inércia do próprio aparato judicial, em obediência ao princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º., LXXVIII da Constituição Federal; ou (C) implique em ofensa ao princípio da razoabilidade. 2. Pronunciado o réu resta superada a alegação de constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução, aplicando-se, na espécie, a Súmula 21 desta Corte. 3. Quando os autos evidenciam que a persecução penal regularmente instaurada vem se desenvolvendo em ritmo compatível com a sua natureza, não se mostra cabível a soltura do paciente, tendo em vista, sobretudo, a complexidade do feito que envolve 2 acusados, com defensores diferentes e apuração de duas infrações penais, entre elas o delito de homicídio duplamente qualificado. 4. “Habeas Corpus” denegado, em consonância com o parecer ministerial. (HC 94.607/SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – Grifei.) Pretende-se, nesta sede processual, a concessão da ordem de “habeas corpus”, para invalidar, por excesso de prazo na conclusão do processo penal, a decisão que, em sede de pronúncia, manteve a prisão em flagrante do ora paciente. Deferi o pedido de medida liminar formulado na presente sede processual, por entender presentes os requisitos autorizadores de sua concessão (fls. 23/32). A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República, Dra. CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES, assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 49/52): PROCESSUAL PENAL. “HABEAS CORPUS”. EXCESSO DE PRAZO. PARECER PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. PRAZO QUE, NÃO OBSTANTE SUPERIOR AO PRAZO LEGAL (81 DIAS), ATENDE AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE, NÃO OFENDENDO DIREITOS DO PACIENTE. 1. Trata-se de “habeas corpus” impetrado por VAGNER DA COSTA E OUTROS, em favor de CLAUDINEI DAMASCENA SANTOS DE JESUS, contra decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, denegatória de “habeas corpus” que, por sua vez, questionava denegação de “habeas corpus” pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mantendo, assim, a prisão preventiva do paciente. 2. O paciente foi pronunciado, em 07/07/2008, pela prática do crime previsto no art. 121, § 2º, incisos I e IV do Código Penal, estando preso, hoje a título preventivo, desde sua prisão em flagrante em 25/03/2007. 3. A defesa, então, impetrou “habeas corpus” perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que o denegou. 4. Inconformada, impetrou novo “writ” perante o Superior Tribunal de Justiça, denegado, em decisão assim ementada: “‘HABEAS CORPUS’ LIBERATÓRIO. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E CRIME DE RESISTÊNCIA. PRISÃO EM FLAGRANTE EM 2.03.2007 (1 ANO E 2 MESES). EXCESSO DE PRAZO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. INSTRUÇÃO R.T.J. — 209 327 ENCERRADA. SENTENÇA DE PRONÚNCIA PROFERIDA. SÚMULA 21/ STJ. ORDEM DENEGADA. 1. A concessão de ‘Habeas Corpus’ em razão da configuração de excesso de prazo é medida de todo excepcional, somente admitida nos casos em que a dilação (A) seja decorrência exclusiva de diligências suscitadas pela acusação; (B) resulte da inércia do próprio aparato judicial, em decorrência ao princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal; ou (C) implique em ofensa ao princípio da razoabilidade. 2. Pronunciado o réu resta superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução, aplicando-se, na espécie, a Súmula 21 desta Corte. 3. Quando os autos evidenciam que a persecução penal regularmente instaurada vem se desenvolvendo em ritmo compatível com a sua natureza, não se mostra cabível a soltura do paciente, tendo em vista, sobretudo, a complexidade do feito que envolve 2 acusados, com defensores diferentes e apuração de duas infrações penais, entre elas o delito de homicídio duplamente qualificado. 4. ‘Habeas corpus’ denegado, em consonância com o parecer ministerial.” 5. Daí o presente “habeas corpus”, cuja liminar foi indeferida, às fls. 38/41. 6. Alega a defesa, em síntese, excesso de prazo para o término da instrução processual. 7. Às fls. 23/32, o deferimento da liminar. 8. Não há constrangimento ilegal em processo que, partindo da prisão em flagrante do agente, em 25/03/2007, tem a decisão de pronúncia prolatada em 07/07/2008. 9. Isto porque o processo comporta dois sujeitos ativos, com dois procuradores diferentes, o que dilata os prazos para o exercício da defesa. 10. Além disso, das informações prestadas pelo juízo de primeiro grau, extrai-se que o andamento do processo deu-se de forma regular, não se configurando, em nenhum momento, algo que possa ser reputado inércia do Poder Judiciário. Eis as datas dos atos processuais: – prisão em flagrante: 25/03/2007; – oferecimento da denúncia: 17/04/2007; – recebimento da denúncia: 17/04/2007; – interrogatório: 16/05/2007; – audiência para oitiva das testemunhas de acusação: 13/06/2007; – audiência para oitiva das testemunhas de defesa e duas testemunhas do juízo: 13/09/2007; – decisão de pronúncia: 07/07/2008 11. Sabe-se, ainda, que o prazo estipulado pela lei para o término da instrução processual – 81 dias – deve ser tomado com as devidas ressalvas, sendo permitida a sua flexibilização, dentro de critérios de razoabilidade. 12. Com efeito, não pode este Supremo Tribunal ignorar a estrutura na qual imerso o Poder Judiciário brasileiro. 13. Não se pretende, com isto, saliente-se, que, em nome das deficiências do aparato estatal, sejam justificados abusos, ofensas ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é este, contudo, o presente caso. 328 R.T.J. — 209 14. Está-se diante de paciente que, após 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, em processo cujo trâmite se deu regularmente, conforme demonstrado acima, já tem, contra si, a decisão de pronúncia. 15. Pelo exposto, manifesta-se o Ministério Público Federal pela denegação da ordem. (Grifei.) É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Os fundamentos em que se apóia a presente impetração revestem-se de inquestionável relevo jurídico. Com efeito, em consulta aos registros processuais que o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo mantém em sua página oficial na “Internet”, constatei, no que se refere ao processo em exame, que o ora paciente somente veio a ser pronunciado em 7‑7‑08, ou seja, quase um ano e cinco meses após a sua prisão em flagrante, ocorrida em 25‑3‑07 (fl. 4). É certo que o Supremo Tribunal Federal, em inúmeros precedentes (RTJ 93/1021 – RTJ 128/652 – RTJ 178/276 – RTJ 196/306, v.g.), tem entendido que a complexidade da causa penal – notadamente daquelas de caráter multitudinário – pode justificar eventual retardamento, desde que razoável, na solução jurisdicional do litígio. A situação exposta nestes autos, contudo, não encontra respaldo na orientação jurisprudencial que venho de referir, eis que, como bem destacou a parte impetrante, “O constrangimento ilegal impingido ao paciente pelo v. Acórdão que manteve a custódia do paciente é inegável, haja vista estar preso há aproximadamente 500 (quinhentos) dias, sem que tenha sido julgado” (fl. 6). Demais disso, o processo penal de conhecimento em referência não ostenta a nota da complexidade, sem se falar no fato de que a causa penal em questão não pode ser qualificada como um litígio de caráter multitudinário, pois, neste, só figuram 2 (dois) litisconsortes penais passivos, um dos quais o ora paciente. Vê-se, portanto, que o quadro registrado na espécie em análise traduz situação que não pode ser tolerada, ainda mais por representar, independentemente da natureza da infração delituosa objeto da imputação penal, a consumação de clara lesão ao “status libertatis” do réu, ora paciente. O exame dos elementos constantes destes autos, considerada a seqüência cronológica dos dados juridicamente relevantes, permite reconhecer, desse modo, a efetiva ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos legais. Em conseqüência de tal situação, o ora paciente permanece, na prisão, por período superior àquele que a lei permite, dando ensejo à situação de injusto constrangimento a que alude o ordenamento positivo (CPP, art. 648, II). R.T.J. — 209 329 É sempre importante relembrar, neste ponto, que ninguém pode permanecer preso, especialmente quando sequer proferida sentença penal condenatória, por lapso temporal que excede ao que a legislação autoriza, consoante adverte a própria jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame: O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU. – Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado. – O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. – A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/04. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes. (RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno.) Há, ainda, um outro aspecto a considerar. Refiro-me ao fato de que o ilustre magistrado estadual de primeira instância, ao proferir a decisão de pronúncia, não permitiu que o paciente aguardasse o julgamento em liberdade, deixando de indicar, nesse ato decisório, qualquer fato concreto revelador da necessidade real da manutenção da prisão cautelar desse mesmo Paciente: 330 R.T.J. — 209 (...) O réu não poderá aguardar o julgamento em liberdade. Saliento que o crime em tese praticado é gravíssimo e indica, também em tese, que o acusado possui personalidade distorcida e que pode tentar evadir-se, furtando-se à aplicação da lei penal. Ademais, pelo que consta dos autos, houve dificuldade na localização do réu, que teria resistido à prisão e somente foi localizado porque foi baleado e socorrido a um hospital, circunstância que reforça a necessidade de custódia cautelar. Recomende-se o réu na prisão em que se encontra. (Grifei.) Tenho para mim que a decisão em causa, ao manter a prisão cautelar do paciente nos termos em que o fez, apoiou-se em elementos insuficientes, destituídos de base empírica idônea, revelando-se, por isso mesmo, desprovida de necessária fundamentação substancial. Todos sabemos que a privação cautelar da liberdade individual é sempre qualificada pela nota da excepcionalidade. Não obstante o caráter extraordinário de que se reveste, a prisão preventiva pode efetivar-se, desde que o ato judicial que a formalize tenha fundamentação substancial, com base em elementos concretos e reais que se ajustem aos pressupostos abstratos – juridicamente definidos em sede legal – autorizadores da decretação dessa modalidade de tutela cautelar penal (RTJ 134/798, Rel. p/ o ac. Min. CELSO DE MELLO). É por essa razão que esta Corte, em pronunciamento sobre a matéria (RTJ 64/77), tem acentuado, na linha de autorizado magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 376, 2ª ed., 1994, Atlas; PAULO LÚCIO NOGUEIRA, “Curso Completo de Processo Penal”, p. 250, item n. 3, 9ª ed., 1995, Saraiva; VICENTE GRECO FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 243/244, 1991, Saraiva), que, uma vez comprovada a materialidade dos fatos delituosos e constatada a existência de meros indícios de autoria – e desde que concretamente ocorrente qualquer das situações referidas no art. 312 do Código de Processo Penal –, torna-se legítima a decretação, pelo Poder Judiciário, dessa especial modalidade de prisão cautelar. É inquestionável que a antecipação cautelar da prisão – qualquer que seja a modalidade autorizada pelo ordenamento positivo (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente da decisão de pronúncia e prisão resultante de sentença penal condenatória recorrível) – não se revela incompatível com o princípio constitucional da presunção de inocência (RTJ 133/280 – RTJ 138/216 – RTJ 142/855 – RTJ 142/878 – RTJ 148/429 – HC 68.726/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, v.g.). Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar (“carcer ad custodiam”) – que não se confunde com a prisão penal (“carcer ad poenam”) – não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar “em benefício da atividade desenvolvida no processo penal” (BASILEU GARCIA, “Comentários R.T.J. — 209 331 ao Código de Processo Penal”, vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado: A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo poder público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. (RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO.) Daí a clara advertência do Supremo Tribunal Federal, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a conseqüente (e inadmissível) prevalência da idéia – tão cara aos regimes autocráticos – de supressão da liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar – considerada a função exclusivamente processual que lhe é inerente – não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da liberdade (HC 89.501/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO). É por isso que esta Suprema Corte tem censurado decisões (como a ora examinada) que fundamentam a privação cautelar da liberdade no reconhecimento de fatos que se subsumem à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do tipo penal: (...) PRISÃO PREVENTIVA – NÚCLEOS DA TIPOLOGIA – IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta (...). (HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – Grifei.) Essa asserção permite compreender o rigor com que o Supremo Tribunal Federal tem examinado a utilização, por magistrados e Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir a subsistência dessa excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente hipótese que possa justificá-la: 332 R.T.J. — 209 Não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual (...) “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII). O processo penal, enquanto corre, destina-se a apurar uma responsabilidade penal; jamais a antecipar-lhe as conseqüências. Por tudo isso, é incontornável a exigência de que a fundamentação da prisão processual seja adequada à demonstração da sua necessidade, enquanto medida cautelar, o que (...) não pode reduzir-se ao mero apelo à gravidade objetiva do fato (...). (RTJ 137/287, 295, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – Grifei.) Entendo, por tal razão, que os fundamentos subjacentes ao ato decisório emanado do ilustre magistrado de primeira instância, que manteve a prisão cautelar do ora paciente, conflitam com os estritos critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consagrou nessa matéria. O exame da própria decisão revela que o magistrado pronunciante, para negar ao paciente o direito de aguardar o julgamento em liberdade, apoiou-se em afirmações genéricas e desprovidas de qualquer fundamento empírico, tais como “o crime em tese praticado é gravíssimo e indica, também em tese, que o acusado possui personalidade distorcida e que pode tentar evadir-se (...)”. Impende assinalar, considerados tais fundamentos, que a gravidade em abstrato do crime não basta para justificar a privação cautelar da liberdade individual do paciente. O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta para justificar, só por si, a privação cautelar do “status libertatis” daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que o delito imputado ao réu seja legalmente classificado como crime hediondo (RTJ 172/184, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 182/601-602, Rel. p/ o ac. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RHC 71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.): A gravidade do crime imputado, um dos malsinados “crimes hediondos” (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII). (RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – Grifei.) A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU. R.T.J. — 209 333 – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por atos arbitrários do poder público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada. (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO.) Sustentou-se, finalmente, para justificar a manutenção da prisão cautelar do ora paciente, a possibilidade de este se furtar à aplicação da lei penal. Razões de caráter especulativo não podem legitimar a decretação ou a manutenção da prisão cautelar do indiciado ou do réu. Meras conjecturas não se qualificam como razão idônea para a adoção dessa medida extraordinária, que é a decretação (ou a manutenção) da privação cautelar da liberdade de locomoção física de quaisquer pessoas. A referência a uma possível evasão do distrito da culpa, invocada como fundamento para o ato de constrição da liberdade do ora paciente, não basta, só por si, na linha do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RTJ 175/715 – RTJ 180/262, v.g.), para legitimar a utilização do instituto da tutela cautelar penal, como resulta claro de recente decisão emanada desta colenda Segunda Turma: PRISÃO CAUTELAR E EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA. – A mera evasão do distrito da culpa – seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou a validade da própria decisão de custódia cautelar – não basta, só por si, para justificar a decretação ou a manutenção da medida excepcional de privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. – A prisão cautelar – qualquer que seja a modalidade que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença de pronúncia ou prisão motivada por condenação penal recorrível) –somente se legitima, se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do “status libertatis” do indiciado ou do réu. Precedentes. (...). (HC 89.501/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO.) Em suma: a análise dos fundamentos em que se apóia a presente impetração leva-me a concluir que a decisão judicial de primeira instância não observou os critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou em tema de prisão cautelar. Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando os elementos produzidos nestes autos, defiro o presente pedido de “habeas corpus”, para permitir que o ora paciente permaneça solto, se por al não estiver preso, eis que excessivo o período de duração da prisão cautelar a que foi submetido nos autos 334 R.T.J. — 209 do Processo-crime 278.01.2007.003274-0, ora em tramitação perante o Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Itaquaquecetuba/SP. A concessão da presente ordem de “habeas corpus” não impede o normal prosseguimento do Processo-crime 278.01.2007.003274-0. É o meu voto. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhora Presidente, também acompanho o voto do eminente Relator, sobretudo pelo fato da sentença de pronúncia ser de 7 de julho do ano passado. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente): Ministro Celso de Mello, peço vênia a V. Exa. para adotar as razões da Procuradoria-Geral. Aliás, como V. Exa. bem reconheceu, a região é extremamente conflituosa e, de fato, o trâmite das ações penais se delonga e, justificadamente. De modo que denego a ordem. EXTRATO DA ATA HC 95.464/SP — Relator: Ministro Celso de Mello. Paciente: Claudinei Damascena Santos de Jesus ou Claudinei Damascena de Jesus. Impetrantes: Vagner da Costa e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por maioria, vencida a Ministra Ellen Gracie, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 3 de fevereiro de 2009 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. R.T.J. — 209 335 HABEAS CORPUS 95.744 — MG Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Paciente: Weverton Andrey da Silva — Impetrante: Defensoria Pública da União — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Crime De porte ilegal de arma de fogo (art. 10 da Lei 9.437/97). Crime anterior à Lei 10.826/03. Abolicio criminis. Inocorrência. Art. 14 da Lei 10.826/03. Ordem denegada. 1. O Estatuto do Desarmamento não aboliu o crime de porte ilegal de arma de fogo. Apenas determinou que os possuidores ou proprietários de armas de fogo sem registro deveriam regularizálas administrativamente ou devolvê-las à Polícia Federal. Portálas, sem registro, prossegue como prática delituosa (art. 14 da Lei 10.826/03). Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, indeferir o pedido de habeas corpus, o que fazem por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 11 de novembro de 2008 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que rechaçou a tese da abolitio criminis do crime do porte ilegal de arma de fogo. Delito tipificado pelo art. 10 da Lei 9.437/971. Esta a ementa do julgado: Agravo regimental em habeas corpus. Direito Penal. Porte ilegal de arma de fogo. Crime anterior à Lei nº 10.826/2003. Extinção da punibilidade. Incabimento. Agravo improvido. 1. Não há falar em extinção da punibilidade de crime ocorrido anteriormente à Lei nº 10.826/2003, que não contemplou o porte de arma com o que se tem denominado abolitio criminis temporalis. 2. Agravo regimental improvido. 1 “Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de um a dois anos e multa.” 336 R.T.J. — 209 2. Pois bem, a Defensoria Pública da União sustenta a extinção da punibilidade do Paciente. O que faz sob a alegação de que a condenação dele, Paciente, pelo delito de porte de arma2 está embasada na Lei 9.437/973. Lei, essa, expressamente revogada pela Lei 10.826/03. 3. Averbo que, na falta de pedido de medida liminar e estando os autos devidamente instruídos, abri vista dos autos à Procuradoria-Geral da República. Procuradoria que opinou pela denegação da ordem. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Ultimado o relatório, passo ao voto. Fazendo-o, consigno que, em reiteradas oportunidades, este Supremo Tribunal Federal rechaçou pedidos semelhantes ao aqui formulado. O que fez por entender que o Estatuto do Desarmamento não aboliu o crime de porte ilegal de arma de fogo. Diferentemente disso, limitou-se a determinar que os “possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas” deveriam “solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprobação da origem lícita da posse”. Ou que esses mesmos “possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas” poderiam optar por “entregá-las à Polícia Federal (...), presumindose a boa-fé (...)” (arts. 30 e 32 Lei 10.826). Só e só. É dizer: os possuidores ou proprietários de armas de fogo sem registro deveriam regularizá-las administrativamente, ou devolvê-las à Polícia Federal. Portá-las, sem registro, em via pública, como instrumento de ameaça a terceiros prossegue como prática deli tuosa (art. 14 da Lei 10.826/03). Assim é que foram julgados, por amostragem, o RHC 86.681-6, da relatoria do Ministro Grau, e o HC 86.559, de minha relatoria. 6. Mais recentemente, esta nossa Primeira Turma reiterou tal entendimento, no julgamento do HC 94.669, da relatoria do Ministro Menezes Direito. Confira-se a ementa: Habeas corpus. Porte de arma de fogo com numeração suprimida, sem autorização e em desacordo a determinação legal (art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03 – Estatuto do Desarmamento). Vacatio legis especial. Atipicidade temporária apenas para o crime de posse. Inexistência de abolitio criminis para o crime de porte. Precedentes. 1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que as condutas “possuir” e “ser proprietário” foram abolidas, temporariamente, pelos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, mas não a conduta de portar arma de fogo (fora da residência ou do local de trabalho), ainda mais quando o porte se dá em lugar público, em atitude suspeita. Ausente, portanto, o pressuposto fundamental para que se tenha por caracterizada a abolitio criminis. 2. Habeas corpus denegado. 2 3 Delito, esse, cometido em 1998. E o que diz a sentença penal condenatória? Diz que o Paciente, no dia 23 de junho de 1998, por volta da zero hora, no estabelecimento comercial denominado “Bar Copacabanas”, portava arma de fogo de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal. R.T.J. — 209 337 7. Diga-se mais: na concreta situação dos autos não há que se falar na extinção da punibilidade do Paciente pela abolitio criminis, pois a Lei 10.826/03 não só manteve a criminalização do porte ilegal de arma como ainda previu pena mais grave do que aquela cominada pelo art. 10 da revogada Lei 9.437/97. Confira-se: Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. 8. Nessa contextura, não há como acolher a pretensão da Impetrante. Pretensão, não me custa pontuar, que se contrapõe à própria finalidade da Lei 10.826/03, aprovada com o claro objetivo de restringir a utilização desse tipo mais perigoso de armamento. 9. Por tudo quanto posto, acolho o parecer da Procuradoria-Geral da República e indefiro a ordem. 10. É como voto. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Não bastasse o sentido vernacular dos vocábulos, porte e posse, há o sentido o jurídico. E os cento e oitenta dias foram fixados para o registro da arma, não implicando autorização para portá-la na via pública. Acompanho V. Exa., indeferindo a ordem. EXTRATO DA ATA HC 95.744/MG — Relator: Ministro Carlos Britto. Paciente: Weverton Andrey da Silva. Impetrante: Defensoria Pública da União. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus. Unânime. