Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 O HABITUS CULTURAL DE DARCY RIBEIRO EM LÍNGUA INGLESA: UM ESTUDO DA TRADUÇÃO DE BRASILEIRISMOS TERMINOLÓGICOS PRESENTES NA OBRA O POVO BRASILEIRO Talita SERPA1 RESUMO: Com o objetivo de investigar a possível existência de um habitus, ou seja, de padrões de ação que os indivíduos adquirem por meio de suas experiências e práticas sociais, no âmbito da tradução de brasileirismos terminológicos na direção português ↔ inglês, analisamos um corpus paralelo da subárea de Antropologia da Civilização, composto pela obra O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), de autoria do antropólogo Darcy Ribeiro e pela respectiva tradução, realizada por Gregory Rabassa. Para tanto, apoiamo-nos nos Estudos da Tradução Baseados em Corpus (BAKER, 1993, 1995, 1996, 2000), na Linguística de Corpus (BERBER SARDINHA, 2000, 2004) e, em parte, na Terminologia (BARROS, 2004; FAULSTICH, 2000) e na Sociologia da Tradução (SIMEONI, 2007; GOUANVIC, 2002, 2005). A metodologia utilizada requereu o uso do programa WordSmith Tools, o qual nos proporcionou os recursos para o levantamento dos dados e para a análise dos aspectos culturais e textuais. Quanto aos comportamentos tradutórios de Rabassa, os resultados obtidos mostraram intensa variação vocabular na tradução de brasileirismos, como em: “agregado”: hired hand, share-cropper, worker e household servant. A recorrência ao uso desses recursos permitiu-nos verificar a possível formulação de um habitus passível de ser estruturado para os Estudos da Tradução. O uso dos recursos disponibilizados pela Linguística de Corpus contribuiu para a compreensão do papel desempenhado pelos tradutores, por meio das diferentes escolhas lexicais com distintos sentidos sociais, o que pode ser compreendido como uma tendência do habitus tradutório em obras voltadas ao estudo da sociedade brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Estudos da Tradução Baseados em Corpus; Brasileirismos Terminológicos; Habitus Tradutório. ABSTRACT: Intending to investigate the possible existence of an habitus, i.e., action patterns which some individuals acquire through their experiences and social practices, related to the translation of terminological brazilianisms from Portuguese into English, we analyzed a parallel corpus of Social Anthropology of Civilization sub-area, composed by the work O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil (1995), written by the anthropologist Darcy Ribeiro, as well as by its translation, performed by Gregory Rabassa With this aim, we used the theories of Corpus-Based Translation Studies(BAKER, 1993, 1995, 1996, 2000), of Corpus Linguistics (BERBER SARDINHA, 2000,2004) and, in part, of Terminology (BARROS, 2004; FAULSTICH, 2000) and of Sociology of Translation (SIMEONI, 2007; GOUANVIC, 2002, 2005). The methodology required the use of the program WordSmith Tools, which has provided the resources for collection of data and for the observation of cultural and textual aspects. Considering Rabassa’s translational behavior, the results obtained from our corpus showed that the translator presented strong variation in the translation of the brazilianisms, such as in : “agregado”: hired hand, share-cropper, worker 1 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Estadual Paulista - Câmpus de São José do Rio Preto. Docente Titular da União das Faculdades dos Grandes Lagos – Câmpus de São José do Rio Preto. [email protected]. 1 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 e household servant. Recurrence to use these features allowed us to verify the possible formulation of a translational habitus that can be associated to Translation Studies. The use of the resources provided by Corpus Linguistics contributed to the process of awareness of the social role played by translators, through different lexical choices endowed with different social meanings, which represent a trend in the translational behavior in works aimed to study the formation of the "Brazilian people." KEYWORDS: Corpus-Based Translation Studies; Terminological Brazilianisms; Translational Habitus. 1 Introdução As distintas subáreas das Ciências Sociais sempre estiveram preocupadas com a possível compreensão das estruturas que mantêm os seres humanos organizados em sociedade. Por diferentes vias, Antropologia, Ciência Política, Economia, Sociologia, etc., esta área consolidou-se em uma proposta teórico-metodológica autônoma, a qual se tornou mais clara com publicações como as de Auguste Comte, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Dentro destas teorizações, as questões culturais, voltadas à formação das religiões, tradições, mitos e cultos, assim como às formas de casamento, nomenclaturas de parentesco, leis civis e sistemas de organização de poder, passaram a ser estudadas, especificamente, pela Antropologia, permitindo aos pesquisadores descobrirem a dinâmica de certas construções culturais, construções estas que, uma vez institucionalizadas, regulavam e davam sentido a práticas sociais complexas. Os conjuntos de comportamentos orientariam as atividades humanas de modo que os costumes agiriam como instituições e fontes de valor (MICELI, et.al., 1989). Por volta do início do século XX, os estudos antropológicos voltaram-se para a delimitação das linhas estruturais das culturas e sociedades da América Latina e para a difusão das proposições teóricas europeias nos países em desenvolvimento, promovendo a elaboração de um trabalho científico interacional nas nações ameríndias. Com isso, houve um processo tradutório intenso, com o objetivo de adequar os textos originais (TOs) às novas necessidades contextuais de investigação, alterando não somente os elementos linguísticos, mas também as relações entre os povos envolvidos e elevando a tradução a um caráter de ato cultural. Nesse âmbito, autores, como Snell-Hornby (1986) e Wolf (1995), propuseram que os TOs, assim como os textos traduzidos (TTs), podem