PREPRINT MARCADORES EVIDENCIAIS EM PORTUGUÊS DO BRASIL E GALEGO Xulio Sousa Instituto da Lingua Galega Universidade de Santiago de Compostela Há mais de duas décadas que se reconhece a existência de uma categoria gramatical denominada evidencialidade constituída por um grupo de formas lingüísticas que são utilizadas para expressar a fonte ou origem da informação relatada pelo falante. Evidentiality is a grammatical category that has source of information as its primary meaning –whether the narrator actually saw what is being described, or made inferences about it based on some evidence, or was told about it, etc. (Aikhenvald, 2006) O sistema evidencial mais simples permite distinguir entre a informação que o falante obtém de maneira direta (ele mesmo ouve ou vê qualquer coisa; existe uma evidência direta) e aquela que obtém de forma indireta ou inferida (informação em segunda ou terceira mão; neste caso a evidência é indireta). É sabido que nem todas as línguas realizam sempre estas distinções, nem todas marcam obrigatoriamente este tipo de conteúdos (nas línguas românicas a evidencialidade não é uma categoria de expressão obrigatória). Para além disso, são muito poucas as línguas que têm sistemas fechados e exclusivos para a expressão desta categoria. Contudo, todas as línguas podem fazer referência a este tipo de conteúdos evidenciais por meio de diferentes procedimentos (lexicais, morfológicos, sintáticos, etc.) e estes podem estar gramaticalizados ou não e podem ou não ser exclusivos para a expressão da evidencialidade. L’assassin se sera introduit par la fenêtre (Squartini 2001), francês. Parece que ela tentou lutar e não conseguiu (Gonçalves 2003) , português. Comúnmente se sostiene que el control del déficit fiscal y de la tasa de inflación bastarían para asegurar que los equilibrios macroeconómicos se han logrado. (González 2011) , espanhol. Un Antonov 24 della compagnia di bandiera Air Mali si e schiantato al suolo al momento del decollo sulla pista di Timbuctu. I morti, sembra, sono 50; un solo passeggero sarebbe sopravvisuto. (Giacalone/Topadze 2007), italiano. Reportedly, it’s raining (Peterson & Sauerland 2010), inglês. Ho fa, probablement, perquè li agrada (González 2005), catalão. Anita kommt angeblich zur Party (Whitt 2011), alemão. "Marcadores evidenciais em português do Brasil e galego" in Actas II Congresso Internacional de Linguística Histórica, São Paulo (in press), 2012. PREPRINT Etorri omen da (Etxepare 2009), basco. Entre o conjunto de estratégias de marcação da evidencialidade encontram-se em algumas línguas românicas certas partículas derivadas de verbos de fala e um complementador que apresentam características especiais (verba dicendi + complementador), tanto pela forma, como pela distribuição nos enunciados e pelos distintos significados que foram adquirindo: dicica (siciliano), nachi /nanca (sardo), Dizque / Diz que (espanhol da Colômbia, Equador, México, R. Dominicana), cică (romeno), disque (galego) e diz que / dizque (português do Brasil). As partículas utilizadas em galego e PB têm origem no uso como verbo principal da forma de terceira pessoa de singular do presente do indicativo do verbo dicir/dizer seguida do complementador que. Este sintagma usa-se habitualmente para introduzir um discurso indireto com valor citativo e o verbo aparece ligado a um sujeito que figura no enunciado ou que é identificável no texto ou a partir do contexto: Uso não evidencial. (...) o deputado federal José Santana de Vasconcelos (PFL) prega uma grande aliança em torno do governador. Ele diz que o bom relacionamento entre o PFL, o PSDB e o PTB mineiros deve ser estendido ao plano federal. (EM-LJ) (CassebGalvão, 2004). Uso evidencial. Pois é, no Cassino da Urca, olha que chique. Parece até que ela é uma jovem muito simpática, culta, prendada...E rica, é claro. Diz que a família dela tem muito dinheiro. (LR) (Casseb-Galvão, 2004). Os estudiosos que trataram da análise desta forma no PB reconhecem que a partir deste uso original (1) se podem também identificar usos em que as características do sintagma são as de uma forma gramaticalizada que já não tem valor citativo, enquanto em (2) já não é possível