UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES - CEART DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS LUCIANO PARREIRA BUCHMANN REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE EM AULAS DE ARTES DE CURITIBA: A INFLUÊNCIA DOS PAINÉIS DE POTY LAZZAROTTO FLORIANÓPOLIS 2007 LUCIANO PARREIRA BUCHMANN REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE EM AULAS DE ARTES DE CURITIBA: A INFLUÊNCIA DOS PAINÉIS DE POTY LAZZAROTTO Trabalho apresentado ao Curso de Mestrado em Artes Visuais, Linha de Pesquisa: Ensino da Arte, como requisito parcial do Seminário de Dissertação da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. Orientadora: Profª Drª Teresinha Sueli Franz FLORIANÓPOLIS 2007 Agradecimentos À Elisabete Donni, pelos ensinamentos que ultrapassaram, em muito, as questões metodológicas. Aos meus tios Maurita e Max, pelo apoio logístico e fundamental. A Mirian Celeste Martins, Sandra Ramalho, Silvia Pilloto, Consuelo Schilichta e Paulo Reis, que contribuíram com empréstimos, orientações e apoio. À minha orientadora Profª Drª Teresinha Sueli Franz, que soube me dar autonomia. A Sandra Lima e Regina Melin, que fizeram este mestrado ocorrer em paz. A Maria Emília Possani, que cedo, na FAP, apontou-me a necessidade do mestrado e apostou em mim. Às colegas queridas de turma. Às professoras, que me permitiram, e se permitiram, crescer no grupo de estudos, e àquelas que colaboraram nesta pesquisa. A todos, enfim, que direta ou indiretamente fizeram parte deste trabalho. RESUMO Esta dissertação apresenta uma análise de projetos pedagógicos desenvolvidos por professoras das escolas municipais de Curitiba no âmbito do Programa Escola Universidade, antigo Fazendo Escola, que tiveram como tema a obra de Poty Lazzarotto. A pesquisa, que segue a metodologia qualitativa interpretativa crítica, traz, além de ampla pesquisa bibliográfica, entrevistas com professores e análise de documentos. O projeto Escola Universidade faz parte das ações de formação contínua de professores da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba (SME), que, nesse programa, financia tais projetos pedagógicos, os quais, ao serem aprovados, recebem a orientação de um docente de uma das instituições de Ensino Superior parceiras durante o seu desenvolvimento. Devido à grande popularidade do artista Poty Lazzarotto (1924-2001) na cidade de Curitiba, é uma constante que sua obra seja a temática de projetos. Propostos em momentos distintos, por sujeitos distintos, os projetos apresentam pontos em comum: o uso da releitura enquanto produção plástica, a contextualização limitada e a reprodução da ideologia paranista. Esta ideologia foi criada no início do século XX por um grupo de artistas e intelectuais, fortalecida nos anos 50 e transmitida pelas obras do artista, que empregou as imagens da gralha-azul, do pinhão e do pinheiro, junto a imagens de caráter social, do trabalhador e do trabalho. Em razão desses fatores a obra de Poty passou a ser proposta como símbolo de identidade do paranaense. Sem crítica a esse sistema, sem percepção sobre o comprometimento ideológico das obras, as professoras reproduzem essas idéias, das quais não são autoras, por não possuírem uma compreensão maior sobre a obra e a educação, bem como por não terem autonomia. A pesquisa está fundamentada na Pedagogia Crítica da Arte, na História da Arte, na Sociologia e em teorias da Educação, com base em autores como Fernando Hernandez, Argan, Paulo Freire, Arthur Efland, Karry Freedmann, Teresinha Sueli Franz, Pierre Bourdieu, entre outros. Palavras-chaves: ideologia; identidade; reprodução; ensino da arte; autonomia. ABSTRACT The present dissertation analyses pedagogic projects on the works of artist Poty Lazzarotto. The projects were developed by teachers of the Curitiba municipal schools within the Programa Escola Universidade (University-School Program), formerly called Fazendo Escola (Building a School of Thought). The research methodology is critic, interpretative and qualitative comprising a wide bibliographic research, interviews with teachers and document analysis. The Programa Escola Universidade (University-School Program) is included in the actions addressed to continued teacher formation developed by Secretaria Municipal de Educação de Curitiba (SME) (Curitiba Education Municipal Department). The aforementioned program finances the development of pedagogic projects that, when approved, are guided by a partner university professor. Due to Poty Lazzarotto (1924-2001) great popularity, his works are constantly used as subject matter of several projects in Curitiba. Although such projects are designed by different people in different moments, they all have several points in common: plastic production reinterpretation, limited context and reproduction of a “Paranist” ideology. Such ideology was created in the beginning of the twentieth century by a group of artists and intellectuals, and strengthened in the fifties through Poty Lazzarotto works which joined Paraná symbols, as gralha-azul (Paraná bird), pinhão (araucaria edible seed) and araucaria tree, to worker and work images with social connotation. For this reason, Poty’s work is considered a symbol of Paraná identity. Although they are not that concept author, do not have autonomy and do not understand Poty’s work and Education itself, most teachers spread such idea without criticizing it or noticing its ideological commitment. The present research is based on Art Criticism Pedagogy, Art History, Sociology and Education theories, and on the following authors: Fernando Hernandez, Argan, Paulo Freire, Arthur Efland, Karry Freedmann, Teresinha Sueli Franz, Pierre Bourdieu, among others. Key-Words: ideology; identity; reproduction; art educacion; autonomy. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 2 7 NAPOLEON SE FAZ POTY: O ARTISTA DE CURITIBA ...................................... 13 2.1 DO PALÁCIO À CORTE ....................................................................................... 20 2.2 NA CORTE: POTY NO RIO DE JANEIRO ............................................................ 22 2.3 SE FAZ E É FEITO GRAVADOR.......................................................................... 26 2.4 PRONTO PARA IR À CORTE DAS CORTES: BEAUX ARTS .............................. 30 2.5 O LEITOR SE MOSTRA ILUSTRADOR ............................................................... 32 2.6 ARTICULANDO, DE LONGE, A CHEGADA DA MODERNIDADE NA ARTE EM CURITIBA ............................................................................................ 34 2.7 MODERNIDADE, MODERNISMO E POTY .......................................................... 36 2.7.1 O Modernismo no Brasil ..................................................................................... 40 2.7.2 Poty no Modernismo........................................................................................... 42 3 O CONCEITO DE ARTE E A METODOLOGIA DA PESQUISA............................... 44 3.1 O CONCEITO DE ARTE....................................................................................... 44 3.2 A METODOLOGIA DA PESQUISA....................................................................... 46 3.3 ESTUDO TEÓRICO.............................................................................................. 48 3.3.1 A Análise Documental ........................................................................................ 49 3.3.2 Procedimento de Leitura .................................................................................... 49 4 O CARÁTER IDEOLÓGICO NA OBRA ................................................................... 53 4.1 CURITIBA RECEBE AS MARCAS DE POTY ....................................................... 53 4.2 ARTE MONUMENTAL, ARTE OFICIAL E ARTE PÚBLICA .................................. 59 4.2.1 A Arte Monumental............................................................................................. 62 4.2.2 A Arte Oficial ...................................................................................................... 66 4.3 O MONUMENTO COMO DOCUMENTO E SUA OFICIALIDADE ......................... 67 4.4 O CARÁTER PÚBLICO DA OBRA ....................................................................... 70 4.5 OS CARÁTERES PÚBLICO, OFICIAL E MONUMENTAL NA OBRA DE POTY LAZZAROTTO ........................................................................................... 72 4.6 O CARÁTER IDEOLÓGICO DA OBRA MONUMENTAL DE POTY LAZZAROTTO ........................................................................................... 73 4.7 UMA MARCA MACHISTA: ARTE E GÊNERO NA OBRA DE POTY .................... 79 4.8 A OBRA COMO CONSTRUTORA DA IDENTIDADE E SUA LIGAÇÃO COM A SUBJETIVIDADE ..................................................................................... 92 4.9 O PARANISMO, A IDENTIDADE CONSTRUÍDA DO PARANÁ............................ 95 4.10 EM 2005: A PARANIZAÇÃO................................................................................. 99 4.11 A FORÇA DAS IDÉIAS QUE NÃO SÃO NOSSAS MOLDANDO NOSSA COMPREENSÃO .................................................................................... 102 4.12 RELAÇÃO ENTRE PODER E SABER: A QUEM A OBRA REPRESENTA, PARA QUE O FAZ E A QUEM ELA EXCLUI? ...................................................... 110 5 A OBRA DE POTY E O ENSINO DE ARTES VISUAIS ........................................... 115 5.1 IMPLICAÇÕES DE PODER NA FORMAÇÃO CONTINUADA: O MANUAL COMO OS PROJETOS SÃO ESCRITOS E PARA QUEM SÃO ESCRITOS? ...... 120 5.1.1 A Pesquisa como Formação Contínua ............................................................... 122 5.2 A ANÁLISE DOCUMENTAL ................................................................................. 136 5.3 A LEITURA DOS PROJETOS............................................................................... 139 5.3.1 O Projeto 2300/ 2006 - Em que as Professoras Acreditam................................. 141 6 O ENSINO DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE ............................................... 176 6.1 A OBRA COMO CONSTRUTORA DE CONHECIMENTO CRÍTICO POR UM ENSINO DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE ......................................... 180 6.2 PENSAR NA CONSTRUÇÃO DE NOVAS IDENTIDADES A PARTIR DE POTY E DA ARTE CONTEMPORÂNEA............................................................... 189 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 216 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 228 APÊNDICE A - ENTREVISTAS FEITAS POR LUCIANO BUCHMANN EM JULHO DE 2007 ................................................................................. 236 ANEXO A - PROJETOS NºS 333/2005, 0945/2006, 2286/2006, 2300/2006 ESCOLA UNIVERSIDADE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA - SME/PMC ............................................................................. 243 7 1 INTRODUÇÃO Minha história como professor de arte iniciou-se pelo ensino não formal, pois atuei como monitor do Museu de Arte do Paraná, em ações culturais nos bairros periféricos da cidade, em acampamentos de férias. Nessas experiências aprendi muito sobre as crianças, os adultos, e mesmo sobre os idosos. Ao ingressar no quadro funcional da Prefeitura Municipal de Curitiba (PMC), em 1994, fiz parte de um grupo de educadores privilegiado naquela gestão, frente a outros setores da Fundação Cultural de Curitiba (FCC). O projeto em que atuei como orientador de estagiários de Artes Visuais, nas ações pela cidade, estava subordinado a esse setor diferenciado daquela gestão da FCC e chamou-se Projetos Especiais. Nesse setor, o projeto no qual eu trabalhava – as Linhas do Conhecimento – recebia uma atenção diferenciada. Nossa realidade era bastante distinta, primeiramente porque foi um projeto pioneiro no país. Todas as linguagens artísticas estavam representadas. Uma quantidade de crianças dos bairros da cidade, como não se vira até então, circulava pelos museus, bibliotecas, parques e teatros da cidade. As crianças sabiam quais espaços culturais visitariam pelas atividades que as equipes desenvolviam previamente. Em segundo lugar, era um projeto muito caro, mas importante, porque naquele momento, ano de 1994, ainda se festejavam os 300 anos da cidade e as marcas, conseqüentemente, eram de comemoração. Nesse contexto, surgem painéis de azulejos de Poty, a construção do Memorial dos 300 anos de Curitiba, que recebe o retrato de Leonardo da Vinci feito por Poty; a reinauguração da Praça 29 de Março após a restauração do painel de Lazzarotto "Cidade de Curitiba"; a exposição Poty Lazzarotto no Museu Metropolitano de Arte. Este artista estava em evidência naquele momento. Até o fato de ele aniversariar junto com a cidade era um fator simbólico que dava visibilidade ao fortalecimento dos laços que a Prefeitura parecia construir entre o artista e a cidade. Ao expor uma grande quantidade de suas obras, era impossível não associar seu nome à cidade e ao Estado do Paraná. Os mais diversos espaços 8 culturais da cidade exibem suas obras, a cidade é marcada e demarcada por 60 painéis monumentais em concreto aparente ou azulejos. Além disso, seus desenhos, mesmo depois de seu falecimento (1998), ilustram cartazes de eventos da Prefeitura e, como logotipo, marcam serviços públicos municipais. Mais tarde, em 1999, ao ingressar como professor na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), passei a investigar o que ocorria além dos muros da instituição, atuando na Extensão Universitária. Fui convidado à época a participar de um novo projeto junto à Secretaria Municipal de Educação (SME): o projeto "Fazendo Escola", atualmente denominado "Escola Universidade". Nesse projeto, nós, os professores da FAP, atuaríamos como orientadores de equipes de até cinco professoras ou professores da SME que, a princípio, idealizavam um projeto de ensino, formatando-o segundo as normas específicas sistematizadas pela SME e, caso fosse selecionado, receberia uma orientação mensal em todo o seu desenvolvimento pela Instituição de Ensino Superior. Em verdade, foi em razão da experiência no projeto "Linhas do Conhecimento", da FCC, de 1994 a 1998, que percebi Poty Lazzarotto como uma marca, depois pela participação anual no projeto "Escola Universidade", como orientador. Mais tarde, no grupo de estudos,1 tive um contato mais significativo com a realidade do ensino das artes das escolas em Curitiba, pois percebi a atenção especial dada a Poty, como um verdadeiro representante da identidade curitibana e paranaense, por parte do conjunto de educadores da rede pública e privada de ensino em Curitiba, e o tema me interessou sobremaneira. No projeto "Escola Universidade" pude observar o quanto as práticas das professoras, comprometidas com idéias aparentemente sem importância mas hegemônicas, habitam o subsolo da arte, do seu sistema e do contexto cultural que a gerou. 1 O Grupo de Estudos "Arte eu ensino" foi criado em 2004, como ação de formação continuada do Pólo Arte na Escola na Faculdade de Artes do Paraná. Formado por professoras da rede pública de ensino, tem o foco do trabalho no ensino das artes visuais e reflexões afins. O trabalho ocorreu até o início de 2006. 9 No trabalho delas vi o meu trabalho do passado, repetindo coisas sem refletir a respeito, retiradas daqui e dali rapidamente, minhas tentativas de suprir uma exigência conteudística a ser passada à frente. Reproduzia-se ali minha fala quando orientador nas "Linhas do Conhecimento" e monitor no antigo Museu de Arte do Paraná (1989 a 1992). Percebi, no "Escola Universidade", o quanto são recorrentes os projetos em torno da obra de Poty no ensino da arte, e até mesmo em outras disciplinas. Por isso, defini este recorte para estudar. Busquei professoras que o haviam escolhido, querendo saber por que escolheram este tema para projeto de ensino, o que desejavam ensinar e como compreendiam a obra deste artista. Em alguns desses projetos atuei como orientador e, hoje, consigo rever meus conceitos, herdados de uma instituição que ensinava artistas mas, além de não instrumentalizar seus estudantes para a reflexão sobre os porquês, principalmente, da contribuição do ensino da arte na humanização dos sentidos, não formava educadores. Hoje, na orientação do trabalho de professoras e de alunos da Faculdade, tenho consciência do peso e da responsabilidade de minhas escolhas em relação aos conceitos que recebi e passei a reproduzir. Hoje compreendo melhor a quem o discurso daquele professor Luciano atendia, o que escondia ou negava e o que legitimava. Minha falta de compreensão sobre os conceitos que recebi e escolhi como meus fez-me adotar, muitas vezes sem pensar, idéias inculcadas pelo sistema, prática, aliás, denominada de "reprodução" por Pierre Bourdieu e Passeron (1972). Assim, para defender a perspectiva que ora apresento – questionar o uso que se faz, no ensino da arte em Curitiba, da obra pública de Poty –, muitas facetas desses sujeitos precisarão de análise, inclusive o que está por trás de suas ações: Qual é a compreensão das professoras sobre a obra de Poty Lazzarotto, e como esta compreensão se reflete no desenvolvimento dos seus projetos pedagógicos na área de ensino das Artes Visuais? Partindo-se do pressuposto de que a obra de Poty é pública, qual o caráter ideológico deste monumento? 10 Fundamentado nas teorias sobre a compreensão da arte e de seu sistema segundo a pedagogia crítica da arte de Franz (2003), Efland (2005), Freedmann (2000) e Hernandez (2000), quando tratam do ensino da arte não restrito ao estudo das obras de arte consagradas, mas a partir da Cultura Visual, pretende-se problematizar: Quem são essas professoras? Como se construíram pari passu com seus projetos pedagógicos? Como vêem uma obra que apresenta e representa a cidade de Curitiba? Do mesmo modo, é importante situar: Quem foi Poty Lazzarotto? Como este homem se construiu como artista? O que contribuiu para torná-lo um mito? Para responder a essas questões, além de uma base teórica que articule alguns conceitos que aqui estarão sendo apresentados: autonomia, compreensão, reprodução, é preciso desconstruir não só os projetos mas também a obra de Poty. Além dos autores citados acima, Paulo Freire (2006, 2005, 2004, 1997) e sua pedagogia libertária e Giroux (1996, 1997, 2003), cuja preocupação é o estudo da relação entre poder e saber, do modo como o poder formata as práticas educativas, pretende-se entender o processo de dominação. Afinal, se dominados, nessa lógica, como se emanciparão? Essas discussões confluem para a grande questão da pesquisa: a obra de Poty Lazzarotto, como qualquer representação, é também veículo de ideologia. Contudo, ela simplesmente assujeita as professoras de arte e as mantém reféns de uma prática pedagógica redutora da cidadania? Penso que isso ocorre porque os sujeitos estão inseridos em uma rede de relações na qual são formados, que os solicita, requisita. O habitus, para Bourdieu (2003), no qual se pode incluir, grosso modo, a formação, inclusive a intelectual (graduação), e o ambiente de trabalho, é como uma rede na qual se produz uma determinada dominação sobre as professoras, que nem a percebem. 11 Por último, faz-se necessário ainda proceder a uma análise sobre a problemática da obra de arte no espaço público. No caso da obra de Poty, sua monumentalização, a oficialidade ou sua oficialização, a questão do público/privado. Nesta dissertação apresento essas questões partindo de Poty. No capítulo 2 trago a história do artista de Curitiba; quais foram os fatores que tornaram-no um mito; como foi sua infância, quem foram e como procediam seus pais; os instrumentos culturais aos quais o menino teve acesso; a relação de sua família com os representantes do poder, que lhe facilitou a graduação acadêmica na Capital Federal. E ainda, os fatores que serviram a sua formação enquanto artista moderno; o modo como pôde articular-se no campo social, enveredando pelo campo da gravura e participando de certames artísticos, sendo premiado e visto; a teia de relações profissionais e de amizade que formou junto a uma elite intelectual dos anos 40; sua permanência na Europa e a contribuição à ampliação do ambiente artístico cultural no Paraná. Também apresento neste capítulo as características da modernidade, do modernismo na arte, deste movimento no Brasil, na intenção de situar Poty nesse universo. No capítulo 3 discuto o conceito de arte que guia a pesquisa e a metodologia do trabalho, o estudo teórico e a análise documental, os instrumentos criados para a análise dos projetos das professoras participantes do "Escola Universidade" e o modo como esta análise se daria. No quarto capítulo trato do caráter ideológico da obra de Poty. Do modo como Curitiba recebeu suas obras e como estas se transformaram em marcas da modernidade, por seu caráter monumental, que, tornado patrimônio, veicula na comunidade a construção da identidade paranaense, atrelada à ideologia paranista, ao projeto desenvolvimentista da economia no Paraná e às administrações municipais. Estas, por sua vez, interessadas em marcar suas ações, perpetuando-se no imaginário popular, valeram-se da obra do artista para inculcar na população seus interesses, contribuindo para a mitificação de Poty e sua obra. 12 Esta implicação ideológica é aprofundada no capítulo cinco, ao discutir a ação do poder na formação das pessoas, o modo como os instrumentos ideológicos e as obras de arte, se comprometidos, veiculam e articulam os conteúdos das idéias que não são nossas, para moldar as percepções e comportamentos. É o caso das professoras que lecionam arte na cidade de Curitiba, as quais, utilizando-se da obra de Poty sem uma maior compreensão desta, servem ao poder e transmitem essa ideologia. No sexto capítulo do trabalho reflito especificamente sobre o campo do ensino da arte em Curitiba, sobre como os conteúdos curriculares e os métodos de aula empregados pelas professoras, ao tomar a obra de Poty como recurso, podem comprometer seus objetivos. Segue a esta reflexão a análise de quatro projetos de ensino desenvolvidos nos anos de 2005 e 2006, e de algumas entrevistas com professoras que desenvolveram projetos valendo-se da obra do artista. Neste capítulo, pretendia-se aprofundar o perfil das professoras e investigar o modo como os projetos foram criados, mas, devido à falta de tempo, isto não foi possível. Ainda, apresento uma reflexão sobre o ensino da arte na contemporaneidade e o modo como a questão da identidade pode servir na construção de conhecimento em arte e apresentar relação social com a cultura dos educandos. Enfim, sobre como pode servir ao desenvolvimento da comunidade, por desvelar o comprometimento da obra de Poty, ao construir, paralelamente, seu modo de produção, revelando-o como um saber da arte e do artista. A proposição da reconstrução deste fazer apresenta um relacionamento com a arte contemporânea que discute o tema identidade, e sugere a discussão sobre este tema na realidade dos educandos, durante a construção de um painel que os identifique. O sétimo capítulo, finalmente, traz algumas considerações finais. 13 2 NAPOLEON SE FAZ POTY: O ARTISTA DE CURITIBA Era uma vez um casal de ferroviários imigrantes que vivia em casa modesta de modesto bairro; o pai, aposentado por invalidez, a mãe, trabalhadora do lar. O sustento da família vinha do pouco de tudo que o homem conseguia fazer. Da feliz união nasceram dois meninos, e um deles veria e registraria o mundo se mover. Este traço levou-o a linhas de belos horizontes, de história e de Histórias. Essa história lembra em muito o esquema narrativo clássico, o conhecido gênero do conto fantástico ou conto de fadas. Inicia-se com 'Era uma vez'. Surge a adversidade a ser vencida, para, enfim, retornar à ordem e terminar feliz para sempre. É um príncipe que, transformado em corvo, tem de vencer todas as bruxarias, chegando a rei; é o menino franzino que vence o mal pela virtude, casase com a princesa e traz a felicidade a um reinado justo. A história a ser contada é a de Poty Lazzarotto, um menino pobre que alcança o sucesso por seu talento, tornando-se um artista de importância nacional. Sem sombra de dúvida, o artista foi uma celebridade no campo das artes visuais no Brasil. Sua obra faz parte dos acervos das maiores instituições culturais do país. Sua ilustração faz parte dos livros de um elenco de escritores de maior respeito, sua obra monumental em painéis públicos está em diversas capitais e cidades, inclusive no exterior, em espaços abertos ou instituições. Poty alcançou o que nenhum outro artista nascido no Paraná conseguiu: viver de sua arte, ser conhecido e respeitado nacionalmente. Podemos supor que, em meio a tantas dificuldades, ter chegado onde Lazzarotto chegou é possível apenas com um toque de fada. Mas há muitos ingredientes nesta história. A magia tem nomes, e um deles é herança cultural. Certa é a sabedoria popular ao dizer que "os frutos não caem longe do pé", que "quem segue aos seus não degenera", que "filho de peixe, peixinho é!". Pierre Bourdieu explica os fatos que geraram estes ditos pela sociologia. Afirma 14 que "a nobreza cultural também tem seus graus de descendências" (apud NOGUEIRA, p.43). Surpreendente foi para mim (muito mais que travessuras e memórias pessoais) quando encontrei, na história de Poty Lazzarotto, o seu pai, Sr. Isaac Lazzarotto, ao ler Poty, trilhos, trilhas e traços2, de Valêncio Xavier. Isaac Lazzarotto e seu filho Napoleon Na primeira leitura da entrevista do Sr. Isaac Lazzarotto ao Diário da Tarde3, jornal diário em Curitiba no início do século XX, publicada em 30 de agosto de 1938 e reproduzida no livro acima mencionado, fiquei em dúvida. Tive a impressão de que o jornal, respeitando o costume de então, ou, ainda, uma prática jornalística, tivesse retirado o valor coloquial da entrevista para revesti-la de forma elegante. O entrevistado me parecia ser um Conde, um escritor refinado, um estudioso da cultura erudita. Pode até ser que o jornal tenha procedido como citei acima, o que não vem ao caso; mas essa leitura revelou meu preconceito. 2 NICULITCHEFF, Valêncio. Poty, trilhos, trilhas e traços. Curitiba: PMC, 1994. 3 O Diário da Tarde foi um jornal de circulação em Curitiba, sobretudo no centro e imediações, nos anos 30. 15 Esses preconceitos se atualizam quando vemos o passado pelo presente. É difícil pensar na formação das pessoas no início do século XX (a de Poty) e no fim do século XIX, a de seu pai. Mesmo sem ter estudos avançados, aqueles eram outros tempos, em que a educação formal tinha outro significado. Ao que parece, o Sr. Isaac Lazzarotto, o tal caçador do boné de pele de onça, ferroviário aposentado por invalidez, imigrante pobre, tinha, sim, erudição. No livro Poty, trilhos, trilhas e traços, alguém teve a idéia de cruzar as falas do pai com as do filho, e revelar (sem a intenção, creio eu) um dos fatores que norteariam os caminhos de Poty. Ali aparece como se deu a pré-educação de um intelectual. Sem dúvida alguma, com base nas palavras de Bourdieu e na carreira de Poty, é possível afirmar que o pai, pobre, ferroviário e aposentado por invalidez, foi um dos grandes responsáveis pela formação do artista, seu filho. Alguns parágrafos atrás falei de minha surpresa em face da entrevista do pai de Poty. Na frase que se segue, ele reflete as conseqüências do acidente em sua vida: "[...] Mas, hoje bendigo todas essas desgraças. Porque a minha reclusão em casa me levou a me concentrar neste meu filho, o Poty" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.26). No cruzamento das falas, no mesmo texto, o filho diz, do pai, ser "um homem cheio de curiosidade, se interessava por História. Lia Histoire de France em francês. Tinha leituras incríveis para a época". Isaac Lazzarotto, entre os esforços de chefe de família, teve como regra, naqueles tempos, soprar o desejo do filho, atiçar aquela brasa e fazê-la acender a fogueira. Ofertou imagens, como vemos em sua fala: "Fui aos poucos, ao ver o interesse da criança pelo desenho, me tornando um comprador de revistas ilustradas. Comprava quantas podia" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.26). O menino recebeu esta oferta. O pai prosseguiu: "Eu mal sei ler, mas, o que sei, ensinei a Poty. Quando o pus na escola de artes e ofícios, ele já lia por cima" (p.34). O filho compreendeu o papel que o pai assumiu: "Isaac foi meu primeiro mestre [...]" (p.56). O pai soube estimular o desenhar do menino, valorizar e perceber características, como se vê a seguir: 16 Muitas vezes pensei em fazer um esforço confiando-o a um professor de desenho. Mas ficava receoso de que certa disciplina ou rigor acabassem matando aquela espontaneidade que me enchia de satisfação. A mim que, confinado nas quatro paredes da minha casa, seguia, passo a passo, o desabrochar daquela vocação estranha que eu próprio cultivara desde a primeira infância (apud NICULITCHEFF, 1994, p.33). O mais surpreendente, diz o pai, é que "[...] observei em Poty um traço curioso: ele sempre gostou do desenho de ação, do movimento. [...] Tudo o que rabiscava tinha vida e atividade, ação, em suma". O pai aprendeu a ler o desenho do filho (NICULITCHEFF, 1994, p.42). Além do Sr. Isaac, houve "a rede de representações socialmente instituída" (RUIZ, 2004, p.146) na formação dos outros pilares do imaginário de Poty: o cinema e a literatura. Lazzarotto teve acesso ao cinema aos quatro anos de idade: "[...] o primeiro filme que vi me lembro perfeitamente, foi o Garoto, do Carlitos. Freqüentava um cinema de bairro, bairro pobre, que recebia filmes depois que eram exibidos nos cinemas lançadores do centro: cópias velhas, faltando pedaços, cheias de riscos, dava sempre a impressão que o tempo todo chovia no filme." Poty começou a freqüentar as matinês do Morgenau: "quem me levava eram minhas primas gêmeas, Anita e Azilina" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.28). Podemos pensar que, ainda menino, Napoleon4 fez histórias em quadrinhos. O cinema pode ter fundado em Poty um museu de imagens em movimento, em preto e branco: "eu desenhava as cenas", disse o artista ao falar do cinema em sua infância (NICULITCHEFF, 1994, p.29), o que pode ter marcado sua expressão plástica em preto e branco – "eu não me dou bem com a cor" (p.191). Destacou-se como ilustrador a nanquim e bico de pena e na gravura em metal, recorrendo à cor tardiamente. Já foi dito que "filho de peixe, peixinho é", e, só para redundar, "o que se herda, não se furta [...]", dizia minha mãe, que deve ter aprendido com todos os portugueses, que viverão para sempre nas falas de nossa família. Infelizmente, a sabedoria do povo não é facilmente aceita. Então, que seja lida como herança cultural. 4 O nome completo do artista é Napoleon Potyguara Lazzarotto, nome escolhido pelo pai em homenagem ao general francês (NICULITCHEFF, 1994). 17 É possível dizer que a oportunidade de estudar e sua valorização pela família foram determinantes para o artista. O historiador Boris Fausto diz que, na década de 40, o índice de escolarização de meninos e meninas entre cinco e dezenove anos na escola primária era de mais de 21% (FAUSTO, 2003, p.394), o que o retira de uma maioria de 79% que não teve acesso à escola. Mais tarde, Poty lembra que lia contos, "principalmente de François Coppé, Robert Louis Stevens e Edgar Allan Poe" (NICULITCHEFF, 1994, p.45), e mais tarde "lia tudo que aparecia" (p.57). O moço lia a revista Eu Sei Tudo, "afinal, Eu Sei Tudo era uma revista séria" (NICULITCHEFF, p.55, grifo do autor). Como disse Bachelard: "Quantas vezes, de uma simples brochura, jorrou para mim a luz de uma imagem nova! Quando aceitamos ser animados por imagens novas, descobrimos irisações nas imagens dos velhos livros. As idades poéticas unem-se numa memória viva" (2001, p.26). É possível supor a soma das imagens jorradas daquelas narrativas do cinema mudo, às da literatura, no imaginário de Poty. O desenho em movimento é outro fator a impulsioná-lo. E este, deve ter tido um impulso com o Suplemento Juvenil 5. Esta revista de história em quadrinhos, publicada três vezes por semana, apresentava aventuras de heróis como: Flash Gordon, Tarzan, Dick Tracy, Super-homem, Zorro, Mandrake e Fantasma (NICULITCHEFF, 1994, p.42). Uma constelação na luta contra o mal. Aventuras policiais ou nas selvas, suspenses e ficção científica. 5 Segundo o autor, era uma revista dedicada ao público infanto-juvenil, que apresentava as aventuras dos super-heróis com teor diverso de publicações muito populares naquela época, como o Tico-tico, que traziam histórias mais humorísticas e infantis (NICULITCHEFF, 1994, p.42). 18 Possivelmente havia mais ingredientes importantes na formação do imaginário masculino, sobretudo nos anos 30. "Fantasias do poder onde se exercem, neste registo, algumas representações do absoluto. As imagísticas de poder, nos seus diversos graus, são formas de mimar os aspectos da divindade e de brincar de ‘ser deus’" (DUBORGEL, 1992, p.139). Vale lembrar que essas histórias eram americanas e provavelmente homólogas aos continentes imaginários que Poty conhecia do cinema. Assim, em 3 de novembro de 1938 o Diário da Tarde apresentava a manchete: "Uma demonstração do talento criador de Poti, o garoto prodígio", ao publicar "Haroldo, o homem relâmpago", uma história em quadrinhos criada por Poty (NICULITCHEFF, 1993, p.42). O ocorrido foi que o Diário da Tarde, procurando ampliar seu público aos bairros (p.45), buscava estabelecimentos que pudessem distribuir o jornal. Foi assim que chegaram ao bairro do Capanema, no botequim dos Lazzarotto, e encontraram os desenhos de Poty. A aventura do personagem Haroldo, criado pelo menino de quatorze anos, dividia-se em seis capítulos publicados nos dias 3 e 25 desse mês de novembro (p.42). O recorte feito sobre Poty como dotado de talento desde a infância é uma das marcas nos textos dos autores e críticos que se dedicaram a escrever a história do artista. Segundo Kris e Kurz, a descoberta do talento precoce é uma "fórmula biográfica (...) [que] valoriza as primeiras realizações do talento e procura demonstrar que o gênio de um mestre já luta por se expressar desde a infância" (KRIS e KURS, 1988, p.36). Os autores trazem à tona esta fórmula nas biografias de artistas escritas desde o Renascimento. Segundo os autores, o prestígio que os artistas receberam no Renascimento "encontra sua expressão visível no fato de as biografias não só prestarem atenção à sua juventude mas encararem o seu gênio como ‘milagre da infância’" (p.37). Consideram ainda que a invenção da criança dotada de talento artístico teve influência das narrações "da mitologia pagã e as vias de santos das religiões 19 reveladas" por estarem "repletas de histórias da infância daqueles cuja origem divina ou cuja relação com a divindade são indubitáveis" (KRIS e KURZ, 1988, p.39). Os historiadores ainda supõem com confiança que "cada feito associado a essas crianças excepcionais pertencem à ordem do milagre: o termo criança-prodígio (Wunderkind, em alemão)" (p.39). Kris e Kurz (1988, p.37) dizem que passamos a aceitar, "por isso, a suposição de que os grandes artistas mostram seus talentos desde a infância, e que esta fórmula biográfica se enraíza na experiência comum". É interessante pensarmos em quantas crianças tão dotadas quanto Poty não se tornaram artistas, e nos inúmeros fatores que o levaram a fazer esta escolha. Deduzem os historiadores Kris e Kurz (1988, p.37) sobre o fato: [...] da superabundância de crianças dotadas, [sendo que] apenas umas poucas se desenvolvem como artistas. O facto de termos tal informação sobre esse pequeno grupo deve-se, sobretudo, a terem sido postas em destaque, enquanto heroínas das biografias de artistas. Bourdieu comenta "o culto da 'criança prodígio'" como sendo a "forma limite do culto romântico do 'gênio'", como se esta precocidade nada devesse à cultura, "considerada como a manifestação mais indiscutível das virtudes inatas, das qualidades congênitas e dos dons da natureza" (1992, p.240). O autor afirma ainda que o tipo de exaltação que o Diário da Tarde deu à manchete sobre Poty, como "o garoto prodígio", é comum no jornalismo. O outro investimento que a família Lazzarotto fez para se manter foi a criação de um restaurante, por volta de 1938: "O Vagão do Armistício". O nome veio em homenagem à França, que vencera a Alemanha na primeira grande Guerra. O armistício de rendimento da Alemanha havia sido assinado em um vagão de trem, mais tarde transformado pelos franceses em monumento. Após a invasão da França, na Segunda Guerra Mundial, Hitler fez a França assinar sua rendição no então monumento. Como foi dito, o Sr. Isaac Lazzarotto lia La Histoire de France. 20 O vagão dos Lazzarotto foi construído pelo Sr. Isaac no fundo de sua casa6. O vagão do Armistício servia um risoto, ocasionalmente, por encomenda da freguesia. E a freguesia do Armistício era seleta. Por lá apareciam artistas de passagem pela cidade, como Linda Batista, Procópio Ferreira, Silvio Caldas, além da elite política do Paraná: Moisés Lupion, Ney Braga, Bento Munhoz da Rocha e o interventor do Estado por indicação de Getúlio Vargas e Manoel Ribas7 (NICULITCHEFF, 1994, p.52-53). O vagão, mais que um modo de sustento, transformou-se num espaço de sociabilidade, "possibilitando o acesso da família Lazzarotto à rede de relações constituída pela elite". Foi o restaurante e seu famoso risoto que "lhes permitiu posição de prestígio no interior da classe dirigente paranaense" (LOURENÇO, 2005, p.43). De certo, a família Lazzarotto "soube fazer valer o capital das relações sociais em certas conjunturas como a educação dos filhos, a 'escolha' dos cursos superiores" (MICELI, 2001, p.23). Como contou Poty, "Manoel Ribas freqüentava o Vagão, conhecia meus desenhos. Chamou os consultores dele [...] e achou que valia a pena me mandar estudar no Rio com mesada de 600 mil réis" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.58). 2.1 DO PALÁCIO À CORTE Em 1942 Poty foi chamado ao Palácio Iguaçu, a sede do poder no Paraná, por Manoel Ribas. "[...] Poucas horas depois, a mãe de Poty, com os olhos rasos dágua, preparava a minguada bagagem que o menino levaria ao Rio" (NICULITCHEFF, 1994, p.58). 6 Segundo Niculitcheff (2004, p.54), era costume as famílias servirem refeições sem a oficialização de restaurante. 7 Manoel Ribas governou o Paraná como interventor de Getúlio Vargas de 1932 a 1945. 21 Aquele foi um ano conturbado. O povo, nas ruas, pedia pela Guerra. O País vivia o governo populista de Getúlio Vargas, que naquele momento iniciava o programa radiofônico "A hora do Brasil". Em janeiro, as relações com os países do eixo são rompidas, e em maio é assinado o acordo político-militar de caráter secreto com os Estados Unidos, sendo instituído, no mesmo mês, o cruzeiro como unidade monetária nacional8. Em agosto, cinco navios mercantes brasileiros são afundados por submarinos alemães e o Brasil entra na Segunda Grande Guerra Mundial (FAUSTO, 2003, p.382). Nesse ano a cidade do Rio de Janeiro é sede da III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas.9 É iniciada a construção do conjunto da Pampulha projetado por Oscar Niemeyer em Belo Horizonte, e o Museu de Arte Moderna de Nova York expõe fotografias da moderna arquitetura brasileira (SUDAMERIS, 1992, p.123). A "Praça Onze", antigo espaço dos desfiles dos grupos carnavalescos no Rio de Janeiro, é destruída para a construção da Avenida Getúlio Vargas. Foi o ano em que Mario de Andrade fez a conferência "O movimento modernista", nas palavras de Aracy do Amaral: "historicamente importante e definidora" (AMARAL, 2003, p.105). Durante a "Era Vargas", o "Estado Novo" (1937-1945) assumia a tutela da produção intelectual, destacando-se como o principal investidor e a principal instância de difusão e consagração da produção cultural (MICELI, 2001, p.79). Como disse Olívio Tavares Araújo, "toda ideologia triunfante quer ver-se corporificada em representações simbólicas diversas, que de alguma maneira a perpetuem" (ARAÚJO, 2002, p.259). E, "imprimir seus marcos em todos os domínios de atividades ligados ao trabalho de dominação, em especial nos diversos níveis do sistema de ensino e no campo da produção e difusão cultural" (MICELI, 2001, p.78), foi uma estratégia eficiente do regime Vargas. Disse Fernando Pedreira em A Bienal: impostura cosmopolita: "A arte, como reconhece o Sr. Getúlio Vargas em seu recente discurso, está estritamente, 'indissoluvelmente' 8 Revista Nossa História n. 36, p.90, de outubro de 2006. 9 http://www. cpdoc. fgv. br/nav historia/htm/anos37-45/ev guerranobr reuniao. htm. 28/01/2007 22 ligada à política" (AMARAL, 2003, p.248). Mais à frente, este tema será apresentado com maior aprofundamento. Poderíamos dizer que, dentre as estratégias do poder sobre a produção artística da época, estava o financiamento de estudantes na capital, fato que ocorria desde a criação da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro no século XIX. No Paraná, a história da subvenção aos estudos de artistas foi uma prática recorrente no início do século XX. Theodoro de Bona (1924-1989), um artista mecenado pelo Estado na Itália nos anos 20, conta da existência de um dispositivo na Constituição Estadual que permitia ao governador a concessão de bolsas (JUSTINO, 1989, p.16). A subvenção às artes aparece mais tarde na Era Vargas. Foi o interventor de Vargas, Manoel Ribas, quem concedeu bolsa a Erbo Stenzel (1911-1980) e Poty. Stenzel foi quem acolheu Lazzarotto no Rio de Janeiro. O mesmo pode ter ocorrido nos demais Estados. No Rio Grande do Sul, o artista Iberê Camargo (1914-1994) recebeu a subvenção de Osvaldo Cordeiro de Farias, interventor naquele Estado (CAMARGO, 1998, p.116). Sem o apoio do Estado seria quase impossível a Poty alcançar o que alcançou, uma vez que sua família não possuía condições para manter o filho estudando arte na Capital. 2.2 NA CORTE: POTY NO RIO DE JANEIRO No Brasil de 1940, o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, era a cidade a possibilitar a ascensão artística. Segundo Sérgio Miceli, "quem desejasse ingressar na carreira artística deveria 'migrar' para a capital federal ou para o exterior" (1992, p.20). O que definiu esta especificidade à cidade foi o fato de ter sediado o Poder por muito tempo, de 1763 a 1960. Com o estabelecimento da Corte Portuguesa10 houve o conseqüente refinamento dos costumes, como, por exemplo, o conhecimento e a posse de 10 A corte portuguesa de Dom João VI manteve-se no Rio de Janeiro de 1808 a 1821. 