Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.
Realização Curso de História – ISSN 2178-1281
OS DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA: TRAÇOS E IMPRESSÕES DA
MODERNIDADE (MODERNIZAÇÃO) E DO PROGRESSO NA LITERATURA
SOBRE A CIDADE DE ANÁPOLIS
José Fábio da Silva1
RESUMO: Tomando como ponto de partida os anos de 1970, período no qual a cidade de
Anápolis experimentou um projeto de industrialização mais definido e planejado além de um
significativo aumento em seu índice demográfico, este trabalho visa retratar as impressões
sobre a modernidade produzidas pela literatura local. Com ênfase em textos (crônicas, contos
e poesias) publicados em jornais e revistas do período, visamos perceber as primeiras
impressões sobre o crescimento da cidade, as mudanças na sua estrutura urbana e as
expectativas produzidas sobre o futuro da mesma. Comparações com textos anteriores à
década de 1970 objetivam localizar as expectativas que a ideia de progresso produziu no
imaginário local e, através de textos posteriores percebemos as reflexões sobre a cidade no
período supracitado com o intuito de traçar um perfil das impressões sobre a modernização
desta cidade do interior goiano.
Palavras-chave: História de Anápolis; Modernidade; Literatura;
INTRODUÇÃO
A modernidade é tema das mais variadas interpretações no campo historiográfico.
Para Koselleck, a modernidade inaugurou uma nova perspectiva de história, “o progresso e a
consciência histórica temporalizam todas as histórias no processo único da história universal”
(2006, p. 290), no qual o tempo passou a ser percebido de uma forma acelerada (as
experiências relativas ao passado perderam sua importância diante das expectativas
construídas e relação ao futuro, marcado pelo avanço científico e tecnológico). Do ponto de
vista das mentalidades, a modernidade surgiu das tensões que originaram o mundo moderno,
do “conflito entre a razão libertadora do imaginário e a razão instrumental do universo
capitalista.” (MUSSALIM, 2006, p. 102). Chave para a compreensão de um período
transitório, marcado por profundos antagonismos, o período denominado como moderno, que
teve início na Europa em meados do século XVI, “consolidou-se” em um discurso
universalista no século XIX e se alastrou pelo Ocidente a partir do século XX. O discurso dos
tempos modernos ganhou as regiões mais afastadas da Europa – que poderíamos denominar
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Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás; E-mail:[email protected]
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regiões periféricas, se levarmos em consideração que o fenômeno da modernidade parte da
Europa – alterando a dinâmica das relações sociais e modificando os aspectos urbanos de
cidades mediantes inúmeras tentativas de modernização. Nestes ambientes, os “significados
da modernidade teriam de ser mais complexos, paradoxais e indefinidos”. (BERMAN, 1986,
p. 169). É a partir destes significados de modernidade, desenvolvidos em locais distantes do
ambiente europeu – do seu “lugar de origem” por assim dizer – que desenvolveremos este
trabalho; partindo das impressões sobre a modernidade (tempo moderno) presente em alguns
textos referentes às mudanças nos aspectos urbanos da cidade de Anápolis, interior do estado
de Goiás, na segunda metade do século XX.
É importante ressaltar também que os conceitos de modernidade e modernização são
distintos entre si. Modernização esta ligada ao aperfeiçoamento técnico e modernidade
vinculada a apreensão da experiência da mudança nas relações temporais. Como ressalta
Berman:
Existe um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de simesmo e
dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que écompartilhada por homens e
mulheres em todo o mundo, hoje. Designareiesse conjunto de experiências como
“modernidade”. Ser moderno é encontrar-seem um ambiente que promete aventura,
poder, alegria, crescimento,autotransformação e transformação das coisas em redor
— mas ao mesmotempo ameaça destruir tudoo que temos, tudo o que sabemos, tudo
o quesomos. (Idem, p. 15).
Todavia, tanto modernidade e modernização vinculam-se em si. De certa maneira,
uma é pressuposto para a outra, já que a experiência da modernidade passa necessariamente
pelo avanço tecnológico e científico.
Seguindo o pressuposto que, “deve-se estudar uma cidade não só seguindo os planos
dos que a conceberam, mas, sobretudo a partir de práticas que a construíram” (SILVA, 2006,
p.07), selecionamos alguns fragmentos de crônicas e poemas referentes a Anápolis, entre
1957 e 2007 com o intuito de mapear traços do cotidiano da cidade percebidos por seus
autores e simultaneamente perceber como se estruturou a organização da memória sobre a
estrutura urbana do município.
