Educação e Cultura
a sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII1
José Maria de Paiva
Com o presente estudo quero assinalar aspectos que me parecem
fundamentais parqa a compreensão da formação da cultura brasileira. De
forma ampla, entendo por cultura a forma de viver de uma sociedade,
forma que se expande por todas as atividades do homem. Queremos
acreditar que em todas as manifestações culturais perpassa uma e mesma
visão de mundo; melhor ainda, que todas essas manifestações se compõem
coerentemente para a produção do que chamamos de uma cultura. O que
funda uma cultura? O que a distingue de outras culturas? Quando podemos
estabelecer que se dá uma nova cultura?
A cultura se percebe a posteriori. Observando as formas de uma
sociedade viver, estabelecemos seus eixos fundamentais. No entanto, essas
formas não tiveram origem mágica: elas respondem à necessidade de
sobrevivência num determinado contexto, incluindo aí todas as variáveis. A
cultura surge da vida cotidiana. E, também por isto, a cultura nunca está
pronta. Pelo contrário, tende sempre a uma reorganização.
Este artigo se propõe a levantar aspectos desta vida cotidiana em
terras brasileiras, desde a chegada dos portugueses, abarcando os séculos
16 e 17. Muito já se tem escrito sobre isto. Minha contribuição será a
tentativa de compreender a gesta no contexto, aproximando-me o mais
possível da interpretação dos próprios atores sociais. Estes atores são,
centralmente, os portugueses. A formação da cultura brasileira está ligada
umbilicalmente à sociedade portuguesa quinhentista-seiscentista, posta aqui
em nova terra, em contato com outras culturas, a(s) indígena(s) e a(s)
africana(s), cada qual consolidada, sob condições que afetavam, num
processo lento mas irrefreável, seus costumes, suas crenças, seus valores,
suas instituições, sua visão de vida, enfim as relações sociais. Para os
portugueses, uma nova forma de vida, selvagem ela própria porque
ameaçadora. A colônia apresentava ameaças de toda sorte, que em Portugal
não existiam. Eram as condições da colônia que criavam as ameaças: viver
já não era igual; a produção da vida cotidiana era difícil em si: havia a
questão da alimentação, do transporte, da defesa, da distância, da habitação,
das doenças, dos recursos disponíveis para as diversas atividades etc. E, por
sobre tudo, pairava a mesma ordem social, a mesma organização social, o
1
Publicado em Comunicações (Unimep), ano 6, n. 2, 1999, p. 60-67
mesmo direito, os mesmos costumes e normas, as mesmas obrigações
vigentes em Portugal, o mesmo rei, a mesma Igreja.
Este processo de interculturação, quero observá-lo a partir do lugar
ocupado pelos jesuítas. Indico duas razões. Primeiramente, os jesuítas
exerciam oficialmente a missão de cristianizar os “novos” povos, isto é, de
trazê-los para a cultura portuguesa, ou seja, de confirmar a cultura
portuguesa em terras brasileiras. Em segundo lugar, os jesuítas deixaram
uma documentação muito vasta, que permite acompanhar os problemas
vividos à época. Um terceiro argumento poderia ser a influência que os
padres da Companhia exerciam, já no seu tempo, através dos colégios. O
período assinalado, séculos 16 e 17, se justifica por comportar
características mais ou menos homogêneas, que vão se desmanchando sob
a influência do desenvolvimento capitalista mercantil e, mais adiante, das
idéias iluministas da Europa.
A expressão cultural maior portuguesa quinhentista/seiscentista é a
religião. A sociedade se regia pela visão do orbis christianus: uma
sociedade teocrática, uma sociedade organizada pelo princípio da relação
hierarquizada, tendo Deus como a referência central e absoluta. A
sociedade só tinha seu sentido nesta compreensão. O rei era, na sociedade,
a referência maior, porquanto Deus o constituíra seu vigário. A organização
das relações sociais vigente à época, ainda que pudesse ser outra, tinha
como marca principal a sacralidade: tudo era forma de realizar a vontade de
Deus; tudo estava voltado para o sagrado. Assim, rei, administradores,
soldados, padres, comerciantes, funcionários públicos, artesãos, todos, cada
qual em sua função, realizavam a reino de Deus hic et nunc. Mais o rei,
porque todos, em suas mais diversas profissões, recebiam dele a
qualificação. Ele distribuía as funções, que possibilitavam a ele, rei,
desempenhar a missão dada por Deus. A diversidade, pois, de funções
sociais continha, implícita, a convergência de todas para a realização do
mesmo plano. Por isto, podia haver divergências gritantes entre os
ocupantes das funções: o rei ou seu representante as harmonizava,
interpretando, de facto, o que interessava à realização do reino2. Esta visão
implica a crença da verdade desta forma de organização e, portanto, de sua
necessidade e de sua imutabilidade. Há superabundância de confirmações,
nos escritos da época, da vigência desta ideologia.
