DARCY RIBEIRO: CONTRIBUIÇÕES À FORMAÇÃO
DE UMA ESCOLA À BRASILEIRA
– Uma perspectiva de análise
Tatiana Bezerra Fagundes(*)
Esta resenha temática tem como objetivo problematizar as ideias de Darcy Ribeiro no
tocante a educação a partir de dois livros de grande relevância para o campo educacional, a saber:
“Nossa escola é uma calamidade” publicado em edição única no ano de 1984 pela editora
Salamandra e “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, publicado pela Companhia das
Letras, originalmente no ano de 1995 e lido em sua terceira edição (2008). Em tempos de
reassunção do compromisso público com uma educação socialmente relevante para os sujeitos que
fazem parte dela e onde se tem destacado a necessidade de ampliação da jornada escolar, torna-se
fundamental resgatar algumas obras que trazem elementos e propostas basilares para se pensar essa
educação e buscar, a partir delas, indícios que possam evidenciar alguma contribuição para
atualidade.
A escolha pontual dos livros supracitados deu-se porque, no primeiro, podemos acompanhar
uma análise e uma proposta clara do autor no intuito de fazer a educação dar certo no Brasil,
especificamente no Rio de Janeiro, lócus de sua observação e atuação e também nossa enquanto
professores e pesquisadores. No segundo, por se encontrarem subsídios que auxiliam na promoção
de um franco debate a respeito da constituição dos brasileiros enquanto povo singular e, a partir
disso, a possibilidade de refletir sobre um projeto de educação para este povo.
O formato dessa resenha segue os pressupostos de uma resenha crítica apresentando
brevemente o autor, o tema que o toca a partir das obras lidas e algumas considerações gerais e
reflexões a respeito desse tema.
Darcy Ribeiro foi um homem público que despertou calorosos debates em torno de diversos
assuntos tangentes à construção do Brasil como nação. Entre eles, o que nos ocupa nessa resenha: a
educação. Antropólogo, professor de Etnologia e Antropologia na então Universidade do Brasil,
Ministro da Educação e da Casa Civil no governo João Goulart, fundador da Universidade de
Brasília, vice-governador do Estado do Rio de Janeiro, romancista, ensaísta e autor de diversos
livros. Além dos citados acima: O processo civilizatório (1968), Confissões (1997); Maíra (1976);
O Brasil como problema (1990), entre outros tantos.
(*)
Mestra em Educação. Pedagoga na Fundação Municipal de Educação de Niterói.
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Mineiro de Montes Claros (1922), filho de uma professora que viuvou quando ele ainda
estava na primeira infância, criou-se e cuidou-se com os irmãos e com a vizinhança (RIBEIRO,
1995). Orgulhoso por não ter tido pai nem filhos, afirma que não foi domesticado e também não
precisou domesticar a ninguém.
Embora sua mãe fizesse gosto que se formasse em medicina, curso para o qual fora
aprovado, amante da cultura, da leitura e das poesias, segundo ele Drummond o desasnou,
enveredou-se para a Antropologia. Nesse período de sua formação, filiado ao partido comunista e
participante da atmosfera paulistana que, segundo sua análise, tinha a prerrogativa de possuir um
ambiente científico e intelectual de reconhecida importância, teve a ambição e a certeza, que para
ele era fruto desse ambiente, de que poderia estudar o mundo.
De acordo com suas considerações, o comunismo lhe fez herdeiro do destino humano e São
Paulo lhe deu um ideal científico de grande altitude (RIBEIRO, 1995). Todavia, em vez de
permanecer nesse local, tão logo fora formado (1946), Ribeiro seria “catapultado” para viver na
floresta, onde foi ter com os índios, passando com eles os primeiros dez anos de sua vida pósformação.
A partir dessa vivência, que se deu atravessando o Pantanal, passando pelo Brasil central e
chegando ao Amazonas, Ribeiro (2008) derivou o entendimento mais primordial a respeito dos
modos como os índios se relacionavam entre si para, mais adiante, compreender como, no encontro
dos índios com os brancos portugueses e, posteriormente, com os negros africanos, constituiu-se o
povo brasileiro. Esse é o primeiro dado relevante que, mais adiante, mostra-se indispensável para o
delineamento de uma proposta de educação para esse povo.