23 linguagens específicas. "Um poder que uma certa maneira de utilizar as palavras permite mobilizar" (BOURDIEU, 1998, p.199), aliado ao esboço de um sistema artístico acadêmico importado da França com a chegada da Missão Artística Francesa11, em 1816. Para "garantir as conquistas institucionais alcançadas" (REIS, 2005, p.90), o ensino oficial de belas-artes não bastava, "era necessário dar forma a um Sistema de Belas-Artes com objetivos bem estabelecidos". São criadas as Exposições Gerais, transformadas posteriormente nos Salões de Arte (Nacional e Estadual). Surgiria a formação de um público. Teresinha Franz, apud Lopez, diz que "estas exposições tiveram importância porque tiraram a arte do convívio particular dos diretamente implicados, levando-a ao domínio público" (2003, p.67). A herança daquela linguagem e daquele capital transformou-se com o tempo, chegando aos anos 40 de diversas formas. Lá se estabeleceram as primeiras bibliotecas e hábitos de leitura, o primeiro acesso ao mundo simbólico do brasileiro. Deixou de haver Imperador para haver Presidente da República; os saraus deram lugar aos programas de auditório nas rádios. Até o início da modernidade artística no País, o Rio de Janeiro foi a capital das artes. E, como se diz, "quem foi rainha não perde a majestade", esta herança ainda hoje é perceptível na diferença de uso da linguagem do carioca. No Rio de Janeiro, Poty vai morar em uma pensão. Emprega seu tempo na preparação ao exame de admissão da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). "Eu tinha de passar [...] senão era pegar o caminho de volta" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.61). Lentamente, a Escola de Belas Artes vinha deixando a tradição acadêmica e chegando à modernidade, em meio a brigas, até corporais, entre acadêmicos e modernistas que atravessariam a década (MACHADO, 1998, 11 A Missão Artística Francesa veio ao Brasil em 1816, a convite do Primeiro Império. Tratava-se de um grupo de artistas, arquitetos, engenheiros, incumbidos pelo Império da instalação, no Brasil, de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. A vinda da Missão Francesa representou "o início do estabelecimento de uma postura oficial de adoção de padrões estéticos, segundo modelos eurocentrados, em contraposição à tradição anterior, estabelecendo, a partir daí, parâmetros para nosso modo de produção artística" (SILVA, 1998, p.119). 24 p.415). Em 1940, o Salão Nacional de Belas Artes, um dos pilares do academicismo, tinha recém-oficializado a Divisão de Arte Moderna devido ao apoio que recebeu de intelectuais, artistas e da imprensa, em virtude daqueles debates (MACHADO, 1998, p.421). "Antes só existia o salão acadêmico, os dois passaram a existir naquela época no Museu Nacional de Belas Artes." (apud NICULITCHEFF, 1994, p.61). É neste momento que Poty ingressa na Escola de Belas Artes, no espaço social acadêmico. Tempos de mudança. Uma das conseqüências mais marcantes de uma graduação, assim como de qualquer outro círculo social em que se ingresse, é a rede de relações que, no caso, o estudante, começa a tecer. Têm-se o círculo acadêmico, os encontros sociais e o conseqüente deslocamento aos espaços sociais desses atores, como vemos na fala de Poty: "Passei a freqüentar lugares como o Café Gaúcho, na Rua São José, onde ficavam os artistas [...] tinha o Café Vermelhinho, em frente à ENBA, onde eu via à distância Carlos Drummond de Andrade [...] (apud NICULITCHEFF, 1994, p.60). Uma coisa é conseqüência da outra: "quanto mais se amplia o capital econômico e cultural, tanto maiores as oportunidades de se sair bem nos jogos sociais. Por conseguinte, a propensão para investir neles tempo e energia também se amplia" (BOURDIEU, 2001, p.277). Já no ano de ingresso na ENBA, Poty passa a participar dos Salões de Arte: "Eu nunca tinha trelado12 com pintura, mas, naquele ano mesmo, 1942, ganhei medalha de Bronze, no Salão Nacional, com o retrato duma colega minha" (NICULITCHEFF, 1994, p.60). Pierre Bourdieu diz que nos salões de arte não há apenas as obras em exposição. Segundo ele, nestes eventos ocorrem trocas nos campos artísticos e políticos. 12 Trata-se de um neologismo, ou do uso informal da palavra por parte do artista. Seria o particípio do verbo trelar, inexistente na língua culta. Segundo Houaiss, o substantivo trela significa, no informal, " (2) manter longa e despretenciosas conversas; tagarelar; [...] (4) dar largas a algo ou alguém" (2001, p.2.760). 25 O Salão de Arte é também um espaço de relacionamento com o poder do grupo de artistas, críticos, historiadores. Nele acontecem a seleção, o julgamento, as considerações e premiações que atendem ao "hábito visual daquele momento" (BOURDIEU, 1996, p.67). Estar entre os premiados, mais que receber dinheiro ou medalha, é ser visto e ter o visto de autoridades da arte sobre o trabalho e a própria imagem. Seu trânsito pelos salões de arte foi um dos fatores a impulsioná-lo. Os salões, de certo modo, eram um trampolim. Eram eles que, naquele momento e até por meados dos anos setenta, conferiam ao currículo do artista notoriedade, além de servirem como modo oficial de exposição. Em tempos em que o sistema de artes ainda era insipiente, esses certames significavam a possibilidade de o artista expor dignamente as obras ao público iniciado e especialista, capaz de reconhecer seus valores. Os salões representavam ainda um modo de ingresso em alguns acervos respeitáveis, pelos prêmios de aquisição, ou, também, a possibilidade de ser premiado com dinheiro ou viagem. Cláudio Correa e Castro, Anísio Medeiros, Poty Lazzarotto, Lívio Abramo, Fayga Ostrower, Oswaldo Goeldi, Lygia Pape, Darel Valença, Iberê Camargo e Marcelo Grasmann Para pensar nesse sistema deficiente das artes plásticas na primeira metade do século XX é interessante observar as fotos de exposições do artista Bruno 26 Lechowski13, um dos mentores do Núcleo Bernadelli. Pela ausência de espaços destinados às mostras artísticas no Rio de Janeiro dos anos 30 e 40, o pintor recorria a inúmeras formas alternativas de mostras portáteis, precisando alugar salas onde promovia suas exposições (MAP, 1991). 2.3 SE FAZ E É FEITO GRAVADOR A pintura não me entusiasmava. Eu tinha que conhecer, é certo, mas não tinha nenhuma intenção de me dedicar. O preto-e-branco sempre me interessava: as aulas da Belas Artes eram de dia, de noite me matriculei no Liceu de Artes e Ofícios, o único lugar onde se ensinava gravura. (Poty apud NICULITCHEFF, 1994, p.61) Poty estuda durante o dia e, à noite, investe seu tempo livre no aprendizado da gravura. Um dos mitos da produção artística é aquele que a entende como fruto do talento do artista. Esta idéia não leva em conta que o estudo público gratuito, ou mesmo a utilização de um ateliê público de arte, são garantias de direito. Essas garantias, em princípio públicas e gratuitas, permitem a alguns a possibilidade de dedicação de tempo ao estudo, pesquisa ou produção. Tempo em que o estudante, o pesquisador ou o artista estão livres de um trabalho assalariado, o que lhes possibilita manter esta prática e dedicar-se a essas ações (BOURDIEU, 2001, p.276). A gravura foi a linguagem artística que lhe rendeu destaque na arte brasileira. O capital simbólico que ele investiu, de certa forma, foi pelo "poder sobre as oportunidades objetivas comandar as aspirações, logo a relação com o futuro" (BOURDIEU, 2001, p.276). 13 Catálogo de exposição: PARANÁ, "Bruno Lechowski, A arte como missão". Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, Museu de Arte do Paraná, 1992. 27 O professor de gravura de Poty foi Carlos Oswald (1882-1971), o primeiro artista a expor gravura no País, premiado diversas vezes com gravura no Salão Nacional. "Uma grande figura humana, procurava não interferir, só ajudava. Respeitava as tendências de cada um, era liberal. Procurava não influenciar ninguém: era sua grande qualidade como professor." (Poty, apud NICULITCHEFF, 1994, p.60). Em seu depoimento, fica evidente a tendência modernista do ensino, antes tão academicista. Nas mostras que se seguiram, Poty recebe elogios de Manuel Bandeira, para quem suas gravuras em pontas secas "merecem todos os elogios, em cujo traço se sente o estudo dos grandes mestres do gênero" (MACHADO, 1998, p.428). De fato, o estudo da gravura e a amizade com Carlos Oswald renderam a Poty exatamente esse capital percebido por Bandeira – "o estudo dos grandes mestres" da gravura. Oswald o fez ver gravadores reconhecidos na história da arte: Rembrandt, Jacques Callot, Goya e Daumier. "Jacques Callot, que eu não conhecia, que me impressionou muito com seus 'Desastres de Guerra' 14. Daumier e Goya, que só conhecia por fragmentos. Goya me emocionou, logo que pude comprei 'Desastres da Guerra'" (Poty, apud NICULITCHEFF, 1994, p.62). A apresentação desses artistas pelo mestre Oswald não é algo inocente. Como professores e orientadores, o que a comunicação pedagógica faz é sempre um ato de autoridade, quer seja no espaço escolar, em um ateliê ou encontro social. Os papéis de professor, orientador, educador "impõem uma definição social do que merece ser transmitido" (BOURDIEU, 1982, p.122). Possivelmente, antes de Poty estar no Rio, de ser aluno da ENBA e freqüentar o Liceu, essa obra poderia não ter tido a receptividade que teve por ele. A alteração do hábito visual e a inculcação do gosto culto são perceptíveis nesta sua fala: "Antes eu era de olhar figuras extasiado. Se me diziam que qualquer Cristo de 14 O nome da série de Jacques Callot é Misérias e infelicidades da guerra, produzida em 1633. 28 folhinha era bonito, eu engolia, achava bonito. Era boa-fé. Eu tinha boca aberta, ia engolindo tudo. Só com o tempo fui separando as coisas" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.63). Ou, ainda, ao se referir ao gosto pelo acadêmico como sendo de menor qualidade: "Quando cheguei no Rio [...], naquele tempo, eu ia no Museu Nacional para ver A Batalha do Avaí, de Pedro Américo, e A Primeira Missa e A Batalha dos Guararapes, de Victor Meireles" (p.59). [grifo do autor]. Daumier foi gravador, desenhista, ilustrador, pintor. Sua obra tem um fundo político. Valeu-se da imprensa como meio e técnica, para "com a arte influir no comportamento social". Usava a litografia, que, como toda gravura, "elimina o preconceito da ligação necessária entre a imagem e um 'produto' nobre, como o quadro ou a escultura" (ARGAN, 2001, p.64). O encontro com a obra de Daumier, pelas afinidades de meios entre os artistas (desenho, gravura, ilustração), além do significado político, pode ter definido passos da pesquisa poética que o jovem Poty iniciava. É o que se expressa nesta sua fala: "Daumier, este lidava com trabalhadores, com o movimento, foi isto que me atraiu nele" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.62). Trata-se da representação social. Na Europa, no final do século XIX, essa representação de cunho social, também chamada de realismo social, teve a preocupação de descrever a miséria, agir em defesa de alguma teoria política ou em favor da melhoria social, no intuito de despertar a consciência dos homens, provocar a indignação ou a piedade (OSBORNE, 1988, p.75). A pintura francesa, que por volta de 1850, com Daumier, Courbet, Gericault, seguia esse viés, acaba assumindo um caminho contrário, dez anos depois, enveredando para o Impressionismo. Para Argan, o motivo dessa mudança teria sido o fracasso dos movimentos revolucionários dos operários de 1848 (2001, p.66). Nas Américas latinas, essa tendência social da arte teve grande força em razão do Taller de Gráfica Popular e do trabalho dos muralistas no México, na década de 30, movimento apresentado na seção 4.2.1 deste trabalho, 'Arte monumental'. 29 Mas cabe aqui ressaltar que o muralismo mexicano, como diz Frederico Morais, deixou marcas profundas em vários países do continente, reforçando tendências locais, influenciando a obra de alguns artistas, isoladamente, e servindo como modelo de políticas artísticas em diversos países (MORAIS, 1992, p.50). O Taller de Gráfica Popular, que se iniciou em 1937, formado por um grupo de artistas, traz, em sua "Declaração de Princípios", no artigo terceiro, que "uma arte a serviço do povo deve não só refletir a realidade social de seu tempo, mas também ter uma unidade de conteúdo e formas realista" (ADES, 1997, p.327). Tanto seu trabalho gráfico quanto o movimento que gerou tiveram repercussão na Tchecoslováquia, Itália, Equador, Guatemala, além do Brasil (p.188). No Brasil, os Clubes da Gravura de Porto Alegre e Bagé foram os exemplos mais significativos da influência do Taller de Gráfica Popular (ADES, 1997, p.189). E, por sua vez, a temática forte da obra dos artistas dos Clubes da Gravura (a realista social) e o movimento de agrupamento que tinham os clubes tiveram, na arte que se renovava no sul do País, um grande peso (AMARAL, 2003, p.175). A gravura, por seu caráter múltiplo, sempre foi aliada de batalhas entre arte e poder, tendo entre seus representantes "Goya, Daumier, Posada [...] demolidores dos valores e idéias de uma ordem vigente autoritária" (VAZQUEZ, 1999, p.273). No Liceu de Artes e Ofícios, Poty convivia com outros artistas que caminhavam pela tônica da representação social, como Renina Katz. Com certeza, esse convívio foi determinante. Comentaria Helena Garfunkel que "a miséria humana foi sempre o maior tema de inspiração de Poty; a vida e a morte dos infelizes, pois a morte parece que comove especialmente este artista moço [...]" (FCC, 1994, p.25). As obras desses artistas eram "conteudísticas", como lembra Aracy do Amaral. Expressavam uma mensagem de preocupação social que aquilatava sua importância. A autora constatou as seguintes características na temática de preocupação social: o homem como tema principal, cenas da vida urbana, a situação social do homem como trabalhador, cenas do trabalho urbano, o drama do homem contemporâneo em conseqüência da guerra e perseguição. A autora cita também a 30 mobilização do trabalhador nas lutas de classe, assembléias, associações de classe, greves, e obras que enaltecessem o trabalhador (AMARAL, 2003, p.175). De certo modo, nesses anos de militância da arte, havia uma pressão deste grupo engajado sobre o artista e o uso da temática social. Segundo Scliar, o que mais o atormentava era justamente saber com que se comunicava, e conseguir "transmitir com eficácia a mensagem de sua arte", com clareza de comunicação (AMARAL, 2003, p.176). Alegava-se que, apesar de a imagem contemplar a temática comprometida socialmente, a obra continuava a circular em espaços da arte. Ou, ainda, que a pintura usava a tela como suporte, e não o mural. A arte "pura" era alienação do artista (AMARAL, 2003, p.176). Neste fogo cruzado, o período de mais intensa militância, os canais mais adequados à difusão dos apelos visíveis em suas obras seriam os jornais, as revistas e os livros, o artista neles atuando como ilustrador, despreocupado, portanto, de fazer um obra única. Nos anos 40, os recursos da reprodução fotográfica nos jornais e revistas eram parcos. Eram ainda os tempos do clichê, processo mais moroso e de qualidade ruim. "Foi um momento em específico, quando os suplementos e revistas literárias associam suas propostas renovadoras com a preocupação com a linguagem gráfica." (CAROLLO, 1988). Surge uma demanda de profissionais da ilustração por parte do mercado editorial. A partir de 1944, Poty passa a trabalhar na Folha Carioca e, posteriormente, em O Jornal e Diretrizes. 2.4 PRONTO PARA IR À CORTE DAS CORTES: BEAUX ARTS Os estudos de Poty na Escola Nacional de Belas Artes terminaram em 1945. O artista continuava a participar dos certames artísticos. Em 1946, recebe mais uma premiação na sessão de Artes Gráficas do Salão Nacional de Arte Moderna, a medalha de ouro. 31 Logo em seguida, receberia uma nova bolsa de estudos15, concedida pelo governo francês para sua permanência na Escola de Belas Artes de Paris, por dois anos (NICULITCHEFF, 2004, p.80). Naquele tempo, estudar na Europa significava muito mais que hoje. Paris, pela tradição das Belas Artes, escola "bisavó" da academia que Poty freqüentou (bisavó porque a "mãe" da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro seria a Academia Imperial, filha da Missão Francesa, quase saída da Beaux Arts de Paris), ainda era um centro artístico muito respeitado. Estudar em Paris, ou melhor, viver lá, corresponderia, em nossos dias, à permanência de um artista em Nova Iorque, centro mundial da arte contemporânea. A idéia de estar no centro do mundo tinha grande dose de romantismo, sobretudo por se imaginar que, deste momento em diante, a vida se transformaria. Em 1946, a Europa tinha nas ruínas as feridas abertas pelos bombardeios e mortes da Segunda Grande Guerra Mundial. Um dos efeitos do evento da invasão nazista na história da arte e do sistema artístico internacional foi a evasão de muitos estudiosos, literatos e artistas da Europa, uma "emigração intelectual" (ARGAN, 2001, p.525) que tornaria os Estados Unidos, a partir de então, o depositário "dos valores da inteligência e da cultura" em nome da democracia. Na França, Picasso, assim como o Cubismo, ainda teriam, nas gerações de artistas que se seguiriam, grande importância. Poty vai à França com o objetivo de aprender gravura. Explica o artista: "Fiz o curso de litografia na École de Beaux Arts, em Paris, com direito de usar o atelier de madeira e metal. Fiz meia dúzia de Litografias para aprender e o resto do tempo flanei pelo interior da França, Espanha e Itália" (apud NICULITCHEFF, 2004, p.81). Sua permanência ali foi de um ano e quatro meses. 15 Segundo Poty, "Fui da primeira turma que a Divisão Cultural da embaixada da França mandou depois da guerra. Pra conseguir a bolsa a gente mandava o currículo dizendo o que pretendia estudar na França [...] acrescentei cartas de recomendação do crítico Sergio Millet e de Augusto Rodrigues" (NICULITCHEFF, 2004, p.80). 32 Quando cheguei na Europa, visualmente eu era zero. Tinha os óbvios Toulouse Lautrec, Manet, [...] Matias Grunewald [...]. A primeira vez que fui ao Louvre mal pude olhar a meia dúzia de Veronese que tem lá. Me fixei na Pietá DÁvignon, em Rembrandt, na Quermesse de Rubens [...]. Depois do deslumbramento inicial é que fui fazer uma seleção. (apud NICULITCHEFF, 2004, p.82). Poty declarou, com certa ironia, que, ao chegar ao Rio, suas visitas ao Museu Nacional de Belas Artes centravam-se nas pinturas históricas de Pedro Américo e Victor Meirelles (NICULITCHEFF, 2004, p.59). Este interesse era a expressão do capital visual de um iniciante nas artes. Seria possível transpor sua frase: "Quando cheguei na Europa, visualmente eu era zero" para: "Quando cheguei ao Rio, visualmente eu era zero". A experiência de ter saído de Curitiba para viver e estudar no Rio de Janeiro se ressignificava, e seu olhar para a arte, já bastante alargado com sua permanência no Rio, se ampliaria imensamente. 2.5 O LEITOR SE MOSTRA ILUSTRADOR Desde criança, a habilidade para desenhar e a propensão ao uso do preto e branco eram perceptíveis em Poty. Depois de graduado, o artista possuía os conhecimentos que a academia lhe transferiu, o domínio sobre a "cozinha"16 da gravura, e um imaginário construído pela literatura. Todo este capital em arte e a rede de relações que construiu lhe renderiam a possibilidade de trabalhar como ilustrador de literatura. Já trazia a experiência de ilustração dos jornais Folha Carioca e O Jornal e Diretrizes, que lhe "possibilitam a profissionalização do ilustrador e permitem a convivência gráfica com os textos impressos, além do exercício constante de captação do sentido plástico do texto literário" (CAROLO, 1988). Assim, em 1956, Poty torna-se ilustrador da editora Livraria José Olympio, trabalhando com contos e crônicas. 16 Modo como os gravadores referem-se ao metier da gravura. 33 A "casa" José Olympio era ponto de encontro do círculo dos literatos. "O livro nacional, editado no país e escrito por autores brasileiros", era o que Sandra Lourenço chama de "novo alimento nativo", produzido pelos editores e intelectuais engajados, naquele momento em que o mercado editorial brasileiro, em passos iniciais, assumia a "missão social de erradicar a miséria espiritual do país" (LOURENÇO, 2005, p.47). Os ilustradores da fase áurea da editora foram Thomas Santa Rosa (19091956), Cândido Portinari (1903-1962) e Luís Jardim. Seu primeiro trabalho foi "Paraná Vivo", de Temístocles Linhares, depois ilustra Guimarães Rosa (1908-1967) (NICULITCHEFF, 1994, p.123) e torna-se o principal ilustrador após o falecimento de Santa Rosa. Segundo Sandra Lourenço, o editor José Olympio "era amigo de Hostílio Araújo, que pertencia ao secretariado do interventor Manoel Ribas, no Paraná" (2005, p.48), o mesmo que concedera a bolsa de estudos no Rio de Janeiro ao artista. Poty conta: "José Olympio ia muito a Curitiba. Esteve várias vezes no Vagão, deve ter visto meus trabalhos lá". Na apresentação do catálogo Poty ilustrador (1988), Antônio Houaiss (1915-1999), talvez um dos mais notáveis homens das palavras no País, afirma: "Na galeria dos nossos grandes ilustradores (mas muito poucos) de nossos livros (numerosos mas ainda poucos), nunca a fusão verbo-ícone atinge tão intrínseca adequação; nunca um ilustrador, entre nós, foi tão ilustrador, tão capaz de dizer o que as palavras não sabiam ou não podiam dizer" (HOUAISS, 1988). Em seu texto, Houaiss diz que outros homens das palavras (editores, autores) perceberam que Poty tinha "seus anseios regidos iconicamente". O que, segundo o autor, o fazia capaz do milagre de tornar concreto, por meio de linhas, traços e eventuais cores, "sua personália literária (e mesmo não literária)". Personália que, "poupando palavras suas, supre a poupança, superando-a, com a imagem, visual, sim, mas sêmica, prenhemente sêmica, prenhemente significativa" (HOUAISS, 1988). 34 Para Valêncio Xavier, Poty, pela abrangência de sua obra como ilustrador de ficção, "seria, neste século XX, o que foi Doré (Gustave Doré) no XIX". Valêncio chamou seus livros de "dois atentados com a cumplicidade de Poty" (MAP, 1997), e revela uma face da ilustração e do ilustrador ao chamá-los de cúmplices. Pois a ilustração não é "nem o espelho dos dados banais da percepção nem bengala ou apoio do acto de leitura, como também não (seria) é um pálido pleonasmo do texto" (DUBORGEL, 1992, p.82). Trata-se de uma tarefa difícil; é uma outra autoria do texto, de certo modo. A ilustração exige comunicar-se por meio de imagens plásticas, das "potencialidades imaginativas, sensíveis e intuitivas do leitor de imagens" (DUBORGEL, 1992, p.73) que as ilustra. A tarefa é ainda mais complicada porque "no interior da imagem e ainda na relação texto/ imagem, opera-se um jogo (uma mobilidade e um prazer)" com o leitor (p.84). A ilustração precisa "funcionar como instrumento de fantasia ou engrenagem de um imaginário, a própria imagem deve conter uma dimensão onírica, uma complexidade plástica e uma amplitude simbólica" (DUBORGEL, 1992, p.74). Este pensamento de Bruno Duborgel é muito próximo do que disse Fernando Sabino [...] sobre a ilustração de Poty: "diante do desenho de Poty, o leitor tem milhões de alternativas. É uma nova leitura que ele tem, combinada àquela que tem do livro" (MAP, 1997). 2.6 ARTICULANDO, DE LONGE, A CHEGADA DA MODERNIDADE NA ARTE EM CURITIBA Há pouca menção sobre as experiências de Poty na Europa. Poty permanece na França de 1946 a 1948, aprendendo a técnica da litografia17. Possivelmente, além do aprendizado técnico, não tenham ocorrido participações em 17 A litografia é uma técnica de impressão em que o suporte da imagem é uma pedra calcária. O material empregue no desenho é oleoso, e por uma série de reações da pedra com a gordura e produtos químicos obtêm-se, na impressão, as cópias da imagem em papel. 35 exposições, mostras, debates. O artista menciona que a primeira visão que tem da França é a das ruínas da cidade, imagem que registrou em desenho (NICULITCHEFF, 2004, p.80). O que se sabe sobre esse tempo de permanência fora do País é que Poty colabora efetivamente na revista de arte e literatura Joaquim (1946-1948). Curiosamente, o artista agia regionalmente. A Joaquim foi uma das responsáveis pelo "processo de infiltração, embate e consolidação da cultura moderna no meio artístico paranaense" (FREITAS, 2003, p.123). O que vinha ocorrendo era uma espécie de absolutismo de uma pintura tradicional, um "provincianismo expresso no movimento paranista com pensamento e estilo nativista na intenção de criar um símbolo identitário", uma defesa de certas imagens e temas defendidos por um grupo de discípulos de Alfredo Andersen. Alfredo Andersen (1860-1935) foi um artista pintor de origem norueguesa, com uma produção pictórica e docente de 40 anos em Curitiba. Sua obra, escola de pintura, técnica, temas, gêneros, foram a maior fonte de informações sobre pintura na cidade naquele momento, e renderam ao artista o título de "pai da pintura paranaense". Seus discípulos eram de certo modo herdeiros, e sentiam-se defensores de tal espólio. Nesse sentido, formaram uma barreira a outra estética que pudesse abalar seu monopólio. Contra este tradicionalismo ferrenho, a revista Joaquim trazia "as primeiras informações mais refletidas sobre a arte moderna" (FREITAS, 2003, p.123). Joaquim era idealizada e escrita por Dalton Trevisan. Nela, Poty foi um articulista que escrevia textos sobre o estado da arte na Europa, produzia ilustrações e mediava relações com escritores e artistas, enfim, ocupou a posição de mediador nas experiências vividas, nas fronteiras culturais a conectar Curitiba com a arte moderna que se fazia no Brasil e no mundo (LOURENÇO, 2005, p.46). 36 Segundo Artur Freitas, a revista foi "um divisor de águas na cultura local" e trazia constantemente "debates sobre os problemas sociais contemporâneos e sobre a função da arte e literatura" (2003, p.92). Poty foi, nestes tempos, um articulador. Fez, de certo modo, o que os modernistas fizeram ao realizarem a Semana de Arte de 22 – abriu caminho aos que viriam atrás dele. 2.7 MODERNIDADE, MODERNISMO E POTY É necessário que possamos ampliar, um pouco, os conceitos que gravitam em torno da modernidade a fim de localizarmos Poty nesse universo como artista representante da Arte Moderna. Vale esclarecer algumas origens e peculiaridades da modernidade, e dela na arte, pois em muitos casos esses conceitos se cruzam e seus territórios se tornam difíceis de ser percebidos. Os termos modernidade, modernismo e modernização giram em torno da cultura de um mundo moderno. Moderno é aquilo que é atual; aquilo que está na moda; ou ainda o que é diferente do passado. Moderno é também o período da História iniciado por volta dos séculos XIV e XV e que se estende ainda hoje, na opinião de alguns; para outros, estaríamos vivendo na Pós-modernidade. O que faria do modernismo, se não acabado, uma forma de conservadorismo cultural (HARRISON, 2001, p.6). Para Harrison, o termo modernidade se refere às experiências e às condições sociais do modernismo, enquanto a modernização está associada à Revolução Industrial e ao processo de desenvolvimento tecnológico (2001, p.6). A palavra modernidade foi empregada, primeiramente à arte por Baudelaire, em 1863, em um ensaio, "Os Pintores da vida moderna", publicado no jornal francês Le Figaro, "para articular um senso de diferença ao passado e descrever uma identidade peculiarmente moderna" (FER, 1993, p.9). Baudelaire definiu esta peculiaridade da seguinte forma: "Por modernidade entendo o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e imutável". Esta concepção só veio a se desenvolver na metade do século XIX (p.9). 37 Harrison (2001, p.6) diz que o termo moderno aplicado à arte não serve para definir toda a produção artística do período moderno. Ele teria mais o sentido de um "valor", aplicado como diferencial de outras produções do período moderno, consoantes a uma essência específica moderna, como dizia Baudelaire. Mas o que dificulta ainda mais a tentativa de especificar seu emprego na arte é o fato de que as obras modernas não necessariamente são vistas como "relacionadas aos processos de modernização ou à experiência moderna" (p.6). Um exemplo dessa difícil classificação do moderno na arte é o caso de Alfredo Andersen, pintor de grande destaque na arte no Estado do Paraná. A curadoria da exposição "Brasil + 500 Anos" inseriu suas nove obras no segmento moderno da exposição, e não no acadêmico, como muitos o julgam. Entre as obras selecionadas, "Paisagem com canoa na margem" (1922) faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo. Aguilar apud Ferreira (2001, p.53-54) diz: "onde a canoa se aloja, numa presença simétrica ao poste, reside o artista que, num só tempo, se anula e se firma no acontecimento cósmico captado". Aguilar pergunta: "[...] críticos preocupados com a marcha dos acontecimentos não percebem a extrema atualidade da obra de Andersen. Como enquadrá-lo dentro de referências cosmopolitas, em grupos modernistas?". A forma do seu pintar é acadêmica, suas escolhas e seu olhar são modernos. O artista escolheu outra cidade que São Paulo ou Rio de Janeiro, o que o colocou à margem, de certo modo fator que o resguardou do rótulo ou do comportamento moderno que lhe seria imposto. Essa dificuldade de situar as terminologias é maior no Brasil ou em outro país colonizado do que na Europa, berço do movimento. Lá, o modernismo significa a marca do rompimento, e aqui, apesar de também romper com ditames consagrados, associa-se a uma outra colonização, como mais à frente será discutido. A concepção modernista na Europa, no final do século XIX e início do XX, entendia que a arte naquele momento representava "um novo começo" (FLIEDL, 1992, p.68). Os artistas, sentindo-se embotados pelas convenções artísticas 38 acadêmicas e sociais, teriam buscado, na arte infantil e na arte dos povos então considerados "primitivos", a inocência ou pureza que julgavam necessárias ao reinício da arte. Consideravam que essas civilizações, ou as crianças, mantinham um "contato íntimo com forças cósmicas", o que lhes fazia ser "fonte de energia criativa" (WILSON, 2005 apud BARBOSA, p.88). As idéias de subjetividade, individualidade, talento do artista – como se o trabalho com a arte fosse superior, inédito ou original, em que o artista figura quase como um arauto, um revelador, um decifrador das coisas do homem de seu tempo – são anteriores a este momento, mas permaneceram. Esse mito do artista surgiu com o "costume de ligar a obra ao nome de seu criador" (KRIS e KURZ, 1988, p.17), fato que não dependeu "da grandeza e perfeição do seu trabalho ainda que fossem objectivamente verificáveis – mas do significado atribuído à obra de arte", como disseram Kris e Kurz: a partir do momento em que o artista fez o seu aparecimento nos registros históricos, certas noções estereotipadas foram ligadas à sua pessoa – preconceitos que nunca perderam inteiramente o seu significado e que ainda influenciam a nossa idéia de artista (1988, p.17). Uma outra marca fundamental do modernismo era o estilo: "todos, artistas e crianças, tinham a obrigação de inventar um estilo de arte individual (WILSON apud BARBOSA, 2005, p.91). O artista passaria a ser acompanhado por seu estilo, uma das marcas do moderno. Esta marca empregue no desenho, na gravura e nos painéis passaria a responder pelo criador. A construção de um estilo não era só uma obrigação, mas uma necessidade ao artista moderno. O estilo é que possibilitaria o reconhecimento do homem na obra, seria ele que daria ao artista o diferencial no grupo, ao mesmo tempo em que o filiaria à escola modernista, quer fosse futurista, raionista, expressionista, ou das outras ramificações que o movimento teve. Vinha do estilo a possibilidade de ser admirado enquanto pertencente ao movimento, ou mesmo de ser copiado ou imitado. 39 O estilo é marcado pelo maneirismo18 do artista, empregue nos meios tradicionais da arte e que, uma vez reconhecido, se transformaria nessa marca registrada. Como marca, o estilo aparece na linguagem do sistema de arte: os Modigliani, do Museu de Arte de São Paulo, ou ainda: o Picasso da Guerda Feuerabend, por exemplo. O nome do artista é usado da mesma forma que a grife. Este emprego é pertinente ao sistema e ao mercado da arte, quando a marca passa a significar o valor. É "o feitiço do nome do mestre", como disse Walter Benjamin (apud BOURDIEU, 2005, p.287), que passa a valer. Surgem daí as perspectivas que atendem ao mercado e sua demanda, a raridade do produto, o tempo do produto, a durabilidade determinando o valor, e assim por diante. Uma outra marca do artista moderno seria a persona. Circunspecto como Goeldi, excêntrico como Salvador Dalí, e até os tímidos, que não faziam cena alguma, e se mostravam avessos aos contatos sociais – como pode ter sido o caso de Poty –, mantinham uma imagem. Não que ele estivesse mentindo. Este traço de seu perfil é salientado em suas biografias e, com certeza, passou a ser convalidado socialmente: "com esse temperamento retraído de seminarista fracassado, Poty revela na sua arte uma rara compreensão da vida e uma sensibilidade apta a interpretar os sentimentos do mundo" (NICULITCHEFF, 1994, p.80). Os artistas se faziam representar e passavam a se representar. Envernizar suas obras na abertura das exposições era parte do rito que o tempo dispensou, mas mostrar-se próximo à imagem mítica do artista permaneceu como parte dos feitiços do mestre, ou como parte do jogo social. 18 Maneirismo não está aplicado como o movimento artístico seguido à Renascença, mas à questão da maneira do fazer; qualidade individual de determinado artista fazer sua obra. O emprego se aproxima à caligrafia como assinatura, ao representar quem escreve. O termo Maneirismo vem de manier, em francês, e significa maneira. Historicamente o Maneirismo se caracterizou pela imitação da maneira de colorir de Michelangelo Buonarotti. 40 2.7.1 O Modernismo no Brasil No caso da arte brasileira, poder-se-ia dizer que o modernismo foi parido. Se há a grande dificuldade de situá-lo na história da arte mundial, dando ao cubismo o marco mais aceito entre quem discute seu início, no Brasil, a Semana da Arte Moderna de 1922 é "a primeira estratégia cultural moderna brasileira" e inaugurou a modernidade da arte no País. Pela "própria dinâmica de sua operação 19cultural, será sempre da ordem do inesquecível. Com a condição, inerente à modernidade, de que se possa sempre 'esquecê-la', superá-la com novos gestos artísticos que consigam, positivamente, negá-la" (BRITO, 1983, p.17). Só São Paulo, e não o Rio de Janeiro, poderia ter importado o Modernismo como fez. Por sua "empolgação pelo progresso civilizatório" (ZANINI, 1983, p.507), pode-se afirmar que São Paulo estava para o Futurismo assim como o Rio para o Art Nouveau20. O Rio, "muito mais internacional, como norma de vida exterior, [...] porto de mar e capital do país", possuía "um internacionalismo ingênito", como diz Walter Zanini. Uma "burguesia riquíssima" e que "não se achava preparada a encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista, ao nível da aristocracia intelectual paulista", como dizia Mário de Andrade (apud ZANINI, 1983, p.507). Os artistas participantes e proponentes do movimento modernista da Semana de 22 pertenciam, em sua maioria, à classe dominante. Daquele grupo quase que a maior parte tinha permanecido na Europa, estudado com artistas ou instituições no momento considerado como o "retorno à ordem"21. Para o evento, o grupo 19 O Futurismo foi um dos movimentos do Modernismo na Europa, na primeita década do século XX, e teve ligação com a vida urbana, a modernização tecnológica e o movimento. 20 O Art-Nouveau foi um movimento francês do século XIX que, conforme Argan, "tendeu a se inserir na sociedade, a interpretá-la, a pôr-se em uníssono com o ritmo de sua existência" (2001, p.130). 21 O período posterior à 1ª. Grande Guerra Mundial ficou conhecido como retorno à ordem. Nele os artistas de vanguarda dos primeiros vinte anos do século XX se reaproximariam da abordagem tradicional da imagem. 41 desfrutando de grande status, junto à elite que lhe pode confiar incentivo, deixa "patente as camadas de onde provinha a primeira geração do Modernismo brasileiro" (ZANINI, 1983, p.507). A proposta do movimento trazia diversos fatores avessos ao pensamento do moderno; a escolha pela brasilidade como tema ― sujeição do artista ao assunto, repudiada na Europa desde fins do XIX –, ao passo que lá fora se falava em universalidade ao invés de localidade; além da dialética interna, forças opostas como uma pintura expressionista junto da pintura com esquemas cubistas, quase amigas, como suas pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral22 (BRITO, 1983, p.16-17). No desdobramento do evento de 1922, surgem agrupamentos. Além dos artistas participantes da Semana de Arte Moderna, outros se reúnem. Seria o agrupamento a fortalecer os artistas dos anos 30 e da década seguinte. O sentido de fortalecimento é claro como representatividade e expressão, sobretudo porque, em alguns casos, esses não contavam com o incentivo ou encorajamento de uma classe social dominante, seriam mesmo autodidatas com origem humilde. Em São Paulo, o Clube de Arte Moderna, o CAM, de orientação socialista, dizia: "detestamos a elite – não temos sócios fundadores" (ZANINI, 1983, p.582), e rivalizava com a SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), ainda com muitos representantes da primeira geração modernista, que possuía um caráter mais festivo do que formador de público, como o CAM, e com a "ausência de arte social entre nós", como disse Mário de Andrade apud Zanini (p.582). O Rio representava o berço da arte acadêmica no País, irradiando as marcas da tradição neoclássicas, românticas e realistas aclimatadas ao trópico. A tradição da Academia iniciada no tempo do Império com a academia imperial de arte, transformada em 1890 em Escola Nacional de Belas Artes, impediria com muita força o processo da implantação modernista na capital. 22 Tarsila do Amaral não participa da Semana de Arte de 22 mas faz parte do grupo de artistas que daria seqüência ao movimento. 42 Nos porões da ENBA surgiria o Núcleo Bernadelli – Movimento Livre de Artes Plásticas. Seus membros, José Pancetti, Takaoka, Eugênio Sigaud, entre outros, tinham "a pobreza e boemia de seus mantenedores", assim como a história do próprio Núcleo, com diversas sedes e sempre em dificuldades. À frente do Núcleo estavam Bruno Lechowski, Quirino Campofiorito e Manuel Santiago, e a orientação contrária aos padrões acadêmicos da Belas Artes era sua característica. Da mesma classe social eram oriundos os artistas do Grupo Santa Helena, de São Paulo, formado por pintores descendentes de origem italiana e condição proletária, que exerciam pintura decorativa em residências, vínculo profissional que os reunia. O grupo alugava um ateliê no edifício Santa Helena, inspirador de seu nome. A obra destes pintores expressava um modernismo contido (ZANINI, 1983, p.586). Poder-se-ia afirmar que a genealogia do modernismo no Brasil teria Anita Malfati e Lasar Segal como a primeira geração; os artistas participantes da Semana de Arte Moderna de 1922 como a segunda; e os artistas vindos destes agrupamentos, Núcleo Bernadelli e Santa Helena, formariam a terceira geração, ou a consolidação do modernismo na arte brasileira. 2.7.2 Poty no Modernismo Como foi dito no início deste capítulo, Poty ingressa na ENBA em tempos de mudança. E não foi unicamente a graduação a lhe permitir a participação no sistema da arte moderna. Poty tinha todos os requisitos: talento manifesto na infância, "a criança prodígio"; formação acadêmica, rebelada por uma atitude que a contradizia; investimento nos ciclos sociais do sistema; participação e premiação nos salões; a permanência na Europa; engajamento social, ou filiação a uma escola e criação de um estilo, ou ainda, como diz Nilza Procopiak (1994, p.8), "uma impressão visceral intrínseca [...] que permanece comparável a uma marca – uma espécie de carimbo mental indelével". 43 Depois de apresentado e inserido em um sistema social muito específico, retornar a Curitiba, ao bairro do Capanema, seria como colocar em um aquário uma baleia azul. Sem as milhas de oceano para a migração, sem alimentação específica, sem seus pares, sem azul, a baleia... A comparação pode ser vulgar, mas a volta de Poty ao mundo de Napoleon significaria abrir mão de todo o investimento na própria carreira e, contraditoriamente, uma perda para a sociedade do Paraná, que havia subsidiado seu aprimoramento. Ao retornar ao Brasil, Poty permanece no Rio de Janeiro e age como um disseminador da arte da gravura pelo País. Promove cursos, monta atelieres desta arte em diversas cidades brasileiras. O fato de não ter retornado ao Paraná parece ter colocado o investimento do Estado em sua formação como fundo perdido. Mas, Napoleon já era Poty, e Curitiba e o Paraná permaneciam sem um sistema de arte que o comportasse em suas novas dimensões, a dimensão do moderno. Da Europa, contudo, o artista participa da articulação da operação que introduziria, mais tarde, a modernidade da arte no Paraná. Pode-se dizer que Poty, ao alcançar reconhecimento na arte, não precisou abrir o caminho. A arte moderna já era o padrão exigido no sistema cultural; era a condição para o artista obter reconhecimento. Assim, na tentativa de inseri-lo na genealogia do Modernismo na arte brasileira, pode-se supor que Poty faz parte da terceira geração de artistas modernistas brasileiros. Poty soube trabalhar dentro das exigências do sistema, após seu ingresso e término na academia de arte, a formação superior em tempos em que a raridade do diploma conferia a ele superioridade com relação aos demais, a passagem pelos Salões de Arte e a premiação, a conquista do espaço como ilustrador de autores reconhecidos, o domínio técnico reconhecível sob o estilo, as premiações que lhe deram distinção no grupo. Poty estava inserido no sistema artístico, um artista moderno e consagrado. 