RELIGIOSIDADE E FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA: séculos XVI e XVII José Maria de Paiva∗ Unimep É redundante afirmar que a cultura brasileira está impregnada de catolicismo. O português que aqui chegou já se criara num contexto multissecular de cristianismo, suas expressões sociais fazendo-se expressões da religiosidade própria desse cristianismo. Não importa, pois, a afirmação como tal, senão a observação de como isto se dá em terras brasílicas. Há, por detrás das formas aparentes da cultura, toda uma experiência histórica que as moldou tais, dando-lhes um significado, experiência essa que estabelece a vigência das formas, na medida em que os interesses de sobrevivência e desabrochamento da sociedade são atendidos. É esta mesma medida que leva a mudanças,. Preservando-se as condições de sobrevivência social, preservam-se as formas de relações sociais. Mudando-se as condições, alteram-se as formas dessas mesmas relações. A sociedade portuguesa, tomada no século XIV, pode dar a impressão de uma sociedade estabilizada, centrada na Corte, referida a Deus e à Igreja, dividida em estamentos complementares. A ordem do bem comum consistia em que as partes cumprissem sua função social. Nos séculos seguintes, as navegações e o comércio, com tudo o que isto implicava, proporcionaram aos portugueses experiências novas, obrigando-os a novas atitudes, novas respostas sociais. A sobrevivência da sociedade como tal levava a novas formas de relações sociais, a novas instituições. Mudam-se assim as práticas cotidianas, os valores, a etiqueta, os hábitos e costumes, o linguajar; enfim, em tudo que os homens fazem se observa a influência do novo. O novo é um outro, distinto do que havia, alterando-lhe a constituição. A colônia brasílica se pôs como um outro, levando os portugueses que aqui se estabeleceram ao novo. Este estudo quer acompanhar a sociedade portuguesa nos primeiros tempos da colônia. Quer conhecer que português chegou aqui e, fundamentalmente, como reagiu às novas condições da terra. ∗ Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep, [email protected] 1 Em que consiste o processo de transformação cultural? A cultura é a forma de ser em sociedade, que um povo se constrói ao longo do tempo. Ser compreende a realidade na sua totalidade, i.e. no seu se dando. Ser se desdobra em aspectos, que parecem autônomos entre si mas que, na verdade, como que ex-põem a totalidade apenas de um ponto de vista. A abstração, contudo, não pode se sobrepor à totalidade. Assim, o aspecto obriga à conclusão de que uma alteração sua atinge necessariamente a totalidade, ou seja, ao conjunto de todos os demais aspectos. A cultura é, pois, a forma que a totalidade das relações sociais − em todos os seus aspectos pois − assume ao longo do tempo. Com isto, realça-se a influência que uma modificação no campo das relações sociais exerce sobre todos os demais campos. Mesmo que o observador não perceba alteração, daí decorrente, em um ou vários campos da vida em sociedade, o fato é que, supondo a cultura um compósito de campos, a qualidade das relações entre os campos se torna outra: dá-se, pois, uma alteração no todo. Esta observação é importante porque oferece ao historiador um critério qualitativo para acompanhar o processo cultural. Quando se afirma que a cultura é a forma de ser de uma sociedade, o que por primeiro se afirma é o ser das pessoas que compõem a sociedade. As pessoas se expressam existencialmente por aquilo que chamamos de relações. Em segundo lugar, o que está em jogo no processo social, no processo de transformação social, é a sobrevivência das pessoas no contexto que historicamente se puseram. A sobrevivência se põe no equilíbrio das formas aprendidas e das respostas às novas condições sociais1. Desta forma, a cultura, mais que patrimônio de uma sociedade, deve ser vista como um processo, como uma ação: a ação de expressar a vida, ação de sujeitos que, nascidos e formados num tipo de compreensão, se vêem em necessidade de responder existencialmente a novas condições, ou seja, a novas relações sociais. Com efeito, antes mesmo de serem vistas em si, com os dados que lhe seriam próprios, as condições devem ser vistas como locus das relações sociais, alterando-lhes a forma. As condições, como contorno da vida humana, não têm significado em si mas nos homens que nelas se movem. A cultura, 1 As condições tanto incluem o que se atribui como originado “de dentro”, como o são os valores, a organização social, as instituições, os hábitos e costumes, a visão de mundo, a forma mentis, etc., quanto o originado “de fora”, como o contexto geográfico ou, de modo resumido, a natureza. A natureza, ou o mundo objetivo, por ser vivido pelo homem, tem que ser vista como modificação do homem ou realidade sua. Nos dizeres de Ortega: eu sou eu e minhas circunstâncias. 