Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 OS DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA: TRAÇOS E IMPRESSÕES DA MODERNIDADE (MODERNIZAÇÃO) E DO PROGRESSO NA LITERATURA SOBRE A CIDADE DE ANÁPOLIS José Fábio da Silva1 RESUMO: Tomando como ponto de partida os anos de 1970, período no qual a cidade de Anápolis experimentou um projeto de industrialização mais definido e planejado além de um significativo aumento em seu índice demográfico, este trabalho visa retratar as impressões sobre a modernidade produzidas pela literatura local. Com ênfase em textos (crônicas, contos e poesias) publicados em jornais e revistas do período, visamos perceber as primeiras impressões sobre o crescimento da cidade, as mudanças na sua estrutura urbana e as expectativas produzidas sobre o futuro da mesma. Comparações com textos anteriores à década de 1970 objetivam localizar as expectativas que a ideia de progresso produziu no imaginário local e, através de textos posteriores percebemos as reflexões sobre a cidade no período supracitado com o intuito de traçar um perfil das impressões sobre a modernização desta cidade do interior goiano. Palavras-chave: História de Anápolis; Modernidade; Literatura; INTRODUÇÃO A modernidade é tema das mais variadas interpretações no campo historiográfico. Para Koselleck, a modernidade inaugurou uma nova perspectiva de história, “o progresso e a consciência histórica temporalizam todas as histórias no processo único da história universal” (2006, p. 290), no qual o tempo passou a ser percebido de uma forma acelerada (as experiências relativas ao passado perderam sua importância diante das expectativas construídas e relação ao futuro, marcado pelo avanço científico e tecnológico). Do ponto de vista das mentalidades, a modernidade surgiu das tensões que originaram o mundo moderno, do “conflito entre a razão libertadora do imaginário e a razão instrumental do universo capitalista.” (MUSSALIM, 2006, p. 102). Chave para a compreensão de um período transitório, marcado por profundos antagonismos, o período denominado como moderno, que teve início na Europa em meados do século XVI, “consolidou-se” em um discurso universalista no século XIX e se alastrou pelo Ocidente a partir do século XX. O discurso dos tempos modernos ganhou as regiões mais afastadas da Europa – que poderíamos denominar 1 Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás; E-mail:[email protected] 1 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 regiões periféricas, se levarmos em consideração que o fenômeno da modernidade parte da Europa – alterando a dinâmica das relações sociais e modificando os aspectos urbanos de cidades mediantes inúmeras tentativas de modernização. Nestes ambientes, os “significados da modernidade teriam de ser mais complexos, paradoxais e indefinidos”. (BERMAN, 1986, p. 169). É a partir destes significados de modernidade, desenvolvidos em locais distantes do ambiente europeu – do seu “lugar de origem” por assim dizer – que desenvolveremos este trabalho; partindo das impressões sobre a modernidade (tempo moderno) presente em alguns textos referentes às mudanças nos aspectos urbanos da cidade de Anápolis, interior do estado de Goiás, na segunda metade do século XX. É importante ressaltar também que os conceitos de modernidade e modernização são distintos entre si. Modernização esta ligada ao aperfeiçoamento técnico e modernidade vinculada a apreensão da experiência da mudança nas relações temporais. Como ressalta Berman: Existe um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de simesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que écompartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designareiesse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-seem um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,autotransformação e transformação das coisas em redor — mas ao mesmotempo ameaça destruir tudoo que temos, tudo o que sabemos, tudo o quesomos. (Idem, p. 15). Todavia, tanto modernidade e modernização vinculam-se em si. De certa maneira, uma é pressuposto para a outra, já que a experiência da modernidade passa necessariamente pelo