44 3 O CONCEITO DE ARTE E A METODOLOGIA DA PESQUISA 3.1 O CONCEITO DE ARTE Este trabalho está fundado no conceito de que a arte é produto da sociedade e da cultura em que foi gerada. A arte e as questões que a cercam, como criação e criador, não estão condicionadas aos mitos do prodígio, do talento, como foram pensadas no passado, mas encontram-se sob as premissas de sua origem, contexto e criadores, assim como dos observadores. Trata-se de uma abordagem sociocultural da arte, conforme Franz (2003), Hernández (2000), Efland, Freedman e Sthurr (2005) e Bastos (2005). Esse conceito implica a necessidade de repensar algumas concepções modernistas da arte, como a utilização de termos específicos no campo técnico e teórico, na caracterização e qualificação da arte, como Bourdieu (2005) analisou em Gênese histórica de uma estética pura. Um emprego específico da linguagem, quando a arte passou a se tornar "assunto de iniciados", como diz Rivitti (s/d). Já nos anos 70 Canclini discutia a situação da sociologia da arte em seu livro A produção simbólica, teoria e metodologia em sociologia da arte (1979), e analisava a arte em sua relação com a cultura que a gerou, "a obra a explorar os fenômenos estéticos como produtos das estruturas que os determinam e das instituições que os promovem" (CANCLINI, 1979, p.109). Em uma passagem, o autor afirma: O mais criador começa sempre sendo sujeito no sentido de estar sujeito a uma estrutura. Isso foi comprovado a propósito das inovações das vanguardas: a originalidade edifica-se a partir de condições sociais que a tornam possível, as manifestações subjetivas são, em primeiro lugar, relações objetivas interiorizadas (CANCLINI, 1979, p.113). Diversos fatores abalaram os paradigmas daquele modo de pensar e surgiram novas possibilidades do relacionamento humano com a obra de arte, o local do criador, o artista. Questões como a problemática da autoria, a retomada da 45 crítica cultural, a firmação de novas identidades e suas múltiplas representações, o uso dissonante de beleza nas obras, o pluralismo cultural, a relação passadopresente, a dupla codificação e mais (EFLAND, 2003, p.65), que na atualidade permeiam os discursos de artistas e diversos pensadores, passando a compreender a criação de sentidos pela arte como a marca da contemporaneidade. O pensamento de Hernández (2000, p.129) sobre a arte ser "uma forma de conhecer e representar o mundo" é abrangente a diversas culturas. Para ele, A pós-modernidade, entre outras reflexões, abriu portas à importância de olhar a "arte" como uma representação de significados. Isso significa que, diante das obras, não há olhares nem verdades absolutas, ou aproximações formalistas (que se considere como uma categoria socialmente construída), mas sim que dependem do tempo, do lugar e do contexto. Isso faz com que a linguagem da arte fique sujeita ao escrutínio dos códigos simbólicos e das convenções culturais. Isso condiciona e possibilita as diferentes formas de interpretação (HERNÁNDEZ, 2000, p.123). Esses dados se apresentam nos processos de criação e recepção tanto de artistas como de educadores em arte que não se entendem inseridos em uma diversidade de olhares que as diferentes culturas podem dirigir à arte. Pierre Bourdieu (apud MORAIS, 1998, p.173) disse que "toda arte é, de alguma maneira, feita duas vezes. Pelo criador e pelo espectador, ou melhor, pela sociedade à qual pertence o espectador, e em sua situação cultural específica", e Bauman apresenta uma idéia bastante próxima em seu livro O mal-estar da pós-modernidade, quando afirma que "mesmo as mais universais das noções nascem e adquirem forma na experiência particular das pessoas vinculadas a um lugar e tempo específico" (1998, p.161). Carlos Rodriguez Brandão diz que é preciso opor uma compreensão de cultura como uma dimensão diferenciada de possibilidades de unificação da própria vida social, a partir daquilo que torna possível esta vida ser humana, ou seja, realizada entre homens e através das relações humanas: o significado. (BRANDÃO, 2002, p.118). Justamente por pensarmos em significação e cultura é que tomamos as propostas de Paulo Freire (apud FRANZ, 2003) em educação como uma noção 46 sobre a realidade dos contextos do educando e do educador, o que exige que esta educação os perceba em sua cultura. Teresinha Franz diz que, ao pensarmos a arte socioculturalmente por uma abordagem compreensiva e dialógica como ponto de partida, é indispensável que o ensino da arte apreenda [...] as necessidades reais do educando, considerando sempre sua história pessoal e social, respeitando seu processo individual de conhecimento e pela exigência do compromisso político do educador, através do projeto educativo que desenvolve (FRANZ, 2003, p.144). A arte não deve ser entendida como diversa "do resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações dialogais com outros homens", como afirmou Freire (1974 apud MIZUKAMI, 1986, p.41). Ela precisa ser abordada em sua rede de relações. É na tentativa de alcançar um conceito de arte e, ao mesmo tempo, "uma teoria da cultura e não um empreendimento autônomo", como afirma Geertz (2005, p.165), que o presente trabalho investiga o modo como professores, na cidade de Curitiba, compreendem, se relacionam e se apropriam de obras de arte, transpondo-o à prática pedagógica. 3.2 A METODOLOGIA DA PESQUISA A presente pesquisa pretende fazer uma aproximação teórica, reflexiva e crítica que permita entender melhor a relação entre a obra de Poty Lazzarotto e o ensino de Artes Visuais na cidade de Curitiba. Para alcançar esse fim optou-se, neste primeiro momento, por realizar um estudo teórico (bibliográfico e documental). Trata-se de um estudo qualitativo interpretativo crítico com conseqüências educativas. Como disse Carr (1989, p.39), "a investigação educativa não pode referirse unicamente a problemas teóricos, mas precisa inferir uma mudança, dentro dos fins práticos segundo os quais se conduzem as atividades educativas". 47 Kemis (apud CARR, 1995, p.31) defende que "a ciência crítica social da educação não só é um meio para a ilustração individual [...], mas uma forma de ação social coletiva conectada profundamente com os ideais de emancipação da realidade, da justiça e da liberdade". Para o autor, uma ciência social crítica é uma espécie de teoria social que, de distintas formas relacionadas entre si, pretende a crítica ideológica (crítica de natureza das relações sociais de produção, reprodução e transformação social, incluindo as circunstâncias e consciências das pessoas, enquanto indivíduos, membros de grupos e portadores de cultura (CARR, 1995, p.31). Esse mesmo autor entende que "esta forma de ver a relação entre a teoria e a prática leva consigo uma idéia de política: a idéia de política do debate" (CARR, 1995, p.36). Carr compreende que os problemas educativos surgem quando as práticas que vêm sendo empregadas na educação estão inadequadas, de algum modo, a seus propósitos, o que teria possível causa no vazio entre a teoria e a prática. Para ele, as pesquisas e esta metodologia "não surgem do vazio teórico, mas que estão determinadas pelos antecedentes teóricos e surgem do confronto com eles" (1989, p.40). No caso aqui proposto, percebe-se a falta de reflexão sobre a obra de Poty Lazzarotto no ensino da arte em Curitiba. Uma das hipóteses para o "vazio entre a teoria e a prática" é que a compreensão das professoras sobre a obra é reduzida e dominada pelo sistema e pelas ideologias do poder às quais a obra do artista veicula. Para buscar preencher esse vazio, esta discussão sobre o caso busca apoiar e incentivar posturas críticas a respeito do uso que se faz da obra e do desdobramento deste uso político nas escolas. Para alcançar os objetivos desta pesquisa é necessário que se investigue: quem são as professoras proponentes desses projetos e como a dominação ocorreu em suas carreiras e formações. Para isso, abrem-se questões complementares: 48 1. Quem são essas pessoas? 2. Como se construíram? 3. Como constroem seus projetos pedagógicos? 4. Como vêem a obra de Poty? 5. Como transmitem sua compreensão? As questões 1, 2 e 4 serão respondidas através de uma entrevista semiestruturada. Como os projetos desenvolvidos que ora se analisam foram construídos interdisciplinarmente, e muitas das equipes não mais atuam na mesma escola, preferiu-se a entrevista com as professoras de Arte. A entrevista semi-estruturada é uma técnica que, segundo Gil, torna a coleta de dados mais flexível e é desenvolvida de forma espontânea (2006, p.119). 3.3 ESTUDO TEÓRICO O estudo teórico pretende fundamentar, pelo pensamento de diversos autores, a crítica sobre o problema da dominação das professoras no ensino de arte em Curitiba. Para isso, toma-se a linha de pensadores da Pós-Modernidade como suporte conceitual: Michael Foucault, Jean François Lyothard, Jacques Derrida, a fim de discutir relações de poder. Aproximando a discussão do ensino da arte, tomam-se os autores Fernando Hernandéz (2000, 2003, 2001, 2005), Arthur Efland, Karry Freedman, Patrícia Stuhr (2003), Teresinha Franz (2003), Giroux (2003, 1996, 1997), Peter Mclaren (1993), Paulo Freire (2006, 2005, 2004, 1992) da Pedagogia Crítica e da Pedagogia Crítica da Arte, com o objetivo de pensar as relações de poder, representação e identidade no ensino da arte que utiliza a obra de Poty Lazzarotto. Para pensar o sistema social e "ajudar a representar os fenômenos socialmente produzidos pelas distintas configurações dos sistemas escolares" (SANCHO, p.49), toma-se da Sociologia: Pierre Bourdieu (2005, 2003, 2001, 1998, 1992), Renato Ortiz (2003), Sérgio Micelli (2001, 1992), Sandra Lourenço (2005), Norberto Bobbio (1997) e Zygmunth Bauman (2005, 1998), entre outros. 49 O conceito de ideologia para se analisar o poder na obra das professoras é o de John Thompson, que compreende ideologia como "o pensamento do outro, o pensamento de alguém diferente de nós" (2002, p.14). 3.3.1 A Análise Documental A estratégia da análise documental vale-se de "materiais que não receberam ainda um tratamento analítico" (GIL, 2006, p.66). Meu acesso a esses projetos deu-se pelo fato de que as autoras desses receberam minha orientação em 2005 e 2006. Seus registros aguardam a disponibilização da SME no Portal Saber Curitiba, sítio eletrônico da instituição. A análise documental tem o sentido de "captar a evidência do sentido de uma atividade" (GIL, 2006, p.39), de perceber a posição e a dificuldade das professoras frente à elaboração de um projeto pedagógico de ensino na área de artes visuais. A análise será utilizada para buscar aquilo que está implícito, para revelar detalhes do contexto, por detrás do texto. Este caminho exige uma observação apurada para que se perceba a proposição de uma força ideológica oculta no conteúdo manifesto nos projetos. Quatro projetos que utilizaram a obra de Poty Lazzarotto como tema servirão para uma aproximação ao problema da compreensão das professoras. Trata-se de uma aproximação pela densidade que a abordagem da compreensão exigiria. Limitado pelo tempo, este estudo será aprimorado de modo mais criterioso e embasado no futuro. Para essa aproximação, foram considerados estudos de Perkins (1995), Wiske (1999) e Franz (2003). 3.3.2 Procedimento de Leitura Será transcrito dos projetos aquilo que parece relevante às discussões, da seguinte forma: na fundamentação teórica e justificativa se lerá o que as professoras acreditam; seus objetivos permitirão ver quais mudanças elas almejam 50 no comportamento dos educandos; e, nos recursos que apresentam, será lido o que elas ofertam aos educandos para alcançarem o que desejam. Para essa leitura dos níveis de autonomia e dominação criou-se um instrumento específico de leitura (quadro 2). IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO LEITURA DOS TEXTOS Em que a professora acredita? Contido na justificativa e fundamentação teórica. Que mudança almeja no comportamento do educando? Contido nos objetivos. O que ela oferece para a mudança do comportamento dos alunos? Contido nos recursos. Na análise dos documentos foram empregadas as categorias de leitura: autonomia e dominação, inspiradas nas idéias de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido), identificando a reprodução da ideologia como sua conseqüência. Foi analisado como conteúdo o que foi dito, como manifesto, e o que não foi dito, como latente, entendido como dominação e autonomia. É a partir desta análise que foram apresentadas evidências de autonomia ou dominação, seguindo as categorias mencionadas a seguir. Para pensar a dominação tomou-se o pensamento de Freire (2005, p.33): "Os que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos". As seguintes categorias foram criadas para a leitura da dominação no projeto das professoras: Primeiro momento: o ingênuo é dominado; o processo da dominação. Como pensaria: • Passaria a "hospedar" este pensamento clandestino do dominante em si, sem consciência e crítica que lhe permitisse percebê-lo. Assumiria como relevante o fato de o artista Poty Lazzarotto ter nascido e ter sido criado em Curitiba. Como agiria: • Passaria a argumentar defendendo o artista, usando o discurso oficial. Justificaria a escolha do tema de seu projeto pela oferta pública da obra de Poty na cidade. Obedeceria a quem lhe transmitiu estas idéias, e sequer consideraria desenvolver a crítica com seus alunos. 51 Segundo momento: o ingênuo passa a pertencer ao dominador. Como pensaria: • Dominada, passaria a ser a "hospedeira" da ideologia, aceitando a dominação integralmente. • Exibiria o conhecimento que julgaria ter construído. Passaria a defender a causa da identidade paranaense. • Valer-se-ia do discurso oficial. Como agiria: • Se identificaria como paranaense por aquele discurso de identidade. • Não apresentaria oposição e empregaria a obra pública para o pertencimento e a construção de identidade. Terceiro momento: o ingênuo, dominado, passa a reproduzir. Como pensaria: • A professora passaria a reproduzir a ideologia sem perceber além do que vê, acreditando no discurso como história. • Sem crítica, ela se tornaria cúmplice pelo silêncio. • Ocorreria seu reconhecimento do talento do autor, associando-se à cidade ou ao Estado. Como agiria: • Tornar-se-ia reprodutivista em sua prática, ao repassar os conteúdos que lhe foram inculcados, sem analisá-los. • Sem conhecimentos metodológicos e na área da Artes Visuais, ela usaria a releitura para a interpretação. • Apresentaria a seus educandos os elementos paranistas como signos de identidade, ou sequer apresentaria seus significados. • Contextualizaria a obra usando os argumentos do discurso oficial. A autonomia é a consciência do indivíduo frente aos seus valores e aos valores da classe dominante, diante dos quais se posiciona criticamente. Para a leitura da autonomia, cabe citar o pensamento de Freire (2005, p.102): "Ser professor exige de mim uma decisão. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê". Na construção dessa autonomia, teríamos os seguintes momentos da prática docente: 52 Primeiro momento: critica, constata. Como pensaria: • A professora se questionaria sobre o que lhe é apresentado, que obra é esta, sobre o que ela representa, por que foi feita dessa maneira. Como agiria: • Analisaria a obra delimitando o período, recortaria fatos que lhe agregaram significados, apresentaria outros argumentos e representações, para mostrar a razão de ser dos fatos. • Contextualizaria amplamente, apoiando-se na sua leitura da realidade, relacionando-a com a vida dos seus alunos e com a sociedade contemporânea. Segundo momento: critica, constata e acumula. Como pensaria: • Guardaria para si os questionamentos que faz, colecionaria informações. Como agiria: • Reteria a informação, a exibiria, não a usaria para a transformação social. Terceiro momento: critica, constata e intervém. Como pensaria: • A professora teria esclarecimento. • Transformaria a si e permitiria a transformação do outro. • Faria associações entre as obras de arte e o estilo do artista. • Mostraria que as narrativas têm comprometimento com os símbolos. • Para desvelar, ela desconstruiria a imagem. • Possibilitaria a desconstrução da obra como conhecimento para o exercício de cidadania crítica e desvelamento do fazer que se mantinha misterioso. • Perceberia os discursos etnocêntricos, machistas e racistas na representação, e faria com que os alunos os percebessem. • Buscaria o conhecimento vivo e situado relacionado à cultura dos educandos. Como agiria: • Buscaria outras informações porque conseguiria se indagar. • Constataria e interviria na realidade por entender que a intervenção educa a ela e aos outros. • Compreenderia estar em processo, que há mais a descobrir, que está incompleta. Romperia o ciclo da reprodução correndo o risco, investiria em práticas diferenciadas, atuaria compromissada, tendo percepção da teia de conexões com a qual a obra e tais conteúdos estão relacionados. • Analisaria para distinguir relevâncias e alternativas a serem tomadas. • Saberia que a realidade é apenas uma das possibilidades, e que esta precisa ser alterada. 53 4 O CARÁTER IDEOLÓGICO NA OBRA 4.1 CURITIBA RECEBE AS MARCAS DE POTY O surgimento da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais23 é um dos muitos mitos criados para fortalecer simbolicamente a cidade. Na lenda desse surgimento, o Cacique Tindiquera teria cravado um cajado no solo, dividindo o espaço dos brancos e índios, dando aos brancos o bairro do Atuba, onde seria construída a primeira igreja católica. Naquele momento o Cacique teria dito: CORE-E-TUBA (muito pinheiro), e esta seria a origem do nome Curitiba. No trabalho Curitiba 300 anos de memória oficial e real, coordenado por Welte (apud FERREIRA, 2004), o nome indígena "Coré-Etuba" significa "muitos pinhões". Anteriormente a Curitiba e à Vila de Nossa Senhora dos Pinhais, a terra pertencia aos índios Tingüis (FERREIRA, 2004, p.12). A colonização do Estado pelos portugueses inicia-se no litoral, tendo sido a busca pelo ouro o fator econômico determinante na formação dos povoados iniciais no planalto (FERREIRA, 2004, p.12). Segundo esse autor, o português Eleodoro Ébano Pereira foi o administrador das Minas das Capitanias do Sul, no ano de 1654, mas a data oficial de fundação da cidade é 29 de março de 1693 (FERREIRA, 2004, p.13), quando o povoado teria sido elevado à categoria de Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Sua localização foi um fator a dificultar o avanço econômico, distante de Paranaguá, a maior potência econômica da Província, tendo entre elas a Serra do Mar. A extração da erva-mate e o gado foram os primeiros sinais de crescimento econômico na região. Por se localizar entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, Curitiba transformou-se em ponto de parada dos tropeiros no século XVIII. Estes homens buscavam gado selvagem no sul, levando-o a São Paulo, e traziam o gado muar 23 Curitiba foi chamada de Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais antes de se chamar Curitiba. 54 pelo caminho do Viamão e Sorocaba (FERREIRA, 2004, p.13). A permanência desses mercadores de gado significava uma interferência na economia. Curitiba servia de posto de negociações e ofertava alguma segurança, principalmente para a contratação de pessoal para o transporte dos valores (p.14). A partir do século XIX inicia-se o fluxo das imigrações. "Os primeiros colonos alemães chegaram ao Paraná em 1829, estabelecendo-se em Rio Negro, e, a partir de 1830, em Curitiba. Teriam sido os alemães e italianos os primeiros a exercer atividades urbanas, deixando o campo (FERREIRA, 2004, p.14). A cidade já existia, mas faltava um símbolo de força para dar identidade à população. ficou decidido que o símbolo do Paraná seria o pinheiro "araucaria angustifolia", árvore que representava todas as aspirações que o grupo desejava para seu estado: "força", "altivez", "confiança", "austeridade", "perenidade" e outros adjetivos. O símbolo ligaria todos os paranaenses, pois se estendia praticamente a todo o território do estado. Criou-se, também, nesta época, a terminologia paranista para divulgar os anseios de amor e trabalho pelo estado (FERREIRA apud DUDEQUE, 2004, p.17). Esses ideais tornavam-se públicos pela revista Ilustração Paranaense e pela revista do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. Esta última recebia investimento do Estado para a publicação das histórias paranistas na soma de 3:600$000 (PEREIRA, 2000, p.133). O papel que o instituto representou no Paraná foi o mesmo que o Instituto Histórico e Geográfico Nacional exerceu no império: o de escrever uma história oficial. Sob a grandiosidade natural da Araucária a cidade desenvolveu simbolicamente um mito digno de estampar a bandeira e o brasão. Nos anos 40 do século XX, a modernização é planejada e tem-se um projeto de inovação urbana para um crescimento organizado de Alfredo Agache. O Plano Agache estabelecia como prioridades "o saneamento, o descongestionamento de vias e a estruturação de centros para permitir o desenvolvimento da vida social e comercial". Não foi inteiramente implementado, restando dele apenas "as grandes avenidas, as galerias pluviais da Rua XV de Novembro; o recuo obrigatório de cinco metros para novas construções; a Zona Industrial, atrás da Estação Ferroviária; a 55 previsão de áreas para o Centro Cívico e o Centro Politécnico; e o Mercado Municipal" (www.curitiba.pr.gov.br/pmc/curitiba 10/08/2006). Os anos 50 mantinham a influência da era Vargas: a centralização de poder do Estado Novo (1930-1945) na administração estadual. Projetos grandiosos, assim como monumentos, marcam datas, fatos, personalidades, servindo de registro de marcas da passagem do Estado e da cidade de Curitiba à modernidade. À frente do Estado, está Bento Munhoz da Rocha Netto (1905-1973). Bento Munhoz foi um Juscelino Kubitschek local, seguidor do populismo de Getúlio Vargas e comprometido com a modernização. Foi ele quem criou a nova sede do poder, o Palácio Iguaçu e o Centro Cívico e sua arquitetura modernista. E ficou conhecido como "o ferrenho porta-voz do Paraná, para o qual queria construir um futuro radioso" (FERREIRA, 2004, p.26). Seu governo comemorou o Centenário de Emancipação Política do Paraná, em 19 de dezembro de 1953. O maior dos marcos dessas comemorações é a Praça 19 de Dezembro. Segundo Adalice Araújo, "por sugestão de Erbo Stenzel Poty foi convidado pelo então governador Bento Munhoz da Rocha a participar dos trabalhos da Praça 19 de Dezembro, alusivos ao primeiro centenário do Paraná" (2006, p.85). Erbo Stenzel foi um escultor subsidiado pelo Estado em seus estudos na Escola Nacional de Belas Artes, assim como seu colega no projeto da praça Poty Lazzarotto. Poty executou o painel de azulejos, na alegoria que conta a chegada de Zacarias Góes de Vasconcellos, primeiro presidente da província. Desde sua instalação, pode-se dizer que a Praça 19 de Dezembro instaurou, em Curitiba, o Paraná. O monumento pode ser pensado como sendo o marco inaugural da modernidade do Estado, em que o homem forte do Paraná24 se ergue em marcha ao futuro. 24 O homem do Paraná é representado pela escultura em granito que integra o monumento ao Centenário de Emancipação Política do Paraná. Seu autor é Umberto Cozzo. Desde sua instalação, a escultura recebeu o apelido que caracterizou a praça, "Praça do homem nu". Para Erbo Stenzel, Cozzo e Poty, artistas que criaram o projeto do monumento, "o homem nu" seria a representação do homem paranaense que caminha em direção ao progresso. 56 Nos anos sessenta, urbanistas da Universidade Federal do Paraná procuram a prefeitura levando um plano para a cidade. Segundo esses profissionais, o crescimento das cidades brasileiras naquela década não seria muito grande. O plano veio a ser implantado mais tarde, com a promoção do seminário "Curitiba de Amanhã" por vários bairros da cidade, discutindo-se com a comunidade o que seria o Plano Diretor (www. curitiba. pr. gov. br/pmc/curitiba 10/08/2006). Foi a partir de 1971 que este plano saiu do papel. Havia sido eleito para prefeito Jaime Lerner, arquiteto e urbanista. Sua equipe "coloca em prática o Plano Diretor, do qual participara desde seu início, quando presidia o IPPUC - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba" (www.curitiba.pr.gov.br/pmc/curitiba 10/08/2006). É possível pensar que, sobre o plano, a malha urbana desenvolveu-se organicamente, em uma direção. Anéis centrais representavam o foco políticoeconômico; e, anéis periféricos, os bairros menos favorecidos, até os bolsões de miséria que vieram a surgir, e que naquele momento estariam instalados no chamado "Anel Verde", um cerco de mata nas divisas da cidade. No anel central da cidade, como em todas as outras cidades, tivemos o desenvolvimento comercial e econômico. É neste centro que as marcas do poder precisaram ser fixadas. Muitas dessas marcas trazem a assinatura de Poty Lazzarotto. São tantas, que é difícil passar pela capital do Paraná sem ouvir falar do nome, ou, ainda, sem ver uma obra do artista. Caso o visitante entre pelo Aeroporto Internacional Afonso Penna, lá estão dois painéis; se vier pela rodovia BR-101, há um outro painel. Não tendo sido nas entradas, esse encontro se dará por um passeio turístico, ou mesmo circulando rapidamente pelo centro comercial da cidade, onde estão mais cinco obras do artista. Quem quer que visite, passe em frente ou vá ao teatro, poderá ver o painel "O teatro no mundo" (1967), no Teatro Guaíra. Precisando de um livro e 57 buscando-o em uma das maiores livrarias da cidade, verá a reprodução dos desenhos e fotos de Poty. Em dada época do ano, verá a ilustração, feita pelo artista, de São Francisco, o padroeiro da tradicional Festa da Igreja da Ordem, no cartaz que divulga o evento, afixado no interior dos ônibus do serviço municipal de transporte público. Seu nome batiza logradouros públicos, como a praça de alimentação do Mercado Municipal, decorada com um painel em azulejos, e também ilustra cardápios nos restaurantes. Seu desenho que retrata um pinhão figura como logomarca da lei de incentivo à cultura. Muitos dos produtos mecenados pela Prefeitura com a renúncia fiscal chegam à comunidade pelas escolas e outras instituições – livros, cartazes e convites, nos quais aparece, obrigatoriamente, a logomarca do incentivo à cultura (CEMIC, 1994). Após a morte do artista, a Prefeitura construiu, em um parque, o memorial Poty Lazzarotto, com um jardim de inspiração francesa (Versailles). Suas obras são veiculadas de modos diversos, como no demonstrativo anual das despesas de água dos habitantes de todo o Paraná (SANEPAR, 2005). Espalhados pela cidade são 60 painéis em dimensão monumental (LOURENÇO, 2003, p.37), em praças, ruas, fachadas, muros e portais de edifícios. No parque, na rua, na praça, nas instituições culturais, no transporte público, no mercado, na livraria, nos livros e no material didático está um lembrete da obra e do artista Poty Lazzarotto. Impossível viver em Curitiba sem percebê-lo como uma marca oficializada. Sobre os painéis de Poty, comenta Ferreira (2004, p.35): Uma vez concebidos e instalados, os murais curitibanos passam a gerar ambigüidade entre o real e o imaginário: é importante salientar que a cada novo mural público ocorre a reutilização dos signos escolhidos para serem símbolos da cidade e do Estado, como o pinheiro, o pinhão, a gralha, os tipos populares, os tropeiros, as características arquiteturais da cidade. Esta reutilização serve como forma de indução do significado, base para a continuidade da noção de identidade curitibana, onde o espectador (habitante/visitante) adota os valores simbólicos como referências para entender a cultura local. 58 Um dos fatores que tornaram Poty um ícone na cidade e no Estado foi o fato de seu aniversário coincidir com o aniversário da cidade. Este dado poderia ser absolutamente irrelevante não fosse o argumento da Prefeitura para firmar o laço imaginário entre o artista e a cidade nas comemorações dos 300 anos da capital. Muitas das encomendas de murais e painéis "tiveram o contexto comemorativo da história política, econômica e cultural do Estado e da capital" (LOURENÇO, 2005, p.43). No texto do então prefeito da cidade que abre o catálogo da exposição de Poty, tem-se a seguinte frase: "Quando Poty nasceu, em 29 de março de 1924, já deu uma pista de seu destino. Era o dia do aniversário da cidade, que ele nunca mais cansaria de retratar. Nesta exposição sobressai um dos aspectos mais importantes de sua obra: a celebração de Curitiba" (CURITIBA, PMC, 1994). Há, neste momento político da cidade, um dado importante. Na ocasião das comemorações dos 300 anos a prefeitura era governada por Rafael Greca de Macedo, sucessor político de Jaime Lerner (1989-1992), em cuja gestão criaram-se a Ópera de Arame, o Jardim Botânico, a Rua 24 horas, o sistema de transporte interligado pelas estações Tubo e o ônibus Ligeirinho. Lerner foi o prefeito que, em 1971, colocou em prática o Plano Diretor. Este prefeito apoiou Greca. Por sua vez, na gestão de Rafael Greca de Macedo a cidade recebeu o Memorial dos 300 anos, os Faróis do Saber, o mural em lajota cerâmica de Poty, o "Largo da Ordem", na Travessa Oliveira Belo (1993), as Ruas da Cidadania, entre outros. Nesta gestão publicou-se o livro Poty, trilhos, trilhas e traços (1994) e os livros didáticos Lições Curitibanas, a ser adotados em toda a rede de ensino municipal. Greca apoiou a eleição de Cássio Taniguchi para prefeito. Nesta última administração a prefeitura encomendou ao artista um painel, em que todas as implementações que a cidade havia recebido nestas consecutivas gestões do mesmo partido político (PFL) estão aí representadas por Poty. Trata-se do mural "Imagens da cidade". No centro do painel tem-se a representação de 59 homens escavando o Largo da Ordem e placas de aviso: "Em obra", em uma alegoria à obra daquelas gestões, aos símbolos paranistas. Pode-se pensar que, daí em diante, o que havia sido visto ou dito da obra de Lazzarotto passa a fundamentar sua ligação com a cidade, e nenhuma crítica atinge a obra ou o artista. O caráter de oficialidade que já possuía é, aparentemente, naturalizado, revelado como um fato a ser enaltecido. O imaginário do artista como identidade do curitibano é consagrado como real, tanto pelas obras como por seus conteúdos. Como disse Argan: [...] os artistas têm plena consciência da historicidade intrínseca da arte e consideram sua ação como ação histórica [...] em cada objeto artístico se reconhece facilmente um sedimento de noções que o artista tem em comum com a sociedade de que faz parte (1998, p.23). Na cidade, quer estejam expostos como arte pública, quer tenham outro caráter, as obras e seus autores não podem ser desvinculados de sua cultura e do poder que as erigiu. 4.2 ARTE MONUMENTAL, ARTE OFICIAL E ARTE PÚBLICA No caso da obra de arte em exposição constante no espaço urbano, enquanto representação, esta institui discussões que extrapolam o espaço físico e se imbricam no poder. Além dos aspectos relativos à materialidade da obra ou sua visualidade, um dos pontos desta discussão está em como e por que a obra se torna pública. A questão aqui é relevante porque as obras de Poty – quem as definiu e como as definiu enquanto públicas –, assim como as iniciativas precedentes à sua instalação nos espaços públicos, cabem ao poder político. Na maioria das vezes, as escolhas e decisões, desde a concepção da obra até o motivo de sua encomenda e sua instalação no espaço que ocupará na cidade, cabem aos nomeados representantes da comunidade. 60 É necessária a discussão do público e do privado – ou da "publicização do privado ou da privatização do público", como argumenta Silva (2005, p.12), quando trata da obra de arte no espaço público e discute a intersecção dos fatores monumento e monumental, memória, patrimônio e oficialidade. De fato, as obras públicas, assim como a obra privada, mas em diferente contexto, têm um poder instituinte na vida da comunidade, pois fazem parte das experiências das pessoas, uma vez que a arte, como diz Joost Smiers, "comunicase de uma maneira mais densa e concentrada do que experimentamos na vida cotidiana". Por sua conotação estética, é uma forma específica de comunicação (2006, p.121). Uma vez que essas obras figuram no repertório das experiências cotidianas, como linguagem de uma determinada comunidade, passam a fazer parte do vocabulário desta e atribuem significados a essas esperiências. Ao longo do tempo a obra passa a "responder" pelo espaço, torna-se referência geográfica e histórica na cidade e, conseqüentemente, política. Imprime marcas visuais e, ao mesmo tempo, é chamariz e lembrança dos locais. De certo modo, essas obras pertencem à identidade e identificação das cidades, quer isto seja construído por força da indústria do turismo, interesse político ou das relações humano-sociais. Tornam-se ícones. Há inúmeros exemplos disso, como as obras de Gaudi, em Barcelona, os "Profetas e a Via Crucis" de Aleijadinho, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, ou a Estátua da Liberdade, em Nova York. Além disso, as transformações urbanas evidenciam quais valores, positivos ou negativos, são agregados à obra. Segundo os urbanistas, a malha urbana se deteriora, cabendo lembrar, contudo, que a deterioração está ligada à economia. Como exemplo pode-se pensar na deterioração dos centros das grandes cidades. Outro ponto a destacar é que o "centro" era um primeiro espaço de aglutinação social e onde a economia foi se gerando, mas a impossibilidade de seu crescimento fez com que a pujança econômica migrasse para uma área da cidade que a complementasse. A conseqüência é social e é urbana, pois decai o 61 atendimento aos espaços públicos, e à comunidade. Estes tornam-se espaços à margem. Pode-se dizer que as obras de arte e seus espaços, em locais com problemas sociais, não recebem a prioridade dos investimentos públicos. Enfim, embora a obra possa ter valido muito, pode transformar-se apenas num ninho de pombos, uma vez que, deteriorado seu espaço, a obra, como parte dele, sofre o mesmo efeito. A oficialização da obra pelo caráter afetual25 é um fator tão importante quanto suas qualidades estéticas para seu tombamento por órgãos com o poder de eternizá-la. A obra, então, transforma-se em patrimônio. Silva e Silva (2005, p.326) afirmam: "para que entendamos o significado de patrimônio histórico precisamos primeiro compreender o que é um monumento". Le Goff (1984, p.95), por seu turno, argumenta que "monumento é tudo o que pode evocar o passado e recordar, até mesmo o escrito". Para esse autor, "os materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador". O documento, então, É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. [...] qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro [...] e [...] falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos (LE GOFF, 1984, p.103-104). 25 O termo afetual é empregue por Teixeira Coelho e serve para designar as sensações e emoções que são construídas entre um indivíduo e o objeto de afeto. Esta ligação tem um caráter estético. Além disso, quanto mais tempo a obra pertencer ao espaço, maior o afeto. 62 Diz ainda que a diferença entre patrimônio e monumento não está na qualidade dos vestígios, um ser material e o outro escrito, "mas no fato de que o monumento é voluntariamente selecionado pela sociedade para lembrar o passado que ela escolheu lembrar" (LE GOFF, 1984, p.327). A questão da escolha que o autor apresenta pode ser questionada pelo fato de que a obra foi instalada à revelia da comunidade e esta escolha é pressionada. Uma escolha obrigatória, coagida, que exerce a coerção ao sujeito até que, incorporada ao cotidiano social, cria significados. 4.2.1 A Arte Monumental O adjetivo monumental empregue à obra de arte significa: o que é "colossal"; o que tem "grande importância, relevo, valor", e o que "mostra admirável singularidade; magnífico; maravilhoso" (HOUAISS, 2001, p.1.957). Essas significações na história da arte remetem a antiguidade, e ao desejo do homem de ultrapassar sua finitude, estender-se a um futuro distante, como memória a ser cultuada. São exemplos "As sete maravilhas do mundo antigo"26, catalogadas por Heródoto; templos ou imagens colossais, espaços de devoção e que teriam servido à perpetuação de dinastias, idéias e personagens históricos. Todas eram colossais, foram erigidas pelo poder, e sua singularidade as fez figurar entre as sete maravilhas. A concepção de mundo que se tinha era outra. Apesar disso, o exemplo nos serve para abrir a discussão sobre o monumental na arte e sobre sua oficialidade. Esse caráter de perpetuação da arte monumental não se limitou à antiguidade, atravessou o tempo e ainda sobrevive, apesar das mudanças da sociedade e da concepção de poder. 26 "As sete maravilhas do mundo antigo" foram catalogadas por Heródoto. Seriam O colosso de Rodes, O farol de Alexandria, A estátua de Zeus, O mausoléu de Hallicarnasso, As pirâmides do Egito, o Templo de Ártemise e o Jardim da Babilônia. 63 A arte monumental não deixou de representar o poder do imperador, do rei ou da Igreja, bem como seus feitos. Ela ficou "entre os pólos opostos do 'direito da realeza' e os direitos dos particulares", intercalando-se como "uma zona mista cada vez mais próxima dos direitos do senhorio" (CHEVRIER apud DIAS apud SILVA, 2005, p.12). Além do aspecto da perpetuação de quem a constrói, uma conseqüência ligada à sua escala é a construção de uma sacralização, fator que pode ter sido bastante significativo no passado. Bárbara Freitag (1986), tomando o pensamento de Walter Benjamin, diz que à medida que o mundo se "dessacralizou", a obra de arte foi sendo liberada para o olhar do espectador, que não percebia aquilo que estava exposto, apenas cultuava a imagem. O valor de culto não teria sido perdido, e sua sobrevida foi o culto ao belo. A idealização da arte mostra claramente sua origem religiosa, por mais profana que sejam suas manifestações. O valor de exposição aumenta, sem que se perca o elemento cultural, que continua presente na 'aura' da obra de arte. O objeto aurático é caracterizado pela unicidade [...] e distância [...] (FREITAG, 1986, p.75). Segundo a autora, o fascínio do espectador pela "aura" permanece, por esta envolver a obra como "uma espécie de invólucro", o que seria, nas palavras de Benjamin, "elementos especiais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja" (BENJAMIN apud FREITAG, 1986, p.75). O valor de culto teria diminuído com a era industrial, que ampliou o valor de exposição (p.76). Ainda se pode creditar à dimensão monumental, na obra de arte, o fator didático. Valor de culto e exposição na escala colossal são confluentes, permitindo maior visibilidade e legibilidade das imagens. Em alguns momentos da história, como na Idade Média, a arte era avaliada "em função dos feitos de aprimoramento ou aviltamento do caráter do indivíduo como unidade social e dos seus supostos efeitos 64 sobre o próprio organismo social" (OSBORNE, 1988, p.125), daí a consideração da pintura como "a bíblia dos iletrados".27 Mais tarde, no período Barroco, a pintura perspectiva de grandes dimensões nos tetos das igrejas continuava a ter objetivos didáticos, de render culto a Deus e "mover os homens à obediência e sujeição" (SANTOS, 2002, p.100). A escala monumental é uma representação de poder que ultrapassa a dimensão física. Ela envolve, além da área, volume e altura do monumento, a dimensão relacional, que "a coloca em comparação com outros monumentos de mesma natureza, mas produzidos e considerados expressões simbólicas por grupos e instituições em confronto". Assim, temos a escala a expressar poder e, mais que isto, a expressar supremacia, como diz Corrêa (2005, p.11). Marston (2000) apud Corrêa afirma que "a escala é uma construção social, tendo uma conotação política" (CORRÊA, 2005, p.11). É este justamente o caso da obra de Poty na cidade de Curitiba. Justamente pelas dimensões que a obra alcança, ocorreu sua ligação política e social na história da arte, como o Muralismo Mexicano na década de 30 do século XX. Neste, a escolha das grandes dimensões estava relacionada a sua ação didática: a obra dos artistas em contato com o povo. Sua temática era inspirada na história mexicana dos últimos séculos, exaltando "o sentimento de liberdade que se conservou e se expressa na moral e nos costumes do povo mesmo sob pressão estrangeira", e que na pintura mural foi transformado em "vontade e ação revolucionária" (ARGAN, 2001, p.492). 27 Segundo Carolina Bianchi dos Santos, esta referência surgiu "a partir de uma carta do Papa Gregório Magno, em que ele tentava legitimar as imagens e as defendia diante de um ambiente hostil, dando às imagens um função essencialmente de instrução. Essa concepção de imagem foi bastante difundida por Emile Male em "L'art religieux au XIII e siécle em France". Disponível em: http://www.cchn.ufes.br/anpuhes/anais5/Documentos/Comunica%E7%F5es%20coordenadas/ PDF/Carolina%20Bianchi%20dos%20Santos.pdf. Acesso em: 18 jul. 2007. 65 Segundo Argan, esse foi o primeiro movimento da arte moderna "com uma clara orientação ideológica" (2001, p.491). A iniciativa teria partido do primeiro governo revolucionário com a eleição de Álvaro Óbregon ao cargo de presidente, em 1920. Disse Octavio Paz (apud ADES, p.151) que "A revolução revelou-nos o México, ou melhor, deu-nos olhos para enxergar. E deu olhos aos pintores [...]". O governo teria buscado a participação dos artistas para a formação cultural do povo e a reforma do ensino. O movimento teve o encontro com o ideal da arte moderna de reacender a criatividade espontânea da antiga cultura mexicana (ARGAN, 2001, p.491). Para Ades (1997, p.153), os artistas muralistas desejaram erradicar a pintura de cavalete por entenderem-na burguesa, e, por seus princípios socialistas, "apontavam a tradição indígena como o modelo do ideal socialista de uma arte aberta, para o povo: 'uma arte que fosse aguerrida, educativa e para todos'". Uma curiosidade do movimento é o de ter sido subsidiado pelo governo. A queda do poder revolucionário, quatro anos depois, viria a inviabilizar o movimento e, ao contrário do que seria de se supor, as imagens revolucionárias, segundo Ades (p.165), não deixaram marcas na consciência do espírito do povo mexicano. Octavio Paz comenta: essas obras que se dizem revolucionárias e que nos casos de Siqueiros e Rivera expressam um simples marxismo maniqueísta, eram encomendadas, patrocinadas e pagas por um governo que jamais foi marxista e havia deixado de ser revolucionário [...] essa pintura ajudou a dar-lhes uma feição que, gradativamente, se foi tornando revolucionária (apud ADES, 1997, p.165). O movimento Muralista tratou-se de uma arte nacional, e esteve ligado ideologicamente ao poder político. Isto não o qualificaria como uma arte oficial? É interessante pensar que, no caso do muralismo mexicano, sua oficialidade não lhe confere o caráter de adesismo. A oficialidade exige o adesismo. E a idéia de adesão parece estar relacionada a opressão. Possivelmente pelo fato de a arte muralista defender os oprimidos, sua oficialidade não inspira a crítica. 66 4.2.2 A Arte Oficial Mas o que seria uma arte oficial? Segundo Houaiss, é uma arte "apro- vada pela tradição e que goza de autoridade administrativa reconhecida" (2001, p.2.052). Este atender da obra à tradição não significa ser um gosto comum. Pode a obra não atender a um padrão estético dominante, como ao padrão da estética do século XIX, ainda presente em nossos dias, por exemplo, e ser interessante aos olhos do poder. Como é o caso de Portinari e o Estado Novo. Nos anos 40 do século XX, momento em que a obra de Portinari tornouse arte oficial, a estética desse século, fortalecida pelo academicismo, era imperativa e presente como gosto comum. A arte moderna era repudiada pelo público. Vale apresentar a crítica de Lobato: Dizem que Portinari é o gênio da pintura moderna no Brasil. Foi premiado nos Estados Unidos. Louvado na Europa. E a carneirada, já tranqüilizada do perigo de cometer uma gafe, pára de boca aberta diante dos quadros de Portinari. Não gostam, acham horríveis, mas clamam, esbravejam, vociferam: 'Notável! Maravilhoso! Formidável!' Homens medíocres, de vida interior postiça, sem gosto e opinião própria, fingem o que não sentem. (apud ARAÚJO, 2002, p.262). Portinari e sua obra significavam modernidade, o que interessava sobremaneira ao governo de Getúlio Vargas. Sua pintura representava a temática social. Segundo Olívio Tavares Araújo, "por força de seu próprio crescimento em perfeita coerência dentro de sua trajetória chegou ao afresco sobre os ciclos econômicos" (2002, p.263), temática que confluía ao discurso do governo populista de Vargas. O interesse do regime era "imprimir seus marcos em todos os domínios de atividades ligados ao trabalho de dominação, em especial nos diversos níveis do sistema de ensino e no campo da produção e difusão cultural" (MICELI, 2001, p.78) e mostrar-se como o regime que modernizou o País. Boris Fausto (2003) comenta que "o governo de Vargas não se dirigiu apenas aos trabalhadores", mas formou uma opinião pública a seu favor, usando a censura e os meios de comunicação para a "elaboração de sua própria versão 67 da fase histórica que o país vivia" (p.375). O autor afirma ainda que "seus dirigentes perceberam a importância de atrair setores letrados a seu serviço. Esquerdistas disfarçados ocuparam cargos e aceitaram convites que o regime oferecia" (FAUSTO, 2003, p.376). Como diz Fernando Pedro da Silva, a "pretensão de modernizar o Brasil" do Estado Novo "passou a financiar a produção de vários artistas modernistas". O órgão responsável era o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, e o edifício do Ministério foi a obra que os fez surgir. "A equipe de artistas, historiadores, poetas, construtores e arquitetos sob a chancela do então ministro Gustavo Capanema, grupo que revolucionou a aplicação do Modernismo em espaços públicos visando à integração das artes (arquitetura, paisagismo, escultura e pintura)", foi chefiada por Lúcio Costa, e contava com os arquitetos "Oscar Niemeyer, Carlos Leão e Eduardo Reidy, os muralistas Cândido Portinari e Rossi-Osir, o paisagista Burle Marx e os escultores Jacques Lipchitz, Celso Antônio e Bruno Giorgi (SILVA, 2005, p.74). No caso de Portinari, o maior dos exemplos nas artes visuais na história brasileira de arte oficial, Olívio Tavares Araújo defende que o pintor teria sido cumulado de encomendas durante o regime de Vargas, sem ser servil a ele (2002, p.253). Pode-se pensar, então, que uma arte não se torna oficial pela aceitação de encomendas de determinado grupo, mas ao se mostrar servil às idéias do grupo ao qual adere. Seria a adesão ideológica o fator a torná-la oficial. 