identificar um sujeito para o verbo e ocorreu uma mudança de significado: o falante indica que a informação foi obtida de maneira indireta, não mostrando total certeza sobre o seu conteúdo (há um valor de modalidade epistêmica acrescentado). A observação do comportamento deste elemento permite reconhecer alguns dos traços próprios de uma forma gramaticalizada ou em via de "Marcadores evidenciais em português do Brasil e galego" in Actas II Congresso Internacional de Linguística Histórica, São Paulo (in press), 2012. PREPRINT gramaticalização: a) erosão fonética; b) desemantização, perda ou troca de significado (concreto/lexical>abstrato/gramatical); c) reanálise morfológica e sintática (perda da autonomia dos constituintes e câmbio da função); d) aquisição de novos valores ligados à modalidade epistêmica subjetiva (baixo-fraco comprometimento do falante com o que diz). Aikhenvald investigou as línguas amazônicas da área do Uaupés e notou que no português falado nesta zona é freqüente o uso de estratégias léxicas para a expressão de conteúdos evidenciais que nas línguas indígenas faladas nessa área se formalizam gramaticalmente (eu vi, eu tenho prova, eu escutei, eu senti, parece, etc.). O uso reiterado destes elementos causa nos falantes de português standard a impressão de um jeito de falar muito servil e precavido. Aikhenvald supõe que o emprego destas formas (entre elas diz que) no português falado nesta zona se deve ao contacto com as línguas indígenas. Esta mesma idéia foi proposta também para explicar a utilização de dizque em algumas variedades de espanhol da área andina e de México (Olbertz 2005, Travis 2006). (1) Hasta un año, hasta... hasta un año y medio dizque trabajan así por día (BQ 9a, 7). (2) Entonces él dizque avanza a ver que éste era el señor que me trajo con sombreros (BE 12a, 2) (Olbertz 2005) (3) Dizque asuma un poco de niebla (BQ 15a, 2) (Olbertz 2005) (4) Con eso andamos dizque maravillados cuando ¡chíngale! nos robamos la caja de las esencias y echamos a correr (Martín del Campo) (Olbertz 2005) Esta não é a única interpretação possível acerca das origens do uso de diz que no PB. Num estudo realizado no ano 2001 pela professora Casseb-Galvão sobre um corpus de textos escritos dos séculos XIX e XX nota-se que esta forma aparece utilizada com função de evidencial e de modalizador da informação já em textos do século XIX e que se torna mais comum nos textos do século XX. Além disso, estes textos não correspondem só a áreas em que se falam línguas indígenas com sistemas próprios de expressão da evidencialidade. “O reconhecimento do diz que como integrante da categoria evidencial significa um enriquecimento no paradigma das qualificações proposicionais no PB. Os novos usos indiciam que o sistema evidencial gramatical no PB está em desenvolvimento, a partir de um processo de gramaticalização. E, ainda, caso o processo de gramaticalização prossiga, essa expressão é uma "Marcadores evidenciais em português do Brasil e galego" in Actas II Congresso Internacional de Linguística Histórica, São Paulo (in press), 2012. PREPRINT forte candidata a marcador evidencial gramatical prototípico.” (Casseb-Galvão 2004) Neste mesmo estudo chega-se à conclusão de que o processo de gramaticalização de diz que teve origem no próprio PB, encontrando-se ainda em desenvolvimento. A partir do valor inicial como verbo matriz introdutor de discurso direto, está-se a chegar a usos de operador evidencial com valores ligados à expressão da modalidade epistêmica. (5) – O turco só quando chegou perto do homem reparou na sua grandeza e se espantou: – Homem, como o senhor é grande! (...) – Diz-que Deus fez eu no mesmo dia que fez o Brasil e nesse dia tinha levantado com mania de exagero, com o perdão da palavra. Tenho para mais de dezena de arrobas de peso e quase que braça e meia de comprimento. (LR) (Casseb-Galvão 2004) (6) E: Inda conhece pobre? Que beleza… Diz que tem dois meninos procurando o pai ali na esquina…(GA-LD) (Casseb-Galvão 2004) No momento de procurar os antecedentes deste uso, é de salientar a escassez de estudos relativos ao português europeu, tanto para a época moderna como para a língua dos textos medievais. No caso