2 objeto desta pesquisa, é, assim, a própria forma de ser que os homens, em sociedade, vão se construindo nas condições reais, construindo a vida. Os portugueses, que aqui se instalaram, nos séculos XVI e XVII, tinham uma determinada compreensão de vida. Foi como portugueses, numa extensão da vida em Portugal, que agiram nas novas condições. A realidade colonial não os molda de antemão mas à medida em que os obriga a dar respostas diferentes daquelas a que estavam acostumados. A realidade colonial contrastava, de imediato, com as experiências antes vividas: eram índios, negros, florestas, flora, fauna, muitos matos e serras bravas e altas, lagoas e rios (Cartas I, 350), espaço sem fim, tudo vazio2. Conquistar a terra, sujeitar os naturais dela, plantar a cana, produzir e exportar o açúcar, buscar metal nobre e outras riquezas, improvisar soluções, e tudo o que isto compreendia, era se jogar nestas condições e dar respostas novas, modelar novos comportamentos, novos tipos de relações sociais, reconfigurar inescapavelmente seu próprio modo de ser. O que esta pesquisa se propõe é acompanhar, através dos relatos da época, o modo de ser português na colônia brasileira. O ângulo de observação é a religiosidade. Sendo a religiosidade um dos traços mais resistentes a mudanças, em função da verdade que a qualifica, e um dos traços mais salientes do modo de ser português, supõe-se que oferecerá mais evidência às transformações, fazendo-se destarte um ângulo privilegiado de observação. O objetivo, contudo, não é simplesmente evidenciar mudanças mas, sobretudo, acompanhar o comportamento em meio a situações novas, o que tanto pode expressar mudanças quanto reforçar hábitos. Desta forma, pretende-se uma aproximação do modo de ser próprio dos moradores desta terra, que foi se fazendo pelo distanciamento do modo dos que ficaram na metrópole. É a isto que chamamos de religiosidade e formação da cultura brasileira. A categoria religiosidade será trabalhada em duas dimensões. A primeira, em sentido largo, qualifica a visão de mundo portuguesa, como um a priori que enforma todos os aspectos da vida social. A segunda se restringe ao culto, ou seja, àquilo que é próprio do que entendemos por Igreja, nas formas vigentes nos séculos em questão. A pesquisa se desdobrará, pois, em duas partes, estudando primeiramente a religiosidade nas práticas sociais e, em seguida, a religiosidade 2 Ruy Pereira, em carta de 1560, estimula os Irmãos de Portugal que venham para o Brasil, pera se dilatar nossa santa fé nestes desertos tão espaçosos. (Cartas I, 283) 3 nos termos de Igreja. O todo quer compor o quadro das formas que as relações sociais tomaram e que foram se consolidando no período assinalado e em terras brasileiras. Dom João III declara sem reticências (Dias, 1924: 347, 2): ... a principal cousa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica... Os textos são explícitos: o cuidado da religião é, em toda a sua extensão, ofício do rei. Ele o afirma, ele o reconhece e ele o provê. Analisando-os, a primeira observação diz respeito aos interlocutores: o rei e o governador geral nomeado, o rei o e capitão: não há mediação eclesiástica. O rei escreve nos termos que todos entendem e a que estão todos acostumados. Parece que se têm aqui documentos de Igreja e, no entanto, trata-se de regimentos oficiais. Como argumenta El-Rei? Com argumentos relativos à fé e à salvação. A adesão à fé e a vida em conformidade com ela eram percebidas pelo rei como tarefa sua e, assim, eram objeto de seus cuidados e de sua regulamentação. Tanto o rei quanto os súditos sentem da mesma maneira e argumentam, pois, da mesma maneira. A sociedade portuguesa via como natural a atribuição ao rei da guarda e vigilância da fé e da prática cristã. Isto sugere, no mínimo, que a prática cristã fosse a forma de ser da sociedade portuguesa, forma que lhe garantia a identidade e a unidade, cabendo portanto ao rei sua preservação. Trata-se, primeiramente, de observar que esta é a linguagem de toda a sociedade, traduzindo pois sua forma de compreender a realidade. Rei, nobres, clero e povo falam a mesma linguagem religiosa e se comunicam mutuamente sem se estranharem. Trata-se, com efeito, de um entendimento que todos têm da própria realidade: um mundo sagrado, em que todos os aspectos ganham significado por sua referência a Deus. Deus ocupa todo o espaço da realidade. O rei o representa. É importante observar que isto é vivido e praticado no dia a dia da colônia, trazido de Portugal e aqui cultivado nas mínimas relações, com toda espontaneidade; que as relações sociais se travam impregnadas, ao natural, dessa maneira de ver a realidade, Deus fazendo-se componente do meio social. Neste sentido, a expressão serviço de Deus e meu. A expressão serviço de Deus e meu, presente em toda documentação real, traduz a concepção que se tinha da realidade: realidade referida, em todos os seus recantos, a Deus, referida, em todos os seus recantos ao rei, cabeçasíntese de um corpo extenso. Não há ação humana que não esteja compreendida segundo esta concepção. Tudo se faz, pois, serviço de Deus e serviço do rei. O leitor moderno tem dificuldade 4 em perceber a possibilidade de a noção religiosa preencher todas as demais noções. O rei, assim mesmo, continua afirmando que tudo é “serviço de Deus e meu”. O serviço de Deus compete a todos, mas, como o governante é a síntese de toda a sociedade, a ele compete de modo proeminente. Na Colônia, o governador e o capitão têm esta proeminência: seu agir devia estar voltado para a realização da idéia de sociedade cristã, que se tinha. A referência a Deus tinha como contrapartida a presença atuante de Deus nos negócios dos homens, quaisquer que fossem eles. Nestes termos, o próprio Deus está interessado em participar da vida dos homens, interessado em ajudar, observada a hierarquia e demais itens da composição social. Do rei ao peão, todos justificam a realidade pela referência a Deus, participante. Deus não é uma opção: ele é a razão, primeira e última, de a sociedade portuguesa ser; Ele dá o sentido e, ao mesmo tempo, Ele quer que a sociedade portuguesa atinja sua perfeição. Por isto, Ele se põe presente: Ele ajuda. Quem acompanhar a documentação régia bem como a literatura da época observará que tudo cai sob essa identificação. No Regimento