Duas premissas do autor são fundamentais na construção de sua obra. A primeira delas
refere-se a não neutralidade de seu trabalho, que pode ser resumida na seguinte citação: “[...] não se
iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço
ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo” (RIBEIRO, 2008, p.17). A segunda,
que liga-se intimamente à primeira, diz respeito a não aceitação da postura eurocêntrica, que, ao
tentar nos explicar, nos reduz a um povo estranho, bizarro, amorfo.
Dentro dessa perspectiva, Ribeiro escreve “Nossa escola é uma calamidade”. Apesar de essa
publicação ser anterior a “O povo brasileiro”, nela se encontram as mesmas premissas que mais
tarde viriam a dar corpo a sua última grande obra. Naquele livro, Ribeiro (1984) escancara as portas
que davam à educação pública a aparência superficial de que era para todos. Colocando-a em xeque
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e revelando toda sorte de problemas em sua condução, o autor traça um panorama sobre o programa
da escola brasileira numa linguagem que não deixa dúvidas a respeito do que quer elucidar.
Ele observa que a escola brasileira é seletista e elitista. Prepara-se em sua estrutura e em
suas pressuposições para atender as classes dominantes e não ao povo, embora receba de forma
maciça as crianças das classes populares. Ao tratá-las como crianças oriundas das classes
privilegiadas, a escola as peneira e as exclui. “Como se explica essa deseducação?” (p. 19) “Como
negar, diante desses fatos, que temos uma escola desonesta, uma escola inadequada, uma escola
impatriótica?”(p. 20) Ora, “a função da escola pública é educar as crianças brasileiras a partir das
condições que essas crianças apresentem” (p. 20).
A mentira educacional, conforme suas alegações, é cultuada e tradicional entre nós, e
provoca uma falta de vontade de enxergar a escola em sua crueza. Esta mentira expressa-se de
várias formas, sempre opondo, de um lado “um apreço palavroso a uma escola idealizada, e, de
outro lado, uma total cegueira diante de nossa escola real” (p. 28). Essa atitude, de acordo com
Ribeiro, não se restringe a esfera política governamental eleitoreira, que possui um discurso
prontamente arranjado para declarar apoio total e irrestrito ao magistério e ao sistema público de
ensino em tempos de sufrágio universal, mas revela-se, também, em muitos “falsos educadores” o
que é, para ele, “uma traição às funções que exerce” (p. 28).
Ribeiro (1984) destaca, ainda, “a política dos que não querem educar o povo” (p. 33), cujas
justificativas passam pela consideração de que existe uma carência existencial da criança pobre:
carente de família, carente de comida, carente de inteligência e possuidora de uma imaturidade que
parece não passar nem mesmo em sua fase adolescente ou adulta. Ela, a criança pobre, “toda feita
de carências” (p. 49) é percebida, então, como um caso perdido. São tão desprovidas de tudo:
inteligência, afetividade, criatividade e até coordenação motora, que logo se enquadram na
descrição de débeis mentais e são destinadas aos cuidados dos serviços que dão conta dos
excepcionais (p. 58).
Acrescente-se a isso, o que o autor chama de escandaloso processo de formação de
professores. Este seria pautado numa “pedagogia desvairada” (p. 61), com capacidade ímpar de
fazer os sujeitos sociais que passam por ele tomar como verdadeira a afirmativa de que a
imaturidade e as carências da criança pobre a tornam ineducável (p. 56), donde se conclui que ela é
pobre, porque é burra (p.58).
Herdeiro das ideias de Anísio Teixeira e admirador de sua proposta, a quem considerava o
“maior educador desse país” (RIBEIRO, 1984, p. 69), o homem de fazimentos, Darcy Ribeiro,
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resgatou a Escola Parque anisiana, a escola que deveria ser multiplicada no dia em que o Brasil
tomasse juízo, segundo Teixeira, citado por ele, e defendeu sua multiplicação nos locais em que
houvesse grande concentração de trabalhadores. Assim, acreditava Ribeiro, estaria começando a
reparação histórica com a classe popular.