4.3 O MONUMENTO COMO DOCUMENTO E SUA OFICIALIDADE O caráter material da obra é depósito daquilo que não é físico (PAREYSON, 1997). As idéias e a cultura de quem a encomendou, a criou, e a instalou no espaço urbano são nele emitidas uma vez que "a arte é um repositório do significado cultural. E os artistas fomentam esses significados [...]" (SMIERS, 2005, p.122). O autor comenta que a arte é uma forma específica de comunicação "por sua conotação estética" (p.121). 68 Deste modo, instaladas nas cidades as obras de arte, sejam elas monumentos históricos ou obras de arte contemporâneas, passam a transmitir as idéias dos artistas e do grupo que as defende, ou do grupo que as encomendou e a elas deseja vincular suas idéias, uma vez que "pelo trabalho de artistas e o modo pelo qual o trabalho é apresentado, sentimentos sociais e culturais e convicções são produzidos, construídos, reproduzidos e reconstruídos” (SMIERS, 2005, p.122). Segundo Le Goff, Paul Zumthor teria descoberto que a utilização do documento pelo poder seria o fator a transformá-lo em monumento (1984, p.103), Le Goff conclui que "documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias" (LE GOFF, 1984, p.103). O historiador francês Pierre Nora pensou no termo lieux de memoire, "lugares da memória", que não se refere unicamente a espaços físicos, mas a espaços destinados à memória e à sua ampliação. Considera a idéia complexa "por ser ao mesmo tempo natural e artificial, simples e ambígua, concreta e abstrata, seriam lieux – espaços, lugares e origens – em três sentidos: material, simbólico e funcional" (tradução do autor, 1998, p.14). Segundo Nora, os lugares da memória são criados pela interação entre memória e história, em uma determinação mútua entre o grupo que aplica a memória ao lugar e o lugar que passa a significar memória ao grupo, uma legitimação de um com o outro (1998, p.14). Seriam lugares com "a capacidade de troca, uma capacidade para ressuscitar velhos significados, gerar e estabelecer conexão com outros novos" (tradução do autor, 1998, p.15). Obras de arte como monumentos fazem o mesmo papel, transformam-se também em Lugares da Memória. Rosalind Krauss apresenta algumas idéias relativas ao monumento. Segundo ela, assim como a pintura histórica, os monumentos tiveram força nos séculos XVIII e XIX, um momento em que "pintores e escultores ambiciosos aceitavam sem contestar a noção de que o tempo era o meio através do qual a lógica das instituições se revela" (KRAUSS, 1998, p.12). A compreensão de história 69 que se tinha era de uma espécie de narrativa, um progressão de significados movidos por "uma espécie de mecanismo divino rumo ao significado de um acontecimento" (KRAUSS, 1998, p.12). Essa questão da narrativa nos monumentos, para Krauss, era notável, sobretudo no relevo. Isto porque o relevo, enquanto expressão, possibilita e assegura a leitura da narrativa (1998, p.15). Sua frontalidade obriga o observador a se posicionar diretamente diante da obra para vê-la e, dessa forma, o efeito da composição não é diluído. Fica interligada à visibilidade e compreensão de seu significado, uma vez que "o ponto de observação único, à frente da obra, todas as implicações da forma serão necessariamente transmitidas". Isso torna compreensível o pensamento de Nora quanto aos lugares de memória. A reflexão de Krauss fala da obra em relevo no sentido em que a academia a concebia nos séculos XVIII e XIX. A obra que a autora comenta é "A marselhesa" (1833-36), de François Rude (1784-1855), integrante do Arco do Triunfo, em Paris, monumento às conquistas de Napoleão Bonaparte. Mas poderíamos pensar na pertinência de seu comentário sobre o relevo na arte moderna? Se analisada a obra de Poty Lazzarotto "O Paraná", no Palácio Iguaçu, percebemos a obrigatoriedade de o espectador se posicionar em frente a uma distância relativa para abarcar com o olhar toda a sua extensão. A construção do painel é muito distinta, sem plano de fundo, como "A Marselhesa", de Rude, construída de modo muito distinto. A obra francesa é um relevo esculpido, a forma foi obtida pela subtração da matéria, a retirada da pedra pela técnica do talhe doce. Os níveis de relevos em planos, um sobre o outro, e seu posicionamento em profundidade, são o que Krauss diz atender à temporalidade e à narrativa. O resultado entre as obras não pode ser comparado em termos formais das soluções plásticas, recursos e meios, havendo, sobretudo, imensa diferença de contexto das criações. Ambas são monumentos, quer pelo tempo, pelo edifício, pela história dos seus mandatários, pela celebridade dos artistas em questão ou pelos locais em que estão instaladas. Também é coincidente se tratar de alegorias e serem obras oficiais; são monumentos aderidos a monumentos. 70 No caso do painel de Poty Lazzarotto, sua produção é contrária ao relevo de Rude. É pela adesão de matéria, e não pela sua retirada, que o relevo ocorre. Poty utiliza moldes em isopor. As formas são geometrizadas e a leitura das imagens é possível pelos contrastes de luz que produzem tonalidades diversas na cor do cimento, dando destaque às imagens. A superfície é cinza, e os planos mais profundos derivam do degradê ao negro. Mas o painel moderno de Lazzarotto, por ser concebido enquanto relevo no plano bidimensional, atende como ao relevo de Rude à narrativa e à temporalidade, como diz Pedroso: "a narrativa ocorre da esquerda para a direita, iniciando com os indígenas, os primeiros habitantes da região, em seguida os tropeiros, os imigrantes, os colonizadores. O sol surge bem visível, como um novo amanhã" (PEDROSO, 2006). O painel só pode ser lido da esquerda para a direita e pelo plano frontal. Quanto à interligação entre a leitura do painel relevo de Poty e a garantia de compreensão de sua significação, como ocorre na "Marselhesa", é uma questão duvidosa, uma vez que, tratando-se de uma obra moderna, sua figuração não atende a critérios naturalistas que obedeceriam ao reconhecimento mais fácil. Este fator pode fazer com que o significado derive nas interpretações com maior fluidez. Os relevos citados são alegorias, um texto cifrado. A obra contém um saber e "nisso reside o caráter escritural da alegoria" (BENJAMIN, 1984, p.205). Seu desvendar só seria possível ao artista, uma vez que "O alegorista fala de algo diferente, [e a obra] se converte na chave de um saber oculto". 4.4 O CARÁTER PÚBLICO DA OBRA Entre as discussões mais controversas da arte está a Arte Pública. Um dos pontos nevrálgicos da questão é justamente a definição – pública. O que a faz pública, e até que ponto é pública a obra? Quem define sua escolha? Quais os critérios desta seleção, por que esta obra, este artista e não aquela obra e aquele 71 artista? Que obra é esta e quem a compreende como tal? A quem a obra representa, quem a escolhe e por que a escolhe? A escolha é pública ou privada? Quem a legitima como arte pública? Por mais antiga que a discussão da questão do quanto é privada a obra pública possa parecer, a arbitrariedade se constitui em uma forma de violência. De certa forma, todas as medidas executivas na administração pública são em parte arbitrárias, o governo é uma função impossível28, como dizia Freud. Há sempre uma falta de proporção entre a escolha que o poder público faz em benefício da população e o desejo desta. Cite-se, por exemplo, a pavimentação de uma rua, que é bem aceita pela pessoa responsável pela limpeza da casa, que não terá mais barro na calçada, mas recusada pelo ecologista, que acusa a agressão ao meio ambiente. Nossa convenção democrática legitima essas decisões como públicas pelo caráter de representação da população que as eleições configuram. Contudo, "O caráter democrático de uma escultura instalada em espaço público não necessariamente trará esse cunho pois nem toda obra de arte pública serve à democracia" (SILVA, 2005, p.78). Possivelmente a implicação maior esteja na escolha do espaço do que na da obra, pois na cidade a absorção da obra é rápida. Qual o espaço? Por que este espaço e não outro? O que este espaço significa para a comunidade? Quem determina seu espaço e o que tange esta escolha? O que a obra significa à comunidade que não a escolheu e que, de certo modo, teve seu espaço violado? Há de se pensar também no outro lado da questão: o objetivo da instauração das obras em tais espaços pelo poder, apesar de arbitrário, nunca tem o fim de denegrir aquele sítio, nem agredir à comunidade. 28 Há uma desproporção entre os desejos da comunidade e do governante, assim como entre o desejo do psicanalista e do psicanalisado, do educador e do educando. Aquilo que uma das partes diz, propõe ou ensina, não é aceito, compreendido ou apreendido da mesma forma pelo outro, devido à constituição dos sujeitos (Psicanálise das massas). 72 No caso do monumento – objeto artístico que configura subjetividade –, poucas vezes ele é representativo das culturas. Há um estranhamento inicial da população, que posteriormente passa a aceitá-lo até sua integração à paisagem urbana, à cidade e à vida das pessoas. Fernando Pedro da Silva reflete sobre a questão: arte em espaço público é relevante o poder de comunicação que essa obra deve estabelecer, considerando os vários níveis de informação dos transeuntes. Não que as construções tenham que se sujeitar a um outro nível, mas não devem privar o público de conhecer e experimentar a obra (2005, p.70). O mesmo autor traz um posicionamento interessante sobre a questão da produção da arte para o espaço urbano, e que converge às idéias apresentadas nesta dissertação. Diz o autor: o artista deve ter a consciência de que a obra por si só não é capaz de mudar a totalidade da realidade urbana e constituir-se como uma proposta revolucionária. Assim, ela deve ser projetada em diálogo com a história local, com elementos culturais por estes, incorporando o pulsar cotidiano que permite a existência daquele ambiente (SILVA, 2005, p.28). É necessário que se leve em conta que a obra de arte, nesses espaços das comunidades, a elas se vincula rapidamente, mantendo, contudo, o vínculo com o poder. 4.5 OS CARÁTERES PÚBLICO, OFICIAL E MONUMENTAL NA OBRA DE POTY LAZZAROTTO Os três pontos analisados, a obra pública, monumental e oficial, estão aglutinados, não se separam, na obra de Poty Lazzarotto. É impossível retirar a trama de ferro que há por baixo dos painéis, assim como é impossível desvincular o caráter oficial do público e do monumental. A obra só pode se tornar pública pelo vínculo que fez ao poder, vínculo que aparece nos locais aos quais as obras estão aderidas; espaços públicos do 73 poder internos, administrações, ou externos; fachadas, praças, logradouros, como o Teatro Guaíra, o Palácio Iguaçu, ou o BADEP. Só com licença oficial ou convite, mesmo que a operação e obra não gerem custos aos cofres públicos, uma obra pode ser instalada na cidade, seja na rua, praça, ou ainda em edifício público. O fato de a obra ser decisão do poder, encomendada e paga pelo poder, a faz legal ou oficialmente pública e este fator só chegou a ocorrer porque esta obra traz uma ideologia confluente aos interesses do poder. Caso a obra de Poty representasse os portugueses matando os índios, estuprando as índias ou derrubando a mata dos pinhais; as crianças matando gralha com setra; os imigrantes trancados em quarentena na hospedaria dos imigrantes, as mulheres com escolhas que não a da família e o homem que não quisesse trabalhar, com certeza as alegorias não seriam aceitas e outras não seriam encomendadas. O objeto da alegoria de Poty é uma história e imaginário oficial. O teor das alegorias, aquilo que Poty alegorizou para o município e para o Estado, era o que queria que fosse dito e o caráter monumental das obras é um dos fatores que renderam outras encomendas. Na dimensão monumental a "mensagem" não é mais um ruído na cidade, é um som impossível de não ser ouvido. É impossível que se passe sem notar ao menos sua existência. Ela comunica com força, tem alcance. Por esses fatores sua obra tornou-se muito interessante aos olhos do poder que sob a argamassa é glorificado. A oficialização de Poty como o artista da cidade e do Estado é evidente e qualquer crítica feita a sua obra, negativa ou positiva, só a reafirmam. É como o dito popular: "falem bem, falem mal, mas falem de mim". 4.6 O CARÁTER IDEOLÓGICO DA OBRA MONUMENTAL DE POTY LAZZAROTTO Na história de Poty, sua produção monumental é grande. A frase parece redundante, mas há dois caracteres que o adjetivo abarca, a relação com o poder, como vemos nesta fala: 74 Em sua vasta produção paranista, que abrange longo período de 1952 até hoje (1987), podemos perceber o talento de Poty, que enfoca a realidade do Paraná nos seus diversos momentos no plano de desenvolvimento político, social e econômico (PMC/FCC, 1987). Na década de 60 o artista produziu 22 painéis, nos anos 70 esse número sobe para 27, nos anos 80 mantém-se em 20 e, nos 90, são 20 painéis, sendo em cerâmica a maior parte destes. Apenas em Curitiba são 60 painéis do artista (LOURENÇO, 2005, p.37), na maioria de dimensão monumental, podendo ser em madeira, cobre, concreto aparente ou azulejo, com incursões pela pintura e vitral. Estão em praças, ruas, fachadas, muros e portais de edifícios. Uma parcela significativa deles está junto a instituições ou logradouros públicos, e a temática relativa ao Paraná ou Curitiba é significativa. A lista que se segue tem a função de identificar a temática pelos títulos das obras: Praças 19 de Dezembro (A Chegada de Zacarias Goes de Vasconcelos, 1956) e 29 de Março (História de Curitiba, 1967), Aeroporto Afonso Pena (Paraná, 1961), BADEP (História do Paraná, 1972), Assembléia Legislativa (Símbolos do Paraná), antigo BNH, hoje Caixa Econômica Federal (Aspectos do Paraná), BADEP (Mapa Estilizado do Paraná, 1976), Palácio Iguaçu (O Paraná, 1987) (NICULITCHEFF, 1994, p.147-148, 168, 182), Travessa Nestor de Castro (O Largo da Ordem, 1993, e Imagens da Cidade, 1996). Além dos painéis, o artista foi chamado para criar a imagem da cortina corta-chamas do Teatro Guaíra, com o tema História do Teatro Paranaense (1997) (CONJUNTO CULTURAL DA CAIXA, 1998). Ainda há o segundo painel do novo Aeroporto Afonso Pena e os painéis que enaltecem a cidade, estes em azulejo. É justamente a produção monumental de Poty que o define em Curitiba como o artista da cidade. Pode-se pensar na construção do termo "clássico", como aquela empregada nos livros mais publicados. Aqueles romances que se tornaram clássicos justamente por haver uma oferta e um reconhecimento que, por esta oferta, cobra a legitimidade e o reconhecimento do valor dado aos livros para que 75 sejam largamente publicados e lidos. É o caso da legitimidade que "consagra como digna de ser conservada a cultura que tem o mandato de reproduzir" (BOURDIEU, 1992, p.118). De fato, Poty dizia ter preferência, nos últimos anos, pela arte muralista, e, segundo Valêncio, seria por "ser ela uma continuação de seus desenhos, das suas histórias em quadrinhos, das suas gravuras seqüenciais, das suas ilustrações de livros: desenhos narrados. Agora falando outra linguagem, alcançando um público ainda maior, o povo nas ruas" (NICULITCHEFF, 1994, p.174). O fato de a obra estar instalada em local aberto ou em instituição estatal ou municipal não a faz pública. Como diz Fernando Pedro da SILVA (2005, p.78), "a simples colocação da obra em espaços públicos não resolve a fruição dos valores estéticos junto aos transeuntes, ou mesmo não dá conta de resolver questões da arte atual", além de que o acesso simbólico à obra de arte depende de muitos fatores, como instrumental de leitura, disposição estética, como se trata mais à frente. No caso que estudamos, a obra pública de Poty, precisa ser pesada a concepção de arte pública de um artista com formação acadêmica e moderna, bem como a concepção de cidade. Curitiba, a partir dos anos 50, teve definido "o paradigma da cidade moderna" como sendo o seu (FERREIRA, 2004, p.27). Há a afinidade. Segundo Sérgio Micelli (1992, p.10), No Brasil escrever sobre as relações entre arte e cidade no século XX é escrever sobre artes e cidades que querem se modernizar, seus ganhos e recuos neste desejo. E o termo moderno neste cenário tem tensões recorrentes que vão sendo repostas ao longo do século. Uma afirmação como a de Mário Pedrosa, de que o Brasil é um país "condenado" à modernidade, ganha inteligibilidade se entendermos que cada reposição rebatiza o novo de moderno. Se a concepção de arte pública mudou, aquelas obras instaladas passaram a ser públicas por determinação, tempo e agenciamento do Estado. No 76 caso da obra de Poty, pode-se falar, mais que do agenciamento, de um projeto com o Estado. Poty teve certo grau de engajamento social em sua poética. Naquele momento histórico (década de 40), os artistas em diversas partes do mundo vinham marcados pelo muralismo mexicano que proliferou seu ideal social. Mas o que eles de fato faziam no México era mais do que expor em espaço público. Seus painéis faziam parte de um programa de governo revolucionário (ADES, 1997, p.152), como já dito. Embora as obras fossem subsidiadas pelo Estado, havia o comprometimento social com as classes dominadas no sentido de emancipá-las. Seus artistas tinham a completa liberdade de escolha do que representariam em seus painéis (ADES, 1997, p.151). O caso de Poty não foi este, como comenta Ferreira (2004, p.35): "fica claro que as decisões sobre como será cada mural não dependem do artista, ficando amarradas à finalidade do projeto". As escolhas são dirigidas, cabendo-lhe representar a história com os ícones ou símbolos estatais com que alcançou reconhecimento junto aos dirigentes. De fato, o artista não era uma vítima do Estado, nem pode ser condenado por seu interesse, afinal todo o investimento feito na carreira tinha também como propósito seu próprio benefício. O artista é contratado para executar um trabalho com certa função, e tem os elementos necessários para cumprir o contrato. Resumindo, ambos, Estado e artista, descobriram na parceria um "caminho da mina". Mas, como Poty e sua obra vieram a se tornar interessantes à propaganda ideológica? Três elementos, além da relação com a elite dirigente, podem ser analisados no sentido de buscar respostas à oferta que passa a legitimar a obra de Poty, como meritória de consagração, inculcação e reprodução pública, além, é claro, dos domínios técnicos, de dimensão e da narrativa alegórica do artista: seria a fusão de elementos do realismo social uma representação "confluente aos ideais do poder" – como no caso de Portinari em outros tempos (ARAÚJO, 2002, p.253) –, apresentada na seção que tratou da arte oficial, dos símbolos paranistas e da memória pessoal. 77 O que a leitura das obras monumentais de Poty sugere é que, com o tempo, o artista foi substituindo a temática social pela autobiográfica e pela memória da cidade, tornando-se muito interessante ao poder público municipal por ocasião das comemorações dos 300 anos da cidade, uma vez que as ideologias triunfantes, se empregues nas representações simbólicas, se perpetuam (ARAÚJO, 2002, p.259). Parece haver uma diferença no caso de Poty, e não se trata de confluência de propósitos. A temática social não perdurou na arte brasileira por todo o tempo em que o artista produziu. Ela tem seu auge na produção da gravura do início da carreira de gravador. Argumentar que ele não obedecia às tendências da arte seria ingenuidade, uma vez que Poty era um artista moderno. É possível dizer que os interesses da obra do artista e os interesses do poder não foram confluentes todo o tempo, mas tornavam-se confluentes a cada encomenda. O segundo elemento presente na obra de Lazzarotto interessante aos discursos que o escolheram seria o emprego dos elementos do imaginário paranista: a araucária, o pinhão, a gralha-azul, signos de ideologia identitários. Suas alegorias são o maior exemplo da permanência dessa ideologia. Walter Benjamin disse que "a alegoria não é convenção da expressão, mas expressão da convenção" (1984, p.197). Sendo alegorias, "a palavra escrita tende à expressão visual" (p.198), carrega um discurso, "é um esquema, e, como esquema, um objeto do saber, mas o alegorista só pode ter certeza de não o perder quando o transforma em algo de fixo: ao mesmo tempo imagem fixa e signo com o poder de fixar" (BENJAMIN, 1984, p.206). Entre a imagem fixa e a palavra, enquanto narração escrita na alegoria há brechas, vazios que as imagens não conseguem preencher. Ela é sempre interpretada. Sem vácuos e espaços, uma ideologia se quebra internamente. Necessita disso para a criação da história imaginária que provoca (CHAUÍ, 2001, p.86 e 114). 78 O emprego das imagens da gralha-azul, da araucária e do pinhão, nas alegorias, aproximadas às imagens do trabalho e do trabalhador, pode ser visto como representações do imaginário do homem paranaense, forte e trabalhador, que o poder conseguiria firmar ao longo de décadas nessas obras encomendadas. As obras tornaram-se uma forma de propaganda, como afirma Luciana Ferreira: "o mural passou a ser então o objeto de publicidade urbana preferido pela Administração Pública" (FERREIRA, 2004, p.35). A autora complementa seu pensamento com a frase de Argan (1998): "o que diferencia um objeto artístico dos outros objetos produzidos por uma determinada cultura urbana é o valor que lhe é atribuído pela comunidade". Ferreira diz que as obras do artista têm como objetivo "a educação cívica de forma pedagógica, sendo que o processo de escolha do que é veiculado nos murais de Curitiba sempre partiu da própria Administração Pública, tendo em todas estas escolhas o discurso político como pano de fundo" (FERREIRA, 2004, p.35), como já citado. A mitificação do artista pelo poder, agregada às narrações de sua memória pessoal na cidade, viriam a legitimar o imaginário que elas condensam: Poty criou signos articulados, numa linguagem individual. Entretanto, foi um artista que alcançou grande destaque individual e coletivo, sendo consciente de sua ligação comunitária. Esta forma de trabalhar gerou, entre ele e seu público, um vínculo formado por códigos comuns, os quais o identificaram com a comunidade e identificaram sua obra como coletiva. Na verdade este processo aconteceu porque houve um consentimento comunitário. Suas obras transformaram-se, aos poucos, em expressão coletiva e conferiram ao artista um lugar de destaque nacional e internacional (FERREIRA, 2004, p.38). Não foram poucas as expressões do caráter autobiográfico da obra de Lazzarotto. O livro Curitiba de nós, em parceria com Valêncio Xavier, publicado em 1975 pela Fundação Cultural de Curitiba e reeditado em 1989, é muito conhecido. Segundo Valêncio, "é quase uma autobiografia" (NICULITCHEFF, 1994, p.136). No painel que Poty cria para a torre da empresa de telefonia da cidade, antiga TELEPAR (1992), uma Curitiba de Poty menino mesclada à atualidade aparece. 79 Há um caráter onírico na fusão de passado e presente que o artista propõe. Enaltece características diversas da cidade, pontos turísticos e criações na estrutura de transporte, as "estações-tubo", pontos de ônibus do chamado "ligeirinho", uma marca da gestão da Prefeitura, que criou o sistema e utilizou-o como marca. 4.7 UMA MARCA MACHISTA: ARTE E GÊNERO NA OBRA DE POTY Na obra de Poty aparecem as marcas paranistas: o pinhão, a araucária, a gralha-azul, como simbolizações do Estado e da identidade do paranaense e do curitibano. Também existe uma marca invisível, a mesma que Paulo Freire percebeu em si e em sua obra e a chamou de "marca machista". Freire, ao lançar a Pedagogia do Oprimido, nos Estados Unidos, recebeu, em Genebra, inúmeras cartas de mulheres americanas. As cartas falavam do incômodo por serem excluídas da obra desse educador, e em muito o surpreenderam. Diziam que Freire discutia a opressão, a libertação, criticava, com justa indignação, as estruturas opressoras, mas "com uma linguagem machista, portanto discriminatória", em que não havia lugar para as mulheres (FREIRE, 1992, p.66). Ora, quando eu falo homem, a mulher necessariamente está incluída. Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: "quando falo homem, a mulher está incluída". E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: "As mulheres estão decididas a mudar o mundo"? (FREIRE, 1992, p.67). Anos mais tarde, ao rever sua obra para uma reedição, o educador, assumindo a "marca machista" que sua escrita trazia, compreendeu seu "débito àquelas mulheres [...], por me terem feito ver o quanto a linguagem tem de ideologia" (FREIRE, 1992, p.67). Contudo, o texto revisto parece ter sido publicado apenas nos Estados Unidos. As reedições no Brasil permaneceram com a mesma ideologia. De todo modo, Freire pôde descobrir-se machista. 80 O que esta reflexão pretende é analisar como esta marca se faz nas pessoas, de que modo ela pôde ser construída, em um homem como Freire, que conseguiu desvelar esquemas tão nefastos da sociedade às pessoas. Qual teria sido a base desta formação em sua época? Quais os instrumentos sociais que teriam auxiliado essa construção naquela época? Freire nasceu em Recife em 1921, e, como todos então, teve na família o modelo principal de sua formação. Aquele era o esquema da família moderna; quer fosse humilde ou abastada, o modelo era o mesmo. As diferenças de padrões socioculturais não o alteravam. Nele, o pai era o mantenedor, trabalhava para o sustento da casa, esposa e filhos. A mãe, por sua vez, era considerada do lar, doméstica29 ou manteúda. As funções do casal nesse esquema surgiram com o desenvolvimento da sociedade capitalista e a indústria moderna, no momento de toda uma redefinição de classes e gêneros. Foi quando estas funções produtivas determinaram, nas práticas e no social, o mundo masculino – da rua – como público, construindo como oposto o mundo privado – da casa – como feminino (VAISTMAN, 2001, p.34). Griselda Pollock diz que as mulheres na modernidade foram vítimas de violência de diferentes formas, o que lhes negou o direito à mobilidade (POLLOCK, 2005, p.127), um espaço restrito, da cozinha para um determinado comércio. Essa realidade é perceptível ao analisarmos a sociedade brasileira da primeira metade do século XX pela música popular brasileira: "Ela é a dona de tudo, ela é a rainha do lar, ela vale mais para mim, que o céu, que a terra e que o mar. [...] Mamãe, Mamãe, Mamãe, eu te lembro o chinelo na mão, o avental todo sujo de ovo [...]". Esta canção, "Mamãe", de Herivelton Martins e David Nasser, é um exemplo de como esta realidade era vista e reproduzida na sociedade. 29 O termo 'doméstica' foi empregue na documentação de mulheres nos anos 50 e anteriormente. Passou, mais tarde, a definir a profissão feminina de mulheres empregadas para desempenhar trabalhos domésticos, limpeza e organização da casa de outras famílias. 81 Em 1956, à véspera do Dia das Mães, esta valsa, gravada pela cantora Angela Maria (1928), foi um sucesso de vendas nunca mais visto no País: "Pela primeira vez se fez fila para comprar um disco no Brasil. Em uma semana, vendi 300 mil exemplares do 78 rotações com "Mamãe", comenta a cantora. A letra da música descrevia o ideal de "rainha do lar" (FAOUR, 2002, p.67). Voltando ao início daquele século, três anos depois de Freire nascia Poty, em Curitiba. É possível dizer que a família dos dois não foi construída segundo aquele mesmo esquema: a mãe, responsável pela educação dos filhos e trabalhos domésticos; o pai, responsável pela manutenção da família. Seria tolo dizer que eles e todos os homens de seu tempo, e mesmo os atuais, não aprenderam de seus pais e mães, e de todo o seu meio, o machismo. A reprodução disso cabe em parte à mulher, escrava de si própria ao criar o homem machista, como disse Simone de Beauvoir, mas a mulher não o faz só (CASTAÑEDA, 2006, p.11). Como disse Hanna Arendt (1906-1975), "estar vivo é estar entre os homens" (ARENDT, 1989), e Freire e Poty foram educados entre os homens de seu tempo. O outro e indispensável modelo nessa construção, para legitimar as emoções e representações, foi o universo simbólico que apresentava, e ainda apresenta, pelas músicas, filmes, novelas e publicidade, "espelhos" às emoções da sociedade. No documentário "A obra monumental de Poty", aparecem, em meio ao material do artista, catalogado após seu falecimento, revistas (cadernos, desenhos), alguns exemplares da "Revista do Rádio", publicação muito popular entre todas as classes a partir de 1948 até 1970 (FAOUR, 2002, p.21). Essa revista apresentava detalhes da vida dos astros da rádio, programações, fofocas. Uma de suas colunas era "A pergunta da semana". No número 159 (23/9/1952) a revista indagava: "Qual a melhor profissão para a mulher?". A resposta de algumas celebridades serve para mostrar o imaginário sobre a questão: "Embora eu esteja perfeitamente satisfeita com a minha profissão, acho que a melhor 82 profissão é a de dona de casa", respondia Dircinha Batista (1922-1999), conhecida cantora (FAOUR, 2002, p.122). Como mencionado, aquele gênero de canção expresso em letras como: "Você só me bate, pretinho, não faz um carinho pra me consolar, e eu que sou tão boazinha, tão direitinha, sei lhe respeitar30 [...]" reproduzia os papéis sociais de homens e mulheres, um "inconsciente ao mesmo tempo coletivo e individual, traço incorporado de uma história individual que impõe a todos os agentes, homens e mulheres, seu sistema de pressupostos imperativos" (BOURDIEU, 2003, p.70) a serem obedecidos e reproduzidos. A rádio apresentava elementos a legalizar as emoções da sociedade, pois as emoções são sociais, e historicamente construídas (JAGAAR, 1997, p.173). Ensinava pelas músicas, pelas novelas e pelos mitos os comportamentos, como hoje faz a televisão: constrói fantasias, apazigua dores, impulsiona paixões e ensina a homens e mulheres, entre tantas outras coisas, a dominação masculina e o machismo. É uma forma de atribuirmos significações, e esta operação vai além da vida social, "de modo que o indivíduo pode 'localizar-se' nele (o mundo simbólico) mesmo em suas mais solitárias experiências" (BERGER, 2002, p.132). Poty teve no cinema e na literatura os pilares da formação de seu imaginário. Em suas palavras: Me lembro até hoje duma fita alemã que vi lá em cima. Guardo muito bem a cena: o pai em mangas de camisa, ao lado dele a mãe compungida, de cabeça baixa o filho. Não me lembro o nome da fita. O filho era um xupô. [...] É um policial alemão: matou uma mulher da vida. Ela acolhia ele nos aposentos dela. Andava mais com a mulher do que com outra coisa. Matou com todos os requintes, estrangulou. Paixão, amor e perdição. Eu não sabia que mulher tinha essas características. Eu não sabia dessas coisas, coisas que o padre chamava de feias no catecismo, mas eu não estava estranhando o assunto (apud NICULITCHEFF, 1994, p.30). 30 "Meu dono, meu rei", Dias da Cruz - Ciro Monteiro. Irmãos Vitale. 66189306/1953. Repertório de Angela Maria. 83 Possivelmente, o cinema, a literatura e a música certificaram, para Poty, algumas idéias sobre as mulheres e os homens, além de lhe assegurar um museu de imagens em movimento e preto e branco. Com isso, é previsível a representação que Poty daria, em sua obra, aos homens e às mulheres. Formado em uma sociedade com tais princípios, o artista os reproduziria, cumprindo o papel que lhe foi ensinado. É este ensinamento, pelos exemplos da família e da sociedade espelhados no simbólico, o que, segundo Pierre Bourdieu, move no homem a "dominação masculina", o fato de que tudo o que recebeu da sociedade faz com que ele tenha que desempenhar este papel e venha a se cobrar por isso. Nas palavras do autor, "deve cumprir para estar agindo corretamente para consigo mesmo, para permanecer digno, a seus próprios olhos, de uma certa idéia de homem" (2003, p.61). Nas suas palavras, o ponto de honra, o princípio do sistema de estratégias de reprodução pelas quais os homens, detentores do monopólio dos instrumentos de produção e reprodução do capital simbólico, visam assegurar a conservação ou o aumento deste capital, estratégias de fecundidade, estratégias de sucessão, estratégias matrimoniais e estratégias educativas [...] pela necessidade da ordem simbólica tornada virtude [...] se perpetuar através da ação de seus agentes (BOURDIEU, 2003, p.62). Ao observarmos pelo prisma das ciências sociais, podemos perceber sua obra em relação com sua cultura, identificamos em sua mãe a imagem de mulher – representação ideal – que o artista manteve como modelo, não apenas na arte, mas em certos padrões sociais indispensáveis a seu tempo, e que, indiscutivelmente, estiveram presentes na escolha da mulher que seria "a sua". Analisando a obra pública de Poty quanto à questão da representação dos gêneros, percebe-se o quanto, parafraseando Freire, sua linguagem tem de ideologia machista. Sua primeira obra pública foi a participação na Praça 19 de Dezembro, monumento em comemoração aos 100 anos de emancipação política do Paraná, em que, ao lado de Erbo Stenzel (1911-1980) e Humberto Cozzo, lhe coube a criação do painel de azulejos. 84 Nessa obra, a imagem da mulher aparece três vezes. Elas figuram na formação da cidade, na recepção a Zacarias Góes de Wasconcellos, o então nomeado primeiro presidente da nova província. São lavradoras. Há um detalhe sugestivo: uma das mulheres, abaixada, parece colher algo do chão, enquanto a outra corta o capim junto à araucária, "um enfoque para a cultura da terra, retratada pela trabalhadora rural, que estrategicamente é colocada próximo ao pinheiro" (PEDROSO, 2006, p.25). No fundo aparece a cidade de Curitiba. É possível que a mulher agachada esteja colhendo pinhões da araucária. Se esta interpretação for pertinente, vale lembrar os signos que o pinhão e a araucária passam a representar no Estado, após o Paranismo. Emblemas identitários e de cunho político. Detalhes da Alegoria da Praça 19 de Dezembro No primeiro plano, cumprimenta o presidente Zacarias um casal de lavradores. A camponesa traz junto à cintura uma bolsa de semear, o homem um ancinho. Por não aparecer na alegoria nenhuma outra imagem relacionada à agricultura, apenas a colhedora de pinhão, poder-se-ia pensar que é a mata de Araucárias o que ela semeia. 85 Alegoria à chegada de Zacarias Góes de Vasconcellos (Praça 19 de Dezembro) Ao analisar a imagem da mulher que acompanha o homem na recepção ao primeiro presidente, pode-se pensar tratar-se da mesma mulher que se abaixa para colher, dado que há similaridades entre as três figuras: lenço na cabeça e saia ampla. A simbologia da semeadura está ligada à fecundidade. A mulher que semeia, a mesma imagem da produtora, a imagem ligada à mãe, a terra, ao fruto da terra. Em outra praça de Curitiba, a Praça 29 de Março, uma alegoria de Poty comemora a fundação da cidade e apresenta uma narração de seu desenvolvimento. O nome da praça corresponde à data de aniversário da cidade e, coincidentemente, do artista. Este painel foi realizado em 1967. Toda a imagem empregada nesta narração segue um fio histórico que se inicia com os indígenas, passando pelos ciclos econômicos e pela instalação das instituições na cidade. Há uma menção ao plano urbanístico da cidade. 86 Praça 29 de Março, painel "História de Curitiba", 1967 Ao lado do esquema desse mapa aparecem as linhas de transporte urbano da cidade, que previa o desenvolvimento desta aos seus extremos, norte e sul. Aparentemente, a partir da planta da cidade Lazzarotto teve a sugestão de um movimento humano, de um bailarino que impulsiona um salto. No texto junto ao painel há uma menção ao futuro: "É dever de cada governante transmitir esta cidade, nem menor nem igual a que recebeu, porém, sob todos os aspectos, mais bela, mais humana e mais sorridente", assinada pelo artista: Potyguara. Nesse painel as imagens da mulher apresentadas são: a lavradora junto ao homem, a religiosa da Santa Casa de Misericórdia, a esposa enganchada ao esposo, trazendo o filho pela mão, e a santa, Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, a padroeira da cidade. Como a representação na alegoria é histórica, a matriz da mulher ideal no esquema moderno é a retratada. 87 Na alegoria "As Artes", na fachada do Teatro Guaíra, Poty apresenta na composição diversas cenas, algumas delas evidentes com relação ao título, outras cujo emprego é difícil de compreender, como a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A representação toma um fio histórico a partir de ritos pré-históricos. Chegando ao cinema Poty representa a mulher apenas na ópera, cantando junto ao homem, e na bailarina suspensa nos braços do par. Ao completar 70 anos, Poty foi homenageado pela Prefeitura de Curitiba com o livro Poty: trilhos, trilhas e traços. A cidade comemorava 300 anos. Este livro foi utilizado na presente pesquisa por apresentar a história do artista. Nele, a 88 biografia é cruzada com reproduções de desenhos e fotos. Trata-se de uma entrevista informal em que Poty conta suas memórias e fatos da cidade ao escritor e amigo Valêncio Xavier. Nas frases do artista, algumas representações da mulher no seu imaginário são perceptíveis: "Minha avó eu acompanhava quando ia vender verduras", ou ainda: "Foi no Eu Sei Tudo que ouvi falar, pela primeira vez, em Frinéia: os juízes da Grécia Antiga e ela peladinha da silva, magicamente ilustrada por Matamia" (apud NICULITCHEFF, 1994, p.55, grifo do autor). O livro conta com 207 páginas, das quais 112 são ilustradas. Deste montante de imagens a figura da mulher surge em 12 páginas: a esposa Célia Naves Lazzarotto, a mãe Dona Júlia, a avó lavradora, duas imagens de prostitutas; uma da série de gravuras Mangue (de 1940) e outra mais recente. Ainda aparecem a mulher lavadeira e duas cenas de sexo. Em uma delas tem-se o homem deitado sobre a mulher, enquanto ela o esfaqueia nas costas; na outra, a mulher no colo do parceiro. A imagem da mulher nua, escapando de um flagrante por dentre as pernas de um general sem calças, é outro desenho de Poty, e uma imagem curiosa, a de mulher negra gestante sendo esfaqueada, ou em pé, sofrendo uma cesariana feita por um homem que não é médico. Há também a jovem retratada na janela. Outra imagem muito significativa que sugere uma percepção masculina machista ilustra os diversos telefonemas de mulheres que Poty recebeu ao enviuvar. Transparecem, neste desenho, o enfado do homem com a conversa, as intenções das mulheres ao viúvo e a tagarelice. Valêncio comenta que Poty teve o cuidado de tornar ilegíveis os textos que acompanham a fala das mulheres para a publicação da imagem (NICULITCHEFF, 1994, p.193). 89 É interessante pensar que o artista iniciou sua carreira nos anos quarenta, produzindo em gravura nos primeiros anos, passando à produção de sua obra monumental, à qual se dedicou até o final do século, vendo ao largo o feminismo. Os anos sessenta foram o período efervescente no debate sobre a condição feminina, o machismo e a dominação. Desde então a participação da mulher na economia e na política tornou-se inegável e fundamental. O feminismo dos anos 60 e 70 foi um dos fatores a descentralizar o sujeito da identidade fixa do período moderno (HALL, 2005, p.46). Auxiliou na transformação daquela realidade, permitindo que a mulher tivesse como escolhas a esfera doméstica, conseqüente ao matrimônio, com ou sem filhos, ou, ainda, a vida profissional aliada à família. Na mesma época, este movimento, o feminismo, geraria um outro: "A crise do homem". Esta crise seria uma "conseqüência de uma constatação difícil: o carcereiro é também seu prisioneiro ou, em outras palavras, 'a coroa pesa'" (LISBÔA, 1998, p.131). Segundo Maria Regina, esta crise teria se desencadeado com as transformações de comportamento da mulher em relação ao sexo e à 90 moral, e "do questionamento da posição dominadora e patriarcal dos homens na sociedade e na família". Para a autora, esta crise foi um fenômeno restrito em termos sócio-culturais, e pontuado a um tempo específico. Os homens atingidos pela crise teriam entre 35 e 50 anos e teriam em comum "a constatação dos valores herdados de seus pais". Seriam estes homens jovens nos anos 60 e teriam tomado algum contato "com as novas idéias sobre o relacionamento homem/mulher, relações interpessoais, sexualidade, enfim, o que se convencionou chamar movimentos da contracultura". Segundo Maria Regina, "estes homens tiveram de se rever, se repensar a partir de um novo código, diferente daquele hierárquico em que foram priorizados" (LISBOA, 2000, p.132). É interessar pensar o "peso da coroa" que Poty, como homem, aprendeu a representar. E, do mesmo modo que a representação que faz da mulher é machista, também o é a representação que faz do homem. Este homem que o artista representou forte, macho, trabalhador, que precisa vencer, nunca falhar. É ele, o homem, quem impulsionaria a economia rumo ao futuro. A coroa, de fato, pesa. A angústia da masculinidade frente a essas imagens do poder masculino não são e não devem ter sido leves no passado. Marco Radice escreveu O último homem, confissões sobre a crise do papel masculino, em que toma alguns depoimentos anônimos sobre o assunto e aponta algumas idéias interessantes: "não podemos esperar do movimento feminista nenhuma contribuição à revolução cultural do homem que todos os dias toca na sua solidão. Teremos de andar com as próprias pernas" (1982, p.13). Um de seus anônimos confessores, ao falar do peso da formação machista sobre sua masculinidade, diz, em crise, que não pretendia "inverter o papel e fazer-se de vítima" (RADICE, 1982, p.23). O mesmo confessor, O Intelectual, diz: "não sei modificar meu papel de macho. Não quero dizer 'sou macho até o fim' como defensores do 'quanto pior melhor'. Queria viver minhas contradições e viver, dolorosamente, a condição de homem". 91 À época, a crise tomou tanta força nas discussões intelectuais que ocorreu em 1985 o primeiro "Simpósio do homem", o que resultou no livro Macho, Masculino-Homem: a sexualidade, o machismo e a crise de identidade do homem brasileiro (LISBÔA, 2000, p.131). No entanto, até as últimas obras públicas de Lazzarotto, a representação da mulher e do homem, nas alegorias, permanece. A representação da mulher é a da esposa e mãe, e, a do homem, o homem do futuro e o pai de família. Na alegoria de 1987 "O Paraná", a representação da mulher é a da mãe imigrante. O painel, mais que qualquer outro, traz uma mensagem androcêntrica. Neste painel, o homem é o semeador do futuro, ligado ao progresso do Estado, junto a uma revoada de gralhas-azuis, e o chefe de família imigrante também aparece. Em 1992, Poty termina o painel para a Torre da Telepar, inaugurada um ano antes. A Telepar foi a antiga empresa de telefonia do Estado, vendida naqueles anos. O painel conta a história de Curitiba, e o fio histórico é o mesmo: dos índios àquela atualidade com implementos da telefonia e os que a prefeitura recentemente construíra, as estações-tubo do "Ligeirinho". 