ANÁPOLIS: O FUTURO QUE BATE À PORTA E A MEMÓRIA FRAGMENTADA
Em uma crônica publicada em julho de 1976, no jornal Correio de Anápolis, o poeta
e escritor paraibano e radicado em Anápolis, Paulo Nunes Batista registrou algumas
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mudanças que percebia no cotidiano daquela cidade:
É - Anápolis está com ares de metrópole: largas, imensas avenidas; praças
sofisticadas; arranha-céus, shopping-centers e nomes outros de uma língua estranha
, "para inglês ler" e não entender como sukataKiloja e outras sacanagens...
Cresceu, hem, gente? Mas nunca se viu, nesta "Manchester Goiana", quanto
atualmente, tanto indigente dormindo nas calçadas; tanta menina (de até 8 anos de
idade, pasmem, se puderem!), vendendo as carnes, em grosso e no varejo, na feira
livre da prostituição desbragada; tanto leproso, montado na miséria, com os colos da
mão as esmolas da piedade - cada vez mais escassa - do magro bolso do povo tanto
roubo, tanto vício, tanta exploração como hoje, sob os olhos molhados de angústia
da padroeira Santa Ana, que a umbanda chama de Nanã Buruquê... (Correio do
Planalto, 31-07-1976, p. 12).
Esta imagem um tanto quanto caótica do município retrata uma impressão do autor
sobre o cotidiano da cidade. A Anápolis de alguns anos antes, menor em seu aspecto urbano e
populacional, começava a sofre com maior intensidade os "efeitos" da modernidade. Se por
um lado surgia o novo (os shopping-centers e nomes de uma língua estranha), aparado pelo
discurso do progresso, por outro, as consequências negativas do desenvolvimento e
crescimento da cidade também vinham à tona (a mendicância excessiva, a prostituição infantil
e as diferenças sociais cada vez mais exacerbadas). Podemos somar a isso, mais um fator
apontado pelo mesmo autor dois anos antes no mesmo jornal.
Anápolis começa a sofrer também um dos males das grandes cidades: Ninguém
conhece mais ninguém...
A gente cruza, a todo instante, com gente que nunca viu, gente nova nascida aqui,
nestes últimos vinte anos, cujo nome a gente não sabe, nem o que faz, nem de que
família é... (Correio do Planalto, 12 a 19-07-1974, p. 4).
Um dos fatores que contribuiu para esse crescimento, intensificado na década de
1970, foi a construção de Brasília, que teve suas obras iniciadas em 1957, todavia, "os efeitos
da construção de Brasília sobre Anápolis se fizeram presentes antes mesmo do início das
obras." (FREITAS, 2007, p. 37). Na década de 1950, a população anapolina saltou de cerca de
18.350 habitantes para 48. 847, e esses índices continuaram a aumentar nas décadas seguintes.
Na década de 1970, período no qual foram escritos os textos acima citados, a população já
havia alcançado um número de 105.121 habitantes, chegando a 179.973 na década seguinte.
Com o crescimento da população, cresceram também, obviamente, o número de loteamentos
e, consequentemente, o número de bairros em torno da cidade. De fato a cidade se
desenvolvia, mas esse impacto não foi sentido apenas nas cifras demográficas do município.
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Seus habitantes, principalmente os que já viviam na cidade por um período maior de tempo,
sentiram os efeitos dessas mudanças, não apenas na paisagem da cidade, mas também na
própria maneira como se reestruturavam as relações sociais, que pouco a pouco –e para alguns
de forma rápida – se modificavam.
Os discursos sobre a modernização da cidade e da chegada do progresso na mesma já
se proliferavam desde as décadas de 1930 e 40. Com a inauguração da Estrada de Ferro
Goyas, em 1935, a construção de Goiânia e a Marcha para Oeste, promovida pelo governo de
Getúlio Vargas, a cidade sofreu seu primeiro impulso desenvolvimentista. Isso pode ser
sentido em inúmeros discursos e textos do período.
