Educação e Cultura a sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII1 José Maria de Paiva Com o presente estudo quero assinalar aspectos que me parecem fundamentais parqa a compreensão da formação da cultura brasileira. De forma ampla, entendo por cultura a forma de viver de uma sociedade, forma que se expande por todas as atividades do homem. Queremos acreditar que em todas as manifestações culturais perpassa uma e mesma visão de mundo; melhor ainda, que todas essas manifestações se compõem coerentemente para a produção do que chamamos de uma cultura. O que funda uma cultura? O que a distingue de outras culturas? Quando podemos estabelecer que se dá uma nova cultura? A cultura se percebe a posteriori. Observando as formas de uma sociedade viver, estabelecemos seus eixos fundamentais. No entanto, essas formas não tiveram origem mágica: elas respondem à necessidade de sobrevivência num determinado contexto, incluindo aí todas as variáveis. A cultura surge da vida cotidiana. E, também por isto, a cultura nunca está pronta. Pelo contrário, tende sempre a uma reorganização. Este artigo se propõe a levantar aspectos desta vida cotidiana em terras brasileiras, desde a chegada dos portugueses, abarcando os séculos 16 e 17. Muito já se tem escrito sobre isto. Minha contribuição será a tentativa de compreender a gesta no contexto, aproximando-me o mais possível da interpretação dos próprios atores sociais. Estes atores são, centralmente, os portugueses. A formação da cultura brasileira está ligada umbilicalmente à sociedade portuguesa quinhentista-seiscentista, posta aqui em nova terra, em contato com outras culturas, a(s) indígena(s) e a(s) africana(s), cada qual consolidada, sob condições que afetavam, num processo lento mas irrefreável, seus costumes, suas crenças, seus valores, suas instituições, sua visão de vida, enfim as relações sociais. Para os portugueses, uma nova forma de vida, selvagem ela própria porque ameaçadora. A colônia apresentava ameaças de toda sorte, que em Portugal não existiam. Eram as condições da colônia que criavam as ameaças: viver já não era igual; a produção da vida cotidiana era difícil em si: havia a questão da alimentação, do transporte, da defesa, da distância, da habitação, das doenças, dos recursos disponíveis para as diversas atividades etc. E, por sobre tudo, pairava a mesma ordem social, a mesma organização social, o 1 Publicado em Comunicações (Unimep), ano 6, n. 2, 1999, p. 60-67 mesmo direito, os mesmos costumes e normas, as mesmas obrigações vigentes em Portugal, o mesmo rei, a mesma Igreja. Este processo de interculturação, quero observá-lo a partir do lugar ocupado pelos jesuítas. Indico duas razões. Primeiramente, os jesuítas exerciam oficialmente a missão de cristianizar os “novos” povos, isto é, de trazê-los para a cultura portuguesa, ou seja, de confirmar a cultura portuguesa em terras brasileiras. Em segundo lugar, os jesuítas deixaram uma documentação muito vasta, que permite acompanhar os problemas vividos à época. Um terceiro argumento poderia ser a influência que os padres da Companhia exerciam, já no seu tempo, através dos colégios. O período assinalado, séculos 16 e 17, se justifica por comportar características mais ou menos homogêneas, que vão se desmanchando sob a influência do desenvolvimento capitalista mercantil e, mais adiante, das idéias iluministas da Europa. A expressão cultural maior portuguesa quinhentista/seiscentista é a religião. A sociedade se regia pela visão do orbis christianus: uma sociedade teocrática, uma sociedade organizada pelo princípio da relação hierarquizada, tendo Deus como a referência central e absoluta. A sociedade só tinha seu sentido nesta compreensão. O rei era, na sociedade, a referência maior, porquanto Deus o constituíra seu vigário. A organização das relações sociais vigente à época, ainda que pudesse ser outra, tinha como marca principal a sacralidade: tudo era forma de realizar a vontade de Deus; tudo estava voltado para o sagrado. Assim, rei, administradores, soldados, padres, comerciantes, funcionários públicos, artesãos, todos, cada qual em sua função, realizavam a reino de