UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
CAMPUS EAD
LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
LEANDRO GARCIA DA COSTA
DIVERSIDADE CULTURAL E FORMAÇÃO DA IDENTIDADE
BRASILEIRA (I)
CULTURA, IDENTIDADE E IDEOLOGIA
RIBEIRÃO PRETO
2008
INTRODUÇÃO
Identidade é a fonte de significado e experiência de um povo, com
base em atributos culturais relacionados que prevalecem sobre
outras fontes. Não se deve confundi-la com papéis, pois estes
determinam funções e a identidade organiza significados
(CASTELLS, 1999).
A questão da identidade nacional está mergulhada em aspectos mais
complexos do que a própria palavra aparente sugere. E o caso brasileiro não é
diferente, pois apresenta um mesclado de pontos e contrapontos onde os atores
sociais, em um contexto histórico conturbado por um doloroso processo de
colonização, constroem seus valores, resgatam outros na memória de suas origens,
oprimem e são oprimidos, mas garantem uma pluralidade peculiar deste então
chamado povo brasileiro.
Com o objetivo de enriquecer a reflexão sobre este tema tão importante e
complexo, proponho neste trabalho pensarmos alguns aspectos levantados por
Renato Ortz, Marilena Chauí e Darcy Ribeiro, por meio de seus textos e os
documentários Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Brasil – mito fundador e
sociedade autoritária e O Povo Brasileiro, respectivamente.
Por meio da abordagem destes pensamentos, será possível identificar os
pontos de convergência e divergência, repensar criticamente todo o legado
multicultural presente em nossa nação, construindo um caminho para entender
melhor a cultura, a identidade e as ideologias envolvidas no caso brasileiro.
1
ABORDAGEM I
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL
Renato Ortz
Em diferentes épocas, e sob diferentes aspectos, a problemática da
cultura popular se vincula à da identidade nacional (ORTIZ, 2006).
A existência de uma relação entre identidade e cultura popular é ressaltada
nesta abordagem, constituindo uma ponte para pensarmos a identidade nacional por
outro ângulo: a relação entre o nacional e o popular.
O brasileiro, homem sincrético, resultante do cruzamento de três culturas
distintas: a branca, a negra e a índia, constitui um elemento popular que se origina
na miscigenação cultural.
Ainda pode-se observar, por esta óptica, que identidade nacional e cultura
popular se associam em movimentos políticos e intelectuais. Elementos populares
caracterizam ações para projetos de libertação nacional.
A chave está em entender a relação entre o popular e o nacional, em que
pese que esta engendra uma identidade que se adéqua ao Estado. É este que
fundamenta o ser brasileiro. Por este viés, todo o esforço de compreender a
sociedade brasileira, se insere em um contexto mais amplo de redefinição nacional.
A obra de Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha se
insere na tradição de pensamento do século XIX 1 , que procura
insistentemente definir o fundamento do ser nacional como base do
Estado brasileiro (ORTZ, 2006, nota nossa).
Para melhor compreender tal relação, o autor conceitua dois fenômenos de
crucial importância para a concepção desta realidade: a memória coletiva e a
memória nacional.
A memória coletiva, ligada às tradições, constitui um sistema estruturado no
qual os atores sociais desempenham papéis determinados, ocupando certas
posições. Este memorial se atualiza na trama da própria interação social,
1
O pensamento do século XIX: neste caso faz-se referência à “compreensão da temática do Ressurgimento,
que narra a construção da unificação da nação italiana pela burguesia, o que é crucial para Gramsci, sendo
através disso que se desenvolve grande parte de sua política. O nacional e o popular devem por isso ser
remetidos a uma dimensão que os antecede e os transcende, isto é, a problemática do Estado.” (ORTZ, 2006).
2
vinculando-se a um determinado grupo social que busca a revivência, a preservação
da memória cotidiana de suas origens. Esta memória dá vazão a mitos 2 ,
manifestando-se, portanto, ritualmente.
O candomblé, ao definir um espaço social sagrado, o terreiro,
possibilita a encarnação da memória coletiva africana em
determinados enclaves da sociedade brasileira. Neste sentido, a
origem é recorrentemente relembrada e se atualiza através do ritual
religioso (ORTZ, 2006).