de Tomé de Sousa, acima citado, o rei dispõe sobre a fortaleza de Salvador que, com ajuda de Nosso Senhor, servirá de baluarte para as outras capitanias. Mas, com ajuda de Nosso Senhor será serviço de Deus e meu conservar e enobrecer as capitanias e povoações; expulsar da terra os Tupinambá; separar os índios cristãos em aldeia própria; entrar pelo sertão adentro em busca de índio ou em busca de ouro; fazer guerra ao índio, levantar fortalezas, erigir vilas, prover cargos de governo, estimular a produção e o comércio, eliminar corsários e inimigos, garantir a paz entre os moradores da terra, manter os costumes e as tradições, manter o culto; prover de todo o necessário para o governo e o crescimento da terra. Tudo é vivido como ato religioso, isto é, referido a Deus e merecedor de sanção para a vida eterna. Assim, a ajuda de Deus: Ele deve estar sempre presente, atuante, para que as ações dos homens se realizem plenamente. Todo tipo de atividade social pertence à esfera do sagrado. Deus aí intervém. O homem pede sua ajuda para ter sucesso nela. Esta referência explícita e recorrente a Deus, a Maria e aos santos expõe a compreensão que a sociedade toda tinha de si e de suas práticas. O religioso implicava a atuação dos seres celestiais nos negócios deste mundo. As fronteiras entre este mundo terreno, inferior, e o mundo celestial, superior, por passarem pela alma, são mui tênues, permitindo uma vivência do terreno 5 toda ela permeada do celestial. Situar-se no terreno é projetá-lo no celestial, onde ele encontra sua identidade. O ator humano trabalha junto com atores celestes. Os atos humanos são acompanhados de atos celestes. A ênfase que se dá à interferência do celestial nas coisas humanas praticadas em sociedade resume a compreensão que se tem de tudo o que concerne ao homem. Não se põe a possibilidade de ser de outra maneira: toda a realidade é esta, determinada pelo sagrado. Há possibilidade de se agir em contrário − o que, segundo as cartas jesuíticas e os depoimentos inquisitoriais parece ser a prática normal − mas não há possibilidade de negar a realidade. Padres e não padres, todos viviam em sociedade, compreendendo seus gestos como gestos referidos a Deus, o que lhes imprimia o caráter de validade. A prática social, tanto na sua essência quanto na sua exteriorização estava marcada pela referência a Deus. Isto explica por que cabia aos governantes cuidar das coisas da fé em toda a sua extensão. A auto-defesa, que Pero do Campo Tourinho, capitão que fora de Porto Seguro, faz junto ao tribunal da Inquisição em Lisboa, elucida muito bem essa compreensão que se tinha à época do religioso como encargo social. O capitão, tal como o rei, tinha o dever de prover a sociedade sob sua jurisdição das coisas sagradas e o cumpria como dever de ofício. A contraparte natural desta forma de agir dos governantes é a participação, em tudo que dissesse respeito aos interesses da governança, do bispo, do clero, dos padres da Companhia. Tomé de Sousa logo pedira um padre para ir com certa gente que Vossa Alteza manda a descobrir ouro; eu lho prometi (Cartas I, 1263). Indo fazer guerra aos potiguares, na conquista de Pernambuco, o general Martim Leitão leva um grande exército. Acampa em Igaraçu e mandou armar sua tenda de campo, com outras duas pegadas, uma pera dois padres da Companhia de Jesus que com ele iam, e outra ... (Salvador, 227) O rei já mandara a Tomé de Sousa − e isto se realiza por toda a época colonial − que se aconselhasse com os padres da Companhia. Nóbrega, escrevendo a El-Rei, o confirma: as mais das cousas me passavam pela mão, como terceiro que era nelas para as remediar. (Cartas I, 224) Nestes termos, os governantes eram sempre homens virtuosos. A virtude, sem negar o fato, dizia mais respeito ao ofício que às disposições pessoais do governante. Era, neste sentido, 3 Ver Cartas III, 79. 6 uma virtude vinda de fora, isto é, de Deus, mais que uma virtude de qualidades pessoais. A isto correspondia, nos atos públicos, a primazia ao governante. Aí, ele se punha presente como fiel mas o fiel que fora posto por Deus como seu representante. Isto determinava sua projeção inclusive nos atos de culto − hierarquia e organização social se reproduzindo em toda e qualquer manifestação da vida social. A vida em conformidade com a fé era uma exigência cultural e, por isto, se fazia exigência pública, cabendo pois aos governantes promovê-la e vigiá-la. O governante tinha que promovê-la e atalhar os desvios: O outro lado dos cuidados que o governante devia ter é a compreensão das práticas sociais por toda a sociedade. Elas eram compreendidas como explicitação da fé. A fé, segundo a tradição da Igreja e as tradições portuguesas, estabelecia a forma permitida das relações sociais. Os Mandamentos a orientavam. Uns pertenciam à honra de Deus. Outros, ao proveito do próximo: à organização da família, ao respeito à propriedade, ao direito à vida. Deus, a razão última. A verdade, sua linguagem. Todo o agir dos homens era, pois, moldado segundo a interpretação que se dava dos Mandamentos. A forma religiosa de se conceber a fidelidade matrimonial, por exemplo, se fizera parte da concepção de sociedade, regulada pelas Ordenações do Reino, a ponto de as justiças, secular e eclesiástica, se complementarem na sua observância. Também o jogo é tema recorrente, pelos muitos pecados que acarreta, e por isto objeto da vigilância pública. O comportamento em sociedade era, com efeito, ditado pela nossa santa fé, sendo objeto pois de um único juízo, de um mesmo critério de avaliação. A fé dava os contornos ao