Cultura brasileira e identidade nacional em Quarup, de Antônio Callado
Natália Rizzatti FERREIRA1
Resumo
Este artigo propõe uma possível via de análise acerca de Quarup (1967), de Antônio
Callado. A identidade nacional e cultura brasileira se encontram no centro das principais
preocupações deste romance. Busca-se compreender como o tema empreendido pelo
autor articula o conteúdo veiculado e os traços formais, numa dialética em que, através
da matéria romanesca, seus temas atingem status de recurso estilístico, característicos da
experiência da vida social brasileira. Com base nos escritos de Antonio Candido e
Renato Ortiz, descortina-se em Quarup um terreno fértil para perscrutarmos a
singularidade de cultura nacional.
Palavras-chave: literatura brasileira; Quarup; identidade nacional; cultura brasileira.
Abstract
This article proposes a possible route of analysis about the Quarup (1967), novel by
Antonio Callado. The national identity and Brazilian culture are at the centre of the
main concerns of this book. We seek to understand how the subject undertaken by the
author articulates the content aired and the formal traits, in a dialectic in which
through matter novelistic themes reach status of stylistic feature, characteristic of the
brazilian social life experience. Based on the writings of Antonio Candido and Renato
Ortiz, Quarup is a fertile ground for we think about the singularity of national culture.
Keywords: brazilian literature; Quarup; national identity; Brazilian culture.
Vislumbramos em Quarup, romance de Antônio Callado2, uma multiplicidade
de fontes temáticas que, em sua especificidade formal e/ou literária, compôs uma
1
Mestre em Letras pela UNESP de Assis (SP), CEP 19807-000, [email protected]
fascinante imagem do Brasil como país incompleto, que está constantemente sendo
inventado. Na época de sua publicação, o ano de 1967, ele causou forte impacto tanto
em seu público como na crítica especializada. É o que aponta Renato Franco: “não
pouparam críticas à obra, seja pela notável ambição do livro, seja pela falta de unidade e
coerência, que conferiria a ele uma natureza literária caótica” (FRANCO, 1999, p. 145).
Desdobrando esta ideia – a suposta “falta de unidade e coerência” à obra –, gostaríamos
de apresentar ao leitor uma possível via de análise acerca do conteúdo que se formalizou
por meio das lentes literárias, ou seja, como um determinado dado externo da realidade
histórico-social é formalizado esteticamente no texto literário, tornando-se assim
interno. A nosso ver, Quarup traz à tona a representação da estrutura social brasileira
que, na busca por uma identidade nacional, debate-se com as ambiguidades de sua
própria definição.
Sob a ótica do narrador em terceira pessoa, desfila pelas páginas de Quarup uma
multiplicidade de personagens, as quais nomeadamente excedem a cinquenta. Pela
profundidade psicológica de suas experiências, o foco da história recai sobre a
personagem Nando, um padre que abandona a batina para se juntar à revolução armada.
Conflui, assim, um amálgama de tópicos polêmicos que dominavam até então o debate
político e existencial da época: a prelazia da Igreja Católica com a crescente politização
de seus sacerdotes; a fundação das Ligas Camponesas e dos Sindicatos de
Trabalhadores Rurais; a organização e mentalização popular do Partido Comunista e
grupos trotskistas; as perseguições e torturas aos guerrilheiros pelos militares;3 a
burocracia do Estado; a revolução sexual e o feminismo; a proteção aos índios; as
drogas etc. Para o estudioso da obra calladiana, Arturo Gouveia, “Todos [os] temas [...],
inclusive o que parece, por sugestão do título do livro, ser o principal – o indianismo –
não podem jamais ser dissociados da complexidade estética representada pelo narrador”
(GOUVEIA 2006, p. 9).
O narrador, por sua vez, para dar conta da imbricação de discursos não apenas
diferentes, senão também divergentes, procede como uma “câmera cinematográfica” (o
2
Além de romancista, o escritor praticou atividade de biógrafo, dramaturgo e jornalista. Publicou mais de
20 livros, entre eles Madona de Cedro (1957), Reflexos do Baile (1976) e Bar Don Juan (1971).