A memória nacional, mais relacionada com a história, transcende os sujeitos
não se limitando à reprodução do passado considerado como sagrado. Ela não se
concretiza imediatamente com o cotidiano. Está ligada com a sociedade como um
todo, pertencendo não ao mito, mas à ideologia 3 , como um produto da história
social.
[...] o nacional se definiria como a conservação "daquilo que é
nosso", isto é, a memória nacional seria o prolongamento da
memória coletiva popular (ORTZ, 2006).
Constituída tal reflexão acerca da relação entre nacional e popular, na
concepção de uma identidade, é importante pensar esta como uma identidade
abstrata, não podendo ser apreendida em sua essência, isto devido ao seu vínculo
com as formas sociais que a suporta. Isto é visível, pela tentativa de vários
intelectuais em definir a identidade nacional em termos de caráter brasileiro, o que
passa pela “cordialidade” (Sérgio Buarque de Holanda), pela “tristeza” (Paulo
Prado), na “bondade” (Cassiano Ricardo), entre outros que buscaram a brasilidade
em eventos sociais como o carnaval, ou até mesmo na índole malandra do ser
nacional. A pluralidade de culturas surge na base fornecida pelos diversos contextos
histórico-sociais.
Memória nacional e identidade nacional são construções de segunda
ordem que dissolvem a heterogeneidade da cultura popular na
univocidade do discurso ideológico. [...] O discurso nacional
pressupõe necessariamente valores populares e nacionais
2
Mito: "1.Narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos. 2.Narrativa na qual aparecem seres e acontecimentos
imaginários, que simbolizam forças da natureza, aspectos da vida humana, etc. 3.Representação de fatos ou
personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc." (AURÉLIO - O Dicionário da Língua
Portuguesa. 3ª ed. Positivo Editora. 2004. CD-ROOM).
3
Ideologia: “[...] se define assim como uma concepção de mundo orgânica da sociedade como um todo (ou
visando a totalidade) e como tal age como elemento de cimentação da diferenciação social” (ORTIZ, 2006). 3
concretos, mas para integrá-los em uma totalidade mais ampla
(ORTIZ, 2006).
O Estado, como totalidade que transcende e integra os elementos de uma
realidade social, enquadra a construção de uma identidade nacional, através de uma
ação positiva que desencadeia um jogo de interação entre o nacional e o popular,
tendo como suporte a sociedade como um todo.
Sendo assim, para finalizar este processo com a construção de uma
identidade, encontramos a importante mediação dos intelectuais, que sintetizam
todas as transformações decorrentes da relação em questão, como algo único e
compreensivo. Estes agentes da memória nacional norteiam suas concepções por
ações politicamente orientadas. Desta maneira, Ortiz (2006, p. 6) chama atenção
para a questão de que “a procura por uma 'identidade brasileira' ou de uma 'memória
brasileira' que seja em sua essência verdadeira é na realidade um falso problema. A
questão que se coloca não é de se saber se a identidade ou a memória nacional
apreendem ou não os 'verdadeiros' valores brasileiros. A pergunta fundamental
seria: quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais?
A que grupos sociais elas se vinculam e a qual interesses elas servem?"
ABORDAGEM II
BRASIL – MITO FUNDADOR E SOCIEDADE AUTORITÁRIA
Marilena Chauí
Na escola, todos nós aprendemos o significado da bandeira
brasileira: o retângulo verde simboliza nossas matas e riquezas
florestais, o losango amarelo simboliza nosso ouro e nossas riquezas
minerais, o círculo azul estrelado simboliza nosso céu, onde brilha o
Cruzeiro do Sul, indicando que nascemos abençoados por Deus, e a
faixa branca simboliza o que somos: um povo ordeiro em progresso
(CHAUÍ, 2000).
Partindo da representação homogênea que os brasileiros têm do país e de si
mesmos, Marilena Chauí chama a atenção para observarmos o quanto esta
representação designa a crença na unidade, na identidade e na indivisibilidade da
4
nação e do povo brasileiro e, ao mesmo tempo, conviver com as pluralidades e
divisões sociais e políticas.