A cultura brasileira nasce, destarte, marcada pela presença viva da
Igreja/religião. Podemos discutir os caminhos que essa presença percorreu
2
Algumas observações sobre este tópico: a) era legítimo que os diversos atores sociais, em suas diversas funções, tivessem e
defendessem posições até contrárias: a autoridade estabelecia o reto; b) nesta visão não há do que se espantar com o
regime do Padroado: não era um favor do Papa: procedia de Deus! O Papa devia apenas declará-lo! c) Não tem sentido,
neste contexto, em falar de Igreja Católica: era simplesmente “a” Igreja. Os documentos da época rezavam: “a nossa
santa fé”. Só com esta compreensão é que se pode dimensionar bem a questão dos “hereges”.
ao longo do período que abordamos, mas o fato é certo: o sagrado estava
nas entranhas de cada gesto social, na forma – é certo – vivida à época.
Esta é a característica maior da ação pedagógica dos jesuítas3,
consubstanciada em seu código pedagógico Ratio Studiorum. Por que nos
referimos à ação pedagógica? Porque a ação pedagógica é, por excelência,
o lugar onde os princípios se manifestam com clareza. A proposta de
afirmação de uma sociedade, nós a temos em sua paideia. Se os jesuítas se
impuseram como os educadores no reino de Portugal, contra outras
tendências, isto, no mínimo, significa estar sua pedagogia consoante com a
cultura portuguesa e com a visão de mundo da Corte.
Os princípios fundamentais da pedagogia jesuítica explicitam a
sacralidade que dá forma à cultura portuguesa. Dizem respeito à busca do
Reino de Deus (Ad majorem Dei gloriam!), à salvação da própria alma e à
do próximo, à edificação da Igreja. Para se entender isto, tem que se
entender o teocrático da sociedade, senão a ação de uma instituição aparece
como definidora de toda a cultura, quando dela é expressão. Visa-se, com
efeito, a construção de uma sociedade impregnada do Reino de Deus. A
concepção de uma tal sociedade implica a autoridade hierarquizada como
princípio estruturante, dispondo a ordem das partes. Daí derivam-se os
princípios de centralização, de uniformidade e de invariância. O modelo
proposto é de uma sociedade perfeita, coerente, harmoniosa. O instrumento
é a disciplina rigorosa. A organização curricular, a metodologia de ensino e
de estudo, o processo de avaliação e a disciplina escolar encarnam as
propostas, possibilitando a realização. Isto tudo se fazia por necessidade: se
assim não se procedesse, seria a catástrofe, catástrofe em relação à verdade,
à salvação, à sobrevivência. Não se tratava, in radice, de perder terreno
para os protestantes: era o medo de desestruturação do seu mundo, o único
e verdadeiro; seria o caos. A pedagogia estava em defesa da necessidade.
Como isto se realizava no Brasil? Para imaginarmos melhor o
contexto, apresento dois tipos de informações, as primeiras versando sobre
a vida no colégio, as segundas sobre a população.
Fernão CARDIM (1585/1980: 143) diz que, à presença do
Visitador, os estudantes do Colégio da Bahia fazem discurso, em prosa e
em verso, recitam e cantam com instrumentos. Os estudantes (tiveram)
duas (orações) em prosa e verso; recitaram-se alguns epigramas, houve
boa música de vozes, cravo e descantes. O mesmo fazem para o
governador alguns dias depois.
3
O Ratio Studiorum, em sua forma definitiva, data de 1599. Para melhor conhecimento de sua história, ver , de Leonel
Franca, O Método Pedagógico dos Jesuítas. São Paulo: Agir, 1952.