comportamento social. Os comportamentos aprovados se diziam bons costumes e eram objeto da doutrinação da Igreja e, nos mesmos termos, da legislação do Reino. Os comportamentos que se opunham aos bons costumes mereciam reprovação social e punição e se diziam pecados. As cartas jesuíticas parecem afirmar, a toda hora, que o normal era o estado de transgressão: juramentos, blasfêmias, mancebias, adultérios, fornicações, incestos e abominações ... ódio, murmurações e detrações, roubos e rapinas, enganos e mentiras ... (Cartas II, 194). A transgressão − tão comum, como o atestam os documentos − comprovava, pelo inverso, a sacralidade dos gestos sociais. Isto pode ser constatado pelos argumentos usados para justificá-la: ninguém negava a referência a Deus: os processos inquisitoriais o comprovam a cada passo. As 7 disposições testamentárias também o demonstram: o ajuste de contas ao final da vida se fazia com Deus e cada qual buscava sanar o que fizera de errado. Em outras palavras, a transgressão evidenciava a forma de pensar, toda ela religiosa, do homem português, ainda que recusando obediência. Transgredindo, estava sujeito a punição. Transgredindo, aprendia uma nova possibilidade de ser. A punição maior seria a excomunhão, excluindo da comunidade. Como poderia alguém estar fora, se estar fora significava condenação? Cabia à Igreja declarar a excomunhão. O uso da excomunhão era por demais frequente, surpreendendo até os letrados, e levava a abusos por parte dos eclesiásticos. A remissão era dada após penitência que, às mais das vezes, incluía multa pecuniária. O clero ocupava um lugar social de muito destaque, dada a própria concepção que se tinha de sociedade4 Por outra, por tudo ser sagrado e por todos agirem modo sacro, quaisquer que fossem a função e o lugar social, o clero estaria agindo também modo sacro qualquer que fosse a atividade que empreendesse e, assim agindo, agiria como qualquer outro português, dentro dos parâmetros que a cultura portuguesa permitia, isto é, merecendo louvor ou punição. Ele tanto representava a ponte entre os homens e Deus, realizando sacramentalmente a presença do Sagrado − o respeito social lhe sendo dado em função do seu ofício; quanto se ocupava de outros ofícios ou do seu próprio ofício mas à maneira dos outros ofícios, comportando-se como qualquer outro e, nestes termos, o respeito da sociedade ele o teria na medida em que observasse os valores aprovados, que não ferisse interesses alheios. Por esta razão, a relação com o clero padecia de uma ambivalência congênita, que se expressava em juízos e também em atos. Tanto encontramos acusações ao clero fundadas no melhor entendimento das tradições cristãs, quanto encontramos agressões fundadas nos interesses imediatos. Nas cartas jesuíticas encontramos muitas passagens em que se denuncia a vida dos clérigos. Com efeito, o clero vindo para a Colônia, muitas vezes degredado, compartilha do modo de vida dos portugueses, ou seja, vive no pecado. Há uma ambivalência que enaltece o sublime da função, segundo a tradição cultural portuguesa, e, ao mesmo tempo, dá a conhecer tratamento 4 Comentando o mandamento Honrarás teu pai e tua mãe, Anchieta o estende ao marido e ao senhor de escravos. E pergunta: − E a quem mais se há de obedecer? − Ao sacerdote que é pai de nossas almas. (207) Tendo em mente o significado social da obediência, pode-se imaginar o lugar do padre na sociedade portuguesa. 8 diferenciado em função das relações concretas. O religioso assumia, assim, em relação ao clero, uma concretude definida: ligado, pelo ofício da pregação, a Deus, e por isto merecedor de todo respeito, e, ao mesmo tempo, “fragilizado” pela dedicação às mesmas atividades comuns aos leigos, padecendo pois das mesmas vicissitudes. A prática social, religiosa nas suas raízes, assume formas concretas que permitem tratar o sagrado e as instituições dela oficialmente incumbidas como parte que só no todo encontra sua razão de ser e a explicação do tratamento que recebe. O todo é a sociedade portuguesa tal como organizada e historicamente modelada. É a ela que se deve estar atento quando se põe a religiosidade como elemento da formação da cultura brasileira. A administração do religioso cabia, antes de tudo, ao rei. Por esta disposição, cabia a seus representantes: o governador, o capitão. O rei escolhia os bispos, designava os vigários, dava licença para se estabelecerem mosteiros e conventos, dotava a uns e a outros, garantindo o culto e o exercício das demais atribuições do clero. O rei financiava as missões, os colégios, a diocese, as paróquias. O rei é quem mandava padres para a conversão dos índios, por ser de sua competência e justiça o acrescentamento de nossa santa fé católica. O rei é que ajuizava da conveniência de colégios, que, no dizer de Navarro, não somente será bom para recolher os filhos dos gentios e cristãos para os ensinar e doutrinar, mas também para paz e sossego da terra e proveito da república. (Cartas I, 98) Por isto, é ao rei que Nóbrega se dirige pedindo vigário geral e bispo. Ao rei se presta conta do estado da colônia do ponto de vista das coisas da Igreja. Aos olhos de todos, Igreja e governo convivem, aparecendo como naturalmente complementares na tarefa da manutenção da sociedade. Os ideais − traduzidos na concepção de sociedade sagrada − são sustentados por ambas as partes e sua realização também por elas é provida. Tanto o governo intervém em tudo, administrando a justiça, voltado para o sagrado, quanto o clero, administrando o sacramento5, se debruça sobre tudo. Letrados e clérigos são funcionários: desempenham a função real de manter a coesão da sociedade, na concepção descrita. Uns e outros buscam, na realização de suas funções, a realização do Reino nos termos a todos comuns. Uns e outros representam o garante da estabilidade social. Por isto, seu envolvimento e participação no governo, seja interpretando e legislando, seja ocupando cargos e 5 Sacramento é um sinal visível da graça, sinal que opera a graça. A Igreja age sacramentalmente, servindo ao povo a salvação de Deus. Numa compreensão ampla, tudo é lugar de salvação, cabendo então à Igreja sacramentalizar tudo, i.e. fazê-lo sinal da graça operada. 