Deus hic et nunc. Mais o rei, porque todos, em suas mais diversas profissões, recebiam dele a qualificação. Ele distribuía as funções, que possibilitavam a ele, rei, desempenhar a missão dada por Deus. A diversidade, pois, de funções sociais continha, implícita, a convergência de todas para a realização do mesmo plano. Por isto, podia haver divergências gritantes entre os ocupantes das funções: o rei ou seu representante as harmonizava, interpretando, de facto, o que interessava à realização do reino2. Esta visão implica a crença da verdade desta forma de organização e, portanto, de sua necessidade e de sua imutabilidade. Há superabundância de confirmações, nos escritos da época, da vigência desta ideologia. A cultura brasileira nasce, destarte, marcada pela presença viva da Igreja/religião. Podemos discutir os caminhos que essa presença percorreu 2 Algumas observações sobre este tópico: a) era legítimo que os diversos atores sociais, em suas diversas funções, tivessem e defendessem posições até contrárias: a autoridade estabelecia o reto; b) nesta visão não há do que se espantar com o regime do Padroado: não era um favor do Papa: procedia de Deus! O Papa devia apenas declará-lo! c) Não tem sentido, neste contexto, em falar de Igreja Católica: era simplesmente “a” Igreja. Os documentos da época rezavam: “a nossa santa fé”. Só com esta compreensão é que se pode dimensionar bem a questão dos “hereges”. ao longo do período que abordamos, mas o fato é certo: o sagrado estava nas entranhas de cada gesto social, na forma – é certo – vivida à época. Esta é a característica maior da ação pedagógica dos jesuítas3, consubstanciada em seu código pedagógico Ratio Studiorum. Por que nos referimos à ação pedagógica? Porque a ação pedagógica é, por excelência, o lugar onde os princípios se manifestam com clareza. A proposta de afirmação de uma sociedade, nós a temos em sua paideia. Se os jesuítas se impuseram como os educadores no reino de Portugal, contra outras tendências, isto, no mínimo, significa estar sua pedagogia consoante com a cultura portuguesa e com a visão de mundo da Corte. Os princípios fundamentais da pedagogia jesuítica explicitam a sacralidade que dá forma à cultura portuguesa. Dizem respeito à busca do Reino de Deus (Ad majorem Dei gloriam!), à salvação da própria alma e à do próximo, à edificação da Igreja. Para se entender isto, tem que se entender o teocrático da sociedade, senão a ação de uma instituição aparece como definidora de toda a cultura, quando dela é expressão. Visa-se, com efeito, a construção de uma sociedade impregnada do Reino de Deus. A concepção de uma tal sociedade implica a autoridade hierarquizada como princípio estruturante, dispondo a ordem das partes. Daí derivam-se os princípios de centralização, de uniformidade e de invariância. O modelo proposto é de uma sociedade perfeita, coerente, harmoniosa. O instrumento é a disciplina rigorosa. A organização curricular, a metodologia de ensino e de estudo, o processo de avaliação e a disciplina escolar encarnam as propostas, possibilitando a realização. Isto tudo se fazia por necessidade: se assim não se procedesse, seria a catástrofe, catástrofe em relação à verdade, à salvação, à sobrevivência. Não se tratava, in radice, de perder terreno para os protestantes: era o medo de desestruturação do seu mundo, o único e verdadeiro; seria o caos. A pedagogia estava em defesa da necessidade. Como isto se realizava no Brasil? Para imaginarmos melhor o contexto, apresento dois tipos de informações, as primeiras versando sobre a vida no colégio, as segundas sobre a população. Fernão CARDIM (1585/1980: 143) diz que, à presença do Visitador, os estudantes do Colégio da Bahia fazem discurso, em prosa e em verso, recitam e cantam com instrumentos. Os estudantes (tiveram) duas (orações) em prosa e verso; recitaram-se alguns epigramas, houve boa música de vozes, cravo e descantes. O mesmo fazem para o governador alguns dias depois. 