92 Este é o painel em que Lazzarotto alcança o maior desenvolvimento técnico. A obra é circular, contornando o centro da torre. Recobre a parede interna, do outro lado, e pelo vidro tem-se a vista panorâmica da cidade. Nesta obra, passados 39 anos da primeira obra pública, a representação da mulher e do homem permanece a mesma. Nos anos 90, Poty passa a trabalhar em sua poética um misto de suas memórias de infância com o presente. Permanece representando a cidade que viveu no final do século, sustentando o ideal de mulher e de homem dos anos 30, e a família moderna. Lazzarotto teve a marca machista construída em si e herdou o papel de legá-la ao futuro, fazendo-o por imagens. Produto de determinada sociedade e cultura, sua obra mostra a formação que recebeu, um homem criado em uma sociedade machista, em uma família do esquema moderno, tendo aprendido a reproduzir essas marcas no social. 4.8 A OBRA COMO CONSTRUTORA DA IDENTIDADE E SUA LIGAÇÃO COM A SUBJETIVIDADE A identidade é uma entidade abstrata sem existência real, muito embora indispensável como ponto de referência, disse Lévi-Strauss (1977 apud ORTIZ, 1994, p.137). Para Castells, ela é a fonte de sentido e experiência para as pessoas. Trata-se 93 da construção de sentidos atendendo aos atributos culturais (CASTELLS, 2000, p.28). É justamente por esse fator que não se pode pensar em uma identidade estanque, mas que muitas identidades podem existir em um indivíduo. É interessante apresentar ainda o modelo pensado por Geneviéve Zurbrzycki, um resumo das definições políticas e dos debates das ciências sociais sobre o tema, "opondo os modelos/interpretações 'cívicos' e 'étnicos' do fenômeno de nacionalidade" (BAUMAN, 2005, p.66): o modelo cívico da nacionalidade, da identidade nacional, é puramente político. Nada mais é do que a escolha do indivíduo de pertencer a uma comunidade baseada na associação de indivíduos de opinião semelhante. A versão étnica, ao contrário, sustenta que a identidade nacional é puramente cultural. A identidade é dada ao nascer; ela se impõe sobre o indivíduo (BAUMAN, 2005, p.66). Os papéis sociais definem-se pelas normas estabelecidas pelas instituições e organizações da sociedade. Ser trabalhadora, professora, ecologista, budista, leitora, mãe, filha e ciclista ao mesmo tempo são papéis sociais. Para Castells, as identidades são fontes de sentido mais fortes que os papéis sociais devido ao processo de autodefinição e individualização que supõem. As identidades organizam os sentidos, enquanto os papéis sociais organizam as funções (CASTELS, 2000, p.28). Apesar disso, as identidades podem originar-se nas instituições dominantes, como veremos à frente, convertendo-se em identidades somente se os indivíduos da comunidade "as interiorizam e constroem seu sentido em torno desta interiorização" (CASTELS, 2000, p.29). O sociólogo Renato Ortiz, em seu livro Cultura Brasileira e Identidade Nacional, introduz a convergência ideológica entre o Estado e a cultura popular, dizendo ser este um rumo traçado por muitos autores: a idéia da identidade nacional construída a partir dos pressupostos da mestiçagem, da unificação das três raças na caracterização de um homem sincrético, conceito que abrangerá também a definição de povo. Essas idéias datam dos primeiros anos de independência do Império brasileiro, ressurgem fortes no reinado de Pedro II com o "Projeto Civilizatório do 94 Império" (FRANZ, 2003, p.37), ingressam na república pelos ideais progressistas e positivistas, momentos em que "o fundamento do ser nacional [...] teria base [...] no Estado brasileiro" (ORTIZ, 2003, p.130). Esse tema esteve presente na história brasileira diversas vezes, nos anos 20, como o movimento modernista, quando a construção de uma identidade na arte do País se daria ao tomar os elementos da cultura popular para alimentar a cultura erudita, o processo antropofágico. Artistas e intelectuais modernistas pretendendo devorar o Brasil e "criar uma arte que espelhe a realidade brasileira, e não simplesmente cópia das escolas estrangeiras" (AMARAL, 1995, p.12), saem em 1924 do Rio de Janeiro com destino ao interior de Minas Gerais. Surge daí a questionável "redescoberta das cores do interior", as ditas cores caipiras na palheta da pintura da elite artística brasileira (AMARAL, 1995, p.13). Anos depois, o projeto de modernização do Estado e a redefinição nacional na década de 30, a transformação da infra-estrutura econômica (ORTIZ, 2003, p.130) e, pouco à frente, o golpe militar, farão com que o estado autoritário, pouco a pouco, tenha a necessidade de reinterpretar as categorias de nacional e de popular. Buscará desenvolver uma política de cultura e "concretizar a realização de uma identidade 'autenticamente' brasileira", função que coube aos intelectuais. A construção de uma identidade, segundo Ortiz, sempre se vincula à união entre o popular, o Estado e a identidade, tendo como contrafortes as idéias de memória coletiva e da memória nacional. O autor sustenta a diferença entre ambas ao dizer que a primeira ocorre no social, não é inventada, é das vivências, e que a memória nacional é uma construção pertencente ao campo da ideologia. A memória coletiva tem nos universos simbólicos a ordenação da história dos homens. São eles que estabelecem a memória a ser partilhada pelos indivíduos da coletividade em relação ao futuro, e é por eles que os indivíduos definem uma rede de referências para a projeção das ações individuais (ORTIZ, 2003, p.135). A memória popular é particularizada, ao passo que a memória nacional é universal. "Opera uma transformação simbólica da realidade social", por isso não 95 pode coincidir com a memória particular dos grupos populares. Justamente por não ser particularizada por nenhum grupo é que a memória nacional "se define como um universal que se impõe a todos os grupos" (ORTIZ, 2003, p.136). Trata-se de um elemento derivado de uma construção de segunda ordem, assim como a identidade nacional. Essa idéia aproxima-se daquilo que Manuel Castells, em O Poder da Identidade (2000), chama de "identidade projeto", que se dá quando os atores sociais, tomando como base seus materiais culturais, constroem uma nova identidade que redefine sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a sociedade (CASTELS, 2000, p.30). 4.9 O PARANISMO, A IDENTIDADE CONSTRUÍDA DO PARANÁ Se transportarmos essas idéias das memórias populares e nacionais, da construção da identidade do Estado, não enquanto nação, mas enquanto unidade federativa, podemos traçar os paralelos com o Movimento Paranista. Essa identidade construída pelos intelectuais no início do projeto modernista paranaense e a obra pública de Poty Lazzarotto, que, enquanto artista, foi um intelectual e mediador simbólico, atualizaram os ícones da identidade paranista, alojando-os em suas alegorias. Uma vez que essas obras foram encomendas do Estado, quer municipalidade ou governo estadual, podemos pensar a quem esta idéia favorece e a quem realmente representa, e como a obra de arte serve a essas idéias. É possível levantar algumas suposições sobre a formação das gerações que cresceram nesses anos da construção da identidade paranaense. Mas, de que teria surgido o projeto de uma identidade paranaense? De onde surgiu a idéia do Paranismo, e como ganhou força? Vale transcrever a necessidade de uma identidade característica, nas palavras de Brasil Pinheiro Machado, publicada no Rio de Janeiro em 1930: 96 O Paraná é um estado typico desses que não tem um traço que faça delles alguma coisa notável, nem geograficamente como a Amazônia, nem pitorescamente como a Bahia, ou o Rio Grande do Sul. Sem uma linha vigorosa de história como São Paulo, Minas e Pernambuco, sem uma natureza característica como o Nordeste, sem lendas de primitivismo como Mato Grosso e Goyaz. Dentro do Brasil já principiado o Paraná é um esboço a se iniciar. Falta-lhe o lastro dos séculos. Apezar de ser o estado de futuro mais próximo, forma nessa retaguarda característica de incaracterísticos. [...] eu poderia affirmar sem errar por muito que o paranaense não existe. O Paraná não existe dentro do complexo brasileiro [...]. O Paraná é um estado sem relevo humano. Em toda a história do Paraná nada houve que realmente impressionasse a nacionalidade. Nenhum movimento com sentido consciente mais ou menos profundo. Nenhum homem de Estado. Nenhum Sertanista. Nenhum intellectual. Nem ao menos um homem de lettras, que saindo delle, representasse o Brasil, como Maranhão teve Gonçalves Dias, a Bahia Castro Alves, o Ceara José de Alencar e Minas Geraes Affonso Arinos, etc. A história e a geografia não tiveram forças bastantes para affirmarem o Estado do Paraná. Ella se resumiu na conquista anonyma da terra e na colonisação (iniciativa de fora) sobre a selvageria, a semicivilização ou o deserto. E depois da época dos bandeirantes ella dormiu até a imigração extrangeira. O aspecto geográfico, de pleno acordo com a história, é formado de trechos de toda a configuração do sul do Brasil. (PEREIRA, 2000, p.113). Não seria de admirar o desconforto que essa crítica, publicada na capital federal, possa ter causado aos intelectuais do Paraná. Segundo Luiz Fernando Pereira, o que Brasil Pinheiro Machado ressaltou como "incaracterístico" no Paraná eram exatamente as lacunas às quais os intelectuais paranistas tentariam preencher. "Eles construíram uma história regional, lendas de primitivismo e até mesmo uma natureza característica para a região." (PEREIRA, 2000, p.133). Desejaram lançar as bases de uma identidade. Fazer com que seus habitantes nutrissem "um mesmo sentimento de pertencimento à terra paranaense". Tratou-se da invenção de um Estado que nem as fronteiras geográficas bem definidas possuíam (PEREIRA, 2000, p.113). Uma identidade impregnada pelas idéias de ordem e progresso, trabalho e justiça, criados por uma gente trabalhadora, pouco importa a origem, contanto que demonstrasse afeição realizando algo de concreto nas terras paranaenses; 97 desta forma, estariam colaborando não somente com a construção de um Paraná melhor, mas também na criação de uma nação e até mesmo na difusão de um sentimento de humanidade (PEREIRA, 2000, p.139). O Movimento Paranista inventou o Estado do Paraná. Construiu uma história ficcional, uma "memória estadual", para transcender os sujeitos e sedimentar-se como identidade, o que não se concretizou no cotidiano das pessoas, uma vez que essa história queria fazer-se memória, mas, por não ser produto de uma história social de verdade, da ritualização da tradição, como disse Ortiz, "se projeta para o futuro, não se limita a uma reprodução do passado como sagrado" (ORTIZ, 2003, p.135). A construção da identidade do paranaense teria, através da relação política do Estado, a interação entre o estadual e o povo. Ortiz diz que "a identidade se estrutura no jogo entre as forças popular e estadual tendo como suporte a sociedade e, no Estado, o agente que constrói a identidade através de uma relação política" (2003, p.139). Esta articulação é produzida pelos intelectuais, "aqueles capazes de mediar simbolicamente esta construção", fazendo com que suas idéias, sempre interpretações da realidade, se perpetuem, ao mesmo tempo que suas mediações: imagens, música, literatura, artes plásticas, "sejam apreendidas como uma reinterpretação simbólica" (ORTIZ, 2003, p.140). São os universos simbólicos que ordenam a história dos homens. A ordenação do passado estabelece a memória que é partilhada pelos indivíduos do grupo, e este é que define uma rede de referências para a projeção das ações de cada um. A vida cotidiana "apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente" (BERGER, 2002, p.35). Nesta realidade, as emoções são social e historicamente construídas (JAGAAR, 1997, p.173). Os universos simbólicos, incluindo-se nele a arte, é um instrumento de legitimação disto. Eles possuem a capacidade da atribuição de significações que 98 excede em muito o domínio da vida social, "de modo que o indivíduo pode 'localizarse' nele, mesmo em suas mais solitárias experiências" (BERGER, 2002, p.132). A arte é do universo simbólico humano, fruto de um trabalho sensível e intelectual. O trabalho do intelectual é uma interpretação. Ele sutura as dimensões do universal ao singular (ORTIZ, 2003, p.139). Norberto Bobbio afirma que a relação entre o poder e o intelectual pode se configurar como sendo "a relação entre duas diferentes formas de poder". Justamente, pelos intelectuais exercerem poder via suas obras, "mediante a persuasão e não a coação, nas formas expressas de manipulação ou de falsificação dos fatos por meio de violência psicológica" (BOBBIO, 1997, p.112). Como disse Renato Janine Ribeiro, "Intelectual não é apenas quem tem uma certa cultura a mais do que alguns outros. É quem assina idéias, quem responde por elas" (Folha de S. Paulo, 18/02/2007). No caso do Paraná e do movimento paranista, os intelectuais e artistas da vanguarda cultural da época se empenham na construção dessa identidade para produzir um reflexo na população, a fim de que esta identidade não caísse no vazio (PEREIRA, 2000, p.132). Essa construção de identidade recebeu grande investimento e adesão, a ponto de atravessar o século. Esse princípio paranista teria caído se "todo aquele que tem pelo Paraná uma afeição sincera" e "a manifesta nas atividades dignas à coletividade paranaense" (PEREIRA, 2000, p.137) não tivesse nos intelectuais os mediadores simbólicos dessa criação. Tornou-se história pela obra deles, está nas calçadas da capital do Estado desde 1922 em um concurso público em que a proposta de Lange de Morretes31 foi aceita, calçadas de petit-pavê com araucárias, pinhas e pinhões; está nas pinturas históricas de Theodoro de Bona, A 31 Em 1922, um concurso público em Curitiba, por ocasião das comemorações dos 100 anos da Independência do País, elegeu a proposta paranista de estilização da araucária, do pinhão e da pinha para as calçadas de algumas ruas do centro da cidade. Lange de Morretes foi um artista e cientista, natural de Morretes (PR), aluno de Alfredo Andersen e parceiro na proposta de João Turin de um estilo paranaense de arte decorativa. 99 Criação de Curitiba; na obra pública de Poty Lazzarotto, com grande vigor, na constante revisitação ao tema da identidade paranaense, por diversos governos do Estado. A força dessa construção de identidade por esses elementos foi tamanha que se solidificou em certos segmentos. Em 1986, arquitetos buscaram atualizar o estilo em "uma proposta pós-paranista de arquitetura, tendo o pinhão como elemento central" (SANT'ANNA, 1987, p.135). É importante mencionar ainda que o termo Paranismo não esteve vinculado unicamente a movimentos intelectuais no Estado do Paraná, mas sobretudo à ideologia desenvolvimentista desde os anos 50. Leão diz que o Paranismo foi uma ideologia construída "com vistas a mobilizar a opinião pública e os esforços da sociedade no sentido de construir um Paraná economicamente forte e socialmente justo" (1999, p.10), o que, segundo o autor, tratou-se de "uma adequação às fronteiras do Estado, da ideologia desenvolvimentista, muito forte no Brasil nos anos 50 e na primeira metade dos anos 60". O autor ainda pontua que essa ideologia era "de incorporação de trabalhador, de incorporação de paranaenses, de captação de capitais locais que corressem o risco da industrialização e de uma industrialização dentro das fronteiras do Estado" (LEÃO, 1999, p.12). Ele aponta que o modelo não teve sucesso devido a inúmeros fatores econômicos internos e relativos à economia brasileira. Mas o termo ideologia, seja ele empregue na produção intelectual ou ligado à produção econômica, sempre teve forte apelo ao poder, por isso sua manutenção. Prova disto é a criação do neologismo Paranização, derivado de paranista, e que será apresentado a seguir. 4.10 EM 2005: A PARANIZAÇÃO Essas idéias estão impregnadas de tal forma no imaginário da população, e assim está pelo uso que o poder faz delas, que em 2005 o projeto político do governo estadual utiliza o termo Paranização. Aparece ainda na forma de verbo, 100 paranizar. "Paranização é um programa de política pública de cultura de nosso governo" (JASON, 2003, p.7), como explica a diretora-presidente do Centro Cultural Teatro Guaíra. No Caderno da Paranização de número 1, descrevendo a política de ações do Guaíra (2003 a 2007), o governador abre a publicação afirmando: "É o que o Teatro Guaíra está fazendo, 'paranizando' suas atividades" (JASON, 2003, p.5), por não manter suas ações na capital do Estado mas disseminar no interior suas atividades. Na mesma publicação a instituição é nomeada como um "Emblema da Cultura do Estado", um patrimônio dos paranaenses que vai ao seu encontro, no caminho de Romário Martins, Guelfi e tantos outros sonhadores da identidade e da integração do Paraná (JASON, 2003, p.11). Sérgio Rodriguez comenta em sua página: "nomínimo a palavra é", na internet, que no Google, naquele momento, apareciam 3.250 itens sobre Paranização. Ao que parece, o termo criado pelo programa de cultura do Teatro Guaíra tinha sido usado pelo governador, disseminando-se pelos escalões do governo. Rodriguez comenta a palavra "paranização"32, encontrada na Folha de S. Paulo, em uma resposta do Governo do Paraná à revista Exame. Segundo Rodriguez, A matéria expunha sobre a disposição do governador Roberto Requião se referindo à indústria automobilística estrangeira no Estado. O relevante é o texto afirmar a certa altura que o governo "tem feito gestões para aumentar a contrapartida da Renault, como, por exemplo, o incremento no índice de nacionalização e paranização das peças dos carros aqui montados" (RODRIGUEZ, 2004). Muitas são as referências utilizando a palavra paranização. Na Revista Detrânsito33, publicação mensal do Detran, o então novo diretor era entrevistado e respondia de que maneira o órgão poderia aproximar-se da população. "É preciso 32 http://nominimo. ig. com. br/notitia/servlet/newstorm. notitia. presentation. NavigationServlet? publicationCode=1&pageCode=65&textCode=20090&date=1136170860000&contentType=html 33 http://www. pr. gov. br/detran/detransito/detransito_001d. html 101 'paranizar' o Detran, ele não pode mais ter a cara só de Curitiba", ao referir-se a um trabalho que atendia ao interior. Esses dados podem parecer irrelevantes em face de uma questão que trate da identidade construída no Estado do Paraná, mas mostram a presença daquelas idéias Paranistas – a identidade forjada no século XX –, permanentes em governos populistas até a atualidade. Essas idéias, transformadas em ícones, construíram na cidade de Curitiba, desde o início do século XX, uma cultura visual comprometida com essa visão. São instituições, bancos, mercados, centros comerciais, que trazem a marca Araucária, logotipos e publicidade em torno desta imagem. A recorrência à imagem é tão forte que o termo "Araucária Ltda." aparece 129.000 vezes se pesquisado em um sítio de busca na internet, o Google. Em Curitiba, as faixas de pedestres do centro da cidade se diferenciam das outras capitais do Brasil. Elas são pinhões estilizados, mesma imagem que decora a coluna que sustenta a imagem da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Luz, instalada próximo ao Centro Histórico por ocasião do tricentenário. O pinhão foi convertido em uma marca muito forte a partir das comemorações do tricentenário da capital. O então prefeito enterrou, na inauguração do Memorial dos 300 anos de Curitiba, uma cápsula do tempo. O objeto, contendo cartas, cartões telefônicos, fichas de transporte, bilhetes, boletins de serviços da Fundação Cultural, fotos e outros dados, foi esculpido na forma de um pinhão e fundido em bronze. O valor simbólico que este ato dá às comemorações é significativo. Sua abertura foi marcada para cinqüenta anos depois daquelas comemorações, em 2043. Poty Lazzarotto, que desde os anos sessenta valeu-se desses ícones na produção de sua obra pública, criou um painel para a fachada do Aeroporto Afonso Penna. Na alegoria do painel em azulejos aparece o Mapa Mundi e diversos estereótipos, ou pontos turísticos ilustram os continentes: a Torre Eiffel na França, o Cristo Redentor no Brasil, um elefante na África, por exemplo. Em meio a este turbilhão de imagens, um jovem de jeans, mala e boné usa uma camiseta branca. Nas 102 costas da camiseta ele tem estampado um pinhão. Uma marca da identidade do paranaense instituída por decisão oficial e que, pela obra do intelectual, permanece. Como diz Ferreira (2004), seus murais estão ligados a histórias específicas, atendendo a projetos propostos por instituições públicas ou privadas, mas usam, praticamente, os mesmos símbolos que reafirmam, no espaço urbano ou no privado, a identidade curitibana (2004, p.39). Essas obras, em sua dimensão e pelo poder que o Estado construiu em torno do seu criador, investem sobre a população, impondo as idéias identitárias que carregam. Como afirmou Stuart Hall, "A identidade surge não da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é 'preenchida' a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros" (2005, p.39). Nos painéis aqui registrados podemos perceber que o talento de Poty consegue apreender a realidade do Paraná nos seus diferentes momentos, retratando, na maioria de suas obras, elementos significativos capazes de resgatar a identidade com a plástica de seu trabalho, ora do desenvolvimento da humanidade, ora da presença do homem que forma o Paraná (PMC/FCC, 1987). Essa citação foi retirada do Boletim do Patrimônio II, publicado em 1987 por ocasião da inauguração do painel de Poty na fachada do Palácio Iguaçu, "O Paraná". Quem assina o texto é o então presidente da FCC. Muitas outras frases do texto demonstram a implicação dos órgãos oficiais de cultura e a produção das crenças quanto à construção desta identidade forjada. 4.11 A FORÇA DAS IDÉIAS QUE NÃO SÃO NOSSAS MOLDANDO NOSSA COMPREENSÃO O que Bourdieu (2000, p.167) denominou habitus, ou, em palavras de Burke, "esquemas que permitem aos agentes gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que se modificam de modo ininterrupto”, Martins diz serem "as matrizes de nossa percepção, esquemas referenciais" (2000, p.20). O que 103 significa que as pessoas nascidas nas classes populares não possuem naturais instrumentos de percepção de expressões de cultura erudita por estas serem expressões socioculturais, que não temos o menor recurso para ver a arte africana, que nossos ouvidos não ouvem as notas musicais indianas, e tanto mais. O habitus é a formação da cultura no indivíduo inserido em seu contexto, moldando sua percepção. Depois disso estabelecido, irá o sujeito, ao longo da vida, adaptando este instrumento de filtro do mundo, recebendo isto, não recebendo aquilo. Assim, ao entrar no curso superior de arte, a pessoa passará pela violência maior. A da desvalorização do patrimônio que trouxe de sua história de vida, para a assimilação do patrimônio erudito. O que ocorre nas universidades não é em nada diferente do problema da escola. Tudo é reproduzido, com raras exceções. Pela operação reprodutivista nestes cursos superiores o gosto culto é ensinado, fazendo o estudante assumir o padrão dominante e oprimindo o seu. Este padrão não tem sustentação na história destes indivíduos; sobretudo não tem significação e é quase aderido sobre ele. A formação é uma operação da fôrma. Esse ensino superior da fôrma em licenciaturas em arte forma ou deforma profissionais? Até mesmo a seleção dos estudantes para curso, pelo vestibular, em alguns casos, se dá primeiramente por uma prova de habilidade específica (desenho), e não por uma entrevista ou outro modo que perceba sujeitos desejantes desta função social. Esse ensino sem crítica e sem significado, que contempla a história universal da arte e, com raríssimas exceções, apresenta como esta história ocorreu no local em que esta pessoa está inserida, não apresenta uma história contemporânea, por não alcançar o conteúdo pela quantidade de tópicos a serem vistos. É ensinado apenas o secular, o atendimento a padrões dominantes de arte ditados pelos grandes centros, e não a arte como um embrião do social. 104 Desprezam-se outras formas de arte que não as eruditas, inculcando preconceitos formatados que, com imensa dificuldade, serão revistos pelos sujeitos. Na mesma problemática vão os cursos de especialização, em larga oferta num mercado de ensino, em que mestres e doutores sem nenhuma relação com a educação e sua realidade, sem noção sobre a filosofia dos cursos em que atuam, agem em uma "educação bancária" (FREIRE), despejando sobre os alunos sua erudição. Isto tudo para falar da formação de professores em arte. Na realidade do ensino da arte, os profissionais não receberam a formação específica. A grande maioria das professoras que lecionam arte não tem formação específica. E esta não é uma realidade apenas de Curitiba. Como essas pessoas percebem a arte, então? Caímos no outro penhasco. De um lado, têm-se pessoas com formação específica e instrumental dominados; de outro, professores que não se sentem capazes desta missão por não terem "introjetado o opressor" (FREIRE, 2005, p.54) em suas histórias, e que se desvalorizam. Sem aquele instrumental, não conseguem encontrar forma de sustentar práticas revolucionárias. Não compreendem e desconsideram "o papel substantivo e crítico da cultura, particularmente da cultura popular, na pedagogia e no aprendizado" (GIROUX, 2003, p.41). Não conseguem perceber, em suas próprias histórias, a possibilidade de ensinar a arte na dimensão que conhecem. Uma dimensão que, tratada por uma educação política, possa significar intervenção no mundo, propiciando "a oportunidade que os estudantes alterem a estrutura de participação e o horizonte pelo qual suas identidades, seus desejos, são moldados" (GIROUX, 2003, p.161). Uma prática que aos estudantes pode ser muito significativa. Em tempos de valorização Multiculturalismo e dos Estudos Culturais no ensino das Artes Visuais, o artesanato, antes tão desvalorizado pela crítica do ensino de arte moderna, pode ser articulador de grandes descobertas. No entanto, essas pessoas não foram construídas assim, trazem suas histórias enraizadas em suas culturas, e precisam ser percebidas em suas características. Foram construídas como professoras em esquemas de domesticação do imaginário. Dominação em que suas percepções e atos são delineados. 105 Esses fatores são determinantes para se pensar na compreensão das professoras sobre as obras de arte e entender por que, em suas práticas docentes, reproduzem conceitos e ideologias e não se vêem dominadas e assujeitadas, e não chegam a construir sua autonomia. Em um evento na Secretaria Municipal de Educação, em 2006, perguntei se algumas professoras poderiam responder a um breve questionário. Este tinha a função de sondar se as hipóteses que levantava sobre o problema em torno do ensino de arte e a obra de Poty eram pertinentes. Ao serem questionadas sobre a importância do artista Poty Lazzarotto, uma professora de Escola Pública Municipal de Curitiba respondeu que ele era importante por se tratar de um artista local, que trilhou seu caminho com esforço, reconhecido, e que muitas de suas obras estão ao alcance de todos, pois encontram-se espalhadas pela cidade. Na resposta da professora há muitas coisas a se pensar. A primeira é a idéia de que o reconhecimento é uma espécie de bônus recebido pelo esforço, o que traduz uma idéia cristã: "[...] trilhou seu caminho com esforço, reconhecido, [...]." Outra expressão que revela uma idéia de senso comum, mas de grande equívoco, o aparente alcance ou democratização do bem simbólico por sua localização em logradouro público: "[...] suas obras estão ao alcance de todos, pois estão espalhadas pela cidade". Esse ponto é muito rico, por ser um discurso aprendido da classe dominante, inclusive do próprio artista. No documentário A Obra Monumental de Poty, produzido em Curitiba pela TV Professor, o artista e amigo de Lazzarotto Domício Pedroso, responsável pela narração do documentário, declara que Poty entendia ter alcançado maior público via seus painéis em concreto na cidade. A afirmação de que a obra de arte por uma proximidade física, a céu aberto ou exposta na cidade, a torna pública e a põe ao alcance das pessoas estabelece como verdade a afirmação contrária: de que a arte em espaços específicos, os templos da arte, museus e galerias – locais que criam a atitude 106 estética sem a qual aquele campo não pode funcionar –, trata-se de um bem simbólico de público específico (BOURDIEU, 2005, p.286). Contudo, em comparação às obras nos museus, a arte pública está de fato fisicamente mais acessível. Foi Marx quem disse que "a formação dos cinco sentidos é uma obra de toda a história universal anterior" (VÁZQUEZ, 1999, p.137). E, com toda certeza, o sentido da visão à arte é um sentido construído. Há um olhar que conhece o que vê, um que descobre podendo ver, um que passa sem se interessar, um que nada vê do objeto artístico. Na cidade são muitos os olhares que não têm a possibilidade de ver e muitos são os motivos para isso, desde aqueles de ordem objetiva da vida urbana, como a pressa, até os socioculturais. Aquele que vê arte possui um olhar sobre a arte determinado pelas experiências da vida pessoal. Como assinala Geertz (2005, p.178), esse olhar não é menos um artefato cultural que os objetos e instrumentos inventados para sensibilizá-lo. Como o homem é social, sobre sua percepção individual "se impõem certos hábitos, estruturas ou esquemas perceptivos, que determinam o modo como o sujeito organiza os dados que seus sentidos proporcionam" (VÁZQUEZ, 1999, p.137). Esses hábitos terão variantes de culturas, concepções de mundo ou ideologias dominantes. Assim, pode-se supor que o sujeito morador da Vila das Torres34, que cruza a cidade todos os dias puxando os setenta quilos de seu carro de recolhimento de papel, criado sem nenhum acesso à arte culta, não terá, frente a um painel de concreto aparente, permanentemente exposto na rua, o mesmo olhar daquele outro sujeito morador do bairro de classe alta. O capital simbólico que este outro sujeito construiu, desde seus tempos de escola, pela herança cultural que recebeu da família e de outras oportunidades que a vida lhe deu, faz com que sua percepção sobre a arte seja outra. São olhares construídos em diferentes condições e culturas. 34 A Vila das Torres é um bairro carente de Curitiba, anteriormente conhecido como favela Vila Pinto. 107 O outro dado interessante a pensar a possibilidade do transeunte "fruir desinteressadamente"35 da obra de arte inserida no cenário urbano são seus instrumentos para isso, uma vez que "a aquisição dos bens simbólicos depende da posse dos instrumentos de aquisição destes bens", como disse Pierre Bourdieu (1997, p.165). Experiências que o tenham aproximado daquela especificidade da arte, fazeres exploratórios enquanto escolar em que os meios de criação artística são apresentados aos estudantes, palestras, apropriação de códigos e da história da arte, são fatores que contribuem no apoderamento da leitura. É evidente que estes instrumentos estão à disposição de quem os pode procurar, como disse Geertz: "só precisam que lhes dê condições para exercitar esse poder" (2005, p.178). É o que ocorre nas escolas privadas, com salas ateliê de arte, diferentemente da realidade das escolas públicas; nos museus, lugares onde só vai quem sabe o que encontrará (BOURDIEU, 2001, p.214), e com os leitores eruditos com tempo livre. Cabe aqui pensar, pela resposta daquela professora36 e de outras com as mesmas idéias, na força da ideologia presente no que se refere a este artista e a sua obra. As idéias apresentadas não têm a autoria da professora. São "o pensamento do outro, o pensamento de alguém diferente de nós" (THOMPSON, 2002, p.15). Como o autor defende em Ideologia e Cultura Moderna, para a maioria das pessoas uma ideologia não está apenas "em relação às formas de poder que estão institucionalizadas no estado moderno", mas nas "relações de poder e dominação que as atinge mais diretamente [...] caracterizadas pelos contextos sociais dos quais elas vivem suas vidas cotidianas: a casa, o local de trabalho, a sala de aula, os companheiros" (p.18). 35 A fruição estética é uma idéia alicerçada nas premissas da arte moderna e, seu ensino, uma idéia contrária à concepção do ensino pós-moderno de arte, que compreende a arte por suas relações sociais, culturais e implicações de poder. 36 "Trilhou seu caminho com esforço, é reconhecido, suas obras estão ao alcançe de todos, pois estão espalhadas pela cidade" (p.105). 108 Uma vez que "a escola é a instituição encarregada de inculcar as idéias dos dominantes, pelo conhecimento e valores que transmite [...], impondo valores, doutrinas e idéias, em uma imposição de significações ou de valores considerados legítimos" (SEVERINO, 1986, p.46-47), as professoras acabam se assujeitando àquelas idéias. O assujeitado é aquele que não é dono de seu discurso e de sua vontade: sua consciência, quando existe, é produzida fora e ele pode não saber o que faz e o que diz. Quem fala, na verdade, é um sujeito anônimo, social, em relação ao qual o indivíduo, que em dado momento ocupa o papel de locutor, é dependente, repetidor. Ele tem apenas a ilusão de ser a origem de seu enunciado, ilusão necessária, de que a ideologia lança mão para fazê-lo pensar que é livre para fazer e dizer o que deseja. Mas na verdade, ele só diz e faz o que exige que faça e diga na posição em que se encontra (KOCH, 2005, p.14). Essas idéias alinham-se muito às de Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido (2005). O oprimido que chega a ter o opressor hospedado em si. "Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo. " (FREIRE, 2005, p.38). É justamente o caráter reprodutivista da escola que condiciona a compreensão das professoras. Bourdieu e Passeron concebem a educação como instrumento de reprodução das relações de força vigentes na sociedade. (SEVERINO, 1986, p.47). Os autores mostram como a reprodução do sistema de ensino, enquanto relativamente autônomo, permite a reprodução da cultura dominante, reprodução esta que atua como poder simbólico, reforçando a reprodução das relações reais de poder, no interior das formas sociais. Segundo Bourdieu, o trabalho pedagógico serve para produzir e reproduzir a integração moral do grupo ou da classe em nome dos quais ele se exerce (BOURDIEU/PASSERON, 1982, p.47). Ao pensarmos no uso da obra de Lazzarotto em trabalhos pedagógicos nas escolas em Curitiba, podemos pensar na reprodução de tais conteúdos e suas 109 conseqüências. "O TP (trabalho pedagógico) produz indissociavelmente a legitimidade do produto e a necessidade legítima desse produto como produto legítimo, que produz o consumidor legítimo, isto é, dotado da definição social do produto legítimo e da disposição a consumi-lo nas formas legítimas" (BOURDIEU/ PASSERON, 1982, p.49). Tomando essa frase como lente para olhar o caso aqui apresentado, a grande quantidade de obras do artista Poty na cidade de Curitiba, e o fato de ele ser nativo desta cidade, serviram como justificativa para a projeção nacional que alcançou. E como esses dados foram maciçamente veiculados por ocasião das comemorações dos 330 anos da capital por instituições – fato que neste trabalho foi apresentado como sendo uma pressão ideológica exercida pelo poder –, isso o torna necessário, faz legítimos como conteúdo de arte os painéis na cidade, o autor e as idéias que este apresenta. Esta engrenagem na experiência escolar, nas práticas artísticas orientadas com contextualizações de crítica reduzida, gera no estudante uma possibilidade de ler tais dados, uma disposição de consumir, ver tais obras como legítimas. Ele torna-se o "consumidor legítimo". Por esse discurso às ocultas, clandestino, sub-reptício sob a obra e seu autor, ambos tornam-se conteúdo arbitrário. Pode-se pensar que não se tem escolha, pois em algum momento alguma professora ou professor, quer de Artes Visuais, quer não, fará menção sobre eles em sua prática didática, pela pressão invisível da ideologia. O mesmo ocorre no caso do aluno, que, pela arbitrariedade desta obra pela cidade, possivelmente já a terá percebido. Este verá a obra legitimada por aquele trabalho pedagógico na escola, sem jamais questionar por que a obra e o autor são apresentados em tamanha oferta e importância. Ao pensarmos na construção dessa identidade, promovida também com a obra de Poty Lazzarotto pela pressão de sua oficialidade, precisamos pensar nos veículos de difusão dessas idéias, "que pode ser, sutilmente, a própria ideologia difundida e conservada pela escola [...]" (CHAUÍ, 2006, p.110). 110 Professoras em sala de aula, no intuito de promover cidadania, estender o alcance da visão de seus alunos e sua participação no que tange à conservação e promoção do patrimônio público, ou, até mesmo, desejando explorar conceitos de localização e deslocamento, reproduzem essa ideologia em suas práticas. 4.12 RELAÇÃO ENTRE PODER E SABER: A QUEM A OBRA REPRESENTA, PARA QUE O FAZ E A QUEM ELA EXCLUI? Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1977), fala sobre os processos do poder de julgamento e administração de penas sobre a alma humana, as subjetividades e as conseqüências deste processo na modernidade. Segundo o autor, nunca existiu um momento em que as coisas fossem pacíficas no jogo do poder. Seja pela força, dinheiro, posição privilegiada, status ou conhecimento. Como disse Foucault, "não existe nenhuma relação de poder sem uma correlativa constituição de um campo de conhecimento, nem qualquer conhecimento que não pressuponha e constitua ao mesmo tempo relações de poder" (FOUCAULT, 1977, p.27). Estes campos de poder e saber sempre privilegiaram alguns, excluindo outros em defesa de seu domínio e sobrevida. Diferir sempre esteve entre as estratégias mais violentas, por sua eficácia simbólica – classificar o outro como bárbaro, primitivo, deficiente, interiorano, estrangeiro, posseiro, ignorante, selvagem, herege, hétero ou homossexual, enfim, diferido por uma escolha ou característica específica, quer física, quer cultural ou de outra ordem. A história da modernidade descreveu as diferenças culturais por três perspectivas: a etnocêntrica, a relativista e a legitimista. Na primeira, a etnocêntrica, o valor da sua própria cultura foi tomado como posição e, deste status privilegiado, as outras culturas foram ditas inferiores ou deficientes. O relativismo valorou como iguais todas as culturas, "privilegiando a descrição de sua coerência interna e de seu dinamismo criativo autônomo" e, por último, a perspectiva legitimista veio destacar 111 as relações de poder entre as culturas, estabelecendo como cultura legítima a qual na relação de força subjuga a outra" (SILVA, 1993, p.132). Segundo Peter Mclaren, a teoria pós-colonial atravessa velhos e novos domínios disciplinares, criando novos padrões e relações de compreensão sobre as conexões entre poder, discurso e prática educacional, e, justamente por isso, pode ser vista como uma forma de "teoria itinerante" (apud SILVA, 1993, p.25). Esta perspectiva retira "o Outro" (esse perigoso desconhecido) do lugar que a modernidade lhe impunha: de estranho. Este "Outro" que precisava ser julgado, explicado, descrito "'a partir de uma perspectiva privilegiada, superior, pretensamente universal', pode, pela teoria pós-colonial, ser confrontado no mesmo nível de 'validade'", não permitindo mais ser "descrito e explicado a partir de um ponto de referência externo, seja o de um outro grupo, seja o da 'ciência'" (MACLAREN apud SILVA, 1993, p.131). Disse Foucault que a verdade "induz efeitos regulares de poder" (1977, p.151). Discursos gerados e governados por regras e poder dominantes, capazes de determinar "o que conta como verdadeiro, importante, relevante, e o que acaba sendo falado" (CHERRYHOLMES apud SILVA, 1993, p.152). Podemos dizer que essas idéias compreendidas como relevantes são as idéias consideradas dignas de ser ensinadas no currículo escolar. São as idéias escolhidas por quem detém o poder da seleção de idéias dignas de transmissão. No último capítulo deste trabalho foram colocadas questões referentes à ideologia como sendo as idéias que não nos pertencem, que são de outros (THOMPSON, 2002), e que acabamos recebendo nos processos de dominação sofridos ao longo de nossa construção como sujeitos. Muitas vezes essas idéias são discursos oficiais, expressões do poder que exercem sobre a educação, as relações sociais e a cultura. Essa opressão do poder reflete-se em práticas comprometidas, em práticas dominadas, sem autonomia. Justamente por este reflexo é importante pensar na educação, nas relações sociais e na cultura como políticas. 112 Para Giroux (2003, p.18), o interesse na manutenção de autoridade e relações sociais legítimas, da mídia e instituições, além de "um conjunto de práticas que representam o poder", moldam identidades e legitimam "formas precisas de cultura política". Para o autor, "a cultura tornou-se a força pedagógica por excelência", pelos diferentes segmentos sociais que atinge. Esta força pedagógica faz com que as pessoas se definam a si mesmas e a suas relações com o mundo social. Esta relação entre cultura e pedagogia não pode ser abstraída da dinâmica central da política e poder (GIROUX, 2003, p.19). Se essa relação não pode ser abstraída, ela precisa ser enfrentada por práticas educacionais que revelem estas forças e seus efeitos, que descortinem sob os mitos os sentidos dúbios que possuem, a fim de evitar a modelagem de identidades. As práticas pós-modernistas na educação compreendem esta necessidade de desconstruir. Para tal, valem-se da desconstrução de mitos e verdades. Desconstruir não significa destruir. Trata-se de um método de análise aplicado inicialmente à literatura. Foi o filósofo Jackes Derrida (1930-2004) seu autor. Pela desconstrução chega-se à compreensão sem construir verdades absolutas, mas à diversidade de possíveis leituras ou olhares. As práticas pósmodernistas ligadas ao ensino das artes visuais têm muita contribuição deste procedimento de análise, como disse Efland (2003, p.177). O uso da desconstrução da imagem no ensino da arte permite o desvelamento dos discursos e ideologias que servem a determinados grupos e estão abaixo da camada do visível. Sob a imagem. Com isto, surge também a necessidade de interpretações que possam expressar contraposições a estas produções visuais de duplo sentido. Segundo Chanda, o "desconstrutivismo serviria para rever interpretações de artefatos culturais mal interpretados por muito tempo". A autora diz também que os problemas desta abordagem implicam em um ciclo de interpretações que mostram que a arte não é determinada, limitada nem estável e que a idéia da interpretação correta, mesmo que venha da cultura de origem da obra de arte, é falível (apud BARBOSA, 2005). 