162 ESTADO DO MEIO AMBIENTE E RETROSPECTIVAS POLÍTICAS: 1972-2002 UNEP, Still Pictures Água doce Panorama mundial Recursos O volume total de água na Terra é de aproximadamente 1,4 bilhão de km3, dos quais apenas 2,5%, ou cerca de 35 milhões de km3, correspondem a água doce (ver tabela na página ao lado). A maior parte da água doce se apresenta em forma de gelo ou neve permanente, armazenada na Antártida e na Groenlândia, ou em aqüíferos de águas subterrâneas profundas. As principais fontes de água para uso humano são lagos, rios, a umidade do solo e bacias de águas subterrâneas relativamente pouco profundas. A parte aproveitável dessas fontes é de apenas cerca de 200 mil km3 de água – menos de 1% de toda a água doce e somente 0,01% de toda a água da Terra. Grande parte dessa água disponível está localizada longe de populações humanas, dificultando ainda mais sua utilização. A reposição de água doce depende da evaporação da superfície dos oceanos. Aproximadamente 505 mil km3, ou uma camada de 1,4 metro de espessura, evaporam dos oceanos a cada ano. Outros 72 mil km3 evaporam da terra. Cerca de 80% do total de precipitações, o equivalente a 458 mil km3/ano, cai sobre os oceanos, e os 119 mil km3/ano restantes, sobre a terra. A diferença entre a precipitação sobre as superfícies de terra e a evaporação dessas superfícies (119 mil km3 menos 72 mil km3 por ano) corresponde a escoamentos e reposição de águas subterrâneas – aproximadamente 47 mil km3 por ano (Gleick, 1993). O gráfico na página 164 apresenta um cálculo aproximado do equilíbrio hídrico anual médio das principais áreas continentais, incluindo pre- ÁGUA DOCE cipitação, evaporação e escoamento. Mais da metade de todo o escoamento ocorre na Ásia e na América do Sul, e uma grande parte ocorre em um único rio, o Amazonas, que leva mais de 6 mil km3 de água por ano (Shiklomanov, 1999). Escassez de água Aproximadamente um terço da população mundial vive em países que sofrem de estresse hídrico entre moderado e alto – onde o consumo de água é superior a 10% dos recursos renováveis de água doce. Cerca de 80 países, que abrigam 40% da população mundial, sofriam de grave escassez de água em meados da década de 1990 (CSD, 1997a), e estima-se que, em menos de vinte e cinco anos, dois terços da população global estarão vivendo em países com estresse hídrico (CSD, 1997b). Para 2020, prevê-se que o uso da água aumentará em 40% e que será necessário um adicional de 17% de água para a produção de alimentos, a fim de satisfazer as necessidades da população em crescimento (World Water Council, 2000a). No século passado, os três principais fatores que causaram aumento na demanda de água foram o crescimento demográfico, o desenvolvimento industrial e a expansão da agricultura irrigada. A agricultura foi responsável pela maior parte da extração de água doce nas economias em desenvolvimento nas duas últimas décadas. Os planejadores sempre acreditaram que uma demanda crescente viria a ser satisfeita por um maior domínio do ciclo hidrológico mediante a construção de mais infra-estrutura. A construção de represas nos rios tem sido tradicionalmente uma das principais formas de garantir recursos hídricos adequados para irrigação, geração de energia hidrelétrica e uso doméstico. Cerca de 60% dos 227 maiores rios do mundo foram muito ou moderadamente fragmentados por represas, desvios ou canais, causando efeitos sobre os ecossistemas de água doce (WCD, 2000). Tal infra-estrutura proporcionou benefícios importantes, como o incremento da produção de alimentos e de energia elétrica. Os custos, porém, também têm sido importantes. Nos últimos cinqüenta anos, as represas transformaram os rios do mundo, deslocando de 40 milhões a 80 milhões de pessoas em diferentes partes do planeta (WCD, 2000) e causando mudanças irreversíveis em muitos dos ecossistemas estreitamente relacionados a esses rios. A ênfase dada ao abastecimento de água, associada à aplicação