3
A esse respeito inclusive, Quarup foi o primeiro romance pós-64 a tratar da violência militar
profissionalizada, iniciando uma tradição literária que viria a continuar com outros.
leitor se sente como se estivesse dentro da cena), deixando os comentários dos fatos
ficarem por conta das próprias personagens. É através dos diálogos – o romance é
estruturado quase integralmente sobre estes – que as personagens expressam suas vozes
difusas, as quais ora se entrechocam, ora se complementam, por vezes se sobrepõem.
Por este procedimento o narrador registra sua autonomia enquanto sujeito que anuncia
os fatos exteriores, sem, contudo, posicionar-se frente a eles, e assume, por extensão,
toda a carga de contradições possíveis.4 De acordo com a pesquisadora Mires Bender,
Quarup apresenta “uma reflexão sobre o Brasil daquele momento, conforme é visto
pelas personagens que desfilam na narrativa, e a sua idealização em busca do país que
desejam formar” (BENDER, 2010, p. 2).
Embora o narrador utilize os diálogos – plasmados pelas personagens – para
organizar e dirigir as diferentes visões dos setores sociais do Brasil há o protagonismo
de uma visão que está, contudo, encoberta nas entrelinhas, posto que não seja
propriamente uma personagem romanesca. Isso não quer dizer que ela não tome
proporções de uma espécie de “ator” social, cumprindo papel expressivo no desenrolar
dos acontecimentos ficcionalizados. Estamos falando da figura do Estado brasileiro,
cuja peculiaridade histórica foi capaz de servir de alicerce fundamental para transição da
sociedade para a modernidade capitalista.
Dentre os acontecimentos de Quarup, um episódio se torna ilustrativo. Trata-se
do capítulo “A orquídea”, momento em que há a descrição da Expedição rumo o Centro
Geográfico do Brasil. A Expedição tem por objetivo desbravar o interior do país
amazônico, mais exatamente no “ponto de 10 graus e 20 minutos ao sul do Equador e
53 graus e 12 minutos a oeste de Greenwich” (CALLADO, 1974, p. 225), lugar onde
“nenhum gringo, provavelmente nenhum branco jamais esteve” (CALLADO, 1974, p.
225). Tal qual o movimento geral do romance, cujos capítulos são “iniciados com uma
aura em torno de algum projeto idealizador ou a ser cumprido com convicção inabalável
do protagonista [e] têm no final resultados completamente invertidos” (GOUVEIA,
2006, p. 22-23), “A orquídea” principia com espírito promissor acerca do que se
encontraria no marco zero brasileiro:
Digno de nota, essa espécie de “protagonização de visões diferentes” (GOUVEIA, 2006, p. 15) confere
ao escritor Antonio Callado certo matiz generoso em relação aos discursos dissonantes da sociedade
brasileira.
4
–Pois você então não acha incrível que ainda exista um país em busca
do seu coração? [...]
–[...] eu gosto das coisas que estão desaparecendo... O Brasil acho que
vai ser o último país que se forma no modelo antigo. (CALLADO,
1974, p. 222).
É notória certa atmosfera épica à Expedição, como se o seu propósito fosse
resgatar o “começo” do território nacional e assim atribuir à origem do país um cunho
dignificante. Longe de serem aventureiros desnorteados, seus membros (intelectuais,
pesquisadores e pessoas atreladas aos ministérios do governo) têm relativa noção de
onde pisam: “– Pelos cálculos do Conselho Nacional de Geografia, o Centro do
Território Nacional fica perto da cachoeira Von Martius, nome que não parece
exatamente o de algum caboclo” (CALLADO, 1974, p. 225). Ao contar com o amparo
das instituições governamentais, evidencia-se o caráter “oficial” da jornada, até porque
o respaldo dá aos integrantes condições de sobrevivência na floresta virgem. Eles são,
por exemplo, monitorados por aviões que os suprem com alimentação:
– A FAB nos dará cobertura sem falta, não é, Olavo?
– Pelo menos duas vezes por semana o piloto Amaral, do Correio
Aéreo, passa por cima da gente para saber se está tudo certo.