avanço tecnológico e científico. Seguindo o pressuposto que, “deve-se estudar uma cidade não só seguindo os planos dos que a conceberam, mas, sobretudo a partir de práticas que a construíram” (SILVA, 2006, p.07), selecionamos alguns fragmentos de crônicas e poemas referentes a Anápolis, entre 1957 e 2007 com o intuito de mapear traços do cotidiano da cidade percebidos por seus autores e simultaneamente perceber como se estruturou a organização da memória sobre a estrutura urbana do município. ANÁPOLIS: O FUTURO QUE BATE À PORTA E A MEMÓRIA FRAGMENTADA Em uma crônica publicada em julho de 1976, no jornal Correio de Anápolis, o poeta e escritor paraibano e radicado em Anápolis, Paulo Nunes Batista registrou algumas 2 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 mudanças que percebia no cotidiano daquela cidade: É - Anápolis está com ares de metrópole: largas, imensas avenidas; praças sofisticadas; arranha-céus, shopping-centers e nomes outros de uma língua estranha , "para inglês ler" e não entender como sukataKiloja e outras sacanagens... Cresceu, hem, gente? Mas nunca se viu, nesta "Manchester Goiana", quanto atualmente, tanto indigente dormindo nas calçadas; tanta menina (de até 8 anos de idade, pasmem, se puderem!), vendendo as carnes, em grosso e no varejo, na feira livre da prostituição desbragada; tanto leproso, montado na miséria, com os colos da mão as esmolas da piedade - cada vez mais escassa - do magro bolso do povo tanto roubo, tanto vício, tanta exploração como hoje, sob os olhos molhados de angústia da padroeira Santa Ana, que a umbanda chama de Nanã Buruquê... (Correio do Planalto, 31-07-1976, p. 12). Esta imagem um tanto quanto caótica do município retrata uma impressão do autor sobre o cotidiano da cidade. A Anápolis de alguns anos antes, menor em seu aspecto urbano e populacional, começava a sofre com maior intensidade os "efeitos" da modernidade. Se por um lado surgia o novo (os shopping-centers e nomes de uma língua estranha), aparado pelo discurso do progresso, por outro, as consequências negativas do desenvolvimento e crescimento da cidade também vinham à tona (a mendicância excessiva, a prostituição infantil e as diferenças sociais cada vez mais exacerbadas). Podemos somar a isso, mais um fator apontado pelo mesmo autor dois anos antes no mesmo jornal. Anápolis começa a sofrer também um dos males das grandes cidades: Ninguém conhece mais ninguém... A gente cruza, a todo instante, com gente que nunca viu, gente nova nascida aqui, nestes últimos vinte anos, cujo nome a gente não sabe, nem o que faz, nem de que família é... (Correio do Planalto, 12 a 19-07-1974, p. 4). Um dos fatores que contribuiu para esse crescimento, intensificado na década de 1970, foi a construção de Brasília, que teve suas obras iniciadas em 1957, todavia, "os efeitos da construção de Brasília sobre Anápolis se fizeram presentes antes mesmo do início das obras." (FREITAS, 2007, p. 37). Na década de 1950, a população anapolina saltou de cerca de 18.350 habitantes para 48. 847, e esses índices continuaram a aumentar nas décadas seguintes. Na década de 1970, período no qual foram escritos os textos acima citados, a população já havia alcançado um número de 105.121 habitantes, chegando a 179.973 na década seguinte. Com o crescimento da população, cresceram também, obviamente, o número de loteamentos e, consequentemente, o número de bairros em torno da cidade. De fato a cidade se desenvolvia, mas esse impacto não foi sentido apenas nas cifras demográficas do município. 3 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Seus habitantes, principalmente os que já viviam na cidade por um período maior de tempo, sentiram os efeitos dessas mudanças, não apenas na paisagem da cidade, mas também na própria maneira como se reestruturavam as relações sociais, que pouco a pouco –e para alguns de forma rápida – se modificavam. Os discursos sobre a modernização da cidade e da chegada do progresso na mesma já se proliferavam desde as décadas de 1930 e 40. Com a inauguração da Estrada de Ferro Goyas, em 1935, a construção de Goiânia e a Marcha para Oeste, promovida pelo governo de Getúlio Vargas, a