O país que fica debaixo da terra - É verdade sim! Meu pai me falou! - berrava o menino no meio da roda de amigos, todos entre sete e 10 anos, sentados na rua de terra batida, em uma pacata cidade do semiárido baiano.E continuou: - Se abrirmos um buraco bem aqui - apontando o chão com o dedo - e for cavando “beeem” fundo chega até o Japão! - Duvido! - e virando-se para o pequeno oriental sentado mais afastado, perguntou: - Ei, China, é verdade que o Japão fica debaixo da terra? O menino, conhecido na turma como China, na verdade é filho de japoneses. A família dele chegara ao semiárido, a convite de um empresário, para implantar um projeto agroindustrial na região.Na época, na primeira metade da década de 1970, os únicos meios de comunicação disponíveis na cidade eram o rádio e os correios. Não havia televisão nem telefone. Jornais e revistas raramente chegavam. Havia um cinema que funcionava somente nos dias de feira, exibindo filmes de faroeste, de Tarzan e de artes marciais chinesas. A chegada das famílias japonesas, três ao todo, foi um evento na cidade. Mais por curiosidade do que por homenagem. A maioria nunca tinha visto um oriental de verdade. Só os conhecia pelos filmes de artes marciais. Para os moradores daquela região, todo oriental era chinês. Assim, logo o garoto nipônico ficou conhecido como China. Voltando à roda dos meninos. O pequeno nissei levanta, chega mais à frente e responde timidamente: - Não é bem assim... O Japão não fica debaixo da terra. - Viu? Não te disse? Mentiroso! Gritou triunfante o menino que contestava Zequinha. Então, China apanha a bola de futebol que estava com Zequinha e começa a falar bem devagar: - Faz de conta que estamos aqui- e indica a parte de cima da bola - o Japão fica aqui na parte de baixo, e aponta a parte inferior da bola- Não é dentro da terra, mas cá fora, embaixo, do outro lado. - Mas, não pode! Aí, em baixo, os japoneses vão cair tudo! Então, o garoto oriental explica para todos: - Meu pai me falou que a Terra é que nem um grande ímã. As pessoas ficam grudadas nela. É a gravidade. Por isso, as pessoas não caem. Numa época em que o acesso à informação era precário, temas como a gravidade só eram apresentadas nos livros didáticos de séries mais avançadas. Por isso,aquela explicação soava meio estranha para os garotos que só pensavam em jogar futebol com os amigos. - Também me disseram que quando é dia aqui,lá no Japão é noite – disse outro menino – é verdade? Novamente, o pequeno nissei pega a bola. Coloca-a contra o sol e começa a falar: - Esse lado que está batendo o sol é o Brasil. É de dia. Cá, do outro lado é o Japão. Está na sombra. É de noite. Viu? Brasil, de dia. Japão, de noite. Girando a bola, continua: - Agora o Brasil está de noite e o Japão está claro. - Ah, entendi. Quando está de dia, japoneses ficam no escuro. E de noite, está claro lá no Japão. – falou Cláudio que estava quieto até agora – E quando é que os japoneses dormem desse jeito? - Mas eu durmo no claro – falou o Pedrão, o maior de todos. Foi uma verdadeira algazarra, com todos discutindo como fazia para dormir no claro e trabalhar no escuro, até que o Tonho lembrou-se do que o seu tio lhe contou há um tempo: - Meu tio João disse que os japoneses comem peixe cru. - Eca! – falou Zequinha, com uma cara feia – peixe, só como frito. - E de palitinho – complementou Tonho. - Enfiam o palito no coitado do peixe vivo para comer? – perguntou mais um garoto. E, de novo, aquele fuzuê, todos querendo opinar. Até que alguém lembrou que China poderia falar sobre isso também. - Já vi meus pais comendo. É carne de peixe grande cortado em pedacinho. Ninguém espeta o peixe com palitinho. É assim que se faz. – o menino pega dois gravetos no chão e demonstra como se faz para manusear o talher japonês em formato de varetas, conhecido por hashi (pronuncia-se “raxi”). - E seu pai come feijão e farinha com esses pauzinhos? - Sim. Ele sabe comer. O fato é que todos tinham muita curiosidade sobre aquele país distante que só tinham ouvido falar através dos amigos ou dos parentes. À medida que o tempo ia passando, os meninos daquela cidade iam conhecendo um pouco mais sobre o país exótico, pelo menos aos seus olhos, e o garoto nissei ia conhecendo uma realidade diferente, do semiárido baiano, com as suas belezas e suas dificuldades. Com a conclusão da primeira etapa do projeto, as famílias japonesas deixaram a região, mas as lembranças daqueles dias de convivência com os orientais que vieram para a pequena cidade do semiárido ficaram e permitiu que o Japão ficasse um pouco mais perto para todos. E neste ano de 2015, em que se comemoram os 120 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Japão, esse episódio demonstra a calorosa acolhida do povo baiano aos imigrantes japoneses e aos seus descendentes, e a rica experiência que a diversidade cultural proporciona a todos.