ser compreendidos como conteúdos sociais que representam pontos de vista distintos para a conceituação de um conjunto de costumes comum. A tradução assume-se enquanto textualização de valores culturais de diferentes grupos humanos implícitos na linguagem; e o contato com povos e sociedades, antes consideradas inferiores, leva à interação com novas práticas sociais. No que concerne às Ciências Sociais, o papel do tradutor associa a mediação cultural a um reconhecimento interpretativo do repertório cultural e social da Cultura Fonte e da Cultura Meta. De maneira geral, a tarefa concentra-se nas mãos dos estudiosos da área, deixando de lado fatores como a formação profissional do tradutor e o conhecimento das etapas de um processo tradutório. Quanto à pesquisa antropológica no Brasil, esta teve início com a criação do curso de Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Escola de Sociologia e Política (ESP), na década de 30. Nesta época, a pesquisa realizada no país permanecia baseada em 2 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 investigações e teorias europeizadas e tinha por principal material os relatos históricos dos grupos colonizadores, ainda escritos em línguas europeias. Na contramão das perspectivas analíticas pré-concebidas e importadas, antropólogos brasileiros, como Darcy Ribeiro, propuseram a elaboração de uma teoria que se concentrasse na construção de uma avaliação das condições de promoção do processo civilizatório deste país, livre da ação teórica precedente. O autor trabalhar uma multiplicidade de papéis sociais de personagens brasileiros, o que lhe permite concentrar a análise antropológica nacional em dois focos principais: a questão dos índios e negros e a formação da identidade do povo brasileiro, criando assim uma série de seis livros intitulada Antropologia da Civilização (doravante AC)2. Darcy Ribeiro promove novos parâmetros, cria novos termos e recategoriza hipóteses precedentes, adaptando-as à proposta de uma Antropologia Brasileira. Dessa maneira, o estudioso procura trabalhar um conjunto de teorias que se desvencilha das traduções das propostas metodológicas precedentes. Meggers, arqueóloga e tradutora da primeira obra da série, atenta para o fato de que Darcy realiza uma crítica ao evolucionismo cultural no que tange à postura eurocêntrica de análise, a qual projetaria um ideal de sociedade como etapa final do percurso evolutivo humano, baseado na experiência civilizadora europeia. A teórica observa que, [...] os melhores estudos sobre evolução cultural foram elaborados por estudiosos europeus ou norte-americanos e, em virtude disso, corroboram, implícita ou explicitamente, esse ponto de vista. Ribeiro, entretanto, não é um produto da nossa tradição política ou acadêmica. É um cidadão do chamado "terceiro mundo". Como tal, encara o desenvolvimento cultural sob um prisma distinto e percebe nuances que para nós permanecem encobertas. O fato de não compartilhar do nosso parcialismo não significa, simplesmente, que ele seja imparcial. Todavia, os pontos focais de sua análise que mais se contrapõem a nossas concepções não podem ser rejeitados sob a alegação de preconceito. Não apenas porque suas qualificações profissionais o recomendam à nossa atenção, mas, sobretudo, porque só combinando outras perspectivas com a nossa própria poderemos distinguir entre a verdade e a distorção e alcançar, finalmente, uma compreensão realista do processo civilizatório. A conquista de tal percepção é, sem qualquer dúvida, crucial para a existência humana sobre a Terra. 3 (Prefácio de MEGGERS, 1968, p.10; traduzido por Ribeiro, 1975, p.11). 2 As publicações compreendem os trabalhos: O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural (1968); As Américas e a civilização (1970); Os índios e a civilização (1970); O dilema da América Latina (1971); Os brasileiros (1972); e O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995). 3 The best known works on cultural evolution are the products of European or United States scholars, and as a result they explicitly or implicitly support this view. Ribeiro, however, is not a product of the Euro-American scholastic or political tradition, but a citizen of the "Third World." As such, he sees cultural development from a different perspective and consequently notices things that remain hidden to us. This is not to say that he has no bias simply because he does not share ours. Those points in his analysis that challenge our conceptions, however, cannot be dismissed on the ground of prejudice, not only because his professional qualifications entitle him to a respectful hearing, but because only by combining other perspectives with ours can we distinguish truth from distortion and so ultimately arrive at real understanding of the civilizational process. Without any doubt, the achievement of such understanding is crucial to man's continued habitation of the earth. 3 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 Dentro desse quadro, o presente trabalho busca observar o comportamento linguístico 4 de um tradutor ao lidar com dificuldades oriundas do processo tradutório da principal obra de AC, a qual apresenta como característica uma terminologia relacionada ao uso de brasileirismos e de termos e expressões voltados para a compreensão da Cultura Brasileira. Para tanto, apresentamos os resultados da pesquisa realizada a partir do TO em português O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), e do TT para o inglês The Brazilian People: formation and meaning of Brazil (2000), realizado por Gregory Rabassa. Nesse sentido, partindo dos aspectos previamente mencionados, por meio da reflexão sobre aproximações e distanciamentos na tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e semifixas presentes nos corpora do TO e do TT, objetivamos desvendar, com o auxílio da Linguística de Corpus (BERBER-SARDINHA, 2000, 2004), mecanismos de reinterpretação cultural por meio da prática tradutória, principalmente no que diz respeito ao conjunto léxico de brasileirismos terminológicos. Nesse sentido, valemo-nos, também, das teorias postuladas pela Sociologia da Tradução (SIMEONI, 1998, 2007; TOURY, 1978, 1995, 1999; GOUANVIC, 1997, 1999, 2002, 2005), com o propósito de descobrir se há a ocorrência de um habitus tradutório para a tradução intercultural de textos seminais de Darcy Ribeiro. 