ineficiente da legislação, limitou a eficácia da gestão dos recursos hídricos, principalmente nas regiões em desenvolvimento. Os responsáveis pela elaboração de políticas, em lugar das soluções totalmente centradas no abastecimento, passaram a adotar a gestão da demanda, salientando a importância de utilizar uma combinação de medidas para garantir fornecimentos suficientes de água para diferentes setores. Entre as medidas, vale citar o melhoramento da eficiência no uso da água, políticas de preços e privatização. Também existe uma nova ênfase sobre a gestão integrada dos recursos hídricos, que considera todas as diferentes partes interessadas no planejamento, no desenvolvimento e na gestão de recursos hídricos (CSD, 1997b). 163 ESTADO DO MEIO AMBIENTE E RETROSPECTIVAS POLÍTICAS: 1972-2002 164 Precipitação, evaporação e escoamento por região (km3/ano) 35.000 evaporação 32.200 escoamento 30.000 28.400 14.100 25.000 22.300 4.600 20.000 12.200 18.300 15.000 8.180 18.100 10.000 8.290 16.200 7.080 17.700 10.100 2.970 2.510 2.310 4.570 5.000 5.320 0 Europa Ásia África América do Norte América do Sul Austrália/ Oceania Antártica As barras verticais indicam o total relacionado à precipitação; as áreas sombreadas representam a evaporação, enquanto as áreas mais claras destacam o escoamento observado. A precipitação anual total sobre o solo é da ordem de 119 mil km3, dos quais 72 mil km3 se evaporam, restando cerca de 47 mil km3 de escoamento. Notas: as regiões não correspondem exatamente àquelas descritas pelo GEO; os escoamentos incluem fluxos que correm para as águas subterrâneas, as bacias continentais e os deslocamento de gelo da Antártida. Fonte: Shiklomanov, 1993 Área global irrigada e extração da água 300 área irrigada (milhão de ha) extração hídrica (km³/ano) 250 3.940 200 3.760 3.580 150 3.200 2.574 2000 1998 1996 1994 1992 1990 1988 1986 1984 1982 1980 1978 1976 1974 1972 1970 0 Desde 1970 as extrações hídricas no globo refletem o aumento das áreas irrigadas. Cerca de 79% das extrações se destinam à agricultura, principalmente para a irrigação, que produz 40% dos alimentos do mundo. Fonte: FAO, 2001; Shiklomanov, 1999 Agricultura irrigada A agricultura é responsável por mais de 70% da água doce retirada de lagos, rios e fontes subterrâneas. A maior parte é utilizada para irrigação, que fornece cerca de 40% da produção alimentar mundial (CSD, 1997a). Nos últimos trinta anos, a superfície de terras irrigadas aumentou de 200 milhões ha para mais de 270 milhões ha (FAO, 2001). Durante o mesmo período, as extrações globais de água aumentaram de cerca de 2.500 km3 para um volume superior a 3.500 km3 (Shiklomanov, 1999). A gestão inadequada resultou na salinização de cerca de 20% das terras irrigadas do planeta, com mais 1,5 milhão de hectares afetados anualmente (CSD, 1997a), reduzindo de forma significativa a produção de cultivos (WCD, 2000). Os países mais gravemente afetados encontram-se principalmente em regiões áridas e semi-áridas. Algumas das medidas de intervenção foram os programas de ação nacional, análise e reforma das políticas relativas à água, a promoção de maior eficiência no uso da água e a transferência de tecnologia de irrigação. Em âmbito internacional, a FAO deu início a um sistema global de informações em 1993, o AQUASTAT, que fornece dados sobre o uso da água na agricultura (FAO, 2001). Água e saneamento Para muitas das populações mais carentes do mundo, uma das maiores ameaças ambientais à saúde permanece sendo o uso contínuo de água não tratada. Embora o percentual da população com acesso a água tratada tenha aumentado de 79% (4,1 bilhões) em 1990 para 82% (4,9 bilhões) em 2000, 1,1 bilhão de pessoas ainda não têm acesso a água potável e 2,4 bilhões carecem de melhor saneamento (WHO e UNICEF, 2000). A maior parte dessas pessoas vive na África e na Ásia. A falta de acesso a água potável e a serviços de saneamento causa centenas de milhões de casos de