Cultura brasileira e identidade nacional em Quarup, de Antônio Callado Natália Rizzatti FERREIRA1 Resumo Este artigo propõe uma possível via de análise acerca de Quarup (1967), de Antônio Callado. A identidade nacional e cultura brasileira se encontram no centro das principais preocupações deste romance. Busca-se compreender como o tema empreendido pelo autor articula o conteúdo veiculado e os traços formais, numa dialética em que, através da matéria romanesca, seus temas atingem status de recurso estilístico, característicos da experiência da vida social brasileira. Com base nos escritos de Antonio Candido e Renato Ortiz, descortina-se em Quarup um terreno fértil para perscrutarmos a singularidade de cultura nacional. Palavras-chave: literatura brasileira; Quarup; identidade nacional; cultura brasileira. Abstract This article proposes a possible route of analysis about the Quarup (1967), novel by Antonio Callado. The national identity and Brazilian culture are at the centre of the main concerns of this book. We seek to understand how the subject undertaken by the author articulates the content aired and the formal traits, in a dialectic in which through matter novelistic themes reach status of stylistic feature, characteristic of the brazilian social life experience. Based on the writings of Antonio Candido and Renato Ortiz, Quarup is a fertile ground for we think about the singularity of national culture. Keywords: brazilian literature; Quarup; national identity; Brazilian culture. Vislumbramos em Quarup, romance de Antônio Callado2, uma multiplicidade de fontes temáticas que, em sua especificidade formal e/ou literária, compôs uma 1 Mestre em Letras pela UNESP de Assis (SP), CEP 19807-000, [email protected] fascinante imagem do Brasil como país incompleto, que está constantemente sendo inventado. Na época de sua publicação, o ano de 1967, ele causou forte impacto tanto em seu público como na crítica especializada. É o que aponta Renato Franco: “não pouparam críticas à obra, seja pela notável ambição do livro, seja pela falta de unidade e coerência, que conferiria a ele uma natureza literária caótica” (FRANCO, 1999, p. 145). Desdobrando esta ideia – a suposta “falta de unidade e coerência” à obra –, gostaríamos de apresentar ao leitor uma possível via de análise acerca do conteúdo que se formalizou por meio das lentes literárias, ou seja, como um determinado dado externo da realidade histórico-social é formalizado esteticamente no texto literário, tornando-se assim interno. A nosso ver, Quarup traz à tona a representação da estrutura social brasileira que, na busca por uma identidade nacional, debate-se com as ambiguidades de sua própria definição. Sob a ótica do narrador em terceira pessoa, desfila pelas páginas de Quarup uma multiplicidade de personagens, as quais nomeadamente excedem a cinquenta. Pela profundidade psicológica de suas experiências, o foco da história recai sobre a personagem Nando, um padre que abandona a batina para se juntar à revolução armada. Conflui, assim, um amálgama de tópicos polêmicos que dominavam até então o debate político e existencial da época: a prelazia da Igreja Católica com a crescente politização de seus sacerdotes; a fundação das Ligas Camponesas e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais; a organização e mentalização popular do Partido Comunista e grupos trotskistas; as perseguições e torturas aos guerrilheiros pelos militares;3 a burocracia do Estado; a revolução sexual e o feminismo; a proteção aos índios; as drogas etc. Para o estudioso da obra calladiana, Arturo Gouveia, “Todos [os] temas [...], inclusive o que parece, por sugestão do título do livro, ser o principal – o indianismo – não podem jamais ser dissociados da complexidade estética representada pelo narrador” (GOUVEIA 2006, p. 9). O narrador, por sua vez, para dar conta da imbricação de discursos não apenas diferentes, senão também divergentes, procede como uma “câmera cinematográfica” (o 2 Além de romancista, o escritor praticou atividade de biógrafo, dramaturgo e jornalista. Publicou mais de 20 livros, entre eles Madona de Cedro (1957), Reflexos do Baile (1976) e Bar Don Juan (1971). 