A participação das pessoas casadas no processo. Fredie Didier Jr. Advogado. Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado). 1 Consideração introdutória. O casamento é fato jurídico que repercute de modo bastante significativo no processo civil, mais especificamente em relação à capacidade processual das pessoas casadas. Essa capacidade processual possui regramento próprio: artigos 10 e 11 do CPC, que serão objeto de estudo mais delongado1. Há relação, no particular, entre o Código Civil e o Código de Processo. Os arts. 10 e 11 do CPC-73 apenas repercutem o regramento já contido na legislação material nos arts. 1.643 a 1.648, adiante examinados. 2 Distinção entre capacidade e legitimidade. A correta interpretação do tema impõe que se rememore a distinção entre capacidade e legitimidade. A capacidade é a aptidão genérica para a prática dos atos da vida civil. A legitimidade é a aptidão específica para a prática de determinado ato. Os cônjuges são civilmente capazes. São, portanto, também processualmente capazes. Essa é a regra. A lei, no entanto, retira a aptidão para a prática de determinados atos processuais. Nesses casos, embora capazes, faltar-lhes-ia legitimidade processual (ad processum). 3 Capacidade processual dos cônjuges nas ações reais imobiliárias. 3.1 O art. 1.647 do CC-2002. O artigo 1.647 do CC-20022 cuida dessas hipóteses de ilegitimidade: não tem o cônjuge legitimidade para, sem autorização do outro, praticar os atos ali arrolados. Interessa, neste momento, o inciso II desse artigo, que restringe a capacidade processual das pessoas casadas nas demandas reais imobiliárias: a participação de ambos os cônjuges, nessas hipóteses, é exigida. Essa restrição da capacidade visa proteger o patrimônio imobiliário familiar. 3.2 A restrição da capacidade processual e a ressalva prevista no Código Civil de 2002. O inciso II do art. 1.647 do CC-2002 tem cunho eminentemente processual. Cuida da capacidade processual das pessoas casadas, no pólo ativo, e da exigência de 1 O art. 350, par. ún, CPC, cuida da capacidade do cônjuge para confessar, nas causas em que se discutam imóveis: a confissão de um só é eficaz com o consentimento do outro. Também aqui incide o art. 1.647 do CC-2002, adiante examinado, que dispensa essa autorização nos casos de casamento sob regime da separação absoluta. 2 Art. 1.647. “Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; (...)” 1 litisconsórcio passivo, nas causas relacionadas a direitos reais imobiliários3. O inciso aplica-se também às causas que versem sobre direitos reais imobiliários sobre a coisa alheia, por força do inciso I deste mesmo artigo, que a eles faz referência (“gravar de ônus real”)4. Conforme ressalvado no caput do artigo 1.647 do CC-2002, não se aplica a exigência de participação do consorte quando o casamento se der em regime de separação absoluta de bens (arts. 1687-1688 do CC-2002). “As vedações são aplicáveis aos regimes de bens de comunhão parcial, de comunhão universal e de participação final de aqüestos”5, no último caso se não houver acordo pré-nupcial neste sentido. Trata-se de uma mudança promovida pelo CC-2002: é que, de acordo com o CC-1916, havia exigência de consentimento prévio do cônjuge para a prática dos atos enumerados no art. 235 do código revogado, qualquer que fosse o regime de bens. Em razão de a restrição de capacidade (exigência de consentimento prévio do outro cônjuge), de que cuida este artigo, não mais subsistir para as hipóteses de matrimônio sob o regime da separação absoluta, algumas regras processuais devem ser interpretadas à luz deste novo regramento. As exigências previstas no caput e no §1o do art. 10 do CPC deixam de incidir quando se estiver diante de partes casadas entre si sob o regime da separação absoluta6. Há dúvida se essa ressalva aplica-se a qualquer regime de separação de bens, legal ou convencional. Correto Humberto Theodoro Jr., que afirma não haver razão para a distinção: se o regime for o da separação de bens, pouco importa se por força de lei ou manifestação de vontade, fica dispensada a vênia conjugal7. Também se dispensa o consentimento do consorte nos casos de casamento sob regime da participação final dos aqüestos, com cláusula no pacto antenupcial em que se permita a alienação/oneração de bem imóvel sem a autorização do outro cônjuge (art. 1.656 do CC-2002)8. O cônjuge somente pode demandar em juízo sobre um direito real imobiliário se o outro lhe der autorização neste sentido (art. 10, caput, CPC-73). “A locução legal é ampla e abrange, além das ações diretamente relacionadas aos direitos reais catalogados” no Código 3 Nelson Nery Jr. e Rosa Nery (Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6a. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 286) lembram de norma do CPC português (art. 28-A), cujo texto é mais claro: “1. Devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família. (...) 3. Devem ser propostas contra o marido e a mulher as acções emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão susceptível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as ações compreendidas no número 1”. 4 NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6a. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 286. 5 LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p. 258. Em sentido contrário, NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6a ed. São Paulo: RT, 2002, p. 285. 6 No mesmo sentido, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. “Algumas regras do Novo Código Civil e sua repercussão no Processo – prescrição, decadência etc.” Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2003, n. 5, p. 81; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado. Antônio Carlos Marcato (coord.). São Paulo: Atlas, 2004, p. 69. 7 THEODORO Jr., Humberto. O Novo Código Civil e as regras heterotópicas de natureza processual. Disponível em: www.abdpc.org.br/artigos/artigo52.htm, consultado em 22.10.2004, às 11h04. Miguel Reale também entende que se não devem tratar distintamente os regimes da separação obrigatória e da separação convencional (Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo: RT, 2003, p. 62-63). Retifica-se, assim, o entendimento defendido em DIDIER Jr., Fredie. Regras processuais no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 117 — já na segunda edição desta obra não consta a posição que restringe a ressalva à separação convencional. 8 Art. 1.656 do CC-2002: “No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos aqüestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares”. 2 Civil, “quaisquer outras, ainda que indiretamente relacionadas com aqueles direitos”, como as ações envolvendo hipoteca, a demolitória, a divisória, a nunciação de obra nova etc.9-10 Não é caso de litisconsórcio ativo necessário, figura, aliás, que não existe — ninguém pode ser obrigado a demandar em juízo somente se outrem também assim o desejar. Trata-se de norma que tem o objetivo de integrar a capacidade processual ativa do cônjuge demandante. “Dado o consentimento inequívoco, somente o cônjuge que ingressa com a ação é parte ativa; o que outorgou o consentimento não é parte na causa”11. Nada impede, porém, a formação do litisconsórcio ativo, que é facultativo. Quando a causa versar sobre direito real imobiliário, na coisa própria em ou coisa alheia, ambos os cônjuges devem ser citados (art. 10, §1o, I e IV, CPC)12-13. Aqui, diversamente, trata-se de hipótese de litisconsórcio passivo necessário. O Código Civil não cuidou do problema da participação dos cônjuges nas ações possessórias (que não são demandas reais, pois o direito à proteção possessória não é direito real, embora muitas vezes com os direitos reais se relacione). O CPC trata do assunto no §2o do art. 10: a participação do cônjuge, nestes casos, restringe-se às situações de composse e às causas que disserem respeito a ato por ambos praticado14. Há duas observações importantes a fazer em torno desse parágrafo segundo. a) Ele se refere exclusivamente às ações possessórias imobiliárias, embora não haja menção a essa qualidade no texto legal, que foi introduzido pela reforma de 1994 exatamente para esclarecer a extensão do caput e do § 1º do art. 10 às ações possessórias — e esses dispositivos, como visto, somente se referem às ações imobiliárias15. b) Fala o dispositivo em “participação do cônjuge”, locução que deve ser interpretada à luz dos outros enunciados do art. 10: no pólo ativo, a “participação do cônjuge” dar-se-á pelo consentimento16; no pólo passivo, será exigido o litisconsórcio necessário. Nos casos mencionados, poderá o cônjuge que não foi ouvido: a) ingressar no processo e pedir a anulação dos atos até então praticados; b) ajuizar ação rescisória (art. 485, V, do CPC-73), se a demanda tiver sido ajuizada pelo outro cônjuge sem o seu consentimento e já houver trânsito em julgado; c) ajuizar ação de nulidade transrecisória (p. ex.: art. 741, I, 9 ASSIS, Araken de. “Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postulatória”. Doutrina e prática do processo civil contemporâneo. São Paulo: RT, 2001, p. 127. 10 “Há pelo menos uma situação em que a autorização do marido é desnecessária à propositura de ação real imobiliária pela mulher: reivindicação de imóvel comum transferido por ele à concubina (CC, art. 1.632, V, que estende a possibilidade a ambos). Nesse caso, há manifesto conflito de interesses entre os cônjuges, sendo prescindível até o suprimento do consentimento”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71.) 