do espanhol, a situação é muito distinta. Ainda que nas variedades atuais faladas na península subsistam poucos restos de utilização deste elemento marcador de evidencialidade (Kany 1944, Olbertz 2005, Travis 2006), os estudos notam que nos textos medievais e até ao século XIX atestam exemplos de uso desta forma que se podem relacionar com os que se registram hoje nas variedades faladas no continente americano (López Izquierdo 2006). Em galego atual identifica-se uma partícula disque que corresponde na origem, e em parte nos valores, com diz que que aparece no PB. Embora não possamos contar ainda com estudos que analisem em pormenor as origens, evolução, uso e valores desta forma, ela aparece reconhecida nas gramáticas e dicionários como forma autônoma (advérbio de modo ou advérbio modalizador), com uma ortografia que denuncia a sua completa gramaticalização (7-11). (7) O rapaz saía moitas veces da casa sen avisar e unha vez disque fora ás mozas...(TILG) (8) Veña acá e perdóenos… Disque vostede adiviña quen vai morrer (TILG) "Marcadores evidenciais em português do Brasil e galego" in Actas II Congresso Internacional de Linguística Histórica, São Paulo (in press), 2012. PREPRINT (9) Resoan moito nas covas dos mouros, que disque a serra está inzada delas (TILG) (10) A cousa é que disque alí, onde agora se xunta os vellos, houbera unha torre (TILG) (11) Estaba xa case na cima do monte e entón disque que deu volta e disque pegou un golpe tan grande. (TILG) A partícula disque do galego sofreu um processo de gramaticalização similar àquele que é referido para o cognato brasileiro. A partir de uma predicação principal constituída por verbo de fala e complementador chega-se a um operador que se utiliza como estratégia para marcar evidencialidade e que acabou ganhando valores vinculados à modalidade epistêmica, daí a sua classificação como advérbio de dúvida ou advérbio modalizador nas gramáticas galegas. No caso do galego, este processo de gramaticalização pode ser estudado a partir dos textos medievais, já que neles encontramos rastros evidentes que ajudam a compreender a evolução da partícula. Em galego atual, disque continua vivo na língua oral, na escrita e nos distintos registros, apesar de não ser a única forma de marcar evidencialidade. Nos usos atuais apresenta características de forma totalmente gramaticalizada do ponto de vista fonético, morfológico (forma simples indivisível e invariável) e sintático (não admite negação, é compatível com outros complementadores e o verbo perdeu as propriedades de verbo matriz). Ainda que da comparação dos usos de disque galego com os do português do Brasil atuais resultem algumas diferenças relacionadas fundamentalmente com os valores, com o escopo e com a distribuição no enunciado, torna-se evidente que o desenvolvimento do processo de gramaticalização nos dois idiomas mostra coincidências que justificam o estudo contrastivo das duas línguas. Perante o conjunto de fatos destacados, é possível propor duas hipóteses de trabalho para analisar a origem e evolução desta partícula evidencial nas duas línguas: 1. O processo de gramaticalização teve origem independente em galego e PB, ainda que a sua evolução tenha sido paralela e num sentido similar. 2. As partículas dizque do PB e disque do galego têm origem numa forma existente em galego e português antigos, que se debilitou no PE, pero que se conservou e desenvolveu em PB e em galego. "Marcadores evidenciais em português do Brasil e galego" in Actas II Congresso Internacional de Linguística Histórica, São Paulo (in press), 2012. PREPRINT REFERÊNCIAS AIKHENVALD, A. (2004): Evidentiality. Oxford: Oxford University Press. AIKHENVALD, A. (2006): ”Evidentiality in Grammar” in Keith Brown, ed (2005). Encyclopedia of Language and Linguistics, Oxford: Elsevier, v.4, pp.320-325. AIKHENVALD, A. (2007): “Information source and evidentiality: what can we conclude”, Rivista di Linguistica 19.1, pp. 207-227 CASSEB-GALVÃO, VÂNIA CRISTINA (2001): Evidencialidade e gramaticalização no português do Brasil: os usos da expressão diz que. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, Araraquara. 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