Baleia na Rede ISSN: 1808-8473 Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura Os dois meninos: a infância em Vidas Secas Lilian Victorino Félix de LIMA1 O filme Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos é um material riquíssimo para nossa compreensão do cotidiano de famílias de migrantes nordestinos que enxergam nas capitais do Brasil a possibilidade de uma vida melhor. Também nos revela o sofrimento dessas famílias que vagueiam pelas terras áridas do sertão brasileiro em busca de um pedaço de terra para sua própria subsistência. Neste pequeno texto sobre o filme, observaremos em especial a vida das duas crianças que compõem a família do vaqueiro Fabiano e de sua esposa Sinha Vitória. Durante todo o filme essas duas crianças são designadas apenas como “os dois meninos”, um dos meninos, o mais velho, talvez tenha uns 9 anos e o outro mais novo provavelmente tenha algo entre 5 e 6 anos. Alguns autores que estudam o universo infantil dizem que o sentimento da infância corresponde à consciência da particularidade infantil e seria essa particularidade que distinguiria essencialmente a criança do adulto. Podemos ver alguns traços dessa particularidade no filme Vidas Secas, a começar pelo fato de que os filhos de Sinha Vitória e Fabiano não possuem nomes próprios que o distinguem de outras crianças, justamente porque eles representam todas as crianças brasileiras, vítimas da seca e principalmente, do descaso do poder público. Entretanto, apesar de não possuírem nomes, podemos inferir que simbolicamente essas crianças representam a esperança de dias melhores. Como muito se dizia na época em que o filme foi realizado, elas representam o futuro deste país. Numa das primeiras cenas, a família segue a pé num caminho arenoso em busca de um lugar para ficar. O sol castiga a todos, o menino mais velho não agüenta 1 Graduanda em Ciências Sociais pela FFC/CM Pg. 14 Baleia na Rede ISSN: 1808-8473 Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura prosseguir e fica no chão encolhido em posição fetal como quem busca a proteção e o conforto que conheceu no ventre materno. Alertado por Baleia, a cadela de estimação da família, Fabiano retorna até o ponto da estrada no qual o menino ficou caído e ralha com ele e, chamando-o de “condenado do diabo”, ordena que se levante e prossiga. Mas, apesar da braveza e diante da evidente exaustão do filho, Fabiano o carrega no colo até a próxima parada. Sensibilizados ao ver que o próprio pai chama seu filho de condenado do diabo, nos questionamos quem seria esse diabo que condena crianças a uma existência tão miserável e cruel. Seria este diabo o poder do capital que submete à todos ao seu ritmo de exploração e que, no caso brasileiro, vê nas crianças nordestinas um contingente de trabalhado excedente a ser submetido às suas leis implacáveis? Desconhecendo outras realidades, a grandeza do mundo, a cultura universal, aos meninos só resta a referência de seus pais. Pais esses que reconhecem sua condição de bicho, não podendo oferecer aos filhos sequer o sustento de cada dia quanto mais uma educação formal. Como toda criança que ainda não entrou na adolescência, período em que as crianças muitas vezes negam as influências dos pais, os meninos enxergam Fabiano como herói e procuram aprender através da imitação tudo o que podem. Assim tangem os bodes e montam os cabritos tal como faz o pai vaqueiro com os animais que cuida. As cenas em que o menino mais novo aparece admirado com os feitos de seu pai tentando amansar cavalo-bravo nos mostram no que se encerra sua perspectiva de vida: um dia ser vaqueiro como o pai. Por falta de opção, muitas crianças são impelidas desde cedo a seguirem os passos, muitas vezes vacilantes, de seus pais. Mas neste caso, Sinha Vitória espera que a vida de seus filhos seja diferente da sua. Apesar de sua ignorância e de seu jeito aparentemente rude de tratar os dois meninos, Sinha Vitória os protege todo o tempo dos perigos da vida. Existem autores que dizem que sem segredo [censura] não há infância, isto é, os pais não precisam mostrar todos seus problemas de uma só vez na frente dos filhos, o amadurecimento para a vida adulta pode vir aos poucos. Neste momento, a hierarquia simbólica da qual a criança faz parte se apresenta na cena em que Sinhá Vitória preocupa-se em retirar os filhos do cômodo quando vai discutir assuntos “de adulto” Pg. 15 Baleia na Rede ISSN: 1808-8473 Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura com Fabiano. Demonstrando-se uma mãe cuidadosa, ela