Serafim LEITE (1938 t. I: 96/97), baseado nas cartas jesuíticas do
século 16, relata, com orgulho, o êxito do Colégio da Bahia, comparando-o
aos de Portugal:
Em 1578, conferiram-se as primeiras láureas de Mestre em
Artes. Foi o ato, que revestiu pompa extraordinária, na Igreja do
Colégio, com a assistência do Governador Geral e do Bispo.
Em 1581, novos doutoramentos. Foi um espetáculo europeu.
... “Este ano elevaram-se à dignidade de Mestre alguns externos. A
cerimônia fez-se ainda com maior solenidade e com o aparato que
se costuma nas Academias da Europa, como nunca se tinha feito
aqui. Não faltou nem o anel, nem o livro, nem o cavalo, nem o
pagem do barrete, nem o capelo feito de estofo de seda” (Anchieta)
Olhando a sociedade ao redor, acompanho o censo de Fernão
CARDIM (1585/1980): “terá a cidade (da Bahia) com seu termo passante
de três mil vizinhos portugueses, oito mil índios cristãos e três ou quatro
mil escravos de Guiné” (p. 144); Pernambuco “tem passante de dois mil
vizinhos entre vila e termo ... serão perto de dois mil escravos; os índios da
terra são já poucos” (p.164); a Vila de Nossa Senhora da Vitória “terá mais
de cento e cinquenta vizinhos” (p.168); São Vicente “terá oitenta vizinhos
... a vila de Santos, oitenta vizinhos... Itanhaém, cinquenta vizinhos...
Piratininga, cento e vinte vizinhos ou mais (p.174). São Jorge de Ilhéus,
cinquenta vizinhos... Porto Seguro, quarenta vizinhos (p.147/8) Em cada
engenho da Bahia (– eram trinta e seis!) havia “de ordinário seis, oito e
mais fogos de brancos e ao menos sessenta escravos... mas os mais deles
têm cento e duzentos escravos de Guiné e da terra” (p.158)
Estes dados nos permitem vislumbrar como se assentava a
sociedade de que falamos. Acrescentem-se a isto as condições de viagem, o
isolamento territorial, o sentimento de perigo à flor da pele, a distância da
terra-mãe, a necessidade da grande produção, o trato com escravos em
número muitas vezes maior, as guerras (contra índios, franceses,
piratas,etc.), a nova família. É neste ambiente que se encontram os
colégios. É aí que se pratica a pedagogia jesuítica. O que fazem português
do cotidiano tem que dar respostas a problemas de toda sorte, marcados
pelo caráter os pais? Os principais que estão nos engenhos e fazendas4
mandam seus filhos a estudar nos colégios. O que estudam eles? As
mesmas coisas que em Portugal. Parece que nada mudou. Parece que a
sociedade vive em Portugal, quando a situação é toda estranha. O selvagem
da ameaça permanente e universal. Neste contexto se compreendem as
4
O Visitador Gouveia, em carta de 6 de setembro de 1584, assim se expressa quando fala de quemmanda os filhos ao
colégio (apud S.LEITE, 1938 t.I: 82 )
atitudes radicais, sobretudo no que dizem respeito à execução das pessoas e
aos castigos5. Basta acompanhar a vida dos bandeirantes. O Brasil era, todo
ele, uma bandeira. – Como ensinar latim 6 aos filhos dessa gente? Como
convive o guerreiro - pois todo branco tem que ser guerreiro 7 - com as
letras e os letrados, com os cânones e a organização social, com a armadura
religiosa que enforma as situações? Os colégios pareciam a salvaguarda da
verdadeira cultura: todos o achavam natural; eram o lugar de formação da
elite e, por isto mesmo, da conservação da sociedade. O regime de corte
assim o exigia. Tudo girava ao redor desse regime. O que se produzia em
Portugal se recebia no Brasil. A corte precisava dos letrados e dos colégios
para se manter tal qual era. Mas aqui não havia corte: só capitães de terra e
soldados. O contexto não era de manutenção mas de luta de construção, de
conquista. Portugal se mantinha como Portugal. Pensava-se fazer daqui um
outro Portugal. Havia, no entanto, uma disparidade de experiência de vida
entre lá e cá. Como se refletia isto no cotidiano? A pergunta mais próxima
diz respeito à interação entre colégio e vida fora do colégio nas condições
já assinaladas. Quais os problemas na interação? Que consequências
culturais?