9 assumindo tarefas. Uns e outros, com efeito, se intrometem em tudo, segundo a compreensão vigente de sociedade. A sociedade, no cotidiano, não estranha as competências dos governantes, dos letrados e dos clérigos nem no que diz respeito às suas atribuições funcionais nem no que diz respeito às suas ocupações e comportamento. Praticar a fé, ser cristão, pressupunha este quadro social em que os mais nobres e honrados tratavam como suas as coisas da Igreja e em que os clérigos se comportavam como nobres e honrados. Uns e outros gozavam, com efeito, de um status privilegiado, que conferia honra social. Por isto, a convivência num estrato superior. Conflitos e divergências que pudessem surgir entre eles eram tratados como próprios dos indivíduos: a relação das funções e sua valorização social mantendo-se inalteradas. A forma como a sociedade portuguesa assumiu o olhar da justiça para moldar sua organização, seus valores e seu comportamento − entendendo justiça como o respeito devido ao (modo de) ser, à constituição, de cada grupo − explica por que os procedimentos já estabelecidos parecem intocáveis e explica, por conseguinte, o escrúpulo com que se analisam as situações novas e com que se propõem mudanças. As novidades, estas são o que a terra mais tem a oferecer. Pedia-se ajuda aos letrados do Reino, para não se errar e manter-se conforme à cultura herdada. Diziam respeito, por exemplo, a confissão por intérprete, a presença de índios pagãos nos atos de culto, ao uso de seus instrumentos musicais e de sua música, à exigência de roupa para que se lhes dê o batismo, à justiça da guerra por, andando nus, não observarem à risca a lei natural. A novidade põe em questão a tradição. O que está em jogo é a preservação da cultura, avessa a qualquer novidade. A dúvida aqui é, com efeito, um sinal de perigo: há que se tomar medidas. Que medidas? − Consultar os letrados, zeladores da cultura. Era preciso levar em conta as novas condições. Uns o faziam por iniciativa própria, levados pelas contingências, isto é, pelos interesses imediatos. Outros consultavam os letrados. Uns e outros confirmavam o pressuposto maior: as coisas estão mudando! Obedecer a Deus não significava necessariamente seguir o que os clérigos diziam. Não se punha tampouco em juízo a função dos clérigos. O modelo, todos o aceitavam. Todos afirmam ser muito bons e católicos cristãos e muito desejosos de aumentar nossa santa fé nas ditas partes e gentios do Brasil. Negar isto seria heresia e nenhum português queria ser herege. 10 Por força, no entanto, de uma situação nova, se observa mudança da percepção de como ser muito bom católico. A tradicional prática religiosa portuguesa, fortemente marcada pela exteriorização, não exigia mais que participação no culto, conhecimento decorativo das verdades, dos mandamentos e de algumas orações, reconhecimento do eclesiástico, para a confirmação da fé cristã. Isto podia esconder uma falta de devoção, uma compreensão falseada da doutrina, uma relação enviesada com Deus. Mas não era o que importava. A visibilidade da prática garantia, socialmente, a identificação do cristão. Nesta terra, por toda parte, havia padres que celebrassem missa, ministrassem os sacramentos e doutrinassem. Não havia por que não praticar a religião e ser, daí, reconhecido como bom cristão. Isto era o exigido pelos costumes. A novidade estava na freqüência gritante de comportamentos distantes dos bons costumes, fazendose hábito, criando estado. Ser muito bom católico convivia bem com maus costumes, também eles dissimulados pela absolvição que o clero novidadeiro dava. Incorporava-se, destarte, um novo modo de ser católico: priorizando os princípios (a fé e os bons costumes), externando a fé pela prática cultual, vivendo maus costumes. A prática exterior, denotativo do ser cristão, pode, agora, conviver com a negação dos princípios evangélicos. A novidade obriga a uma reinterpretação da tradição cultural, reinterpretação fundada na fé, porque portuguesa, mas abrindo caminho para novos comportamentos até então não aprovados. Esse era o campo dos letrados. O recurso aos letrados evidencia as forças divergentes encontradas no seio da sociedade: uns, arraigados ao modo de ser tradicional; outros, querendo justificar novos comportamentos. Uns e outros se agarram aos mesmos fundamentos da nossa santa fé. Feita a reinterpretação, justificados os novos comportamentos, ficava tranqüila a consciência, preservava-se a cristandade. A cultura, porém, estava se transformando, transformando-se os comportamentos, os valores, a visão de mundo. A religiosidade assumia na prática uma nova feição Uma segunda parte, mais do que analisar a prática devocional e cultual dos portugueses na Colônia, quer mostrar a forma mentis portuguesa, alicerçada sobre o religioso. Assim como a água toma formas diversas conforme a diversidade dos vasos que a recebem, assim a realidade toma formas diversas conforme a mente que a ordena6. A