3 A esse respeito inclusive, Quarup foi o primeiro romance pós-64 a tratar da violência militar profissionalizada, iniciando uma tradição literária que viria a continuar com outros. leitor se sente como se estivesse dentro da cena), deixando os comentários dos fatos ficarem por conta das próprias personagens. É através dos diálogos – o romance é estruturado quase integralmente sobre estes – que as personagens expressam suas vozes difusas, as quais ora se entrechocam, ora se complementam, por vezes se sobrepõem. Por este procedimento o narrador registra sua autonomia enquanto sujeito que anuncia os fatos exteriores, sem, contudo, posicionar-se frente a eles, e assume, por extensão, toda a carga de contradições possíveis.4 De acordo com a pesquisadora Mires Bender, Quarup apresenta “uma reflexão sobre o Brasil daquele momento, conforme é visto pelas personagens que desfilam na narrativa, e a sua idealização em busca do país que desejam formar” (BENDER, 2010, p. 2). Embora o narrador utilize os diálogos – plasmados pelas personagens – para organizar e dirigir as diferentes visões dos setores sociais do Brasil há o protagonismo de uma visão que está, contudo, encoberta nas entrelinhas, posto que não seja propriamente uma personagem romanesca. Isso não quer dizer que ela não tome proporções de uma espécie de “ator” social, cumprindo papel expressivo no desenrolar dos acontecimentos ficcionalizados. Estamos falando da figura do Estado brasileiro, cuja peculiaridade histórica foi capaz de servir de alicerce fundamental para transição da sociedade para a modernidade capitalista. Dentre os acontecimentos de Quarup, um episódio se torna ilustrativo. Trata-se do capítulo “A orquídea”, momento em que há a descrição da Expedição rumo o Centro Geográfico do Brasil. A Expedição tem por objetivo desbravar o interior do país amazônico, mais exatamente no “ponto de 10 graus e 20 minutos ao sul do Equador e 53 graus e 12 minutos a oeste de Greenwich” (CALLADO, 1974, p. 225), lugar onde “nenhum gringo, provavelmente nenhum branco jamais esteve” (CALLADO, 1974, p. 225). Tal qual o movimento geral do romance, cujos capítulos são “iniciados com uma aura em torno de algum projeto idealizador ou a ser cumprido com convicção inabalável do protagonista [e] têm no final resultados completamente invertidos” (GOUVEIA, 2006, p. 22-23), “A orquídea” principia com espírito promissor acerca do que se encontraria no marco zero brasileiro: Digno de nota, essa espécie de “protagonização de visões diferentes” (GOUVEIA, 2006, p. 15) confere ao escritor Antonio Callado certo matiz generoso em relação aos discursos dissonantes da sociedade brasileira. 4 –Pois você então não acha incrível que ainda exista um país em busca do seu coração? [...] –[...] eu gosto das coisas que estão desaparecendo... O Brasil acho que vai ser o último país que se forma no modelo antigo. (CALLADO, 1974, p. 222). É notória certa atmosfera épica à Expedição, como se o seu propósito fosse resgatar o “começo” do território nacional e assim atribuir à origem do país um cunho dignificante. Longe de serem aventureiros desnorteados, seus membros (intelectuais, pesquisadores e pessoas atreladas aos ministérios do governo) têm relativa noção de onde pisam: “– Pelos cálculos do Conselho Nacional de Geografia, o Centro do Território Nacional fica perto da cachoeira Von Martius, nome que não parece exatamente o de algum caboclo” (CALLADO, 1974, p. 225). Ao contar com o amparo das instituições governamentais, evidencia-se o caráter “oficial” da jornada, até porque o respaldo dá aos integrantes condições de sobrevivência na floresta virgem. Eles são, por exemplo, monitorados por aviões que os suprem com alimentação: – A FAB nos dará cobertura sem falta, não é, Olavo? – Pelo menos duas vezes por semana o piloto Amaral, do Correio Aéreo, passa por cima da gente para saber se está tudo