doenças associadas à água e mais de 5 milhões de mortes a cada ano (ver box na página ao lado). Há ainda impactos negativos de grandes proporções, porém mal quantificados, sobre a produtividade econômica em muitos países em desenvolvimento. A importância de satisfazer as necessidades humanas básicas de água sempre desempenhou um papel imprescindível nas políticas hídricas. Uma das primeiras conferências abrangentes sobre a água foi realizada em 1977 em Mar del Plata, na Argentina. O foco nas as necessidades humanas levou à Década Internacional de Água Potável e Saneamento (198190) e aos esforços das Nações Unidas e de outras organizações internacionais para o fornecimento de serviços básicos de abastecimento de água (UN, 2000). O conceito de atender as necessidades básicas relativas à água foi reafirmado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro em 1992, e esse concei- ÁGUA DOCE 165 Disponibilidade hídrica por sub-região no ano 2000 (1.000 m3 per capita/ano) <1,0 extremamente baixa 1,0 a 2,0 muito baixa >2,0 a 5,0 baixa >5,0 a 10 média > 10 a 20 alta > 20 muito alta to se expandiu, abrangendo as necessidades ecológicas relativas à água. Um relatório recente das Nações Unidas (UN, 1999) reconheceu que todas as pessoas precisam ter acesso a quantidades adequadas de água segura, para fins de consumo, saneamento e higiene. Mais recentemente, o Segundo Fórum Mundial da Água e a Conferência Ministerial realizada em Haia, no ano 2000 (ver box na página 166), produziu uma firme declaração por parte de mais de cem ministros em apoio a se conferir maior ênfase às necessidades humanas básicas como prioridade para nações, organizações internacionais e doadores. O fornecimento de serviços de água potável e saneamento aos habitantes urbanos permanece sendo um desafio em particular. Nos países em desenvolvimento, durante a primeira metade da década de 1990, cerca de 170 milhões de habitantes urbanos tinham acesso a água potável e 70 milhões a saneamento adequado; no entanto, isso teve um impacto limitado porque, no fim de 1994, aproximadamente 300 milhões adicionais de residentes urbanos ainda não tinham acesso a água potável, enquanto cerca de 600 milhões careciam de saneamento adequado (CSD, 1997b). Contudo, uma das principais áreas bem-sucedidas de muitos países em desenvolvimento está relacionada a investimentos no tratamento de águas residuais nos últimos trinta anos, o que “conteve o declínio da qualidade das águas superficiais, ou de fato a melhorou” (World Water Council, 2000b). Qualidade da água Freqüentemente, os problemas da qualidade da água podem ser tão graves quanto os relativos à disponibilidade de água, mas tem-se conferido menos atenção àqueles, principalmente em regiões em desenvolvimento. Entre as fontes de poluição estão o esgoto não-tratado, descargas químicas, vazamentos e derramamentos de petróleo, descarregamento de lixo em O mapa demonstra a disponibilidade hídrica mensurada em termos de 1.000m3 per capita/ ano. Fonte: dados compilados do UNDP, UNEP, World Bank e WRI, 2000 e da Divisão da População das Nações Unidas, 2001 Os custos das doenças associadas à água no que diz respeito apenas à malária, 2 bilhões de pessoas estão emcorrem o risco de contraí-la, com 100 milhões de pessoasque podem ser afetadas a qualquer momento e de 1 aentre 1 milhão e 2 milhões de mortes a cada ano anualmente ocorrem cerca de 4 bilhões de casos de diarréia e 2,2 milhões de mortes anualmente, o equivalente a 20 desastres de avião Jumbo por dia os vermes intestinais infectam cerca de 10 por cento 10% da população do mundo em desenvolvimento aproximadamente 6 milhões de pessoas ficam cegas como sequelaseqüela do tracoma 200 milhões de pessoas são afetadas com esquistossomose Fontes: CSD, 1997a; WHO e UNICEF, 2000 166 ESTADO DO MEIO AMBIENTE E RETROSPECTIVAS POLÍTICAS: 1972-2002 Visão 21: metas mundiais para o abastecimento de água e saneamento Para abordar os problemas