3 O Ratio Studiorum, em sua forma definitiva, data de 1599. Para melhor conhecimento de sua história, ver , de Leonel Franca, O Método Pedagógico dos Jesuítas. São Paulo: Agir, 1952. Serafim LEITE (1938 t. I: 96/97), baseado nas cartas jesuíticas do século 16, relata, com orgulho, o êxito do Colégio da Bahia, comparando-o aos de Portugal: Em 1578, conferiram-se as primeiras láureas de Mestre em Artes. Foi o ato, que revestiu pompa extraordinária, na Igreja do Colégio, com a assistência do Governador Geral e do Bispo. Em 1581, novos doutoramentos. Foi um espetáculo europeu. ... “Este ano elevaram-se à dignidade de Mestre alguns externos. A cerimônia fez-se ainda com maior solenidade e com o aparato que se costuma nas Academias da Europa, como nunca se tinha feito aqui. Não faltou nem o anel, nem o livro, nem o cavalo, nem o pagem do barrete, nem o capelo feito de estofo de seda” (Anchieta) Olhando a sociedade ao redor, acompanho o censo de Fernão CARDIM (1585/1980): “terá a cidade (da Bahia) com seu termo passante de três mil vizinhos portugueses, oito mil índios cristãos e três ou quatro mil escravos de Guiné” (p. 144); Pernambuco “tem passante de dois mil vizinhos entre vila e termo ... serão perto de dois mil escravos; os índios da terra são já poucos” (p.164); a Vila de Nossa Senhora da Vitória “terá mais de cento e cinquenta vizinhos” (p.168); São Vicente “terá oitenta vizinhos ... a vila de Santos, oitenta vizinhos... Itanhaém, cinquenta vizinhos... Piratininga, cento e vinte vizinhos ou mais (p.174). São Jorge de Ilhéus, cinquenta vizinhos... Porto Seguro, quarenta vizinhos (p.147/8) Em cada engenho da Bahia (– eram trinta e seis!) havia “de ordinário seis, oito e mais fogos de brancos e ao menos sessenta escravos... mas os mais deles têm cento e duzentos escravos de Guiné e da terra” (p.158) Estes dados nos permitem vislumbrar como se assentava a sociedade de que falamos. Acrescentem-se a isto as condições de viagem, o isolamento territorial, o sentimento de perigo à flor da pele, a distância da terra-mãe, a necessidade da grande produção, o trato com escravos em número muitas vezes maior, as guerras (contra índios, franceses, piratas,etc.), a nova família. É neste ambiente que se encontram os colégios. É aí que se pratica a pedagogia jesuítica. O que fazem português do cotidiano tem que dar respostas a problemas de toda sorte, marcados pelo caráter os pais? Os principais que estão nos engenhos e fazendas4 mandam seus filhos a estudar nos colégios. O que estudam eles? As mesmas coisas que em Portugal. Parece que nada mudou. Parece que a sociedade vive em Portugal, quando a situação é toda estranha. O selvagem da ameaça permanente e universal. Neste contexto se compreendem as 4 O Visitador Gouveia, em carta de 6 de setembro de 1584, assim se expressa quando fala de quemmanda os filhos ao colégio (apud S.LEITE, 1938 t.I: 82 ) atitudes radicais, sobretudo no que dizem respeito à execução das pessoas e aos castigos5. Basta acompanhar a vida dos bandeirantes. O Brasil era, todo ele, uma bandeira. – Como ensinar latim 6 aos filhos dessa gente? Como convive o guerreiro - pois todo branco tem que ser guerreiro 7 - com as letras e os letrados, com os cânones e a organização social, com a armadura religiosa que enforma as situações? Os colégios pareciam a salvaguarda da verdadeira cultura: todos o achavam natural; eram o lugar de formação da elite e, por isto mesmo, da conservação da sociedade. O regime de corte assim o exigia. Tudo girava ao redor desse regime. O que se produzia em Portugal se recebia no Brasil. A corte precisava dos letrados e dos colégios para se manter tal qual era. Mas aqui não havia corte: só capitães de terra e soldados. O contexto não era de manutenção mas de luta de construção, de conquista. Portugal se mantinha como Portugal. Pensava-se fazer daqui um outro Portugal. Havia, no entanto, uma disparidade de experiência de vida entre lá e cá. Como se refletia isto no cotidiano? A pergunta mais próxima diz respeito à interação entre colégio e vida fora do colégio nas condições já assinaladas. Quais os problemas na interação? Que consequências culturais? Por ocasião da visita de Cristóvão de Gouveia, de que fala CARDIM (1585/1980: 145), o colégio da Bahia tinha uma lição de teologia, uma de casos, um curso de artes, duas classes de humanidades, escola