Segundo CHAUÍ (2000), “[...] a crença generalizada de que o Brasil: l) é "um
dom de Deus e da Natureza"; 2) tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e
sensual, mesmo quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos (é raro o emprego
da expressão mais sofisticada "democracia racial") [...]; 4) é um país acolhedor para
todos os que nele desejam trabalhar e, [...] 5) é um "país dos contrastes" regionais,
destinado por isso à pluralidade econômica e cultural” se completa na consciência
de que o que falta ao país é a modernização. Tal crença tem uma força persuasiva
muito grande que, em momentos, é capaz de resolver tensões reais criando uma
contradição que passa despercebida.
É assim, por exemplo, que alguém pode afirmar que os índios são
ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados,
os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores,
mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro
porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da
mistura de raças. Alguém pode dizer-se indignado com a existência
de crianças de rua, com as chacinas dessas crianças ou com o
desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-terra,
mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro
porque somos um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência
(CHAUÍ, 2000).
Então somos convidados a refletir sobre a origem desta representação, bem
como de que maneira esta força é renovada e reunida. Surge então o conceito de
mito fundador. O mito, não somente visto enquanto narrativa de seres e
acontecimentos imaginários, que simbolizam forças da natureza e aspectos da vida
humana, mas enriquecido a visão antropológica – uma solução imaginária para
tensões, conflitos e contradições sem resolução no campo da realidade – constitui o
liame entre passado e origem, de modo que este não cessa nunca, conservando-se
permanentemente presente e não permitindo uma compreensão real do presente,
nem das respectivas mudanças temporais. Trata-se, também, do sentido
psicanalítico do mito enquanto impulso à repetição de algo imaginário, o que
conseqüentemente cria um bloqueio à acepção da realidade, impedindo de lidar com
ela.
Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios
para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal
5
modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a
repetição de si mesmo (CHAUÍ, 2000).
Para compreender melhor esta ação, é preciso somar ao mito o aspecto da
fundação, que traz consigo algo além das determinações históricas, traz
manutenção de um passado imaginário, considerado como instante originário,
visando uma permanência (quase eterna). A fundação, neste sentido, procede da
nação dando origem a esta, o que a constitui como mito. Ela é a produtora de
representações que alimentam as ideologias inerentes ao processo histórico da
formação 4 , adequando-as aos novos ambientes históricos, o que garante a repetição
indefinida do mito sob novas roupagens.
[...] somos um povo novo, formado pela mistura de três raças
valorosas; os corajosos índios, os estóicos negros e os bravos e
sentimentais lusitanos. Quem de nós ignora que da mestiçagem
nasceu o samba, no qual se exprimem a energia índia, o ritmo negro
e a melancolia portuguesa? Quem não sabe que a mestiçagem é
responsável por nossa ginga, inconfundível marca dos campeões
mundiais de futebol? Há quem não saiba que, por sermos mestiços,
desconhecemos preconceito de raça, cor, credo e classe? Afinal,
Nossa Senhora, quando escolheu ser nossa padroeira, não apareceu
negra? (CHAUÍ, 2000).
ABORDAGEM III
O POVO BRASILEIRO
Darcy Ribeiro
O tema do meu livro, os brasileiros... é isso que eu venho falando, o
fazimento do Brasil. Um processo realmente extraordinário, que vai
constituindo a um negaço a ninguendade, um ser brasileiro. Essa
gente, esse povão brasileiro vem se fazendo assim. E vai ser o que...
um gênero humano novo de uma humanidade tropical (RIBEIRO,
2000).
4
Formação: Referente à “determinações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento
histórico, [...] continuidade ou descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processo temporais. [...]
formação é a história propriamente dita, aí incluídas suas representações, sejam aquelas que conhecem o
processo histórico, sejam as que o ocultam (isto é, ideologias)” (CHAUÍ, 2000).
6
Está presente na abordagem de Darcy Ribeiro, a admiração do processo de
constituição do povo brasileiro, chamado por ele mesmo de extraordinário. Darcy
ressalta a beleza presente na natureza do lugar, visto até como um mito (paraíso
perdido) pelos europeus. Em todo o processo histórico, nada do que aqui estava ou
chegou, permaneceu em sua concepção original. Misturou-se deuses, realidades
lingüísticas entre outros aspectos, o que concebeu o novo povo. Darcy trabalha com
três matrizes culturais: o índio, o negro e o homem branco. Ressalta o milagre de ser
uma nação unificada, pois em meio a tantas diferenças poderia ter acabado em
diversas nações.