relativos ao abastecimento de água e saneamento para o mundo em desenvolvimento, o Conselho para Abastecimento de Água e Saneamento (WSSCC) apresentou as seguintes metas mundiais, em um documento denominado Visão 21, no Segundo Fórum Mundial da Água realizado em Haia em março de 2000: até 2015, reduzir à metade a proporção das pessoas que não têm acesso a instalações higiênicas de saneamento; até 2015, reduzir à metade a proporção das pessoas sem acesso sustentável a quantidades adequadas de água segura e financeiramente acessível; até 2025, fornecer água, saneamento e higiene a todos. Fonte: WSSCC, 2000 minas e poços abandonados, assim como agrotóxicos provenientes de campos de fazendas, que escorrem ou se infiltram na terra. Mais da metade dos principais rios do mundo “está gravemente exaurida e poluída, degradando e envenenando os ecossistemas ao redor e ameaçando a saúde e os meios de subsistência das pessoas que dependem deles” (World Commission on Water, 1999). Na década de 1990, foram realizados muitos novos esforços para monitorar a qualidade da água e instituir políticas e programas melhores (Meybeck, Chapman e Helmer, 1990). Por exemplo, foram estabelecidos programas de monitoramento da qualidade da água em muitas bacias fluviais internacionais, incluindo as dos rios Danúbio, Reno, Mekong, da Prata e Nilo. O Programa de Qualidade da Água do Sistema Mundial de Monitoramento do Meio Ambiente – GEMS, do PNUMA, também fornece dados e informações sobre a qualidade da água para fins de avaliação e gestão. Águas subterrâneas Cerca de 2 bilhões de pessoas, aproximadamente um terço da população mundial, dependem do armazenamento de águas subterrâneas e extraem em torno de 20% da água do planeta (600-700 km3) anualmente, em grande parte de aquíferos superficiais (UNDP e outros, 2000). Muitos habitantes de áreas rurais dependem totalmente de águas subterrâneas. Até pouco tempo, as questões referentes ao uso e à qualidade das águas subterrâneas ganhavam menos atenção do que aquelas relativas às águas superficiais, particularmente em algumas regiões em desenvolvimento, e os dados sobre as reservas e a circulação de águas subterrâneas são ainda menos confiáveis. Na Europa, no entanto, tem-se dado muita atenção à qualidade de águas subterrâneas, porque muitos assentamentos dependem de tais recursos para seu abastecimento de água. Em geral, os recursos de águas subterrâneas são vulneráveis a diversas ameaças, entre elas o uso exagerado e a contaminação (ver tabela abaixo). Quando o uso excede o abastecimento natural por um longo período de tempo, os níveis de águas subterrâneas caem. Em partes da Índia, da China, da Ásia Ocidental, da antiga União Soviéti- Problemas relacionados à qualidade das reservas hídricas Problema Causa Conseqüência Poluição Antropogênica Proteção inadequada de aqüíferos vulneráveis contra dejetos produzidos pelo homem e a lixiviação originada: pelas atividades urbanas e industriais; pela intensificação do cultivo agricola. Patogênicos, nitratos, sais de amônia, clorina, sulfatos, boro, metais pesados, DOC, aromáticos e hidrocarbonetos halogenados. Contaminação que ocorre naturalmente Relacionada a evolução do ph-Eh referente aos lençóis freáticos e à dissolução de minerais (agravado pela poluição antropogênica e/ou exploração sem controle) Principalmente ferro, fluorina e às vezes arsênico, iodina, manganês, alumínio, magnésio, sulfatos, selênio e nitratos (provenientes da paleo-recarga). Contaminação dos mananciais Concepção e construção inadequada de poços, o que permite o acesso direto de água poluída oriunda da superfície e de lençóis freáticos não profundos Principalmente patôgenicos Fonte; Foster, Lawrence e Morris, 1998 ÁGUA DOCE Números relacionados às bacias que possuem rios internacionais 71 Europa 53 Asia América do Sul América do Norte 38 39 Africa 60 No total de 261 bacias fluviais são compartilhadas por dois ou mais países. Notas: as regiões