2 Fundamentação Teórica O presente trabalho tem por principal abordagem as proposições teóricometodológicas apresentadas por Baker (1993, 1995, 1996, 1999) para os Estudos da Tradução Baseados em Corpus. De acordo com a autora, a investigação de TTs fundamenta-se nos Estudos Descritivos da Tradução, com aporte, principalmente, nos estudos de Even-Zohar (1978) e de Toury (1978). A teórica também faz uso das análises de Sinclair (1991), quanto aos constructos teóricos da Linguística de Corpus. Baker (1995) aponta que a análise de corpus constitui-se como uma rica fonte de material descritivo-comparativo, a qual pode auxiliar na percepção de diferenças entre a linguagem da tradução e a de textos originalmente escritos em uma dada língua. Nesse sentido, compreende o conceito de corpus como [...] um conjunto de textos naturais (em oposição a exemplos/sentenças), organizados em formato eletrônico, passíveis de serem analisados, preferencialmente, em forma automática ou semi-automática (em vez de manualmente). 5 (BAKER, 1995, p.226; traduzido por Camargo, 2007, p.18). É importante notar que a Linguística de Corpus auxilia na investigação de TTs por configurar-se como um estudo de ordem empirista, o qual considera a linguagem como um sistema probabilístico. Com isso, notamos que as Línguas Fonte (LF) e Meta (LM) apresentam dada regularidade, o que permite que sejam mapeadas de acordo com os distintos contextos de uso. Por conseguinte, no âmbito da tradução, é possível delinear, por meio da análise de corpora, quais as condutas recorrentes no processo de transposição de uma língua a outra. Isso significaria dizer que, como expõe Berber Sardinha (2004, p. 31), a linguagem é padronizada e não um conjunto de escolhas aleatórias de indivíduos isolados. 4 Entende-se por comportamento linguísticos as escolhas léxico-semânticas e sintáticas adotadas pelos tradutores na composição de seus TTs. 5 Corpus mean[s]any collection of running texts (as opposed to examples/sentences), held in electronic form and analysable automatically or semi-automatically (rather than manually). 4 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 Para a fundamentação de nosso trabalho também nos valemos de alguns pressupostos da Terminologia, visto que suas teorias tendem a fornecer subsídios para a formulação de material necessário à atividade tradutória, de maneira que os profissionais da área possam ter acesso rápido aos termos apropriados nos mais diversos campos de produção técnicocientífica. Sendo assim, observamos os termos especializados, entendidos como a “designação, por meio de uma unidade linguística, de um conceito definido em uma língua de especialidade” (ISO 1087, 1990, p.5, apud BARROS, 2004, p. 40). Compreendemos, ainda, que “termos” caracterizam conceitos específicos de um domínio de especialidade. Quanto à definição de “expressões fixas”, Baker (1992) considera que são expressões consagradas, referentes a determinados tipos de texto, e que permitem pouca ou nenhuma variação. No caso das expressões semifixas, Camargo (2005) aponta que apresentam maiores variações e carregam consigo todo um contexto, podendo ser consideradas especificas de uma determinada língua de especialidade. No âmbito da construção terminológica na área das Ciências Sociais, Barros (2004) acrescenta que cada povo recorta a realidade objetiva de maneira distinta e que as debilitações conceituais das representações sociais são designadas por unidades lexicais que, consideradas como signos de domínios específicos da atividade da comunidade sociocultural, podem ser afirmadas como unidades terminológicas. No caso das pesquisas realizadas no Brasil, é possível considerar o léxico de especialidade como sendo formado por dados brasileirismos, os quais, de acordo com Coelho (2003), podem ser compreendidos como índices linguísticos da identidade do povo brasileiro. Para Faulstich (2004), algumas destas entidades linguístico-culturais assumem um quadro conceitual que é mais de natureza terminológica do que de linguagem comum, compondo os chamados brasileirismos terminológicos, os quais podem ser definidos como “palavras, locuções e outra estrutura sintagmática criada e formada no Brasil, que tenha significado autônomo e esteja encerrada num conceito de especialidade, que possibilite reconhecer a área a que pertence” (FAULSTICH, 2004). Dessa forma, no que concerne à tradução da produção teórica de Darcy Ribeiro, verificamos que as questões sociais, presentes na utilização de brasileirismos, são relevantes para a adequação de uma nova teoria social a um público alvo que faz uso da LM. Acreditamos, ainda, que as escolhas terminológicas que os tradutores adotam, em seus TTs, correspondem ao que Simeoni (1998, 2007) e Gouanvic (1997, 1999, 2002, 2005) chamam de habitus tradutório, conceito cujas bases remontam a teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1972, 1980, 1982). A proposta teórica concernente à tradução é a de que os tradutores são motivados por determinados habitus pelos quais se inserem em campos de atuação distintos. De acordo com Bourdieu (1972, 1980), entende-se por habitus um conhecimento adquirido em sociedade que permite a regulação das práticas sociais de modo consciente. Esta consciência integra o conjunto das disposições que constituem a competência para que os agentes (tradutores) tenham acesso a estratégias adequadas e possam obter maiores possibilidades de lucro (sucesso). O habitus é constituído, na realidade, por todas as medidas, padrões de ação ou percepção que os indivíduos adquirem por meio de sua experiência social. Ao