Pautado, portanto, em Anísio Teixeira e dentro da situação geral da educação calamitosa por
ele descrita, o autor lançou sua proposta pedagógica para o Rio de Janeiro que desdobrava-se no
seguinte programa:
Dar às crianças um mínimo de cinco horas diárias de atenção em turmas de 25 alunos
orientados por professoras previamente preparadas para alfabetizá-las (RIBEIRO, 1984, p. 73);
capacitar os professores para que pudessem utilizar com bastante proveito o horário ampliado de
maneira que se ajustassem às necessidades das crianças pobres; reformar, dentro das possibilidades,
os cursos de professores em nível de Segundo Grau (atual Ensino Médio) e nas Faculdades de
Educação.
Ribeiro (1984) acrescenta a esse programa a necessidade de implantação de uma rede de
Escolas Comunitárias Integradas que passariam “a ser a grande reivindicação do povo eleitor [...] É
possível até que possamos, afinal, reconhecer a educação popular como tarefa primordial do Estado,
ingressando na escolarização pela via cívica que integrará todos os brasileiros na linguagem letrada
da civilização vigente” (RIBEIRO, 1984, p. 79).
A partir dessa reflexão foram lançadas as bases de sustentação dos Centros Integrados de
Educação Pública (CIEPs), as Escolas Parques, conhecidas no Rio de Janeiro como Brizolões, um
lugar onde as crianças pobres teriam maiores oportunidades de superar suas “insuficiências”,
(RIBEIRO, 1984, p. 84). Ribeiro apoiou, como muitos haviam feito antes dele (PATTO, 1999), que
as escolas eram também o lugar de livrar o país dos trombadinhas (RIBEIRO, 1984, p. 72).
A argumentação de Ribeiro (1984) no sentido de contribuir para a construção de uma
educação popular, ao ser relacionada a ideia de insuficiência da criança pobre e em defesa da escola
enquanto lugar de educar as crianças para livrá-las da delinquência, são o ponto de questionamento
mais evidente que se pode ter em relação a sua proposta no contexto de “Nossa Escola é uma
Calamidade”. Apesar das importantes reflexões todas contidas no livro, havia uma pressuposição de
que a criança pobre deveria passar por um processo de superação de insuficiências suas e de que a
“escola igualitária” (p. 80) seria o lugar para que isso ocorresse. A escola pública, pensada nessa
perspectiva, passa a ser um espaço em que se está, não para garantir a cada sujeito o direito
subjetivo de educar-se com o mundo e com os outros, em busca de um pensamento e uma vida
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autônoma, podendo planejar e definir seu próprio futuro (SENNA, 2008), mas o lugar que o molde
para se tornar um igual dentro de uma perspectiva civilizatória que, a longa data, tem apresentado
traços significativos de fragilidade (HOBSBAWM, 1995). Trata-se, nesse caso, de uma instituição
disciplinadora de corpos e mentes que tornariam esse sujeito civilizado para se (re)apresentarem a
uma classe e uma cultura estranhas a eles próprios (FLEURI, 2003).
Vale ressaltar que somos herdeiros de uma sociedade e uma ciência que privilegia um
discutível conceito de igualdade e normalidade forjado nas bases do pensamento científico burguês,
que privilegia, por sua vez, os seus cidadãos (PATTO, 1999). Não se pode, sem questionar esse
pensamento e sua construção, imaginar que a escola, ela mesma legatária dessa lógica, poderia
igualar quem quer que fosse sem que privilegiasse, inequivocamente, alguns.
Se por um lado, é possível localizar indícios de uma prerrogativa ao civilizado e uma
oblíqua ideia de insuficiência do pobre no escrito de Ribeiro naquele ano de 1984, dez anos mais
tarde viria a contribuição que consideramos a mais significativa para o campo da educação
brasileira e que nos indicam, senão o rompimento, pelo menos uma reformulação em relação à
lógica anterior. Nela podem ser encontrados subsídios que, na atualidade, nos auxiliam a pensar e
buscar o delineamento de uma proposta educativa que considere nossos modos de ser, pensar e agir
com o mundo e com os outros sem que eles sejam tomados como atrasados diante de uma dada
ideia de civilização e, ainda, sem que haja a busca de traços que identifique entre os brasileiros
comuns, alguma falta, ou anormalidade.