(CALLADO, 1974, p. 225).
A ideia de uma Expedição que não só se empenha em conceituar a brasilidade,
senão também procura se impor como legítima nos remete ao tema da busca pela
definição do que seria a identidade do Brasil. Para esta discussão nos valeremos do
antropólogo Renato Ortiz. Em seu livro Cultura brasileira e identidade nacional, o
autor retoma as diferentes maneiras pelas quais os termos sugeridos pelo título foram
considerados ao longo da História. Caracterizar a particularidade da cultura brasileira
em relação às demais nações do mundo é um debate marcado pela ausência de
consenso, até porque não é suficiente dizermos que somos diferentes, mas mostrar em
que nos identificamos/unimos. Se por um lado não há consenso sobre o tema da
identidade nacional, por outro lado, os divergentes pontos de vistas refletem a
pluralidade de interpretações acerca do que viria a ser o nacional. É isso o que marca a
própria riqueza da problemática da cultura brasileira, cujo debate intelectual tem
levantado mais interrogações do que respostas.
Aprofundando os estudos, Renato Ortiz aponta que as diferentes faces da
discussão acerca da cultura brasileira perpassam as relações entre cultura e Estado: “a
identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos
grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro” (ORTIZ, 2006, p. 8). Isso
pode ser elucidado quando levamos em consideração a especificidade histórica do
processo de modernização de um país de Terceiro Mundo. Ao contrário das nações
europeias, as quais contaram com a participação de uma consolidada burguesia capaz de
promover as transformações necessárias rumo à modernidade capitalista, no Brasil,
devido à falta de uma classe social modernizadora, coube ao Estado promover as bases
do desenvolvimento.5 Para tanto, o governo precisou do apoio de uma ideologia que
buscasse no âmago dos brasileiros o que os unissem, o que os identificassem como uma
só nação.
Colocar a problemática dessa forma é dizer que o tema da construção da unidade
nacional é subsumido ao tema do próprio desenvolvimento do capitalismo no Brasil,
desenvolvimento este que se relaciona com o papel do Estado enquanto eixo
estruturador.6 Quase que impondo a prevalência do tema nacional, o Estado “tem
representado o coroamento de um ideal de modernização e de uma demanda de
unificação – cultural, política, etc” (LAHUERTA, 2002, p. 105). Esta é a peculiaridade
do Brasil.
Dito em outros termos, o “‘Estado substitui aos grupos sociais locais na direção da luta renovadora’,
substitui ‘as classes sociais em sua função de protagonistas do processo de transformação e no papel de
‘dirigir’ politicamente as próprias classes economicamente dominantes’”. (LAHUERTA, 2002, p. 104).
5
6
Foi, sobretudo, na passagem da década de 1950 para 1960 que a questão do desenvolvimento brasileiro
ganhou destaque enquanto solução para a sofrida condição de nação subdesenvolvida. O foco da
intelectualidade era os “[...] obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, no intuito sobretudo
de remover essas barreiras em nosso caminho para o moderno”. (ARANTES, 1992, p. 15). Havia assim,
“a sensação de que o Brasil era um país inacabado, mal resolvido, fora do eixo, cuja formação europeia
teimava em não se completar” (ARANTES, 1992, p. 27).
Voltando à Quarup, a descrição da Expedição corresponde a representação do
espaço da Amazônia, lugar de onde se observa o máximo de contraste entre a vida
primitiva e a civilizada. A ânsia de chegar ao Centro Geográfico, contudo, é contrastada
com a pacificação de índios, com o encontro com o séquito de famintos cren-acárore
(tribo dizimada pelo sarampo), com os perigos da mata (tal como a nuvem de
minúsculos insetos “lambe-olhos”) e, finalmente, com um imenso formigueiro que
ocupa o centro do Brasil:
– O que é que houve? – riu Nando. – É a dança da posse?
– Formiga – gemeu Vilaberde. – Isto é o maior panelão de saúva do
Brasil.