Por ocasião da visita de Cristóvão de Gouveia, de que fala
CARDIM (1585/1980: 145), o colégio da Bahia tinha uma lição de
teologia, uma de casos, um curso de artes, duas classes de humanidades,
escola de ler e escrever. Isto em 1584. Serafim LEITE (1938, t.1: 74-79;
t.2: 69-75) é mais completo. Basta correr os olhos sobre o Ratio atque
Institutio Studiorum, o diretório de estudos da Companhia, para se ter uma
idéia do quase paradoxo entre o colégio e o mais da sociedade, ou seja, da
problemática cultural do quinhentos e seiscentos brasileiro. O colégio
parecia viver um clima de outro mundo: lá se liam as poesias de Virgílio e
Ovídio, os discursos de Cícero, as proezas de César; lá se praticavam as
repetições, esquadrinhadas tal qual num exercício militar; as disputas, quais
duelo medieval8. Que homem se buscava? O fato é que essa pedagogia,
praticada aqui no Brasil, nos impõe uma atitude de questionamento. Por
certo, era natural que se praticasse aqui, visto que era a pedagogia praticada
no reino. Mas, aqui posta, como combinava com a nova realidade social?
Para um observador externo o colégio parecia viver uma outra realidade: o
mundo de dentro, talvez o mundo de Portugal. O mundo de fora começava,
no entanto, a firmar posição. Como era o processo de adaptação?
5
Luís PALACIN (1987: 29), falando do homem do século 17, afirma: “O homem do século 17 não tinha a sensibilidade do
homem moderno na percepção e na repulsa dos abusos da autoridade”. Menos ainda no século anterior, já pelos
fundamentos teóricos, já pelas circunstâncias de vida.
6
Com latim quero dizer, numa só palavra, a cultura letrada.
7
Para se imaginar o cotidiano de um português quinhentista ler, entre outros, de Ronaldo VAINFAS, A heresia dos índios:
catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp 84-94.
8
É claro que não podemos resumir assim a pedagogia jesuítica. Este ensaio quer frisar o contraste entre essa pedagogia, no
rigor de sua forma, e o contexto brasileiro.
Uma primeira resposta encontramos nos próprios jesuítas. Diante da
nova situação eles procuram se adaptar. Querem adaptar, para os índios, a
legislação (casamento, batismo, confissão, liberdade). Querem adaptar,
para os portugueses, a moral e a legislação da guerra justa e da
escravização. Mas se adaptam também naquilo que os índios levam
vantagem: modo de dormir, de viajar, de se alimentar9.
Uma segunda resposta nós encontramos na atitude dos
governadores e dos capitães. Garantidos os direitos régios, cada capitão se
torna soberano, tal a distância da sede e tal a constância de ameaça à vida.
Ao redor dos capitães se constrói a vida política e social da colônia. Isto vai
gerar um modus vivendi que modela comportamentos, dita valores, cria
costumes e instituições. O capitão se torna provedor da vida, em todos os
campos: alimentação, defesa, trabalho, moral social, relações ditas sociais10,
organização social, etc. A dependência no que diz respeito à vida gera
atitudes de submissão, tendendo ao clientelismo com todas as trocas de
favores que isto implica. O regional começa a se pôr como resultado da
situação de vida.
Uma terceira consideração. Os letrados, que saíam dos colégios e se
misturavam à vida social, tinham diante de si dois modelos: o do colégio e
o da sociedade posta. O modelo colegial lhe exigia um comportamento
clássico, formal, religioso: seu argumento era o do colégio. Para tanto fora
treinado. A disciplina do colégio jesuítico era austera. “... se exercitem os
alunos, de modo que de nada se envergonhem tanto, como de se apartar do
rigor da forma...”11 Sua ação, porém, era a exigida pelas circunstâncias.
Combinar os dois discursos gerou uma prática social ambígua e
ambivalente. Podia-se estar bem com Deus e, por isto mesmo, com a
sociedade, resguardando o argumento moral-religioso e, ao mesmo tempo,
contrariar os princípios com uma requintada justificação. O que garantia a
harmonia de um tal comportamento era a visão ideológica de sociedade
teocrática, o orbis christianus. À medida, porém, que a prática social vai
desconstruindo esta ideologia, preservando embora os mesmos
comportamentos, surge gritante a disparidade dos discursos, o discurso
justificador, de um lado, e o discurso da prática, de outro lado. Em se
tratando de um olhar sobre a formação da cultura brasileira, é preciso
observar os comportamentos e suas consequências sociais, ainda que
ressalvando as intenções justificadas pela visão de mundo do momento. Em
termos de consequências, é importante verificar as atitudes política, moral,
9
Sobre este tema, ver a tese de José Carlos Sebe Bom Meihy, A presença do Brasil na Companhia de Jesus. São Paulo,
USP/IFCH/Departamento de História, 1975. Tese de doutorado.