À medida que Ribeiro (2008) mostra os modos como fomos formados, no caldeamento de
brancos, em sua maioria portuguesa, índios e, posteriormente negros africanos, fundidos nessas três
raças, genética e culturalmente, começa a haver a percepção de que um novo gênero humano aqui
se formou de um modo sem precedentes na história. Esse novo gênero humano, diferenciou-se de
suas matrizes fundantes porque, embora as tenha tido como origem, não podia ser a elas
comparado.
Desse modo, sem condições de identificar-se com nenhuma delas, esse povo passou a
perceber-se como ninguém e a partir dessa percepção e da carência essencial de existirem na
ninguendade, foram impelidos a construir a identidade brasileira. Uma identidade que passa pelas
várias formas de mestiçagem, ao mesmo tempo em que diferencia-se de suas matrizes culturais.
Ribeiro (2008) considera que esta etnia “inclusiva” deu a conformação aos brasileiros como
uma gente só que, embora possua diferenças significativas entre si, reconhece-se em alguma coisa
tão substancial que anula essas diferenças. Dentro desse arranjo, passa a existir uma identidade
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coletiva brasileira, onde cada sujeito permanece inconfundível e inclui “sua pertença a certa
identidade coletiva” (RIBEIRO, 2008, p. 133). Tal identidade, construída para além da submissão
cultural que a Europa buscou impor, com algum sucesso entre a parcela considerada branca da
população, não se disseminou de modo tão significativo entre os brasileiros comuns. Estes
brasileiros, embora marginalizados pela fração branca da sociedade, não se colocaram a sua
sombra.
Some-se a isso, o fato de que, formados sob uma lógica outra de construção de vida, saberes
e fazeres, resultamos numa população a que Ribeiro (2008) considerou como sendo de cultura
arcaica (p. 205). Esta cultura, empobrecida em relação às suas matrizes europeias, africanas e
indígenas, constituiu o brasileiro comum como “homem tábua rasa” (RIBEIRO, 2008, p. 249). Mas,
por outro lado, por não estar preso a conservadorismos e a valores tradicionais, o tornou receptivo
às inovações e a mudanças e, nesse sentido, constituímo-nos como povo que está sendo, em vez de
sermos identificados como alguma coisa que não somos. Um povo em constante processo de
transformação, adaptação e aperfeiçoamento de si.
Percebendo-nos enquanto sujeitos sendo, a partir da leitura de Ribeiro (2008), é possível
pensar na construção de um projeto de educação que tenha uma dimensão de formação humana que
leve em conta nosso inacabamento e incompletude (FREIRE, 2005) e a ideia de um caminho que
possamos construir para nós. Dentro dessa perspectiva, podemos abrir mão de uma educação que se
coloque somente numa perspectiva civilizatória para buscarmos construí-la de maneira que nossas
pautas e nossos modos sejam considerados.
Fazer essas considerações a respeito da educação que nos contemple, parece ser possível
porque Ribeiro (2008) nos mostrou tal qual somos, tirando de nós o ranço do desvio, da
anormalidade, da estranheza. Eis sua contribuição fundamental para o campo educacional
brasileiro. Não se trata de uma proposta educacional ou de uma análise do desastre da educação no
país, menos ainda do empenho de nos fazer civilizados a partir da escola. Trata-se, dessa vez, de
reconhecer em nossos jeitos, nossos gestos, nossos modos, nossas falas, a legítima manifestação e
existência de um povo, tanto mais de nossos alunos que ainda estão sendo apenados porque se
recusam a ser simulacros de gente que não são. A partir desse conhecimento, podemos agora,
desafiados e instigados por sua obra, reinventar e fazer uma a educação à brasileira que nos permita
ir sendo, ir nos completando, ir nos fazendo.
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REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
FLEURI, Reinaldo. M. Intercultura e Educação. Revista Brasileira de Educação, n. 23, p.16-35, mai./ago. 2003.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PATTO, Maria Helena. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1999.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. Entrevista com Darcy Ribeiro no programa Roda Viva. 1995. Disponível: <youtube.com/watch?v=
x3DN6_XHuMg&list=PLD7DD71F2E3D586E8>. Acesso em: set. 2013.
______. Nossa escola é uma calamidade. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.
SENNA. Luiz Antonio. Formação docente e educação inclusiva. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 133, p. 195-219,
jan./abr. 2008.
Submetido em: outubro de 2014
Aprovado em: novembro de 2014
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