E de longe se viam formigas despertadas pelo movimento das pessoas,
pela fixação do padrão, milhares, milhões de saúvas, como se os grãos
de terra do mundo tivessem começado a andar transformados em içá,
sabitu, tanajura. (CALLADO, 1974, p. 291)
Do ponto de vista alegórico, a representação de um Brasil centralmente afetado
por um buraco de formigas dá possibilidade de avaliar a excepcionalidade poética da
obra de Antônio Callado. Aliás, a imagem da formiga é recorrente no espectro da
literatura brasileira, como se fosse até uma espécie de “mini” tradição. Ela se tornou
célebre, por exemplo, em Macunaíma (1928), quando Mário de Andrade a metrificou
no dístico: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Retornará em títulos
como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto; Um Copo de Cólera
(1978), de Raduam Nassar; “As Formigas”, conto do livro Seminário dos Ratos, de
Lygia Fagundes Telles, só para citar alguns. Não poderíamos deixar de mencionar
(ainda que fuja do âmbito nacional) as últimas e belíssimas páginas de Cem Anos de
Solidão (1967), de Gabriel García Márquez, onde o manuscrito da família Buendía é
destruído pela praga.
Se nos reportamos à hipótese de Antonio Candido, a de que a literatura brasileira
pode ser entendida como forma de descoberta e investigação do país – na “sua linha
própria de desenvolvimento interno, o romance correu paralelo, interagindo com a
evolução social, recebendo as suas repercussões” (CANDIDO, 1992, p. 46) –, um
aspecto interessante se descortina na leitura de Quarup. Isso porque a experiência
coletiva do pensamento brasileiro – para a qual a busca pela fusão das raízes mais
profundas do povo com a luta por uma perspectiva de futuro é sua expressão certeira –
proporciona um bom ponto de partida acerca do artefato estilizado pelo romance. O
ápice desta estilização é a imagem do caldeirão borbulhante de saúvas. Para apreendêla, debruçamo-nos sobre a experiência da vida social brasileira.
A incapacidade de elaborar uma ideia unitária acerca da cultura do Brasil não é
casual, mas estrutural. Para embasar tal assertiva, Renato Ortiz faz uma distinção entre
“memória nacional” e “memória coletiva”. A primeira se caracteriza por não “ser
propriedade particularizada de nenhum grupo social, [mas sim por se definir] como um
universal que se impõe a todos os grupos” (ORTIZ, 2006, p. 136). Já a segunda se
caracteriza por encarnar no grupo que a representa, portanto se define pela pluralidade.
Em outros termos, a “memória nacional” não possuiria uma existência concreta, pois
não se manifestaria imediatamente no cotidiano do povo, como se sua história
transcendesse os sujeitos, sobrando-lhe apenas uma existência virtual. Por isso, este tipo
de memória se configuraria enquanto “projeto”, ou seja, enquanto construção futura,
que não o presente vivido.
Em Quarup, quando o capítulo “A orquídea” encerra suas páginas finais com a
imagem do sauval – “[...] panelão que fornece formiga ao resto do Brasil” (CALLADO,
1974, p. 291), o que ele sinaliza é o descompasso entre o projeto da Expedição, voltado
para a ideia de “memória nacional” e a realidade empírica da sociedade brasileira,
voltada para a “memória coletiva”. O ponto de vista da Expedição acaba por dissolver a
própria heterogeneidade da cultura nacional-popular na univocidade da pretensão do seu
discurso. Isso explicaria o tom “oficial” da descrição expedicionária, cujo espírito
vinculado ao dirigismo estatal é expressão do seu próprio contexto sócio-histórico.7
Seguindo esta linha de raciocínio, o obstáculo imanente aos ofícios políticos e culturais
da experiência brasileira é a concepção de uma nacionalidade que, ao não se constituir
como prolongamento dos valores genuínos e populares, acaba por se tornar “um
7
“[o] capitalismo avança cumprindo o percurso de uma ‘revolução-passiva’, na qual a nação não tem
identidade própria, é criatura do Estado, sendo organizada ‘como um corpo de funcionários a serviço do
ideal de expansão da acumulação’”. (LAHUERTA, 2002, p. 101)
discurso de segunda ordem” (ORTIZ, 2006, p. 136-137). Assim, passa-se a atinar para a
ideia de que
a identidade nacional é uma entidade abstrata e como tal não pode ser
apreendida em sua essência. Ela não se situa à concretude do presente,
mas se desvenda, enquanto virtualidade, isto é, como projeto que se
vincula às formas sociais que a sustentam.(ORTIZ, 2006, p. 138).8
Não tanto pelo conteúdo literal de sua mensagem, mas pelo fato de levar o leitor
a uma reflexão sobre a sua condição de brasileiro, a metáfora instaurada por meio do
formigueiro em pleno coração do Brasil aludiria à abstração da identidade do seu povo.