mente portuguesa se achava 6 P.Ariès fala de uma espécie de sistema óptico que modificava a imagem real. Era o sistema das mentalidades. (In: LE GOFF et al. A Nova História. Coimbra: Almedina, s/d, p. 462. Original de 1978) 11 estruturada pela referência a Deus, toda a realidade por ela tocada se qualificando de religiosa. O que esta segunda parte pretende é mostrar como o devocional evidencia melhor a forma mentis. O caminho que se irá percorrer passa pelas mais variadas expressões cultuais e devocionais, na tentativa de evidenciar a hipótese proposta. Em que consistia ser cristão a essa época? Consistia na prática dos sacramentos e na prática dos bons costumes. Os documentos enfatizam duas práticas sacramentais: a missa e a confissão. Dizer missa e confessar: são frases que se repetem ao longo das cartas. A missa era a expressão mais genuína da cristandade. Ser cristão implicava ir à missa. Por isto, as igrejas, os padres, as paróquias, os domingos e santos de guarda. Toda vila ou vilarejo tinha seu vigário e sua missa. A igreja ou capela era o grande lugar de reunião. O culto era a expressão do vínculo social. Aos domingos e santos de guarda, todos acorriam à missa. A igreja era muito importante: todos sentiam assim. A missa era o ato de culto que o português sentia como obrigação integrante do seu calendário semanal. Morando numa vila, reunir-se na igreja, aos domingos e dias de guarda, para ouvir a missa era o ritual de todo português. Ali, todos se encontravam motivados todos pelo cumprimento de um valor social, que os integrava numa comunidade. Ouvir missa era uma obrigação derivada do próprio modo de ser português. Ouvir missa compreendia ainda ouvir a pregação e, para uns, comungar. Tratava-se de pregar os bons costumes. Os parâmetros do comportamento social estavam dados: baseavam-se no magistério da Igreja, segundo a experiência cultural portuguesa. Como os princípios da fé estavam definitivamente postos, como não eram objeto de discussão e divergência, o que ainda havia por fazer era se comportar no dia a dia à luz desses princípios. A isto se chamava de bons costumes. A pregação consistia, fundamentalmente, em corrigir os maus comportamentos. A pregação visando à conversão de vida, incentivando à confissão, era, ao que se deduz das cartas, o grande momento do ministério. O padre jogava todos os seus argumentos, mormente o da condenação ao inferno para todo o sempre, para convencer o pecador que o ouvia. Os sermões eram longos e apelavam aos sentimentos, para que os ouvintes assumissem o ponto de vista do pregador. 12 O português não tinha a possibilidade de se imaginar distante de Deus e deste Deus como lhe ensinara a tradição: um Deus castigador7. Deus estava presente em todos os gestos sociais8. A pregação soava, destarte, como a parte principal da missa, na medida em que tocava o viver dos ouvintes, como que obrigando-os a se confrontar constantemente com o modelo, suporte da cultura. O modelo era avalizado pelos padres, pelo governador, pelos homens mais honrados. Mais: era avalizado pelas Ordenações do Reino. Havia uma força de coerção, obrigando à aceitação da incontestabilidade do modelo. Não havia como impugnar sua validade e imposição. A submissão ao modelo se fazia a atitude geral. Há que se observar os dois aspectos dessa submissão: o comportar-se de acordo e seu caráter religioso. O primeiro garantia a manutenção da ordem, da hierarquia, dos estados, da justiça. O segundo sublimava o gesto, reduzindo a submissão ao reconhecimento de Deus ordenador da vida humana, a religião se pondo pois como o ambiente das relações sociais. O cristão ia à missa e, cultualmente, reconhecia a auréola sagrada do seu cotidiano. Um segundo tema a discutir no tocante aos atos de culto é o que aqui se denomina devoções. Por devoção se entende a entrega e, por conseguinte, o novo modo de vida que se assume. No caso, trata-se da entrega a Deus. Abreviadamente, às coisas da religião. As práticas devocionais podem assumir feições as mais diversas, dependendo da imagem que se faz de Deus. Chama-se aqui de devocionismo o estilo que tomam as práticas devocionais na cultura portuguesa. Por elas, desenha-se o quadro das relações que o homem mantém com Deus e a compreensão que ele tem de si mesmo. A devoção se manifesta de muitas formas, por muitas práticas, traduzindo a relação com Deus. O culto se presta a Deus e, subordinadamente, a Maria, aos Santos, aos Anjos, às Almas do Purgatório. São atos de culto a prática dos sacramentos e as celebrações. Estas são de toda sorte, desde as litúrgicas, isto é, oficialmente programadas, como as da Semana Santa, Corpus Christi, até as particulares de uma Igreja, de uma comunidade. O objeto deste item de pesquisa é o estilo das práticas devocionais: litúrgicas e particulares. 7 A este tema voltaremos mais adiante, quando estudarmos a forma mentis portuguesa, onde o castigo ocupa um lugar especial. 8 Aqui ou em outro lugar, insistir na contraposição entre o modelo proposto e a vivência concreta. Nóbrega escreve: Iguais casos frequentes vezes acontecem e por isto digo que quanto mais longe estivermos dos velhos cristãos que aqui vivem maior fruto se fará. (Cartas I, 108) No dia a dia, os portugueses não vivem o modelo. 