certo. (CALLADO, 1974, p. 225). A ideia de uma Expedição que não só se empenha em conceituar a brasilidade, senão também procura se impor como legítima nos remete ao tema da busca pela definição do que seria a identidade do Brasil. Para esta discussão nos valeremos do antropólogo Renato Ortiz. Em seu livro Cultura brasileira e identidade nacional, o autor retoma as diferentes maneiras pelas quais os termos sugeridos pelo título foram considerados ao longo da História. Caracterizar a particularidade da cultura brasileira em relação às demais nações do mundo é um debate marcado pela ausência de consenso, até porque não é suficiente dizermos que somos diferentes, mas mostrar em que nos identificamos/unimos. Se por um lado não há consenso sobre o tema da identidade nacional, por outro lado, os divergentes pontos de vistas refletem a pluralidade de interpretações acerca do que viria a ser o nacional. É isso o que marca a própria riqueza da problemática da cultura brasileira, cujo debate intelectual tem levantado mais interrogações do que respostas. Aprofundando os estudos, Renato Ortiz aponta que as diferentes faces da discussão acerca da cultura brasileira perpassam as relações entre cultura e Estado: “a identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro” (ORTIZ, 2006, p. 8). Isso pode ser elucidado quando levamos em consideração a especificidade histórica do processo de modernização de um país de Terceiro Mundo. Ao contrário das nações europeias, as quais contaram com a participação de uma consolidada burguesia capaz de promover as transformações necessárias rumo à modernidade capitalista, no Brasil, devido à falta de uma classe social modernizadora, coube ao Estado promover as bases do desenvolvimento.5 Para tanto, o governo precisou do apoio de uma ideologia que buscasse no âmago dos brasileiros o que os unissem, o que os identificassem como uma só nação. Colocar a problemática dessa forma é dizer que o tema da construção da unidade nacional é subsumido ao tema do próprio desenvolvimento do capitalismo no Brasil, desenvolvimento este que se relaciona com o papel do Estado enquanto eixo estruturador.6 Quase que impondo a prevalência do tema nacional, o Estado “tem representado o coroamento de um ideal de modernização e de uma demanda de unificação – cultural, política, etc” (LAHUERTA, 2002, p. 105). Esta é a peculiaridade do Brasil. Dito em outros termos, o “‘Estado substitui aos grupos sociais locais na direção da luta renovadora’, substitui ‘as classes sociais em sua função de protagonistas do processo de transformação e no papel de ‘dirigir’ politicamente as próprias classes economicamente dominantes’”. (LAHUERTA, 2002, p. 104). 5 6 Foi, sobretudo, na passagem da década de 1950 para 1960 que a questão do desenvolvimento brasileiro ganhou destaque enquanto solução para a sofrida condição de nação subdesenvolvida. O foco da intelectualidade era os “[...] obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, no intuito sobretudo de remover essas barreiras em nosso caminho para o moderno”. (ARANTES, 1992, p. 15). Havia assim, “a sensação de que o Brasil era um país inacabado, mal resolvido, fora do eixo, cuja formação europeia teimava em não se completar” (ARANTES, 1992, p. 27). Voltando à Quarup, a descrição da Expedição corresponde a representação do espaço da Amazônia, lugar de onde se observa o máximo de contraste entre a vida primitiva e a civilizada. A ânsia de chegar ao Centro Geográfico, contudo, é contrastada com a pacificação de índios, com o encontro com o séquito de famintos cren-acárore (tribo dizimada pelo sarampo), com os perigos da mata (tal como a nuvem de minúsculos insetos “lambe-olhos”) e, finalmente, com um imenso formigueiro que ocupa o centro do Brasil: – O que é que houve? – riu Nando. – É a dança da posse? – Formiga – gemeu Vilaberde. – Isto é o maior panelão de saúva do Brasil. E de longe se viam formigas despertadas pelo movimento das pessoas, pela fixação do padrão, milhares, milhões de saúvas, como se os grãos de terra