socializaremse, os homens incorporam maneiras de pensar, sentir e agir, que são sustentadas pelo coletivo. Bourdieu (1972, 1980, 1982, 1984) considera que estas disposições são a fonte de práticas futuras dos indivíduos. Notamos que a ação tradutória pode ocorrer, portanto, no interior dos campos em que é gerada pelos TOs, primeiramente, havendo uma atividade constante de adaptação, 5 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 negociação e reinserção dos dados linguísticos e extra-linguísticos em um ciclo de cooperação e desenvolvimento. Os tradutores são agentes envolvidos nestes procedimentos, de modo a operarem e transformarem o processo tradutório por meio do trabalho de seus habitus. O produto de uma tradução constitui uma vasta área de análise da interação social, o que nos permite ampliar nosso ponto de vista sobre características e valores das sociedades de partida e de chegada. Podemos identificar, por meio de um olhar sociológico, alguns condicionantes sociais que delimitam o habitus tradutório contidos no léxico terminológico, assim como reconhecer as estratégias de exposição de dados culturais em outras sociedades. Neste âmbito, por meio da análise de corpus, é possível verificar as recorrências lexicais e terminológicas como tendências à obediência das condutas tradutórias ou à assimilação de um habitus reincidente que acaba sendo reconhecido pela observação do produto, ou seja, o TT. A proposta de um padrão para a tradução de termos corrobora, por conseguinte, a visão sociológica de que os tradutores assumem uma dada postura e que se adequam a condutas semelhantes. 3 Material e Método Para esta investigação, foi compilado um corpus principal paralelo, composto pela obra: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), de autoria de Darcy Ribeiro; e pela respectiva tradução para o inglês: The Brazilian People: formation and meaning of Brazil (2000), realizada por Gregory Rabassa. O levantamento dos dados foi realizado com a utilização das ferramentas Keywords e Concord do software WordSmith Tools, as quais facilitam a compilação dos termos e expressões, assim como de seus contextos de uso. Para a extração de palavras-chave, que podem constituir os termos antropológicos estudados, é necessário trabalhar com corpora de referência pelo menos cinco vezes maiores que os corpora de estudo. Dessa forma, em português, utilizamos o corpus Lácio-Ref, um corpus aberto e de referência do português contemporâneo do Projeto Lácio-Web, composto de textos em português brasileiro, tendo como característica serem escritos respeitando a norma culta. A taxonomia de gêneros do Lácio-Ref é composta por textos científicos, de referência, informativos, jurídicos, prosa, poesia, drama, instrucionais e técnicoadministrativos (ALUÍSIO et. al., 2003). Da mesma maneira, para extraímos as palavras-chave em inglês, empregamos, como corpus de referência, o British National Corpus (BNC Sampler), composto por textos originalmente escritos em inglês e desenvolvido pela parceria de membros da Oxford University Press, Longman Group Ltd., Chambers Harrap, Oxford University Computing Services, UCREL – Lancaster University e British Library Research and Development Centre. 4 Análise dos resultados Para a análise de um possível habitus tradutório para os brasileirismos terminológicos no contexto de produção da obra O povo brasileiro, procedemos, a princípio, a compilação das listas palavras-chave do TO. Entre as cem palavras-chave do corpus acima mencionado, vinte revelaram-se, como possíveis brasileirismos, a saber: “brasilíndio”; “cabano”; “caboclo”; “caipira”; “criolo”; “cunhadismo”; “eito”; “engenho”; “escravaria”; “gaúcho”; “gentes”; “indiada”; “jesuítas”; “matuto”; “mulato”; “patronato”; “seringal”; “sertanejo”; “sertão”; e “tupi”. 6 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 Estes dados revelam uma tendência à utilização de termos voltados à descrição da cultura nacional. Com isso, passamos a observar o processo tradutório de Rabassa, atentando para sua disposição em propagar a linguagem darcyniana, por meio da variação lexical e do empréstimo como possíveis opções de tradução. Dessa forma, entre as cem palavras-chave do corpus do TT, verificamos as seguintes ocorrências de empréstimo: bandeirantes; cabano; caboclo; caipira; cunhadismo; gaúcho; gringo; mameluco; matuto; quilombo; sertão; e tupi. Ao gerarmos as listas de palavras-chave na LM, verificamos a reiteração e a aceitação das proposições do TO. Rabassa associa um habitus do brasilianismo a sua compreensão de habitus tradutório e coloca esses dois princípios acima da necessidade da padronização terminológica, acentuando os valores sociais tão apreciados por Darcy Ribeiro em sua Antropologia e ampliando as possibilidades de escolhas lexicais que vão, ao longo da obra em língua inglesa, compondo os ambientes e agentes sociais para que a identificação do leitor com essas “personagens” típicas e necessárias ao entendimento do conceito de Brasil fique ainda mais próxima. A maior parte das palavras-chave não fica no campo da Antropologia, mas sim, do brasilianismo, o que permite que trabalhemos com as noções e elementos de condições sociais pesquisados pelo autor dentro da análise geral do texto, em virtude de ocorrerem como parte importante da linguagem de especialidade do TO de Darcy Ribeiro. É interessante notar, ainda, como a relação de variação de conceitos aparece de maneira explícita no TT. Dessa forma, verificamos que, em sua produção tradutória, Rabassa fornece, além da perspectiva de um comportamento brasileiro para a AC, a internalização ao habitus tradutório da alternância vocabular para fins de constituição de conceituações e ambientações sociais mais precisas. Sendo assim, consideramos o processo de variação léxico-terminológica na tradução de alguns termos encontrados no subcorpus do TO para a concretização do campo da AC e do habitus tradutório que o acompanha. Abaixo, apresentamos o Quadro 1, com algumas