não correspondem exatamente àquelas apresentadas pelo GEO; o Rio Jurado, compartilhado pela Colômbia e Panamá, está incluído na América do Sul. Fonte: Wolf e outros, 1999 ca, do oeste dos Estados Unidos e da Península Arábica, os lençóis freáticos estão diminuindo, limitando a quantidade que pode ser usada e aumentando os custos de bombeamento para os agricultores (Postel, 1997; UNEP, 1999). O bombeamento excessivo de águas subterrâneas pode causar a intrusão de água salgada em áreas costeiras. Em Madras, na Índia, por exemplo, a intrusão de água salgada chegou a 10 quilômetros terra adentro e contaminou os poços (UNEP, 1996). A preocupação com os crescentes problemas relativos aos recursos de água subterrânea impulsionou a comunidade internacional, os governos e outros grupos de interesse a começar a abordá-los. Por exemplo, o Segundo Fórum Mundial da Água, realizado em março de 2000, organizou um workshop especial sobre águas subterrâneas. Algumas das recomendações surgidas desse workshop incluíram a necessidade de conscientizar a população e melhorar a disponibilidade, qualidade e acessibilidade de informações aos grupos de interesse, especialistas técnicos e formuladores de políticas (World Water Forum, 2000). Gestão de águas transfronteiriças A água é amplamente compartilhada entre nações, regiões, grupos étnicos e comunidades. Duzentos e sessenta e um rios (ver gráfico à esquerda), correspondentes a 45,3% da superfície total de terra (exceto a Antártida), são compartilhados por dois ou mais países (Wolf e outros, 1999), fazendo da gestão de águas transfronteiriças uma das questões hídricas de maior importância atualmente. As disputas pelos recursos hídricos compartilhados são de longa data. A água tem sido usada como instrumento e arma de conflito, o acesso à água tem sido motivo de disputas e contendas, e projetos importantes de desenvolvimento hídrico (por exemplo, a construção de represas) levaram à violência e conflitos civis (Gleick, 1998). No entanto, as águas compartilhadas também podem ser uma fonte de cooperação. Essa possibilidade se evidencia atualmente com o aumento do número de iniciativas relacionadas a regimes de gestão de bacias fluviais e de instituições comprometidas com a gestão bilateral e/ou multilateral dos recursos hídricos transfronteiriços. Esse fato remonta à Declaração de Helsinque de 1966, que estabeleceu a base para os princípios internacionais para cursos d’água compartilhados e influenciou muitos tratados específicos sobre rios. Após a Declaração, houve diversos esforços internacionais, entre eles principalmente o trabalho da Comissão de Direito Internacional da ONU, que levou em 1997 à Convenção das Nações Unidas sobre a Lei de Usos Não-Navegacionais de Águas Internacionais. Já se sente o impacto dessa nova convenção na adaptação que a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), composta por 14 membros, fez de grande parte de seus princípios em seu protocolo revisado sobre águas compartilhadas. O reconhecimento da organização de bacias fluviais nos últimos trinta anos também resultou no estabelecimento da Rede Internacional de Organismos de Bacias (RIOB) em 1996 (ver box na página seguinte), enquanto outras iniciativas incluem a Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável de 1998, a qual declarou que “a visão compartilhada entre países vizinhos é importante para o efetivo desenvolvimento, gestão e proteção dos recursos hídricos transfronteiriços”. O programa de ações prioritárias da conferência (Bernard, 1999) enfatizou a necessidade de: • • • facilitar o intercâmbio de informações precisas e harmonizadas entre países ribeirinhos; promover o processo de consulta em todos os níveis, principalmente no âmbito de instituições e mecanismos internacionais pertinentes; e definir programas de ações prioritárias a médio prazo que sejam de interesse comum, de modo a melhorar a gestão dos recursos hídricos e diminuir a poluição. 