13 A primeira observação diz respeito à manifestação dos sentimentos e compaixão: choros, lágrimas, gemidos, soluços, dor, gritos e desmaios. A exteriorização grandiloqüente dos sentimentos era compartilhada por todos: ouvintes e pregador. Se aliada aos jejuns, abstinência, disciplinas, presume-se que o sacrifício, o sofrer, desempenhava papel relevante na expressão devocional: para agradar a Deus, era preciso se pôr em estado de miséria, o que se exprime pelo sofrimento. A disciplina é emblemática: o homem se macera, se dilacera, tira sangue de si mesmo, se reduz a um estado lastimável porque, só assim, mereceria misericórdia. Em termos religiosos, o homem se reconhece um verme. Há como que uma negação de si mesmo, uma diminuição. Isto só se sustenta se compartilhado por todos. Daí a exibição pública, todos se apoiando mutuamente, ninguém se envergonhando de assim praticar. O sentimento de inferioridade, não atribuído a imposição alheia mas reconhecido em função do pecado próprio, faz-se auto-imagem, ditando o comportamento social. Diante de Deus o homem se põe como um vazio, à espera da dádiva, sem mérito pessoal. A retórica lhe dá o argumento: pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas ele próprio não os tem. Por outra, o comportamento social reforça a auto-imagem e se estende por todas as instâncias da vida. A atitude de inferioridade se põe como regra nas relações sociais, marcadas pela hierarquia sustentada pelo princípio de representação do sagrado. A Semana Santa retrata o tipo de relações praticadas socialmente. A disciplina é emblemática, como se disse. Por detrás, há a percepção de um mundo, de um estado, sem solução própria, dependendo da benevolência divina A disciplina se impôs na esteira do movimento de renovação ou reformação da espiritualidade. A piedade portuguesa, em diversas outras manifestações, expressa igualmente esta posição. Há uma ambigüidade na devoção: de um lado, o rigor na penitência; de outro, a relação familiar com os Santos; de um lado, a austeridade; de outro, a pompa e exibição. Parece que há uma necessidade de compensação: dá-se muito, de um lado; e expande-se, de outro. A impressão que se tem, à leitura dos documentos, é de que a percepção da inferioridade é marca continuamente presente, ainda que oculta. A relação familiar com os Santos, por exemplo, distrairia desse peso que se sabe presente mas se quer distante. Atrás de toda pompa na celebração, há a mensagem da pequenez do homem. Procissões, romarias, jubileus, milagres, relíquias, indulgências, compõem todos um quadro em que se manifestam e se escondem os dois pólos dos sentimentos da devoção 14 portuguesa, o de tudo poder, pelos Santos, e o de nada poder, pela própria condição. Quando, depois, se compara o estilo de comportamento social, se percebe a identidade de matriz. A procissão dá publicidade à fé e aos sentimentos. Procissão é uma caminhada coletiva pelos lugares de utilização pública em homenagem a Deus ou aos Santos. Por ela, como que se toma posse do espaço público e se afirma a fé com um argumento de força. A procissão se fazia demonstração da fé de todos, passantes e assistentes, praticantes e não praticantes. Tudo estava voltado para a exibição. Quanto mais importante o objeto da veneração, mais grandiosa a exibição. Ela se faz, pois, como momento de glória, glorificação de Deus ou do Santo, glorificação da fé dos professantes, diante do grande público. Procissão é festa. Transpõe as paredes da igreja, onde o culto parece estar voltado para o interior, motivando à conversão, e se espraia pelas ruas e praças, se voltando para o exterior, exaltando a verdade da fé professada e assumindo um aspecto triunfante. E esta sua particularidade se traduz pelos gestos que ela assume. O terceiro momento de análise recupera os grandes traços da religiosidade portuguesa, pretendendo demonstrar que, mais que traços, eles são a possibilidade de entendimento que os portugueses têm na armação de sua vida. A nossa santa fé católica não é argumento del-Rei nem do clero: ela perpassa o entendimento que todos têm do viver social. O senhor de engenho, por mais que queira seus escravos no trabalho, sabe que os padres estão certos em querê-los na igreja, se doutrinando e se confessando. Relutam em liberá-los mas sabem que, lá longe, isto é, no momento de se apresentar a Deus ... − é isto, não concebem sua vida sem o laço com Deus, laço contornável talvez mas inevitável. A atitude do senhor de engenho ilustra o modo de pensar do português. Os interesses imediatos determinam o comportamento imediato mas a medida de todas as coisas, de todos os gestos, é a referência a Deus, positiva ou negativa. Deus é o Deus ensinado pelos padres, segundo a tradição secular. O ensino dos padres é a codificação de uma forma de conceber as relações sociais nas suas mais diversas manifestações, relações debulhadas em organização social, em valores, em instituições, em linguagem, etc. Essa forma é, post factum, a forma cristã. Todos agem cristãmente: os padres refinam esse comportamento, pondo-os em normas. No entanto, primeiro vêm as vivências modo christiano. Depois vem o ensino dos padres. O ensino dos padres só é socialmente reverenciado porque traduz o entendimento que está no gesto de cada um. É este entendimento que propõe a referência a Deus; que concebe Deus de 15 uma forma descritível, o que quer dizer um Deus com determinados comportamentos, determinados valores, determinadas reações, gostos, rejeições; um Deus do jeito exato que os portugueses, no seu dia a dia, cultuam. Os padres não possuem a priori uma doutrina, querendo fazer dela a norma do comportamento, querendo convencer dela os demais. É o contrário: os portugueses acreditam num Deus bem à sua mão, modelador de sua vida e, nestes termos, reverenciam aqueles que foram postos como porta-vozes desse Deus. A forma de ser própria dos portugueses é, radicalmente, cristã, definição