Um processo marcado por conflitos étnicos, sociais, econômicos, religiosos e
raciais, desencadeou lutas e guerras – como enfatizadas no próprio documentário, a
guerra dos Cabanos, insurreição dos Malês, as revoltas republicanas: Sabinada,
Farropilha e Canudos, entre outros movimentos – que em meio a encontros e
desencontros constitui-se um povo, um país, cedendo às diferenças e influencias do
meio.
Entre encontros e desencontros, o que inventamos foi um povo e um
país. Nesse processo, também o sistema lingüístico português foi se
espraiando, subvertido pelas realidades humanas e ecológicas dos
trópicos. À medida que Brasil se expandia ia deixando de ser
simplesmente a língua portuguesa, pra se reinventar no português do
Brasil. [...] A invenção do Brasil prossegue: invenção genética,
invenção técnica, invenção simbólica (..., 2000 – Documentário O
Povo Brasileiro).
Eduardo Gianetti, ao final do vídeo, propõe uma importante reflexão sobre a
visão totalmente negativa que muitas pessoas colocam afirmando que “o Brasil não
deu certo”, sem contrabalancear os pontos ruins com aqueles que a nação
apresenta de positivos, além de destacar o aspecto da subjetividade presente em
nosso povo. Por esta observação são colocados como aspectos do Brasil que não
deu certo:
•
Convivência social, econômica e política;
•
Dificuldades dramáticas nos campos da Educação, Saúde Pública e
Instituições políticas instáveis;
•
Problemas de convivência na criação de regras impessoais geradoras
de uma interação dos brasileiros, de maneira mais organizada e próspera.
7
No entanto, argumenta Gianetti, é preciso valorizar as peculiaridades de uma
sociedade que apresenta uma admirável vitalidade e afetividade, recheada de
elementos mágicos e mitos, que se manifestam de diferentes formas nas
concepções cotidianas dessa nova humanidade tropical.
[...] o Brasil precisa ter a sabedoria também, de reconhecer que ele
tem uma subjetividade que é notável. É uma vitalidade ioruba, filtrada
por uma ternura lusitana e com elemento de magia e de pensamento
mágico do mundo indígena, e que se manifesta de diferentes
maneiras: na arte, na cultura, na vida afetiva, nas relações pessoais,
e que são muito ricas e muito densas na experiência brasileira.”
(GIANETTI, 2000 – Documentário O Povo Brasileiro).
CONSIDERAÇÕES
As abordagens presentes nos dois textos nos remetem a pensar em questões
que ampliam os horizontes acerca da constituição da identidade nacional.
Entre encontros e desencontros, é possível pensar em certa convergência
entre os aspectos, no que tange as questões do mito fundador e memórias coletiva e
nacional, à medida que se faz presente nestes termos, o alicerce que massifica a
idéia de uma identidade unificada, não obstante a sua adequação ao Estado.
Outro ponto de convergência, incluindo agora os relatos do documentário “O
Povo Brasileiro”, diz respeito à constituição do povo nas matrizes culturais indígena,
negra e branca, porém é possível observar um enfoque diferenciado. Enquanto nos
dois textos existe a busca pela explicação conceitual daquilo que envolve as
relações histórico-sociais, Darcy Ribeiro se volta a mostrar, em fatos e impactos, o
espetacular processo de formação do povo brasileiro.
Faz-se importante observar ainda, que as abordagens se permitem completar
uma pela outra na explicação e levantamento dos fenômenos sociais que
constituíram a identidade dessa nação. Desse modo, é possível enquadrar as
concepções das duas primeiras teorias nas realidades dos fatos evidenciados no
documentário.
8
REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Brasil – Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo:
Editora e Fundação Perseu Abramo, 2000.
ORTZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense,
2006, p.127-142.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro - 28 - Invenção do Brasil A. Disponível em < http://br.youtube.com/watch?v=0ecVKO5bVlQ>. Acesso em: 03 nov. 2008.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro - 29 - Invenção do Brasil B. Disponível em
<http://br.youtube.com/watch?v=FrBdeCSx30k>. Acesso em: 03 nov. 2008.
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