cidade sofreu seu primeiro impulso desenvolvimentista. Isso pode ser sentido em inúmeros discursos e textos do período. Annapolis, perdoem-nos a franqueza, já não poderá se apresentar como uma pacífica cidade sertaneja, onde na quietude de suas ruas maltratadas seres irracionais desfructam verdes gramíneas e, junto ás portas da cidade braquejam túmulos com restos mortaes de seus antigos habitantes!... O nome de Annapolis percorre nas azas da fama longinquas regiões, tendo se extravasado para além das fronteiras goyanas, e, innumeras pessoas esperam tão somente a realização do sonho annapolino para, de visu, certificaram do seu decantado progresso e grandeza. (Jornal O Annapolis, 31-03-1935, p. 01). Nas décadas de 1950 e 60 encontramos impressões similares, causadas principalmente, pela mencionada construção de Brasília que fez com que o Brasil voltasse os olhos para o Planalto Central durante a gestão de Juscelino Kubitschek. Tais impressões podem ser notadas mesmo em textos que buscam rememorar o período: E na década de 50 compreendemos uma arrancada progressista/ O Mercado Municipal, o IAPC, o Matadouro Industrial,/ A Cia. Goiana de Fiação e tecelagem de algodão,/ O Jardim da Praça Bom Jesus, a água potável, a empresa telefônica,/ O crescimento da criação agropastoril, os fotógrafos amadores,/ A persistência e o crescimento do comércio e do povo de Ana... [Valéria Victorino Valle]. (FERNANDES, 2007, p.215). Neste período podemos notar um delineamento mais claro em relação à postura econômica do município que se destacava no setor da indústria de transformação devido a abundância de matérias-primas vegetal e animal. Em 1958, "com o objetivo de apoiar o empresariado desse setor, promover uma industrialização mais efetiva e maior entrosamento entre comerciantes e industriais anapolinos, foi fundada a Associação Industrial de Anápolis (AIA)" (MACEDO, 2007, p. 177). Esse conjunto de mudanças gerou eco também nas manifestações literárias, como podemos notar no poema Anápolis de Leo Lynce, publicado na revista A Cinquentenária, em 4 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 1957: Terra de Souza Ramos, bêm falada/ cujo progresso assombra o forasteiro,/ Anápolis é um canto de alvorada/ ecoando, forte, no Brasil inteiro./ Na vertigem da luta, na escalada/ gloriosa, o anapolino, vanguardeiro,/ levanta arranha-céus e faz de cada/ vitória um novo estímulo e roteiro (A Cinquentenária, 1957, p. 51). Relato similar também pode ser notado no poema Cinqüentenário de Anápolis, de Xavier Júnior: "Das indústrias, na riqueza,/ Hoje ergue, a cidade, ufana,/ Deslumbrando a redondeza,/ A alta Matriz de Sant'Ana." (Idem, p.51). Por meio desses trechos, podemos perceber que a modernização da cidade se encontra resumida mais em um conjunto de expectativas que em um horizonte concreto. A cidade havia sofrido mudanças e desenvolviase gradativamente, no entanto, os efeitos da vida moderna e seus consequentes problemas sociais não eram evidenciados de forma tão destacada e dos que eram mencionados, o progresso local os solucionaria assim que se consolidasse. No final da década de 1950, os problemas de ordem social se mostravam aparentes no cotidiano anapolino, todavia, os fatores "positivos" da modernização da cidade eram mais evidenciados, como podemos notar nesta nota sobre o problema da mendicância naquele período: Um fato que de certo tempo para cá vem depondo contra os nossos foros de cidade civilizada, é o que se refere à mendicância em Anápolis. Os pedintes, - homens, mulheres e crianças, - crescem assustadoramente em nosso meio, cuja maioria é composta de malandros que vivem explorando a caridade pública. (...) Não culpamos ninguém por êste estado de coisas. O fato tem origem no espírito filantrópico dos anapolinos. (...) Esperamos, no entanto, que, com o desenvolvimento da cidade no setor da assistência social, sejam abrigados os que realmente necessitam de ajuda, e, quanto aos malandros, a política ou quem de direito lhes acerte o passo (A Cinqüentenária, 1957, p. 34). O autor faz menção ao fato que os problemas enfrentados pelo município, envolvidos em meio ao discurso do progresso, eram