DOCES, SONHOS E ÁGUAS: ALGUNS INGREDIENTES DA LITERATURA INFANTIL EM MATO GROSSO DO SUL (Susylene Dias de Araújo – UEMS/ PG – UEL) Na esteira do discurso que rege as discussões em torno da literatura infantil brasileira, e para reforçar a necessidade do “exercício critico regular e freqüente voltado aos inúmeros lançamentos infanto-juvenis”, (CECCANTINI, 2004, p. 35), nossa intenção tem como ponto de partida o desejo de acrescentar ao mapa que desenha o novo quadro da produção nacional, três obras ligadas ao espaço do Estado de Mato Grosso do Sul. No presente artigo, seqüencialmente os livros O Sonho de Xoréu e Doce de Letras, de autoria de Marisa Miranda bem como Pacu: um peixe que vivia feliz nas águas do Rio Paraguai assinado por Marlene Mourão serão apresentados como tentativa de identificar a contribuição da produção local para a formação do pequeno leitor, uma vez que a linguagem verbal e a linguagem visual utilizadas nas obras de maneira articulada fazem com que o universo dos livros se torne muito próximo da realidade vigente. Verificaremos que nestes exemplos em especial (...) “texto escrito e ilustração entrosam-se, completam-se” (...) (FARIA, 2004, p.38). Editado pela Assecom – Assessoria de Comunicação e Editora em Campo Grande MS, O Sonho de Xoréu é iniciado por um recadinho da autora que nesta ocasião convida o leitor a sonhar e viajar a partir de sua criação. Até então, a não ser pela ilustração da capa, este mesmo leitor ainda não sabe a quem o estranho nome se refere, mistério logo solucionado pelas primeiras linhas do início da narrativa que se constrói na perspectiva dos antigos contos de fada: Era uma vez um grande pássaro. Desta forma, com maestria de quem sabe narrar, a autora faz da apresentação de Xoréu, o personagem principal desta aventura, numa clara descrição de uma bela ave nativa da região pantaneira: Era uma vez um grande pássaro. Grande porque ele era maior que os pássaros que a gente conhece. Era maior que o bem-te-vi, maior que um papagaio, maior até que uma arara. Era mesmo grande. Tinha as pernas longas como as de uma garça ou uma ema. Na verdade acho que ele era meio parente da garça. Vai ver que era assim um primo de segundo grau. Pois é, ele tinha pernas longas, muitas penas brancas pelo corpo e uma cabeça bem interessante. Achou gozado? Ué, você não sabe o que é interessante? Eu sei porque aprendi na escola e li depois num livro. Interessante é tudo aquilo que desperta interesse na gente. Digamos uma certa curiosidade. (MIRANDA, s/d. p. 11) Como podemos observar a apresentação do protagonista, que no parágrafo seguinte é complementada pela divulgação de seu nome, parece ser desenvolvida como um diálogo entre a autora e seus leitores mediado pela manifestação da narrativa. Na seqüência, como alguém que se vale de sua voz para ensinar, o narrador informa que Xoréu, o herói das aventuras que por ali virão não é apenas um pássaro qualquer, mas sim um legítimo “cabeça seca”, parente próximo do “tuiuiú”, e pela diversidade da natureza: autêntica ave pantaneira. Concluídas as apresentações e devidas diferenciações entre as espécies ilustradas ao fim da página, fica claro que os principais amigos de Xoréu eram os tuiuiús, companheiros com os quais a ave adorava brincar de planar pelo ar. Com a sensibilidade de quem sente a leveza de um vôo, a brincadeira descrita poeticamente se aproxima pela imagem de pipa no mês de agosto e no exercício sensorial que se manifesta, a condição da leveza demonstrada na atividade de planar se completa pelo destaque dado ao A Z U L do céu do pantanal que ali se apresenta para então, marcar a primeira aventura a ser vivenciada. Neste instante, uma figura muito intrigante é anunciada. Trata-se de do caramujo Rabu, um rabugento caramujo, que num excesso de confiança afirma que mais vale a segurança de seu casco grudado ao chão do que as peripécias de Xoréu e seus companheiros pelos ares. Tal afirmação, no entanto é contestada, já que para Xoréu e Poné, seu melhor amigo, a perspectiva da vida é sempre outra, “pois quando a gente voa, pousa numa árvore, pula num galho, muda de direção. Isto é legal! Ver de todos os lados.” (p. 14). Nesta gostosa oportunidade, um misto de imagens e sensações pela descrição de uma sonhadora ave é oferecida ao leitor, que vê o seu estado anímico ser ativado, quando o tuiuiú tem uma idéia. Para contrariar a segurança do carrancudo caramujo, o tuiuiú surpreende ao exclamar “–Seu Rabu vai passear de avião!” E assim, perplexo, porém decidido, o velho Rabu responde: “-Tá bom, vamos lá!”