Annapolis, perdoem-nos a franqueza, já não poderá se apresentar como uma pacífica
cidade sertaneja, onde na quietude de suas ruas maltratadas seres irracionais
desfructam verdes gramíneas e, junto ás portas da cidade braquejam túmulos com
restos mortaes de seus antigos habitantes!...
O nome de Annapolis percorre nas azas da fama longinquas regiões, tendo se
extravasado para além das fronteiras goyanas, e, innumeras pessoas esperam tão
somente a realização do sonho annapolino para, de visu, certificaram do seu
decantado progresso e grandeza. (Jornal O Annapolis, 31-03-1935, p. 01).
Nas décadas de 1950 e 60 encontramos impressões similares, causadas
principalmente, pela mencionada construção de Brasília que fez com que o Brasil voltasse os
olhos para o Planalto Central durante a gestão de Juscelino Kubitschek. Tais impressões
podem ser notadas mesmo em textos que buscam rememorar o período:
E na década de 50 compreendemos uma arrancada progressista/ O Mercado
Municipal, o IAPC, o Matadouro Industrial,/ A Cia. Goiana de Fiação e tecelagem
de algodão,/ O Jardim da Praça Bom Jesus, a água potável, a empresa telefônica,/ O
crescimento da criação agropastoril, os fotógrafos amadores,/ A persistência e o
crescimento do comércio e do povo de Ana... [Valéria Victorino Valle].
(FERNANDES, 2007, p.215).
Neste período podemos notar um delineamento mais claro em relação à postura
econômica do município que se destacava no setor da indústria de transformação devido a
abundância de matérias-primas vegetal e animal. Em 1958, "com o objetivo de apoiar o
empresariado desse setor, promover uma industrialização mais efetiva e maior entrosamento
entre comerciantes e industriais anapolinos, foi fundada a Associação Industrial de Anápolis
(AIA)" (MACEDO, 2007, p. 177).
Esse conjunto de mudanças gerou eco também nas manifestações literárias, como
podemos notar no poema Anápolis de Leo Lynce, publicado na revista A Cinquentenária, em
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1957:
Terra de Souza Ramos, bêm falada/ cujo progresso assombra o forasteiro,/ Anápolis
é um canto de alvorada/ ecoando, forte, no Brasil inteiro./ Na vertigem da luta, na
escalada/ gloriosa, o anapolino, vanguardeiro,/ levanta arranha-céus e faz de cada/
vitória um novo estímulo e roteiro (A Cinquentenária, 1957, p. 51).
Relato similar também pode ser notado no poema Cinqüentenário de Anápolis, de
Xavier Júnior: "Das indústrias, na riqueza,/ Hoje ergue, a cidade, ufana,/ Deslumbrando a
redondeza,/ A alta Matriz de Sant'Ana." (Idem, p.51). Por meio desses trechos, podemos
perceber que a modernização da cidade se encontra resumida mais em um conjunto de
expectativas que em um horizonte concreto. A cidade havia sofrido mudanças e desenvolviase gradativamente, no entanto, os efeitos da vida moderna e seus consequentes problemas
sociais não eram evidenciados de forma tão destacada e dos que eram mencionados, o
progresso local os solucionaria assim que se consolidasse. No final da década de 1950, os
problemas de ordem social se mostravam aparentes no cotidiano anapolino, todavia, os fatores
"positivos" da modernização da cidade eram mais evidenciados, como podemos notar nesta
nota sobre o problema da mendicância naquele período:
Um fato que de certo tempo para cá vem depondo contra os nossos foros de cidade
civilizada, é o que se refere à mendicância em Anápolis.
Os pedintes, - homens, mulheres e crianças, - crescem assustadoramente em nosso
meio, cuja maioria é composta de malandros que vivem explorando a caridade
pública. (...)
Não culpamos ninguém por êste estado de coisas. O fato tem origem no espírito
filantrópico dos anapolinos. (...)
Esperamos, no entanto, que, com o desenvolvimento da cidade no setor da
assistência social, sejam abrigados os que realmente necessitam de ajuda, e, quanto
aos malandros, a política ou quem de direito lhes acerte o passo (A Cinqüentenária,
1957, p. 34).
O autor faz menção ao fato que os problemas enfrentados pelo município, envolvidos
em meio ao discurso do progresso, eram uma etapa que "seria" solucionada com o
desenvolvimento da cidade. Notamos também que, segundo o autor, a maior parte da
mendicância presente no município era constituída por "malandros" que se aproveitavam do
"bom espírito" do povo anapolino. De maneira ingênua (ou tendenciosa) o autor se nega (ou
talvez realmente acredite nisso) a perceber que o aumento dessa camada social era
consequência da modernização que a cidade começava a experienciar com mais intensidade.