das ocorrências de variação na construção dos conceitos dos brasileirismos terminológicos: Quadro 1: Lista de termos simples que apresentam variação na Tradução de Rabassa em The Brazilian People Brasileirismo Primeira Segunda opção Terceira Quarta presentes em opção de de Tradução opção de opção de OPB Tradução Tradução Tradução Boia-Fria Migrant Boia-Fria Cold Leftover Migrant Worker Field-Worker Cangaço Cangaço Banditry ------------Chimarrão Maté-Drinking Gourd Unsweetened Mate Mate Jagunço Jagunço Thug ------------Senzala Senzala Slave Quarter ------------- Verificamos, por exemplo, que, no âmbito da ideia de “cangaço” em LF, este termo corresponde à configuração de uma situação de “banditismo”, “salteamento”, “criminalidade” e “nomadismo” característicos de “comunidades mestiças” específicas do nordeste brasileiro. Os membros destes núcleos humanos andavam sempre armados e em bandos. Viviam de saques e assaltos, sendo sempre perseguidos pela polícia ou estando em disputa com grupos semelhantes. Sua área de atuação inseria-se no Polígono das Secas, também chamado de Cangaço Independente. O “cangaço”, também caracterizado como “banditismo”, exclusivamente nordestino, pode ser considerado atualmente como uma resposta à decadência do latifúndio semifeudal, 7 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 de que era decorrência. Manifestava-se como rebelião primária contra a submissão do homem do campo às condições de miséria impostas pelos grandes proprietários de terras. Os primeiros grupos de cangaceiros apareceram no início do século XIX; porém, na década de 30, com o avanço do processo de industrialização no sudeste do país, a abertura de novas frentes de trabalho agrícola e a interrupção quase completa da imigração estrangeira que intensificou a demanda por mão-de-obra nordestina, houve uma redução considerável dos saques e roubos no agreste brasileiro. No TT, Rabassa recupera parte importante do conceito de “cangaço” ao vinculá-lo à ideia de banditry (banditismo). Esse termo caracteriza um tipo de deliquência comum às sociedades rurais de cultura tradicional e consiste no aparecimento de bandos armados que saqueiam, sequestram e assaltam viajantes, citadinos, representantes do Estado e das camadas mais altas da sociedade. Invadem vilas, povoados e cidades, mas evitam atacar comunidades rurais, as quais, muitas vezes, os ajudam e protegem, idealizando-os como heróis. Ao ligar a concepção de “cangaço” aos preceitos do termo banditry, o tradutor apresenta à Cultura Meta uma característica comum ao povo brasileiro, ou seja, a tendência que os grupos necessitados possuem de considerar os “malandros” ou “bandidos sociais” como salvadores e redentores dos padrões de cidadania nacional. Rabassa adequa-se à teorização darcyniana e transpassa o papel de tradutor, adotando a postura de um defensor de novas relações sociais. O “banditismo” (banditry) aparece, também, nos contatos entre sociedade rurais e as sociedades de tipo feudal ou aristocrático, onde uma minoria dominante de senhores, ou nobres e mercadores, monopoliza a riqueza e explora duramente a população agrícola de “servos”, “vassalos”, “meeiros”, “colonos” ou dependentes de qualquer natureza. Do ponto de vista cultural, o “banditismo” pode ser encarado, por sua vez, por suas manifestações mais recentes, como uma sobrevivência, um fóssil das sociedades arcaicas, encravado num contexto tradicional ou moderno. Dessa maneira, podemos depreender das escolhas de Rabassa que o tradutor desenvolve um habitus inovador que, a partir da leitura do TT, tem a opção de também adotar o uso de empréstimos auxiliados por explicitações do sentido. Esse comportamento se daria não apenas no ambiente da Tradução, mas também em situações de adequação e análise de fatores sociais que são desconhecidos às comunidades de chegada, como vimos com a exposição das investigações em Sociologia da Tradução. Os exemplos apresentados em nossa pesquisa mostram a maneira como a ordem social nacional é trabalhada por Darcy Ribeiro e como as opções de tradução de Rabassa, muitas vezes, podem desvelar fatores ocultos à própria leitura do TO. Conhecer o processo de constituição do TT permite aos tradutores assumirem, por conseguinte, o supramencionado habitus do brasilianismo, o qual lhes permitirá lidar melhor com os elementos da Cultura Fonte e da Cultura Meta. Rabassa evidencia primeiramente uma relação do brasileirismo terminológico com alguns conceitos que lhe são próximos na LM e depois acrescenta, com empréstimos, os valores culturais que vão sendo incorporados na sociedade de chegada e podem passar, posteriormente, a constituir a terminologia da área. Em O povo brasileiro ocorre a apresentação de uma nomenclatura de certa forma recente à língua de especialidade, a qual coloca sob foco questões relacionadas à composição da identidade nacionalista na maior nação da América Latina. A partir dessas constatações, passamos a observar como o tradutor trabalha o uso terminológico das expressões fixas e semifixas que se constituem enquanto brasileirismos, considerando a variação que se estabeleceu no processo tradutório da subárea de AC. Abaixo, 8 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 apresentamos o Quadro 2, com exemplos de expressões que sofreram variação na composição terminológica dos brasileirismos no TT: Quadro 2: Lista de expressões fixas e semifixas que apresentam variação na Tradução de Rabassa em The Brazilian People Expressões Fixas Primeira opção de Segunda opção de Terceira opção e Semifixas Tradução Tradução de Tradução Cultura Caipira Backwoods Culture Caipira Culture ------Lavrador/es Matuto Farmworker/s Rustic Farmworker/s ------Matuto/s Negro/s Boçal/is Black/s Primitive Black/s Boçal Black/s Negro/s Quilombo Black/s Fugitive Black Slave/s ------Quilombola/s Patronato Sugar BossesRegime Sugar Barons Sugar Bosses Açucareiro Notamos que no TT as opções de recombinação entre as expressões, que podem promover a constituição