uma etapa que "seria" solucionada com o desenvolvimento da cidade. Notamos também que, segundo o autor, a maior parte da mendicância presente no município era constituída por "malandros" que se aproveitavam do "bom espírito" do povo anapolino. De maneira ingênua (ou tendenciosa) o autor se nega (ou talvez realmente acredite nisso) a perceber que o aumento dessa camada social era consequência da modernização que a cidade começava a experienciar com mais intensidade. Como vimos nos textos de Paulo Nunes Batista, esses problemas ao invés de serem resolvidos, realçaram-se ainda mais, contrastando com duas tendências presentes nos textos 5 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 analisados sobre as percepções da modernidade contidas nos relatos da literatura anapolina. Vale lembrar que, essas tendências não se referem à literatura em si, mas em impressões sobre a modernização da cidade contidas nesses discursos. Nosso objetivo é descrever traços da modernidade em contraste com as mudanças ocorridas nos aspectos populacionais e urbanos da cidade, e não identificar tendências literárias emergentes no município. A primeira tendência é ligada ao futuro, na ideia de que o progresso solucionaria os problemas ou atrasos da cidade, alavancando assim o desenvolvimento da cidade. Em sua maioria, estes textos apresentam um tom ufanista e, em alguns casos, um ar de ingenuidade/tendenciosa. No final de 1800, um Poeta, passando pelos arredores de Anápolis, disse que a cidade seria “a Ribeirão Preto do século 20” (...) Se ninguém atrapalhar, Anápolis será uma cidade com a real cara do Brasil. Uma cidade que vai para frente e para o alto. Uma cidade forte e acolhedora. Uma cidade nova. Uma cidade pacífica. Uma cidade que progride, com Ordem. Basta que ninguém atrapalhe.[Emanoel Torres Jardim]. (FERNANDES, 2007, p. 71). A segunda, de cunho mais nostálgico, surge principalmente após os anos de 1970, reconstroem uma memória da cidade a partir de migalhas, da lembrança de locais que deixaram de existir na medida em que a cidade se desenvolvia. A primeira tendência de relatos (crônicas, poemas) sobre a cidade, todavia, não desapareceu com a modernização, apenas ganhou uma companheira de caminhada. Textos que relatam um futuro promissor e as possibilidades de crescimento da cidade são uma constante na literatura. Destarte, nos concentraremos neste segundo grupo, na construção de uma memória a partir de espaços que deixaram de existir. Memória aqui deve ser entendida como: O instrumento maior do vínculo social, da identidade individual e coletiva, podendo ser reinvestida numa perspectiva que se abre para o futuro, uma fonte de reapropriação coletiva, calcada no presente. A memória, pressupondo a presença da ausência, permanece a ligação essencial entre o passado e o presente, desse difícil diálogo entre o mundo dos mortos e dos vivos (MILANEZ, 2006, p. 159). Antes, porém, temos que lembrar que muitas dessas narrativas sobre a cidade foram construídas por pessoas advindas de regiões, muitas vezes, menos "desenvolvidas" (entendidas como menores e menos populosas) que a cidade de Anápolis, o que pode ter causado um exagero nas primeiras impressões sobre a cidade. Cheguei em Anápolis como se chegasse noutro pais, noutro mundo, noutro planeta, meus olhos de menina interiorana, pra não dizer caipira, olhavam tudo com espanto 6 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 e com a admiração de quem vê algo sobrenatural, as pessoas, os lugares, os acontecimentos pareciam tão irreais que era como se não fosse eu quem vivia aquele momento (...). [Maria Emília da Conceição]. (FERNANDES, 2007, p. 143). Este "assombro" sentido por quem vinha de fora muito foi utilizado pela literatura local – e mesmo em discursos políticos – como prova "irrefutável" da presença do progresso e do desenvolvimento local. No entanto, este mesmo "assombro", marcado pelas constantes mudanças nos aspectos urbanos da cidade se, em um primeiro momento, fora visto de maneira positiva, com o passar do tempo resultou numa memória de uma cidade fragmentada e feita de espaços inexistentes. Diversas vezes, rememorar tornava-se um