Como vimos nos textos de Paulo Nunes Batista, esses problemas ao invés de serem
resolvidos, realçaram-se ainda mais, contrastando com duas tendências presentes nos textos
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analisados sobre as percepções da modernidade contidas nos relatos da literatura anapolina.
Vale lembrar que, essas tendências não se referem à literatura em si, mas em impressões sobre
a modernização da cidade contidas nesses discursos. Nosso objetivo é descrever traços da
modernidade em contraste com as mudanças ocorridas nos aspectos populacionais e urbanos
da cidade, e não identificar tendências literárias emergentes no município. A primeira
tendência é ligada ao futuro, na ideia de que o progresso solucionaria os problemas ou atrasos
da cidade, alavancando assim o desenvolvimento da cidade. Em sua maioria, estes textos
apresentam um tom ufanista e, em alguns casos, um ar de ingenuidade/tendenciosa.
No final de 1800, um Poeta, passando pelos arredores de Anápolis, disse que a
cidade seria “a Ribeirão Preto do século 20” (...)
Se ninguém atrapalhar, Anápolis será uma cidade com a real cara do Brasil. Uma
cidade que vai para frente e para o alto. Uma cidade forte e acolhedora. Uma cidade
nova. Uma cidade pacífica. Uma cidade que progride, com Ordem. Basta que
ninguém atrapalhe.[Emanoel Torres Jardim]. (FERNANDES, 2007, p. 71).
A segunda, de cunho mais nostálgico, surge principalmente após os anos de 1970,
reconstroem uma memória da cidade a partir de migalhas, da lembrança de locais que
deixaram de existir na medida em que a cidade se desenvolvia. A primeira tendência de
relatos (crônicas, poemas) sobre a cidade, todavia, não desapareceu com a modernização,
apenas ganhou uma companheira de caminhada. Textos que relatam um futuro promissor e as
possibilidades de crescimento da cidade são uma constante na literatura. Destarte, nos
concentraremos neste segundo grupo, na construção de uma memória a partir de espaços que
deixaram de existir. Memória aqui deve ser entendida como:
O instrumento maior do vínculo social, da identidade individual e coletiva, podendo
ser reinvestida numa perspectiva que se abre para o futuro, uma fonte de
reapropriação coletiva, calcada no presente. A memória, pressupondo a presença da
ausência, permanece a ligação essencial entre o passado e o presente, desse difícil
diálogo entre o mundo dos mortos e dos vivos (MILANEZ, 2006, p. 159).
Antes, porém, temos que lembrar que muitas dessas narrativas sobre a cidade foram
construídas por pessoas advindas de regiões, muitas vezes, menos "desenvolvidas"
(entendidas como menores e menos populosas) que a cidade de Anápolis, o que pode ter
causado um exagero nas primeiras impressões sobre a cidade.
Cheguei em Anápolis como se chegasse noutro pais, noutro mundo, noutro planeta,
meus olhos de menina interiorana, pra não dizer caipira, olhavam tudo com espanto
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e com a admiração de quem vê algo sobrenatural, as pessoas, os lugares, os
acontecimentos pareciam tão irreais que era como se não fosse eu quem vivia aquele
momento (...). [Maria Emília da Conceição]. (FERNANDES, 2007, p. 143).
Este "assombro" sentido por quem vinha de fora muito foi utilizado pela literatura
local – e mesmo em discursos políticos – como prova "irrefutável" da presença do progresso e
do desenvolvimento local. No entanto, este mesmo "assombro", marcado pelas constantes
mudanças nos aspectos urbanos da cidade se, em um primeiro momento, fora visto de maneira
positiva, com o passar do tempo resultou numa memória de uma cidade fragmentada e feita
de espaços inexistentes. Diversas vezes, rememorar tornava-se um lamento de um passado
engolido pelos "novos tempos".
Sei que não se apagarão, nunca, de minha memória, os tempos vividos numa
Anápolis onde a violência era coisa quase abstrata. Acidente de trânsito,
praticamente não existia. (...) Poluição sonora, poluição visual, poluição ambiental?