de conceitos um pouco distintos dos do TO, ocorrem com maior frequência no plano dos adjetivos utilizados pelo tradutor. Esse dado permite-nos observar que, em O povo brasileiro, os fatores sociais típicos da formação da nação constituem categorias ou características, as quais sofrem mudanças de significação durante o processo tradutório. Encontramos, assim, outro elemento de modificação do habitus tanto tradutório quanto antropológico, pela consciência da repercussão dos novos conceitos sobre a linguagem de especialidade. Dessa forma, passamos a observar as alternações entre os vocábulos backwood e caipira associados ao termo culture (“cultura”) no TT. Estes dois qualificadores são utilizados por Rabassa em correspondência à expressão “cultura caipira”, apresentada por Darcy Ribeiro. Para compreendemos as significações que as expressões representam, faz-se necessário conhecer o valor que o termo “cultura” (culture) assume para as Ciências Sociais. É difícil estabelecer uma única definição para esse elemento extremamente importante para a compreensão de qualquer sociedade. Para Kroeber e Kluckhohn (1952), A cultura consiste em padrões explícitos e implícitos de comportamento e para o comportamento, adquiridos e transmitidos por meio de símbolos, e que constituem as realizações características de grupos humanos, inclusive suas materializações em artefatos; a essência mesma da cultura consiste em ideias tradicionais (i.e.,derivadas e selecionadas historicamente) e especialmente nos valores vinculados a elas; os sistemas culturais podem, por um lado, ser considerados produtos de ação e, por outro lado, elementos condicionadores de ação posterior. (KROEBER; KLUCKHOHN, 1952, p.181). Estes teóricos observaram que, com o passar do tempo, as definições de “cultura” proliferaram como conceito central da Antropologia. A definição clássica seguida pela maioria dos cientistas sociais brasileiros é a de Boas (1930), A cultura abrange todas as manifestações de hábitos sociais de uma comunidade, as reações do indivíduo quando afetado pelos hábitos do grupo 9 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 no qual vive e os produtos de atividades humanas quando determinadas por esses hábitos. (BOAS, 1930, p.79). No Dictionary of Anthropology (1961), culture é descrita como tudo que é transmitido socialmente nas comunidades e sociedades, incluindo os padrões de comportamento artístico, social, ideológico e religioso; assim como as técnicas para manipular o ambiente humano. O termo “cultura” (culture) é geralmente utilizado para identificar “agrupamentos sociais” que são menores que as “civilizações”. Dessa forma, ao adicionar ao conceito o contexto da “sociedade caipira”, Darcy Ribeiro restringe os comportamentos e padrões de “convivialidade” ao grupo social brasileiro, evidenciando características estruturais da tradição, da história e das normas socioculturais nacionais. A ideia de “caipira”, no Brasil, vem do termo tupi Ka'apir ou Kaa - pira, que significa "cortador de mato". Trata-se do nome que os índios guaianás, do interior paulista, deram aos colonizadores brancos, assim como aos “negros”, “caboclos” e “mulatos” que adentraram o país nas “expedições bandeirantes”, na condição de “escravos”. Constitui também uma designação mais ampla, voltada aos habitantes das regiões situadas principalmente no interior do sudeste e centro-oeste do país. Em oposição ao “caipira”, encontramos a “gente da cidade” que vive nas regiões metropolitanas e os “caiçaras” que constituem a população litorânea. É interessante salientar que o núcleo original do “caipira” foi formado pela região do Médio Tietê (SP), onde se consolidaram as primeiras “vilas” do Brasil Colônia, das quais partiram as mais importantes “bandeiras” no desbravamento do interior. Sendo isolados da relação direta com a “metrópole”, esses “assentamentos” geraram uma cultura bastante peculiar e localizada, que preservava fatores de dominação colonialista relacionados ao “tradicionalismo católico” e os atrelava a “superstições” e “folclores indígenas”. Para os leitores brasileiros, o tipo humano do “caipira” e sua “cultura” têm sua origem no contato entre o colonizador branco, os índios nativos (“gentios da terra” ou “bugres”) e os negros escravizados. Assim, segundo Cornélio Pires (1921) o “caipira” dividia-se em quatro categorias, segundo suas “etnia”, cada uma delas com suas peculiaridades, a saber: 1) o caipira caboclo, descendente dos índios catequizados pelos jesuítas. Seu maior exemplo é o Jeca Tatu, descrito na obra Urupês (1918) de Monteiro Lobato; 2) o caipira negro, descendente dos escravos. Foi imortalizado pelas figuras históricas da “mãe-preta” e do “preto-velho”. 3) o caipira branco, descendente dos “bandeirantes”, uma “nobreza” decaída, orgulhosa do sobrenome europeu, como por exemplo os Camargos, os Paes Leme, os Pires e os Prados. Este núcleo é católico e miscigenou-se com o colono italiano. Compõe-se de pessoas pobres, mas que ainda mantêm a propriedade de pequenos lotes de terras rurais, os chamados “sítios”. 4) o caipira mulato, descendente de africanos com europeus. Raramente visto como proprietário. Para Pires (1921) trata-se do “mais vigoroso, altivo, [d]o mais independente e [d]o mais patriota dos brasileiros”. Excessivamente cortês, galanteador para com as senhoras, jamais se humilha diante do “patrão”. Apreciador de “sambas” e bailes, não se mistura com o “caboclo preto”. 