do mundo tivessem começado a andar transformados em içá, sabitu, tanajura. (CALLADO, 1974, p. 291) Do ponto de vista alegórico, a representação de um Brasil centralmente afetado por um buraco de formigas dá possibilidade de avaliar a excepcionalidade poética da obra de Antônio Callado. Aliás, a imagem da formiga é recorrente no espectro da literatura brasileira, como se fosse até uma espécie de “mini” tradição. Ela se tornou célebre, por exemplo, em Macunaíma (1928), quando Mário de Andrade a metrificou no dístico: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Retornará em títulos como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto; Um Copo de Cólera (1978), de Raduam Nassar; “As Formigas”, conto do livro Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles, só para citar alguns. Não poderíamos deixar de mencionar (ainda que fuja do âmbito nacional) as últimas e belíssimas páginas de Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel García Márquez, onde o manuscrito da família Buendía é destruído pela praga. Se nos reportamos à hipótese de Antonio Candido, a de que a literatura brasileira pode ser entendida como forma de descoberta e investigação do país – na “sua linha própria de desenvolvimento interno, o romance correu paralelo, interagindo com a evolução social, recebendo as suas repercussões” (CANDIDO, 1992, p. 46) –, um aspecto interessante se descortina na leitura de Quarup. Isso porque a experiência coletiva do pensamento brasileiro – para a qual a busca pela fusão das raízes mais profundas do povo com a luta por uma perspectiva de futuro é sua expressão certeira – proporciona um bom ponto de partida acerca do artefato estilizado pelo romance. O ápice desta estilização é a imagem do caldeirão borbulhante de saúvas. Para apreendêla, debruçamo-nos sobre a experiência da vida social brasileira. A incapacidade de elaborar uma ideia unitária acerca da cultura do Brasil não é casual, mas estrutural. Para embasar tal assertiva, Renato Ortiz faz uma distinção entre “memória nacional” e “memória coletiva”. A primeira se caracteriza por não “ser propriedade particularizada de nenhum grupo social, [mas sim por se definir] como um universal que se impõe a todos os grupos” (ORTIZ, 2006, p. 136). Já a segunda se caracteriza por encarnar no grupo que a representa, portanto se define pela pluralidade. Em outros termos, a “memória nacional” não possuiria uma existência concreta, pois não se manifestaria imediatamente no cotidiano do povo, como se sua história transcendesse os sujeitos, sobrando-lhe apenas uma existência virtual. Por isso, este tipo de memória se configuraria enquanto “projeto”, ou seja, enquanto construção futura, que não o presente vivido. Em Quarup, quando o capítulo “A orquídea” encerra suas páginas finais com a imagem do sauval – “[...] panelão que fornece formiga ao resto do Brasil” (CALLADO, 1974, p. 291), o que ele sinaliza é o descompasso entre o projeto da Expedição, voltado para a ideia de “memória nacional” e a realidade empírica da sociedade brasileira, voltada para a “memória coletiva”. O ponto de vista da Expedição acaba por dissolver a própria heterogeneidade da cultura nacional-popular na univocidade da pretensão do seu discurso. Isso explicaria o tom “oficial” da descrição expedicionária, cujo espírito vinculado ao dirigismo estatal é expressão do seu próprio contexto sócio-histórico.7 Seguindo esta linha de raciocínio, o obstáculo imanente aos ofícios políticos e culturais da experiência brasileira é a concepção de uma nacionalidade que, ao não se constituir como prolongamento dos valores genuínos e populares, acaba por se tornar “um 7 “[o] capitalismo avança cumprindo o percurso de uma ‘revolução-passiva’, na qual a nação não tem identidade própria, é criatura do Estado, sendo organizada ‘como um corpo de funcionários a serviço do ideal de expansão da acumulação’”. (LAHUERTA, 2002, p. 101) discurso de segunda ordem” (ORTIZ, 2006, p. 136-137). Assim, passa-se a atinar para a ideia de que a identidade nacional é uma entidade abstrata e como tal não pode ser apreendida em sua essência. Ela não se situa à concretude do presente, mas se desvenda, enquanto virtualidade, isto é, como projeto que se vincula às formas sociais que a sustentam.