lamento de um passado engolido pelos "novos tempos". Sei que não se apagarão, nunca, de minha memória, os tempos vividos numa Anápolis onde a violência era coisa quase abstrata. Acidente de trânsito, praticamente não existia. (...) Poluição sonora, poluição visual, poluição ambiental? Nem se falava nisso. Como Anápolis era agradável. O tempo passou, as coisas mudaram. Umas para melhor, outras nem tanto assim. É o preço que pagamos pelo chamado progresso, pelo chamado desenvolvimento. [Nilton Pereira]. (FERNANDES, 2007, p. 174-5). Diante das mudanças ocorridas – ou do que se perdeu no tempo – restam muitas vezes quem contenta-se com a lembrança dos espaços que deixaram de “existir”. Não adianta. Eu sou da Anápolis de ontem/ Do Cine Áurea e do Cine Imperial;/ Da Amplificadora Cultural do Abelardo Velasco,/ Da Praça João Pessoa, onde se fazia avenida/ Do vai e vem, do homem de um lado, mulher do outro/ Dos primeiros olhares... demorados e mensageiros/ (...) Não adianta, eu sou mesmo do velho tempo,/ De uma cidadezinha guardada na mente,/ Da Rua funda do Aluizio Crispim, do Largo Santana,/ (...) Da cadeia asquerosa do Tenente Ramos (...) Não adianta não, esta cidade não é mais minha,/ Pois a minha tinha sabor de campo,/ (...) Das cozinhas farturentas, das festas do Bom Jesus,/ Do circo do Bacioki, do Pirolito, do foguetório do Rogério/ onde tudo era folguedo, mas a vida era levada a sério. [Olímpio Ferreira Sobrinho]. (Idem, p. 185). Essas memórias do passado, obviamente, não se prendem somente a lembranças nostálgicas quase que endênicas da cidade, um mesmo fato também pode ser rememorado sob pontos de vistas antagônicos. Um bom exemplo disso pode ser visto a partir da construção da Base Aérea de Anápolis em 1972, com o intuito de proteger a nova capital nacional, que trouxe, obviamente, grandes consequências ao município, sentidos já no período de sua instalação, como atesta uma publicação da época: “A velocidade do desenvolvimento edo progresso de Anápolis, que começou a correr célere, à partir de 1962, tomou umsentido supersônico, num paralelo ao inícioe instalação da Base Aérea de Anápolis.” (Revista 7 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Anápolis: Hoje e Sempre, 1973, p. 05). Segundo Freitas (1995), a instalação da Base Aérea trouxe consequências no âmbito econômico, social e político ao município. No plano econômico “proporcionou a ampliação do capital circundante na cidade” (FREITAS, 1995, p. 53) com a chegada de oficiais da aeronáutica e de suas famílias; no plano social “a cidade foi alvo de uma forte migração originada de vários lugares de Goiás e de outros Estados” (Idem, p. 54) devido a possibilidade de ingresso por parte de jovens de famílias mais pobres na carreira militar; e no plano político, a cidade foi considerada “Área de Segurança Nacional” (em plena ditadura militar), com isso os prefeitos municipais, entre 1973 a 1985, passaram a ser nomeados diretamente pelo governo federal. Temos aqui, dois pontos de vista sobre o mesmo fato e suas implicações políticas e sociais. O primeiro ponto de vista reconstrói uma lembrança positiva sobre a instalação da Base Aérea e dos benefícios que esta trouxe ao município, partindo não só das implicações econômicas, mas também dos “valores” cívicos e morais, que na opinião do autor, vieram somar pontos à cultura local. Com a aplicação da vontade, trabalho sério, investimento volumoso de dinheiro, a Base Aérea de Anápolis foi edificada, consolidada, e, há mais de trinta anos, com sua frota de aviões supersônicos, tem sido a sentinela da nossa Pátria, na vigilância da extensa Amazônia. (...) Poucos avaliam o tesouro que Anápolis ganhou. Não tanto pelo elemento físico, modificado, construído, embelezado, aprimorado, mas pelo contribuinte humano, de esmerada formação moral, cultural e cívica, vanguardeiro da nossa soberania. [João Asmar]. (FERNANDES, 2007, p. 115-6). Esta, obviamente, não é uma opinião unânime. Em 2002, a Força Aérea Brasileira doou para a cidade de Anápolis um caça F 103 Mirage III EBR, já em desuso. O avião foi transformado em monumento e colocado em exposição permanente na Praça Americano do Brasil. Isso inspirou o poema Um troço na praça, de Henrique Mendonça, que buscou relembrar o lado negativo da presença militar no município durante a ditadura militar. Um troço na praça:/ É piada?