de ler e escrever. Isto em 1584. Serafim LEITE (1938, t.1: 74-79; t.2: 69-75) é mais completo. Basta correr os olhos sobre o Ratio atque Institutio Studiorum, o diretório de estudos da Companhia, para se ter uma idéia do quase paradoxo entre o colégio e o mais da sociedade, ou seja, da problemática cultural do quinhentos e seiscentos brasileiro. O colégio parecia viver um clima de outro mundo: lá se liam as poesias de Virgílio e Ovídio, os discursos de Cícero, as proezas de César; lá se praticavam as repetições, esquadrinhadas tal qual num exercício militar; as disputas, quais duelo medieval8. Que homem se buscava? O fato é que essa pedagogia, praticada aqui no Brasil, nos impõe uma atitude de questionamento. Por certo, era natural que se praticasse aqui, visto que era a pedagogia praticada no reino. Mas, aqui posta, como combinava com a nova realidade social? Para um observador externo o colégio parecia viver uma outra realidade: o mundo de dentro, talvez o mundo de Portugal. O mundo de fora começava, no entanto, a firmar posição. Como era o processo de adaptação? 5 Luís PALACIN (1987: 29), falando do homem do século 17, afirma: “O homem do século 17 não tinha a sensibilidade do homem moderno na percepção e na repulsa dos abusos da autoridade”. Menos ainda no século anterior, já pelos fundamentos teóricos, já pelas circunstâncias de vida. 6 Com latim quero dizer, numa só palavra, a cultura letrada. 7 Para se imaginar o cotidiano de um português quinhentista ler, entre outros, de Ronaldo VAINFAS, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp 84-94. 8 É claro que não podemos resumir assim a pedagogia jesuítica. Este ensaio quer frisar o contraste entre essa pedagogia, no rigor de sua forma, e o contexto brasileiro. Uma primeira resposta encontramos nos próprios jesuítas. Diante da nova situação eles procuram se adaptar. Querem adaptar, para os índios, a legislação (casamento, batismo, confissão, liberdade). Querem adaptar, para os portugueses, a moral e a legislação da guerra justa e da escravização. Mas se adaptam também naquilo que os índios levam vantagem: modo de dormir, de viajar, de se alimentar9. Uma segunda resposta nós encontramos na atitude dos governadores e dos capitães. Garantidos os direitos régios, cada capitão se torna soberano, tal a distância da sede e tal a constância de ameaça à vida. Ao redor dos capitães se constrói a vida política e social da colônia. Isto vai gerar um modus vivendi que modela comportamentos, dita valores, cria costumes e instituições. O capitão se torna provedor da vida, em todos os campos: alimentação, defesa, trabalho, moral social, relações ditas sociais10, organização social, etc. A dependência no que diz respeito à vida gera atitudes de submissão, tendendo ao clientelismo com todas as trocas de favores que isto implica. O regional começa a se pôr como resultado da situação de vida. Uma terceira consideração. Os letrados, que saíam dos colégios e se misturavam à vida social, tinham diante de si dois modelos: o do colégio e o da sociedade posta. O modelo colegial lhe exigia um comportamento clássico, formal, religioso: seu argumento era o do colégio. Para tanto fora treinado. A disciplina do colégio jesuítico era austera. “... se exercitem os alunos, de modo que de nada se envergonhem tanto, como de se apartar do rigor da forma...”11 Sua ação, porém, era a exigida pelas circunstâncias. Combinar os dois discursos gerou uma prática social ambígua e ambivalente. Podia-se estar bem com Deus e, por isto mesmo, com a sociedade, resguardando o argumento moral-religioso e, ao mesmo tempo, contrariar os princípios com uma requintada justificação. O que garantia a harmonia de um tal comportamento era a visão ideológica de sociedade teocrática, o orbis christianus. À medida, porém, que a prática social vai desconstruindo esta ideologia, preservando embora os mesmos comportamentos, surge gritante a disparidade dos discursos, o discurso justificador, de um lado, e o discurso da prática, de outro lado. Em se tratando de um olhar sobre a formação da cultura brasileira, é preciso observar os comportamentos e suas consequências sociais, ainda que ressalvando as intenções justificadas pela visão de mundo do momento. Em termos de consequências, é importante verificar as atitudes política, moral, 9 Sobre este tema, ver a tese de José Carlos Sebe Bom Meihy, A presença do Brasil na Companhia de Jesus. São Paulo, USP/IFCH/Departamento de História, 1975. Tese de doutorado. 