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner de Castro Mathias Netto. Brasília, 11 de novembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 338 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 95.952 — SC Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Paciente: José Luiz Santos de Borba — Impetrantes: André Luís Callegari e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça Penal. Habeas corpus. Crime previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/90 praticado na vigência da Lei 9.964/00. Aplicação em relação aos tributos estaduais. Parcelamento não honrado. Ordem denegada. 1. O Paciente foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina pela prática do crime do art. 1º, I, da Lei 8.137/90, por quatorze vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, porque, entre julho de 2000 e agosto de 2001, lançou, na escrituração fiscal da empresa que gerenciava, informações falsas, visando a redução do valor devido a título de ICMS. 2. Tendo o crime sido praticado entre julho de 2000 e agosto de 2001, devem incidir as determinações da Lei 9.964/00 que, no § 3º do seu art. 15, prescreve que “extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal.” (Grifou-se.) 3. Não tem razão o Impetrante quando pretende afastar a incidência da Lei 9.964/00 sob o argumento de que esta norma é direcionada “ao parcelamento de tributos e contribuições federais, enquanto o paciente foi denunciado pela supressão de ICMS”. 4. Há expressa determinação quanto à sua aplicação em relação aos tributos estaduais, como se constata do inciso I do § 2º do art. 15. 5. Há informação nos autos de que o parcelamento da dívida não foi honrado pelo Paciente. 6. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 9 de dezembro de 2008 — Ellen Gracie, Presidente e Relatora. R.T.J. — 209 339 RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão que denegou a ordem do HC 83.215/SC, do Superior Tribunal de Justiça, que ficou assim ementado (fl. 178, apenso): Habeas corpus. Penal. Crime tipificado no art. 1.º, inciso I, da Lei n.º 8.137/90. Fatos praticados na vigência da Lei n.º 9.964/00. Adesão ao Refis. Parcelamento prévio à denúncia. Extinção da punibilidade. Não cabimento. Suspensão da prescrição da pretensão punitiva. 1. Descabe reconhecer a extinção da punibilidade, porque a conduta delituosa se perpetrou na vigência da Lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, que determina, apenas, a suspensão a pretensão punitiva do Estado e do prazo prescricional, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente estiver incluída programa de parcelamento da dívida tributária. 2. Ordem denegada, cassando a liminar anteriormente deferida. Narram os Impetrantes que o Paciente foi denunciado perante a Vara Criminal de Jaraguá do Sul/SC pelo suposto cometimento dos delitos tipificados no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/90, por quatorze vezes, aplicável, ainda, o art. 71 do Código Penal (fl. 3). Foi impetrado habeas corpus perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que foi denegado, sob o fundamento de que “o parcelamento do débito tributário, consoante o art. 34 da Lei nº 9.249/95, apenas suspende a pretensão punitiva do Estado, que somente será extinta com o pagamento integral do valor devido” (fl. 134, apenso). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, foi impetrado habeas corpus, requerendo, liminarmente, o sobrestamento da ação penal e, no mérito, o reconhecimento e a declaração da extinção da punibilidade do crime imputado ao Paciente. A liminar foi concedida para sobrestar o andamento do feito, até o pronunciamento definitivo da questão (fl. 140, apenso). No mérito, a Relatora, Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, denegou a ordem, cassando a liminar anteriormente deferida, sob o fundamento de que “o parcelamento da dívida em momento anterior ao recebimento da denúncia é causa extintiva da punibilidade dos agentes, a teor do art. 34 da Lei nº 9.249/95, ainda que não se tenha efetuado o pagamento do débito”. Acrescentou que o crime em tela foi “praticado entre julho de 2000 e agosto de 2001, já na vigência da Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000”. Em seguida, foram opostos dois embargos de declaração, sendo os primeiros rejeitados e os segundos não conhecidos por intempestividade (fls. 193/196 e 215/217, ambos do apenso). 2. Requerem os Impetrantes a concessão da ordem para “trancar definitivamente a ação penal em curso contra o paciente, em face da extinção da punibilidade decorrente do parcelamento do débito tributário anterior à denúncia”. 340 R.T.J. — 209 3. Parecer da Procuradoria-Geral da República opinando pela denegação da ordem (fls. 32/35). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. No julgamento do HC 83.215, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça assim sintetizou o tema em discussão neste writ (fl. 178, apenso): Habeas corpus. Penal. Crime tipificado no art. 1.º, inciso I, da Lei n.º 8.137/90. Fatos praticados na vigência da Lei n.º 9.964/00. Adesão ao Refis. Parcelamento prévio à denúncia. Extinção da punibilidade. Não cabimento. Suspensão da prescrição da pretensão punitiva. 1. Descabe reconhecer a extinção da punibilidade, porque a conduta delituosa se perpetrou na vigência da Lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, que determina, apenas, a suspensão a pretensão punitiva do Estado e do prazo prescricional, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente estiver incluída programa de parcelamento da dívida tributária. 2. Ordem denegada, cassando a liminar anteriormente deferida. 2. No caso concreto, o Paciente foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina pela prática do crime do art. 1º , I, da Lei 8.137/90, por quatorze vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, porque, entre julho de 2000 e agosto de 2001, lançou, na escrituração fiscal da empresa que gerenciava, informações falsas, visando a redução do valor devido a título de ICMS (fls. 11/14 do apenso). De acordo com a denúncia, tais condutas geraram um débito, à época, para a empresa, de mais de três milhões de reais. 3. O Paciente pretende ver reconhecida a extinção da punibilidade pelo delito que lhe foi imputado, nos termos do art. 34 da Lei 9.249/95, eis que a empresa que gerenciava requereu o parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia. 4. Ocorre que, tendo o crime sido praticado entre julho de 2000 e agosto de 2001, devem incidir as determinações da Lei 9.964/00 que, no § 3º do seu art. 15, prescreve que “extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal” (grifou-se). 5. Não tem razão o Impetrante quando pretende afastar a incidência da Lei 9.964/00 sob o argumento de que esta norma é direcionada “ao parcelamento de tributos e contribuições federais, enquanto o paciente foi denunciado pela supressão de ICMS”. Com efeito, há expressa determinação quanto à sua aplicação em relação aos tributos estaduais, como se constata do inciso I do § 2º do art. 15, in verbis: R.T.J. — 209 341 Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. § 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2º O disposto neste artigo aplica-se, também: I – a programas de recuperação fiscal instituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, que adotem, no que couber, normas estabelecidas nesta Lei; II – aos parcelamentos referidos nos arts. 12 e 13. § 3º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal. (Grifou-se.) Nesse sentido também foi a manifestação do Ministério Público Federal, da qual destaco o seguinte trecho (fl. 34): Importa registrar, primeiramente, que não há como acolher o argumento de ser inaplicável a Lei nº 9.964/00, por não se tratar, no caso em exame, de adesão ao REFIS. Esta norma, assim como a Lei nº 9.249/95 (cuja incidência é defendida na impetração) e a Lei nº 10.684/2003, trata de tributos de natureza federal e dá outras providências, que, em matéria de extinção de punibilidade por quitação do débito tributário, deve ser estendida aos tribtutos estaduais. 6. Por fim, ressalto que há informação nos autos (fl. 129 do apenso) de que o parcelamento da dívida não foi honrado pelo Paciente. 7. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus. EXTRATO DA ATA HC 95.952/SC — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Paciente: José Luiz Santos de Borba. Impetrantes: André Luís Callegari e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, à unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Relatora. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Celso de Mello. Presidiu este julgamento a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 9 de dezembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 342 R.T.J. — 209 HABEAS CORPUS 96.785 — ES Relator: O Sr. Ministro Eros Grau Paciente: Adalto Martinelli ou Adalton Martinelli — Impetrantes: José Julio dos Reis e outros — Coator: Superior Tribunal de Justiça Habeas corpus. Processo penal. Júri. Desaforamento. Prefeito municipal. Influência sobre os jurados. 1. Pedido de desaforamento fundado na possibilidade de o Paciente, ex-prefeito municipal, influenciar jurados admitidos em caráter efetivo na gestão de um dos acusados. Influência não restrita aos jurados, alcançando, também, toda a sociedade da Comarca de Serra/ES. 2. Não é necessária, ao desaforamento, a afirmação da certeza da imparcialidade dos jurados, bastando o fundado receio de que reste comprometida. Precedente. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 25 de novembro de 2008 — Eros Grau, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Eros Grau: Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado contra ato do Superior Tribunal de Justiça consubstanciado em acórdão assim ementado: Habeas corpus. Desaforamento. Imparcialidade do Conselho de Sentença. Lista de jurados composta por diversos funcionários públicos do Município. Nomeação na gestão do paciente como prefeito municipal. Comprometimento da lisura e isenção na decisão do Júri popular. Fundamentação concreta à transmudação do julgamento para outra Comarca. Ausência de ofensa ao princípio do juiz natural. Inexistência de constrangimento ilegal. 1. Via de regra, a teor do disposto no art. 70 do CPP, o acusado deve ser julgado no distrito da culpa, podendo, nos casos de crimes dolosos contra a vida, nas hipóteses previstas no art. 427 do CPP (antigo 424), em medida excepcionalíssima, sem ofender o princípio do juiz natural, ser levado a julgamento em outra comarca. 2. Estando suficientemente comprovado que grande parte da lista dos jurados é composta por funcionário público municipal nomeado pelo paciente, na qualidade de prefeito, acertada a decisão que acolhe pleito de desaforamento requerido pelo R.T.J. — 209 343 Ministério Público, ao fundamento de existência de forte dúvida a respeito da imparcialidade dos membros que poderão integrar o Tribunal do Júri. 3. Alegação, por si só, de que os fatos ocorreram há muito tempo não é suficiente para desconstituir desaforamento determinado em obediência ao art. 424 do CPP (atual 427), especialmente se diversos Magistrados, tanto de Primeiro quanto de Segundo Graus, deram-se por impedidos para participar do feito referente ao paciente que, além de gozar de grande influência política na região, está sendo acusado de crimes graves e de larga repercussão. 4. Sob pena de comprometimento da lisura no julgamento popular, a existência de motivos concretos e objetivos quanto à ligação dos jurados com o paciente, é motivo bastante a gerar dúvida pertinente à imparcialidade dos juízes leigos, autorizadora do deslocamento do Tribunal do Júri para outra comarca, sem, por isso, caracterizar constrangimento ilegal. 5. Ordem denegada. 2. O Paciente foi denunciado e pronunciado na Comarca de Serra/ES pela prática dos crimes tipificados nos arts. 121, § 2º, incisos I, IV e V; 211; e 288 c/c os arts. 29 e 69, todos do Código Penal. 3. O Ministério Público requereu fosse desaforado o julgamento sob a alegação de comprometimento da imparcialidade dos jurados fundada em que o Paciente, quando exerceu o mandato de Prefeito Municipal, teria nomeado esses mesmos jurados para investidura em cargos públicos, mantendo com eles estreitos laços de relacionamento pessoal e profissional. 4. Os Impetrantes alegam que, considerado o princípio do juiz natural, o desaforamento é medida excepcionalíssima, inocorrente no caso sob exame, eis que inexiste dúvida a respeito da imparcialidade dos jurados. Daí não ser aplicável o art. 4241 do CPP, mas a regra geral de competência definida no art. 702 do CPP. 5. Aludem ao voto vencido, do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, no sentido da concessão da ordem no Superior Tribunal de Justiça. 6. Requerem a concessão de liminar a fim de suspender julgamento designado para o dia 2 de dezembro de 2008, até o julgamento definitivo deste habeas corpus. Pedem, no mérito, a nulidade do acórdão que deferiu o desaforamento. 7. A Procuradoria-Geral da República é pela denegação da ordem. É o relatório. 1 “Art. 424. Se o interesse da ordem pública o reclamar, ou houver fundada dúvida sobre a imparcialidade do Júri ou sobre a segurança pessoal do réu, o Tribunal de Apelação, a requerimento de qualquer das partes ou mediante representação do juiz, e ouvido sempre o procurador-geral, poderá desaforar o julgamento para comarca ou termo próximo, onde não subsistam aqueles motivos, após informação do juiz, se a medida não tiver sido solicitada, de ofício, por ele próprio.” 2 “Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que foi praticado o último ato de execução.” 344 R.T.J. — 209 VOTO O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Estando os autos na ProcuradoriaGeral da República, o Impetrante, dirigindo-se ao Subprocurador-Geral da República incumbido da elaboração do parecer atinente ao caso, afirmou que “pela legislação processual vigente a cada ano o juiz presidente do Tribunal do Júri elabora a lista geral de jurados observando a quantidade de jurados prevista no artigo 425, do diploma legal (...) [refere-se ao CPP]. A Lei nº 11.689/08 veda a participação do jurado que tiver integrado o Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses que antecederam à publicação da lista geral, conforme previsão expressa do artigo 426, § 4º, do CPP. Com esta medida, procurase afastar aquele jurado que habitualmente compõe a lista geral de jurados e, assim, impede que ele possa vir a participar reiteradamente de julgamento. A cada ano a lista geral de jurados deve ser refeita, completando-se os jurados excluídos por terem participado do Conselho de Sentença por novos jurados. Além disso, periodicamente o juiz elaborará a pauta de julgamentos, procedendo ao sorteio dos jurados que atuarão na sessão periódica do Júri” (fl. 232). 2. O Ministério Público estadual alegara, no pedido de desaforamento, que o Conselho de Sentença é “eminentemente formado por funcionários públicos municipais que foram admitidos, em caráter efetivo, pelo município da Serra quando da gestão do acusado como prefeito municipal, trabalhando sob seu comando por vários anos e a ele ligados por laços de amizade e gratidão” (fl. 92). Observou ainda que “em razão do contato direto com o corpo de jurados nessa oportunidade em que se realiza a pauta ordinária de julgamentos, tornou-se evidente o temor de que o acusado Adalto Martinelli pudesse ser condenado e atribuísse tal condenação a todo o conselho de sentença, e o claro desejo de outros de participarem do julgamento do ex-prefeito e antigo patrão, demonstrando a parcialidade dos juízes leigos responsáveis pelo veredicto no caso em testilha” (fl. 93). 3. Considere-se trechos do voto condutor, proferido no Tribunal de Justiça do Espírito Santo, deferindo o pedido de desaforamento: Em uma análise detida dos autos e da matéria em apreço, verifiquei assistir razão à douta representante do Ministério Público Estadual. É consabido que, em regra, a competência é determinada pelo lugar em que se consumou a infração, ex vi do art. 70 do Código de Processo Penal. Em assim sendo, deve ser o réu julgado no distrito da culpa. Não obstante, dentre as hipóteses previstas no art. 424 do CPP, extrai-se a dúvida sobre a imparcialidade do Júri. A dúvida quanto à aludida imparcialidade do corpo de jurados é singular, pois, compromete diretamente o princípio constitucional do juiz natural e imparcial, bem como, é questão delicada, eis que nem sempre são fáceis ou nítidas as provas nesse sentido. R.T.J. — 209 345 Contudo, ao que se pode denotar através dos documentos acostados aos autos pela representante ministerial, a dúvida está relacionada em razão de fazerem parte da lista de jurados, “os servidores municipais, admitidos em caráter efetivo, na gestão de um dos acusados, qual seja Adalto Matinelli”. Às fls. 68/70, o MM. Juiz de 1º grau informou que, após a sua determinação, a escrivã certificou que 67 (sessenta e sete) servidores municipais realmente faziam parte da lista anual de jurados. Informou outrossim, que vários são os Magistrados que se declararam suspeitos ou impedidos, consoante certidão emitida pela Sra. Escrivão. Por fim, aduziu que o juízo natural dos crimes dolosos contra a vida é o Tribunal do Júri, logo, a imparcialidade deve existir tanto nos atos dos Magistrados quanto nas ações dos componentes do Conselho de Sentença. No processo de pedido de desaforamento do júri, é importante a informação prestada pelo Magistrado da comarca de origem. Restam caracterizadas nos autos, procedentes dúvidas quanto à imparcialidade dos jurados, motivo este que me faz vislumbrar ser necessário atender ao pedido de desaforamento feito pelo Ministério Público. Afigura-se imperioso o desaforamento do julgamento quando, eis que fundada dúvida sobre a imparcialidade do Júri, diante da grande influência exercida pelo réu na Comarca, onde este deveria se realizar, bem como para se garantir a tranqüilidade do julgamento, com o normal desenvolvimento dos atos processuais. 4. A jurisprudência desta Corte está alinhada no sentido de afirmar a não imprescindibilidade da certeza da imparcialidade dos jurados para decretar-se o desaforamento, bastando o fundado receio de que reste comprometida (cf. HC 93.781/PE, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 1º-8-08). 5. No caso sob exame, o acórdão concessivo do desaforamento apontou circunstâncias suficientes à justificação da modificação da competência territorial. Além dos fundamentos expostos no voto condutor, o parecer da ProcuradoriaGeral da República põe em destaque “a grande influência exercida pelo réu na Comarca de Serra/ES (onde foi prefeito durante muitos anos), e não apenas, eventualmente, sobre a grande maioria dos jurados designados para seu julgamento. De se verificar, também, a própria complexidade do feito, ressaltando-se, inclusive, que muitos magistrados, de primeiro e segundo graus, se consideraram impedidos de participarem do feito” (fl. 228). 6. No que tange à manifestação juntada posteriormente pelo impetrante, tenho-a por refutada pelo Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves, no seguinte trecho de seu parecer: “Todavia, em que pese o argumento apresentado, razão não assiste ao impetrante. Como já observado, a influência exercida pelo paciente não se restringe aos jurados anteriormente convocados, mas sobre toda a Comarca de Serra. O desaforamento é, sem dúvida, a providência mais prudente”. Denego a ordem. 346 R.T.J. — 209 EXTRATO DA ATA HC 96.785/ES — Relator: Ministro Eros Grau. Paciente: Adalto Martinelli ou Adalton Martinelli. Impetrantes: José Júlio dos Reis e outros. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Decisão: A Turma, por votação unânime, indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelo Paciente, o Dr. José Julio dos Reis e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Francisco Adalberto Nóbrega. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Ellen Gracie, Cezar Peluso e Eros Grau. Ausente, licenciado, o Ministro Joaquim Barbosa. Subprocurador-Geral da república, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega. Brasília, 25 de novembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. R.T.J. — 209 347 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 172.082 — PA Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello Recorrente: Estado do Pará — Recorrido: Manoel Tocantins Lobato Recurso extraordinário – Cargos de assistente jurídico e de Procurador do Estado do Pará – Inexistência de relação de paridade – Equiparação ou vinculação de vencimentos – Impossibilidade – Inaplicabilidade da garantia da irredutibilidade de vencimentos pela ordem constitucional anterior – Impossibilidade da invocação de direito adquirido contra disposição normativa inscrita na Constituição Federal – Recurso extraordinário conhecido e provido. – O cargo de assistente jurídico não possui o mesmo conteúdo ocupacional nem compreende o mesmo complexo de atividades funcionais inerentes ao cargo de procurador do Estado, o que afasta a possibilidade jurídica de qualquer relação de paridade entre eles. – É vedada a equiparação ou a vinculação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal do serviço público, quer sob a égide da Carta Federal de 1969 (art. 98, parágrafo único), quer à luz da vigente Constituição de 1988 (art. 37, XIII). Precedentes. – Não há direito adquirido contra disposição normativa inscrita no texto da Constituição, eis que situações inconstitucionais, por desprovidas de validade jurídica, não podem justificar o reconhecimento de quaisquer direitos. Doutrina. Precedentes. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Primeira Turma, sob a Presidência do Ministro Sydney Sanches (RISTF, art. 37, II), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer do recurso e lhe dar provimento, nos termos do voto do Relator. Ausente, ocasionalmente, o Ministro Moreira Alves, Presidente. Presidiu o julgamento o Ministro Sydney Sanches. Brasília, 12 de dezembro de 1995 — Celso de Mello, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Celso de Mello: Trata-se de recurso extraordinário, tempestivamente interposto pelo Estado do Pará, contra acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça daquela unidade da Federação, que está assim ementado (fl. 113): 348 R.T.J. — 209 Proventos. Fere direito adquirido o ato da Secretaria da Administração que, em obediência à lei, extingue percentual de vantagem percebida pelo impetrante. (Grifei.) Sustenta, o Recorrente, que o acórdão em questão, além de haver vulnerado os preceitos inscritos no art. 98, parágrafo único, da Carta Federal de 1969 e nos arts. 39, § 1º e § 2º, 37, XI e XIII, 169, parágrafo único, I e II, da Constituição Federal de 1988, também infringiu a norma consubstanciada no art. 17 do ADCT/88. Em contra-razões, o ora Recorrido sustenta a validade do acórdão impugnado, eis que este nada mais fez – segundo alega – do que observar os princípios constitucionais da isonomia de vencimentos e do respeito ao direito adquirido, enfatizando, ainda, o servidor público em questão, que a sua situação jurídica, enquanto agente estatal, estaria amparada pela Lei estadual 5.321/86, que assegurou, ao titular do cargo de Assistente Jurídico, remuneração idêntica àquela fixada para o cargo de Procurador do Estado. O presente recurso extraordinário subiu a esta Corte em razão do provimento do agravo de instrumento deduzido pelo ora Recorrente. A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral, Dra. MARIA DA GLÓRIA FERREIRA TAMER, ao opinar nesta sede recursal, manifestou-se no sentido de que o presente recurso “não comporta provimento” (fls. 196/201). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): O ora Recorrido – que foi aposentado como Assistente Jurídico da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Estado do Pará (fls. 64/82) – impetrou mandado de segurança, perante o Tribunal “a quo”, contra ato da Administração local que lhe suprimiu vantagens alegadamente adquiridas com fundamento na Lei estadual 5.321/86, que estabelecia remuneração de valor igual para os cargos de Assistente Jurídico e de Procurador do Estado (art. 1º). O Tribunal de Justiça do Estado do Pará, ao conceder a segurança para que o servidor em questão continuasse a perceber os proventos “com as vantagens adquiridas através do artigo 1º da Lei nº 5.321, de 26 de julho de 1986”, asseverou (fls. 116/117): Pelo que consta dos autos o impetrante exerceu o cargo de Assistente Jurídico, percebendo vencimento igual ao de Procurador, nos termos do artigo 1º da Lei nº 5.321 de 26 de junho de 1986, que diz: “A remuneração do Cargo de Assistente Jurídico – Código GEP-SJ-200, integrante do Grupo de Serviços Jurídicos fica estabelecida em valor igual à fixada para o cargo de Procurador do Estado, Código GEP-PR-1300: § 1º – As disposições da presente Lei aplicam-se exclusivamente aos Assistentes Jurídicos regidos pelo Estatuto dos Funcionários R.T.J. — 209 349 Públicos Civis do Estado. § 2º – A categoria de Assistente Jurídico passa a ser integrada de classe única. Essa lei passou a vigorar em 26 de junho de 1986”. Dentro do período de vigência dessa lei o impetrante foi aposentado com as vantagens que tinha, inclusive a resultante da lei referida e a Gratificação de Nível Superior. Posteriormente à sua aposentadoria, é que na SEAD, Secretaria de Administração, através de sua Titular, achou por bem reduzir os vencimentos do impetrante, retirando-lhe a vantagem da Lei já citada sob alegação de que a mesma já havia sido revogada por lei posterior que desvinculou os vencimentos dos Procuradores dos Assistentes Jurídicos, o que causou prejuízo ao impetrante. A nova lei conservou o nível superior. É nesse ponto que está o direito líquido e certo do impetrante e que não cabe à Secretaria de Administração, fonte pagadora, cancelar parte dos proventos do impetrante, homologados através de acórdão do Tribunal de Contas do Estado. A nova lei substituiu a gratificação de 200% que vinha recebendo em face da lei revogada o que causou prejuízo ao requerente. Há, no caso, direito adquirido devendo permanecer invariável o percentual dado pela Lei nº 5.321 de 1986. Não se trata de ataque a lei nova que instituiu a Gratificação que fazia parte dos proventos do impetrante, pela Gratificação de Nível Universitário, mas o ato da Secretaria de Administração que fez a substituição nos seus proventos, da gratificação de 200% para a de Nível Superior, causando-lhe lesão ao direito já adquirido pois a aposentadoria do impetrante se deu dentro da lei, que previa o vencimento de Assistente Jurídico igual ao de Procurador. Tenho para mim que se impõe, a esta Corte, conhecer e dar provimento ao presente recurso extraordinário interposto pelo Estado do Pará. Sabemos, Senhor Presidente, que o ordenamento constitucional brasileiro revela-se hostil a qualquer tipo de regramento equiparativo ou vinculativo, de tal modo que a Carta Política, com a só exceção das hipóteses nela própria expressamente autorizadas, repele qualquer ensaio de tratamento remuneratório que importe em transgressão à cláusula fundamental que impede os Poderes constituídos de equiparar ou de vincular, em tema de remuneração, o estipêndio funcional devido aos agentes estatais. Impõe-se destacar que a Carta Federal de 1969 foi mais severa na proibição das equiparações e das vinculações em matéria de retribuição pecuniária devida ao pessoal do serviço público, eis que somente admitia a incidência desses mecanismos de definição remuneratória apenas em relação aos cargos públicos taxativamente enumerados no texto constitucional, enquanto que a vigente Constituição de 1988, além de autorizar a atuação dessas cláusulas em determinadas hipóteses também relacionadas em “numerus clausus”, permite, ainda, que o legislador comum, tendo presente a igualdade ou a similitude de atribuições funcionais, assegure, aos servidores públicos, “isonomia de vencimentos” (art. 39, § 1º). A questão ora em exame submete-se, no que concerne ao estatuto constitucional de regência, às diretrizes fixadas pela Carta Federal de 1969, sob cuja égide foi editada a lei estadual paraense, que, ao dispor sobre a remuneração 350 R.T.J. — 209 pertinente ao cargo de Assistente Jurídico, prescreveu que seria ela “estabelecida em valor igual” àquele fixado “para o cargo de Procurador do Estado (...)” (Lei 5.321/86, art. 1º, “caput” – fl. 19), cabendo enfatizar, por necessário, que foi esse ato legislativo aquele que forneceu, ao Tribunal “a quo”, a base normativa para reconhecer, em favor do servidor ora recorrido, o direito à percepção do mesmo estipêndio assegurado à categoria funcional erigida à condição de paradigma legal. Esse específico aspecto da discussão concernente às normas de referência aplicáveis à espécie “sub examine” foi bem exposto, e corretamente analisado, em suas informações, pela autoridade apontada como coatora (fls. 58/61): Com relação à Lei 5.321/86, é fato que foi esta revogada expressamente pela Lei nº 5.378/87. O argumento expendido em diversos Mandados de Segurança reside em que tal Lei, tendo sido revogada, ainda assim geraria direitos adquiridos aos seus beneficiários. Há ainda de ser considerado o fato de que tal Lei foi promulgada e também revogada sob a égide da Constituição anterior. No caso do impetrante haveria ainda de ser considerado o fato de ter sua aposentadoria se concretizado ao tempo da vigência da referida Lei. Vejamos esses argumentos, cada um de “per si”. De acordo com o parágrafo único do artigo 98 da Constituição anterior era vedada a equiparação ou vinculação, de qualquer natureza, para efeito de remuneração de pessoal do serviço público. Contam-se às dezenas as decisões do Colendo Supremo Tribunal Federal declarando a inconstitucionalidade de Leis Federais e Estaduais consagrando esse entendimento. Ainda de acordo com a Constituição anterior, somente os magistrados, e aqueles a eles equiparados, era resguardado o direito à irredutibilidade de vencimentos. Os demais funcionários públicos somente vieram a gozar dessa prerrogativa com o advento da Constituição de 1988. (...) Ora, a Administração Pública, no uso absolutamente legal e constitucional das prerrogativas que então vigiam, decidiu revogar a lei anterior, consagradora de equiparação, que entendia inconstitucional. Assim, não somente podia revogar a lei em tela, como não exorbitaria de suas prerrogativas se tal revogação provocasse a redução de vencimentos. Não dispunham os servidores públicos da garantia de irredutibilidade de vencimentos, nem poderiam invocar direito adquirido às vantagens da Lei revogada, pela natureza estatutária de suas relações com a Administração. “Não há direito adquirido à permanência de uma equiparação de vencimentos de funcionários. A lei que a outorgou pode ser revogada por outra, a qualquer tempo, cassando todos os efeitos da primeira” (“in” Jurisprudência da Irretroatividade, R. Limongi França, Ed. Revista dos Tribunais, 1982, pág. 187). Essa pois era a situação Jurídica vigente ao tempo da vigência e revogação da Lei 5.321/86. A relação entre a Administração e funcionário, de natureza estatutária, implicava tanto a possibilidade de redução de vencimentos, como também impedia a alegação de direito adquirido ao estatuto que estivesse em vigência, que poderia ser alterado a qualquer tempo pela Administração. R.T.J. — 209 351 A partir disso, a equiparação concedida pela Lei revogada conflitava diretamente com o parágrafo único do artigo 98 da Constituição Federal. (...) Obviamente que tendo sido revogada antes da vigência da Constituição de 1988, não se poderia falar em fenômeno de recepção pelo novo ordenamento jurídico. Sucede mais que, sendo a Lei em questão inconstitucional, à luz da Constituição de 1967, não poderia gerar direito adquirido nem mesmo para aqueles que já tivessem obtido sua aposentação ao tempo de sua vigência, pelo simples fato de que normas inconstitucionais não produzem efeitos, nem delas se originam direitos. (...) Sendo a norma que originou a equiparação inconstitucional, o que se pretende ver declarado incidentalmente por esse Tribunal, é fato que não há geração de direitos para os beneficiados, muito menos direitos adquiridos, e contra a Carta Magna não se adquire. Assim, a norma que originou a equiparação era inconstitucional, à luz da Constituição anterior e como tal deve ser declarada, não gerando efeitos ou direitos de qualquer espécie. Ademais disso, foi revogada, também ainda na vigência da Constituição anterior, quando tal era expressamente permitido, face à inexistência de direito adquirido de servidor à vantagem concedida pela Administração, que podia ser livremente retirada. Torna-se claro, a partir do que se evidenciou na discussão da presente causa, que, não obstante o indiscutível relevo de suas atribuições, o cargo de Assistente Jurídico não possui o mesmo conteúdo ocupacional nem compreende o mesmo complexo de atividades funcionais que se revelam inerentes ao cargo de Procurador do Estado. Essa essencial diversidade de conteúdo funcional de ambos os cargos permite distingui-los de modo bastante preciso, em ordem a afastar a possibilidade de reconhecimento da existência, entre eles, de qualquer relação de paridade, especialmente para efeito de identidade no pertinente tratamento remuneratório. Na realidade, os cargos em questão não se qualificam, a partir do próprio conteúdo ocupacional que lhes é peculiar, como expressões de uma situação funcional ontologicamente idêntica, razão pela qual torna-se decorrentemente inviável atribuir-lhes tanto igualdade de denominação quanto de retribuição pecuniária. Impõe-se registrar, ainda, por necessário, que recente tentativa de transformar o cargo de Assistente Jurídico em cargo de Consultor Jurídico, para o efeito específico de submetê-lo ao mesmo regime jurídico peculiar ao cargo de Procurador do Estado – procedimento este que claramente revela a essencial diversidade funcional entre os cargos em referência – frustrou-se quando esta Corte Suprema, ao julgar procedente a ADI 159/PA, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, declarou a inconstitucionalidade, dentre outras, da norma inscrita no art. 310, § 2º, da Constituição do Estado do Pará, precisamente aquela que formalizava a vedada equiparação (RTJ 147/376). 352 R.T.J. — 209 Cumpre assinalar que o Ministério Público do Estado do Pará, ao opinar, na presente causa, destacou a absoluta incompatibilidade da pretensão deduzida pelo servidor ora Recorrido em face do que prescreve o ordenamento constitucional, havendo, então, salientado, em prol da tese sustentada pelo Estado do Pará, ora Recorrente, o que se segue (fls. 105/107): No caso em exame, o IMPETRANTE faz repousar sua pretensão nos artigos 39, § 1º, da Constituição Federal e 30, § 1º, da Constituição Estadual, que tratam da isonomia de vencimentos. Ocorre que, em ambos os dispositivos, a isonomia só será reconhecida para CARGOS DE ATRIBUIÇÕES IGUAIS e CARGOS ASSEMELHADOS. Quando nos referimos à igualdade de atribuições, estamos diante de uma constatação fática, que é a identidade de condição ou categoria, como bem leciona HUGO NIGRO MAZZILLI em sua obra “O MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988” (Saraiva, 1ª edição, 1988, fls. 93). Por força do próprio termo, o ASSISTENTE JURÍDICO é um auxiliar técnico que exerce tal assessoramento graças aos conhecimentos especializados em Direito. O PROCURADOR DO ESTADO, ao contrário, embora necessite dos mesmos conhecimentos técnicos, vai mais além em atribuições, pois deixa de ser apenas um assessor para investir-se dos poderes de mandatário, exercendo o procuratório, tratando em juízo dos negócios do Estado. Há manifesta desigualdade de atribuições entre os dois cargos, pormenor que impede a extensão, ao ASSISTENTE JURÍDICO, como tratamento isonômico, de vantagens concedidas por lei ao PROCURADOR DO ESTADO. (...) (...) Por força da vedação contida no artigo 37, XIII, é impraticável a equiparação pura e simples do cargo de ASSISTENTE JURÍDICO ao de PROCURADOR DO ESTADO. Impende observar, ainda, que a legislação invocada pelo ora Recorrido – legislação essa expressamente revogada pela Lei estadual 5.378/87 – mostrava-se inconstitucional, quer sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 98, parágrafo único), quer à luz da vigente Constituição de 1988 (art. 37, XIII), que veda a equiparação ou a vinculação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal do serviço público. Não se pode perder de perspectiva, ainda, que, havendo sido a legislação invocada pelo ora Recorrido objeto de revogação por outro diploma legislativo (Lei estadual 5.378/87), não se pode falar, no caso, em garantia da irredutibilidade de vencimentos, eis que, antes da vigência da atual Constituição, somente determinadas categorias – dentre as quais não figuravam os ocupantes do cargo de Assistente Jurídico – gozavam desse benefício, circunstância essa que tornava possível, ao Estado, no que concerne aos servidores desprovidos dessa garantia constitucional, proceder à redução dos respectivos vencimentos a qualquer tempo, consoante proclamava a jurisprudência desta Suprema Corte (RE 66.989/GB, Rel. Min. ELOY DA ROCHA – RE 73.644/MG, Rel. Min. DJACI FALCÃO – RE 76.402/SP, Rel. Min. BARROS MONTEIRO): R.T.J. — 209 353 A situação do funcionário perante o Estado não é contratual, mas estatutária, segundo a doutrina dominante. Na garantia constitucional do direito adquirido não se compreende a irredutibilidade de vantagens dos funcionários como acontece com os magistrados. (RDA 33/92, Rel. Min. LUÍS GALLOTTI – Grifei.) Finalmente, e no que concerne ao suposto direito adquirido à percepção de vencimentos iguais aos de Procurador do Estado, invocado pelo ora Recorrido, tal alegação revela-se de todo improcedente. Com efeito, a norma transitória inscrita no art. 17 do ADCT/88 estabelece que os proventos de aposentadoria percebidos em desacordo com a Constituição “serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título” (grifei). Desse modo, o preceito transitório em questão impede que se atribua, com fundamento em suposto direito adquirido, legitimidade ao excesso pecuniário percebido pelo servidor público, eis que situações inconstitucionais não podem justificar o reconhecimento de quaisquer direitos (RE 174.193/ SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 07/12/94). Esse entendimento – segundo o qual não há direito adquirido contra o disposto na Constituição (RE 168.079/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – assenta-se no postulado da irrecusável supremacia das cláusulas constitucionais e reflete tanto a posição do magistério doutrinário (CARLOS MAXIMILIANO, “Direito Intertemporal”, p. 325, item n. 280; PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo VI/385392, 2ª ed., 1974, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/191, 1989, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/148-149, 1989, Saraiva; FRANCISCO CAMPOS, “Pareceres do Consultor-Geral da República”, vol. 29/386) quanto a orientação jurisprudencial dos Tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal (RDA 24/57 – RDA 34/205 – RDA 38/259 – RDA 54/215 – RDA 108/65 – RF 134/423 – RTJ 68/9-15). É por essa razão que JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (“Comentários à Constituição de 1988”, vol. IX/4.716, item n. 105, 1993, Forense Universitária), ao advertir que situações inconstitucionais não dão ensejo à aquisição de direitos, observa: Todo vencimento, toda remuneração, todos os adicionais, assim como todos os proventos de aposentadoria percebidos pelos servidores públicos devem encontrar base constitucional. Não há nenhum direito adquirido fundado a não ser em norma legal. A “contrario sensu”, toda percepção mencionada, percebida em desacordo com a Constituição, deverá ser reduzida ao limite desta decorrente, não se admitindo, na hipótese, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso, a qualquer título. (Grifei.) 354 R.T.J. — 209 Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço e dou provimento ao presente recurso extraordinário, para reformar, integralmente, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (fls. 113/117 e fls. 133/135), em ordem a denegar o mandado de segurança impetrado pelo ora Recorrido, mantendo, em conseqüência, a eficácia do ato administrativo contra o qual o servidor em questão insurgiu-se em sede mandamental. No que concerne à verba honorária, revela-se aplicável o enunciado constante da Súmula 512/STF. É o meu voto. EXTRATO DA ATA RE 172.082/PA — Relator: Ministro Celso de Mello. Recorrente: Estado do Pará (Advogado: Pedro Gordilho). Recorrido: Manoel Tocantins Lobato (Advogado: Manoel Tocantins Lobato). Decisão: A Turma conheceu do recurso e lhe deu provimento nos termos do voto do Relator. Unânime. Ausente, ocasionalmente, o Ministro Moreira Alves, Presidente. Presidiu o julgamento o Ministro Sydney Sanches. Presidência do Ministro Moreira Alves. Presentes a sessão os Ministros Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Celso de Mello e Ilmar Galvão. Subprocurador-Geral da República, Dr. Miguel Frauzino Pereira. Brasília, 12 de dezembro de 1995 — Ricardo Dias Duarte, Secretário. R.T.J. — 209 355 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 234.059 — AL Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Recorrentes: Jovacy da Costa Sobrinho e outros — Recorrido: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA Litisconsórcio ativo. Art. 109, § 2º, da Constituição Federal. Precedente da Suprema Corte. 1. O art. 109, § 2º, da Constituição Federal não impede a formação de litisconsórcio ativo de autores domiciliados em Estados-membros diversos daquele em que ajuizada a causa. Aos litisconsortes é facultada a opção pela propositura da ação em qualquer das possibilidades previstas no dispositivo constitucional. 2. Recurso extraordinário conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso extraordinário e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator. Brasília, 2 de setembro de 2008 — Menezes Direito, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Jovacy da Costa Sobrinho e outros interpõem recurso extraordinário, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão da Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, assim ementado: Constitucional. Processual. Agravo. Competência para julgar ação contra autarquia. Art. 109, § 2º da CF/88. Litisconsórcio. Aplicabilidade apenas aos autores domiciliados no Estado onde a ação foi intentada. I. A competência para julgar as causas em que for interessada entidade autárquica é do Juiz Federal (art. 109, § 2º, inciso I, CF/88); II. Tratando-se de causas intentadas contra a União deverão, as mesmas, ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal; III. Inadmissível o litisconsórcio dos autores domiciliados fora do Estado onde a ação foi intentada; IV. Agravo improvido. (Fl. 117.) 356 R.T.J. — 209 Alegam os Recorrentes contrariedade ao art. 109, § 2º, da Constituição Federal de 1988, haja vista que, havendo litisconsórcio ativo facultativo, sendo os autores domiciliados em estados-membros distintos, é facultado aos litisconsortes optarem pela propositura da ação no domicílio de qualquer um deles. Contra-arrazoado (fls. 156 a 166), o recurso extraordinário (119 a 123) foi admitido (fl. 174). O Ministério Público Federal, com parecer do ilustrado SubprocuradorGeral da República Dr. Miguel Frauzino Pereira, opina pelo provimento do recurso (fls. 180/181). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que indeferiu a formação de litisconsórcio dos autores nãodomiciliados em Alagoas nos autos de exceção de incompetência. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região desproveu o agravo ao fundamento de que se trata de competência do Juiz Federal, nos termos do art. 109, § 2º, I, da Constituição Federal, e que deve a causa ser ajuizada na seção judiciária em que for domiciliado o autor quando intentada contra a União, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu causa à demanda ou onde esteja situada a coisa ou, ainda, no Distrito Federal, sendo inadmissível o litisconsórcio dos autores domiciliados fora do estado onde ajuizada a ação. O extraordinário traz precedente da Suprema Corte, Relator o Ministro Moreira Alves (RE 94.027/RS, DJ de 16‑9‑83), assentando que quando há litisconsórcio ativo facultativo em causas ajuizadas contra a União, é “facultado aos litisconsortes optarem pela propositura da ação no domicílio de qualquer um deles”. Neste feito, o que se discute é a possibilidade de formação do litisconsórcio ativo no que se refere aos autores domiciliados fora do estado. A decisão entendeu que se trata de competência absoluta, nos termos previstos no art. 109, § 2º, da Constituição Federal. O acórdão, expressamente, manifestou-se contrário ao entendimento fixado pela Suprema Corte no Recurso Extraordinário antes indicado. O precedente é anterior à vigente Constituição. Resta examinar se o texto de 88 autoriza a modificação desse entendimento. Ao meu sentir a resposta é negativa. Vejamos. O texto estabelece que as “causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Ora, o que se verifica é a ausência de qualquer tipo de restrição no que concerne à opção conferida ao autor, que, por isso, é o R.T.J. — 209 357 juiz de sua conveniência para exercê-la, limitadas, apenas, as opções. Nesse sentido, não há motivo algum para que a formação do litisconsórcio ativo com os autores domiciliados fora do estado em que ajuizada corretamente a ação seja vedada. Ao revés, é recomendável que assim seja feito, certo que não existe nenhum óbice ao exercício do direito de defesa da União. Não há, portanto, violação do princípio da competência absoluta, porquanto a disciplina constitucional é que torna possível a opção, deixando-a ao alvedrio do autor o juízo de conveniência. Conheço do extraordinário e lhe dou provimento. EXTRATO DA ATA RE 234.059/AL — Relator: Ministro Menezes Direito. Recorrentes: Jovacy da Costa Sobrinho e outros (Advogado: George Sarmento Lins). Recorrido: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais renováveis – IBAMA (Advogado: Samuel Marques de Lima). Decisão: A Turma conheceu do recurso extraordinário e lhe deu provimento, nos termos do voto do Relator. Unânime. Ausentes, justificadamente, o Ministro Carlos Britto e a Ministra Cármen Lúcia. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Ricardo Lewandowski e Menezes Direito. Ausentes, justificadamente, os Ministros Carlos Britto e Cármen Lúcia. Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida. Brasília, 2 de setembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 358 R.T.J. — 209 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 248.248 — RJ Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Recorrente: Estado do Rio de Janeiro — Recorrido: Valéria de Carvalho Zonis Acumulação de cargos. Médico e perito criminal na especialidade de médico veterinário. Art. 37, XVI, c, da Constituição Federal. 1. O art. 37, XVI, c, da Constituição Federal autoriza a acumulação de dois cargos de médico, não sendo compatível interpretação ampliativa para abrigar no conceito o cargo de perita criminal com especialidade em medicina veterinária, como ocorre neste mandado de segurança. A especialidade médica não pode ser confundida sequer com a especialidade veterinária. Cada qual guarda característica própria que as separam para efeito da acumulação vedada pela Constituição da República. 2. Recurso extraordinário conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer do recurso extraordinário e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator. Brasília, 2 de setembro de 2008 — Menezes Direito, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Estado do Rio de Janeiro interpõe recurso extraordinário, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado: Constitucional. Administrativo. Funcionário público. Acumulação de cargos privativos de médico. Medicina veterinária. Exegese. Inadmissibilidade. – A Constituição da República consagra o princípio geral da inacumulação de cargos públicos, excepcionando apenas as hipóteses nela exaustivamente previstas, dentre elas a de dois cargos privativos de médicos (art. 37, XVI, “c”). – À luz do preceito constitucional que arrola às exceções ao mencionado princípio, tem-se como admissível a acumulação de um cargo de médico com um outro de perito criminal na área de medicina-veterinária. – A profissão de médico veterinário equipara-se à de médico, já que ambas atuam no campo da cura de doenças, pois enquanto aquela exige conhecimentos na R.T.J. — 209 359 área de Zooiatria, Zoologia e Zootecnia, com vistas à saúde dos animais, esta tem o seu campo de conhecimento no pertinente à saúde humana. – Recurso ordinário provido. (Fl. 179.) Sustenta o Recorrente violação do art. 37, inciso XVI, alínea c, da Constituição Federal, haja vista que “médico e veterinário são profissões diversas, ainda que se possa considerar que ambas cuidam da saúde. E a diferença vai além do óbvio (uma tratar de seres humanos e a outra, de animais). É o próprio regime de trabalho na realidade da vida que difere as duas profissões e que permitiu que os médicos tivessem, constitucionalmente, assegurado o benefício da acumulação. A par disso, a inegável relevância que a vida humana possui na escala humana de valores faz com que quem trata da saúde humana detenha profissão evidentemente diferente daquela detida por quem trata de animais; uma não se identifica com a outra. Quando a Constituição fez uso da palavra ‘médico’, empregou-a no sentido comum que se dá ao termo, sentido esse que não inclui, evidentemente, o de ‘veterinário’” (fls. 184/185). Sem contra-razões (fl. 187), o recurso extraordinário (fls. 181 a 185) foi admitido (fl. 188). Opina o Ministério Público Federal, com parecer do ilutrado Subprocurador-Geral da República Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, pelo provimento do recurso (fls. 197 a 199). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): A Recorrida impetrou ordem de segurança contra ato do Secretário de Estado de Administração que vedou a acumulação dos cargos de médica da Secretaria Municipal de São João de Meriti com o cargo de perita criminal de 3ª classe do quadro Permanente da Polícia Civil na especialidade de médica veterinária, ambos obtidos mediante concurso público. Alega que o art. 37, XVI, da Constituição Federal veda a acumulação de cargos, salvo a de dois cargos de médico, havendo compatibilidade de horário. A segurança foi denegada pelo Segundo Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao fundamento de que a “acumulação da impetrante não corresponde aos dois cargos privativos de médico como única exceção, do art. 37, XVI, ‘c’, da C. R., mais próxima, ainda que bem diversa, da situação ostentada pela impetrante” (fls. 134/135). Em recurso ordinário, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem admitindo a acumulação de um cargo de médico com outro de perito criminal na área de medicina veterinária. Segundo o acórdão, a “profissão de médico veterinário equipara-se à de médico já que ambos atuam no campo da cura de doenças, pois enquanto aquela exige conhecimentos na área de Zooiatria, Zoologia e 360 R.T.J. — 209 Zootecnia, com vistas à saúde dos animais, esta tem seu campo de conhecimento no pertinente à saúde humana” (fl. 179). Com razão o Estado do Rio de Janeiro. De fato, o que comanda o art. 37, XVI, c, da Constituição Federal é a acumulação de dois cargos de médico, não autorizando interpretação ampliativa para abrigar no conceito o cargo de perita criminal com especialidade em medicina veterinária, como ocorre neste feito. A especialidade médica não pode ser confundida sequer com a especialidade veterinária. Cada qual guarda característica própria que as separam para efeito da acumulação vedada pela Constituição da República. Conheço do extraordinário e lhe dou provimento para restabelecer o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que denegou a ordem. EXTRATO DA ATA RE 248.248/RJ — Relator: Ministro Menezes Direito. Recorrente: Estado do Rio de Janeiro (Advogado: PGE/RJ – Marília Monzillo de Almeida). Recorrido: Valéria de Carvalho Zonis (Advogados: Sillas Teixeira e outro). Decisão: A Turma conheceu do recurso extraordinário e lhe deu provimento, nos termos do voto do Relator. Unânime. Ausentes, justificadamente, os Ministros Carlos Britto e Cármen Lúcia. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministro Ricardo Lewandowski e Menezes Direito. Ausentes, justificadamente, os Ministros Carlos Britto e Cármen Lúcia. Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida. Brasília, 2 de setembro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 361 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 414.263 — MG Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto Agravante: Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais – IPSEMG — Agravado: José Cintra Pinto Constitucional. Previdenciário. Pensão por morte. Cônjuge varão. Exigência de invalidez. Ofensa ao princípio da isonomia. Decisão que reconheceu a cônjuge de servidora pública estadual o direito à pensão por morte. Precedentes do Plenário e de ambos os órgãos fracionários. 1. É firme o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que afronta o princípio constitucional da isonomia lei que exige do marido, para fins de recebimento de pensão por morte da mulher, a comprovação de estado de invalidez. 2. Precedentes: RE 385.397-AgR, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence; RE 433.135-AgR, da relatoria do Ministro Marco Aurélio; RE 452.615-AgR, da relatoria do Ministro Menezes Direito; RE 451.447-AgR, da relatoria do Ministro Eros Grau; e RE 562.365-AgR, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes. 3. Agravo regimental desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal negar provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, o que fazem nos termos do voto do Relator e por unanimidade de votos, em sessão presidida pelo Ministro Carlos Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Carlos Ayres Britto, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de agravo regimental contra decisão singular cujo teor é o seguinte: O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o RE 385.397-AgR, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, pôs fim à controvérsia ora em exame (sessão plenária de 29‑6‑07). Esta colenda Corte entendeu que afronta o princípio constitucional da isonomia a lei que exige do marido, para fins de recebimento de pensão por morte da mulher, a comprovação da condição de invalidez. Na mesma oportunidade, este Supremo Tribunal ressaltou que, no caso, não se trata de “estender ao cônjuge varão a presunção de dependência que favorece a mulher”, mas de deixar de impor a ele, cônjuge varão, “exigência desarrazoada” (Informativo STF 473). 362 R.T.J. — 209 Não divergindo dessa orientação, o aresto impugnado não merece reparos. Assim, tendo em conta as disposições do caput do art. 557 do CPC, aplico o entendimento do Plenário e nego seguimento ao recurso. 2. Pois bem, o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (IPSEMG) limita-se a afirmar que há decisões em sentido contrário acerca da controvérsia dos autos. 3. Mantenho a decisão agravada e submeto o recurso à apreciação desta Turma. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Tenho que o agravo não merece acolhida. Isso porque a decisão impugnada se lastreou em precedente do Plenário desta colenda Corte (RE 385.397, sob a relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence). Precedente com a seguinte ementa, na parte que interessa: (...) II – Pensão por morte de servidora pública estadual, ocorrida antes da EC 20/98: cônjuge varão: exigência de requisito de invalidez que afronta o princípio da isonomia. 1. Considerada a redação do art. 40 da Constituição Federal antes da EC 20/98, em vigor na data do falecimento da servidora, que não faz remissão ao regime geral da previdência social, impossível a invocação tanto do texto do art. 195, § 5º – exigência de fonte de custeio para a instituição de benefício –, quanto o do art. 201, V – inclusão automática do cônjuge, seja homem ou mulher, como beneficiário de pensão por morte. 2. No texto anterior à EC 20/98, a Constituição se preocupou apenas em definir a correspondência entre o valor da pensão e a totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, sem qualquer referência a outras questões, como, por exemplo, os possíveis beneficiários da pensão por morte (Precedente: MS 21.540, Gallotti, RTJ 159/787). 3. No entanto, a lei estadual mineira, violando o princípio da igualdade do art. 5º, I, da Constituição, exige do marido, para que perceba a pensão por morte da mulher, um requisito – o da invalidez – que, não se presume em relação à viúva, e que não foi objeto do acórdão do RE 204.193, 30-5-01, Carlos Velloso, DJ de 31‑10‑02. 4. Nesse precedente, ficou evidenciado que o dado sociológico que se presume em favor da mulher é o da dependência econômica e não, a de invalidez, razão pela qual também não pode ela ser exigida do marido. Se a condição de invalidez revela, de modo inequívoco, a dependência econômica, a recíproca não é verdadeira; a condição de dependência econômica não implica declaração de invalidez. 5. Agravo regimental provido, para conhecer do recurso extraordinário e negar-lhe provimento. 6. À derradeira, pontuo que a orientação do Pleno vem sendo aplicada pelos órgãos fracionários deste colenda Corte. Confiram-se, a propósito, entre outros, R.T.J. — 209 363 RE 433.135-AgR, da relatoria do Ministro Marco Aurélio; RE 452.615-AgR, da relatoria do Ministro Menezes Direito; RE 451.447-AgR, da relatoria do Ministro Eros Grau; e RE 562.365-AgR, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes. 7. Isso posto, nego provimento ao agravo regimental. 8. É como voto. EXTRATO DA ATA RE 414.263-AgR/MG — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravante: Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais – IPSEMG (Advogado: Cláudio José Resende Fonseca). Agravado: José Cintra Pinto (Advogado: Ana Paula Crosara de Resende). Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Ayres Britto. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner de Castro Mathias Netto. Brasília, 10 de fevereiro de 2009 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. 364 R.T.J. — 209 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 428.864 — SP Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Recorrente: Gilson Antônio Cardoso — Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo Direito penal. Recurso extraordinário. Homicídio culposo. Direção de veículo automotor. Constitucionalidade. Art. 302, parágrafo único, Lei 9.503/97. Improvimento. 1. A questão central, objeto do recurso extraordinário interposto, cinge-se à constitucionalidade (ou não) do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), eis que passou a ser dado tratamento mais rigoroso às hipóteses de homicídio culposo causado em acidente de veículo. 2. É inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas – conforme dados estatísticos que demonstram os alarmantes números de acidentes fatais ou graves nas vias públicas e rodovias públicas – impondo-se aos motoristas maior cuidado na atividade. 3. O princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações quando houver elemento de discrímen razoável, o que efetivamente ocorre no tema em questão. A maior freqüência de acidentes de trânsito, com vítimas fatais, ensejou a aprovação do projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97. 4. A majoração das margens penais – comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3º, do Código Penal – demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira envolvendo os homicídios culposos provocados por indivíduos na direção de veículo automotor. 5. Recurso extraordinário conhecido e improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer do recurso extraordinário e negar-lhe provimento, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 14 de outubro de 2008 — Ellen Gracie, Presidente e Relatora. R.T.J. — 209 365 RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra julgado do então Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, que negou provimento aos recursos de apelação interpostos contra sentença condenatória do recorrente e de co-réu pelo crime de homicídio culposo em decorrência de acidente de trânsito. Argumenta, o recorrente, que foi mantida sua condenação pela Corte estadual, por considerar que o art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), não é inconstitucional. Observa que o referido dispositivo comina pena-base variável de 2 (dois) a 4 (quatro) anos de detenção, além de suspensão ou proibição de se obter a permissão ou autorização de habilitação para conduzir veículo automotor, ao passo que o art. 121, § 3º, do Código Penal, prevê a pena-base variável de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção. Sustenta que tal tratamento diferenciado é inconstitucional por violar o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput), atribuindo pena maior a quem pratica homicídio culposo. O recorrente tem direito a um tratamento igualitário em comparação às pessoas que cometem homicídio culposo em casos em que não se encontram na direção de veículo. Assim, requer o provimento do recurso para o fim de ser reformado o acórdão, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 302, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro, determinando-se que sua pena seja aplicada consoante os critérios do art. 121, § 3º, do Código Penal. 2. Houve apresentação de contra-razões pela recorrida, no sentido da inadmissão do recurso ou de seu improvimento (fls. 299/306). 3. Decisão que admitiu o recurso extraordinário no Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (fl. 309). 4. Manifestação da Procuradoria-Geral da República no sentido do improvimento do recurso (fls. 364/365). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A questão central, objeto do recurso extraordinário interposto, cinge-se à constitucionalidade (ou não) do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), eis que passou a ser dado tratamento mais rigoroso às hipóteses de homicídio culposo causado em acidente de veículo. 2. A esse respeito, transcrevo trecho do voto do relator da apelação, que enfrentou o tema (fls. 255/256): 366 R.T.J. — 209 (...) O art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, ao estabelecer pena maior para homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, não é inconstitucional. O legislador, ao aprovar o Código de Trânsito Brasileiro, teve a intenção de tornar mais rigorosas e abrangentes as punições penais, até então tidas como brandas na legislação existente, atendendo ao anseio da sociedade, pois as estatísticas apontavam para um número muito elevado de infrações cometidas na direção de veículo automotor, principalmente, no caso de homicídio culposo. Por isso, ao criar novos tipos penais, o legislador tomou em consideração as condutas mais freqüentes que mereciam ser destacadas por seu desvalor. Considerando que a malha viária existente não comporta o afluxo de veículos de toda espécie, as infrações penais relacionadas com o trânsito de veículos automotores constituem um dos sérios problemas de criminalidade urbana, merecendo um tratamento diferenciado, inclusive quanto à quantidade de pena. Diga-se o mesmo para os fatos ocorridos nas rodovias. Assim, se alguém cometer o delito de homicídio culposo, na direção de veículo, incide o art. 302, do CTB e não o art. 121, § 3º, do CP, norma esta que continua em vigor para outras situações. 3. É inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas – conforme dados estatísticos que demonstram os alarmantes números de acidentes fatais ou graves nas vias públicas e rodovias públicas –, impondo-se aos motoristas maior cuidado na atividade. O princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações quando houver elemento de discrímen razoável, o que efetivamente ocorre no tema em questão. A maior freqüência de acidentes de trânsito, com vítimas fatais, ensejou a aprovação do projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97. A majoração das margens penais – comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3º, do Código Penal – demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira envolvendo os homicídios culposos provocados por indivíduos na direção de veículo automotor. 4. Concluo, pois, no sentido da constitucionalidade do art. 302, parágrafo único, da Lei 9.503/97. 5. Ante o exposto, conheço e nego provimento ao recurso extraordinário. É como voto. EXTRATO DA ATA RE 428.864/SP — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Recorrente: Gilson Antônio Cardoso (Advogado: Arnaldo Spadotti). Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Decisão: A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso extraordinário e negou-lhe provimento, nos termos do voto da Relatora. Ausentes, justificada- R.T.J. — 209 367 mente, neste julgamento, os Ministros Celso de Mello e Eros Grau. Presidiu este julgamento a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega. Brasília, 14 de outubro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 368 R.T.J. — 209 EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.399 — PR Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Embargante: Cooperativa Central de Laticínios do Paraná Ltda. — Embargado: Estado do Paraná Recurso. Embargos de declaração. Caráter infringente. Embargos recebidos como agravo. ICMS. Crédito escritural. Correção monetária. Previsão legal. Existência. Decisão agravada. Reconsideração parcial. Agravo regimental parcialmente provido. Na vigência de legislação estadual permissiva, aplica-se a correção monetária ao crédito escritural. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, preliminarmente, por unanimidade, conhecer dos embargos de declaração como recurso de agravo, e, também por unanimidade, dar parcial provimento, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 15 de abril de 2008 — Cezar Peluso, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de embargos opostos contra decisão do teor seguinte: 1. Trata-se de recurso extraordinário contra acórdão que reconheceu ao contribuinte o direito de corrigir monetariamente os créditos escriturais extemporâneos do ICMS. 2. Consistente o recurso. O aresto impugnado está em aberta desconformidade com a jurisprudência assentada da Corte e bem refletida nestas ementas: “Recurso extraordinário – ICMS – Saldo escritural – Correção monetária pretendida pelo contribuinte – Inadmissibilidade – Recurso de agravo improvido. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de não reconhecer, ao contribuinte do ICMS, o direito à correção monetária dos créditos escriturais excedentes, enfatizando, ainda, que essa recusa não configura hipótese caracterizadora de ofensa aos postulados constitucionais da não-cumulatividade e da isonomia. Precedentes.” (RE 231.195-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 9‑11‑01.) “Recurso extraordinário. Tributário. ICMS. Correção monetária dos débitos fiscais e inexistência de previsão legal para a atualização do crédito R.T.J. — 209 369 tributário. Alegação de ofensa ao princípio da isonomia e da não-cumulatividade. Improcedência. 1. Crédito de ICMS. Natureza meramente contábil. Operação escritural, razão por que não se pode pretender a aplicação do instituto da atualização monetária. 2. A correção monetária do crédito do ICMS, por não estar prevista na legislação estadual, não pode ser deferida pelo Judiciário sob pena de substituir-se o legislador estadual em matéria de sua estrita competência. 3. Alegação de ofensa ao princípio da isonomia e da não-cumulatividade. Improcedência. Se a legislação estadual só previa a correção monetária dos débitos tributários e vedava a atualização dos créditos, não há como falarse em tratamento desigual a situações equivalentes. 3.1 – A correção monetária incide sobre o débito tributário devidamente constituído, ou quando recolhido em atraso. Diferencia-se do crédito escritural – técnica de contabilização para a equação entre débitos e créditos, a fim de fazer valer o princípio da não-cumulatividade. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 205.453, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 27‑2‑98.) 3. Ante o exposto, valendo-me do art. 557, § 1º-A, do CPC, com a redação dada pela Lei 9.756/98, conheço do recurso e dou-lhe provimento, para afastar a correção monetária dos créditos escriturais do ICMS, invertidos, no ponto, os ônus da sucumbência. (Fls. 751-752.) A Embargante, conquanto esclareça que não se insurge contra a jurisprudência desta Corte, requer seja improvido o recurso extraordinário do Estado ora embargado, porque teria subsistido fundamento infraconstitucional não atacado por meio do recurso especial (retroatividade do Decreto estadual 2.944/93), o que atrairia a incidência da Súmula 283. Outrossim, ressalta ter havido “(...) um creditamento realizado em janeiro de 1996, portanto, na vigência do decreto estadual que garantiu a correção dos créditos, o que ensejaria, ao menos, a parcial procedência do feito, reconhecendo-se que, em 1996, havia norma estadual que determinava a correção monetária dos créditos de ICMS” (fl. 776), razões pelas quais requer o acolhimento dos embargos. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Dado o manifesto caráter infringente, recebo os embargos declaratórios como agravo regimental e tenho-o por consistente, em parte. 2. É que a jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que “(...) não incide correção monetária sobre créditos escriturais de ICMS sem que a legislação local contemple tal possibilidade, e de que é defeso ao Poder Judiciário concedê-la na omissão do legislador estadual” (trecho do voto do eminente Rel. Min. Sepúlveda Pertence no AI 563.778-AgR, DJ de 20‑10‑06). 370 R.T.J. — 209 Por decorrência lógica, tal entendimento conduz à conclusão de que, em face da existência de previsão legal local, torna-se aplicável a correção monetária dos créditos escriturais excedentes do ICMS. Assim vem decidindo esta Corte, como se lê à seguinte ementa exemplar: Agravo regimental em recurso extraordinário. Tributário. ICMS. Legislação do Estado do Paraná. Creditamento. Correção monetária do crédito fiscal. Alegação de ofensa ao princípio da isonomia e ao da não-cumulatividade. Improcedência. Correção monetária de créditos fiscais eventualmente verificados e comprovados. Direito que, por não estar previsto na legislação estadual, não pode ser deferido pelo Judiciário sob pena de substituir-se o legislador em matéria de sua estrita competência. Agravo regimental não provido. (RE 344.671-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ de 21‑3‑03. Grifos nossos.) Colho do voto do eminente Relator: (...) 4. É de ver-se que, no caso em exame, a decisão agravada deixou assente que o direito ao creditamento do ICMS era vedado pela legislação tributária do Estado do Paraná e somente foi outorgado a partir da edição do Decreto estadual 2.944/93. No ponto primacial para o deferimento da pretensão, a controvérsia está pacificada nesta Corte: seja que haja previsão legal na legislação estadual, o direito não pode ser deferido por este Tribunal, sob pena de substituir-se o legislador ordinário em matéria de sua estrita competência. Para tanto, vide os precedentes mencionados na decisão de fl. 298. 5. Por isso mesmo, a correção monetária do crédito tributário não poderia ser deferida a período anterior à edição do decreto estadual permissivo, por falta de amparo legal. (...). (Grifos no original.) No mesmo sentido, cf. RE 400.430-AgR (Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 6‑8‑04), RE 324.685-AgR (Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 11‑5‑07), AI 563.778-AgR (Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 20‑10‑06) e AI 488.052-AgR (Primeira Turma, da minha relatoria, DJ de 17‑3‑06). 3. Isso posto, conheço dos embargos como agravo regimental e atendolhe em parte, para dar parcial provimento ao recurso extraordinário, afastando a correção monetária dos créditos escriturais do ICMS, ressalvados os créditos constituídos na vigência do Decreto estadual 2.944/93, invertidos, no ponto, os ônus da sucumbência. R.T.J. — 209 371 EXTRATO DA ATA RE 466.399-ED/PR — Relator: Ministro Cezar Peluso. Embargante: Coo perativa Central de Laticínios do Paraná Ltda. (Advogados: Wolmar Francisco Amélio Esteves e outros). Embargado: Estado do Paraná (Advogados: PGE/PR – César Augusto Binder e outros). Decisão: A Turma, preliminarmente, por votação unânime, conheceu dos embargos de declaração como recurso de agravo, a que, também por unanimidade, deu parcial provimento, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves. Brasília, 15 de abril de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 372 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 505.794 — SP Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Agravante: Roberto Pessoa Filho — Agravada: Massa Falida de Banfort – Banco Fortaleza S.A. 1. Recurso. Extraordinário. Inadmissibilidade. Falta de prequestionamento. Comprovação de que a discussão da matéria constitucional foi adequadamente provocada. Decisão agravada. Reconsideração. Demonstrada a existência de prequestionamento, deve ser reapreciado o recurso. 2. Recurso. Extraordinário. Inadmissibilidade. Competência. Juízo falimentar. Execução. Créditos trabalhistas. Superveniente decretação de falência. Agravo regimental improvido. Compete ao juízo falimentar a execução de créditos trabalhistas com decretação superveniente da falência da devedora. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Brasília, 12 de agosto de 2008 — Cezar Peluso, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de agravo contra decisão do teor seguinte: 1. Trata-se de recurso extraordinário contra acórdão do Superior Tribunal do Trabalho e assim ementado: “Competência. Conflito positivo. Justiça trabalhista e juízo falimentar. Execução de crédito trabalhista. Falência superveniente. Juízo universal. Decretada a quebra, as reclamatórias trabalhistas prosseguirão na Justiça do Trabalho, mas os atos de execução dos seus julgados iniciar-se-ão ou terão seguimento no juízo falimentar, ainda que já efetuada a penhora, sob pena de se romperem os princípios da indivisibilidade e da universalidade do juízo de falência, com manifesto prejuízo para os credores. Conflito conhecido e declarada a competência do juízo falimentar.” (Fl. 187/188.) Insiste o Agravante no processamento do recurso extraordinário, sob o argumento de que a matéria teria sido prequestionada com a oposição de embargos R.T.J. — 209 373 de declaração ao Superior Tribunal de Justiça, o que, por si só, bastaria, conforme jurisprudência da Corte, razão pela qual requer a reforma do decisum (fls. 191-194). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Não subsiste, deveras, o fundamento da falta de prequestionamento. Mas nem por isso vinga o recurso extraordinário. 