11 NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6a ed. São Paulo: RT, 2002, p. 285. Também assim, Thereza Alvim. O direito processual de estar em juízo. São Paulo: RT, 1996, p. 41; BUENO, Cassio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 39; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p. 118; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 70. Na doutrina lusitana, Abílio Neto. Código de processo civil anotado. 16a ed. Lisboa: Ediforum, 2001, p. 107. 12 Incisos I e IV do § 1º do art. 10 do CPC: “Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para as ações: I - que versem sobre direitos reais imobiliários; (...) IV - que tenham por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges”. 13 “A previsão abrange também as hipóteses de vínculos e restrições impostos pelo testador ou pelo doador, como inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade... Aqui não se trata de ação fundada em direito real, pois a causa de pedir está restrita aos fatos que, no entender do autor, revelem a existência ou o direito à constituição ou extinção de um desses ônus. A pretensão não tem fundamento em direito real”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit. p. 72.) 14 § 2º do art. 10 do CPC: “Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticados”. 15 Assim, PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., cit., p. 509. 16 Em sentido diverso, para quem o dispositivo contempla “um dos poucos casos de litisconsórcio necessário ativo”, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit. p. 73. 3 CPC-73) ou ação rescisória, se não tiver sido citado em ação real ou possessória imobiliária proposta contra o seu cônjuge17. Mas não é só. O parágrafo único do art. 669 do CPC18 impõe a intimação do cônjuge do devedor, quando houver penhora de bem imóvel. Esta exigência impõe a formação de um litisconsórcio ulterior necessário no processo de execução e a sua falta é vício que pode ser argüido a qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 47 do CPC). A intimação, nesses casos, justificava-se na regra de direito material que condicionava a alienação de imóvel ao consentimento do outro cônjuge19. Como esta exigência não mais se aplica aos casos de casamento sob o regime da separação absoluta, ou de participação final nos aqüestos, havendo pacto antenupcial neste sentido (art. 1.656 do CC), quando houver penhora de devedor casado sob um desses regimes, é desnecessária a intimação a que alude o parágrafo único já mencionado20. As restrições aplicam-se a ambos os cônjuges, sem qualquer distinção entre marido e mulher. Deve o artigo ser interpretado restritivamente, porque se trata de norma que limita o exercício de direitos21. 3.3 Forma e prova do consentimento. A lei não prevê forma para o consentimento — diversamente do que fez com a aprovação (art. 1.649, par. ún., CC-2002), que é um consentimento concedido posteriormente à prática do ato. O consentimento prévio é, a princípio, ato de forma livre (art. 107 do CC2002). Nada impede, por exemplo, que a autorização para a propositura de ação real imobiliária (art. 1.647, II) seja dada na própria petição inicial, eis que, em relação à prova do consentimento, se aplica a regra do art. 220 do CC-2002, segundo a qual “a anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento”. Há, porém, outros meios de prova, por exemplo: a) assinatura da procuração para o advogado que atuará na causa; b) documento criado com essa exclusiva finalidade, que será anexado à petição inicial. 3.4 Aplicação dos dispositivos relacionados às pessoas casadas aos companheiros em união estável. Questão das mais tormentosas é a da aplicação desses dispositivos (art. 1.647 do CC-2002; art. 10 do CPC-73) à união estável. Como é possível intuir, há duas possibilidades, antagônicas entre si, de interpretação do texto legal. Embora só se refira aos cônjuges, há quem defenda a extensão das exigências deste artigo à união estável, sob o argumento de que a ela se aplicam as regras da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC-2002), salvo se houver contrato escrito em que se estabeleça 17 Sobre o cabimento, nestes casos de litisconsorte necessário não-citado, de querela nullitatis e até mesmo ação rescisória, ver FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. “Réu revel não citado, querela nullitatis e ação rescisória”. In: Ensaios de direito processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 243-268. 18 Parágrafo único do art. 669 do CPC: “Recaindo a penhora em bens imóveis, será intimado também o cônjuge do devedor”. 19 “A regra se revela simétrica à que exige vênia conjugal nos atos voluntários de alienação ou de oneração dessa espécie de bens”. (ASSIS, Araken. Manual do processo de execução. 7ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 646). 20 Anteviu a questão ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 646. 21 LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p. 258. 4 a separação absoluta22. Se se trata de um bem que pertence à comunhão, a sua alienação não poderia prescindir do consentimento de ambos os companheiros. Cumpre advertir o seguinte: o terceiro, neste caso, ficaria um tanto desprotegido, em razão da ausência de registro da união estável. Convém que o terceiro observe esta circunstância na hora de celebrar o contrato. De todo modo, fica-lhe garantido o direito de regresso contra o companheiro que contratou sem consentimento. Não se nega que, na situação, haverá um conflito de interesses entre duas pessoas de boa-fé: o terceiro e o companheiro enganado. Um dos dois haveria de ser prestigiado. À luz do art. 226, caput, da CF/88, que aponta para a circunstância de que o Estado deve dar especial proteção à família (no caso, a união estável), fica-se com a interpretação que protege o patrimônio familiar23. Há como pensar em sentido contrário, porém. É que, como não há registro da existência da união estável, e embora a publicidade da relação seja um requisito para a configuração desta entidade familiar, realmente torna-se difícil ao terceiro proteger-se de eventuais prejuízos, não podendo ser aplicado esse regime processual especial aos companheiros24. O problema aumenta de tamanho quando se percebem as dificuldades de estabelecer, com precisão, os limites temporais da união estável desde quando a relação pode ser considerada como juridicamente tutelada, a exigir a participação do companheiro na prática dos mencionados atos? A segurança jurídica fica sobremodo comprometida. Nesse caso, assegura-se ao companheiro(a) prejudicado(a) o direito de regresso contra a sua companheira(o). A lição de Gustavo Tepedino resume bem essa postura doutrinária: “(...) em matéria de direito de família, faz-se necessário extremar as normas que se destinam a regular os efeitos do casamento, como ato jurídico solene, das normas que visam disciplinar o casamento como relação familiar. Aquelas, à evidência, não podem ser aplicadas às uniões estáveis, já que dependem essencialmente do ato solene, pressuposto fático para a sua incidência. Assim, por exemplo, a disciplina do regime de bens e o título sucessório decorrente da qualidade jurídica de pessoa casada, bem como a exigência de outorga do cônjuge para a concessão de fiança. Cuida-se de regras que devem incidir exclusivamente sobre relações constituídas pelo casamento, título indispensável à sua aplicação em razão da segurança jurídica. A publicidade inerente à qualidade de pessoa casada vincula-se à ratio de tais normas, sendo dado a qualquer interessado constatar, junto aos registros públicos, o regime jurídico do cônjuge, com quem se pretende negociar ou cuja consistência patrimonial se quer conhecer”.25 22 LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p. 258. “Por fim, reputo imperioso reservar o mesmo regime do art. 10 do Código de Processo Civil para as situações em que há união estável, sob pena de violar o comando do art. 226, § 3o, da Constituição Federal. Evidentemente que a existência deste regime pode demandar a necessidade de prova a cargo do interessado. O que releva, no entanto, é que, naqueles casos em que se sabe da existência da união estável, deverão os companheiros ser citados como litisconsortes, observando as regras aqui estudadas”. (BUENO, Cassio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 42). Também neste sentido, reconhecendo as “consideráveis dificuldades para se apurar a existência deste tipo de relação informal”, ASSIS, Araken de. “Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postulatória”. Doutrina e prática do processo civil contemporâneo. São Paulo: RT, 2001, p. 126. 24 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71; TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 455-456. 25 TEPEDINO, Gustavo. “A proteção constitucional do casamento e das novas formas de entidades familiares: critérios interpretativos”. Temas de direito civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 359. 