/ Trapaça?/ Parece pirraça/ o destroço,/ a sucata,/ a vergonha/ que mergulhou a cidade/ na era da “Segurança Nacional”./ Um camelô francês/ encheu de alegria/ o povo freguês,/ encheu de orgulho/ o povo antes./ Inútil carcaça,/ dejeto da ditadura./ Alienação,/ troca de princípios por status./ Idéia errada de ontem,/ enaltar absurdo de agora./ Asas da vergonha/ abertas no coração/ da praça Americano do Brasil.[Henrique Mendonça]. (FERNANDES, 2007, p. 91). O poema trás referências diretas ao período no qual a cidade foi área de segurança nacional, ironizando a forma como a população local se portou (encheu de alegria o povo 8 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 freguês) diante da presença do avião de fabricação francesa (camelô francês) em uma das principais praças da cidade. FORÇANDO UMA CONCLUSÃO O objetivo desde trabalho não foi investigar a literatura anapolina em si, mas somente os traços referentes a modernidade nela inserida. Não foram as tendências literárias que visamos abordar, mas as impressões sobre a modernização da cidade a partir desses textos. Com isso, o pretendido foi apenas esboçar a possibilidade de se compreender a inserção da ideia de modernidade no município por meio de conceitos como progresso, desenvolvimento, moderno; além de se abordar de maneira indireta por meio destes textos, as mudanças na fisionomia urbana da localidade. As opiniões expressas na literatura local são muitas vezes contraditórias no que se refere a rememoração do passado anapolino. Como ressaltamos com Bermann, a modernidade trás experiências contraditórias em si. Em regiões como o interior goiano estas experiências acabam por resultar ainda mais complexos e paradoxais (BERMANN, 1986). Em relação a experiência temporal, corroborando com Koselleck, podemos notar uma ênfase dada ao horizonte de expectativas, a construção de um futuro pautado no discurso do progresso. Essas expectativas, no entanto, apresentam um caráter singular, não se baseia apenas em relação experiência/expectativa vivida localmente, mas também em um ideal de modernidade, ou um modelo de moderno, desenvolvido na Europa, que serve de exemplo almejado. Um referencial utópico-ideológico na qual a cidade deveria se espelhar. REFERÊNCIAS: BERMAN, Marshall. “Petersburgo: o modernismo do subdesenvolvimento” In: Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria Ioriati. São Paulo: Cia das Letras, 1986. FERNANDES, Natalina. Anápolis centenária em prosa e verso. Goiânia: Editora Kepls, 2007. FREITAS, Revalino. Anápolis: Passado e presente. Anápolis: Editora Voga, 1995. JORNALO Annapolis, 1935. Museu Histórico de Anápolis. 9 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 JORNALO Correio do Planalto, 1974 e 1976. Museu Histórico de Anápolis. KOSELLECK, Reinhart. “Modernidade” – Sobre a semântica dos conceitos de movimento da modernidade. In: Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. (p.267-303). MILANEZ, Nilton. “Mídia e história – deslocamentos do corpo, do sexo e da memória”. In: SANTOS, J. C. S.; FERNANDES, C. A. (orgs). Análise do discurso: objetos literários e midiáticos. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. (p. 147-162). MUSSALIM, Fernanda. “O fragmento como índice da natureza axiológica dos gêneros do discurso: um caminho para a reconstrução da história da modernidade estética”. In: SANTOS, J. C. S.; FERNANDES, C. A. (orgs). Análise do discurso: objetos literários e midiáticos. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. (p. 101-109). REVISTA A Cinqüentenária - Edição única em comemoração ao jubileu da cidade de Anápolis,1957. REVISTA Anápolis: Hoje e Sempre, 1973. SILVA, L. S. D. “Teses sobre sertão e cidades de fronteira: labirinto e barroco.” O público e o privado: Revista do PPG em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará UECE- Nº7 - Janeiro/Junho – 2006. TOSCHI, M. S. (org). 100 anos: Anápolis em pesquisa. Anápolis: [s. n.], Goiânia: Editora Vieira, 2007. 10