167 168 ESTADO DO MEIO AMBIENTE E RETROSPECTIVAS POLÍTICAS: 1972-2002 A água e os ecossistemas Os projetos de desenvolvimento hídrico durante o século XX causaram impactos significativos sobre os ecossistemas de água doce ao eliminar pântanos e áreas úmidas, extrair a água para outros usos, alterar os fluxos d’água e contaminar a água com resíduos industriais e humanos. Em muitos rios e lagos, as funções do ecossistema se perderam ou foram prejudicadas. Em algumas áreas, a crescente demanda por água provocou reduções no volume de rios de grande porte, afetando zonas ribeirinhas e costeiras adjacentes (CSD, 1997a). Foram relatados problemas na reprodução e mortes de diversas espécies silvestres, particularmente nos mais elevados níveis da cadeia alimentar, como conseqüência de altas extrações de água (CSD, 1997a). As áreas úmidas são um importante ecossistema de água doce, que influencia não apenas a distribuição de espécies e a biodiversidade em geral, mas também os assentamentos e as atividades humanas. Elas proporcionam um controle natural de inundações, o armazenamento de carbono, a purificação natural da água e bens, como peixes, mariscos, madeira e fibra (UNDP, UNEP, World Bank e WRI, 2000). Embora as informações sobre a verdadeira extensão das áreas úmidas no mundo ainda não sejam confiáveis, estimativas recentes revelam que talvez essas áreas cubram ao menos 12,8 milhões de quilômetros quadrados (Finlayson e outros, 1999). As atividades humanas, incluindo a agricultura e os assentamentos, causaram danos sérios A Rede Internacional de Organismos de Bacias A Rede Internacional de Organismos de Bacia tinha um total de 125 organismos membros em 49 países em 1998. Seus objetivos são os seguintes: estabelecer uma rede de organismos interessados na gestão mundial de bacias fluviais e facilitar o intercâmbio de experiências e conhecimento entre eles; promover os princípios e meios para uma gestão sólida da água em programas de cooperação para o desenvolvimento sustentável; facilitar a implementação de instrumentos para a gestão institucional e financeira, a programação e a organização de bancos de dados; promover programas de informação e treinamento para os diferentes atores envolvidos na gestão da água, incluindo funcionários eleitos localmente, representantes dos usuários e os executivos e funcionários dos organismos membros; incentivar a educação da população, particularmente dos mais jovens; e avaliar as ações em andamento e divulgar seus resultados. Fonte: INBO, 2001 aos ecossistemas de água doce e contribuíram para a perda de aproximadamente metade das áreas úmidas do planeta no século XX (Finlayson e outros, 1999). Tal dano aos ecossistemas reduz a qualidade e a quantidade de água, o que provoca uma diminuição da real disponibilidade de água para uso humano. É difícil avaliar a superfície total de áreas úmidas perdidas nos últimos trinta anos, devido à escassez de dados e à falta de informações precisas em âmbito mundial sobre a extensão original das áreas úmidas (UNDP e outros, 2000). No entanto, uma revisão, realizada em 1992, dos sítios Ramsar (áreas úmidas consideradas “importantes” de acordo com a Convenção Sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional Especialmente como Habitat de Aves Aquáticas) revelou que 84% estavam ameaçados ou sofrendo mudanças ecológicas (Dugan e Jones, 1993). Recentemente, tem havido uma mudança notável na política relativa à água, à medida que os formuladores de políticas reconhecem que os ecossistemas necessitam de um armazenamento adequado de água para sustentar as funções normais e a conservação da biodiversidade. Desde 1992, foram elaboradas novas políticas relativas à água que mencionam a meta de preservar e distribuir a água para o meio ambiente – uma mudança desde a Conferência de Estocolmo de 1972, que enfocava principalmente a proteção da qualidade do ar e da água, e não dava atenção à água para os