23 5 A questão merece tratamento expresso do legislador. De cara, convém a imediata reforma do inciso II do art. 282 do CPC, de modo a se tornar obrigatória, na qualificação das partes, a menção à existência de união estável (aliás, como já vêm fazendo os bancos nos contratos de mútuo). A despeito da ausência de regramento expresso, as partes têm o dever de informar, em suas qualificações, a relação de companheirismo, sob pena de litigância de má-fé. Os valores em jogo têm status constitucional e merecem a atenção redobrada do intérprete/aplicador. O princípio da proporcionalidade, como é cediço, deve ser observado, como critério de harmonização de conflitos deste porte. Propõe-se a seguinte interpretação: a) se se trata de união estável notória, a participação do companheiro, ao que parece, deve ser exigida, impondo-se a sua intimação; b) se, embora não sendo notória, for alegada nos autos, convém que também se providencie a integração do ato com a intimação do companheiro faltante; c) se não houver notoriedade nem menção nos autos, após o trânsito em julgado caberá ao companheiro preterido apenas a pretensão regressiva contra o seu companheiro, não sendo possível cogitar de qualquer caso de rescindibilidade da sentença. A solução, porém, não pode ser alcançada em um juízo abstrato (em tese); o magistrado, à luz do caso concreto, diante das suas particularidades, valendo-se da técnica da proporcionalidade, é que encontrará a solução adequada. 3.5 O controle da ilegitimidade processual do cônjuge. Há uma difícil questão que merece análise especial: pode o magistrado controlar ex officio, ou por provocação do réu, a ilegitimidade processual do cônjuge, que demandou sem o consentimento do outro, ou esse controle somente pode ser feito a partir da provocação do cônjuge preterido? Pode o magistrado indeferir a petição inicial por falta de comprovação da outorga? Diante da regra segundo a qual cabe ao magistrado o controle dos “pressupostos processuais” (art. 267, § 3º, CPC), não haveria maiores dúvidas quanto à possibilidade de o juiz controlar também a capacidade processual dos cônjuges. Sucede que, por força do art. 1.649 do CC-2002, somente o cônjuge preterido tem legitimidade para pleitear a invalidação do ato praticado sem o seu consentimento26. É característica da legitimação (de que é exemplo o art. 1.647 do CC-2002) a tutela de interesses estranhos ao sujeito que sofre a restrição da capacidade: ao impor o consentimento uxório/marital, o legislador visa proteger o cônjuge que não pratica o ato jurídico27. Não pode, assim, o magistrado invalidar o procedimento sem que o cônjuge preterido o provoque — e isso mesmo se o réu apontar a falta de comprovação do consentimento28-29. 26 Art. 1.649 do CC-2002: “A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal”. 27 MANES, Humberto. A legitimação negocial. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1982, p. 56. 28 Dizendo tratar-se de caso de “nulidade relativa”, que necessita argüição do interessado, embora sem fazer referência ao Código Civil, THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 41ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 76. Reconhecendo apenas ao cônjuge preterido a legitimidade para argüir a ausência de consentimento, PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 3, p. 510. O inciso VIII do art. 301 do CPC permite ao réu apontar a “falta de autorização”, como defeito processual. Esse texto aplicase às pessoas jurídicas autoras, quando a propositura da demanda por seu presentante exigir a autorização prévia de um órgão societário. 29 Em sentido diverso, reconhecendo a possibilidade de controle ex officio da falta de autorização, embora reconheça que a questão é polêmica, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 70-71. 6 Essa situação, contudo, deixaria o processo permanentemente instável, pois a qualquer tempo poderia comparecer o cônjuge preterido, solicitando a invalidação dos atos praticados; ou, caso não comparecesse ao longo do processo, o que é ainda mais grave, poderia ajuizar ação rescisória da sentença por violação aos textos legais mencionados. O réu ficaria submetido a situação bastante desigual, pois a sua vitória ficaria na dependência de o cônjuge preterido ficar em silêncio. Há, pois, um conflito a ser resolvido: de um lado, a regra material que restringe a legitimidade para argüir a invalidade, de outro, a utilidade do exercício da função jurisdicional, que sempre deve ser protegida (existindo, para isso, o poder geral de cautela do art. 798 do CPC). A solução que mais bem compatibiliza os dispositivos é a seguinte: deve o magistrado, de-ofício ou a requerimento, determinar ao autor que traga a comprovação do consentimento; se não a trouxer, deve o magistrado, valendo-se do poder geral de cautela e observando o seu dever de velar pela igualdade processual (art. 125, I, CPC), determinar a intimação do cônjuge preterido, que poderá (a) se calar, quando se presumirá o consentimento, (b) expressamente aprovar os atos já praticados, dando o consentimento para o prosseguimento do processo, (c) negar o consentimento, quando então poderá o magistrado não admitir o procedimento, invalidando a demanda por incapacidade processual. 