A Presença do que se foi
Dizem que quem foi rei nunca perde a majestade. Já as joias da
coroa…
Esta é a história não de algo que poderia ter sido e não se
concretizou, mas sim de algo muito concreto, que diante da
leniência das autoridades responsáveis se esvaiu como presença
física, embora tenha se perpetuado no imaginário. Nossa
protagonista é a Avenida Paulista, portentosa senhora de 120
anos, inaugurada com pompa e circunstância, no antigo caminho
do Caaguaçu. Ladeada por casarões imponentes, dos estilos mais
diversos e antecedidos por jardins elaborados, abrigavam as
famílias mais abastadas da nata paulistana. Cartão postal do
fausto da capital paulista, a avenida foi testemunho de inúmeras
passagens de nossa história. Das corridas de charrete ao título de
primeira rua asfaltada da cidade, em 1909; da construção de seu
primeiro hospital privado, o Santa Catarina, no mesmo ano, à
instalação de alguns dos pioneiros telefones residenciais. Sem
esquecer, é claro, do oásis de preservação de vegetação nativa, o
Parque Tenente Siqueira Campos, vulgo Trianon, prova viva de
que a cidade já foi coberta pela Mata Atlântica. Desde o início, a
Paulista trazia em si um símbolo da própria cidade: o do caminho,
o da passagem, o da transformação da cidade, nesse espigão que
unia a então longínqua Lapa à Serra do Mar.
Mas outra passagem, a dos tempos e ciclos econômicos não
poupou a avenida. Em 1952, a via perdeu seu caráter de
exclusividade residencial, quando uma lei municipal permitiu a
edificação de outros hospitais e escolas e outros edifícios
institucionais e de serviços, como cinemas e teatros.
Posteriormente, a lei possibilitou a edificação de estabelecimentos
comerciais, em 1962. O traçado urbano foi alterado, com a
demolição de dez metros da avenida de cada lado, devorando os
jardins das casas. Pouco a pouco, a busca por novas sedes das
empresas e bancos que abandonavam o Centro da cidade
começou a pôr os casarões por terra, dando lugar a edifícios
comerciais espelhados e destoantes. O preço do metro quadrado
na região foi catapultado e a ganância imobiliária encontrou terra
sem dono na legislação em vigor. Por ela, o comprador de um
imóvel tombado era obrigado a preservá-lo, sem receber nenhuma
compensação por isso.
A sentença de morte das casas da Paulista não tardou e foi
proferida por quem, em princípio, mais interesse teria em
preservar o que dizimava. Em uma infeliz declaração, o então
Presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do
Estado de São Paulo (Condephaat), Ruy Ohtake, anunciou que
tramitava um projeto de tombamento das 31 casas histórias
remanescentes na avenida. Esse comentário inoportuno teve
efeitos catastróficos. Bastaram cinco dias para que os
proprietários dos imóveis os pusessem abaixo. A paisagem
desoladora que se apresentava à luz do dia escancarava as
vísceras das casas, misturadas a objetos que não haviam sido
retirados a tempo e aos escombros da memória paulistana.
Tudo poderia ter sido diferente. Em 1984, o advogado Modesto
Carvalhosa e o historiador Benedito Lima de Toledo desenharam a
Lei de Transferência de Potencial Construtivo, dando ao
proprietário de um imóvel tombado o direito de vender as áreas
não construídas do terreno, desde que o novo proprietário se
comprometesse a bancar as despesas de preservação do edifício
histórico. Foi esse o mecanismo que se aplicou à Casa das
Rosas, projetada por Ramos de Azevedo e erguida em 1935, hoje
uma das poucas joias da coroa da Avenida Paulista. O
empreendimento foi construído nos fundos do terreno mas o
jardim lateral que lhe dá nome e o casarão, hoje espaço cultural
do Estado, foram preservados.
O não-tombamento dos casarões da Avenida Paulista permanece
como cicatriz invisível na cidade. Mas a aura dessa via
emblemática, entrelaçando fios econômicos, culturais e sociais,
permanece no espírito de novos e antigos paulistanos, por
nascimento ou opção, muitos dos quais nem nascidos eram,
quando a memória física da cidade foi desmantelada. Em 1987,
ainda sob o impacto dos ecos das escavadeiras de demolição, a
sociedade civil se revoltou ante o projeto do então Prefeito Jânio
Quadros, que pretendia construir uma garagem sob o Trianon,
pondo as árvores em risco. O anúncio levou 2 mil paulistanos a se
reunirem no parque e o abraçarem com as mãos dadas, em forma
de protesto
Em 1990, campanha realizada em São Paulo elegeu a Avenida
Paulista como símbolo da cidade. Nela, ainda hoje, ocorrem
eventos emblemáticos de apropriação do espaço público e de
várias das manifestações mais referenciais que afloram da alma
da cidade. A avenida é palco para a São Silvestre, a Parada Gay,
as festas de réveillon e muitos dos protestos de reivindicação
social ou trabalhista.
De alguma forma, o patrimônio imaterial da sociedade parece ter
escohido a Avenida Paulista por domicílio. Quase uma escolha de
protesto, reminiscência do que a avenida já foi e do que
permanece sendo, sobre os escombros do que já não é.
Os antigos casarões da Avenida Paulista são ícones de uma São
Paulo que é um acervo de obras em eterna criação e constante
revisão. Essas camadas de tintas culturais sobrepostas decantam
e se assentam no imaginário urbano, formando filigranas de uma
estratégia que, apesar da inação ou da reação tardia das
autoridades locais, perpetua-se no novelo das gerações.
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