ecossistemas. Embora grandes projetos de represas estejam se tornando menos freqüentes, devido a sítios restritos, custos crescentes e uma oposição geral, 349 represas com mais de 60 metros de altura estavam em construção em 1998 (UNDP e outros, 2000; WCD, 2000). Atualmente, os grandes rios de curso livre restantes são encontrados apenas nas regiões de tundra da América do Norte e da Federação Russa e em bacias menores na África e na América Latina. Há agora uma ênfase crescente em aumentar a eficiência do uso da água e obter maior produtividade com os recursos limitados disponíveis (Postel, 1997; Postel, 1999; Gleick, 1998). Em todo o mundo, existem grandes oportunidades de satisfazer as necessidades humanas com menos água, mediante: • • • o uso de tecnologia existente (como irrigação por gotejamento, bacias sanitárias de baixo consumo e melhores processos industriais); uma mudança na tecnologia de irrigação; a descoberta e a contenção de vazamentos; ÁGUA DOCE • • • a mudança de práticas de desperdício (como irrigar durante o dia, usar água potável para irrigação de jardins); a cobrança de preços adequados pela água; e a mudança das atividades humanas (optando por cultivos que aproveitem melhor a água e por processos industriais que não impliquem uma produção que requeira muita água). Políticas e instituições para a gestão de recursos hídricos A Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CDS) relatou que muitos países carecem de legislação e políticas adequadas para a distribuição e utilização eficientes e eqüitativas dos recursos hídricos. Há progresso, no entanto, quanto à revisão de legislações nacionais e à promulgação de novas leis e regulamentos. Também tem-se demonstrado uma preocupação acerca da crescente incapacidade dos serviços e das agências de águas, principalmente em países em desenvolvimento, para avaliar seus próprios recursos hídricos. Muitas agências sofreram reduções nas redes de observação e no quadro de pessoal, apesar dos aumentos na demanda de água. Várias medidas de intervenção foram postas em prática, entre elas o Sistema Mundial de Observação do Ciclo Hidrológico (WHYCOS), que foi implementado em diversas regiões. Seu objetivo principal é contribuir para a melhoria das capacidades nacionais e regionais de avaliação dos recursos hídricos (CSD, 1997b). Muitos tipos diferentes de organizações, desde governos nacionais até grupos comunitários locais, desempenham uma função nas decisões sobre políticas relativas à água. Nas últimas décadas, no entanto, tem havido uma ênfase crescente em aumentar a participação e a responsabilidade de pequenos grupos locais e o reconhecimento de que as comunidades têm um papel importante na formulação de políticas relativas à água. A Declaração Ministerial de março de 2000 em Haia (ver box) exigiu “que se administre a água com sensatez para garantir uma boa administração, de modo que o envolvimento do público em geral e os interesses de todas as partes estejam incluídos na gestão dos recursos hídricos” (World Water Forum, 2000). O setor privado começou recentemente a expandir sua função na gestão dos recursos hídricos. A década de 1990 assistiu ao rápido aumento no rit- 169 mo e no grau de privatização de sistemas hídricos anteriormente administrados pelo Estado. As empresas privadas prestadoras de serviços de distribuição de água estão cada vez mais suprindo as cidades em crescimento, mediante a assinatura de contratos com agências públicas para construir, possuir e operar alguma parte ou até mesmo a totalidade de um sistema municipal. Ao mesmo tempo, há crescentes preocupações acerca de como garantir, da melhor maneira possível, o acesso eqüitativo à água aos segmentos carentes da população, financiar projetos e dividir riscos. Declaração Ministerial sobre Segurança da Água no Século XXI Cerca de 120 ministros para assuntos hídricos que compareceram ao Segundo Fórum Mundial da Água realizado em Haia em março de 