3.6 Suprimento judicial do consentimento (art. 11 do CPC e art. 1.648 do CC-2002). O magistrado poderá suprir o consentimento de um dos cônjuges, se houver recusa sem justo motivo ou quando for impossível ao cônjuge concedê-la (art. 1.648 do CC200230 e art. 11 do CPC-73). Não há qualquer utilidade na conceituação, em abstrato, do que seja justo motivo. Será no caso concreto, diante das peculiaridades da situação que se lhe for apresentada, que o magistrado averiguará a relevância do motivo da recusa do consentimento31. A impossibilidade de concessão do consentimento, no entanto, é situação objetiva: toda vez que um dos cônjuges não puder dar o consentimento, em razão de impossibilidade física, permanente ou temporária, poderá o magistrado suprir a outorga. É o que pode ocorrer quando um dos cônjuges estiver gravemente enfermo ou desaparecido, ou quando um deles estiver servindo o país em uma guerra. O art. 11 do CPC traz norma semelhante. O pedido de suprimento judicial da outorga será processado de acordo com as regras da jurisdição voluntária. Adotar-se-á o procedimento regulado nos arts. 1.103-1.111 do CPC-73. O outro cônjuge deverá ser citado, sob pena de nulidade, pois é interessado (art. 1.105 do CPC-73). Quando não puder manifestar-se (caso de impossibilidade de concessão da autorização, por exemplo), deverá o magistrado nomear-lhe curador especial, a fim de resguardar os seus interesses (art. 9o, I, do CPC-73, aplicado por analogia). O Ministério 30 Art. 1.648 do CC-2002: “Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la”. 31 Também neste sentido, SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.461. Eis os exemplos de Paulo Lôbo: a) quando se prova que o ato é vantajoso ou necessário para ambos os cônjuges ou para a família; b) quando o ato de liberalidade (fiança, aval e doação) não leva a riscos desarrazoados ao patrimônio familiar (Código Civil Comentado, p. 258). 7 Público deverá ser ouvido, necessariamente, também sob pena de nulidade (arts. 84 e 1.105 do CPC-73). Da decisão que conceder ou negar o pedido, caberá apelação (art. 1.110 do CPC73). Em situações de urgência, é possível a concessão de provimento antecipatório, desde que preenchidos os requisitos genéricos previstos no art. 273 do CPC-73. Cabe ao magistrado (juízo singular) com competência material para as causas de família o suprimento da autorização marital/uxória prevista neste artigo. Cumpre advertir, porém, que a competência territorial será a do domicílio do cônjuge que se recusa ou está impossibilitado de fornecer o consentimento (aplicação analógica do disposto no art. 94 do CPC-73)32. Esse pedido de suprimento deve ser feito antes do ajuizamento do processo, normalmente; em caso de urgência, é possível o ajuizamento sem o suprimento, pedindo ao magistrado da causa prazo para comprová-lo. Se o magistrado competente para a causa também o for para suprir o consentimento, nada impede que, já na petição inicial, se peça o suprimento da outorga. Neste caso, imprescindível a instauração de um incidente processual, em que seja ouvido o outro cônjuge quando isso for possível e o Ministério Público. Esse incidente deve suspender o processo. 4 Dívidas solidárias e litisconsórcio necessário entre os cônjuges (incisos II e III do § 1º do art. 10º do CPC). Os incisos II e III do § 1º do art. 10 do CPC33 trazem duas regras que revelam uma desarmonia entre o direito processual e o direito material: impõem o litisconsórcio necessário passivo entre os cônjuges, quando demandados por dívidas solidárias. A solidariedade passiva dos cônjuges, nos casos previstos naqueles incisos, possui um regramento processual diverso daquele previsto para a generalidade das obrigações solidárias: o credor não pode escolher um dos devedores para demandar, sendo eles casados entre si — retira-se, aqui, o benefício do art. 275 do CC-200234. O CPC impõe o litisconsórcio necessário sem norma de direito material que dê qualquer indicação nesse sentido. Eis as hipóteses. Primeiramente, o inciso II impõe o litisconsórcio quando se tratar de demanda resultante de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles. São hipóteses de causas de responsabilidade civil. O art. 942 do CC-2002 prevê a responsabilidade solidária de todos os co-autores da ofensa35. Há solidariedade passiva por força de lei (art. 265 do CC-2002), mas o fato de os co-autores serem casados entre si redefine o regime jurídico 32 Diante da igualdade dos cônjuges prevista constitucionalmente, não se deve mais aplicar a regra do art. 100, I, do CPC73, que poderia ser usada como parâmetro para a analogia, que prestigia o foro do domicílio da esposa para as causas que disserem respeito ao casamento. 