10 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 Para o mesmo autor, em sua obra Conversas ao Pé do Fogo (1921), existem ainda os caipiras cafuzos6 e os caipiras caborés7, os quais são raros na região do interior paulista. Além disso, existem diversas outras nomenclaturas pelas quais os “caipiras” podem ser descritos, alguns exemplos são: “araruama”; “baiano”; “beira-corgo”; “beiradeiro”; “biriba”; “botocudo”; “brocoió”; “caapora”; “caboclo”; “caburé”; “capiau”; “chapadeiro”; “curau”; “curumba”; “jeca”; “mateiro”; “matuto”; “mixanga”; “pé-duro”; “pé-no-chão”; “roceiro”; “sertanejo”; “sitiano”; “tabaréu”; e “urumbeba”. No âmbito do TT de Rabassa, notamos que, em um primeiro momento, o tradutor optou por relacionar a ideia de “caipira” ao território em que eles vivem, o backwoods. No Oxford English Dictionary (1961), esse termo representa um lugar que está longe de qualquer grande cidade ou da influência da vida moderna. Há também o conceito de backwoods man, o qual se relaciona à pessoa que vive em uma região afastada da cidade, onde a população é pequena e não tem muita instrução ou bons costumes. Em LM, o trabalho tradutório parece relacionar o esquema estrutural que representa o termo “cultura” primeiramente ao ambiente e ao espaço, desconsiderando os demais fatores folclóricos, raciais e identitários que o vocábulo “caipira” denota. Contudo, assim como com os termos simples, Rabassa procurou englobar as questões sociais brasileiras com o empréstimo e incorporação de novas palavras ao vocabulário em inglês. Nesse sentido, a constituição da identidade do “caipira” e da “cultura caipira” pode estar associada ao termo hillbilly ou à expressão country people que significam, respectivamente, pessoas que vivem em áreas montanhosas e costumam ser tidas como estúpidas pelas populações urbanas, e pessoas que vivem no campo, em fazendas ou pequenas propriedades de subsistência. Para os leitores do público alvo, por conseguinte, “caipira” refere-se a um conjunto de habitantes rurais de áreas isoladas de alguns estados (no caso, brasileiros), o qual apresenta baixa escolaridade e é visto de maneira depreciativa. O que notamos é que no TO darcyniano, assim como na acepção do termo para os leitores brasileiros, o conceito de “cultura caipira” traz consigo elementos de interpretação positiva que remetem à identidade de um grupo e à “miscigenação” do povo brasileiro, a qual é vista como parte indispensável para a compreensão da “etnicidade nacional” pelo autor. Em LF, não encontramos, na definição do conceito, as ideias de ignorância e falta de conhecimento. As diferenças são tratadas de modo afirmativo, condicionando a compreensão do brasileiro para uma possível aceitação deste grupo e para um sutil apagamento das distinções culturais, o que pode não acontecer ao leitor de LM, que reconhece as relações de subjugação e dominância. Ao recompor as noções de uma “cultura” que é compreendida somente pela nação brasileira, Rabassa intercala dois conceitos que, na LM, evocam disputas territoriais, preconceitos raciais e hierarquizações econômicas, os quais tenderam a ficar em um segundo plano dentro da literatura antropológica produzida por Darcy Ribeiro. Com a avaliação das variantes que recaem sobre a constituição terminológica de expressões, notamos que, ao contrário do que ocorre com os termos simples, as alternâncias de significação não ficam alocadas apenas em temas regionais ou em brasileirismos. Nossa pesquisa em O povo brasileiro mostrou como tradições e costumes típicos dos brasileiros, assim como atos e atores culturais, são importantes para a compreensão dos estudos antropológicos elaborados por pesquisadores brasileiros. Notamos, ainda, que na maior parte das ocorrências de usos de brasileirismos, o tradutor optou por manter a 6 Cafuzo é a designação dada, no Brasil, aos indivíduos resultantes da miscigenação entre índios e negros africanos ou a seus descendentes. 7 Do Tupi: Mestiço de negro e índio. Pessoa trigueira, tirante a caboclo. 11 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 constituição conceitual em LF, somando a esse trabalho o uso de termos e vocábulos da LM, os quais servem como explicações ou simplificações das ideias contidas na Cultura Brasileira. Podemos, dessa maneira, reconhecer o comportamento comum que constitui o habitus tradutório da terminologia em AC, que pode ser elucidado sob a seguinte estrutura, no que se refere aos termos: Quadro 3: Estrutura do habitus tradutório para brasileirismos na obra The Brazilian People EMPRÉSTIMO DO TERMO EM LF ACOMPANHADO DO USO DE TERMOS SEMELHANTES EM LM (ELEMENTO ASSOCIATIVO –EXPLICATIVO) Muitos dos exemplos referidos como brasileirismos são também palavras-chave de nossa pesquisa; entretanto, alguns destes termos socialmente marcados apresentam baixa frequência assim como baixa chavicidade, o que não nos impediu de analisá-los, visto que constituem os núcleos lexicais de maior complexidade para o processo tradutório, auxiliam na compreensão da teoria darcyniana e associam-se a termos recorrentes das Ciências Sociais para formar expressões específicas que designam fatores típicos da nacionalidade brasileira, como, por exemplo: “sociedade cabocla” caboclo society; “população matuta” matuto population e “vilas coloniais gringas” gringo colonial villages. Tendo observado as regularidades comportamentais apresentadas por Rabassa, formulamos uma estrutura, semelhante à elaborada para os termos simples, a qual mostra as principais opções que constituem o habitus tradutório em AC, no âmbito das expressões fixas e semifixas: Quadro 4: Estrutura do habitus tradutório para expressões (brasileirismos) na obra The Brazilian People EMPRÉSTIMO DO TERMO EM LF SOB A FORMA DE ADJETIVO ACOMPANHADO PELO USO DE UM TERMO COMUM ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS QUE SOFRE ALTERAÇOES DE SENTIDO COM A SOMA DO BRASILEIRISMO Com a análise de algumas das expressões utilizadas em LF e de suas respectivas traduções, notamos que o campo teórico desenvolvido por Darcy Ribeiro foi sendo aprofundado e, com o tempo, aproximou-se de questões socioculturais específicas na constituição da nacionalidade brasileira. Por conseguinte, consideramos que a elaboração do léxico de especialidade da AC em português representou uma tendência a criar relações identitárias entre a comunidade leitora e as proposições analíticas darcynianas. Como vimos com o uso do termo “brasileiro”, assim também ocorre com os demais vocábulos relacionados aos atores sociais