113 Para Hernández, citado por Franz (2003, p.13), a contraposição aos duplos sentidos das obras revelados na desconstrução da imagem é um papel do ensino da arte pós-moderna, que exige dos educadores práticas revolucionárias que afrontem e permitam o posicionamento dos estudantes frente aos discursos. Lembra Giroux que "o combate aos discursos exige atenção", uma vez que "o discurso não nega a existência da realidade material, mas torna problemática a forma como ele recebe significado e como esse significado freqüentemente se traduz em efeitos materiais discerníveis" (GIROUX, 2003, p.119). Com isso podemos pensar nos atos de instauração das obras de arte como atos de transferência dos discursos à materialidade. O processo de criação e produção, os elementos materiais de produção, os atos constitutivos da obra, inclusive a formação do autor, são expressões da sociedade e da cultura de origem do artista37. Fundidos na obra estão os discursos, aquilo que não é físico. Aquilo que não é visível, mas se tornou visível. Os valores depositados no artista são transferidos à obra. Discursos de poder, da arte, da cultura, ou, ainda, identitários, como no caso da obra de Poty. Estão na obra de arte além da sua matéria, são visíveis em um corpo físico distinto de um corpo discursivo, pois é matéria inerte, mas prenhe de significados, possíveis de construção de outros discursos. Narra de forma gráfica e plástica, utilizando-se da cerâmica, do azulejo e do concreto, pedaços da nossa história e dos nossos costumes, com uma linguagem peculiar e um inconfundível estilo artístico [...] (PMC/FCC 1987 Curitiba Memória e Patrimônio). Como disse Stuart Hall, "Tudo está dentro do discursivo, mas nada é apenas discurso ou apenas discursivo" (apud GIROUX, 2003, p.119). 37 Por isso, o ensino das Artes Visuais que este estudo defende fundamenta-se nas abordagens socioculturais, contrapondo-se às abordagens formalistas da arte. 114 Depois das obras instauradas, criadas, confeccionadas, seja por que processo de criação for, elas, no caso de Poty, foram instaladas na cidade. A instalação dos painéis em instituições públicas, como o Palácio do Governo, amplia o discurso identitário. Ele se oficializa. Como exemplo disso podemos pensar nas palavras do poder manifestas em catálogos, em fôlderes de inaugurações de obras. Materiais que carregam a marca de oficialidade, como legitimadora de idéias confiáveis, fontes seguras, mas que, no entanto, repetem discursos de seu interesse e são utilizados nas pesquisas de professoras e educandos, acadêmicos e interessados na história, como se segue: Se o patrimônio cultural de uma cidade é o resultado do trabalho e do esforço criativo de seus habitantes, é direito de todos os cidadãos usufruir. Compete, portanto, ao órgão municipal de cultura responder às necessidades do conhecimento e divulgação deste patrimônio, garantindo o acesso democrático a estes bens. Valorizar o patrimônio cultural é fundamentalmente aproximá-lo à vida atual da cidade. Neste sentido, a obra de Poty Lazzarotto como parte significativa do patrimônio cultural inaugura a primeira publicação referente a um projeto maior [...] (PMC/FCC 1987 Curitiba Memória e Patrimônio). É importante salientar, na citação acima, o que compete ao órgão municipal de cultura em Curitiba: "responder às necessidades do conhecimento e divulgação deste patrimônio, garantindo o acesso democrático a estes bens", um "direito de todos os cidadãos usufruir". O texto apresenta um serviço de patrimônio que a prefeitura inaugura com a obra do artista, e segue uma breve biografia de Poty enaltecendo a formação acadêmica, a permanência na Europa e a contribuição à cultura nacional. O valor de identidade da obra, a representatividade do artista como paranaense e curitibano surgem em diversos momentos. Como disse Giroux, a cultura "oferece a identificação e noções de sujeito por meio de formas de conhecimento, valores, ideologias e práticas sociais que disponibiliza, em relações desiguais de poder, para diferentes setores das comunidades" (GIROUX, 2003, p.19). O órgão oficial de cultura no município "emprega o poder em suas conexões com o campo da subjetividade" (GIROUX, 2003, p.19). 115 5 A OBRA DE POTY E O ENSINO DE ARTES VISUAIS A obra de Poty, ao longo de sua exposição pela cidade e da conseqüente repetição do discurso que contém e do discurso que a estabeleceu, tornou legítimo o caráter pedagógico que a ela foi encomendado, como será demonstrado à frente. Em vários momentos do currículo básico, assuntos referentes à Geografia e à História mencionam o meio ambiente, o homem e a cidade de Curitiba e estes tópicos fazem parte das diretrizes curriculares municipais no ciclo I (www.cidadedoconhecimento.org.br, 2006, p.164). É uma prática da pedagogia ilustrar, ou fazer paralelos entre os conteúdos e as experiências dos educandos, a fim de que as informações se tornem mais concretas e o ensino mais significativo. Um exemplo seria uma professora de Curitiba que, atendendo ao currículo na área de História, fosse lecionar algum assunto referente ao tema da cidade. Para transpor o conceito de cidade, um tanto abstrato, para um significado mais concreto e próximo às experiências do educando, ela usaria como exemplo a cidade de Curitiba. Dando um pouco mais de vazão à hipótese, o que poderia ser genérico tornar-se-ia específico, e todos os fatores a envolver a conceituação de cidade apontariam naturalmente a determinados momentos históricos dela. Exemplificando: se uma professora que, obedecendo ao currículo38, pensasse em falar de transporte urbano, tendo tornado concreto como aprendeu, ela citaria características do sistema de transporte de Curitiba que foram transformadas, por obra de marketing, em marcas das gestões que criaram suas especificidades: os terminais urbanos, as 38 Nas diretrizes curriculares municipais para a Área de História, Ciclo I - Etapa inicial (1ª e 2ª etapa 1º e 2º , 3º anos do ensino de 9 anos), aparece o objetivo: "identificar os meios de transporte e comunicação, os instrumentos cotidianos, bem como as suas transformações e permanências em diferentes tempos e espaços”. Os conteúdos sugeridos ao atendimento deste objetivo são: meios de transporte, meios e comunicação, instrumentos cotidianos. 2006, p.164 http://www.cidadedoconhecimento.org.br/cidadedoconhecimento/downloads/arquivos/559/downl oad559.pdf 116 "estações-tubo", o "ligeirinho", o "sistema integrado". Se o caso ocorresse hoje, na melhor das intenções ela mencionaria o valor reduzido da passagem aos domingos para esclarecimento sobre direitos e cidadania, inclusive. Se, no tópico cidade, o saneamento básico fosse eleito, a professora possivelmente encadearia ações como falar da rede de esgotos, da higiene e da água potável. Tentando tornar concreta toda essa abstração, usaria o exemplo da SANEPAR (Companhia de Saneamento do Paraná). Surgiriam muitas coisas a tratar e, possivelmente, uma visita à SANEPAR seria o ideal. Se a professora conseguisse isso, na entrada da instituição ela veria, com seus alunos, um painel de Lazzarotto sobre a história do saneamento. Caso ela não tenha chegado a tão difícil proeza, haveria possibilidade de usar esta imagem em sala de aula, o que seria, inclusive, significativo. Ela, como todos os paranaenses, receberam em casa um panfleto explicativo da companhia falando sobre o consumo da água, em 2005. A capa do panfleto era o painel de Poty na SANEPAR. Se nossa hipotética aula quisesse mostrar o mapeamento, não seria difícil supor que a professora quisesse mostrar a cidade. Mas como? No recorte do possível, ainda muito difícil (pois conseguir um ônibus para transportar a turma em aula externa não é fácil), a professora tentaria mostrar a cidade pelo panorama que dela se tem da torre da antiga TELEPAR (Telefonia Paranaense). Se essa hipótese fosse adiante e a professora quisesse preparar as crianças para uma aula externa, poderia mostrar um detalhe da torre, ou, ainda, o detalhe do painel de Poty existente na torre e que foi capa da lista telefônica de 2003. O painel traz informações sobre Curitiba, sobre a infância do artista e sobre aquela atualidade de sua inauguração em 1992. Não haveria algum comprometimento ideológico nesse recorte? Não haveria um quê de propaganda oculto atrás das palavras? Das palavras com as imagens, das imagens com os locais em que estão localizadas e com as mensagens que estas trazem? Quais as possíveis conseqüências dessas escolhas? Que consciência tinha a professora sobre a conseqüência dessas escolhas? 117 É muito comum ouvir que a obra de Poty "fala das nossas coisas". Esta frase não tem autor, mas de algum modo misterioso todos parecem tê-la ouvido, reconhecem-na e alguns a repetem. Pois há uma demanda de trabalhos, projetos, eventos nas escolas em que a obra de Poty, uma celebridade na arte brasileira e cidadão de Curitiba, é mencionada possivelmente por essa idéia. É tão expressiva a quantidade de projetos, a citação de sua obra e a menção ao artista nas práticas educativas nas escolas, que a Secretaria Municipal de Educação, ao lançar os "Cadernos de Arte"39, considerou necessário que o Caderno de Artes Visuais tratasse da obra gráfica do artista (no prelo). O uso que se faz da obra de Poty é, na maioria das vezes, como recurso didático, para ilustrar determinado conteúdo, que não tange ao ensino da arte. Por exemplo, para tratar da história do Paraná ou de Curitiba, do trabalho e dos trabalhadores, imigrantes ou índios, Poty serve. Há imagens desenvolvidas por ele em seus painéis sobre o tropeirismo, sobre os índios e a catequização destes, sobre a chegada de autoridades políticas e os ciclos econômicos, e estes dados contam nas diretrizes curriculares40. Na verdade, não é tão simples. Depende da professora ou professor conhecer os painéis, os seus detalhes. Mas, em minha opinião bastante contagiada, não há outro profissional tão solidário ao colega que a professora da escola básica; desconheço. Na escola o coleguismo funciona assim: quem sabe conta para quem não sabe, quem tem imagem empresta a quem não a tem. 39 São publicações que acompanham a proposta de ensino da arte da Secretaria Municipal de Educação, sendo dedicado um caderno a cada linguagem artística. 40 Nas diretrizes curriculares municipais para a Área de História, (6.3) Ciclo II – 1ª e 2ª Etapas dos 4º ou 5º anos do ensino de 9 anos), aparece o objetivo: ”reconhecer como ocorreu a construção da identidade cultural paranaense no contexto brasileiro, percebendo as diversidades culturais, étnicas e religiosas desse processo”. O conteúdo proposto é: cotidiano: dos 1º habitantes – as diferentes nações indígenas; dos europeus; dos povos trazidos do continente africano; dos imigrantes; dos migrantes. – Diversidade cultural, étnicas, religiosas”. http://www.cidadedoconhecimento.org.br/cidadedoconhecimento/downloads/arquivos/559/ download559.pdf. Acesso em: 07/10/2007- p.165). 118 Professoras de arte com formação específica são poucas. Há um número significativo com esta graduação que se tornou professora regente. O que governou suas escolhas foi a história pessoal de cada uma delas. Uma das professoras, por exemplo, participou do grupo de estudos na instituição a qual pertenço, e saiu de sala de aula para supervisionar a área de Educação Infantil em Artes. Há professoras que assumiram a disciplina por não haver quem a ministrasse. São professoras com formação em pedagogia ou outra área lecionando artes. Uma realidade de todo o País. Essas profissionais têm maior propensão a utilizar o desenho, o recorte e outras convenções de arte na escola. Pela falta de conhecimentos específicos e das experiências do fazer da arte, provavelmente ensinar ou explicar algo complexo como a gravura em metal é impossível. Toda a complexidade técnica dessa modalidade artística não é perceptível a quem não tenha domínio dos códigos cerrados da arte. Há sobre a imagem alguns números, uma assinatura, letras, que aparentemente não significam nada. O que aparece da gravura não é tudo dela. Ali está a imagem impressa que pode ser associada a outro processo de construção, como o desenho ou a pintura. É comum a uma reprodução fotográfica impressa em revista ser tomada como gravura. A confusão é absolutamente compreensível. Afinal, gravada foi uma chapa, estes segredos significam também poder de quem tem o saber técnico, e este fator poderia ser explicado historicamente, o que não vem ao caso no momento. Isto tudo é conhecimento específico. O que o profissional faz com ele é outro assunto. Professores que usam o desenho, e sempre o mesmo desenhar da criança, sem tentar problematizar gestos, materiais, atritos ou outras possibilidades, só alteram a temática, a fim de ilustrar o pensamento: festa junina, minhas férias, datas comemorativas, variantes de desenho que, na escola primária, minhas professoras propunham. Tempos da livre expressão que minhas professoras provavelmente respeitavam desconhecendo. Não ensinam desenho, técnicas do desenho, ou o que disser respeito ao elenco de conteúdos que o desenho abarca. 119 Desde o final da década de oitenta surge a "Proposta Triangular"41, que em muito contribuiu para o ensino de arte, sobretudo para a construção de conhecimento na área. Houve, no caminhar da proposta até chegar ao seu emprego nas escolas, uma alteração pelo uso que a transformou em um método. Compreendendo erroneamente a releitura como obrigatória, quando não como cópia, a leitura de obra e a contextualização sofreram esses desgastes que o repasse de "pé de orelha", informal, pode ter causado. A "Proposta Triangular", ao ser desvirtuada por um uso infundado, toma o desenho para "reler" obras de arte. É um equívoco metodológico e nos serve, aqui, para esboçar uma parcela da realidade. Assim, algumas professoras sem conhecimento da "Proposta Triangular" pensam estar ensinando arte. Mostram imagens, contextualizam42, mas, no que tange ao emprego desta proposta, deste caminho de abordagem das obras de Lazzarotto, terminam por enfatizar as imagens que Poty utilizou, os ícones da identidade paranista. Contextualizando de modo superficial e simplista fazem-no sem desvelar a implicação ideológica que elas mesmas não percebem na obra do artista. Enaltecem as imagens das araucárias, das gralhas-azuis, dos pinhões, imagens constantes nos painéis de Poty, permanecendo no que Franz (2003) chama de compreensão ingênua. 41 A "Proposta Triangular" de ensino de Artes Visuais foi lançada na década de 80 por Ana Mae Barbosa, em sua gestão à frente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Trata-se de uma sistematização feita a partir de outras propostas de ensino da arte como o DBAE (Disciplined Based Art Education) e consiste na abordagem da arte em sala de aula utilizando a leitura da imagem, a contextualização e a produção plástica. 42 Contextualizar não é apresentar uma biografia do artista e dados sobre o estilo da obra. Contextualizar, segundo Franz (2003), é relacionar a obra de arte com diferentes âmbitos, denominados pela autora como: histórico, antropológico, estético/artístico, biográfico e crítico/social. 120 5.1 IMPLICAÇÕES DE PODER NA FORMAÇÃO CONTINUADA: O MANUAL COMO OS PROJETOS SÃO ESCRITOS E PARA QUEM SÃO ESCRITOS? Tal como eu, a maioria dos professores não se vê como escritor. Uma vez que gastam grande parte do seu tempo numa área tradicionalmente baseada na capacidade de discurso, são normalmente adeptos da comunicação oral, na qual estão à vontade, dedicando pouco ou nenhum tempo à expressão escrita (FOSNOT, 1989, p.105). A frase, retirada de um livro sobre formação de professores e alunos, traz um fato corriqueiro do universo da prática educacional. Professoras e professores, infelizmente, e por uma série de fatores, pouco lêem e escrevem, como também não é a maioria que se utiliza da internet, mesmo para enviar e receber informações via correio eletrônico. Segundo Tania Zaguri, autora de O professor refém (2006, p.256), os professores são reféns de uma realidade perversa da educação brasileira. Não idealizando um profissional, a pesquisadora busca dados sobre a educação no País, tendo 1.172 profissionais como interlocutores. Segundo a autora, 52% dos professores que responderam à pesquisa lêem um jornal diariamente, 40% lêem um livro ao mês, 71% afirmam ler dois livros de educação por ano, e 63% assinam uma revista de educação (ZAGURI, 2006, p.162). O conhecimento dos docentes sobre educação também é frágil. Freire e Piaget são os autores mais citados. Contudo, 97% que dizem conhecer Freire não relacionam a Pedagogia do Oprimido a seu nome (ZAGURI, 2006, p.168). Apenas 27% planejam as atividades diárias de seus alunos (p.184). Não há, na amostra, nenhuma disciplina apontada, são indagações genéricas sobre a prática docente, e um dado impressionante é que, para professoras e professores, a quarta maior dificuldade que enfrentam é manter-se atualizados (p.102). Pensar na realidade da educação do País, pelas dificuldades das professoras e professores, nos faz refletir. 121 No capítulo que tratou sobre a força da ideologia, fiz uma reflexão acerca da problemática da formação de profissionais em Arte, os quais, ou são dominados por terem recebido o conhecimento do dominador, ou não se sentem capazes de ensinar arte, por não possuírem a formação específica. Como se atualizar? Sabemos que ninguém forma o outro, como disse Freire (2006). De que modo uma formação contínua pode transformar a realidade sem ser dominadora, mas libertadora? Se pensarmos na formação contínua de educadores, muitas vezes percebemos o equívoco dos órgãos responsáveis pela educação na oferta de cursos, seminários, palestras, em que a "verbosidade alienada e alienante" ocorre (FREIRE, 2005, p.66). São práticas em que os conhecimentos são dissertados, transferidos e depositados em uma educação "bancária" (FREIRE, 2005, p.66). Como disse Kincheloe, "os programas de educação tecnicista do professor garantem a perpetuação das políticas de desigualdade na escola" (1997, p.226). Nesses programas de ensino tradicional, o mestre ou professor (orientador na prática docente) disserta sobre seu conhecimento, "se põe" no lugar do saber (FERNANDEZ, 2001, p.161). É o dominador e tem o poder. A "professora educanda", por sua vez, está como dominada. Ela faz anotações, tenta memorizar conteúdos, métodos apresentados, novidades do campo psicopedagógico. Ela contempla e admira a erudição do mestre ou doutor e decora conteúdos que esquecerá em breve. Esse processo de dominação aliena. Não conscientiza, não transforma a realidade da professora, pois ela não é percebida como educanda, e não consegue perceber sua realidade. Este processo não lhe permite autonomia, o que revela uma falta de compreensão sobre o conhecimento como um processo de construção individual e significativo de cada indivíduo. Como disseram Bourdieu e Passeron (1972), "A comunicação, de inculcação de uma cultura legítima, de seleção e legitimação, ligada intimamente ao sistema das relações entre o sistema de ensino e a estrutura das relações entre 122 as classes", faz com que os conteúdos dominantes inculcados naqueles depósitos eficazes do ensino bancário (FREIRE, 2005, p.66) sejam reproduzidos na futura prática docente. Junto aos conteúdos, muitas vezes, são reproduzidos, no processo de admiração imitativa, a postura tradicional frente ao processo de ensino e aprendizagem e os gestos que a professora admirou no processo de dominação que sofreu naquele curso, palestra ou seminário, tempo atrás. 5.1.1 A Pesquisa como Formação Contínua A pesquisa é, sem dúvida, um modo eficaz de produção do conhecimento. Disse Paulo Freire que "não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino" (FREIRE, 2004, p.29). São indissociáveis, dado que "ensino enquanto busco, porque indaguei". Em entrevista ao "Boletim 4 Arte na Escola", Fernando Hernández foi convidado a dar sua opinião sobre o nível de dificuldade que o professor de arte enfrenta em relação a professores de outras disciplinas. Hernández respondeu: no campo das artes o professor precisa se atualizar, estabelecer relações. Ainda está tudo por fazer. [...] Porque é um campo que permite criar, inventar, buscar, investigar, estabelecer relações. Ou seja, o educador em artes tem um papel diferente, pois precisa se posicionar como ser humano (abril/maio 2006, p.5). Sua idéia de posicionamento humano do professor de Arte pode ser compreendida como sendo uma prática do ensinar e aprender que permita a ambos, professores e alunos, "construir relações com os saberes, com os outros, e com eles mesmos" (HERNÁNDEZ, 2006, p.5). Disse Kincheloe: os professores, ao tornarem-se pesquisadoes reflexivos, adquirem a habilidade de se adaptar a idéias emancipatórias mais amplas para os contextos específicos de ensino. [...] os pesquisadores educacionais qualitativos têm percebido que o que é conhecido como bom ensino é uma construção altamente subjetiva que varia de contexto (1997, p.228). 123 Na atualidade, utilizam-se os termos professora pesquisadora e professor pesquisador. Nunca conheci alguma professora ou professor que utilizasse o termo para dizer isso de si. O termo fala de um desejo, de um grau de utopia que nos faz andar nesta direção, neste desejo de mudança, é certo. Freire diz que o termo é usado com insistência, e, no seu entender, o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 2004, p.29). Professoras escrevem e lêem pouco, apesar de uma parcela estar em constante aprimoramento nos cursos ofertados pela Secretaria Municipal de Educação. Elas fazem leituras. Contudo, este ler tem um caráter específico. Pode ser a leitura indicada pela colega, os textos das revistas que aparecem na escola, leituras do universo feminino, literatura. Talvez o ideal, para a formação do perfil profissional da professora, fosse seguir uma corrente de pensamento filosófica ou pedagógica em sua prática. Uma profissional que procurasse os últimos textos de determinado autor, linha ou instituição; que fizesse o confronto entre as teorias, concluísse pelas diferenças. Utilizasse a literatura específica sobre ensino da arte para perceber problemas no ensino, construísse instrumentos para a percepção do conhecimento de seus educandos. Um perfil distinto do que a realidade demonstrada na pesquisa de Zaguri (2006) nos mostra. Pela pesquisa de Zaguri (2006), poucos planejam suas aulas. As professoras que planejam, buscam imagens e informações sobre os artistas e obras, períodos, para a contextualização. É possível intuir, pela experiência que trago com professoras, e pela minha experiência como professor no ensino básico de arte, que as escolhas das professoras chegam ao período moderno da arte, sobretudo no que se refere à arte brasileira, pelo fato de o Modernismo ser evidenciado, por seus artistas e informações disponíveis sobre estes abundarem, em comparação a outros períodos da arte brasileira. 124 O fator tempo impossibilita o aprofundamento na pesquisa das professoras. Como diz Zaguri (2006, p.65), "a professora é também refém do tempo que necessita, mas que não dispõe, para superar deficiências básicas de formação". Com isto, as informações de fácil acesso são as que podem ser compactadas na preparação da aula, sem tempo para analisá-las, para procurar outro autor, outra biblioteca, sem tempo para dirimir dúvidas. Algumas vezes as aulas que preparou e lecionou não recebem novas leituras, não são revistos seus apontamentos nem as imagens preparadas ao longo de sua história. Enfim, este tempo de rever materiais de apoio e arcabouço teórico pela pesquisa é escasso. Professoras lêem, escrevem e pesquisam dentro de limites impostos por uma série de condições. Professoras que têm hábitos moldados nas suas práticas conseguiriam transpô-los facilmente? A escola não tem a função da academia, e a professora da escola básica não escolheu a carreira docente universitária. Assim, não é possível tomar o modelo de leitura e escrita da universidade e dos pesquisadores e aplicá-lo a professoras e professores. Assim como a professora da escola básica, o acadêmico "nunca é por inteiro o sujeito de suas práticas: por meio das disposições e da crença que estão na raiz do envolvimento no jogo, quaisquer pressupostos constitutivos da axiomática prática do campo (a doxa epistêmica, por exemplo) se introduzem até nas intenções aparentemente mais lúcidas" (BOURDIEU, 2001, p.169). Talvez o termo professora ou professor pesquisador traga a cobrança da pesquisa, mesmo sem a intenção de cobrar, mas que pode ser interpretada como latente no adjetivo: pesquisadora, em que ela não se vê, ou não se compreende. O dia-a-dia da escola, o envolvimento profissional e até afetivo são marcas desse trabalho. Vocabulário e repertório estão circunscritos a um sistema de relações específico, que dá disposição ao modo de pensar das pessoas e se revela em suas práticas. 125 Kincheloe afirma: A intuição do professor é baseada na sua consciência do particularístico "existe". Uma outra forma de abordar o reino do sutil da intuição do professor envolve um entendimento do conhecimento prático do ensino. Habilitando numa familiaridade de praticante com alunos e escolas específicas, o conhecimento prático do professor ocupa o terreno do particular (1997, p.219). Da mesma forma, o modo de pensar de professores acadêmicos é moldado pelo uso distinto das leituras, da linguagem com seus pares em suas funções no ensino, extensão e pesquisa. Bourdieu (2001, p.167) diz que "falar em disposição equivale a invocar uma pré-disposição natural dos corpos humanos [...] à condicionabilidade como capacidade natural de adquirir capacidades não naturais, arbitrárias" (p.166). [grifo do autor]. O ensino por projetos é revolucionário, contradiz o que muitas professoras aprenderam nas suas graduações. Em uma parcela significativa de casos, a professora intui o que seja. Possivelmente participou de uma palestra que apresentou a novidade em semana pedagógica, mas nunca leu Hernández e o que ele propõe por esta concepção de ensino. Hernández foi um dos introdutores desta abordagem em artes no País em 1998.43 Cabe aqui citar minha experiência para refletir sobre a compreensão das propostas na escola. Lembro-me de que eu era professor em uma escola privada em Curitiba e, na semana pedagógica, foi-nos apresentada esta idéia dos projetos de trabalho e nos orientaram sobre o seu desenvolvimento. Recebemos xerox, fizemos as leituras, discutimos em grupos. Interessava à escola o uso do portfólio como sistema de avaliação, sobretudo. Nas semanas seguintes, quando terminei o que julgava ser meu projeto para a primeira série, apresentei-o à coordenadora, que disse: "Você não entendeu". Mesmo assim, eu fiz. 43 HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação. Projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998. 126 Tânia Zaguri (2006, p.192) apresenta uma reflexão interessante nesse sentido ao dizer que muitos erros acontecem por "compreensão equivocada e informação superficial das novas metodologias, técnicas, que rapidamente se distanciaram dos propósitos de seus autores". Temos, na área de artes visuais, o exemplo do ocorrido com a "Proposta Triangular", o entendimento de releitura como cópia, como apresentado no capítulo 3 desta dissertação. O que me pergunto é se professoras que "existem" em "suas consciências particularísticas", como disse Kincheloe (1997, p.219), teriam realmente a disposição, um hábito a lhes dispor, o modo de pensar para a construção dos projetos que esta forma de raciocínio exige. A proposta não exigiria um acompanhamento sistemático para ser apreendida? Não há um encadeamento de idéias que atendem a esta prática? Não falo do ensino por projetos, uma vez que o desenvolvimento sempre é distinto do projetado, ao chocar-se o ideal com a realidade tanto de professores, quanto de doutores, mas falo do projetar. Da disposição ao pensar o projeto, uma vez que, infelizmente, todos aprendemos a descartar os erros, "os quais deveriam ser lembrados a cada passo", e a "ignorar a especificidade do conhecimento prático, tratado ora como mero obstáculo ao conhecimento, ora como ciência principiante" (BOURDIEU, 2001, p.167). Colocadas essas reflexões sobre a realidade do ensino e das professoras, pelos hábitos que moldam sua prática de leitura e escritura, pelos dados que Tânia Zaguri (2006) apresenta, somadas à minha experiência em formação continuada com professoras, e mesmo minha experiência quando professor no ensino básico, pergunto: Professoras podem ser compreendidas em seus limites para que se compreenda o porquê de determinadas possibilidades? Como as professoras chegam a problematizar a pesquisa? Qual a diferença de uma pesquisa e de um projeto de trabalho para professoras? 127 Manual do "Escola Universidade" e roteiro de construção de projetos44 Para aproximar esse problema da realidade, pensemos na prática desenvolvida pela Secretaria Municipal de Educação em Curitiba, o projeto "Escola Universidade". Como exemplo, podemos pensar em alguns itens de formulação do problema de pesquisa para projetos que pretendam receber bolsa no projeto Escola Universidade. A orientação via protocolo é disponibilizada no portal Cidade Conhecimento, sítio eletrônico da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Curitiba, bem como na apresentação do projeto Escola Universidade do Programa de Qualidade na Educação de Curitiba como ação da mesma instituição. Naquilo que se refere à construção do objeto a ser estudado, o protocolo orienta que "formular o problema é procurar explicitar, de forma compreensível e operacional, a dificuldade que se pretende elucidar, delimitando melhor o objeto a ser estudado. A formulação pode ser de forma interrogativa ou afirmativa" (SME, 2006, p.24). Como é "explicitar de forma compreensível e operacional"? Explicitar é tornar explícito, claro, mas claro a quem, e como? Se a professora for explicitar a uma colega na escola, é simples, mas como ela explicita a um professor da universidade, ou a um inspetor da SME? Pode ser com "as minhas palavras" da professora? O que se pede é que explicite pela doxa ou pela epistéme? Não está partindo de uma para chegar à outra? Como se localizar, nesta ou naquela? De onde fala a professora? Como se articula, que argumentos ela entende ser consistentes, pertinentes ou suficientes? "A dificuldade que se pretende elucidar...” Elucidar é o quê, mesmo? É tornar claro, iluminar, para ser visto. Que vínculos estão subjacentes ao elucidar? Com que olhar ela percebe as dificuldades, uma vez que professoras têm dois ou 44 A análise do manual de organização dos projetos contou com a orientação da professora Elisabete Donni, da UFPR. 128 três olhares que nunca se separaram a seus educandos – há um olhar maternal, um avaliador, um pedagógico, e muitos outros, com variação de pessoa a pessoa. A simples menção a perceber a dificuldade já coloca muitos fatores: perceber por uma escola de pensamento, por uma linha pedagógica. A percepção dela basta? Qual é a idéia que ela toma sobre sua percepção? "Para delimitar o objeto a ser estudado" quanta coisa é necessária! Na graduação, por exemplo, estudantes de quarto ano, em seus estudos monográficos, precisam fazer isto. A dificuldade que encontram é enorme. O mundo de seus interesses é grande, o mundo da educação é imenso, ele está no início e tem que escolher, recortar dentro de um recorte, tendo o possível como limite. É uma operação de imensa abstração, à qual, teoricamente, ele deveria estar familiarizado. Quem espera que delimite tem um jeito próprio de delimitar ou conhece um modo de fazê-lo que deva ser o correto, é o que se pode pensar. Quem garante que a delimitação que se apresenta será aceita?! Por fim, falemos da forma sugerida na formulação do problema no protocolo que sugere dubiedade, a forma podendo ser "interrogativa ou afirmativa". Mas que forma é esta que é dúbia? Abrem-se dois universos diferentes; como se portar frente a eles? Em que direção há a aceitação? Não são caminhos diferentes? Como saber o que aguarda quem escolhe esta ou aquela direção tomada? Se a professora interrogar é porque ela sabe, ou porque ela não sabe? Se ela afirma, para que precisa investigar? O que há por trás de uma investigação, o que exige, o que está dito quando se inicia? O que não está claro é preciso interrogar para descobrir. Questionar. Mas professoras foram educadas no esquema tradicional. Respeitar o sistema, decorá-lo e aceitá-lo foi parte do modelo que receberam. Como, de repente, ela irá questionar? Mas, a professora pode pensar que tudo deveria estar claro na educação, na escola, na sala de aula, na sua prática. Afinal, educação é coisa séria, a 129 professora crê fazer sua parte. Será que ela consegue pensar que a parte que não depende dela é da instituição, do poder, pode ser questionada? É aceito quem questiona ou quem aceita? Que rumo dar ao projeto, quais as conseqüências disto, que risco corre quem questiona? Uma das grandes virtudes do projeto citado é remunerar o estudo. A uma parcela significativa das candidatas, a bolsa para a elaboração e execução do projeto para o Escola Universidade é um fator decisivo à candidatura. Em 2006 foram disponibilizadas 2.320 bolsas ao Ensino Fundamental e 180 bolsas à Educação Infantil. O valor que as bolsistas recebem é de R$ 1.200,00, em cinco parcelas. Por isso vale repetir a pergunta: Será que quem questiona é aceito? Ou corre o risco de não concorrer à bolsa? Seria de se perguntar se o receio de ter seu projeto desclassificado não viria a interferir nos objetivos das professoras. O valor da bolsa não seria tomado por elas como o motivo do não questionar, elas não o tomariam como condição à aceitação das coisas como estão? Diz Machado que "todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas para que se formem tanto o sujeito quanto aos domínios de saber" (MACHADO apud FOUCAULT, 1989, p.11). É justo que haja remuneração para o estudo. Deveria ser sempre assim. Estudar é uma condição para ensinar. E, mesmo com as dificuldades, não se pode dizer que não haja aperfeiçoamento das professoras nesta prática. Sim, há. Mas, pode-se perguntar se o desenvolvimento do projeto não consiste em um trabalho a mais, pois, afinal, o manual não esclarece se o projeto tem de ser referente a temas do currículo, ou de que modo o projeto deve se articular a ele. Pela diferença de temas, percebida em minha prática como orientador, e até pelos seminários em que os projetos são apresentados em seu encerramento, parece ser permitida a variação ao currículo. Contudo, se elas utilizam a carga horária do calendário letivo para desenvolver seus projetos do "Escola Universidade", quando realizam o ensino do currículo? 130 O manual anuncia que "o projeto deverá ser numa das áreas temáticas definidas neste manual e estar de acordo com as Diretrizes Curriculares da SME" (SME, 2006, p.13). Para estarem de acordo, os projetos são apresentados em reunião com a direção da escola. A ata dessa reunião é anexada ao projeto, certificando que este está de acordo com as diretrizes da SME e o projeto pedagógico. Contudo, há ainda a implicação de que o orientador do projeto não tem noção sobre esta pertinência e pode encaminhar o projeto a partir do que foi aceito. Quanto à reunião, sabemos que as relações de grupo são extremamente conflituosas. O grupo faz coerção, pactos, que podem impedir avaliações criteriosas, algo no sentido de aprovarmos o projeto do grupo A, para sermos aprovados por aquele grupo, e vice-versa. Para dar a voz da experiência do orientador, em 2006 foi a primeira vez, em seis anos junto ao projeto, que tive contato com uma diretora das escolas cujas professoras eu orientava. Esta me questionou sobre o projeto, sobre o encaminhamento, sobre a bibliografia que indicava, sobre as orientações. Uma questão é justamente o acordo que se exige do projeto: "O projeto deverá [...] estar de acordo com as Diretrizes Curriculares da SME" (SME, 2006 p.13). Não estar de acordo é discordar. Quem discorda participa? Não participar é não receber o valor da bolsa. Não estaria, por detrás deste acordo, uma "forma de exercício do poder diferente do Estado, a ele articulada de maneira variada e que é indispensável a sua sustentação e atuação eficaz?" (MACHADO apud FOUCAULT, 1989, p.21). As confusões que ocorrem pela comunicação Uma confusão comum das professoras é justamente quanto aos recursos envolvidos no projeto. No roteiro de elaboração do projeto tem-se: "14.7. Recursos: podem ser físicos ou materiais e humanos. É a descrição dos recursos necessários à aplicação 131 do projeto" (p.25). Não há outra menção no manual sobre este item, a não ser na parte sobre o que compete a parte dos bolsistas, juntamente com as chefias: "a previsão de recursos físicos e materiais na elaboração do projeto" (p.17). O que as professoras não conseguem pensar, por seu "existir", é que os recursos apresentados em seus projetos precisam, mais que subsidiar financeiramente os custos da aplicação do projeto, estar de acordo com os objetivos. Ser elaborados no sentido de tornar possível o alcance dos objetivos específicos para alcançar o objetivo geral. Como exemplo, podemos pensar no objetivo proposto por uma equipe de professoras no Projeto Escola Universidade (2006): "desenvolver a linguagem artística como meio de expressão de sentimentos e idéias sobre a realidade em que se está inserido" (Apêndice A). O recurso que a equipe de professoras projetou para alcançar estes objetivos são: "papel bobina, sulfite, cartolina, fotocópias, máquina fotográfica e filme, papéis coloridos, canetas, argila, gesso, massa de modelar, ônibus para a visitação". Sobre esse mesmo item – recursos – não fica claro para elas se estes são para manter o projeto ou se constituem um abono pelo seu desenvolvimento. Muitas vezes as professoras questionam o orientador quanto aos gastos que as estratégias indicadas vêm causando. A confusão ocorre com certa razão. Não está dito que não se pode utilizar o material da escola, nem que os recursos precisam ser pensados e descritos minuciosamente. Além disso, se estivesse a aprovação ou reprovação do projeto ligada a um limite de custos, como a SME permitiria a modificação de objetivos e estratégias durante as orientações e andamento do projeto? Participo como orientador desde que o programa iniciou-se na instituição em que leciono e nunca observei nenhum projeto que apresentasse uma planilha real de valores. E, no caso de os projetos terem os objetivos e estratégias revistos na orientação, e o orçamento não ser revisto, haverá alteração nos valores que as professoras recebem. Se há mais gastos, estes saem do valor da bolsa. O projeto se transforma em desconto do abono pelo estudo? 132 Enfim, não é abono, mas o valor da bolsa incorpora-se ao salário durante o desenvolvimento do projeto e nenhuma conta precisa ser prestada, além do relatório. Pesquisa ou projeto de trabalho, afinal? Outro fator que gera indefinições no manual refere-se a se a prática é a da pesquisa ou do ensino por projetos de trabalho. No manual, um dos objetivos do programa é "incentivar a melhoria da qualidade da educação, por meio de práticas de investigação – ação" (SME, 2006, p.8), mas é de se questionar se este objetivo não se perde no desenvolvimento do projeto e, sobretudo, na orientação. Os orientadores não têm a percepção do projeto como pesquisa-ação, ou lhes falta orientação para que assim percebam e atuem. A investigação-ação ou pesquisa-ação requer do sujeito a percepção da realidade a ser alterada, a percepção do problema para sua interferência. O pesquisador seria o professor da universidade, e o grupo seria parte da pesquisa que traria o objetivo de transformação da realidade após a percepção dela e da interferência. Segundo Hernández (2000, p.179), os projetos de trabalho significam "um enfoque do ensino que tenta ressituar a concepção e as práticas educativas na escola, e não simplesmente readaptar uma proposta do passado, atualizando-a", que "trabalhar por projetos não é seguir o método de projetos" (p.181). O autor pontua ainda que os projetos "[...] fazem parte de uma tradição na escolaridade favorecedora da pesquisa da realidade e do trabalho ativo do aluno" (HERNÁNDEZ, 2000, p.179). Este fator causa equívocos em algumas práticas da escola, como as Unidades didáticas, trabalhadas em blocos, por ações a serem desenvolvidas no bimestre, do gênero de esquema corporal nas primeiras séries, comenta Hernández. 133 Parece haver certa confusão quanto a este fator. Por parte das bolsistas, dos orientadores e da Secretaria Municipal de Educação. Em minha experiência como orientador percebo que, no decorrer do trabalho, as bolsistas mantêm a atenção voltada aos saberes que seus educandos constroem no desenvolvimento do projeto, habituadas a avaliar, e a não se perceberem aprendentes na educação. A sugestão de um "diário de bordo", de um relato reflexivo em que ela possa rever seus passos, é recebida sempre com desconforto, e os resultados falam do descobrir ou aprender dos alunos. Nunca dos seus. Não vêem no andamento do projeto a construção de seus saberes por terem percebido a realidade, terem interferido nela, e rumarem para uma percepção mais crítica ao término do trabalho. O que é também uma falha das orientações que, muitas vezes, desconhecem o papel da formação contínua. Os orientadores, assim chamados, não estão de fato fazendo pesquisa. Prestam uma assessoria aos projetos, indicam leituras, visitam a escola duas vezes (na primeira e na última orientação), precisam reunir todo o grupo de bolsistas e se reunir no contraturno ao trabalho das professoras (SME, 2006, p.20), o que lhes impediria uma percepção verdadeira da realidade. Esses fatores deixam claro que o projeto visa unicamente à qualificação pela informação, e não pela mudança de outros fatores que implicam a situação de ensino-aprendizagem, como a postura didática, conduta e relação da professora com os educandos, práticas e poder, descoberta de novas estratégias. O saber das pessoas e o saber das professoras De todo modo, compreendo que a proposta da SME tem mais aspectos positivos que negativos. Positivo às instituições de ensino superior e a seus professores, por atualizar diagnósticos da realidade do ensino nas escolas; para as professoras, que têm acesso a bibliografias, autores, métodos ou estratégias; à 134 instituição (SME), que cumpre a necessidade de ofertar a formação contínua a seu professorado. Um dos fatores positivos é a visibilidade que dá à realidade das professoras, fazendo com que elas sejam vistas. Seus limites e a obediência que dedicam ao sistema que as ensinou e o universo que as rodeia. Lembro-me de um Projeto de Trabalho em que a obra de Tarsila do Amaral era o foco da proposta. Em uma das orientações, convidava-as a refletir sobre o que as crianças poderiam pensar sobre seu gosto pessoal ao ouvirem a expressão 'cores caipiras', referente à obra de Tarsila; que cores seriam caipiras; que gosto e quem tinha assim adjetivado certo tom de rosa ou azul; se quem batizou as cores assim as tinha em seu gosto pessoal ou uso. Essas questões não foram bem-vindas pelas professoras. Não questionaram, mas não chegaram a compreender o que eu propunha. Demonstravam sua contrariedade. Naqueles dias a Rede Globo de televisão apresentava um seriado em que a Semana da Arte Moderna era romantizada e a artista Tarsila do Amaral era representada como uma mulher livre e independente, à frente de seu tempo. Não surpreendeu-me que as orientações daquela noite não reverberassem nelas nem chegassem a seus alunos. Faltava-lhes ver além do mito, dos textos que o construíram, e ver a quem elas poderiam representar com as obras de Tarsila do Amaral. De certa forma elas eram levadas a pensar daquele modo e o formato de elaboração do projeto "Escola Universidade" auxilia para que a realidade não seja contemplada, apenas perdure a reprodução dos padrões. O que esta reflexão pretende questionar é se não há uma manifestação de poder por trás deste manual de construção do projeto Escola Universidade. Não há um modelo imperativo do pensar científico, reduzindo os saberes verdadeiros das professoras? Michel Foucault (1989, p.170) usou a expressão "saber das pessoas". Saberes que não são "de forma alguma um saber comum, um bom senso, mas, ao 135 contrário, um saber particular, regional, local, um saber diferencial". Estes são saberes desconsiderados pelos eruditos e por eles considerados como indignos de ser ensinados. A este grupo, os saberes das pessoas são compreendidos como "desqualificados, como não competentes, ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade" (p.170). Arthur Efland et al. (2003, p.259) apontam a "opção da substituição dos metarrelatos por relatos menores". A idéia de "metarrelato" é de Jean François Lyotard, pensador que descreveu a pós-modernidade como "incredibilidade com respeito aos metarrelatos" (apud EFLAND et al., 2003, p.253). Um destes seria "a história baseada na crença de que o desenvolvimento da ciência assegura a inelutabilidade do progresso" (EFLAND et al., 2003, p.253). A substituição indicada por Efland implicaria ouvir os pequenos relatos, das culturas diversas e das subculturas, gêneros e classes sociais, sendo "tomados como a fonte da própria legitimidade" (EFLAND et al., 2003, p.253). Poderia se pensar que a elaboração do currículo está centrada em um metarrelato. As representações nele são marcadas, são eurocêntricas, têm, no elenco de conteúdos, idéias de determinados grupos, contadas de forma que a estes beneficia. Assim como os currículos, as práticas de formação contínua atendem a estas mesmas idéias. O exemplo é o formato como as professoras devem pensar seus projetos e roteirizam a escrita deles. É certo que precisa haver uma homogeneidade para que possa ser avaliado, desenvolvido. Mas o roteiro do Escola Universidade não é construído pensando nestas professoras ou em suas realidades. O pensar das professoras sobre suas práticas precisa ser entendido em sua especificidade de "saber das professoras". Parafraseando Foucault, precisa ser ouvido como "pequeno relato" que deseja e merece se desenvolver sem sofrer a violência que o diz menor. 