2. É que já decidiu esta Corte, no julgamento do CC 7.116 (Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, DJ de 23‑8‑02), pela competência do juízo falimentar para execução dos créditos trabalhistas com superveniente declaração de falência da empresa executada. Transcrevo trecho do voto da Ministra Relatora: (...) No tocante ao cerne da questão trazida neste conflito, tenho por competente o Juízo suscitante, uma vez que a natureza privilegiada do crédito trabalhista, conferida por força de lei, somente pode ser concebida no próprio âmbito do concurso dos credores habilitados na falência. O processo falimentar é uma execução coletiva, abarcando, inclusive, credores de mesma hierarquia, que não podem ser preteridos, uns pelos outros, pelo exaurimento do patrimônio da massa falida nas execuções individuais, impedindo-se, assim, o justo rateio entre seus pares, na execução falimentar. (...) (No mesmo sentido: AI 584.049-AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJ de 8‑8‑06; AI 585.407, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ de 17‑10‑06.) 3. Isso posto, nego provimento ao agravo. EXTRATO DA ATA RE 505.794/SP — Relator: Ministro Cezar Peluso. Agravante: Roberto Pessoa Filho (Advogados: Geraldo Magela Araújo Fonteles Júnior e outros). Agravada: Massa Falida de Banfort – Banco Fortaleza S.A. (Advogados: Maria Eliane Carneiro Leão Mattos e outros). Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 12 de agosto de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 374 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.853 — MT Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Agravante: Antenor Santos Alves Júnior — Agravado: Ministério Público Federal Direito processual penal. Agravo regimental. Repercussão geral. Prequestionamento. Ofensa direta à Constituição. Decisão monocrática. Competência criminal da Justiça Federal. Improvimento do agravo. 1. Agravo regimental interposto contra decisão monocrática que deu provimento ao recurso extraordinário, reconhecendo a competência da Justiça Federal para conhecer e julgar os crimes de redução à condição análoga à de escravo. 2. Ofensa direta à Constituição Federal, ao fazer expressa referência ao julgamento do RE 398.041 (Rel. Min. Joaquim Barbosa, realizado na sessão de 30‑11‑06), que reconheceu a competência da justiça federal para conhecer e julgar as causas relacionadas aos crimes de redução à condição análoga à de escravo (CF, art. 109, VI). 3. Prequestionamento decorrente da matéria haver constado da ementa do acórdão recorrido a referência à competência para julgamento dos crimes contra a organização do trabalho. 4. Agravo regimental improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 14 de outubro de 2008 — Ellen Gracie, Presidente e Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de agravo regimental interposto contra decisão monocrática que conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário do Ministério Público Federal e, assim, declarou competente a Justiça federal para a causa. Narra o embargante que o fato narrado na denúncia não dá conta de crime contra a organização do trabalho, e sim contra determinados trabalhadores. Somente quando o crime afeta a ordem econômica e social há competência da Justiça Federal, o que não é o caso dos autos. Esclarece que as supostas condutas delituosas atentaram contra direito individual dos trabalhadores envolvidos, atraindo a competência da Justiça estadual. R.T.J. — 209 375 Requer seja dado provimento ao recurso para o fim de reformar a decisão monocrática e, conseqüentemente, negar provimento ao recurso extraordinário. 2. Manifestação da Procuradoria-Geral da República no sentido do desprovimento do recurso (fls. 490/492). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. Transcrevo o teor da decisão monocrática embargada (fls. 472/473): Trata-se de recurso extraordinário em matéria criminal interposto com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal. O acórdão recorrido concedeu habeas corpus ao acusado por crime de redução à condição análoga à de escravo para anular os atos decisórios proferidos na ação penal. Determinou, ainda, a remessa dos autos à Justiça estadual. No caso, entendeu-se que não se trata de crimes contra a organização do trabalho, mas contra determinados trabalhadores, o que não atrai a competência da Justiça federal. O acórdão possui a seguinte ementa (fl. 357): Habeas corpus. Trancamento da ação penal. Redução a condição análoga de escravo. Competência. I – Não se tratando de crime contra a organização do trabalho, mas sim contra determinados trabalhadores, não é competente a Justiça Federal. Precedentes. II – Ordem concedida com remessa dos autos ao juízo competente. Alega-se violação ao art. 109, IV e VI, da Carta Magna. O Subprocurador-Geral da República Dr. Edson Oliveira de Almeida, em parecer de fls. 392-397, manifestou-se pelo provimento do recurso, tendo em vista que o crime de redução à condição análoga à de escravo é atentatório à organização do trabalho, sendo competente, portanto, a Justiça federal. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 398.041, Rel. Min. Joaquim Barbosa, sessão de 30‑11‑06, fixou a competência da Justiça federal para julgar os crimes de redução à condição análoga à de escravo, por entender “que quaisquer condutas que violem não só o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, enquadram-se na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações de trabalho” (Informativo 450). Assim, conheço do recurso extraordinário e dou-lhe provimento (art. 557, § 1º‑A, do CPC) para declarar competente a Justiça federal. Publique-se. 2. O pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário consistente na repercussão geral somente passou a ser exigido a partir do dia 3 de maio de 2007, ou seja, no momento em que houve a publicação da Emenda Regimental 21, de 30‑4-07. Assim, apenas com a implementação das normas necessárias à execução da Lei 11.418/06, baseada na referida emenda regimental, houve a necessidade de 376 R.T.J. — 209 demonstrar a repercussão geral de matéria constitucional para admissão do recurso extraordinário. No caso, o recurso extraordinário foi interposto em 14 de março de 2006, portanto em data anterior à publicação da Emenda Regimental 21/07, razão pela qual não era exigível do recorrente demonstrar a repercussão geral. 3. O então Relator do recurso extraordinário reconheceu, de modo implícito, que o acórdão recorrido do TRF da 1ª Região provocou ofensa direta à Constituição Federal, ao fazer expressa referência ao julgamento do RE 398.041 (Rel. Min. Joaquim Barbosa, realizado na sessão de 30-11-06), que reconheceu a competência da Justiça Federal para conhecer e julgar as causas relacionadas aos crimes de redução à condição análoga à de escravo (CF, art. 109, VI). A matéria foi expressamente prequestionada no TRF da 1ª Região, tendo inclusive constado da ementa do acórdão recorrido a referência à competência para julgamento dos crimes contra a organização do trabalho, matéria constitucionalmente prevista no art. 109, VI, da Constituição da República. Assim, não há qualquer reparo a ser feito na decisão agravada, sendo mister a negativa de provimento do agravo regimental. 4. Nesta Corte, após o julgamento acima mencionado, já houve confirmação da competência da Justiça Federal nos casos em que há imputação de prática do crime de redução à condução análoga à de escravo, podendo ser colacionados, a título meramente ilustrativo, os julgados no RE 197.670-AgR (Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 9‑5‑08) e no AI 604.041-AgR (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 31‑8‑07). 5. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É como voto. EXTRATO DA ATA RE 511.853-AgR/MT — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Agravante: Antenor Santos Alves Júnior (Advogados: Gustavo Freire de Arruda e outros). Agravado: Ministério Público Federal. Decisão: A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da Relatora. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Eros Grau e Celso de Mello. Presidiu este julgamento a Ministra Ellen Gracie. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega. Brasília, 14 de outubro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. R.T.J. — 209 377 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 535.922 — RS Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie Agravante: Estado do Rio Grande do Sul — Agravada: Associação Hospital de Caridade de Erval Seco ICMS. Imunidade. (Art. 150, VI, c, da CF.) Aquisição de mercadorias e serviços no mercado interno. Entidade beneficente. 1. A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da Constituição compreende as aquisições de produtos no mercado interno, desde que os bens adquiridos integrem o patrimônio dessas entidades beneficentes. 2. Agravo regimental improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto da Relatora. Brasília, 30 de setembro de 2008 — Ellen Gracie, Relatora. RELATÓRIO A Sra. Ministra Ellen Gracie: Eis o teor do despacho agravado: Trata-se de agravo contra decisão que negou processamento a recurso extraordinário fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, em face de acórdão que decidiu pela inexigibilidade do ICMS nas operações de importação de mercadorias destinadas ao ativo fixo. Alega-se violação ao art. 150, VI, c, da Carta Magna. O acórdão recorrido extraordinariamente está em consonância com a jurisprudência desta Corte, conforme se depreende do julgamento do RE 233.935-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 22‑10‑99; e do RE 203.502, Primeira Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 15‑3‑02, assim ementado: “– ICMS. Importação de bens por pessoa física para a prestação de seus serviços. – O Plenário desta Corte, ao julgar o RE 185.789, que versava hipótese análoga à presente, assim decidiu, por entender que, tendo a incidência do ICMS na importação de mercadoria como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, é inexigível esse imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte dele: ‘Recurso extraordinário. Constitucional. Tributário. Importação de bem por sociedade civil para prestação de serviços médicos. Exigência de pagamento do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro. Impossibilidade.’ 378 R.T.J. — 209 Recurso extraordinário não conhecido”. Assim, nego seguimento ao agravo (art. 557, caput, do CPC). (Fl. 166.) Pelas razões de fls. 180-182, insiste o agravante no conhecimento do presente agravo de instrumento e no processamento do recurso extraordinário, sustentando que a questão dos autos deve ser analisada sob a ótica da nova redação dada pela EC 33/01 ao art. 155, § 2º, IX, a, da Constituição. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. Não obstante a Emenda Constitucional 33/01 tenha alterado a redação do art. 155, § 2º, IX, a, da Lei Maior, como sustenta o Estado do Rio Grande do Sul, não merece prosperar a pretensão do agravante, porquanto não encontra amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O Plenário desta Corte, no julgamento do RE 210.251-EDv, DJ de 28‑11‑03, de que foi Relator para o acórdão o meu ilustre antecessor, Ministro Gilmar Mendes, prolator da decisão ora agravada, sustentou: Assim, antes de recomendar a adoção de uma interpretação que enfatize a necessidade de uma redução teleológica do art. 150, VI, c, da Constituição, a própria teleologia da disposição parece recomendar uma interpretação compreensiva do dispositivo, na linha enfatizada por Baleeiro e, mais recentemente, pelos Ministros Oscar Corrêa, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Sydney Sanches e Nelson Jobim. Trago, aqui, a jurisprudência desta Corte, sobre a imunidade tributária de entidades beneficentes, especificamente em relação ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Em reiterados julgamentos, a Segunda Turma decidiu que “não há invocar, para o fim de ser restringida a aplicação da imunidade, critérios de classificação dos impostos adotados por normas infraconstitucionais, mesmo porque não é adequado distinguir entre bens e patrimônio, dado que este se constitui do conjunto daqueles. O que cumpre perquirir, portanto, é se o bem adquirido, no mercado interno ou externo, integra o patrimônio da entidade abrangida pela imunidade. (RE 203.755/ES, DJ de 8‑11‑96; RE 193.969/SP, DJ de 6‑12‑96; RE 186.175, DJ de 13‑12‑96; RE 225.671/SP, DJ de 23‑10‑98; e AI 389.118/SP, Rel. Min. Carlos Velloso; RE 141.670-AgR/SP, DJ de 2‑2‑01; e RE 237.497-AgR/SP, DJ de 18‑10‑02, Rel. Min. Nelson Jobim.) Na linha desses precedentes, a ora agravada, entidade de assistência social sem fins lucrativos, goza de imunidade tributária quanto ao ICMS nas importações, independentemente de se tratar de patrimônio, renda ou serviços. O que importa indagar é se o bem adquirido integra o patrimônio dessas entidades. 2. Nego, portanto, provimento ao agravo regimental. R.T.J. — 209 379 EXTRATO DA ATA AI 535.922-AgR/RS — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Agravante: Estado do Rio Grande do Sul (Advogados: PGE/RS – Karina da Silva Brum e outros). Agravada: Associação Hospital de Caridade de Erval Seco (Advogados: Renato Lauri Breunig e outros). Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto da Relatora. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão a Ministra Ellen Gracie e os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Joaquim Barbosa. Compareceu à Turma o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Tribunal, a fim de julgar processos a ele vinculados, assumindo, nesta ocasião, a Presidência da Turma, de acordo com o art. 148, parágrafo único, do RISTF. Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves. Brasília, 30 de setembro de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. 380 R.T.J. — 209 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 536.881 — MG Relator: O Sr. Ministro Eros Grau Agravante: Convap Engenharia e Construções S.A. — Agravado: Município de Belo Horizonte Agravo regimental no recurso extraordinário. Apresentação tardia de documento comprobatório da tempestividade. Impossibilidade de apresentação posteriormente à interposição do recurso extraordinário. 1. Incumbe ao Recorrente, no momento da interposição do recurso, o ônus da apresentação de elementos suficientes, incontestáveis, que demonstrem sua tempestividade, sendo impossível fazê-lo quando os autos já se encontrarem neste Tribunal. Precedentes. 2. Permanecem incólumes a jurisprudência desta Corte e o preceito disposto no art. 115 do RISTF. Agravo regimental a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos e nos termos do voto do Relator, desprover o recurso de agravo. Brasília, 8 de outubro de 2008 — Eros Grau, Relator. DEBATE O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, eu gostaria de ponderar à Corte, como já o fiz noutra oportunidade, chegando até a convencer os membros da Primeira Turma, da qual se originou o precedente invocado, em que S. Exa. ficou vencido e a Turma me deu a honra de ser o Relator do acórdão. Este é o fato: ninguém tem dúvida de que o recurso é tempestivo. Objetivamente, o recurso é tempestivo. A existência de impedimento local não altera o fato. Antes, apenas reforça que o recurso é tempestivo. O Tribunal deixaria aqui de conhecer de recurso tempestivo, baseado em ônus que não consta da lei. O recorrente agiu de boa-fé. Nenhum recorrente deixaria de juntar comprovante da existência de causa impeditiva do decurso do prazo por descuido, mas, sim, por estar convicto de que o Supremo Tribunal sabe da existência daquela causa. Não toma cuidado adicional, porque a sua boa-fé está em que o Supremo tem conhecimento do fato impeditivo. Certidão a respeito devia ser dever do Tribunal local. Este é que tem de certificar a existência de causa R.T.J. — 209 381 local de suspensão ou interrupção do prazo. Não o recorrente, que está de boafé. Protocolou o recurso a tempo e a hora; quando surge dúvida, demonstra ao Supremo que o recurso é tempestivo. A mim, parece-me, com o devido respeito, extremo formalismo deixar de conhecer de recurso objetivamente tempestivo, quando o próprio Relator assim o reconhece, pois foi juntada a prova da tempestividade. E por que deixamos de conhecer o recurso? O Tribunal já é muito rigoroso em matéria de formação de instrumento. E este caso me parece singular pelo fato exatamente de o recurso ser tempestivo. Não há dúvida nenhuma sobre a tempestividade. Quando surgiu dúvida, o recorrente acorreu e mostrou que seu recurso é tempestivo. O Tribunal, em vez de reconhecer, como demonstrado, que o recurso é tempestivo, dele não conhece! O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): O eminente Ministro EROS GRAU, em seu voto, observou que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais somente editou a resolução mencionada 26 (vinte e seis) dias após a interposição do presente recurso extraordinário, a significar, portanto, que a parte recorrente, no momento em que deduziu o apelo extremo, não dispunha de meios para comprovar, oficialmente, a suspensão do expediente forense na Secretaria da Corte judiciária local. Parecer-me-ia incabível, presente referido contexto, que se impusesse, à parte recorrente, a produção de uma prova então inexistente. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Prova de um fato que ainda não ocorreu. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Não é bem isso. Esse é o argumento que ele usou. Depois, já em março, publicou-se uma resolução “regulamentando” os feriados futuros e os passados. Há de ter havido algum ato, porque o Tribunal não fecharia simplesmente as portas por obra do acaso. Posteriormente veio uma resolução que “regulamentou” os feriados durante todo o ano. Esse é o primeiro ponto. Essa circunstância posterior – que, eu diria, foi muito bem usada pelos Advogados – não obsta a necessidade de o recorrente, quando do seu recurso, apresentar uma certidão, do próprio Tribunal, de que no dia anterior não houve expediente. Suponha-se que essa resolução jamais viesse, que não houvesse uma resolução posterior. Ficaria ab aeterno, até o dia em que viesse essa resolução, ficaria aberta a possibilidade de o recorrente trazer aos autos, em agravo, essa futura resolução, que poderia, inclusive, não existir? Segundo – não quero ser insistente, absolutamente, o meu intuito não é fazer valer esse ou aquele ponto de vista –, há farta jurisprudência sobre a matéria. O art. 115 do Regimento Interno é expresso: Art. 115. Nos recursos interpostos em instância inferior, não se admitirá juntada de documentos desde que recebidos os autos no Tribunal, salvo: 382 R.T.J. — 209 I – para comprovação de textos legais ou de precedentes judiciais, desde que estes últimos não se destinem a suprir, tardiamente, pressuposto recursal não observado; II – para prova de fatos supervenientes, inclusive decisões em processos conexos, que afetem ou prejudiquem os direitos postulados; III – em cumprimento de determinação do Relator, do Plenário ou da Turma. O Sr. Ministro Cezar Peluso: A norma é expressa: “pressuposto recursal não observado”. O pressuposto recursal da tempestividade foi observado: o recurso é tempestivo; logo, não se lhe aplica essa norma regimental. Esta diz respeito a pressuposto processual não observado. No caso, o pressuposto processual da tempestividade foi observado, porque o recurso era tempestivo. Todos os pressupostos foram, aliás, observados! A despeito disso, para eliminarmos de uma vez toda dúvida, sugiro que a matéria seja submetida ao Pleno, por ser extremamente relevante. Não sei qual o conteúdo de mérito, mas enuncio que, em princípio, pode envolver um recurso importantíssimo. O Tribunal tem de tomar, no Plenário, decisão definitiva a esse respeito e uniformizar a sua jurisprudência. Penso que a melhor solução é submetermos a matéria ao Pleno. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Na parte final do meu voto, há ênfase na pretensão de pacificar o entendimento da Turma. Desse modo. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Indago: remetemos apenas esse ponto ou o mérito? O Sr. Ministro Cezar Peluso: Apenas essa questão do conhecimento do recurso. O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Há situações extraordinárias que ocorrem no plano local e que são desconhecidas por este Supremo Tribunal. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Esse é o problema. A parte está de boa-fé. Ela não imagina que o Tribunal desconheça o fato, mas, sim, que exista um sistema automático em que os feriados e os impedimentos locais são comunicados ao Supremo Tribunal. Portanto, interpõe de boa-fé o recurso tempestivamente. Vem o Tribunal, então, e decide que o recurso é intempestivo? Não pode ser; existe uma prova da tempestividade, e a parte a anexa ao processo. Como o Tribunal conclui, então, que essa prova não vale? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Se V. Exa. me permite, a tempestividade é objetiva, não subjetiva. Objetivamente, este caso foi intempestivo; é uma questão de contar nos dedos. Pode ser que houvesse a intenção de fazê-lo tempestivamente. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não. É intempestivo por quê? Não houve interrupção? Nada foi suspenso? Isso não é questão subjetiva. Dizer que é intempestivo por não ter sido observado o prazo é diferente. A pergunta é saber se havia alguma causa de suspensão ou interrupção do prazo. R.T.J. — 209 383 O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Mas, seguramente, é quarta-feira de cinzas; resumo, não é tão incomum assim. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Pois é. Esse é fato que nem precisava ser provado, porque a exceção é que tribunais trabalhem na quarta-feira de cinzas! O Sr. Ministro Cezar Peluso: Noutras palavras, o Tribunal tem de presumir que, na quarta-feira de cinzas, não havia expediente normal. Portanto, o recorrente não tinha de fazer prova do fato presumido. A prova seria apenas de fato contrário à presunção, isto é, que, na quarta-feira de cinzas, houve expediente integral, o que é, aliás, algo absolutamente raro. Eu, pelo menos, não conheço nenhum tribunal que trabalhe em horário integral na quarta-feira de cinzas. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Aqui se trabalha à tarde. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sim, mas à tarde, pela lei, isso não conta. Esse é o problema. O texto do Código de Processo Civil é expresso: que o expediente forense seja integral. Se for expediente forense diminuído por motivo “a” ou “b”, esse dia não se conta, sobretudo quanto ao último. O Sr. Ministro Cezar Peluso: O que equivale à hipótese, onde o expediente não foi integral. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O Código usa o vocábulo “encerrado”. Os prazos, no Supremo Tribunal Federal – qualquer Advogado sabe disso –, vencem na quarta-feira de cinzas. O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Na quarta-feira de cinzas, o expediente, neste Tribunal, inicia-se às 14 horas, o que torna inaplicável a regra de prorrogação inscrita no art. 184, § 1º, do CPC. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mas qual é a racionalidade da norma? Não permitir que se diminua o último dia do prazo. Se encurta por outro motivo, o princípio é o mesmo. Uma coisa é diminuir no final do expediente; outra coisa é diminuir no começo, mas em ambos os casos se diminui o último dia do prazo; e os prazos têm de ser contados com os dias integrais; não existe início ou fim de prazo em que o dia não seja integral. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Vamos levar ao Pleno? EXTRATO DA ATA RE 536.881-AgR/MG — Relator: Ministro Eros Grau. Agravante: Convap Engenharia e Construções S.A. (Advogados: Joaquim Lúcio Simões e outros). Agravado: Município de Belo Horizonte (Advogado: Gleyton Prado). Decisão: A Turma, por votação unânime, por proposta do Relator, deliberou submeter o exame da matéria ao Plenário do Supremo Tribunal Federal. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie. 384 R.T.J. — 209 Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Mario José Gisi. Brasília, 29 de abril de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. RELATÓRIO O Sr. Ministro Eros Grau: A decisão agravada tem este teor: A decisão impugnada foi publicada em 10‑2‑06 (certidão de fl. 304). O início do prazo recursal deu-se no dia 13 subseqüente e expirou-se no dia 1º de março daquele ano. Não obstante, consta da petição de fl. 306 que o recurso extraordinário somente foi interposto no dia 2‑3‑06. Daí a sua intempestividade. Nego seguimento ao recurso com fundamento no disposto no art. 21, § 1º, do RISTF. 2. O Agravante afirma que “realmente o prazo para interposição do recurso extraordinário venceu no dia 1º de março de 2006, mas, em razão do feriado do Carnaval, mais especificamente, a quarta-feira de cinzas, o termo final do prazo recursal foi prorrogado para o primeiro dia útil subseqüente, 2‑3‑06 (quintafeira), data em que efetivamente foi protocolada a petição, conforme reconhece a própria decisão agravada”. 