nordestinos, sulinos, paulistas, etc., que auxiliaram na fundamentação da sociedade atual. Compreendemos que o TO configura sua função social como sendo a de proporcionar ao público brasileiro um conhecimento de si próprio que não seja atrelado à visão do outro. Novamente, apontamos que, para Darcy Ribeiro, o maior objetivo da Antropologia Brasileira era criar valores de reconhecimento nacional, coletividade e ação mútua para o país. No que concerne ao TT, por sua vez, verificamos a aproximação do léxico na composição da linguagem de especialidade. Contudo, salientamos que, ao contrário do que ocorre no TO, a teoria que se difunde na sociedade de chegada representa uma função 12 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 explicativa do brasileiro e não condiciona uma leitura que identifica e engloba o leitor nas conceituações do objeto de pesquisa. Para o público alvo da LM, trata-se de conhecer a leitura de um povo “em desenvolvimento” pela ótica de seus próprios intelectuais, mas isso não significa um atrelamento ou um reconhecimento de si na leitura das novas concepções antropológicas. Acreditamos que, ainda que apresente o “brasileiro” de maneira bastante semelhante nas escolhas de termos e expressões, utilizando, com frequência os empréstimos, Rabassa proporciona, à comunidade receptora do TT, uma obra que se apresenta como um ato social novo, um ato que estrutura e modela tanto as futuras investigações antropológicas quanto a terminologia da área, que se enriquece com novos conceitos. No entanto, é importante ressaltar que, ainda que a LM receba os termos e expressões socialmente marcados e os “acolha” na terminologia da área, mantêm-se, como verificamos em nossa pesquisa, variações de conceito, de modo que, na maioria das ocorrências, a recepção da ideia de “brasileiro” precisa ser explicitada, além de apresentar noções culturais distintas, como vimos no uso de “boia-fria”, “caipira” e “caboclo”, por exemplo. 5 Considerações Finais Esta investigação, fundamentada nos Estudos da Tradução Baseados em Corpus (BAKER, 1993, 1995, 1996), na Linguística de Corpus (BERBER SARDINHA, 2000, 2004, 2010; TOGNINI-BONELLI, 2001), na Sociologia da Tradução (TOURY, 1995; SIMEONI, 1998, 2007; GOUANVIC, 1995, 1999, 2002, 2005) e, em parte, na Terminologia (AUBERT, 1996; BARROS, 2004; KRIEGER & FINATTO, 2004), segue a proposta de um estudo interdisciplinar desenvolvida por Camargo (2004, 2005, 2007) para a observação do processo tradutório do conjunto léxico de especialidade da AC de Darcy Ribeiro para a língua inglesa nas duas obras que compõem nosso corpus principal. Com o auxílio desta abordagem, foi possível comparar, de modo empírico, os dados de formulação e variação terminológica e social dos conceitos presentes nos TOs e nos TTs. Verificamos, ainda, as possíveis alterações de sentido contidas nas escolhas lexicais de autor e tradutor para brasileirismos terminológicos, como, por exemplo: “caipira”, “cangaço”, “favela” e “jagunço”. Com isso, procuramos encontrar as bases formadoras para um habitus tradutório comum e para uma conscientização do papel social do tradutor e do TT. O sofware WordSmith Tools, por meio de suas ferramentas e utilitários, facilitou consideravelmente a pesquisa de uma grande quantidade de dados, obtidos de maneira muito mais rápida e precisa do que manualmente. As linhas de concordância serviram de apoio e esclareceram dúvidas em relação à terminologia levantada, ao apresentarem os cotextos nos quais os termos e expressões estão inseridos. As concordâncias também permitiram observar a organização das palavras dentro dos sintagmas, favorecendo a análise de que os termos não têm significado independentes, visto que seus elementos interrelacionam-se criando especificidades próprias de acordo com o contexto de situação a que se aplicam na Cultura Fonte ou na Cultura Meta. Constatamos que as expressões fixas e semifixas são comumente formadas, por Darcy Ribeiro, por meio da composição e associação entre termos em LF, como, por exemplo, em “índio” “índio missioneiro” “índio missioneiro desvirilizado”. Verificamos que o tradutor também recorre ao emprego de expressões produzidas da mesma forma, como, por exemplo: Indian missionary Indian tame missionary Indian. Como mencionado anteriormente, esses fatores favoreceram a observação de um comportamento recorrente por parte dos tradutores, o qual nos levou a trabalhar as questões sociais envolvidas no processo e no produto tradutório (TTs) por meio da verificação da 13 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 variabilidade lexical das escolhas terminológicas dos tradutores com o auxílio da teoria e das ferramentas da Linguística de Corpus. Ao analisarmos estes elementos, notamos que a Tradução constitui-se enquanto ato social, perpassando fatores linguísticos e atribuindo às palavras, e mais precisamente aos termos, valores a serem negociados entre as comunidades de partida e de chegada. Por fim, partindo da terminologização das ideologias sociais da AC, por meio da qual Darcy Ribeiro propunha a constituição de uma investigação cultural nacionalista por pesquisadores formados no país, observamos como seria possível formular um habitus para a Antropologia Brasileira. Esperamos que os dados aqui apresentados possam fornecer subsídios a professores, pesquisadores, tradutores, alunos de tradução, bem como profissionais da área de Ciências Sociais, no sentido de promover a conscientização acerca das diferenças socioculturais contidas no léxico de especialidade e, também, de oferecer material de suporte para futuras traduções e para o desenvolvimento desta conduta recorrente à prática tradutória. Referências AKON, A. Dicionário de antropologia: do homem primitivo às sociedades actuais. Lisboa: Verbo, 1983. BARROS, L. A. Curso básico de Terminologia. São Paulo: USP, 2004. BAKER, M. In other words: a coursebook on translation. Routledge: London and New York, 1992. _____. 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