136 A pesquisa é necessária, sim. Kincheloe disse que "a pesquisa torna-se extremamente importante como um instrumento pedagógico" (1997, p.228). O autor está falando de uma pesquisa emancipatória, que precisa problematizar o trabalho docente, e não, ao contrário, tomar o rumo tecnicista, conteudista. A Secretaria Municipal de Educação pode repensar o modo como viabiliza esta prática a partir da realidade das pessoas. Como disse Paulo Freire, "o dirigismo, a manipulação, como armas da dominação, não podem ser instrumentos para esta reconstrução" (2005, p.63). Francisco Hibernon tem na formação contínua o foco de seu trabalho, e suas idéias são bastante oportunas: Essa formação, que confere o conhecimento profissional básico, deve permitir trabalhar em uma educação do futuro, o que torna necessário repensar tanto os conteúdos da formação como a metodologia com que estes são transmitidos, já que o modelo aplicado [...] pelos formadores dos professores atua também como uma espécie de 'currículo oculto' da metodologia. Ou seja, os modelos com os quais o futuro professor ou professora aprende perpetuam-se com o exercício de sua profissão docente já que esses modelos se convertem, até de maneira involuntária, em pauta de sua atuação (2004, p.63). Esse autor tem contribuído às discussões em torno da formação contínua de professores por sua compreensão de que a formação contínua precisa partir da realidade do professor. Hibernon entende os modelos tradicionais de formação de professores: cursos, inovações metodológicas, palestras, como superados e ineficazes, e que o necessário na formação de professores é "o desenvolvimento de instrumentos intelectuais para facilitar as capacidades reflexivas sobre a própria prática" (2004, p.56). Ainda, que o fim disto é que se aprenda "a interpretar, compreender e refletir sobre a educação e a realidade social de forma comunitária". 5.2 A ANÁLISE DOCUMENTAL A leitura da dominação e autonomia no projeto das professoras será feita pelos quadros apresentados na metodologia desta pesquisa. 137 Nesta leitura apresento as evidências de ingenuidade, para ler a dominação ou autonomia. De acordo com as evidências que representam estas variáveis, pode-se perceber o que compreendem da obra de Lazzarotto. No caso da dominação, haveria três momentos. No primeiro, o ingênuo é dominado; este é o processo da dominação. A professora passaria a "hospedar" o pensamento do dominante em si, sem consciência e crítica que lhe permitisse percebê-lo. Assumiria como relevante o fato de o artista Poty Lazzarotto ter nascido e ter sido criado em Curitiba. Em sua ação passaria a argumentar defendendo o artista usando o discurso oficial e justificaria a escolha do tema de seu projeto pela oferta pública da obra de Poty na cidade. Obedeceria a quem lhe transmitiu estas idéias, e impediria a crítica de seus alunos. No segundo momento, o ingênuo passaria a pertencer ao dominador. Não teria crítica, e se tornaria a "hospedaria" da ideologia, aceitando a dominação integralmente. Ele exibiria o conhecimento que julgaria ter construído. Passaria a defender a causa da identidade paranaense e usaria o discurso oficial. Agiria identificando-se como paranaense por aquele discurso de identidade e não apresentaria oposição a estas idéias. Empregaria a obra pública para o pertencimento e a construção de identidade. No terceiro momento, o ingênuo, dominado, passaria a reproduzir a ideologia sem perceber além do que vê e acreditando no discurso como história. Sem um olhar crítico e reflexivo, a professora se torna cúmplice pelo silêncio. Seu reconhecimento pelo autor se dá pelo talento e gênio deste, e o associa à cidade ou ao Estado. A professora agiria repassando os conteúdos que lhe foram inculcados sem analisá-los. Ela usaria a releitura para a interpretação, sem conhecimentos metodológicos e na área de Arte, apresentaria a seus educandos os elementos paranistas como signos de identidade, ou sequer apresentaria seus significados. Em sua contextualização da obra, usaria os argumentos do discurso oficial. Na construção da autonomia, por sua vez, teríamos três momentos da prática docente. No primeiro, a professora critica, constata. Ela se questionaria 138 sobre o que lhe é apresentado, o modo desta apresentação, que obra é esta, o que ela representa, e agiria iniciando sua análise, delimitando o período, evidenciando fatos que lhe agregaram significados, apresentaria outros argumentos e representações, para mostrar a razão de ser dos fatos. Ainda, contextualizaria amplamente apoiando-se na sua leitura da realidade, pensando em seus alunos, sua escola e sua comunidade. Num segundo momento, a professora critica, constata e acumula. Guardaria para si os questionamentos que faz, colecionaria informações. Agiria retendo conhecimento como fonte do saber. No terceiro momento, critica, constata e intervém. A professora teria esclarecimento, transformaria a si e permitiria a transformação do outro, faria associações entre as imagens e o estilo, mostraria que as narrativas têm comprometimento com os símbolos. Para desvelar a ideologia, desconstruiria a imagem e possibilitaria a construção da obra como conhecimento para o exercício de cidadania crítica e descortinamento do fazer que se mantinha misterioso. Ela perceberia os discursos etnocêntricos, machistas, racistas, na representação, e faria com que os educandos percebessem. Buscaria o conhecimento vivo e situado relacionado à cultura destes. Neste terceiro momento ela agiria na busca de outras informações porque conseguiria se indagar; constataria e interviria na realidade por entender que a intervenção educa a ela e aos outros; compreenderia estar em processo, que há mais a descobrir, que está incompleta; romperia o ciclo da reprodução correndo o risco, investiria em práticas diferenciadas, atuaria compromissada, tendo percepção da teia de conexões a qual a obra e tais conteúdos estão relacionados; analisaria para distinguir relevâncias e alternativas a serem tomadas. Nesse momento de sua consciência e ação a professora saberia que a realidade é apenas uma das possibilidades, e que esta precisa ser alterada. 139 5.3 A LEITURA DOS PROJETOS Os projetos analisados foram apresentados ao "Escola Universidade" nos anos de 2005 e 2006. Os projetos 333 e 945 de 2005 tinham proponentes que participavam do grupo de estudos da FAP45. Naquele, atendendo à sugestão das professoras integrantes, estudamos, entre outros temas, práticas artísticas. Recentemente eu havia encontrado mais algumas evidências do uso da obra de Poty Lazzarotto nas Escolas em Curitiba e percebi o culto à sua obra e ao artista, expresso em passagens como "o artista de nossa terra, que retrata as nossas coisas", além de inúmeras práticas que não construíam conhecimentos em arte, não auxiliavam na leitura dos conhecimentos. O que havia percebido era o uso da releitura, propondo pelo desenho uma ação que se desvinculava completamente do processo de criação das obras e de questões referentes à arte como bidimensionalidade, monumentalidade, materialidade. Perguntando às participantes do grupo, nenhuma delas conhecia o processo de fatura das obras de Poty. Por ter colegas na FAP que haviam trabalhado na construção de alguns painéis de Poty depois de seu falecimento46, e, por isso, conhecedoras do processo de criação do artista, propus um estudo a partir da obra. Para tal visitamos diversos painéis, e o grupo deveria responder a um pequeno questionário (Apêndice A), e fotografar-se junto aos murais para mostrar a escala das obras em sala de aula47. 45 O Grupo de Estudos "Arte eu ensino" foi criado em 2004, como ação de formação continuada do Pólo Arte na Escola na Faculdade de Artes do Paraná. É formado por professoras da rede pública de ensino, e tem o foco do trabalho no ensino das Artes Visuais e reflexões afins. 46 Poty produzia estudos e estava com todo o projeto do painel resolvido ao falecer. As artistas e professoras da Faculdade de Artes do Paraná Carmen Carini e Laila Tarran, a partir do projeto do artista, e com o auxílio da pessoa que sempre atuou ao lado de Poty na construção dos painéis, executaram o painel do FIEP. 47 Sugeri que as professoras fotografassem a obra, e se fotografassem frente a elas também. 140 Posteriormente a esta visita, solicitei ao grupo que pensasse no tema: 'eu e os outros', e criasse uma imagem para experimentar o fazer do painel ao modo de Poty. Expliquei que a imagem deveria ser simples, mostrando apenas três planos, para facilitar a construção no isopor e respeitar a mesma profundidade em todas as placas, sendo que cada professora criaria uma placa, independente. Não foi proposta uma obra única, seriam diversos módulos. Para a reflexão sobre o processo e a técnica foi oferecido às professoras um texto de Luigy Pareyson, "A matéria artística"48. Na reunião em que trouxeram os desenhos iniciamos o recorte do isopor, a construção dos moldes, enquanto as professoras precisavam tomar nota das soluções que encontravam, para, com isso, construir modos de explicar a seus alunos o processo. A dificuldade apresentada pelo grupo foi grande. Na reunião seguinte a massa foi despejada nos moldes, sendo aberta duas semanas depois. Entre perdas, acertos e erros, o saldo foi positivo, permitindo a compreensão da operação. Três das professoras que participaram desta experiência projetaram no Escola Universidade daquele ano painéis com seus alunos, tendo recebido minha orientação em seu desenvolvimento. O projeto 333, o 945, e um terceiro, que não foi analisado aqui por não ter cópia do documento, e do qual algumas imagens são apresentadas mais à frente. Em 2006, sem contato com as equipes, surgiram outros cinco projetos envolvendo a obra de Poty, sendo que dois ficaram sob minha orientação. Eram eles os projetos 2.285 e 2.300. Os fundamentos mais comuns apresentados pelas professoras são em torno da idéia de expressão, criação, recriação, transformação da realidade e, ainda, a percepção e distinção de sentimentos e sensações pela arte. Estas idéias parecem vir dos Parâmetros Curriculares em Artes, uma educação para saber perceber e distinguir sentimentos, sensações, idéias e qualidades (PCN, 1997, p.61), mas raramente as professoras citam a fonte. 48 In: PAREYSON, Luigy. Os problemas da estética. São Paulo, Martins Fontes, 1997. 141 5.3.1 O Projeto 2300/ 2006 - Em que as Professoras Acreditam Na introdução do seu projeto, as professoras dizem que "fazer arte significa criar, recriar, transformar a realidade", e que a arte "permite a aproximação entre indivíduos". Ao caracterizarem o espaço pedagógico, a equipe fala sobre "a faixa socioprofissional dos pais ou responsáveis pelas crianças" como "trabalhadores da construção civil e empregadas domésticas", muitos desempregados, com renda de 1 a 3 salários mínimos. Na justificativa do seu trabalho, apresentam idéias que dizem ser do Parâmetro Curricular Nacional para a Educação Infantil. A fonte não é indicada. Afirmam, a partir daí, que as crianças "têm suas próprias impressões, idéias e interpretações sobre a produção de arte e o fazer artístico" (s/p) e que constroem destas experiências significações. Quais as mudanças que o grupo almeja e que recursos ofertam As professoras desejam que as crianças saibam "ver, perceber, educar o olhar para distinguir sentimentos", e em seus objetivos estão: ampliar o repertório, expressar pensamentos, sonhos e realidades, desenvolvendo a imaginação criadora. No entanto, o que o grupo ofertaria como recurso para alcançar este objetivo são apenas materiais, "o contato com materiais diversos", "papel bobina, papel sulfite, cartolina, fotocópias, [...] papéis coloridos, canetas hidrográficas, argila, gesso, tinta, massa de modelar, azulejo (s/p)". A ingenuidade fica evidente pela carência de fundamentos e pela reprodução das idéias dos PCNs para a educação infantil, que, se analisados, servem como guia de conduta positiva da educadora, mas que não chegam a fornecer subsídios à práxis. As idéias apresentadas pelas professoras são próximas ao entendimento que se tinha na Educação Artística, em que o material precisava ser ofertado à criança, compreendida como pureza de conhecimentos, a qual, tendo os recursos materiais, desenvolveria sua criatividade. 142 Essa noção de "liberdade de expressão" como um fator a determinar a criação é bastante presente no projeto, ao entenderem a criança expressando livremente seus pensamentos, sonhos e realidades sem que haja um extremo cuidado com relação à sujeira, tanto do espaço trabalhado quanto de suas roupas e corpo, tornando assim um momento prazeroso em que se sujar faz bem (Projeto 2.300, s/p). Outra evidência de ingenuidade ao projetar é a falta de fundamentos teóricos. Como conseguir que as crianças passem a perceber sentimentos, eduquem o olhar, expressem sonhos e realidades, desenvolvendo a imaginação criadora, uma vez que a fundamentação teórica do projeto não abarca as teorias sobre psicologia da percepção, nem tampouco o imaginário e a imaginação? Como as professoras desenvolveriam este projeto sem ter idéia do que falavam e sem saber sobre as crianças? Uma das coisas que ficam aparentes na leitura do projeto é a compreensão, por parte das professoras, de um poder mítico da obra de arte. O projeto considerou a apreciação dos painéis murais como de "importância vital ao desenvolvimento do projeto, bem como o contexto histórico em que cada obra foi criada, estabelecendo o que era mais significativo para a criança, oportunizando materiais e técnicas para o fazer artístico", como já mostrado aqui, utilizando para isso "a metodologia triangular para a arte, seguindo três vértices: a contextualização histórica [...], a análise da obra [...]" e a "produção ou recriação" (s/p). Sobre a produção ou recriação, é interessante perceber o quanto este é confuso às professoras: nesta fase colocaremos em prática os conhecimentos vivenciados sobre o artista utilizando materiais diversos como: madeira, vidro, cimento (concreto celular), entre outros, enfocando a característica principal da obra do artista: os murais que retratam diferentes épocas da cidade e de seu povo. Mas qual seria a compreensão sobre Poty, tendo as crianças apenas 4 ou 5 anos, para produzirem ou recriarem, utilizando a lista de materiais citada? Os materiais que disponibilizariam aos educandos são relativos à produção de vitrais 143 ou murais, aqueles empregues por Poty, mas de impossível manejo plástico para crianças. Materiais duros, rijos, que necessitam mais que força, experiência para a utilização, além de serem instrumentos perfurocortantes. Prova do desconhecimento do processo fabril das obras de Poty. As professoras, ao formularem o problema do projeto, dizem que "grande parcela dos indivíduos encontra-se destituída do saber estético, está à margem dos processos de percepção, sensibilização, cognição, reflexão, propiciando um quadro de analfabetismo estético e de educação dos sentidos" (s/p), sendo que seus educandos são provenientes de uma classe de baixa renda e de uma cultura em que a televisão é a maior fonte de informação, diversão e ensinamentos. Ao mencionar a classe à qual seus alunos pertencem, fica evidente sua visão da cultura não erudita como sendo "destituída do saber estético", analfabeta esteticamente, visão possivelmente tomada de algum autor em outro contexto, embora não apareça outro autor na frase. Como solução desse quadro de "analfabetismo" e "falta de estética", as professoras desejaram viabilizar "um contato mais direto entre apreciador (criança) e arte", utilizando para isso as obras de Poty, pois seu acervo de obras transcendeu as paredes, as galerias e se misturou ao cotidiano de nossa cidade, em painéis de azulejo, murais de concreto aparente, etc. espalhados em praças, fachadas e prédios valorizando a cultura e a história paranaense (Projeto, 2.300 s/p). Na metodologia do projeto as professoras consideram a criança "como o centro da ação pedagógica", e, para "desenvolver sua inventividade", disponibilizam "a utilização do inusitado e, propondo usos diferenciados de objetos comuns do cotidiano", ofertam como recurso a apreciação dos painéis, como dizem: in loco [será] de importância vital para o desenvolvimento do projeto bem como o contexto histórico em que cada obra foi criada, estabelecendo o que é mais significativo para a criança, oportunizando materiais e técnicas para o fazer artístico, utilizando a metodologia triangular para arte. Sugerem a "contextualização histórica", a "análise da obra" por "uma observação detalhada", chegando por fim a uma "produção ou recriação" (Projeto 144 2.300, s/d). Passos metodológicos que, conforme o grupo apresenta, são da metodologia triangular. A "metodologia triangular", como as professoras se referem à proposta ou abordagem, exige, entre outras competências do educando, a abstração, para conseguir compreender "a contextualização histórica", pensar em passado e presente, "ponte que utilizaremos entre o tempo vivido pelo artista, o que ele retratava e o que vivemos hoje, conduzindo reflexões sobre o futuro", sobre décadas atrás e, ainda, conseguir entender que aquilo que se está vendo, a imagem, está no lugar de uma obra de arte que, por sua vez, está no museu ou na praça tal. Exige ainda que se possa compreender que aquela imagem foi criada e executada por alguém. Alguém que a criança não conhece, nunca viu, não viu sequer a pessoa, quanto mais este fazer. O desconhecimento, a maturidade do pensamento estético da criança ficam evidentes. Vale aqui trazer o pensamento de Maria Helena Rossi, a autora com grande interesse na pesquisa do ensino da arte nas séries iniciais e nas leituras estéticas apresentadas desde estas séries: não faria sentido fingirmos que as crianças têm as mesmas capacidades que os artistas ou os críticos adultos. É puro romantismo pensar que a sua experiência da arte é equivalente à dos adultos, ou que as suas obras estão igualmente carregadas de sentido. Há toda uma série de perspectivas acerca da pintura que as crianças não dominam e que são de grande importância. Por este motivo, muitas qualidades estéticas relevantes são-lhes inacessíveis, e a sua experiência da arte não possui a riqueza da dos adultos. O desenvolvimento estético consiste precisamente na aquisição destas perspectivas (PARSONS apud ROSSI, 2007, p.133). A autora sustenta a necessidade de práticas que desenvolvam os níveis de leitura apresentando obras de arte a crianças desde cedo em suas vidas escolares, o que de fato é necessário. Contudo, cabe ressaltar que leituras estéticas sem contextualizações densas podem se tornar superficiais, como já tratado neste trabalho; análises de obras que não investigam além da "capa da pintura", da superfície do painel, enfim, da aparência física, do que é visível na obra de arte, 145 podem assumir um comprometimento ideológico pela reprodução daquilo que é latente nas obras. Neste mesmo sentido Teresinha Franz diz que "pesquisas recentes comprovam que os estudantes devem ser levados a se interessar seriamente pelos estudos em torno da história da arte desde os primeiros anos escolares", e ainda, que esta prática deva ocorrer de forma crítica e reflexiva (2003, p.10). Como a compreensão de crianças nesta faixa etária é expressão de sua possibilidade intelectual, no momento em que está é pouco provável que a criança compreendesse as conexões teóricas. O problema é criticar todas as experiências no ensino a crianças pequenas tomando a limitação pela maturidade das crianças. Uma iniciação simplificada à compreensão da arte pode comprometer o desenvolvimento para níveis mais completos de compreensão (FRANZ, 2003). O que se percebe na educação infantil é uma adaptação daquela "Proposta Triangular". Uma leitura da obra que caminha muito mais na forma lúdica com as imagens que envolvem os grupos em jogos simbólicos. Um uso da imagem que faz sentido à faixa etária, e não pela descrição, análise e contextualização, como a "Proposta Triangular" sugere. Este dado revela a carência conceitual das professoras proponentes do projeto, tanto no que tange a conhecimentos específicos da arte, como da pedagogia e da psicologia da educação. A ingenuidade e a falta de autonomia do grupo de professoras proponentes são perceptíveis ao deixarem de propor uma adaptação metodológica que atenda à maturidade intelectual de seus alunos e às suas realidades, e fazem com que sejam respeitosas a um método já consagrado. Mostram ainda a concepção de método com rigor pelos passos definidos previamente. Vale ainda considerar o desconhecimento sobre o processo artístico e criativo da arte por parte da equipe, processo que exige o rigor de método predefinido, que sofre a intromissão de elementos externos, que também é direcionado à invenção pelo manejo com os materiais e informações rumo à invenção. 146 Vale salientar que o grupo julgou importante ver as obras ao vivo e, antes, as professoras visitaram diversos painéis. A incoerência interna do projeto é perceptível, não teria modo de avaliálo. Não há possibilidade de distinguir resultados na alteração do comportamento das crianças, se elas passaram a "perceber" de outra forma, se seus "sentidos foram educados", se a "imaginação criadora foi desenvolvida", como desejavam as professoras, por várias razões, além do tempo. Uma delas é o fato de não haver uma pesquisa prévia a definir em que estágios a percepção, sentidos e imaginação se encontravam antes do projeto. Não há uma observação detalhada da realidade. O que as professoras desejavam conseguir em quatro meses, tempo destinado ao projeto, talvez pudesse ser alcançado ao longo de toda a formação básica do indivíduo, pensando ainda que esta criança estaria em uma condição ideal de educação e ensino, com a participação das famílias e da sociedade. Fica evidente a ingenuidade da equipe e a reprodução de idéias dominantes ao tomar os PCNs e a obra de Poty, utilizando, para alcançar objetivos que não ofertam recursos e não se fundamentam teóricamente, a metodologia triangular. A ingenuidade também se revela ao não valorizarem a cultura de seus educandos e suas possibilidades de compreensão. Projeto 333 Este projeto pretendeu tratar o ensino da matemática pela arte, como já mencionado. A equipe que o desenvolveu era formada pela professora regente da turma, no caso a terceira série, e a professora de Artes. A professora de Artes tem formação específica na área, lecionava a disciplina para todas as turmas da escola, e era participante do grupo de estudos da FAP, onde participou da experiência de construção do painel. Foi esta experiência que lhe dispôs a propor o Escola Universidade em 2005. Como havia a exigência da interdisciplinariedade, a professora buscou a parceria. 147 Seu projeto veio ao encontro das discussões que trazíamos, quanto a um ensino sobre a arte sem fazer relação com ela, o caso das práticas artísticas na escola distanciadas da relação de conhecimento das linguagens e até mesmo da reflexão em torno do social. Em que elas acreditam A fundamentação teórica que as professoras construíram não trazia nenhum título que apoiasse teoricamente a união da arte e da matemática, que lhes desse subsídio ao desenvolvimento. Quais as mudanças que as professoras almejam no comportamento do educando e que recursos ofertam para alcançar estas mudanças As professoras pretendiam propiciar a comunicação do aluno com a obra de Poty para ensinar matemática. Segundo elas, "ao apreciar obras de arte, nós as ressignificamos, as atualizamos, produzimos interpretantes, de acordo com a nossa sensibilidade atual" (Projeto 333, 2005, p.6). A frase parece ter origem na semiótica, e na bibliografia do trabalho consta o livro O olhar em construção, da semioticista Anamélia Buoro. No texto, contudo, não há chamada à fonte. Prossegue a frase: [...] se as significações de produções artísticas mudam de pessoa e até para a mesma pessoa, fica evidente que as obras produzidas no passado provavelmente não tinham, na época, a mesma significação que a ela atribuímos. O movimento do olho sobre a obra leva à descoberta da construção espacial, e das relações formais em elementos que a criança destaca e reorganiza segundo um critério próprio e individual (PROJETO 333, 2005, p.7). Outro objetivo das duas professoras seria analisar criticamente elementos de linguagem visual. Diz a equipe que "devemos possibilitar as diversificações, ampliações de novos repertórios sensíveis cognitivos e estudos que aprofundem os modos de ver, observar, expressar e comunicar" (Projeto 333, 2006, p.4). Ainda, 148 desejavam "perceber semelhanças e diferenças entre objetos" e "identificar características das formas geométricas". Na lista de recursos que projetaram, incluem recursos humanos e materiais: professor, aluno, livros de arte, livros de matemática, vídeo e fitas de vídeo, rádio, CDs, Internet, revistas, transparências, retroprojetor, máquina fotográfica, imagens, papéis diversos, fita métrica, materiais diversos (p.12). As professoras entenderam necessário levar obras de arte aos alunos a fim de ampliar a relação com o trabalho do artista, e, primeiramente, pesquisar "obras de arte em que possam ser trabalhados conteúdos matemáticos". Não propuseram uma visita a museu ou monumento, o que leva a crer que o contato seria apenas por imagens. Checando a pertinência dos conceitos de matemática para a terceira série, pode-se perceber que, de fato, alguns dos conceitos apresentados são pertinentes, segundo os PCNs. No entanto, havia outros temas que não foram mencionados, como frações, e que, demonstrados nas operações que a confecção do painel exige, por exemplo, a problematização 1, facilitariam a apreensão dos conceitos. Também entenderam necessários a pesquisa, a problematização, técnicas e materiais para a elaboração das atividades como recursos para alcançar seus objetivos. Em todos os passos metodológicos têm-se a "apreciação das obras, os fatos da vida, personalidade e cultura" a serem conhecidos, comentários sobre a obra, argumentação e opinião dos alunos, análise da estrutura formal da obra, o trabalho com o conceito de matemática, seguidos de problematizações (2005, p.8). Nesses procedimentos consta que "as atividades serão realizadas através da utilização de obras de arte de diversos artistas paranaenses". O porquê de serem diversos artistas, e paranaenses, não está justificado. A primeira atividade propõe as obras de Poty Lazzarotto "O teatro no mundo" (1969) e "As comunicações" (1993), identificadas apenas por suas localizações: o Teatro Guaíra e a Torre da Telepar. A atividade teria como "conteúdo da matemática: medidas, figuras geométricas". Possivelmente a aproximação da obra 149 que conta a história do teatro tenha sido por ela ser um retângulo de 4,00 x 27,60m, medida que não é citada. Aparece a foto do painel no projeto. Segue-se a problematização que as professoras fizeram: Como um artista, você criou um Painel para a escola [citado o nome] inspirado nas obras do artista Poty Lazzarotto. Realize seu trabalho através da monocromia, diferentes linhas. Utilizando-se de diversos materiais: isopor, cimento, palito de dente, etc. (p.9). Ao contrário do que se poderia esperar, a problemática não faz menção aos conteúdos matemáticos propostos, medidas e figuras geométricas. Nem tampouco propõe uma elaboração com as formas geométricas, tendo sido feita anteriormente, segundo o projeto, uma análise formal da obra. Também não consta nenhum indicativo de como seria feita esta leitura. A idéia da monocromia não havia surgido em lugar algum, conceito que, aberto, poderia trazer a idéia da adição e subtração do negro ou do branco de algum modo, talvez pela profundidade, ao se sugerir mais ou menos camadas de isopor a serem sobrepostas ao molde do painel que propõe. A segunda atividade segue o mesmo esquema da primeira, incluindo a análise formal e a problematização. Entre os conteúdos da matemática foi escolhida a simetria. Na problematização tem-se a seguinte sugestão: Como um artista, você se utilizou das obras do artista Alfredo Andersen para criar a simetria nos seus retratos. Realize seu trabalho através de policromia, diferentes linhas e texturas, utilizando-se de desenho (p.10). Transparece uma grande confusão neste enunciado. Um artista se utilizar de obras de outro para criar, como apontaram Efland et al. (2003), é um dado operativo da arte contemporânea, a apropriação. Contudo, não apareceu em lugar algum fundamentação teórica sobre a arte contemporânea, nem tampouco a obra de artistas contemporâneos que ressignificam a obra de modernistas. Caso esta fosse a intenção, como alunos compreenderiam a problematização? O projeto diz trabalhar fundamentos da linguagem visual. No entanto, os autores e estes conteúdos não foram apresentados na fundamentação teórica. A 150 problematização trazida precisaria de grande referencial para que os conceitos modernistas de textura e policromia fossem utilizados, não sendo ao acaso. É de se perguntar: qual a relação que se pretende fazer entre a pintura e o desenho? por que aparece textura?, e como estes elementos de linguagem visual se relacionam com o conteúdo da matemática? Cabe citar também o fato da escolha do artista Andersen para apresentar o conteúdo de simetria, pois, como já dito, não foi justificada a escolha de artistas paranaenses. Obras de Mondrian, dos construtivistas russos, de Mestre Valentin, ou dos concretistas – movimento brasileiro que tomava princípios da ciência para fazer arte (BRITO, 1999, p.41) – poderiam servir mais ao propósito, uma vez que trazem aproximações à geometria, angulações, divisão e soma de formas. Na fundamentação teórica o grupo cita o artista holandês Escher, que "considerava a matemática um portão aberto" (2006, p.6). Em vez das obras de Escher, retratos produzidos por Alfredo Andersen foram escolhidos para apresentar o conteúdo matemático de simetria. Aparentemente, a escolha do rosto é o indicativo de simetria, sendo que em algum dos retratos Andersen posiciona o modelo em ¾ de perfil. A última atividade proposta apresenta como obra de arte: "Pêtit Pavê da cidade de Curitiba". Petit pavet, ou mosaico português, é o nome que recebe o gênero de calçadas utilizadas em Curitiba na primeira metade do século XX. Os motivos que ilustram estas calçadas são paranistas, desenhados por Lange de Morretes. São desenhos escolhidos via concurso público em 1922. As imagens que as professoras apresentam são a araucária e sua pinha, símbolos paranistas, que na obra de Poty têm grande significado ideológico, uma evidência de ingenuidade. Mesmo sem tocar neste assunto na fundamentação, a escolha dos elementos já dá a ligação ao conteúdo hegemônico pelas imagens, e, ao deixarem de fazer uma ampla contextualização, poderia ter sido escolhida outra calçada qualquer. Em Curitiba há uma grande diversidade de imagens nas calçadas de petit pavet. A escolha deve ter sido pressionada pelo fato de estas calçadas serem patrimônio oficial, o que não foi citado no texto. A problematização que criaram é: 151 Como um artista, você criou um mosaico que irá compor as calçadas dos bairro de Curitiba. Realize seu trabalho através da monocromia, de diferentes linhas, utilizando-se de recorte e colagem. Surge aqui algo interessante: a proposição pretende pavimentar o bairro, mas em nenhum momento do projeto houve um posicionamento ao social pela arte neste ensino. A idéia poderia resultar em um belo trabalho, até porque a professora proponente parece saber que as imagens das calçadas foram criadas por um pintor. Infelizmente, se ela sabia, não mostrou esses dados históricos aos quais poderia aludir. A falta de fundamentos atinge, ainda, a proposta ao chamar o tipo de calçada de arte, sem argumentação teórica. Bastaria fundamentar na Cultura Visual que o argumento tomaria consistência (p.10). A última parte do projeto pretende fazer uma relação de comprimento, altura e profundidade com paisagens. A confusão presente em todo o trabalho aparece na falta de conteúdos de arte, que poderiam ser transitados com os conteúdos de matemática. Além das falhas conceituais, todo o modo de problematizar parece um exercício de "recorte e cole". A carência dos conteúdos também se expressa na forma como as propostas plásticas são apresentadas, uma vez que não mostram aderência às obras. A falta de autonomia se manifesta, sobretudo, na disparidade entre os conceitos de matemática e os de arte apresentados, que não aparecem como tal. Caso a proposta tomasse os Parâmetros Curriculares Nacionais das duas áreas, poderia se alcançar uma escolha mais equivalente entre os conteúdos. O que se mostra é um espontaneismo das duas áreas quanto a conteúdos e fundamentos, mas, no caso, a área de artes adaptou-se aos conteúdos da matemática, pressionada por um recorte de arte regionalista. Uma outra evidência de ingenuidade. Foi esse recorte um dos fatores a determinar as escolhas de artistas e imagens. No cenário da arte paranaense não houve artistas que tenham sobressaído trabalhando com mosaico, mas a obra de Antônio Arney (1926) se aproxima. O artista trabalhava com colagens e assamblages. Artistas que criaram 152 a partir da abstração, utilizando a geometria, não foram poucos. O desconhecimento da história local é um outro fator que aparece a pressionar a escolha entre as ofertas comuns, acentuado pela raridade de publicações de arte local e da distribuição e acesso a estas. Contudo, imagens paranistas, como as imagens das calçadas de petit pavet – apresentadas na terceira problematização –, estão à disposição em sites diversos. Interessa às professoras a apresentação de imagens e há a escassez deste material no que se refere à escolha temática feita para o projeto. Em entrevista a mim concedida, a professora Tulipa disse: "Eu gosto de trabalhar com temas, trabalho com artistas... com o corpo humano nos artistas, esse, aquele, aquele que trabalham". Questionada sobre o uso de alguma metodologia, a professora frisou bem não utilizá-la, mas afirmou: "Uso imagem". O uso da imagem no ensino da arte no Brasil foi muito promovido com o trabalho de Ana Mae Barbosa e a "Proposta Triangular" (BARBOSA,1991). A professora proponente tem formação específica em Artes Visuais e, com certeza – por eu ter sido professor na instituição em que ela se graduou e ter conhecido as responsáveis pelas disciplinas de Fundamentos da Arte e Educação e Prática de Ensino (1999-2002) –, ela teve contato com a "Proposta Triangular". Apesar de não apresentar o livro como fundamento, a professora atende a esta prática. Apesar da afirmação de não usarem metodologia, as professoras, sem apresentar o crédito ao livro, tomaram algumas idéias do livro Educação Artística: Livro do professor: pré a 4ª série. O formato das problematizações foi trazido de lá, sem refletir sobre sua adaptação, uma evidência de ingenuidade. A dominação se manifesta no projeto, podendo-se dizer que a compreensão das professoras sobre a obra de Poty se expressa no uso da metodologia sem adaptá-la, na falta de fundamentos de arte e de matemática, na utilização de elementos paranistas. O projeto pode ser enquadrado no terceiro nível de dominação, quando, dominadas, reproduzem. 153 Projeto 2.286/2006 O Projeto 2.286, de 2006, "O retrato histórico de Curitiba na Visão de Poty Lazzarotto e Alfredo Andersen", propunha uma relação das obras desses artistas com a cidade de Curitiba. Pretendia mostrar como essas obras trazem momentos diversos da modernização da cidade. A equipe reunia quatro professoras, sendo que nenhuma delas tinha formação na área de Artes. Na entrevista, Girassol, a professora de Artes da equipe, contou residir em Curitiba há quatro anos, tempo que vem lecionando. Contou ainda ter estudado pedagogia, se especializado em "pré-escola" e feito muitos cursos de arte. Girassol comentou que não conhecia a obra de Poty anteriormente, e que foi na elaboração do projeto que a conheceu. Para ela, "tudo foi novidade. Foi com o projeto...", mas sua fala aponta o conhecimento que a equipe tinha sobre a obra do artista: levando também em conta que, no currículo, teria de se ensinar sobre a história de Curitiba, os primeiros habitantes, os imigrantes, a colonização... então a gente analisou, estudou e achamos que seria melhor trabalharmos pelas obras do Poty, porque ele mostra, ele relata, todo um fato histórico. Girassol também comentou, na entrevista, que Poty tem um grande significado para as pessoas de Curitiba: "No meu ponto de vista tem um grande significado... tem toda a história. Poty, ele tentou retratar a história de Curitiba". Uma mostra de ingenuidade já apresentada no texto do projeto. Em que elas acreditam Acreditam que a arte serve "na educação, para distinguir sentimentos, sensações, idéias e qualidades", pelas experiências "relacionadas aos materiais, às técnicas e às formas visuais de diversos momentos da história", usando a "percepção, imaginação, sensibilidade, conhecimento e produção artística pessoal e grupal" (s/p). 154 Dizem ainda que compreender o processo de organização das artes é "colocá-las a seu serviço e fazer-se representar por elas, e principalmente como uma possibilidade de superação social (criação, cultura e produção)" (s/p), e que, para o aluno compreender isto, "além do domínio dos elementos formais, ele precisa assimilar o sistema de convenções – criado pelas necessidades sociais – das quais são provenientes estes elementos e as suas funções" (s/p). As professoras afirmam: para que o aluno possa vivenciar uma produção artística, através da organização dos seus elementos caracterizadores, o professor deverá exercitar e explicitar estes elementos de modo a assegurar ao aluno a visão da totalidade de uma estrutura artística, fazendo com que compreenda que, dependendo da maneira como estes elementos se compõem, a estrutura artística se apresenta enquanto organização estruturada e produz efeitos diferenciados (2.286/2006). Quais as mudanças que as professoras almejam no comportamento do educando e que recursos ofertam para alcançar estas mudanças Ao perceber o entendimento de recurso que o projeto lista, com seus objetivos e fundamentos, fica evidente que as professoras atendem ao solicitado no manual de organização dos projetos sem saber o que estão fazendo. O objetivo geral do projeto que desejavam alcançar era: "Levar educadores e educandos a reconhecer e compreender o valor histórico da cidade de Curitiba e do Estado do Paraná, através das obras de Poty Lazzarotto e Alfredo Andersen, retratados em diferentes contextos sociais". A junção das ações 'levar a reconhecer e compreender' poderia ser vista como comprometida ideologicamente. O reconhecimento exige um conhecimento prévio; a compreensão é uma habilidade de raciocínio fluido (Perkins) e o valor de Curitiba e do Paraná existe e deve ser aceito, pois já está subentendido que os alunos o conhecem e partilham de tais idéias. A ação de levar possui 35 significados, que vão do transportar ao fazerse acompanhar, passando por: exercer tração; ser objeto de; ser portador de; 155 servir de meio de transporte; servir de comunicação; puxar para si; afastar de; deixar num local; vestir; experimentar; ser objeto de, e mais 25 outros sinônimos. Aqui só foram apresentados os primeiros de cada sentido, citados por Antônio Houaiss (2005, p.1.749). A fundamentação do projeto não abarca a metade dos outros objetivos. As referências bibliográficas apresentam os PCNs de Artes e História, o Currículo básico reformulado de educação artística da SME, a Pedagogia da autonomia de Freire, o livro A história mágica dos desenhos de Poty, de Sônia Gutierrez (2005), O livro Didática do ensino da arte: a língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte, de Mirian Celeste Martins e Giza Picosque (1998), O nascimento da inteligência da criança, de Piaget (1982), e Pensamento e linguagem (1989), de Vygotsky, além de Pintores da Paisagem Paranaense (2001). Ao verificar o texto e as referências bibliográficas, constata-se que nenhum dos autores do referencial aparece no texto – ou não foi colocada a chamada da referência – exceto os PCNs, ou, ainda, autores que estão indicados no texto não estão nas referências, ou, se estão, como Vygostsky e Piaget, não apresentam o mesmo ano da publicação, como é o caso de Vygostsky, que no texto é de 1991, e na bibliografia é de 1989. No referencial aparece, na data de publicação do livro de Piaget, uma marcação à caneta, que indica que o documento é uma fotocópia. O texto da fundamentação aponta os elementos da linguagem visual, sem teóricos da educação que indiquem esta prática com tais elementos aos primeiro e segundo ciclos do ensino básico. As professoras falam em assimilação e domínio dos elementos, sendo que, para elas, a criança precisa ainda, aos 9 e 10 anos, "assimilar o sistema de convenções – criado pelas necessidades sociais – das quais são provenientes estes elementos e as suas funções" (s/p). De volta aos objetivos do projeto das professoras, o que seria necessário para que uma criança aos 9 ou 10 anos conseguisse colocar-se como "responsável pela evolução da cidade" e se "notar parte da história"? A inserção 156 dos indivíduos no mundo simbólico é de fato importante e todos somos seres da linguagem, por isso sujeitos históricos (FREIRE) com a possibilidade de nos escrevermos na história. As professoras usaram a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, no referencial teórico, mas as idéias do autor não aparecem no texto e, ao verificar a metodologia proposta no projeto, as professoras afirmam: Para atingir os objetivos propostos para este projeto, e conseqüentemente propiciar experiências significativas aos alunos, encaminharemos nosso trabalho realizando pesquisas bibliográficas, virtuais e in loco, contextualizando a história, analisando os fatos e obras e posteriormente realizando produções e recriações. A análise, a pesquisa, a contextualização, a produção e a recriação são passos da "Proposta Triangular". Mais à frente, no cronograma do projeto, conta que no mês de novembro seriam realizadas as releituras. A equipe julgou necessário fazer uma visita aos diversos locais onde as obras de Andersen e Poty estão disponíveis, o que permitiria "iniciar o processo de aprendizagem de maneira mais significativa e segura", passando então à localização das crianças no bairro, na cidade, no Estado, no País e no mundo, para então iniciar o ensino da história. A fundamentação que apresentam de história para o projeto são os PCNs. Após a localização das crianças no espaço, quando iniciariam os estudos sobre a fundação da cidade e seus primeiros habitantes, as professoras ofertam o contato com as ferramentas tecnológicas aos educandos, bem como estudos bibliográficos. Foi a partir desses trabalhos que a equipe inicia o relacionamento da estrutura atual da cidade (transporte, educação, pontos turísticos, e outras questões) como sua fundação, conhecendo as inúmeras contribuições dos tropeiros e imigrantes, que contribuíram à identidade do povo curitibano e paranaense (s/p). Há um dado interessante a registrar, a saber, o indígena, no projeto das professoras, não é um elemento que contribui para a construção da identidade do paranaense. Apenas os imigrantes e os tropeiros aparecem nesse sentido. 