2000 adotaram uma declaração com o objetivo de alcançar a segurança da água no mundo. A declaração indicou os seguintes itens como os principais desafios deste novo século: atender às necessidades básicas: reconhecer que o acesso a água e saneamento seguros e suficientes faz parte das necessidades humanas básicas, essencial à saúde e ao bem-estar, e facultar às pessoas, principalmente às mulheres, o processo participativo na gestão da água; assegurar o abastecimento de alimentos: melhorar a segurança alimentar, particularmente das camadas mais carentes e vulneráveis, por meio de mobilização e uso mais eficientes, bem como a distribuição mais eqüitativa de água para a produção de alimentos; proteger os ecossistemas: assegurar a integridade dos ecossistemas por meio da gestão sustentável de recursos hídricos; compartilhar os recursos hídricos: promover a cooperação pacífica e desenvolver sinergias entre diferentes usos da água em todos os níveis, sempre que possível, nos países e, em casos de recursos hídricos fronteiriços e transfronteiriços, entre os países em questão, por meio da gestão sustentável de bacias fluviais ou outras abordagens apropriadas; administrar os riscos: providenciar segurança contra inundações, secas, poluição e outros perigos associados à água; valorizar a água: administrar a água de forma que reflita seus valores econômico, social, ambiental e cultural para todas as suas utilizações e recorrer a serviços de definição do preço da água para refletir o custo de seu fornecimento. Essa abordagem deverá considerar a necessidade de igualdade e as necessidades básicas das populações carentes e vulneráveis;e administrar a água com sensatez: garantir uma boa administração, de modo que o envolvimento do público em geral e os interesses de todas as partes estejam incluídos na gestão dos recursos hídricos. Fonte: World Water Forum, 2000 170 ESTADO DO MEIO AMBIENTE E RETROSPECTIVAS POLÍTICAS: 1972-2002 Conclusão O desenvolvimento da infra-estrutura de fornecimento de água dominou as opções das políticas na maior parte das duas décadas após 1972, mas muitas abordagens inovadoras quanto à gestão dos recursos hídricos foram introduzidas na década de 1990. Entre as principais tendências das políticas nesse período, vale citar: • • • • o reconhecimento do valor social e econômico da água; ênfase na distribuição eficiente de água; o reconhecimento de que a gestão de bacias hidrográficas é fundamental para a gestão eficaz dos recursos hídricos; maior cooperação por parte dos países com bacias fluviais para garantir a distribuição eqüitativa dos recursos; • • • • melhor coleta de dados; o reconhecimento do papel de todas as partes interessadas na gestão da água; a adoção de uma gestão integrada dos recursos hídricos como iniciativa estratégica referente às políticas; e o reconhecimento da crescente escassez de água devido a vários fatores, entre eles o crescimento demográfico e industrial e o aumento da poluição. Embora os países desenvolvidos tenham feito grandes progressos ao abordar questões relativas à qualidade da água, na verdade a situação piorou nos países em desenvolvimento, muitos dos quais sofrem níveis mais altos de poluição e demanda por água. Um número maior de países está enfrentando problemas de estresse hídrico ou escassez de água. Referências: Capítulo 2, água doce, panorama mundial Bernard, A. (1999). International Cooperation Through River Basin Commissions. Ramsar Convention Bureau http:/ /www.ramsar.org/cop7_doc_20.2_e.htm [Geo-2-116] CSD (1997a). Comprehensive Assessment of the Freshwater Resources of the World. Report of the Secretary-General. United Nations Economic and Social Council http://www.un.org/documents/ecosoc/cn17/ 1997/ecn171997-9.htm [Geo-2-117] CSD (1997b). Overall Progress Achieved Since the United Nations Conference on Environment and Development. Report of the Secretary-General. 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