esta que tem que ser entendida segundo a descrição que a história portuguesa nos oferece. Ao longo da história percebemos que ser cristão, isto é, ser português, não implica necessariamente viver uma vida em conformidade com os ensinamentos dos padres mas, sobretudo, viver uma vida em que Deus se põe presente. A presença de Deus − e toda presença põe uma marca − configura a forma de ser portuguesa. Esta constatação é a base sobre que se desenvolvem os traços da cultura portuguesa, traços que estruturariam uma forma de pensar tipicamente portuguesa. Esta pesquisa se propõe observar três aspectos: a imagem que se faz de Deus, um Deus temível (contracenando com a familiaridade com os Santos); a participação do demônio; a morte e salvação. Há uma associação entre Deus e castigo. Deus é terribilis: terrível, cheio de terror. Ele castiga. As afirmações são contínuas, como se viu acima. Castigo tem conotação com poder: poder concentrado, poder caprichoso; com desobediência a um modelo irrecusável e, em decorrência, com emenda por parte dos infratores. Visto por outro lado, quem tem poder, concentrado e caprichoso, estabelece o como viver dos demais; castiga, se desobedecido, visando à emenda, isto é, à submissão. O poder de Deus dispensa comentário: tanto tem todo o poder, quanto o dispensa a seu bel-prazer. O homem só tem uma atitude possível: temer a Deus. Mais ainda porque dele depende a sua salvação para todo o sempre. A solução é ganhar suas boas graças: pelo cumprimento de suas ordens, pela emenda de seus pecados, pela ajuda dos seus favoritos, pela prática das devoções, pelo uso das indulgências, pelas disposições testamentárias. Esta compreensão era resultado da vida, experimentada num contexto social em que a pessoa do rei exercia domínio completo, fazendo-se senhor absoluto das vontades. A aprendizagem da cultura não se faz pelo ouvido mas pela prática e se explica por imagens. A prática era a obediência ao imediatamente disposto: o rei representando a concentração do poder, a autoridade se distribuindo 16 hierarquicamente, o capricho valendo norma. A imagem era a sobrenatureza filtrando-se na natureza e dando-lhe sua própria forma. O que mais se verifica nos documentos, neste ponto, é o castigo e, talvez mais grave, a ameaça do castigo. Sendo Deus tão poderoso, a ameaça está sempre presente. Do castigo se derivam duas reações. A primeira diz da misericórdia e bondade de Deus, que pode alevantar a vara (Cartas II, 235) ou porque de todo os não destrói, i.e. não castiga como devia (Cartas I, 199): é preciso pedir, concordando antes com a vontade divina. A segunda diz respeito à atitude de medo. O contraponto da misericórdia é a justiça. Deus é misericordioso e se compadece dos homens pecadores. A persistência no pecado, contudo, provoca a ira divina, fazendo-o agir com justiça. Não se diz que Deus age por capricho mas pela justiça, que é a reta distribuição da sanção, conforme os direitos de cada grupo. Deus sempre foi misericordioso: a misericórdia é um atributo de quem tem o poder. Deus sempre foi justo: a justiça era dar a cada um o seu. A justiça se identificou, para a maioria, como castigo. Fazer justiça, às mais das vezes, significou castigar. O modelo divino respalda o modelo social. O governador realiza a justiça junto aos índios com espada nua e campal guerra. Realizar a justiça é castigar pelo erro cometido; é repor no lugar o que estava fora do lugar. O castigo, no caso, é sua redução ao estado de obediência, o que, na mente dos portugueses, devia acontecer, porque não eram cristãos, ofendendo assim os mais elementares princípios da fé cristã. Deus mesmo, segundo o entendimento dos padres, aplicava sua justiça, castigando os homens. Este era o entendimento da justiça divina em relação aos homens: Deus, soberano, estabelece o que tem que ser e recompensa ou castiga conforme a aceitação ou a recusa por parte dos homens. Assim entendem os portugueses a sua relação com o rei, também soberano. Mais do que saber os tipos de penas que, segundo as Ordenações do Reino, se impunham aos transgressores, impõe-se conhecer os tipos de relações sociais vigendo na sociedade portuguesa, a compreensão que todos tinham delas para entender a possibilidade da normalidade das penas. O castigo, com efeito, se torna um gesto normal no contexto social. Não se trata de pôr de joelhos e (mandar) rezar um Pater Noster e Ave Maria (Cartas II, 501). Tratase de penas violentas, como chibatadas, fogueira, arrastão, mutilação, ferros, prisão, degredo, perda de bens. O pelourinho talvez seja a melhor síntese da assimilação do castigo pela sociedade portuguesa. A Inquisição, a melhor imagem. 17 Tudo que, segundo a expectativa, acontecia desfavoravelmente era recebido como castigo. Castigo denota culpa. Culpa, diante de um todo-poderoso, traz o medo. Tanto diante de Deus quanto diante do rei a reação é de medo. O medo leva à rendição. Daí a penitência, a autoflagelação (disciplina), a austeridade, o sacrifício. Uma compreensão das relações com Deus baseada no medo provoca uma espiritualidade marcada pelo sacrifício. Sacrifício é negação de si. O medo nega as possibilidades de caminhar caminhos independentes. Por isto, a obediência, a sujeição. Concluindo este esboço de pesquisa, observam-se os traços marcantes das relações sociais, que, elas, fundam a cultura, oferecem a interpretação dos gestos sociais, delimitam as expressões convenientes a cada grupo social, justificam os comportamentos por uma aceitação como que natural do seu modo de ser. 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