Por isso, a expectativa da Expedição é depositada num futuro “devir”, e não no que
encontra nos meandros da trajetória. É como se o mito da unidade da cultura brasileira –
o Centro geográfico – não tivesse fôlego para se ritualizar, pois as condições concretomateriais para a sua existência são puramente simbólicas e discursivas. Assim, a ideia
de uma identidade unívoca em um país de dimensões continentais é relegada ao plano
do imaginário e não ao plano da celebração.
Segundo Mires Bender: as “diversas interpretações de Brasil que [as]
personagens oferecem no contato com o protagonista vão evidenciar [a] percepção da
situação do País [...], abrindo caminhos para a reflexão sobre uma organização do
território brasileiro” (BENDER, 2010, p. 3). Podemos ampliar esta proposição
entendendo que as “diversas interpretações de Brasil” se relaciona com a pluralidade
imanente da “memória coletiva”, aspecto esse que na tessitura de Quarup é sublinhado
pelos diferentes pontos de vista das personagens. Sob esse prisma, há uma inflexão de
aspectos subjetivos e objetivos da história. Estabelece-se, assim, uma ligação umbilical
8
Isso explica o porquê de parcela significativa do pensamento clássico brasileiro se fundamentar sempre
numa “interpretação”. É curioso também a presença da palavra “formação” em seus títulos, dando uma
ideia de transição, de efemeridade, de algo não normativo. Eis alguns nomes: Formação do Brasil
Contemporâneo, de Caio Prado Jr., Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, Formação da
Literatura Brasileira, de Antonio Candido, Casa-grande e Senzala, cujo subtítulo é “Formação da
Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal” e até Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro,
cujo subtítulo é a “Formação do Patronato Político Brasileiro”. Discutem-se, em todos eles, os esforços e
fracassos da nação brasileira para se libertar da dominação colonial e atingir a autonomia cultural e
econômica.
entre as existências individuais e o destino do Brasil, pois o sentido da vida para cada
personagem é redescoberto – e para Fontoura a descoberta é mediante a transcendência.
A morte desta personagem, cuja construção no desenvolvimento da obra a aproxima do
romântico-melancólico, é paradigmática.9 De acordo com Ligia Chiapani Moraes Leite,
o falecimento de Fontoura é “a derrocada simbólica de um sonho de unidade e de
desenvolvimento da nação” (LEITE, 1988, não paginado).
A bem da verdade, a identificação do Centro Geográfico com a ideia da plena
integração nacional foi um malogro. Nem mesmo a bandeira do Brasil pôde ser
hasteada, pois ela fora esquecida: “Nós armamos o mastro, preparamos tudo e só então
vimos que não veio a bandeira na bagagem” (CALLADO, 1974, p. 294). Ou seus
integrantes “estavam muito ligados aos seus projetos pessoais para lembrarem” de
transportá-la ou talvez, “sinalizavam com este ato, que o seu verdadeiro lugar não era
ali” (BENDER, 2010, p. 14). Pendemos para a segunda assertiva: o “destino pode se
deparar apenas com a constatação de que a resposta está em outro lugar” (BENDER,
2010, p. 14). Não à toa, Artuto Gouveia pontua Quarup como um romance em
construção: “a globalidade [da obra] permite ver que o destino que ela vai ter é
imprevisível, dada a busca permanente de uma identidade, identidade que não atinge por
acabar se tornando receptivo a influências as mais diferentes” (GOUVEIA 2006, p. 2223).