33 Art. 10, incisos II e III, do CPC: “II - resultantes de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles; III - fundadas em dívidas contraídas pelo marido a bem da família, mas cuja execução tenha de recair sobre o produto do trabalho da mulher ou os seus bens reservados...” 34 Art. 275 do CC-2002: “O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto”. 35 Art. 942 do CC-2002: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932”. 8 processual dessa obrigação solidária, retirando do credor o benefício do art. 274 do CC-2002, impondo o litisconsórcio necessário36. Agora, o inciso III. Ao mesmo tempo em que submete o cônjuge à necessidade de consentimento prévio do outro, para a prática de certos atos (art. 1.647 do CC-2002; art. 10, caput, CPC-73), a legislação cuidou de especificar alguns atos que podem ser praticados sem a vênia conjugal (art. 1.643 do CC-2002)37. Trata-se de atos relacionados à administração da economia doméstica. Esta permissão aplica-se a qualquer regime de bens. Cria-se uma presunção legal iure et de iure de que o cônjuge está, nesses casos, autorizado pelo outro cônjuge a contrair dívidas. “Assim, não pode o outro cônjuge alegar a falta de sua autorização, quando ficarem evidenciadas as despesas de economia doméstica, que ele e os demais membros da família foram destinatários. Não se incluem as despesas suntuárias ou supérfluas, ainda que tendo destino o lar conjugal, pois não se enquadram na economia doméstica cotidiana”.38 O art. 1.644 do CC-200239 cria uma regra de solidariedade legal (art. 265 do CC-2002) entre os cônjuges, com relação às dívidas contraídas para os fins de administração da economia doméstica. Nos casos de cobrança de tais dívidas, em razão da solidariedade legal e da regra do art. 10, § 1o, III, CPC-73, exige-se a formação de litisconsórcio passivo necessário entre os cônjuges, para que se possam atingir os bens de ambos os cônjuges. Como observa Paulo Lôbo, “essa norma, em conjunto com os arts. 1.659, IV, e 1.664, encerram as hipóteses nas quais o patrimônio comum responde por dívidas contraídas por um dos cônjuges”. 40 Embora solidária a dívida, nesses casos os devedores-cônjuges devem ser demandados conjuntamente, e, não, isoladamente. A redação do inciso III do § 1o do art. 10 do CPC precisa ser revista: não se se restringe mais ao marido a possibilidade de contrair dívidas em nome da família nem se pode mais falar de bem reservado da mulher. Viu-se que ambos são autorizados a contrair as dívidas para a economia doméstica e que ambos respondem por elas solidariamente. Justificava-se o inciso em razão da possibilidade de a mulher responder, com seus bens, por dívidas contraídas em benefício da família (art. 246, par. ún., do CC-1916, e art. 3o da Lei Federal n. 4.121/62). Como agora há solidariedade legal, é desta forma que deve ser lido o mencionado dispositivo da legislação processual: a cobrança de dívidas oriundas dos negócios previstos no art. 1.643 do CC-2002 deve ser dirigida a ambos os cônjuges, em litisconsórcio necessário, se se quiser executar bens de ambos os cônjuges41. A falta de citação de um deles impede que a sentença lhe possa produzir qualquer efeito, embora possa ser executada em face do cônjuge já citado (o caso aqui é de litisconsórcio necessário simples). 36 “Não fossem os autores casados, a responsabilidade solidária tornaria desnecessária a formação do litisconsórcio (CC, art. 942). A existência da sociedade conjugal, todavia, afasta a faculdade de escolha conferida ao credor pelo legislador material”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71.) 37 Art. 1.643 do CC-2002: “Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro: I – comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica; II – obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir”. 38 LÔBO, Paulo, Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p. 252. 39 Art. 1.644. “As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges”. 40 LÔBO, Paulo Código Civil Comentado, p. 252. 41 Em sentido diverso, para quem, nos casos de dívida contraída pela mulher, com base nos arts. 1.643 e 1.644 do CC2002, tendo em vista a inexistência de previsão de litisconsórcio necessário, é desnecessária a citação do marido na demanda proposta contra a devedora, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, p. 72. 9 O caso é de litisconsórcio necessário simples por força de lei. Assim, se não houver a citação de um dos cônjuges, o processo é valido e eficaz para aquele que foi citado, mas a execução não poderá recair sobre os bens que componham a meação ou os bens particulares do cônjuge não-citado42. 42 THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 41ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 77. 10