3. Alega que esse feriado foi “regulamentado” pela Resolução 500/2006, editada pela Presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, publicada em 28 de março de 2006, que em seu art. 1º estabeleceu que “[n]ão haverá expediente no Tribunal de Justiça e nos órgãos da justiça de primeiro grau nos seguintes dias do corrente ano de 2006: (...) II – 27 e 28 de fevereiro e 1º de março – Carnaval – LC nº 59/01, art. 313, § 2º, inciso IV.”. 4. Observa, ademais, que a mencionada resolução foi publicada somente em 28‑3‑06, razão pela qual era impossível a sua anexação aos autos no momento da interposição do recurso, em 2‑3‑06. 5. Cita precedente desta Corte sobre a possibilidade de comprovação da tempestividade do recurso extraordinário em sede de agravo regimental. 6. Requer o provimento do recurso, “com o afastamento da intempestividade decretada pela r. decisão agravada e conseqüente seguimento do recurso extraordinário interposto”. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O precedente indicado pelo Agravante, RE 452.780, do qual fui o Relator originário, restou assim ementado, com a redação do Ministro Cezar Peluso, quando compúnhamos a Primeira Turma: R.T.J. — 209 385 Ementa: Recurso. Extraordinário. Prazo. Cômputo. Intercorrência de feriados de carnaval. Inexistência de expediente forense no último dia do prazo recursal. Petição protocolada no dia útil imediatamente ulterior. Tempestividade reconhecida. Prova da prorrogação só juntada em agravo regimental. Irrelevância. Agravo provido para cognição do extraordinário. Votos vencidos. Pode a parte fazer, perante o Supremo, em agravo regimental, prova da prorrogação do prazo de interposição e da conseqüente tempestividade de recurso extraordinário, por inexistência de expediente forense do tribunal de origem, no último dia. 2. Restei vencido nesse julgamento juntamente com o Ministro Sepúlveda Pertence. Mantenho, contudo, o entendimento que afirmei naquela oportunidade. Em razão da sua intempestividade e da impossibilidade da apresentação tardia do documento comprobatório da alegada tempestividade recursal, o presente recurso não deve prosperar. 3. O documento que comprova a inocorrência de expediente no Tribunal de origem na data indicada deveria ter sido juntado aos autos quando da interposição do recurso extraordinário, momento processual adequado para a comprovação da tempestividade do recurso. Nesse sentido, o AI 413.956-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 3‑9‑04; e o AI 495.223-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 22‑10‑04. 4. Leio, em voto do Ministro Sepúlveda Pertence, o seguinte trecho: “sendo o documento probante da tempestividade do recurso peça essencial, que há de instruí-lo no momento de sua formação, é ineficaz a complementação após o decurso do prazo legal, já operada a preclusão” (AI 500.700-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 25‑6‑04). 5. Também o que decidiu esta Corte no julgamento do RE 148.835-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 7‑11‑97: (...) o estudo da teoria geral dos recursos revela que o controle de admissibilidade das espécies recursais assiste, num primeiro momento, ao órgão competente do Tribunal a quo. A prolação de juízo positivo de admissibilidade, pelo Tribunal a quo, não tem, ante a provisoriedade de que se reveste tal ato decisório, o condão de constranger o órgão judiciário ad quem a conhecer do recurso interposto. Isso significa que o Supremo Tribunal Federal, nos recursos de sua competência – ainda que admitidos estes pela Presidência do Tribunal inferior –, pode, sempre, recusar-lhe trânsito nesta esfera jurisdicional, se e quando ausente o requisito da tempestividade. (...) O controle da tempestividade dos recursos na Suprema Corte – precisamente por constituir pressuposto recursal de ordem pública – revela-se matéria suscetível até mesmo de conhecimento ex officio pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente de qualquer formal provocação dos sujeitos da relação processual. 6. Em outro julgado – AI 288.066-AgR, também Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 30‑3‑01 – entendeu-se que “não se presume a tempestividade dos recursos em geral, pois incumbe a quem recorre o ônus processual de produzir, com base em dados oficiais inequívocos, elementos que demonstrem que a petição recursal foi efetivamente protocolada em tempo oportuno”. 386 R.T.J. — 209 7. Daí por que “saber se o recurso extraordinário é tempestivo constitui, em qualquer hipótese, preliminar não só ao exame do mérito, mas dos próprios pressupostos específicos para o processamento do recurso extraordinário” (AI 260.156-AgR, Relator o Ministro Néri da Silveira, DJ de 30-6-00). A prolação de juízo positivo de admissibilidade do recurso extraordinário pelo Tribunal a quo não inibe o reexame, pelo Supremo, dos pressupostos recursais. Os fundamentos em razão dos quais o Juízo de origem determinou o processamento da impugnação não vinculam este Tribunal no exercício de sua competência constitucional (AI 444.319-AgR, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 17‑10‑03; AI 357.900-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21‑6‑02; AI 340.891-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 3‑5‑02; RE 287.710-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 27‑9‑02). 8. O art. 115 do Regimento Interno desta Corte dispõe no seguinte sentido: “nos recursos interpostos em instância inferior, não se admitirá juntada de documentos desde que recebidos os autos no Tribunal, salvo no que tange a comprovação da existência de textos legais ou precedentes judiciais, desde que estes últimos não se destinem a suprir, tardiamente, pressuposto recursal não observado, e para a prova de fatos supervenientes, inclusive decisões em processos conexos, que afetem ou prejudiquem os direitos postulados, em cumprimento de determinação do relator, do Plenário ou da Turma”. 9. No caso, tratando-se de feriado local, cumpria ao recorrente solicitar à secretaria do Tribunal a quo que certificasse nos autos a ausência de expediente, do que resultaria justificada a contagem do prazo processual e a tempestividade do recurso. 10. Documentos que visem comprovar pressupostos recursais de admissibilidade de recurso não podem ser considerados, sendo tidos como extemporâneos, quando o processo já se encontrar nesta instância. Nesse sentido, o RE 346.582AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 14‑2‑03. 11. Mencione-se ainda outros julgados no mesmo sentido: Recurso extraodinário – extemporaneidade – Produção tardia do documento comprobatório da alegada tempestividade recursal – Impossibilidade de juntada posterior, no Supremo Tribunal Federal, de tal peça documental, desde que já existente à época da interposição do apelo extremo – Recurso de agravo improvido. (RE 434.231-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ de 28‑10‑95.) 1. A tempestividade do recurso, em virtude de feriado local por determinação do Tribunal a quo, que não seja de conhecimento obrigatório do Tribunal ad quem, deve ser comprovada no momento de sua interposição. (AI 455.219-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, SegundaTurma, DJ de 3‑9‑04.) Agravo regimental. Intempestividade. Alegação de suspensão do decurso dos prazos judiciais pelo provimento de número 877/2004 do Conselho Superior da Magistratura, em virtude da greve dos servidores do Poder Judiciário no estado R.T.J. — 209 387 de São Paulo, feita apenas no agravo regimental. Impossibilidade. Peça recursal já se encontra no Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 549.841, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 28‑10‑05.) Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Intempestividade do agravo de instrumento. 3. Feriado local. Suspensão de prazos. Necessidade de comprovação quando da interposição do agravo. Precedentes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 526.479, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ de 6‑10‑06.) 12. Nesse último, aliás, a Segunda Turma deste Tribunal já se apresentava com a atual composição, tendo o Ministro Cezar Peluso aderido ao entendimento nele consagrado. 13. Peço vênia ao Ministro Cezar Peluso, Relator para o acórdão do RE 452.780, no qual restei vencido, para concluir – e desta sorte pretendendo pacificar esse entendimento na Turma e no Pleno – no sentido de que incumbe ao recorrente, no momento da interposição do recurso, o ônus da apresentação de elementos suficientes, incontestáveis, que demonstrem sua tempestividade, sendo impossível fazê-lo quando os autos já se encontrarem neste Tribunal. Nego provimento ao agravo regimental. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, não é uma questão de desistência. Realmente me curvo às decisões, à jurisprudência da Corte, mas, com o devido respeito, a Corte deveria considerar um pouco a severidade com que trata alguns casos singulares. Este é um deles. O fato indiscutível – e isso é fato – é que o recuso é tempestivo. Não há nada no mundo jurídico que seja capaz de descaracterizar este fato: o recurso é tempestivo. Não obstante, a jurisprudência do Tribunal, cuja justificação está apenas no excesso de serviço e na necessidade de ser mais expedito, quer transformar este fato em outro, ou seja, que o recurso é intempestivo! O fundamento invocado pelo nosso ilustre e sempre Ministro Sepúlveda Pertence de que o Código exige a prova da tempestividade, a meu ver, com o devido respeito, não é correto. O art. 544, § 1º, não exige prova de tempestividade. Ele enuncia textualmente as peças que devem compor o instrumento do agravo e, entre elas, não está certidão de que o tribunal local não funcionou em determinada data, menos ainda que o Tribunal deva certificar que o agravo é ou não tempestivo, até porque o tribunal a quo não pode fazê-lo, porque esse juízo não lhe compete. A parte, de boa-fé – pois dificilmente se pode acreditar que a parte deixe de fazê-lo por algum outro motivo –, não apresenta certidão de que, naquela data, não houve expediente forense, mas de repente é surpreendida com o julgamento de que o seu recurso é tido por intempestivo – na verdade, é disso que se trata, porque se nega eficácia à prova da tempestividade. Quando a parte se vê, então, 388 R.T.J. — 209 surpreendida com juízo que, na sua boa-fé, não aguardava, parece-me justo que se lhe permita fazer prova da tempestividade. O fato incontestável é que o recurso é tempestivo. O Sr. Ministro Carlos Britto: V. Exa. me permite? O Sr. Ministro Cezar Peluso: Pois não. O Sr. Ministro Carlos Britto: Votamos coincidentemente em homenagem à instrumentalidade do processo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sobretudo, Ministro, não é nem a instrumentalidade do processo; é a verdade processual. O Sr. Ministro Carlos Britto: Vou prosseguir. E dissemos – agora, sim, em homenagem à verdade real – que era mais importante o fato em si da tempestividade do que o momento da comprovação. Dissemos isso. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente. V. Exa. tem toda razão. A verdade da tempestividade é mais importante do que o momento da sua revelação. O Sr. Ministro Carlos Britto: A partir daí, passei a ressalvar a meu ponto de vista e seguir a corrente majoritária. Não sei se V. Exa. também passou a ressalvar o seu ponto de vista. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não, depois daquele acórdão, é a primeira vez que me defronto novamente com a questão. Não tenho ressalvado meu ponto de vista, porque, talvez, esteja aguardando, com o devido respeito, que a Corte reflita um pouco mais sobre isso. A razão de deixar de conhecer um recurso pode implicar conseqüência prática danosa sobre o processamento e o conhecimento do recurso extraordinário, o último do qual a parte pode lançar mão, pelo só fato de que a parte não teria atendido a ônus que o tribunal criou como tal – na verdade, o Tribunal está acrescentando ao art. 544, § 1º, ônus que a parte não tem –, de fazer prova de uma tempestividade que ela jamais imaginou que o tribunal não reconheceria. Se a parte tem alguma dúvida de que o tribunal não reconhece, ela faz prova. Se reconhecermos que, de fato, é verdadeiro que, naquela data, não houve expediente e, por conseqüência, o recurso é tempestivo, como é que vamos afirmar, depois de reconhecer que o seja, que não o é? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): V. Exa. me permite? O Sr. Ministro Cezar Peluso: Pois não. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Só objetaria o seguinte: primeiramente, não se aplica o art. 544. Aqui é um recurso extraordinário, não um agravo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mais um motivo, porque no recurso extraordinário também não há essa exigência. No agravo, há ônus de indicação de algumas peças; no recurso extraordinário, nem isso há! O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Eu diria que o código não poderia exigir certidão de que o tribunal não trabalhou em determinado dia – ocasionalmente R.T.J. — 209 389 o último dia do prazo – porque o código não pode prever que seus prazos não sejam cumpridos. O que o código prevê é que todos os prazos sejam cumpridos, por isso ele não pode imaginar a hipótese de o prazo não ser cumprido. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro, o prazo foi cumprido. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O prazo não foi cumprido. O prazo venceu, e o recurso veio no dia seguinte. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Como não foi cumprido, Ministro? O prazo não venceu. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Aqui não se trata nem de feriado local, mas de fechamento do foro, e o próprio Código aponta que esse fenômeno prorroga o prazo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente, o Código é textual a respeito. O Sr. Ministro Marco Aurélio: O recurso é textual. Mais do que isso. Houve duas sinalizações quanto à tempestividade. A primeira, no juízo de admissibilidade, na origem, que poderia ter trancado o recurso porque extemporâneo. Não o fez, examinando os demais pressupostos. A segunda sinalização imagino esteja nas contra-razões. Claro que são apenas sinalizações e os pressupostos de recorribilidade devem ser apreciados de ofício. O que ocorreu na espécie, Presidente? No âmbito da Justiça Federal, a quarta-feira não é feriado – o art. 62 da Lei 5.010 não aponta quarta-feira como dia de descanso para aqueles que realmente curtiram o carnaval –, mas o Tribunal de Justiça resolveu não ter expediente nesse dia. Realmente surge o paradoxo: estaremos proclamando a intempestividade quanto a um ato que foi praticado no prazo legal. O Sr. Ministro Cezar Peluso: E nós reconhecemos que está no prazo. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mais do que isso, estaríamos dando tratamento diferenciado a recursos. Garanto que as apelações interpostas nessa data, como último dia do prazo, foram conhecidas. O Supremo, mesmo diante da demonstração inequívoca de que houve o fechamento do foro, vai continuar asseverando a extemporaneidade desse recurso? O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não, ele não pode fazê-lo, porque temos de reconhecer que o recurso é tempestivo. E o eminente Relator reconhece que o recurso é tempestivo. O que objeta é apenas que não se fez prova da tempestividade. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não estamos aqui no campo do agravo de instrumento, da deficiência do instrumento. O Sr. Ministro Cezar Peluso: A pergunta é: por que se reconhece que o recurso é tempestivo, então? Teríamos de dizer que há dúvida sobre a tempestividade. Mas não há dúvida nenhuma, porque foi juntada certidão de que o recurso é tempestivo. Então, o 390 R.T.J. — 209 Tribunal resvala em contradição interna. Ele diz: o recurso é tempestivo, porque juntaram uma decisão que prova isso, porém reconhece que não é tempestivo. O Sr. Ministro Carlos Britto: É uma intempestividade ficta. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Há mais. O Ministro Marco Aurélio agora aduziu argumento fundamental: não é caso de agravo; pior ainda, é caso de recurso extraordinário que o tribunal a quo podia declarar inadmissível por intempestividade, mas não o fez. O tribunal a quo, que emite juízo provisório de admissibilidade, admitiu o recurso no pressuposto de ser tempestivo. Se entendesse que era intempestivo, porque a quarta-feira não foi feriado, não teria admitido o recurso. No entanto, o tribunal a quo, que tinha o domínio do fato – para usar termos do direito penal –, admitiu o recurso. Chegando ao Supremo, este reconhece, diante da prova, que o recurso é tempestivo, mas decide que não conhece, porque é intempestivo! O Sr. Ministro Carlos Britto: É uma intempestividade ficta. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Contrariando a tempestividade real. O Sr. Ministro Carlos Britto: Tempestividade real e intempestividade ficta. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Todos insistem em que o processo é instrumento, é, como tal, importante e faz parte das garantias. Ele é instrumento; serve ao direito substancial. Este é o caso mais exemplar do caráter famulativo do processo em relação à verdade, e, mais, à verdade processual, porque a verdade processual aqui é que o recurso é tempestivo. Então, a mim me parece que o apego a essa jurisprudência, que tem razões respeitáveis, sobretudo para efeito de expedição dos seus serviços, de celeridade, sendo até – vamos dizer assim – pedagógico em relação aos ônus da parte, deve ceder à verdade processual que o Tribunal reconhece: que o recurso é tempestivo. Por que deixar de conhecê-lo? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Senhor Presidente, não obstante todas essas ponderações, eu quero manter o meu entendimento e fazer uma alusão à Sumula 639 e ao fato de que nós temos julgado ilícito, aqui, com uma freqüência sem par, inúmeros recursos. E estamos aplicando esse entendimento – e eu diria, até, que em nome da segurança jurídica – porque é um entendimento reiterado. Agora, se a Corte resolver mudar a sua jurisprudência, o seu entendimento, eu, evidentemente, cederei sem alterar o meu voto. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro, mas, nesse caso, nem a título de insegurança nós podemos falar, porque a parte contrária está segura de que o recurso é tempestivo, tanto que não argüiu a intempestividade nas contra-razões. Não há ninguém, aqui, em situação de insegurança. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Ministro, esse caso estava na Turma. Eu propus que fosse afetado ao Pleno porque ele passa a ser, de certa forma, um R.T.J. — 209 391 parâmetro para orientar o procedimento de todas as partes. Se ele simplesmente confirmar a nossa jurisprudência, será apenas um acórdão que confirmará a nossa jurisprudência, que é farta. Mas, se não for, efetivamente nós vamos instalar uma mudança, e, daí, a sua relevância. Eu não posso, num caso como esse, considerar única e exclusivamente a especificidade. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro, eu nem queria chegar a isso, porque talvez fosse excesso da minha parte, mas digo, com o máximo respeito a todos os pensamentos contrários, que este é caso típico de denegação de Justiça. O Tribunal reconhece que o recurso é tempestivo, mas deixa de conhecê-lo, porque seria intempestivo! Com o máximo respeito, sem qualquer laivo de intuito de ofensa ou de desrespeito a opiniões contrárias, este é caso que me deixa perplexo: por que não posso conhecer de recurso que reconheço ser tempestivo? Ah, porque temos uma súmula que diz isso! Está bem, mas todas as súmulas estão aí para serem repensadas, também. Nada é eterno. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Se V. Exa. me permitir: eu não reconheço como tempestivo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Não. Ele foi juntado fora de prazo. Ele não pode ser tempestivo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: O que foi juntado fora de prazo, Ministro? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Ele foi apresentado fora de prazo. O Sr. Ministro Cezar Peluso: O recurso? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Sim. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Como, fora de prazo, Ministro? O prazo não se escoou. O prazo terminou no dia seguinte, na quinta-feira. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Há comprovação de que foi fora do prazo, Ministro. O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não há prazo para juntar essa prova, Ministro. A lei não prevê nenhum prazo para juntar essa prova, exceto se o recurso já tivesse sido julgado, aí, sim, haveria preclusão. Em não tendo sido julgado ainda o recurso, noutras palavras, não tendo passado pelo juízo definitivo de admissibilidade do Tribunal ad quem, que é o nosso, é sempre oportuna a prova da sua regularidade. O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Porque era provisório. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, V. Exa. me permite? No preâmbulo das razões recursais, apontou-se porque o recurso seria tempestivo. 392 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ah, ainda está dito? O Sr. Ministro Marco Aurélio: Tendo em vista que o prazo é de quinze dias, o termo final ocorreu em 27 de fevereiro de 2006 (segunda-feira de carnaval), que foi prorrogado até o dia 2 de março de 2006, quinta-feira, em face do recesso forense decorrente do feriado de carnaval (de segunda a quarta-feira), razão pela qual é tempestiva a presente interposição. Isso foi asseverado pelo recorrente na peça introdutória do extraordinário. Exigir mais? O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Quarta-feira é dia de expediente forense. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ele apontou que seria recesso no Tribunal de origem. O Tribunal fechou nesse dia, não havendo expediente. Ele teve o cuidado de ressaltar esse aspecto. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor Presidente, com a vênia dos Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, eu vou acompanhar o Ministro Eros Grau na assentada jurisprudência da Corte. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, peço vênia aos Ministros Cezar Peluso, Carlos Britto e Marco Aurélio, pois parece-me que a questão é de falta de peças, que não foram juntadas no momento devido, e o Tribunal não poderia admitir isso depois, e sigo a jurisprudência também. VOTO O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, peço vênia ao Ministro Cezar Peluso e ao Ministro Marco Aurélio para me manter fiel à jurisprudência da Corte. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, com esse retomar de perspectiva, de análise do caso, eu vou pedir vênia ao Ministro Relator para prover o agravo. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, faço uma correção, porque presumi o que normalmente ocorre. Interposto o recurso, se tem as contrarazões, na espécie simples faculdade, já que não há, aqui, recurso retido daquele que as apresentaria, quando, então, se teria a peça como ônus processual. Mas não posso, Presidente, deixar de considerar certa peculiaridade. O próprio recorrente cuidou de explicitar o recesso, que apontou a apanhar a segunda, a R.T.J. — 209 393 terça de carnaval e a quarta-feira de cinzas. Fê-lo expressamente, em capítulo próprio. Indago: houvesse dúvida quanto ao funcionamento ou não do Tribunal de origem na quarta-feira, não seria o caso, até mesmo, de implementar-se a diligência? A meu ver, seria, mas o subscritor da peça – e o advogado tem fé pública, sob pena, inclusive, de responder por falsidade ideológica do que lançado – consignou expressamente que não houve expediente, houve o fechamento do foro, no Estado de Minas Gerais, na quarta-feira de cinzas. E, a teor do art. 184, inciso I, do Código de Processo Civil, o fechamento do foro no último dia do prazo recursal projeta o término para o primeiro dia útil, e, no primeiro dia útil, foi protocolado o extraordinário. Podemos, diante desse contexto, da clareza da peça recursal, simplesmente dizer que esse recurso foi interposto a destempo? É estreme de dúvidas a oportunidade recursal. Ninguém mais tem dúvida de que realmente o prazo foi projetado para a quinta-feira. E não estamos aqui a cogitar de instrumento malformado, ante traslado deficiente. Não é essa a espécie. Estamos a nos defrontar com situação concreta em que o recorrente teve o cuidado de ressaltar que não houve expediente na quarta-feira. Peço vênia, Presidente – e confesso que não tenho compromisso nem sequer com meus próprios erros –, para entender que há uma situação peculiar e, mesmo que não houvesse, não poderia potencializar a forma pela forma, em detrimento do direito substancial. Peço vênia para prover o agravo regimental. O Sr. Ministro Carlos Britto: Ou seja, V. Exa. não reduz a cinzas o recurso extraordinário – já que não houve expediente forense na quarta-feira de cinzas – interposto na quinta-feira. O Sr. Ministro Marco Aurélio: Teria o recorrente de incomodar aquele que exerce normalmente o juízo de admissibilidade na própria residência para receber o recurso no feriado? VOTO O Sr. Ministro Celso de Mello: Peço vênia para acompanhar o douto voto proferido pelo eminente Relator, eis que a decisão que S. Exa. proferiu no caso ora em exame ajusta-se, com integral fidelidade, à jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ 144/948 – RTJ 165/681-682 – AI 392.037-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – AI 471.839-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Sendo assim, e em face das razões expostas, nego provimento ao presente recurso de agravo. É o meu voto. 394 R.T.J. — 209 EXTRATO DA ATA RE 536.881-AgR/MG — Relator: Ministro Eros Grau. Agravante: Convap Engenharia e Construções S.A. (Advogados: Joaquim Lúcio Simões e outros). Agravado: Município de Belo Horizonte (Advogado: Gleyton Prado). Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, desproveu o recurso de agravo, vencidos os Ministros Carlos Britto, Cezar Peluso e Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, porque em representação do Tribunal no exterior, o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidiu o julgamento o Ministro Gilmar Mendes. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. ProcuradorGeral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Brasília, 8 de outubro de 2008 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 395 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 543.974 — MG Relator: O Sr. Ministro Eros Grau Recorrente: União — Recorrido: Olivinho Fortunato da Silva Recurso extraordinário. Constitucional. Expropriação. Glebas. Culturas ilegais. Plantas psicotrópicas. Art. 243 da Constituição do Brasil. Interpretação do direito. Linguagem do direito. Linguagem jurídica. Art. 5º, LIV, da Constituição do Brasil. O chamado princípio da proporcionalidade. 1. Gleba, no art. 243 da Constituição do Brasil, só pode ser entendida como a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito não refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu todo. 2. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 3. A linguagem jurídica corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem natural, que se há de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. Cada vocábulo nela assume significado no contexto no qual inserido. O sentido de cada palavra há de ser discernido em cada caso. No seu contexto e em face das circunstâncias do caso. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários, ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso discernido. A interpretação/aplicação do direito se faz não apenas a partir de elementos colhidos do texto normativo (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser). 4. O direito, qual ensinou Carlos Maximiliano, deve ser interpretado “inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”. 5. O entendimento sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido, conduzindo ao absurdo de expropriarem-se 150 m2 de terra rural para nesses mesmos 150 m2 assentaremse colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 6. Não-violação do preceito veiculado pelo art. 5º, LIV, da Constituição do Brasil e do chamado “princípio” da proporcionalidade. Ausência de “desvio de poder legislativo”. Recurso extraordinário a que se dá provimento. 396 R.T.J. — 209 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso extraordinário nos termos do voto do Relator. Brasília, 26 de março de 2009 — Eros Grau, Relator. PROPOSTA DE REMESSA AO PLENO O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Senhor Presidente, o que se discute neste recurso extraordinário é se a desapropriação das glebas onde foram localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas – art. 243 da Constituição – restringe-se à área efetivamente cultivada ou se estende a todo o terreno. Eu proponho que se afete ao pleno essa matéria, a meu ver extremamente relevante. EXTRATO DA ATA RE 543.974/MG — Relator: Ministro Eros Grau. Recorrente: União (Advogado: Advogado-Geral da União). Recorrido: Olivinho Fortunato da Silva (Advogado: Tarcísio Flores Pereira). Decisão: A Turma, por votação unânime, acolhendo proposta do Relator, submeteu o exame deste caso ao Plenário do Supremo Tribunal Federal. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa. Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Eros Grau. Ausente, justificadamente o Ministro Joaquim Barbosa. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo da Rocha Campos. Brasília, 11 de março de 2008 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador. RELATÓRIO O Sr. Ministro Eros Grau: discute-se neste recurso extraordinário se a desapropriação das glebas onde localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, nos termos do disposto no art. 243 da CB/88, restringe-se à área efetivamente cultivada ou se estende a todo o terreno. 2. O TRF da 1ª região decidiu que apenas a área onde efetivamente foi cultivada a maconha deve ser desapropriada, “em primeiro, pela literalidade do preceito, que fala em gleba, que é uma porção de terra não urbanizada, destinada à agricultura; em segundo, porque, por preceito constitucional, ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV), o que não seria observado se toda uma propriedade independentemente da sua extensão, R.T.J. — 209 397 fosse confiscada, sem indenização, pelo fato de, numa de suas glebas, terem sido localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas; e, em terceiro, porque, o perdimento da totalidade do imóvel, em maltrato ao princípio da proporcionalidade, traduziria de resto uma pena que atingiria de forma desastrada até mesmo a família do acusado, em violação ao preceito constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado” (fl. 259). 3. O Recorrente alega violação do disposto no art. 243 da Constituição do Brasil. 4. Sustenta que, “pela literal disposição da Constituição Federal, há a previsão de ser desapropriada a gleba de terra. Portanto, de acordo com o comando legal, a desapropriação deverá incidir sobre toda a gleba rural, não apenas sobre a parcela de terra em que foi efetivamente cultivada a planta psicotrópica” (fl. 271). 5. Afirma que, “se o intuito do legislador fosse o de determinar a desapropriação apenas da parcela em que foi cultivada a planta, teria deixado isso expresso na lei. Todavia, não foi isso que fez, já que, ao contrário disso, deixou expressa a ordem de expropriar a gleba” (fl. 271). 6. O Ministério Público Federal manifesta-se pelo não-provimento do recurso. Sustenta que o art. 243 da CB/88 “traz em seu bojo medida de caráter administrativo não atrelada ao processo crime, embora tenha natureza punitiva. Deve-se respeitar o princípio da proporcionalidade, podendo a expropriação ser parcial, ou seja, apenas na área efetivamente cultivada.” É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Trata-se de ação expropriatória proposta pela união com fundamento no disposto no art. 243 da Constituição do Brasil e no art. 1º da Lei 8.257/91. O proprietário do imóvel rural nele desenvolveu plantação de maconha. Na esfera penal foi condenado a nove anos de reclusão (art. 12 da Lei 6.368/76). 2. A sentença acolheu o pedido, decretando a perda da gleba, vale dizer, da totalidade da área da gleba. Note-se bem: o preceito constitucional menciona “as glebas”, glebas “onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas”. Essas glebas deverão ser imediatamente expropriadas. 3. O Tribunal Regional Federal entendeu, de modo diverso, que a expropriação a que respeita a constituição “deve limitar-se à área efetivamente cultivada, não devendo alcançar o restante do imóvel”. Isso desde a consideração de três argumentos: (i) gleba é parcela de um imóvel; (ii) o inciso LIV do art. 5º da Constituição dispõe que ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal; (iii) o perdimento da totalidade do imóvel afrontaria o princípio da proporcionalidade. 398 R.T.J. — 209 4. O argumento de que gleba seria determinada parcela de um imóvel é insubsistente. Gleba – toda a gente sabe disto – é uma área de terra, um terreno. Não uma porção ou parcela dessa área. É o imóvel, um imóvel, simplesmente. 5. As palavras não possuem, na linguagem do direito, significados diversos dos por elas assumidos na linguagem natural. Em outra ocasião observei1 que as linguagens consubstanciam sistemas de símbolos convencionais. Daí não existir nenhuma relação necessária entre as palavras (de um lado) e os objetos, circunstâncias, fatos ou acontecimentos (de outro) em relação aos quais as palavras cumprem suas múltiplas funções. A linguagem sendo um sistema de vocábulos convencionais, os significados das palavras ou expressões lingüísticas dependem sempre de uma convenção. Essa convenção – qual anota Carrió2 – pode ser explícita e ad hoc ou tácita e geral. Aí, no primeiro caso, as linguagens artificiais; no segundo, as linguagens naturais. Além disso, a convenção pode conduzir a definições léxicas (aquelas que recolhem os significados, sempre imprecisos, na linguagem natural) ou a definições estipulativas (as que se sustentam sobre as regras precisas de uso das palavras, da linguagem artificial). No uso da linguagem jurídica lançamos mão de palavras e expressões da linguagem natural ou definíveis em termos dela. Tomamos os termos de que fazemos uso da linguagem natural, até porque não praticamos o hábito – ou isso não nos é permitido – de cunhar palavras novas para expressar determinados significados, hábito desenvolvido pelos especialistas em outros ramos do conhecimento. 6. A linguagem jurídica corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem natural, que se há de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. De resto, cumpre ainda lembrarmos que as línguas naturais não sobrevivem fundando-se exclusivamente em uma sintática e em uma semântica, mas também sobre uma pragmática. Ou seja, como observa Umberto Eco3, “baseando-se em regras de praxe, que levam em consideração as circunstâncias e os contextos de emissão, e estas mesmas regras de praxe estabelecem a possibilidade dos usos retóricos da língua, graças aos quais as palavras e construções sintáticas podem adquirir significados múltiplos (como ocorre, por exemplo, com as metáforas)”. A linguagem jurídica prescinde, no entanto, de retórica. Cada vocábulo nela assume significado no contexto no qual inserido. 7. No art. 243 da Constituição gleba só pode ser entendida como propriedade. Propriedade sujeita a expropriação quando nela “forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas”. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários, ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso discernido. Nesse art. 243, gleba é a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito 1 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 222. 2 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., 224. 3 A busca da língua perfeita, trad. de Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2001. p. 43-44. R.T.J. — 209 399 não refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu todo. 8. Veja-se o contexto no qual o vocábulo se encontra: “[a]s glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, diz o preceito no bojo do qual a palavra é usada. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 9. Ora, como decorre do que observei linhas acima, o sentido de cada palavra há de ser discernido em cada caso. No seu contexto e em face das circunstâncias do caso. A interpretação/aplicação do direito se faz não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser)4. 10. Cuida-se, no caso, de uma gleba de 25,80 hectares, na qual, em área de 150 m², plantava-se maconha. Daí, até porque – como ensinava um Ministro deste tribunal, Carlos Maximilano5 – o direito deve ser interpretado “inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”, daí que o entendimento sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido. Pois conduz ao absurdo de expropriarem-se 150 m² de terra rural para nesses mesmos 150 m² assentarem-se colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 11. Não vejo como, destarte, conferir ao preceito outra interpretação senão a de que a expropriação há de abranger a totalidade da gleba de propriedade do recorrido. 12. Um segundo argumento é ainda adotado no acórdão recorrido, o de que o inciso LIV do art. 5º da Constituição dispõe que ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal. Ocorre que o devido processo legal foi corretamente observado no caso dos autos. A união propôs ação expropriatória contra o recorrido, que veio e vem sendo regularmente processada. O argumento – correto na medida em que, deveras, ninguém poderá vir a ser privado dos seus bens sem o devido processo legal – é impertinente. Não guarda absolutamente nenhuma relação com o caso. Há de ser de plano afastado. 13. Por fim o tribunal regional federal afirmou que “o perdimento da totalidade do imóvel afrontaria o princípio da proporcionalidade”. Essa é, porém, uma oposição ao que o Poder Constituinte estabeleceu. Oposição que não cabe ao 4 5 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., p. 35 e 97-98. Hermenêutica e aplicação do direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957. p. 210 (grifo no original). 400 R.T.J. — 209 Poder Judiciário formular. Diz-se, em outros termos, que a expropriação da totalidade da gleba onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas é desproporcional. Como se o Tribunal Regional Federal apontasse, corrigindo-o, um desvio do Poder Constituinte. Como se o “princípio” da proporcionalidade a ele, Poder Constituinte, se impusesse, limitando-o. O Poder Constituinte seria soberano nos limites da proporcionalidade... Não seria soberano! Uma coisa nunca vista! 14. Tenho reiteradamente discordado da banalização da proporcionalidade. Não irei uma vez mais bater nesta tecla. Desejo exclusivamente valerme, agora, de observação do Canotilho, atinente ao que ele mesmo chama de desvio do poder legislativo6. Faço-o adaptando o seu texto7 à situação de que se trata, para indagar se a fundamentação da decisão judicial pode assentar em “vícios” – digo vícios entre aspas – vícios produzidos no âmbito da liberdade de conformação do Poder Constituinte ou no exercício da soberania do Poder Constituinte. Não me abalarei, em nome do respeito que devo a esta Corte, tal a sua obviedade, a dar resposta a essa questão. Reporto-me unicamente ao que anotei em texto de doutrina8, quando me detive, criticamente, sobre o tema do controle da proporcionalidade e razoabilidade das leis pelo Supremo Tribunal Federal, expandindo-me inclusive em considerações a respeito da construção do Ministro Celso de Mello quanto a ele. Não vos cansarei reproduzindo neste passo essas anotações, que não obstante peço sejam tidas como agregadas a este voto. Dou provimento ao recurso extraordinário. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito: Senhor presidente, estou de acordo com a interpretação feita pelo Relator, parece-me a mais consentânea com a disciplina do art. 243, que faz menção à gleba e afasta, até mesmo, indenização do proprietário. A gleba aplicada aqui, no sentido de terra ou de área cultivada, há de ser a totalidade e não apenas uma parte dela. Acompanho o voto do Relator. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também eu acompanho. Eu havia feito umas breves observações e farei juntar. 6 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1317 et seq. 7 Ob. cit., p. 1320. 8 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., p. 291 et seq. R.T.J. — 209 401 VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, acompanho o Relator, assentando que se trata de uma verdadeira sanção que incide sobre o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. Interessantemente, é uma penalidade análoga àquela sanção acessória de que trata o art. 91, II, do Código Penal, que estabelece o perdimento de bens em favor da União, no que diz respeito aos instrumentos e aos produtos que se originam da prática criminosa. De mais a mais, não seria admissível expropriar-se apenas uma pequena porção de terra, onde estão efetivamente plantados os psicotrópicos, porque imaginemos que a desapropriação incidisse sobre meio hectare ou um quarto de hectare, aí o propósito do legislador-constituinte não estaria atendido, visto que pretendeu o constituinte exatamente utilizar a gleba para o assentamento de colonos para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. Portanto, com essas brevíssimas considerações, acompanho o eminente Ministro Relator, louvando o brilho de seu voto. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, também acompanho o voto do eminente Relator, apenas lembrando, nesse dispositivo do art. 243, a Constituição inova na linguagem em matéria de gleba ou terra ou propriedade rural, porque deixa de usar o substantivo desapropriação e usa expropriação. Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas (...) Porque essa é indenização. A expropriação pressupõe, não a sub-utilidade da propriedade do imóvel, não a falta de cumprimento da função social, pura e simplesmente, porque por falta de cumprimento da função social, no caso da grande propriedade rural, o que cabe é a desapropriação. Aqui o pressuposto da Constituição Federal é muito mais grave: a propriedade está cumprindo uma função antissocial, é outra categoria. São três as categorias: função social, falta de função social e função antissocial. Como a propriedade, uma gleba que é destinada à cultura ilegal de plantas psicotrópicas, passa a cumprir uma função antissocial, recebe da Constituição o mais severo dos tratamentos frente à propriedade privada; e esse mais severo tratamento é a expropriação pura e simples. Sem indenização, portanto. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Na verdade, alguns especialistas, ao invés de chamar de expropriação, tratam isso de verdadeiro confisco, porque não há indenização. O Sr. Ministro Carlos Britto: Nos seus efeitos, corresponde a confisco. 402 R.T.J. — 209 O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Confisco constitucional. É o perdimento do bem no plano do direito imobiliário. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Exatamente. O Sr. Ministro Carlos Britto: O parágrafo único do art. 243, aliás, fala em confisco. V. Exa. está certo. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: O caput diz expropriação, mas é confisco. O Sr. Ministro Carlos Britto: É confisco; é expropriação-confisco. O Sr. Ministro Cezar Peluso: É uma expropriação confiscatória. O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Quer dizer, é expropriação porque deve seguir o devido processo legal. Não é um confisco sumário, mas trata-se, na verdade, de um confisco. O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, acompanho o voto do eminente Ministro Relator. VOTO O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, também entendo que a interpretação do eminente Relator é corretíssima, e, além disso, a seu favor ainda conspiram outros dados, um dos quais eu já tinha anotado aqui, mas foi antecipado pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Em primeiro lugar, a norma constitucional não se refere a áreas plantadas, mas às glebas onde sejam encontradas as áreas plantadas. Esse é o sentido, vamos dizer, mais imediato que deflui do texto constitucional. E são coisas absolutamente diferentes áreas plantadas e gleba onde há área plantada. Depois, o contexto semântico, como mostrou o eminente Ministro Ricardo Lewandowski, não tolera outra interpretação, porque, se a norma destina o imóvel confiscado a assentamento de colonos, isso seria absolutamente inconcebível em terreno cuja área fosse absolutamente antieconômica do ponto de vista do cultivo. Além do mais, outra interpretação levaria a duas coisas. Levaria ao absurdo, por exemplo, de uma possibilidade teórica – e não pode ser desconhecida do ponto de vista prático – de o Autor do ilícito ficar com a totalidade do imóvel residual para continuar plantando. É óbvio. Ou seja, a finalidade da norma é opor uma sanção grave, porque tem o sentido de confisco reativo a um ato ilícito que considera grave pelo seu alto desvalor jurídico. Noutras palavras, não se pode subestimar a sanção constitucional para reduzi-la a uma dimensão que não atingiria a sua racionalidade de desestímulo a ato ilícito de grande repercussão do ponto de vista social. Acompanho inteiramente o eminente Relator. R.T.J. — 209 403 VOTO A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, também acompanho o eminente Relator e a maioria já formada. Apenas para recordar que, além de dissociada da letra constitucional a solução pretendida pelo Tribunal Regional, também é inviável, já que a legislação fundiária proíbe o desmembramento de terras em frações menores do que os módulos rurais, economicamente aproveitáveis, estabelecidos para a região. Por isso mesmo, eu colho da manifestação do Ministro Carlos Britto essa linha de raciocínio para também acompanhar o Relator. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, especialmente na quadra vivida, este julgamento ganha importância maior, porque sabemos que o tráfico e o consumo de drogas no País são muito problemáticos. O legislador constituinte de emenda não foi feliz quando utilizou vocábulo que não é consagrado sob o ângulo do Direito Civil, ou seja, ao inserir na Carta não a referência a imóvel, mas a gleba. Fico a imaginar, prevalecente a óptica do Regional Federal e considerada a segunda cláusula do art. 243 da Constituição Federal, reveladora do aproveitamento para assentamentos, o que ocorrerá caso a área plantada no imóvel – e surge a importância da matrícula existente no cartório correspondente – seja mínima, a levar, inclusive, a ter-se a localização de forma encravada, sem acesso à via pública? Haverá o esvaziamento do fim visado, a não ser que se crie uma servidão de passagem. Tomo o vocábulo “gleba”, contido no preceito constitucional, como sinônimo de imóvel. E o perdimento cominado é total, pouco importando, inclusive, que o plantador da erva não seja o proprietário do imóvel, porque também não há essa especificidade no próprio artigo. Acompanho o Relator no voto proferido e provejo o recurso interposto. VOTO O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Presidente): Eu também o faço nesse sentido. Entendo que a norma é clara e que também, de outro modo, nós não chegaríamos a bom resultado do ponto de vista funcional, teleológico, por todas as dificuldades já demonstradas nos diversos votos. Aqui, Ministro Eros Grau, é notório o abuso na aplicação do princípio da proporcionalidade. A rigor, não significa a desqualificação do princípio da proporcionalidade, mas levaria a um nonsense completo porque, sem dúvida nenhuma, ficaria sem sentido a aplicação da disposição. 404 R.T.J. — 209 EXTRATO DA ATA RE 543.974/MG — Relator: Ministro Eros Grau. Recorrente: União (Advogado: Advogado-Geral da União). Recorrido: Olivinho Fortunato da Silva (Advogado: Tarcisio Flores Pereira). Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, deu provimento ao recurso extraordinário. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa. Falou pela Advocacia-Geral da União o Ministro José Antonio Dias Toffoli. Presidência do Ministro Gilmar Mendes. Presentes à sessão os Ministros Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Brasília, 26 de março de 2009 — Luiz Tomimatsu, Secretário. R.T.J. — 209 405 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 547.063 — RJ Relator: O Sr. Ministro Menezes Direito Recorrente: Hélio Tavares Luz — Recorrido: Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro Tribunal de Contas estadual. Controle prévio das licitações. Competência privativa da União (art. 22, XXVII, da Constituição Federal). Legislação federal e estadual compatíveis. Exigência indevida feita por ato do Tribunal que impõe controle prévio sem que haja solicitação para a remessa do edital antes de realizada a licitação. 1. O art. 22, XXVII, da Constituição Federal dispõe ser da União, privativamente, a legislação sobre normas gerais de licitação e contratação. 2. A Lei federal 8.666/93 autoriza o controle prévio quando houver solicitação do Tribunal de Contas para a remessa de cópia do edital de licitação já publicado. 3. A exigência feita por atos normativos do Tribunal sobre a remessa prévia do edital, sem nenhuma solicitação, invade a competência legislativa distribuída pela Constituição Federal, já exercida pela Lei federal 8.666/93, que não contém essa exigência. 4. Recurso extraordinário provido para conceder a ordem de segurança. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Marco Aurélio, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer do recurso extraordinário e dar-lhe provimento para conceder a ordem, nos termos do voto do Relator. Brasília, 7 de outubro de 2008 — Menezes Direito, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Menezes Direito: Hélio Tavares Luz interpõe recurso extraordinário com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado: Recurso ordinário. Mandado de segurança. Agente público. Descumprimento de lei sob alegação de sua inconstitucionalidade. Impossibilidade. Licitações e contratos. Remessa prévia do edital. Controle pelos Tribunais de Contas. Princípios da legalidade e moralidade administrativa. Recurso ordinário não-provido. 1. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o controle dos atos praticados pelos agentes públicos passou a ser exercido com maior amplitude pelos 406 R.T.J. — 209 Tribunais de Contas os quais passaram a ter um maior controle preventivo destes atos. 2. Não é permitido a este egrégio Sodalício criar um controle de inconstitucionalidade a latere não contemplado pelo nosso ordenamento jurídico na medida em que não se deve dar respaldo a que um agente público se negue a cumprir preceito de lei ainda não afastado do nosso ordenamento jurídico. 3. Recurso ordinário não-provido. (Fl. 350.) Opostos embargos de declaração (fls. 356 a 359), foram rejeitados (fls. 395 a 403). Sustenta o Recorrente violação dos arts. 5º, incisos XXXV e LV, e 93, inciso IX, da Constituição Federal, haja vista que, “se o texto constitucional estabelece que nenhuma lesão de direito poderá ser subtraída ao Poder Judiciário, a apreciação da matéria relativa à constitucionalidade do ato normativo que motivou a aplicação da sanção objeto da lide torna-se impositiva para o órgão judicante” (fl. 449). Afirma também que o Tribunal de origem não examinou todas as questões suscitadas pelo Recorrente. Alega negativa de vigência dos arts. 113, § 2º, da Lei de Licitações (Lei 8.666/93) e 5º, inciso II, 37, caput, e 75 da Constituição Federal, uma vez que “as Cortes de Contas não exercem, de ordinário, função de natureza legislativa ou de criação do direito, não podendo, de conseguinte, inovar no cenário jurídiconormativo, de molde a instituir obrigações para o administrado e tipificar penalidades para o seu descumprimento” (fl. 454). Argumenta que “as regras internas baixadas pela Corte de Contas sequer guardam simetria com o art. 113, § 2º, da Lei nº 8.666/93, que autoriza os Tribunais de Contas a solicitar, pontualmente, os editais para a análise prévia. Tal conclusão restou límpida no parecer normativo proferido pelo i. Procurador Luís Roberto Barroso, sancionado pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro” (fl. 456), e que “não se pode aplicar multa a servidor que cumpre parecer da Procuradoria Geral do Estado, ao qual foi atribuído caráter normativo pelo Governador do Estado e, como tal, vinculante a toda administração pública direta e indireta, por força de expressa previsão em lei complementar estadual, máxime quando a conduta sancionada não se encontra prevista em lei, mas em ato regulamentar baixado pela própria Corte de Contas” (fl. 456). Aduz contrariedade ao art. 22, inciso XXVII, da Constituição Federal, na medida em que “é sabido que as normas legais relativas a licitações e contratos são reservadas à competência da União Federal” (fl. 457). Assevera afronta ao art. 71, inciso VIII, da Constituição Federal e aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista que “o texto constitucional vigente condiciona expressamente a aplicação de sanção pecuniária aos casos em que se constata ilegalidade de despesa ou de irregularidade de contas” (fl. 458). Menciona que “as contas do recorrente foram consideradas legais R.T.J. — 209 407 e regulares, sendo certo que nenhuma lesão foi ocasionada ao erário estadual” (fl. 459). Argúi negativa de vigência dos arts. 1º e 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, haja vista que “os servidores estaduais que, de boa-fé, cumprem estritamente ordens emanadas de seus superiores hierárquicos não devem e não podem ser vítimas do desentendimento de órgãos superiores de diferentes poderes do Estado. Enquanto tal desentendimento não for solucionado, no foro adequado, impõe-se reconhecer a legitimidade de atitudes que, como no caso concreto, foram pautadas por ordens emanadas de autoridade hierarquicamente superior, revestidas de legitimidade” (fl. 464). Contra-arrazoado (fls. 522 a 552), o recurso extraordinário (fls. 441 a 473) foi admitido (fl. 563). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): O Recorrente impetrou mandado de segurança contra decisão do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro que lhe aplicou multa, “com autorização expressa para cobrança executiva no caso de não pagamento, pelo fato de, no exercício do cargo de Chefe da Polícia Civil da Secretaria de Estado de Segurança Pública, não haver encaminhado à Corte de Conta cópia do Edital de Concorrência nº 08/97 e, por conseguinte, haver realizado a licitação sem que o Plenário tivesse proferido decisão definitiva sobre o tema, em controle prévio dos atos administrativos do Poder Executivo” (fl. 2). Afirma, em síntese, que não descumpriu orientação do Tribunal de Contas, considerando que seguiu orientação do Procurador do Estado, Dr. Luiz Roberto Barroso, aprovada pelo Procurador-Geral, Dr. Raul Cid Loureiro. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro denegou a ordem. Para o acórdão, sumário, houve descumprimento da Lei 8.666, de 1993, art. 113, § 2º, não havendo escusa de cumprimento a pretexto de cumprir parecer normativo emitido pela Procuradoria do Estado. No Superior Tribunal de Justiça, Relator para o acórdão o Ministro José Delgado, o recurso foi desprovido, ficando vencido o Ministro Teori Zavascki e a Ministra Denise Arruda. Os embargos de declaração foram rejeitados. O extraordinário foi admitido. O que se vai discutir neste extraordinário é a exigência feita pelo Tribunal de Contas em torno da imperativa remessa dos editais de concorrência para prévio controle. O cerne da argumentação do Recorrente é que o Tribunal de Contas “não pode aplicar multa a servidor que cumpre parecer da Procuradoria Geral do Estado, ao qual foi atribuído caráter normativo pelo Governador do Estado e, como tal, vinculante a toda administração pública direta e indireta, por força de expressa previsão em lei complementar estadual, máxime quando a conduta 408 R.T.J. — 209 s ancionada não se encontra prevista em lei, mas em ato regulamentar baixado pela própria Corte de Contas” (fl. 456). Há uma alegação de que violados os arts. 5º, LV, e 93, IX, da Constituição Federal ao argumento de que não teria sido respeitado o devido processo legal nem houve adequada fundamentação. Mas sem razão. A questão foi examinada no Superior Tribunal de Justiça com o voto prevalecente rechaçando a alegação de inconstitucionalidade, porque isso permite “que o agente público se negue a cumprir preceito de lei ainda não afastado do nosso ordenamento jurídico” (fls. 344/345). Por outro lado, admitiu, ao contrário do voto vencido, que o controle dos Tribunais de Contas, “além de preventivo, reveste-se de caráter educativo, impedindo o malferimento aos princípios da legalidade, eficiência e a todos os demais postos na Lei de Licitações. Temos aqui o que denominamos de princípios implícitos do controle da licitação uma vez que esta não é apenas controlada a posteriore mas, também, a priori, constituindo-se, pois, um fator a prestigiar a moralidade na prática do ato administrativo” (fl. 345). Os embargos declaratórios puseram bem o tema em torno dos arts. 2º, 22, XXVII, 5º, XXXVI e LV, 37, 71, VIII, e 75. Não há, na linha da jurisprudência desta Corte, lacuna de prequestionamento. Assim, examino o mérito da impugnação. Tenho que com inteira razão o Recorrente. O Ministro Teori Zavascki pôs a questão adequadamente. Vejamos. A penalidade foi imposta pelo descumprimento de formalidade que o Tri bunal de Contas considerou essencial, isto é, a remessa de cópias do edital de concorrência, embora não houvesse solicitação, não se apontando nenhuma irregularidade seja na licitação seja no contrato decorrente. A exigência está amparada em resolução e deliberação do Tribunal de Contas com apoio na Lei Complementar 63/90 e no art. 113, § 2º, da Lei federal 8.666/93. Considerou o Ministro Teori, ao meu sentir com absoluta correção, que o art. 22, XXVII, da Constituição Federal deu pela competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação. A Lei 8.666/93 estabeleceu no § 2º do art. 113 que os Tribunais de Contas “poderão solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópias do edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidade da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem determinadas”. Assim, o comando legal é para que o controle prévio seja realizado caso a caso, mediante expressa solicitação do Tribunal, daí a conseqüência da responsabilidade do agente de descumprir essa determinação. Há, portanto, uma dependência do pedido do Tribunal de Contas para que seja encaminhado o edital e da ocorrência de atos viciados no procedimento da licitação. Com isso, sendo da competência da União legislar privativamente sobre as regras gerais do procedimento de licitação e havendo Lei federal que estabelece que o controle prévio será efetuado mediante solicitação expressa do Tribunal em R.T.J. — 209 409 cada caso, padece de fundamento legal e constitucional resolução ou deliberação do Tribunal determinando o controle prévio automático. Por outro lado, mostrou o voto vencido do Ministro Teori Zavascki que não há conflito entre a Lei Complementar estadual e a Lei federal, mas, há, sim, invasão da competência privativa da União nos atos do Tribunal de Contas que inovam com a exigência da obrigação da Administração de remeter previamente os editais, sem que haja solicitação do Tribunal de Contas. Por isso, a penalidade imposta está baldia de fundamento porquanto apoiada em ato do Tribunal de Contas que impõe exigência fora da competência prevista no art. 22, XXVII, da Constituição Federal. Conheço do recurso e lhe dou provimento para conceder a ordem de segurança. Sem honorários. Custas ex lege. VOTO A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Eu gostaria somente de fazer algumas perguntas, pois não tive acesso aos autos. Cuidou-se neste processo de uma lei estadual sobre a matéria? Porque o art. 127 estabelece “normas gerais de licitação”, o que, aqui, para mim, torna-se matéria complexa. No Brasil, os juízes têm de definir o que são normas gerais e o que não são. Como se dá o procedimento? O edital é preparado e, cautelar ou preventivamente, examinado nas Procuradorias de Estado ou também nos órgãos de Tribunal de Contas. Digo isso, Ministro, porque, por exemplo, a Lei 9.444, que era a primeira lei que se seguiu a essa em Minas Gerais, estabelecia isso e nunca foi considerada inconstitucional, e nós tivemos de cumprir. E por que não foi considerada? Porque se entendeu que isso não era norma geral, era norma específica. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Pelo que percebi, não há lei em sentido formal e material no Estado do Rio de Janeiro derrogando a Lei 8.666/93, que é federal. Não existe essa lei. Há um ato interno do Tribunal de Contas. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Não é nem derrogar, Ministro, é porque, quando a Constituição estabelece normas gerais, ela deixa campo em todos os Estados e Municípios. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): V. Exa., então, aplicaria apenas no âmbito federal o § 2º do art. 113? A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Se houver uma lei estadual a cuidar de estabelecer obrigatoriedade, não vejo inconstitucionalidade alguma. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Submissão prévia? O Tribunal de Contas substituindo-se ao próprio administrador? A Sra. Ministra Cármen Lúcia: O Tribunal de Contas do Estado. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Sim, do Estado, substituindo-se ao administrador? Isso é o que não concebo. 410 R.T.J. — 209 A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Não, não se substitui. Sabe por quê, Ministro? O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Sim, mas veja, se assento que, necessariamente, o administrador precisa, de forma automática, encaminhar para aprovação os editais de licitação ao Tribunal de Contas do Estado, afasto a atuação dele, do órgão, como administrador. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Falo disso a V. Exa. com a experiência de ter sido Procuradora-Geral. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): É sábio o § 2º do art. 113 em comento no que pressupõe algo que, de início, se mostre irregular e seja alvo de uma denúncia. Então, o Tribunal pode solicitar o envio da peça, o envio do edital. O parecer da Procuradoria do Estado, da lavra do Doutor Luís Roberto Barroso, é neste sentido: se houver solicitação, atendam. Atendam porque está previsto em norma linear no território nacional, em norma geral quanto às licitações e à atuação dos tribunais de contas. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Para mim não é, e digo a V. Exa. com a experiência de quem foi Procuradora-Geral. A norma é extremamente cômoda. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Eu realmente não tenho experiência como Procurador-Geral de Estado! A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Não, e digo isso porque V. Exa. disse: não, estaria, sim, substituindo. É extremamente cômodo para o administrador quando se envia o edital, porque evita problemas preliminarmente. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Mas essa comodidade é que, a meu ver, contraria princípio básico, revelador da auto-administração. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Pois digo a V. Exa. que não é incomum de modo algum. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Fico a imaginar a adoção dessa prática no âmbito federal. Pararíamos o Tribunal de Contas da União, ante o número de licitações. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Sim, mas na esfera federal não precisamos discutir pela singela circunstância de haver uma norma. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O ilustre advogado deve aguardar. A Corte está debatendo. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Eu até discuto não com base nessa norma, por isso perguntei se há uma lei, porque todos os Estados deveriam ter feito, e normalmente fizeram, inclusive os Municípios, porque há um espaço incontestável de atuação do legislador estadual e municipal. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Vou responder a V. Exa. que a deliberação, a solução do Tribunal de Contas foi apoiada exatamente no art. 113, § 2º, da Lei federal 8.666/93. R.T.J. — 209 411 A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Agradeço a V. Exa. Então afasto o que para mim seria inconstitucional. Por exemplo, eu admito que a lei mineira não seria inconstitucional como outras leis de outros Estados poderiam ser, mas, não havendo norma e a base da norma do Tribunal de Contas do Estado do Rio sendo a norma federal, então, por isso é que inicialmente perguntei se haveria norma e agradeço a V. Exa. a resposta, porque esclareceu que não. A base é esta, e, sendo esta realmente, aqui há uma solicitação e não uma obrigatoriedade. Não havendo obrigatoriedade, não há como estabelecer, por resolução, cominações no sentido de multar alguém por não ter cumprido o que ele não era obrigado. Até me chama a atenção alguns aspectos que foram postos, não no voto de V. Exa., mas da tribuna, que são perigosos no campo do Estado de Direito. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Posso dar um dado que não vai alterar o raciocínio de V. Exa. de jeito nenhum, mas só para poder ficar bastante fiel. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: Claro, por favor. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): É que o Tribunal de Contas não identificou na licitação nenhuma irregularidade, nenhum vício. A multa foi imposta exclusivamente porque não houve a remessa, mas não houve nenhuma identificação de vício. Isso não altera o raciocínio de V. Exa., mas é bom só ficar claro que não existe nenhum vício. A Sra. Ministra Cármen Lúcia: É exatamente isso que eu estava dizendo, que me fundo exclusivamente nisso e deixo de me manifestar sobre qualquer outro dado, inclusive sobre o parecer do eminente constitucionalista Luís Roberto Barroso, absolutamente porque, nesse ponto, não posso aceitar, mas para dizer que o que foi dito relativamente à circunstância de que não teria havido dano ao erário e, portanto, não haveria como se fazer cominações é um raciocínio muito perigoso, porque, então, a lei não poderia ser imposta a qualquer administrador que não a cumprisse. A questão aqui não é essa, como bem esclarece V. Exa. É que, tendo sido fundamento legal exatamente a norma federal – neste caso é federal e não nacional – e sendo essa norma federal no sentido da solicitação, não haveria mesmo como, por meio de uma norma infralegal, que é a resolução, impor a cominação. Essa a razão pela qual eu acompanho, na conclusão, V. Exa., mesmo não tendo ouvido todo o voto, que, certamente, foi brilhante, mas deixo claro que o ponto nodular, para mim, da fundamentação seria este. Nesse sentido é que acompanho a conclusão de V. Exa. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu ousaria dizer que, mesmo que houvesse uma lei estadual determinando o controle prévio de todos os atos do Poder Executivo, eu acredito que essa lei seria, nesse aspecto, inconstitucional. Conforme V. Exa. bem reparou, parece-me possível que o 412 R.T.J. — 209 Tribunal de Contas, que é um órgão auxiliar do Congresso Nacional e do Poder Legislativo, segundo a dicção do art. 71, possa de fato, no exercício dessa competência, analisar previamente os atos de gestão absolutamente autônomos do Poder Executivo. Quando o eminente Ministro Carlos Alberto Direito fez o relatório, imediatamente eu imaginei que isso era uma situação vedada pela Constituição. Mas é certo que nós, nesta Turma, não temos a competência para examinar a matéria constitucional, seria competência do Plenário. S. Exa. simplesmente se ateve à análise da Lei 8.666, análise com a qual eu concordo. Acompanho, portanto, integralmente o raciocínio de S. Exa., data venia. VOTO O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, essa questão é instigante do ponto de vista teórico do equacionamento jurídico. É muito interessante, mas vamos nos ater à Constituição. A Constituição diz no art. 71 que: Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: Vamos ver o que compete ao Tribunal de Contas da União naquilo que me parece aplicável ao caso: VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas [que não é o caso, nem houve ilegalidade de despesa nem irregularidade de contas], as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário; [não houve dano causado ao erário.] Vale dizer, o Tribunal de Contas só pode aplicar sanções previstas em lei, de acordo, disse bem a Doutora Taís, com o inciso II do art. 5º da Constituição: II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; Não quero afirmar categoricamente que a possibilidade de aplicação de multa esteja sempre vinculada ao dano causado ao erário. À primeira vista sim, porém, não vou me aprofundar nisso, mas como fala em sanções previstas em lei, diz a Constituição, há uma lei no Estado no Rio de Janeiro, a Lei Complementar 63, de 1º de agosto de 1990, cujo art. 3º, sobre o Tribunal de Contas do Rio, diz o seguinte: Compete também ao Tribunal de Contas: XIII – impor multas por infração da legislação contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial [não houve infração a nenhuma legislação], de normas estatutárias correlatas [quero crer também que não haja normas estatutárias nesse sentido] por inobservância de prazos legais [também não é o caso], R.T.J. — 209 413 regulamentares ou por ele fixados [ou pelo Tribunal de Contas fixados], e por descumprimento de sua decisão (...) [que não é o caso.] Vamos ver a questão dos prazos fixados pelo próprio Tribunal de Contas. Há uma previsão constitucional sobre prazo a cargo dos Tribunais de Contas, no inciso IX do art. 71 da Constituição Federal: IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada a ilegalidade; Não houve ilegalidade, até porque o edital foi publicado. Então, por mais que eu procure na combinação da nossa Lei Magna com a própria Lei Complementar 63, do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, não encontro fundamento para esse tipo de imposição de cominação, de imposição de multa. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): É por isso, Ministro Carlos Britto, que acentuei à Ministra Cármen Lúcia que essa exigência foi calcada no art. 113, § 2º, daí a incongruência, independentemente de concordar, com a devida vênia da Ministra Cármen Lúcia, com relação à meta. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Uma interpretação ampliativa do § 2º do art. 113 da Lei de Licitações. O Sr. Ministro Menezes Direito (Relator): Foi uma interpretação ampliativa indevida, por deliberação. É claro, como disse a Ministra Cármen Lúcia, no respeitável entendimento de S. Exa., que, se houvesse uma lei estadual, poderse-ia fazer outro tipo de raciocínio, embora eu peça licença à Ministra Cármen Lúcia para entender que, havendo a lei federal especificamente determinado o âmbito da competência para este caso, não poderia haver o controle prévio pelo princípio da simetria na função dos Tribunais de Contas. Mas isso seria uma outra discussão, e o Ministro Carlos Britto foi muito preciso quando ele tomou ciência dos dispositivos da Lei Complementar 63/90, que não tem no elenco das competências do Tribunal o controle prévio dos atos administrativos de compra ou de serviços. O Sr. Ministro Carlos Britto: E a possibilidade de aplicação desse tipo de multa. Por isso também acompanho o eminente Relator. O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Poderia cogitar, inclusive, da submissão do contrato decorrente da licitação para ser formalizado pelo próprio Tribunal de Contas da União. Vejo a norma do art. 113, § 2º, como geral sobre licitações. Se formos ao parágrafo, para concluir de forma diversa, teríamos de assentar a pecha de inconstitucionalidade. Nele há alusão a tribunais de contas – tribunais de contas, no plural. Vejo, portanto, a norma não como simplesmente federal, a ser aplicada ao Tribunal de Contas da União, mas linear, levando em conta todo o território nacional, uma norma nacional, como ressaltou o Ministro Ricardo Lewandowski. No Plenário, caso me defrontasse com lei local dispondo de forma diversa, consideradas essas mesmas premissas, declararia a 414 R.T.J. — 209 inconstitucionalidade. Reconheço a existência de uma federação, uma certa autonomia legislativa dos Estados, mas não a ponto de derrogarem norma federal que entendo alicerçada, em termos de edição, no inciso XXVII do art. 22 da Constituição Federal, ou seja, da competência da União. É interessante a matéria. Ministro Carlos Ayres Britto, V. Exa. teria concluído o seu voto? O Sr. Ministro Carlos Britto: Acompanho o voto do eminente Ministro Relator. VOTO O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Acompanho o Relator no voto proferido. Caminharia, se não assentasse a premissa quanto à insubsistência do que exigido pelo Tribunal de Contas do Estado, para o empréstimo ao que se contém no rol do art. 71 da Constituição Federal, no tocante às sanções, de sentido estrito, levando em conta a multa. Não posso admitir sobreposição, não posso admitir que, naquela cláusula genérica quanto a outras sanções, haja, em duplicidade, a possibilidade de inserir outra multa senão a contemplada, expressamente, considerado o dano ao erário. Mas a matéria ficará para exame em processo próprio porquanto fica prejudicada com a concessão da ordem, primando-se pela economia e celeridade processuais – o máximo de eficácia da lei com o mínimo de atuação judicante. EXTRATO DA ATA RE 547.063/RJ — Relator: Ministro Menezes Direito. Recorrente: Hélio Tavares Luz (Advogados: Marcelo Salles Melges e outros e Thais Safe Carneiro). Recorrido: Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (Advogado: Sylvio Mário de Lossio Brasil). Decisão: A Turma conheceu do recurso extraordinário e lhe deu provimento, para conceder a ordem, nos termos do voto do Relator. Unânime. Falaram: a Dra. Thais Safe Carneiro, pelo Recorrente, e o Dr. Felipe Deiab, Procurador do Tribunal de Contas do Estado, pelo Recorrido. Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas. Brasília, 7 de outubro de 2008 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador. R.T.J. — 209 415 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 564.601 — RS Relator: O Sr. Ministro Cezar Peluso Agravantes: Elida Theresa Gelpi Ruhe e outros — Agravado: Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS 1. Recurso. Extraordinário. Contribuição previdenciária. Inativos. Interregno entre a EC 20/98 e a EC 41/03. Inexigibilidade. Decisão baseada em erro de fato. Reconsideração. Nega-se seguimento a recurso extraordinário conhecido por erro de fato. 2. Tributo. Contribuição social. Contribuição previdenciária de inativos. Restituição do indébito. Verba de natureza tributária. Juros de mora. Curso desde o trânsito em julgado da sentença. Aplicação do art. 167, parágrafo único, do CTN. Agravo regimental improvido. Precedente