10
Um eloquente exemplo disto é o apadrinhamento. Em outro lugar escrevi (PAIVA. 1982:68): Eles não têm apenas uma
função patronímica mas patronal: recebendo os afilhados na família (isto aconteceu com os primeiros nomeados [citei
então vários exemplos] e continuou sendo costume que governador, ouvidor, provedor e outros oficiais apadrinhassem
os novos cristãos) e garantindo-lhes um “status” na nova sociedade.
11
Ratio Studiorum, art. 20.
de negócios – os grandes campos de ação social
cristalizando na cultura brasileira.
-
que foram se
A religião se põe, pois, na formação da cultura brasileira, como um
discurso formal12, que consagra o status quo, à época todo ele de fato
religioso, possibilitando incongruências radicais nas mesmas pessoas13. Os
que passam pelos colégios (a elite 14) praticam a religião “jesuítica”:
preservam o discurso rigoroso que justifica a prática necessária. Com isto,
não estou fazendo ainda referência ao modelo devocional da religiosidade
barroca então vigente: estou insistindo na função que a religião
desempenha na sociedade colonial, uma função de justificação. Insisto: ela
justifica nos termos mais radicais, ou seja, dá status religioso para toda e
qualquer atividade humana; justifica a ordem social vigente, distinguindo
senhores, plebe e escravos; justifica os próprios argumentos usados,
sublimando os fatos. Esta justificação não se dá por um ato papal ou
episcopal: ela é da própria natureza da sociedade. E se manifesta, assim, na
linguagem, nos produtos simbólicos, na organização social, nos costumes
sociais, em tudo. Este lugar da religião se põe como legítimo na cultura da
sociedade e é enquanto tal que se perpetua, mesmo mudando-se as
condições sociais. Os letrados e, mais que eles, os governantes se têm e são
tidos como privilegiados de Deus. E assim agem socialmente.
Um quinto aspecto que, penso, deve ser abordado no esforço de se
caracterizar a cultura brasileira é o contraste entre a racionalidade - própria
da cultura portuguesa e, mais própria ainda, do estilo jesuítico - e a nova
expressão da terra. Dizendo racionalidade, digo da primazia da razão sobre
qualquer outra expressão humana possível. A racionalidade prima pela
disposição das partes em contraposição à percepção do todo, do uno
indiviso. Ela tende ao individualismo, em termos sociais. Torna possível o
Estado mercantil15, em termos políticos. Sugere a escrita como instrumento
da contabilidade (ratio = cálculo!) e da argumentação. E, na argumentação,
o conceito16 acima do concreto. Pela escrita se tem sempre à mão a ordem,
a ordem social, a ordem sagrada, a ordem dos negócios. A racionalidade
12
Formal, isto é, que dá (a) forma. Não se diz formal, no sentido de convencional (conquanto o possa parecer para nós hoje),
dado que a sociedade teocrática se expressava, toda, teocraticamente.
13
Ver a obra já citada (nota 4) de Luís PALACIN (1986: 81/82), onde, falando de Vieira, se refere a incongruências entre
argumentos e gestos. Este comportamento, podemos verificá-lo, a cada passo, no processo de colonização. É por demais
conhecido o dito de Anchieta (Cartas Jesuíticas, t. III, p.179): “Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta
Capitania para a conversão dos gentios, se Deus nosso Senhor quiser dar maneira, com que sejam postos
debaixo do jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na
qual mais que em nenhuma outra, é necessário que se cumpra o compelle eos intrare”.
14
15
16
Regis de MORAIS (1995: 75), reportando-se a outro artigo seu, procura “depurar os termos elite e elitização das
características socioeconômicas ... devolvendo-lhes o original conceito ético de os mais dotados de consciência de si e
do seu tempo (elite) e de processo autêntico de conscientização intelectual e de cidadania (elitização).”