10 Um eloquente exemplo disto é o apadrinhamento. Em outro lugar escrevi (PAIVA. 1982:68): Eles não têm apenas uma função patronímica mas patronal: recebendo os afilhados na família (isto aconteceu com os primeiros nomeados [citei então vários exemplos] e continuou sendo costume que governador, ouvidor, provedor e outros oficiais apadrinhassem os novos cristãos) e garantindo-lhes um “status” na nova sociedade. 11 Ratio Studiorum, art. 20. de negócios – os grandes campos de ação social cristalizando na cultura brasileira. - que foram se A religião se põe, pois, na formação da cultura brasileira, como um discurso formal12, que consagra o status quo, à época todo ele de fato religioso, possibilitando incongruências radicais nas mesmas pessoas13. Os que passam pelos colégios (a elite 14) praticam a religião “jesuítica”: preservam o discurso rigoroso que justifica a prática necessária. Com isto, não estou fazendo ainda referência ao modelo devocional da religiosidade barroca então vigente: estou insistindo na função que a religião desempenha na sociedade colonial, uma função de justificação. Insisto: ela justifica nos termos mais radicais, ou seja, dá status religioso para toda e qualquer atividade humana; justifica a ordem social vigente, distinguindo senhores, plebe e escravos; justifica os próprios argumentos usados, sublimando os fatos. Esta justificação não se dá por um ato papal ou episcopal: ela é da própria natureza da sociedade. E se manifesta, assim, na linguagem, nos produtos simbólicos, na organização social, nos costumes sociais, em tudo. Este lugar da religião se põe como legítimo na cultura da sociedade e é enquanto tal que se perpetua, mesmo mudando-se as condições sociais. Os letrados e, mais que eles, os governantes se têm e são tidos como privilegiados de Deus. E assim agem socialmente. Um quinto aspecto que, penso, deve ser abordado no esforço de se caracterizar a cultura brasileira é o contraste entre a racionalidade - própria da cultura portuguesa e, mais própria ainda, do estilo jesuítico - e a nova expressão da terra. Dizendo racionalidade, digo da primazia da razão sobre qualquer outra expressão humana possível. A racionalidade prima pela disposição das partes em contraposição à percepção do todo, do uno indiviso. Ela tende ao individualismo, em termos sociais. Torna possível o Estado mercantil15, em termos políticos. Sugere a escrita como instrumento da contabilidade (ratio = cálculo!) e da argumentação. E, na argumentação, o conceito16 acima do concreto. Pela escrita se tem sempre à mão a ordem, a ordem social, a ordem sagrada, a ordem dos negócios. A racionalidade 12 Formal, isto é, que dá (a) forma. Não se diz formal, no sentido de convencional (conquanto o possa parecer para nós hoje), dado que a sociedade teocrática se expressava, toda, teocraticamente. 13 Ver a obra já citada (nota 4) de Luís PALACIN (1986: 81/82), onde, falando de Vieira, se refere a incongruências entre argumentos e gestos. Este comportamento, podemos verificá-lo, a cada passo, no processo de colonização. É por demais conhecido o dito de Anchieta (Cartas Jesuíticas, t. III, p.179): “Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta Capitania para a conversão dos gentios, se Deus nosso Senhor quiser dar maneira, com que sejam postos debaixo do jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais que em nenhuma outra, é necessário que se cumpra o compelle eos intrare”. 