(ORTIZ, 2006, p. 138).8 Não tanto pelo conteúdo literal de sua mensagem, mas pelo fato de levar o leitor a uma reflexão sobre a sua condição de brasileiro, a metáfora instaurada por meio do formigueiro em pleno coração do Brasil aludiria à abstração da identidade do seu povo. Por isso, a expectativa da Expedição é depositada num futuro “devir”, e não no que encontra nos meandros da trajetória. É como se o mito da unidade da cultura brasileira – o Centro geográfico – não tivesse fôlego para se ritualizar, pois as condições concretomateriais para a sua existência são puramente simbólicas e discursivas. Assim, a ideia de uma identidade unívoca em um país de dimensões continentais é relegada ao plano do imaginário e não ao plano da celebração. Segundo Mires Bender: as “diversas interpretações de Brasil que [as] personagens oferecem no contato com o protagonista vão evidenciar [a] percepção da situação do País [...], abrindo caminhos para a reflexão sobre uma organização do território brasileiro” (BENDER, 2010, p. 3). Podemos ampliar esta proposição entendendo que as “diversas interpretações de Brasil” se relaciona com a pluralidade imanente da “memória coletiva”, aspecto esse que na tessitura de Quarup é sublinhado pelos diferentes pontos de vista das personagens. Sob esse prisma, há uma inflexão de aspectos subjetivos e objetivos da história. Estabelece-se, assim, uma ligação umbilical 8 Isso explica o porquê de parcela significativa do pensamento clássico brasileiro se fundamentar sempre numa “interpretação”. É curioso também a presença da palavra “formação” em seus títulos, dando uma ideia de transição, de efemeridade, de algo não normativo. Eis alguns nomes: Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, Casa-grande e Senzala, cujo subtítulo é “Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal” e até Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, cujo subtítulo é a “Formação do Patronato Político Brasileiro”. Discutem-se, em todos eles, os esforços e fracassos da nação brasileira para se libertar da dominação colonial e atingir a autonomia cultural e econômica. entre as existências individuais e o destino do Brasil, pois o sentido da vida para cada personagem é redescoberto – e para Fontoura a descoberta é mediante a transcendência. A morte desta personagem, cuja construção no desenvolvimento da obra a aproxima do romântico-melancólico, é paradigmática.9 De acordo com Ligia Chiapani Moraes Leite, o falecimento de Fontoura é “a derrocada simbólica de um sonho de unidade e de desenvolvimento da nação” (LEITE, 1988, não paginado). A bem da verdade, a identificação do Centro Geográfico com a ideia da plena integração nacional foi um malogro. Nem mesmo a bandeira do Brasil pôde ser hasteada, pois ela fora esquecida: “Nós armamos o mastro, preparamos tudo e só então vimos que não veio a bandeira na bagagem” (CALLADO, 1974, p. 294). Ou seus integrantes “estavam muito ligados aos seus projetos pessoais para lembrarem” de transportá-la ou talvez, “sinalizavam com este ato, que o seu verdadeiro lugar não era ali” (BENDER, 2010, p. 14). Pendemos para a segunda assertiva: o “destino pode se deparar apenas com a constatação de que a resposta está em outro lugar” (BENDER, 2010, p. 14). Não à toa, Artuto Gouveia pontua Quarup como um romance em construção: “a globalidade [da obra] permite ver que o destino que ela vai ter é imprevisível, dada a busca permanente de uma identidade, identidade que não atinge por acabar se tornando receptivo a influências as mais diferentes” (GOUVEIA 2006, p. 2223). Para Antonio Candido, os escritores brasileiros são majoritariamente reconhecidos pela sua “fidelidade documentária ou sentimental, o que o vincula à experiência bruta” (CANDIDO, 1993, p. 27). Isso porque que a lacuna histórica de uma