Nem se falava nisso. Como Anápolis era agradável.
O tempo passou, as coisas mudaram. Umas para melhor, outras nem tanto assim. É o
preço que pagamos pelo chamado progresso, pelo chamado desenvolvimento.
[Nilton Pereira]. (FERNANDES, 2007, p. 174-5).
Diante das mudanças ocorridas – ou do que se perdeu no tempo – restam muitas
vezes quem contenta-se com a lembrança dos espaços que deixaram de “existir”.
Não adianta. Eu sou da Anápolis de ontem/ Do Cine Áurea e do Cine Imperial;/ Da
Amplificadora Cultural do Abelardo Velasco,/ Da Praça João Pessoa, onde se fazia
avenida/ Do vai e vem, do homem de um lado, mulher do outro/ Dos primeiros
olhares... demorados e mensageiros/ (...) Não adianta, eu sou mesmo do velho
tempo,/ De uma cidadezinha guardada na mente,/ Da Rua funda do Aluizio Crispim,
do Largo Santana,/ (...) Da cadeia asquerosa do Tenente Ramos (...) Não adianta
não, esta cidade não é mais minha,/ Pois a minha tinha sabor de campo,/ (...) Das
cozinhas farturentas, das festas do Bom Jesus,/ Do circo do Bacioki, do Pirolito, do
foguetório do Rogério/ onde tudo era folguedo, mas a vida era levada a sério.
[Olímpio Ferreira Sobrinho]. (Idem, p. 185).
Essas memórias do passado, obviamente, não se prendem somente a lembranças
nostálgicas quase que endênicas da cidade, um mesmo fato também pode ser rememorado sob
pontos de vistas antagônicos. Um bom exemplo disso pode ser visto a partir da construção da
Base Aérea de Anápolis em 1972, com o intuito de proteger a nova capital nacional, que
trouxe, obviamente, grandes consequências ao município, sentidos já no período de sua
instalação, como atesta uma publicação da época: “A velocidade do desenvolvimento edo
progresso de Anápolis, que começou a correr célere, à partir de 1962, tomou umsentido
supersônico, num paralelo ao inícioe instalação da Base Aérea de Anápolis.” (Revista
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Anápolis: Hoje e Sempre, 1973, p. 05). Segundo Freitas (1995), a instalação da Base Aérea
trouxe consequências no âmbito econômico, social e político ao município. No plano
econômico “proporcionou a ampliação do capital circundante na cidade” (FREITAS, 1995, p.
53) com a chegada de oficiais da aeronáutica e de suas famílias; no plano social “a cidade foi
alvo de uma forte migração originada de vários lugares de Goiás e de outros Estados” (Idem,
p. 54) devido a possibilidade de ingresso por parte de jovens de famílias mais pobres na
carreira militar; e no plano político, a cidade foi considerada “Área de Segurança Nacional”
(em plena ditadura militar), com isso os prefeitos municipais, entre 1973 a 1985, passaram a
ser nomeados diretamente pelo governo federal.
Temos aqui, dois pontos de vista sobre o mesmo fato e suas implicações políticas e
sociais. O primeiro ponto de vista reconstrói uma lembrança positiva sobre a instalação da
Base Aérea e dos benefícios que esta trouxe ao município, partindo não só das implicações
econômicas, mas também dos “valores” cívicos e morais, que na opinião do autor, vieram
somar pontos à cultura local.
Com a aplicação da vontade, trabalho sério, investimento volumoso de dinheiro, a
Base Aérea de Anápolis foi edificada, consolidada, e, há mais de trinta anos, com
sua frota de aviões supersônicos, tem sido a sentinela da nossa Pátria, na vigilância
da extensa Amazônia. (...)
Poucos avaliam o tesouro que Anápolis ganhou. Não tanto pelo elemento físico,
modificado, construído, embelezado, aprimorado, mas pelo contribuinte humano, de
esmerada formação moral, cultural e cívica, vanguardeiro da nossa soberania. [João
Asmar]. (FERNANDES, 2007, p. 115-6).
Esta, obviamente, não é uma opinião unânime. Em 2002, a Força Aérea Brasileira
doou para a cidade de Anápolis um caça F 103 Mirage III EBR, já em desuso. O avião foi
transformado em monumento e colocado em exposição permanente na Praça Americano do
Brasil. Isso inspirou o poema Um troço na praça, de Henrique Mendonça, que buscou
relembrar o lado negativo da presença militar no município durante a ditadura militar.