põe a melhor roupa que os meninos têm para levá-los à festa religiosa que acontecerá na vila, os abraça para não ouvirem os tiros que matarão a cadela Baleia, melhor amiga dos meninos, os protege quando o bando de homens armados chega na cidade para resgatar um comparsa preso. Sem a possibilidade de transformar a vida de seus filhos, Sinhá Vitória e Fabiano trazem os meninos consigo pelos caminhos tortuosos do sertão para que afinal nos perguntemos: até que ponto, numa sociedade como a nossa que relega homens e mulheres à mais infame miséria, os pais podem decidir sobre a vida de seus filhos? Num certo momento do filme, os meninos vêem a possibilidade de afastarem-se do seu pai, único herói de sua infância, quando no meio da encruzilhada ele tem de escolher entre a família ou uma vida rebelde num bando cangaceiro. Para a alegria dos meninos, Fabiano escolhe ficar, sofrer e lutar ao lado da família. Os dois meninos se desenvolvem precariamente, possuem as características típicas de subnutrição: baixa estatura, magreza, ossatura pouco desenvolvida e a barriga saliente, provavelmente cheia de vermes, particularmente, o menino mais novo. Talvez estejam até comprometidos intelectualmente já que a desnutrição é fator prejudicial para o desenvolvimento intelectivo. Para desenvolverem suas potencialidades essas crianças precisam ter assegurado seu direito à vida, a existência, ao desenvolvimento físico que lhes é negado pelo Estado de direito. Apesar disto, observamos alguma fertilidade imaginativa, principalmente no menino mais velho, o que possibilita a ele alguma reflexão sobre sua difícil condição de existência. Percebemos isto na cena em que recebe um cascudo de sua mãe após perguntar o que é o inferno, palavra nova que ele ouviu na reza da benzedeira. Nesta cena, ele descobre que “existe” um lugar chamado inferno e, imediatamente, pergunta à sua mãe o que seja mas ela não faz questão de lhe responder. Então, ele se volta para o pai, mas este também não lhe responde pois não participa deste tipo de educação – apesar de demonstrar que se preocupa com bem estar físico das duas crianças: sem dar Pg. 16 Baleia na Rede ISSN: 1808-8473 Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura atenção ao que foi perguntado, Fabiano manda o menino pôr o pé num pedaço de couro para tirar-lhe o molde de uma sandália. Novamente o menino mais velho pergunta para a mãe que diz ser o inferno “um lugar quente para onde vão os condenados, cheio de fogueira, e espeto quente”. Neste momento, o menino contradiz um dogma religioso e pede provas sobre a existência deste lugar. Ele, então pergunta na maior boa fé, como quem pede uma prova material, se sua mãe já teria ido lá, nesse tal de inferno. A resposta vem em forma de punição; ele recebe uns cascudos da mãe e sai desconsolado para o quintal. Consternado, o menino mais velho num gesto de insubordinação repete em voz alta a palavra [inferno] pecaminosa para a religião e que para nós ganha conotação subversiva, pois propicia que ele desabafe sua frustração com o mundo em que vive. Num momento de reflexão, ele se percebe enquanto gente e vê sem ilusões o estado em que se encontra, isto é, de “condenado do diabo”. Num jogo de imagens que mais parecem um caleidoscópio, o menino olha para a terra, cujo acesso ao fruto lhe é negado, olha para a casa que poderia lhe servir de moradia decente, já que ele dormiu ao relento na noite anterior, olha para a galinha em cima da casa e para o gado, ambos propriedades do patrão que o menino pode cuidar mas não pode usufruir deles como alimento. Para ele, e tantas outras crianças que vivem na mesma situação no nordeste brasileiro, só restam os espinhos da caatinga que são semelhantes ao “espeto quente do inferno”. Por fim, após serem expulsos do sertão pela seca inclemente e o patrão que chega pontualmente junto com ela, a família prossegue a pé, terminando um ciclo, na mesma estrada de areia em que o filme começa e o mesmo barulho de carro de boi soa estridente aos nossos ouvidos, querendo incomodar mais do que a dura cena por nós presenciada. Mas, Sinha Vitória ainda têm esperança de na próxima cidade ver seus filhos encontrem novas oportunidades de vida o que para ela começa com a educação. Se a educação formal oferecida pelo Estado pode ou não mudar o futuro dos meninos é uma outra discussão, mas ficaríamos aqui nutrindo a mesma esperança de Sinha Vitória por dias melhores para os meninos do Brasil antes de podermos assistir um filme chamado Cidade de Deus (2001). Pg. 17