. (p. 17) E assim, com a narrativa, o leitor embarca em uma espécie de viagem conduzida pelos pássaros que, no improviso de uma redinha presa pelos seus bicos, abrigaram o velho Caramujo que se pôs a voar. Ao final deste vôo desastrado, Seu Rabu, com a experiência de quem já vivera um pouco mais do que os jovens voadores aventureiros, lançou o desafio que passou a ser o grande objetivo da próxima aventura de Xoréu. Seu Rabu sugeriu ao pássaro que ele deveria conhecer o mar. Revestido pela decisão própria dos jovens, Xoréu mal se despede de seus pais e parte em busca do caminho desconhecido que o levaria ao leste, em direção da grande lagoa salgada. Deste momento em diante, as aventuras da ave passam a incluir animais e lugares de típicos da região do Pantanal. Enganado por uma sucuri matreira que passava, Xoréu toma a direção contrária que o leva ao encontro de duas araras vermelhas que apareceram para lhe informar que o mar não ficava nesta direção e que Xoréu estava diante de uma legítima lagoa de água salobra. Convencido de seu engano e tentando pegar o caminho certo, Xoréu segue em direção ao leste, até que, cansado torna-se frágil e vulnerável à inevitável captura de contrabandistas que nestas regiões apreendem aves para levá-las ao exterior. Assim, jogado entre araras, papagaios e couros de jacarés, Xoréu conhece o significado da palavra cativeiro, apresentada pela chocante imagem do pássaro sendo engolido pela rede. Na seqüência, as cenas que revelam as aventuras da sonhadora ave pantaneira descrevem o assustado Xoréu, uma ave que se depara com a feiúra dos homens que ganhavam dinheiro com a vida e a beleza dos animais. No desfecho da narrativa, ao sentir que estava preso e que a liberdade lhe fora roubada, Xoréu é consolado por uma arara azul que ali exercia certa função de líder do plano que em breve seria colocado em pratica. Ao anoitecer enquanto os homens do mal dormiam, os pássaros se organizaram para que juntos pudessem arrebentar a gaiola que os aprisionava. E como a união faz a força, juntos os pássaros conseguiram romper com a porta que os separava do mundo. Os homens, pegos de surpresa não tiveram tempo de reagir. “Desta vez foram embora todos, menos os couros de jacarés...” (p. 37) Em relação ao destino de Xoréu, este voltou pra casa feliz de posse de sua liberdade. O que sabemos sobre a sua busca pelo mar é que até aquele momento ela não havia acontecido, mas se as aventuras valem como experiência de iniciação para a personagem está era uma viagem que não tardaria muito a acontecer. O ano de 2004 marca a data de publicação de Doce de Letras de Marisa Miranda. Com o selo da All Print Editora, este livro escrito em poucas páginas é oferecido aos pequenos leitores com o carinho da autora que procura enfatizar a sugestão saborosa do título da obra já em sua apresentação, momento em que a criança é convidada a criar novas rimas a partir daquelas que lhe serão apresentadas. Na seqüência, versos marcados por rimas se espalham pelas páginas organizadas pelas letras do alfabeto que, na composição do lay-out, ocupam o lugar da tradicional numeração. Assim, os 24 poemas que vão tomando o espaço em branco das páginas, se completam pelas ilustrações apresentadas aos leitores para surtir o efeito de doce que se dissolve na boca. Um de seus melhores momentos recebe o poema Ventania: O vento ventou Vagamente Varrendo de folhas A varanda vistosa Do vô Valentim. O vento velou Visivelmente O violento roncar Da viração na vidraça Da velha Vanin. Virou-se depois O velhaco Pra viola Violeta E pôs-se a valsar com ela Um vira-vira sem fim. (Marisa Miranda, 2004). E para concluir nossa breve apresentação de obras que vão compondo o universo da literatura infantil em Mato Grosso do Sul, o livro Pacu: um peixe que vivia feliz nas águas do rio Paraguai escrito e ilustrado pela artista plástica Marlene Mourão é uma obra cujo foco se concentra nas aventuras vividas por Pacu, um peixe que era feliz, até encontrar-se com Pedro, um pescador muito sério que naquelas águas vivia a pescar em seu barquinho. O peixe então se arrisca a retirar a cabeça da água para saber do pobre pescador o motivo pelo qual