Um troço na praça:/ É piada?/ Trapaça?/ Parece pirraça/ o destroço,/ a sucata,/ a
vergonha/ que mergulhou a cidade/ na era da “Segurança Nacional”./ Um camelô
francês/ encheu de alegria/ o povo freguês,/ encheu de orgulho/ o povo antes./ Inútil
carcaça,/ dejeto da ditadura./ Alienação,/ troca de princípios por status./ Idéia errada
de ontem,/ enaltar absurdo de agora./ Asas da vergonha/ abertas no coração/ da praça
Americano do Brasil.[Henrique Mendonça]. (FERNANDES, 2007, p. 91).
O poema trás referências diretas ao período no qual a cidade foi área de segurança
nacional, ironizando a forma como a população local se portou (encheu de alegria o povo
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freguês) diante da presença do avião de fabricação francesa (camelô francês) em uma das
principais praças da cidade.
FORÇANDO UMA CONCLUSÃO
O objetivo desde trabalho não foi investigar a literatura anapolina em si, mas
somente os traços referentes a modernidade nela inserida. Não foram as tendências literárias
que visamos abordar, mas as impressões sobre a modernização da cidade a partir desses
textos. Com isso, o pretendido foi apenas esboçar a possibilidade de se compreender a
inserção da ideia de modernidade no município por meio de conceitos como progresso,
desenvolvimento, moderno; além de se abordar de maneira indireta por meio destes textos, as
mudanças na fisionomia urbana da localidade. As opiniões expressas na literatura local são
muitas vezes contraditórias no que se refere a rememoração do passado anapolino. Como
ressaltamos com Bermann, a modernidade trás experiências contraditórias em si. Em regiões
como o interior goiano estas experiências acabam por resultar ainda mais complexos e
paradoxais (BERMANN, 1986). Em relação a experiência temporal, corroborando com
Koselleck, podemos notar uma ênfase dada ao horizonte de expectativas, a construção de um
futuro pautado no discurso do progresso. Essas expectativas, no entanto, apresentam um
caráter singular, não se baseia apenas em relação experiência/expectativa vivida localmente,
mas também em um ideal de modernidade, ou um modelo de moderno, desenvolvido na
Europa, que serve de exemplo almejado. Um referencial utópico-ideológico na qual a cidade
deveria se espelhar.
REFERÊNCIAS:
BERMAN, Marshall. “Petersburgo: o modernismo do subdesenvolvimento” In: Tudo que é
sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e
Ana Maria Ioriati. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
FERNANDES, Natalina. Anápolis centenária em prosa e verso. Goiânia: Editora Kepls,
2007.
FREITAS, Revalino. Anápolis: Passado e presente. Anápolis: Editora Voga, 1995.
JORNALO Annapolis, 1935. Museu Histórico de Anápolis.
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JORNALO Correio do Planalto, 1974 e 1976. Museu Histórico de Anápolis.
KOSELLECK, Reinhart. “Modernidade” – Sobre a semântica dos conceitos de movimento da
modernidade. In: Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. (p.267-303).
MILANEZ, Nilton. “Mídia e história – deslocamentos do corpo, do sexo e da memória”. In:
SANTOS, J. C. S.; FERNANDES, C. A. (orgs). Análise do discurso: objetos literários e
midiáticos. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. (p. 147-162).
MUSSALIM, Fernanda. “O fragmento como índice da natureza axiológica dos gêneros do
discurso: um caminho para a reconstrução da história da modernidade estética”. In: SANTOS,
J. C. S.; FERNANDES, C. A. (orgs). Análise do discurso: objetos literários e midiáticos.
Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. (p. 101-109).
REVISTA A Cinqüentenária - Edição única em comemoração ao jubileu da cidade de
Anápolis,1957.
REVISTA Anápolis: Hoje e Sempre, 1973.
SILVA, L. S. D. “Teses sobre sertão e cidades de fronteira: labirinto e barroco.” O público e
o privado: Revista do PPG em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará UECE- Nº7 - Janeiro/Junho – 2006.
TOSCHI, M. S. (org). 100 anos: Anápolis em pesquisa. Anápolis: [s. n.], Goiânia: Editora
Vieira, 2007.
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