sistematização rigorosamente científica nas ciências humanas brasileira proporcionou às artes, sobretudo à literatura, traduzir a busca de conhecimento sobre a realidade local: “Ora, precedendo a obra dos políticos, dos economistas, dos educadores, a literatura, a seu modo, colocou primeiro e encaminhou em seguida a solução do problema” (CANDIDO, 1992, p. 45-46). E mais: “esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à 9 Entendemos a concepção do melancólico no sentido postulado por Walter Benjamin. A esse respeito, a psicanalista Maria Rita Kehl diz: “O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política”. (KEHL, 2008, p. 81) literatura sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-se língua geral duma sociedade em busca de autoconhecimento” (CANDIDO, 1993, p. 27). Quarup se alinharia nesta perspectiva. Se o sentimento de verdade acerca da entidade abstrata que vem a ser a identidade nacional não foi sistematizado pela abordagem das categorizações científicas, antevemos na sensibilidade artística do romance aquela “traição metódica”, como bem sugere Antonio Candido, na qual a liberdade criativa, “mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva” (CANDIDO, 2008, p. 22). Assim, retomando o apontamento iniciado no presente artigo – para Renato Franco, a “falta de unidade e coerência” confere à obra de Callado “uma natureza literária caótica” –, há que se ponderar o “caos literário” enquanto componente da própria estruturação da obra. Por outro lado, o livro recoloca os termos de um falso problema, pois a questão não é saber mais se a identidade nacional apreende ou não o “verdadeiro” valor da brasilidade. A pergunta fundamental seria: a quais interesses atendem esta identidade que se quer nacional? Deste ponto de vista, Quarup possibilitaria organizar o “caos” do qual a experiência da vida social brasileira se debatia. Artuto Gouveia sustenta que Quarup, na literatura brasileira pós-64 [traz] uma contribuição notável a um conjunto de obras qualitativamente empenhadas em associar o direito permanente à pesquisa estética e atualização da inteligência artística à pesquisa e produção de conhecimentos da realidade, dentro dos critérios de uma arte verdadeiramente de vanguarda. Essa arte é necessária para demonstrar a resistência estético-política de um país de periferia à bestialização causada pelos imperialismos culturais e à colonização mental de nossa percepção histórica (GOUVEIA, 2006, p. 23). Deste modo, a obra ficcionalizou as pautas latentes do pensamento esquerdista, podendo até ser considerada “literatura engajada”, porém, com a ressalva de que há muito mais questões levantadas (e denunciadas) do que respondidas. Ainda que as perguntas já contenham de antemão um direcionamento político-programático não é uma superposição indigerida, algo frequente aos romances com intuito ideológico ostensivo. Referências bibliográficas ARANTES, P. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992. BENDER, M. B. Quarup: uma alegoria do Brasil. Tabuleiro de Letras (UNEB), v. especial, dez, p. 1-19, 2010. CALLADO, A. Quarup. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1974. CANDIDO. A. POESIA, DOCUMENTO E HISTÓRIA. In: Brigada ligeira, e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1993. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008. FRANCO, R. Imagens da revolução no romance pós-64. Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 1999. GOUVEIA, A. Literatura e repressão pós-64: o romance de Antonio Callado. João Pessoa: Idéia, 2006. ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006. LAHUERTA, M. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: COSTA, W.P; LORENZO; H.C (orgs). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Unesp, 2002. KEHL, M. R. O tempo e cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2008. LEITE, L.C.M. Quarup, de Antônio Callado. Abril Cultural, 1988. Disponível em: <http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/q/quarup>. Acesso em: 19 março de 201