14 15 16 Regis de MORAIS (1995: 75), reportando-se a outro artigo seu, procura “depurar os termos elite e elitização das características socioeconômicas ... devolvendo-lhes o original conceito ético de os mais dotados de consciência de si e do seu tempo (elite) e de processo autêntico de conscientização intelectual e de cidadania (elitização).” Oliveira FRANÇA (1997: 39) diz que “o mercantilismo é uma doutrina de ordem. De policiamento das atividades econômicas através da intervenção ostensiva do Estado”. Não quero afirmar que a racionalidade é causa do Estado mercantil: ela é sua expressão possível. As “verdades” cristãs eram postas em fórmulas abstratas: crer, Deus/trino/puro espírito, comunhão, salvação/grapecado, etc. está presente na filosofia, na contabilidade, na lei, na teologia, no direito, em todas as esferas da vida social. Ela se faz chocante ao pisar em terras brasileiras e querer se impor aos índios, aos negros e ao guerreiro. As cultura indígenas e africanas não se marcavam pela racionalidade mas pela simbiose com o circunstante. Sua expressão imediata era uma transformação do sujeito por inteiro: o corpo fala!17 Assim, o ritual se destaca como a forma de linguagem. Por detrás do ritual, a linguagem direta, a linguagem mítica, a linguagem da unidade. Os jesuítas perceberam isto, tanto assim que tentavam, em suas pregações, imitar aos pajés18 e usavam do teatro para catequizar os indígenas. Seu conteúdo e sua forma, porém, eram inacessíveis e invalidavam o instrumento. O guerreiro, ao contrário, tentava assimilar a linguagem, assimilando os costumes (o que parecia aos jesuítas a profanação da própria cultura): alimentação, música, vocabulário, gestos, etc. formando mesmo família19. O crescimento demográfico, tendo por base o índio e, sobretudo, o negro, estende a influência dessas culturas à cultura portuguesa do Brasil, tocando-a no que lhe era cotidiano: a linguagem, o sentimento, as expressões de familiaridade, e, por aí, a visão de mundo, as crenças, a vida. Este trabalho se propôs sugerir perspectivas de pesquisa sobre a formação da cultura brasileira, a partir da educação institucionalizada, a cargo da Companhia de Jesus. Insiste na composição colégio/condições concretas da colônia, indicando a necessidade de se analisar mais profundamente as formas de convivência assumidas delas decorrentes, que deixaram marcas no desdobramento da cultura brasileira. Muito pouco se tem feito nesta linha. A História da Educação Brasileira, no que diz respeito a este período, tem se contentado com a narrativa no sentido tradicional. Creio ser necessário retomar as origens, partindo de contribuições teóricas que nos permitam uma compreensão melhor da nossa forma de ser. Fontes CARDIM, F. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica. In: CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1585). Belo Horizonte: Itatitaia/São Paulo: Edusp, 1980. 17 Faço alusão ao trabalho de P.Weil, num sentido porém mais radical: nós nos expressamos in totum como seres corpóreos; é mais do que usar o corpo como instrumento de comunicação. Cabe aqui fazer referência à gestualidade e oralidade, como expressões típicas da cultura brasileira. Ver, nestes termos, de Amálio Pinheiro, Aquém da Identidade e da Oposição – Formas na Cultura Mestiça. Piracicaba: Unimep, 1994. 18 Ver, entre muitas outras, Cartas dos Primeiros jesuítas do Brasil, t. I, p. 319; t. III, p. 404. 19 A linguagem da guerra e das execuções, por não implicar racionalidade, era assimilada pelos indígenas, afeitos, eles também, à guerra entre adversários e à sua execução, conforme suas tradições. Creio termos aqui um aspecto a pesquisar, nos termos da comunicabilidade intercultural. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUÍTAS DO BRASIL. São Paulo: Comissão do IV Centenário, 1954. Org. de Serfim Leite. 3 t. RATIO ATQUE INSTITUTIO STUDIORUM. In: FRANCA, L. Método Pedagógico dos Jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. Referências Bibliográficas FRANÇA, E.d’O. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997. LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália/Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. tomos I e II. MORAIS, R. A universidade desafiada. Campinas: Unicamp, 1995. PAIVA, J.M. Colonização e Catequese. Associados, 1982 São Paulo: Cortez/Autores PALACIN, L. Vieira e a visão trágica do barroco. Hucitec/Brasília: INL/Fundação Pró-Memória, 1986. São Paulo: PINHEIRO, A. Aquém da Identidade e da Oposição. Piracicaba: Unimep, 1994.