Para Antonio Candido, os escritores brasileiros são majoritariamente
reconhecidos pela sua “fidelidade documentária ou sentimental, o que o vincula à
experiência bruta” (CANDIDO, 1993, p. 27). Isso porque que a lacuna histórica de uma
sistematização rigorosamente científica nas ciências humanas brasileira proporcionou às
artes, sobretudo à literatura, traduzir a busca de conhecimento sobre a realidade local:
“Ora, precedendo a obra dos políticos, dos economistas, dos educadores, a literatura, a
seu modo, colocou primeiro e encaminhou em seguida a solução do problema”
(CANDIDO, 1992, p. 45-46). E mais: “esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à
9
Entendemos a concepção do melancólico no sentido postulado por Walter Benjamin. A esse respeito, a
psicanalista Maria Rita Kehl diz: “O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das
crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo
que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas
ações. Daí a relação entre a melancolia e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como
agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política”. (KEHL, 2008, p. 81)
literatura sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-se língua geral
duma sociedade em busca de autoconhecimento” (CANDIDO, 1993, p. 27).
Quarup se alinharia nesta perspectiva. Se o sentimento de verdade acerca da
entidade abstrata que vem a ser a identidade nacional não foi sistematizado pela
abordagem das categorizações científicas, antevemos na sensibilidade artística do
romance aquela “traição metódica”, como bem sugere Antonio Candido, na qual a
liberdade criativa, “mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão, que às
vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva”
(CANDIDO, 2008, p. 22).
Assim, retomando o apontamento iniciado no presente artigo – para Renato
Franco, a “falta de unidade e coerência” confere à obra de Callado “uma natureza
literária caótica” –, há que se ponderar o “caos literário” enquanto componente da
própria estruturação da obra. Por outro lado, o livro recoloca os termos de um falso
problema, pois a questão não é saber mais se a identidade nacional apreende ou não o
“verdadeiro” valor da brasilidade. A pergunta fundamental seria: a quais interesses
atendem esta identidade que se quer nacional? Deste ponto de vista, Quarup
possibilitaria organizar o “caos” do qual a experiência da vida social brasileira se
debatia. Artuto Gouveia sustenta que
Quarup, na literatura brasileira pós-64 [traz] uma contribuição notável
a um conjunto de obras qualitativamente empenhadas em associar o
direito permanente à pesquisa estética e atualização da inteligência
artística à pesquisa e produção de conhecimentos da realidade, dentro
dos critérios de uma arte verdadeiramente de vanguarda. Essa arte é
necessária para demonstrar a resistência estético-política de um país
de periferia à bestialização causada pelos imperialismos culturais e à
colonização mental de nossa percepção histórica (GOUVEIA, 2006, p.
23).
Deste modo, a obra ficcionalizou as pautas latentes do pensamento esquerdista,
podendo até ser considerada “literatura engajada”, porém, com a ressalva de que há
muito mais questões levantadas (e denunciadas) do que respondidas. Ainda que as
perguntas já contenham de antemão um direcionamento político-programático não é
uma superposição indigerida, algo frequente aos romances com intuito ideológico
ostensivo.
Referências bibliográficas
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Janeiro: Paz e terra, 1992.
BENDER, M. B. Quarup: uma alegoria do Brasil. Tabuleiro de Letras (UNEB), v.
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CANDIDO. A. POESIA, DOCUMENTO E HISTÓRIA. In: Brigada ligeira, e outros
escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia
Limitada, 1993.
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.
FRANCO, R. Imagens da revolução no romance pós-64. Sociedade e literatura no
Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
GOUVEIA, A. Literatura e repressão pós-64: o romance de Antonio Callado. João
Pessoa: Idéia, 2006.
ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
LAHUERTA, M. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In:
COSTA, W.P; LORENZO; H.C (orgs). A década de 1920 e as origens do Brasil
moderno. São Paulo: Unesp, 2002.
KEHL, M. R. O tempo e cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2008.
LEITE, L.C.M. Quarup, de Antônio Callado. Abril Cultural, 1988. Disponível em:
<http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/q/quarup>.
Acesso em: 19 março de 201
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