Oliveira FRANÇA (1997: 39) diz que “o mercantilismo é uma doutrina de ordem. De policiamento das atividades
econômicas através da intervenção ostensiva do Estado”. Não quero afirmar que a racionalidade é causa do Estado
mercantil: ela é sua expressão possível.
As “verdades” cristãs eram postas em fórmulas abstratas: crer, Deus/trino/puro espírito, comunhão, salvação/grapecado,
etc.
está presente na filosofia, na contabilidade, na lei, na teologia, no direito,
em todas as esferas da vida social.
Ela se faz chocante ao pisar em terras brasileiras e querer se impor
aos índios, aos negros e ao guerreiro. As cultura indígenas e africanas não
se marcavam pela racionalidade mas pela simbiose com o circunstante. Sua
expressão imediata era uma transformação do sujeito por inteiro: o corpo
fala!17 Assim, o ritual se destaca como a forma de linguagem. Por detrás do
ritual, a linguagem direta, a linguagem mítica, a linguagem da unidade. Os
jesuítas perceberam isto, tanto assim que tentavam, em suas pregações,
imitar aos pajés18 e usavam do teatro para catequizar os indígenas. Seu
conteúdo e sua forma, porém, eram inacessíveis e invalidavam o
instrumento. O guerreiro, ao contrário, tentava assimilar a linguagem,
assimilando os costumes (o que parecia aos jesuítas a profanação da própria
cultura): alimentação, música, vocabulário, gestos, etc. formando mesmo
família19. O crescimento demográfico, tendo por base o índio e, sobretudo,
o negro, estende a influência dessas culturas à cultura portuguesa do Brasil,
tocando-a no que lhe era cotidiano: a linguagem, o sentimento, as
expressões de familiaridade, e, por aí, a visão de mundo, as crenças, a vida.
Este trabalho se propôs sugerir perspectivas de pesquisa sobre a
formação da cultura brasileira, a partir da educação institucionalizada, a
cargo da Companhia de Jesus. Insiste na composição colégio/condições
concretas da colônia, indicando a necessidade de se analisar mais
profundamente as formas de convivência assumidas delas decorrentes, que
deixaram marcas no desdobramento da cultura brasileira. Muito pouco se
tem feito nesta linha. A História da Educação Brasileira, no que diz
respeito a este período, tem se contentado com a narrativa no sentido
tradicional. Creio ser necessário retomar as origens, partindo de
contribuições teóricas que nos permitam uma compreensão melhor da
nossa forma de ser.
Fontes
CARDIM, F. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica. In:
CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1585). Belo
Horizonte: Itatitaia/São Paulo: Edusp, 1980.
17
Faço alusão ao trabalho de P.Weil, num sentido porém mais radical: nós nos expressamos in totum como seres corpóreos;
é mais do que usar o corpo como instrumento de comunicação. Cabe aqui fazer referência à gestualidade e oralidade,
como expressões típicas da cultura brasileira. Ver, nestes termos, de Amálio Pinheiro, Aquém da Identidade e da
Oposição – Formas na Cultura Mestiça. Piracicaba: Unimep, 1994.
18
Ver, entre muitas outras, Cartas dos Primeiros jesuítas do Brasil, t. I, p. 319; t. III, p. 404.
19
A linguagem da guerra e das execuções, por não implicar racionalidade, era assimilada pelos indígenas, afeitos, eles
também, à guerra entre adversários e à sua execução, conforme suas tradições. Creio termos aqui um aspecto a
pesquisar, nos termos da comunicabilidade intercultural.
CARTAS DOS PRIMEIROS JESUÍTAS DO BRASIL. São Paulo:
Comissão do IV Centenário, 1954. Org. de Serfim Leite. 3 t.
RATIO ATQUE INSTITUTIO STUDIORUM. In: FRANCA, L. Método
Pedagógico dos Jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.
Referências Bibliográficas
FRANÇA, E.d’O. Portugal na época da Restauração. São Paulo:
Hucitec, 1997.
LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa:
Portugália/Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. tomos I e II.
MORAIS, R. A universidade desafiada. Campinas: Unicamp, 1995.
PAIVA, J.M. Colonização e Catequese.
Associados, 1982
São Paulo: Cortez/Autores
PALACIN, L. Vieira e a visão trágica do barroco.
Hucitec/Brasília: INL/Fundação Pró-Memória, 1986.
São Paulo:
PINHEIRO, A. Aquém da Identidade e da Oposição. Piracicaba:
Unimep, 1994.
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