os homens matavam os peixes. Indignado com a resposta obtida, o peixe resolve, num passe de mágica da natureza, enfeitar-se de gente para conferir de perto como a coisa acontecia. Espantado com os contrastes marcados por uma terra feia e cheia de lixo que também podia ser bela e colorida por flores, o pequeno peixe se depara ainda com várias cenas características da região pesqueira do Rio Paraguai. E neste percurso outros personagens vão surgindo, como o turista pescador, e as diversas espécies de peixe encontradas no Rio Paraguai ali mencionadas. Inconformado com a matança, o peixe Pacu ainda se lembra da comovente resposta de Pedro, o Pescador e antes de voltar para as profundezas do Rio se defronta com a afirmação que ao livro vale como um ápice da narrativa. Tem muita gente com fome, Pacu! é a máxima que se repete como o soar de um bumbo ou como o vaguear do trem que ali já fora um meio de transporte muito prestigiado. Ao voltar para casa, onde podia juntar esforços, pacu convoca jurupocas, lambaris, tuviras, piquiras, bagres, dourados e traíras entre outras modalidades de pescados do Pantanal para que, numa fantástica recorrência da antropomorfização, pudessem dar uma lição nos homens que por ali passavam unicamente para explorá-los, como acontece então ao fim da narrativa que em suas últimas páginas ganham as melhores ilustrações da obra. UM SÓ CAMINHO PARA TRÊS LIVROS DIFERENTES Diante do que fora até aqui exposto, ressaltamos que nossa intenção não se limita a comparar as três obras apresentadas. Nem ao menos desejamos atribuir categorias de valores que possam classificar uma obra como melhor em relação à outra. Nossa proposta, iniciada pela apresentação dos três trabalhos se conclui no encontro das características estéticas e éticas que se despontam como ponto comum entre elas. O sonho de Xoréu é uma narrativa que fala de liberdade e da possibilidade de realização dos sonhos, um desejo universal dos homens, apresentado na experiência de uma ave típica do pantanal, representando na síntese dos discursos que compõem a obra, uma fiel integração entre o local e o universal apresentados pela literatura. Exemplo da poesia infantil brasileira, livre de categorias pedagógicas e moralistas, as páginas de Doce de Letras são um convite ao dever de casa. Como quem recebe uma receita e pretende experimentá-la mais tarde, para conferir se pode dar certo, a criança leitora pode encontrar pelas páginas do livro momentos singulares de fruição e leveza. No que diz respeito às aventuras de Pacu: um peixe que vivia feliz nas águas do Rio Paraguai, podemos encontrar numa simples narrativa, o modelo de um belo projeto gráfico, no qual as imagens elaboradas pela própria autora remetem ao exercício da leitura mediada pelo relevante papel que as ilustrações exercem nos livros produzidos para crianças. No que diz respeito ao estético e o ético como categorias fundamentais ao livro escrito para crianças, Maria Zaira Turchi reconhece que: Considerar o livro para crianças um objeto estético é reconhecer-lhe o estatuto de arte, não de obra paradidática, e perceber sua capacidade de construir um espaço textual plurissignificativo do ser humano diante do mundo. (....) Escrever para crianças não é dominar artifícios que venham a preencher um rótulo, mas é ser capaz de expressar-se dentro de uma ética de uma troca significativa em que o leitor se sinta tomando parte no mundo da leitura.(TURCHI, 2004, p. 38). Desta forma, doces, sonhos e águas são alguns dos ingredientes que compõem a literatura infantil produzida em Mato Grosso do Sul em perfeita harmonia com o contexto social, e pronta para cumprir o papel de formação do sujeito leitor que se reconhece nas experiências e nas ilustrações trazidas por estas obras que por nossa consideração critica merecem e devem ser lidas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CECCANTINI, João Luís C. T. (org.). Leitura e Literatura infanto-juvenil: Memória de Gramado. Cultura Acadêmica; Assis, SP: ANEP, 2004. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo, Contexto. 2004. MIRANDA, Marisa Santos. Doce de Letras. São Paulo: All Print, 2004. MIRANDA, ___________. O sonho de Xoréu. Assecom Assessoria de Comunicação e Editora. Campo Grande, MS, s/d. MOURÃO. Marlene. Pacu: era um peixe que vivia feliz nas águas do rio Paraguai. Corumbá-MS, M. Mourão. 2002.