157 O recurso oferecido para que os educandos relacionassem o passado ao presente da cidade foi uma visita ao Largo da Ordem, no Centro Histórico, onde se localiza o Memorial dos 300 anos de Curitiba, a menos de mil metros da Travessa Nestor de Castro, em que estão dois grandes murais em azulejo criados por Poty: o "Imagens da cidade" (1996) e "Largo da Ordem" (1993). Mural "Imagens da Cidade", Poty Lazarotto, 1996. Lajota Cerâmica, 490m Travessa Nestor de Castro 2 A descrição do mural "Imagens da Cidade" nos serve para compreender o porquê da escolha deste instrumento pelas professoras para alcançar seus objetivos: Considerado o maior mural cerâmico do país, mostra o desenvolvimento de Curitiba, suas fases e seus símbolos. O pinheiro, importante símbolo curitibano, está representado no mural: seu plantio pelo semeador ou pela gralha-azul, seu crescimento, a árvore adulta e o surgimento do pinhão. A integração do pinheiro com os homens também é mostrada. O uso da madeira na construção civil. As casas típicas de colonos, com gaiolas nas janelas e crianças brincando no quintal. O início da modernização é caracterizado pelos andaimes, pelas obras, pelo crescimento da cidade. Na parte maior, o mural retrata a Curitiba atual, com sua estação-tubo, do 'ligeirinho', a Rua 24 horas, o Farol do Saber, a Ópera de Arame, o Jardim Botânico e, no meio de toda a modernização, a preservação da memória, presente na casa típica de colono, que compartilha o mesmo espaço. 158 No vidro da estação-tubo, reflexos do passado. Cenas da história de Curitiba. [...] É interessante notar que o mural em piso cerâmico conta com pequenas imagens repetidas por toda a obra. São elas: a gralha-azul com pinhão no bico, pinheiros, o sinal de proibido cortar, casas de colonos (PEDROSO, 2006, p.110). A seguir têm-se imagens do mural, e alguns detalhes que as professoras ressaltam em seu projeto: À esquerda o Farol do Saber, a Rua 24 Horas, a estação tubo do "ligeirinho", a "Ópera de Arame" e o Jardim Botânico; ao lado, detalhe das imagens contidas nos reflexos do tubo, o índio, o tropeiro, o minerador, ao fundo a Igreja da Ordem. Pelo cronograma e metodologia, observa-se que a pesquisa desses temas prossegue. Uma outra coisa interessante a apontar é que as professoras desejavam buscar e saber organizar informações sobre a Arte e a História em contato com artistas, documentos, acervos, nos espaços da escola e fora dela, reconhecendo e compreendendo a variedade dos produtos artísticos presentes na história da cidade de Curitiba e no Paraná (s/p). Com um objetivo assim tão amplo, a variedade dos produtos artísticos abarcaria todas as linguagens artísticas; todos os gêneros de música, todas as danças, todos os gêneros de teatro, e nas artes visuais o leque iria da arte 159 contemporânea ao artesanato, na literatura, dos primeiros autores e gêneros até a atualidade, e o recurso ofertado a tão amplo objetivo é a visita ao centro histórico. Como os alunos iriam "reconhecer a variedade dos produtos artísticos na história da cidade de Curitiba e do Paraná" se esta variedade não lhes foi apresentada? No cronograma, as professoras apresentam: "Releitura das obras de Poty e Andersen" – uma evidência de ingenuidade –, o que confirma que o objetivo discutido acima não se sustenta. Na entrevista a professora afirmou que utilizaram imagens, fizeram explanações, usaram a Internet, que a comunidade foi consultada, visitaram painéis e, depois da visita, a gente levantou questionamento sobre a história de Curitiba, e, a partir disso, começamos a prática. Fizemos painéis, azulejos, eles tentaram retratar a história de Curitiba no seu ponto de vista e, também, inspirados pelas obras de Poty. Girassol disse não utilizar nenhuma metodologia específica, mas que fez releituras: "fizemos, tentando representar o passado, o presente, o futuro de Curitiba". No mês de novembro, segundo o cronograma, ocorreriam "as produções artísticas retratando a cidade hoje, confecção de painéis, exposição das atividades dos alunos realizadas no decorrer do projeto, para a escola e a comunidade". O porquê da concentração de tudo isto em um mês apenas também não se explicita, ou o que se quis apresentar é que estas produções, recriações e releituras teriam ocorrido apenas em função da visita ao centro histórico. Os recursos às produções e recriações apresentados no projeto são: "Softwares educacionais, computadores, máquina e filmes fotográficos, livros didáticos e paradidáticos, materiais escolares, fotocópias, obras de arte (esculturas, quadros, murais, painéis)". Não constam os materiais que seriam usados para criar e recriar. No entanto, as imagens dos trabalhos das crianças indicam que as releituras foram feitas em papel, usando o lápis de cor para colorir, e azulejos pintados e 160 aparentemente envernizados. Segundo Girassol, havia-se pensado no painel desde o início, e tinha-se a intenção de fixá-lo na parede da escola. Girassol comentou que este objetivo, não previsto no projeto, sofreu alteração no desenvolvimento: "à medida que o tempo foi passando, vimos que a gente tinha se empolgado um pouco no início, não sabíamos se a pintura ia durar, o azulejo, onde pôr o painel... Mesmo assim, fomos à luta e conseguimos!". Questionei-lhe sobre recursos, se haviam comprado os materiais, e a professora respondeu: "tudo foi doação, não precisamos comprar absolutamente nada, os pais doaram os azulejos, a tinta guache, o verniz artesanal, e a comunidade também colaborou". A professora havia dito que o painel tinha ficado na escola, que haviam "ido à luta e conseguido". Questionada sobre este ponto, Girassol afirmou: Não, a gente fez assim, devido à gente não ter usado a técnica adequada. A gente fez assim, fizemos uma exposição à comunidade e depois cada aluno levou o seu azulejo pra casa, porque eles gostaram muito, e alguns doaram o seu pra escola como lembrança desse trabalho. Os projetos do "Escola universidade" precisam ser apresentados ao Conselho da escola, como já dito, e têm a anuência da Direção. Como no projeto não consta o local da escola onde o mural seria fixado, nem o custo disto, não é de surpreender que a direção não o tenha permitido. Na seqüência, vêm alguns trabalhos expostos na mostra promovida pela equipe. 161 Foto 1 - Cartaz presente na exposição desenvolvida pelo projeto 2285 Releituras do painel "Imagens de Curitiba" realizadas no projeto 2285 162 Detalhe do mural "Imagens de Curitiba", adotado pelas crianças para a releitura Mural "Largo da ordem", localizado na Travessa Nestor de Castro (1993), em lajota cerâmica, e releitura do painel por um educando que participou do projeto. A dominação e a reprodução estão presentes neste trabalho das professoras. Com base nesta leitura do projeto, apresento a seguir a análise da compreensão da obra de Poty: 163 Pelos quadros de compreensão com base na Pedagogia do Oprimido apresentados na metodologia do trabalho, e pela leitura do projeto 2285, percebe-se que o projeto das professoras aproxima sua compreensão sobre a obra de Poty ao Terceiro nível de dominação, quando, ingenuamente, passam a reproduzir a ideologia, pois lhes falta uma percepção além do que vêem; acreditam no discurso ideológico como história; reconhecem o artista como gênio e o associam à cidade ou ao Estado, relacionando natividade com nativismo. Projeto 0945 O projeto se chamou "A magia dos painéis de Poty", e pretendia um ensino interdisciplinar entre Ensino da Arte, Ensino Religioso e Educação Física, com a "pretensão de envolver os alunos diante da expressão corporal, criação artística e o respeito ao patrimônio público, ampliando horizontes e intensificando as relações dos indivíduos consigo mesmos, com os outros e com o mundo". Segundo o projeto, um ensino criador favorece a integração entre a aprendizagem racional e estética, podendo contribuir para o exercício conjunto complementar da razão e do sonho no qual conhecer é também maravilhar-se, divertir-se, brincar e adotar atitudes de valorização e apreciação das manifestações expressivas. Este ensino seria possível por meio das obras de Poty. A justificativa termina indicando que "o trabalho sobre a Magia dos Painéis de Poty destina-se aos alunos do ciclo II, etapas I e II, do turno matutino". Em que elas acreditam Ao que parece, naquele ano (2005) os projetos tinham de ser interdisciplinares. A fundamentação do projeto apresenta John Dewey: "[...] nenhum método tem valor a não ser o método que dirige o espírito para sua crescente evolução e progressivo enriquecimento... (DEWEY, 1978, p.44)". Apesar de o texto trazer a chamada à referência, na lista de referências o título não é apresentado. 164 Traz ainda que "o homem utiliza a arte para manifestar expressivamente e também registrar sua vida em todos os seus aspectos", apresentando a seguir uma idéia de Osinski: "É ele quem faz a história, a arte, e transmite seus conhecimentos por meio do ensino formal e informal, perfazendo o caminho de um processo evolutivo e progressivo denominado educação" (OSINSKI, 2002). A fundamentação continua no parágrafo seguinte: "Sendo assim, temos o exemplo de Isadora Duncan (1878-1927), que aos seis anos criou uma escola de dança [...] "outro exemplo que podemos citar é Napoleon Potyguara Lazzarotto, o nosso Poty, muralista por excelência [...]". O texto, que fundamenta o projeto de interdisciplina das professoras, termina com a afirmação: "Tanto a educação física quando a Arte respondem a essa necessidade mediante a construção de objetos de conhecimento que, juntamente com relações sociais, políticas e econômicas, formam um conjunto simbólico de uma determinada cultura" (PCN, 1987). Não aparece nenhum conteúdo das áreas a justificar a interdisciplinaridade entre elas. O que elas desejam em termos de alteração no comportamento dos educandos, e que recursos ofertaram para esta mudança? As professoras desejavam "relatar o que ele [Poty] pretendeu passar em cada desenho e levar às gerações futuras o artista perfeito e o ser humano notável que foi Poty Lazzarotto"; é possível que Poty se surpreendesse ao ser chamado de perfeito. Esta frase aparece em outro projeto (3321/2005), também sem referência. Mas, de que modo isto poderia ocorrer? Como se relataria sobre os desenhos contidos nas alegorias, uma vez que a alegoria só diz "o que o autor disse e queria que ela dissesse" (BOURDIEU, 1992, p.342). Apenas ele poderia decifrar a conexão de signos; a alegoria já é uma interpretação. 165 Não aparece nenhum fundamento no texto. De onde as informações poderiam ser colhidas para este relato? O único recurso que poderia ser empreendido a contemplar este objetivo seria o uso de algum documentário em que o artista fizesse esta relação das imagens com os significados que atribuiu. As professoras apresentam um vídeo nos recursos do projeto, sem dizer na metodologia qual é, nem de que modo seria apresentado este recurso. Pelo que se sabe, não existe um material em que o próprio artista decifre uma de suas obras. O projeto também apresenta este objetivo: interagir com materiais, instrumentos e procedimentos variados em Artes, experimentando-os e conhecendo-os de modo a utilizá-los nos trabalhos pessoais, identificando uma relação de autoconfiança com a introdução artística, por meio da identificação da arte com o fato histórico contextualizado nas obras de Poty (945/2005). A parte que inicia este objetivo coloca mais uma vez a crença na interação com os materiais, a experiência, levando a conhecimentos distintos do experimentado. Se a criança experimentou determinado material e instrumentos, certamente seu conhecimento é sobre isto, ou da relação desta experiência com alguma coisa. Mas não com a história. Além disso, as alegorias não a apresentam. Evidência de ingenuidade. Também o desejo de que os alunos conseguissem "utilizar a linguagem plástica [...] para produzir e comunicar idéias" necessitaria da apresentação desta linguagem nos fundamentos do projeto, falar sobre que idéias se deseja que comuniquem e como isto ocorreria. O que o objetivo sugere é que poderiam se comunicar sobre qualquer coisa, uma vez que não há um eixo entre as disciplinas que proponha uma comunicação entre elas ou entre os conhecimentos que os educandos poderiam vir a descobrir. Ademais, a que linguagem o grupo se refere? No projeto aparece a linguagem corporal, inclusive as danças folclóricas. Os recursos não trazem os instrumentos a possibilitar, por exemplo, o fandango (dança folclórica do Paraná), nem tampouco os instrumentos da linguagem gráfica, pictórica, ou referentes à tridimensionalidade. 166 "Usufruir das produções culturais" é outro objetivo, mas o que é necessário oferecer para que isto ocorra? Os recursos não apontam a apresentação dos instrumentos culturais públicos, museus, teatros. Ainda, desejavam "desenvolver a criatividade, respeito pelo patrimônio público, estilo pessoal". Estas questões são muito marcadas pelo ensino moderno, a criatividade como potência natural a se desenvolver pela oferta de materiais e instrumentos e o estilo enquanto uma marca pessoal. Vale lembrar que o desenvolvimento de estilo aos artistas modernos era uma norma, e que ele significava uma adaptação da habilidade, uma maneira de o artista produzir em distintos materiais, consagrando-se em um deles, e que assegurava a autoria dispensando, em alguns casos, a assinatura do artista, uma vez que o estilo servia a este fim. Além do mais, o estilo era resultante de um trabalho na produção e demandava tempo, ao contrário da professora de Artes, que tinha 16 aulas para alcançá-lo – uma evidência de ingenuidade. "Sensibilizar os educandos para a necessidade de comportamento visando ao respeito ao patrimônio" é outro objetivo das professoras que não aponta nenhuma fundamentação nem recurso a seu favorecimento. Este verbo, sensibilizar, foi muito comum a objetivos no ensino da artemodernista. Sensibilizar significa "suscitar reação de certa amplitude e duração, emocionar, tocar" (HOUAISS, 2001, p.2.546), o que demanda um conhecimento mínimo sobre o indivíduo que se deseja sensibilizar, de seu emocional, da sua subjetividade, o que a escola não propicia à criança nem ao professor. São turmas; os indivíduos, nelas, são parte do coletivo (CAMARGO, 2006). Suscitar em um grupo comportamentos que exijam emoção, sobretudo frente a um patrimônio que a criança nem sabia existir, deve ter o desejo de duração desta emoção. Outra mostra de ingenuidade. As professoras, desejando ensinar sobre "o nosso Poty" e "sensibilizar ao patrimônio", não parecem ter projetado um recurso específico a este objetivo. Elas 167 ofertam: "quadro-negro, computadores, aparelho de som, fotografias de obras de Arte, vídeos". Como seria feita a sensibilização ao patrimônio utilizando um quadro-negro? Todas as opções que surgem, de combinações entre os recursos e o objetivo, sugerem experimentações espontâneas. Aparece no cronograma do projeto, ao invés de estar nos recursos, uma visita à Praça 19 de Dezembro, escolha curiosa, pois a relação com o patrimônio não necessariamente precisaria ser explorada por este monumento. Sem alguma justificativa, é de se imaginar que a escolha tenha se dado pelas imagens, em que aparecem os índios e a catequização, como a formação de Curitiba. Seriam estas imagens um elemento da interdisciplinaridade? Para pensar sobre a construção de um painel, como aponta o cronograma, esta obra, por ser em azulejo e monocromático azul, oferta menos possibilidades de abordagem. Se a escolha se devesse ao fato de esta ser em azulejos, há outras e policromadas. Enfim, não há justificativa para a compreensão da escolha. No cronograma a visita consta como sendo "dirigida", direção que também não é apontada e destoa do objetivo de sensibilizar e dos recursos que sugerem espontaneismo. O projeto não aponta nenhuma percepção das professoras acerca dos conhecimentos das crianças sobre o artista ou o local onde fariam a visita. Não fundamentaram nada sobre pertencimento, patrimônio, não falaram de vandalismo/ preservação, não apresentaram conceitos como preservação, memória e conservação, cidadania. Como imaginar que a visita poderia sensibilizar os educandos? Na metodologia aparecem jogos que as crianças confeccionariam com sucata: contendo painéis de Poty, nos quais se objetiva a fixação dos conteúdos trabalhados. As técnicas pedagógicas serão alternadas, possibilitando ao aluno descobrir novas linguagens, interagindo com diferentes materiais, fazendo a interdisciplinaridade. 168 Aqui surge um dado interessante: os sujeitos da interdisciplinaridade são os alunos que interagem com materiais. A fundamentação não apresenta o que está entre as disciplinas, nem com que conteúdo curricular cada disciplina atua no projeto. São as técnicas pedagógicas aparentemente as mesmas, aplicadas a disciplinas tão distintas, que, alternadas, permitem descobertas. Um outro dado curioso é a idéia da "fixação" dos conteúdos, através dos jogos construídos com sucata, "contendo painéis". Quais seriam estes conteúdos? A visita proposta foi à Praça 19 de Dezembro, Monumento ao Centenário de Emancipação Política, e todos os outros painéis aludem a elementos da cidade e do Estado junto aos signos de identidade paranista. Conteúdos de artes não foram citados na fundamentação. O modo de ação descrito na metodologia mostra o grau de ingenuidade da equipe. Não são apresentados conteúdos de arte, e os conteúdos sobre as obras de Poty devem ser fixados pela interdisciplina do Ensino Religioso, da Educação Física e das Artes. As professoras utilizam o discurso oficial, acreditam no mito de Poty como representante, "o nosso Poty". Seu projeto, pelas diversas evidências de ingenuidade, se encontra no terceiro nível de dominação, quando o ingênuo passa a reproduzir. Projeto 539/2001 No projeto 539, chamado "Arte paranaense, mudanças e permanências", as professoras pretendiam apresentar diversos artistas, mas, segundo elas, pela falta de tempo tiveram de alterar o projeto. "Essa alteração levou a concentrarmos o projeto em Poty, o tempo e envolvimento não permitiu a seleção de outros artistas..." (p.8). Infelizmente, não tive acesso ao projeto, somente ao relato de seu desenvolvimento, disponível no arquivo da SME. A metodologia desta dissertação previa apenas a leitura dos projetos, e não de seus resultados. Mas, como este 169 projeto apresenta diversos fatores discutidos na pesquisa, e uma das integrantes da equipe pôde ser localizada, contribuindo com a entrevista, apresento aqui algumas questões do "539" no sentido de aprofundar as evidências sobre a relação existente entre a obra de Poty e o ensino das Artes Visuais em Curitiba, como uma forma de aproximação da compreensão das professoras sobre a obra do artista. As professoras afirmam: Como educadoras compreendemos que a arte, como componente curricular nos programas de ensino, é um elemento que faz muita diferença na formação do nosso estudante, contribuindo na sua compreensão da realidade, ou seja, na sua própria transformação (p.8). No relatório do projeto, dizem que desejavam aproximar o aluno da arte brasileira, especialmente a paranaense, através do reconhecimento dos elementos caracterizadores da mesma, sendo escolhido como expoente máximo o explorador destes elmentos, Poty Lazzarotto (p.3). Os passos dos trabalhos desenvolvidos no projeto são relevantes. As professoras partiram de um problema relativo ao bairro em que vivem as crianças, desenvolveram uma pesquisa com as famílias dos educandos perguntando sobre características e símbolos do bairro, e a partir deste levantamento elegeram com os educandos o símbolo que eles desejavam, sendo escolhido o pinheiro. A partir desta eleição desenvolveram um álbum das simbologias do bairro e então apresentaram Poty, por meio de texto biográfico (p.6). A apresentação de Poty, segundo o relato, foi por este artista ser "o grande representante de nosso Estado e de nossa cidade". Na seqüência as professoras apresentaram as técnicas e os elementos que o artista utiliza. Completavam a metodologia do projeto visitas a painéis à Praça 19 de Dezembro, aos "Lugares da Cidade" e "Largo da Ordem", na travessa Nestor de Castro, ao "Paraná", no Palácio Iguaçu, e ao "História da Tecnologia", no Centro Politécnico (1964) (p.6). 170 Em seu relato, as professoras manifestam grande contentamento com as visitas: "Alunos se perguntando se o que está ali naquele painel realmente existe, ou mesmo lamentando por não haver tempo de visitarmos outros lugares..." (p.8), e contam do deslumbramento de alguns ao perceber a dimensão de monumentos visitados, monumentos estes que foram vistos em livros e jornais. Reações como estas nos dizem que alguma coisa se modificou nestes alunos após o desenvolvimento deste projeto (p.8). Segundo as professoras, Pelas atividades realizadas [...], os alunos obtiveram um maior entendimento da nossa história, nossas raízes, e com as visitas e pesquisas, vimos aparecer admiração, principalmente mais respeito pelo nosso povo, nossa cultura e pelas nossas raízes (p.3). Uma evidência de que as professoras compreenderam que as alegorias de Poty retratam a história são relatos factuais, e foram estas as informações que ofereceram aos alunos sobre as obras. A crença de que as alegorias se tratam da história, e de que os elementos nelas apresentados são "as nossas coisas", aparece em seu relato: "quando começamos a buscar em suas origens os elementos de nosso bairro, e depois, levando-os a perceber que as coisas do povo são o tema de obras de artistas importantes e expostas em lugares tão importantes (p.8). 171 As professoras concluem dizendo que, através do projeto, puderam aproximar o aluno da arte levando-o a observar as relações entre o homem e a realidade, através da arte pertencente ao patrimônio cultural local. Portanto, o trabalho sobre Poty Lazzarotto, que por toda sua história, pelas características de suas obras e relações entre a realidade do aluno, seu bairro, a época em que vive e as representações de Poty sobre o Paraná e suas origens, seus lugares e a vida de seu povo (p.8). Em entrevista, uma das professoras da equipe, ao ser questionada se, no projeto, a simbologia na obra de Poty era salientada, afirmou: Depois que a gente fez esse trabalho de construção de símbolo no bairro, a gente foi mostrar que o Poty também tinha uma simbologia, não era isso? Acho que sim, também desenvolvia em várias obras dele, tinha elementos similares, tinha uma representação do Paraná. No caso, quando estávamos mostrando esse painel, a gente tinha falado muito sobre a técnica que ele utilizava, ele tinha muito aquele trabalho com os azulejos em cerâmica, e esse era um trabalho diferente, justamente, ele usava o concreto, daí a gente tinha explicado pra eles que ele usava isopor, esculpia, ali provavelmente ela [uma das professoras] estava apontando: "Vejam, esse trabalho foi feito naquela técnica que tinha explicado pra vocês...". Luciano: "Ela está apontando a gralha-azul..." "Sim, mostrando que elementos ele representava, que ele usava, então ela está mostrando" (ROSA, 2007). 172 A professora, aqui, mostra equívocos menores do que normalmente são feitos. Ao falar dos painéis em concreto, revela um grau de conhecimento, e que esta informação falha foi repassada. O isopor não é esculpido naquele processo, as chapas são recortadas e sobrepostas. São moldes o que Poty faz. Sobre os elementos paranistas, disse que tinha a intenção de mostrar a identidade. Rosa comenta: Foi justamente com esse objetivo. Fizemos da seguinte forma, falo que a cultura do Paraná tinha alguns elementos que simbolizavam, né? Então vamos desenvolver uma simbologia do nosso bairro, como os nossos elementos culturais. Foi assim que a gente fez aquela pesquisa. O que é, que representaria alguns elementos que vão representar nosso bairro, então a flor, algum animal. A intenção, ao mostrar esses elementos na obra de Poty, era que as crianças desenvolvessem símbolos de seu próprio bairro: Para representar também, o que você falou, da identidade, para eles criarem elementos que identificassem a característica do espaço, do lugar e da cultura deles, tanto que, na pesquisa, além de, por exemplo, a natureza, tinha também arquitetura, tipos de casas, para complementar o que eles faziam, por exemplo, tinham vários elementos, vários aspectos de representação. Mostrei a Rosa a foto a seguir, perguntando-lhe se este trabalho havia sido desenvolvido em seu projeto: 173 Isso foi depois da pesquisa. Eles desenvolveram todos os símbolos, daí a gente concluiu quais os elementos que iriam identificar o bairro. Se eu não me engano eles escolheram a rosa. É o tipo de pétalas que lá onde nós trabalhávamos tinha o Parque dos Tropeiros, então nós fomos no Parque dos Tropeiros e, aí, lá no parque tem um espaço, lá eles fizeram esse trabalho em grupos, representar todos esses símbolos para colocar no trabalho de vocês. Questionada sobre a freqüência com que Poty é utilizado nas escolas, a professora responde: "Até demais". Acho que o Poty é muito popular. Eu vejo que as pessoas trabalham muito o Cândido Portinari, Poty, van Gogh, por causa da orelha, porque os alunos adoram histórias tristes, né? O Poty, porque é fácil, tem muito, é mais popular, é fácil deles terem acesso. A gente, como professora de 1ª a 4ª, não tem formação em Artes, então elas vão na intuição e o Poty Lazzarotto é muito popular, acho que é fácil para a professora trabalhar o Poty. Eu também acho que no tempo do Rafael Greca [tempo da gestão de Rafael Greca de Macedo], ele foi muito visado, muitos painéis, muita festa em cima... faz aniversário no dia da cidade... E aquilo marca... No trabalho que as professoras desenvolveram há diversos pontos significativos que são referências de autonomia, conforme as variáveis de análise criadas para a análise dos projetos, a preocupação com a cultura dos educandos, a participação dos estudantes escolhendo representações que os identificassem, a pesquisa com os familiares, a visita às obras. Diversos aspectos do projeto apontam isto. No entanto, não é possível enquadrar o relato do projeto e a entrevista nas variáveis criadas nesta dissertação para análise de projetos como documentos. Estes comentários são apresentados como endosso do problema. Este projeto mostra como a falta de crítica à obra faz com que a ideologia solape, mine a prática das professoras. Ao escolherem a obra de Poty para representar a arte que se desenvolve no Estado, e com ela os signos identitários, a idéia de Poty como representante do Estado e da cidade, as professoras também repassaram a ideologia para a qual a obra de Poty serviu. A professora Orquídea, de que se fala a seguir, não é de Curitiba. É do interior de Santa Catarina, onde fez sua formação em Pedagogia. 174 Projeto 1092/2002 O projeto chamou-se "Poty Lazzarotto", e foi desenvolvido em 2002, por quatro professoras. Seu registro está no arquivo da Secretaria Municipal de Educação. Contudo, a metodologia desta análise foi desenvolvida para os projetos e não para os relatórios. A equipe, segundo a professora Orquídea, era formada por duas professoras de Arte, uma de literatura, uma auxiliar de faltas, e uma de ensino religioso (entrevista). Uma das professoras participantes da equipe, que à época atuava na área de artes, propôs-se a colaborar nesta pesquisa. A título de registro e fortalecimento das evidências sobre a relação da obra de Poty com o ensino de Arte em Curitiba, apresento algumas das questões de que a entrevista tratou. A professora Orquídea é de Curitiba, tem formação em pedagogia e pósgraduação em Ensino Religioso. Segundo Orquídea, ela teria empreendido o projeto sobre Poty por ter tomado contato com o trabalho de outras professoras. eu sempre conversei com as professoras de Arte, sempre perguntava com que, como trabalhavam... Sempre perguntava, eu sempre gostei disso, é uma coisa que me atrai, e conversando com uma professora da escola que trabalhava, ela comentando sobre um trabalho de 5ª. a 8ª. e ela me trouxe matérias e eu montei o projeto. Por isso montei aquele projeto. (ORQUÍDEA, 2007). A professora contou, na entrevista, que "tinha um CD muito bom, uma fita de vídeo com a história dele, eu usei bastante isso, material que ela tinha [a professora]. Com figuras dele” (ORQUÍDEA, 2007). E que, na prática, o grupo fez com as crianças "uma releitura de uma obra dele. Em pintura, desenho? Desenho... que mais?... tentamos o mural, visitas às obras dele, no computador, olhando as imagens no CD, estudamos a vida, como desenvolveu cada obra...” (ORQUÍDEA, 2007). A professora considera relevante utilizar a obra de Poty na escola: Porque ele levanta bastante coisa da história do Paraná. Bastante situações e épocas do Paraná, e para você ter conhecimento, e para ter outra visão, não uma visão historicista, mas é uma visão de artista, mesmo, é diferenciada. Acho extremamente importante. 175 Questionada se lembrava de alguma imagem sempre presente na obra de Poty, Orquídea lembra: "Araucária, a senhora da carroça, que mais? o vagão, que mais?... gralha...". A obra que Orquídea lembra é "a do Alto da XV, a da torneira, a da FIEP, as que são de azulejo, Teatro Guaíra, os do Largo da Ordem... Praça do Nu, acho que foi só" (ORQUÍDEA, 2007). A professora ainda comentou: "Eles [os alunos] não conheciam, pouquíssimos tinham saído do bairro, principalmente a da Torneira, quarta série, dez anos, brincavam de querer brincar embaixo da torneira” (ORQUÍDEA, 2007). A imagem da "Torneira" se refere à alegoria de Poty localizada na SANEPAR (Companhia de Saneamento Básico). Assim como as professoras, nos projetos aqui analisados, Orquídea se refere às alegorias pela descrição de suas imagens e por suas localizações: o painel do Teatro, o painel do Palácio Iguaçu, a da torneira... Ao se perguntar se a obra de Poty teria algum significado para ela, Orquídea responde: "Não sei se tem ou não tem, para mim... Eu nunca pensei nisso. Eu gosto. É algo que me chama a atenção. Eu acho que ele representa bem a figura do paranaense" (ORQUÍDEA, 2007). E complementa, se justificando: "Eu não tenho formação" (ORQUÍDEA, 2007). 176 6 O ENSINO DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE Uma das marcas da pedagogia no século XX foi a valorização da criatividade. Respaldada no pensamento dos pedagogos progressistas, de Froebel a Montessori e Delacroly, em reformadores escolares e filósofos da educação, de Rudolf Steiner a John Deway, baseou seus programas na convicção da criatividade como sendo o melhor ponto de partida para a educação (DUVE, 2003, p.94). A criatividade era uma regra, e o conceito de arte como expressão tornou-se forte, levando a educação artística ao pensamento do "livre fazer". A expressão era parte do espírito criativo, que não poderia ser cortada, invadida, tolida ou contaminada. Como disse Thyerry de Duve, "uma criança e um primitivo tinham mais criatividade do que um adulto desenvolvido", pela idéia de pureza ligada à infância ou à cultura não evoluída. A colocação de Thierry de Duve, sobre o estudante de arte ideal e o artista do futuro ideal: "ser idealizado como um infante cujas habilidades naturais de ler e escrever o mundo visual precisavam, apenas, ser corretamente monitoradas" complementa a idéia (2003, p.94). Essas idéias de pureza, de um novo início e de progresso, foram convertidas em mecanismos educativos (EFLAND, 2003). Ao tomar uma abordagem sociocultural da obra de arte por um viés da educação pós-moderna, a função do ensino da arte continua sendo aquela definida por Arthur Efland como a construção da realidade, como sempre foi (2003, p.124), mas tendo como principal objetivo fazer com que estudantes entendam os mundos sociais e culturais em que vivem, uma vez que "a arte é uma forma de produção cultural destinada a criar símbolos de uma realidade comum" (p.125-126). O ensino da arte na contemporaneidade, com base no pensamento pósmoderno, propõe incluir o ensino das artes não eruditas, pertencentes a camadas populares da sociedade, juntamente com as reflexões de poder que as legitimam, 177 compreendendo essas expressões como também pertencentes à imensa diversidade da cultura visual. Possivelmente este seja um dos pontos em que o ensino contemporâneo mais se distancia das práticas que vinham sendo desenvolvidas no ensino de Artes Visuais. Segundo Freedman, citado por Hernández, O tema central dos debates pós-modernos, [que] giram na esfera cultural, sobretudo, pela emergência de uma cultura visual que abarca a tudo, transforma de maneira fundamental a natureza do discurso político, da interação social, da identidade cultural. A cultura visual está em expansão do mesmo modo que as artes visuais. Este campo inclui as Belas Artes, a televisão, o cinema e o vídeo, a esfera virtual, a fotografia de moda, a publicidade, etc. A crescente penetração de tais formas de cultura visual, e da liberdade com que estas formas cruzam os limites tradicionais, se pode apreciar na utilização das Belas Artes nos anúncios publicitários, na imagem gerada por computadores no cinema e na exposição de vídeo nos museus (tradução do autor, 2001, p.16). Essa ampliação de olhares que a cultura visual permite, e a inclusão de expressões culturais antes marginalizadas, são baseadas em uma concepção de arte que combina várias categorias do fazer artístico, inclusive, por exemplo, tradições regionais, artesanato local, arte tradicionalmente produzida por mulheres, arte popular, média etc. Todas estas formas são valorizadas igualmente enquanto parte da cultura da comunidade (BASTOS apud BARBOSA, 2005, p.229). A autora Flávia Bastos toma como base para sua proposta de ensino da arte a filosofia educacional de Paulo Freire, assim como outros autores têm feito na atualidade, pelo fato de esta prática educativa ter comprometimento com a liberdade e a consciência, na busca de mudanças (apud BARBOSA, 2005, p.230). Segundo a autora, "uma visão ampla e inclusiva do mundo considera várias formas de arte, desafiando limites convencionais, inspirando uma valorização artística mais ampla e a possibilidade de maior participação social" (p.229). O ensino da arte na contemporaneidade tem como foco os sujeitos deste ensino, como vemos a seguir: 178 idéias como ensinar menos, porém com mais profundidade, associar o que se estuda com o mundo real do estudante [...] traçando um caminho para o que seria o seu ensino no século XXI, diz que os docentes devem selecionar vigorosamente, iluminar e interpretar o material e desafiar os alunos a pensar em profundidade (FRANZ, 2003, p.162). Em seu trabalho, fundamentado nos teóricos da Pós-Modernidade e da Cultura Visual, Teresinha Franz demonstra a necessidade de educar para a compreensão crítica da arte, tomando como ponto de partida uma pintura brasileira do século XIX, a "Primeira Missa no Brasil" (1860), de Victor Meirelles (1832-1903), fazendo a relação entre diversos olhares que de alguma forma se envolvem na ampla trama que a pintura representa. A autora analisa e ordena em diferentes níveis e âmbitos de compreensão as falas de diferentes grupos entrevistados. Segundo Fernando Hernández (2000), um ensino para a compreensão pode permitir aos estudantes "situar-se diante do mundo e das maneiras de olhar para ele a partir de uma atitude de compreensão crítica". O autor diz que se educa para a compreensão da arte fazendo perguntas que problematizem a percepção da realidade, seguindo a indagar ao objeto da arte em questão, levando à reflexão (apud FRANZ, 2003, p.13). Nesta prática, apresentam-se diversas perspectivas sobre o objeto, percebendo que são muitos os fatores que determinaram sua instauração, e que ele, distanciado do contexto sociocultural em que foi gerado, perde significações. O objeto artístico, nesta concepção de ensino, deixa de ser apenas contemplado, ou apreciado, pois é preciso, sim, ser investigado em um processo de análise crítica, camada por camada das muitas que possui. O professor passa a ser um pesquisador. Uma análise que, como diz Chanda, "propõe mais que só uma explicação da estrutura de uma imagem, examina a relação entre a análise formal de um objeto artístico e a estrutura de outros fenômenos culturais" (BARBOSA, 2005, p.71). Hernández diz ainda que ensinar para a compreensão exige o entendimento sobre as imagens e os discursos sobre elas, pois o que se diz constrói significações 179 como estratégias persuasivas, representativas de poder ou de situações de diferenciação social que exigem posicionamento crítico (FRANZ, 2003, p.13). O autor sugere ainda um ensino com estas características: elaboração de imagens como forma de resposta a imagens existentes, exploração do papel de construtor de concepções do sujeito do olhar e sua realidade, e distinção do papel das diferenças culturais e sociais na hora de construir maneiras de ver e de elaborar interpretações sobre as imagens. No caso em questão, a obra de Poty Lazzarotto no ensino de Artes Visuais, o que ocorre é a reprodutibilidade das idéias paranistas em práticas docentes. O que é ensinado, muitas vezes, são somente estereotipadas idéias identitárias do homem paranaense, das quais a obra de Poty é prenhe, e significativo ao Estado. Sem críticas, sem questionamentos sobre sua oferta e os locais em que a obra se localiza na cidade, sem questionar a veracidade das idéias que as alegorias transmitem, o que este ensino termina por fazer, sem ter a intenção, é a legitimação daquelas idéias. Para Karry Fredmann, o ensino pós-moderno da arte pode "ajudar aos estudantes a verem com olhos mais sofisticados que os espectadores do passado e a buscar a sutileza, a ambigüidade e a complexidade" (FREEDMAN, 2002). Esta complexidade não diz respeito unicamente ao caráter formal das obras, mas principalmente à autonomia de leitura e interpretações que não estejam predeterminadas por um programa ideológico nelas oculto. Para que isso ocorra, as reflexões de Paulo Freire contribuem, pois é necessário que o educador seja comprometido socialmente e tenha autonomia. A prática pós-moderna é libertária, mas depende antes da libertação do educador, que precisa entender-se dominado pelas idéias que lhe inculcaram, assim como entender a obra de arte como produto da cultura em que veio ao mundo, com relação de poder e dominação a ser desvelada. 180 Requer que este educador aprenda a ver a realidade por outra perspectiva, talvez a partir dos Estudos Culturais, tomando a obra de arte como objeto da Cultura Visual, e o artista não mais como o mito. Requer ainda a busca de um enfoque social do campo de estudos, o desenvolvimento de idéias, a visualização e a reflexão críticas (FREEDMAN apud HERNÁNDEZ, 2001). 6.1 A OBRA COMO CONSTRUTORA DE CONHECIMENTO CRÍTICO POR UM ENSINO DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE Este trabalho teve a intenção de fazer uma reflexão crítica que possa contribuir às práticas educativas de professoras nas escolas de Curitiba que envolvem a obra pública de Poty Lazzarotto, no sentido de promover a compreensão de questões relacionadas ao poder e identidade que as obras deste artista apresentam. Nenhuma professora estava recaindo em erro ao tratar o tema 'cidade' fazendo paralelos à cidade em que vive, ao usar as obras de Poty na consideração ao patrimônio, ao desejar falar das pessoas da cidade e suas conquistas. Contudo, é importante que possamos rever essas práticas, os pontos de vista, as imagens e os locais em que elas estão reproduzidas, as informações que temos sobre elas e sua procedência. Mais que rever as obras e nossas práticas, é muito importante que possamos nos rever em nosso trabalho. Questionando como fomos representados, como fomos condicionados a nos ver naquelas representações. São necessárias a atenção e a crítica. Obras e artistas estão inseridos em campos de poder, e a ingenuidade é perigosa. É indispensável que, depois deste olhar reflexivo e crítico, consigamos pensar o rumo que daremos à prática educativa em arte, utilizando painéis de Poty. Há um perigo constante de a professora ter suas melhores intenções, sua preparação de aula, seu objetivo pedagógico corroídos por uma ideologia submersa nos objetos da cultura que atendem ao poder. Ao utilizar-se delas com 181 ingenuidade, a aula e sua prática podem vir a se transformar em instrumento de propagação daquelas idéias, a servir a interesses que não os do compromisso social que assumiu. O perigo está em agir ingenuamente. Ter crença no que se diz das obras sem ouvir quem está dizendo e de que perspectiva fala. É um crítico quem escreve sobre a obra de Poty? É um político? É uma instituição? É impressionante, mas essas perspectivas podem estar ligadas. O crítico escreve sobre o artista. Seu texto apresenta a obra em um catálogo. O catálogo é publicado pelo órgão promotor do evento. O evento é a inauguração da obra encomendada ao artista para ocupar a fachada do edifício da instituição de cultura. O crítico foi pago para escrever, ou, ainda, este é seu trabalho de funcionário público na instituição. É ficção o exemplo, mas ocorre corriqueiramente. Por isso não basta colher as informações disponíveis sem procurar suas fontes. A história da arte, nos casos como o de Poty, uma história recente, raramente é crítica. Se é crítica, possivelmente não está disponível. O poder tem poderes para mostrar ou não mostrar o que lhe interessa. Em 2000, o catálogo "Marcas do corpo dobras da alma", da XII Mostra de Gravura de Curitiba, não foi distribuído, vendido ou doado porque nele o crítico contratado como curador criticava a instituição. Esses textos são comprometidos na sua grande parte, ou não são críticos ao poder, sequer criticam o artista. E serão eles que contarão na escrita de uma história da arte no Paraná com Poty. Assim como é importante perceber quem é que está escrevendo, é importante que a professora e o professor percebam a quem estão falando sobre a obra, ou o artista. De onde vem este aluno, o que significa para ele a arte ou o artista? Quais são as suas referências sobre isto e sobre os temas que serão tratados? Compreender a obra pela cultura não basta. 182 Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento (FREIRE, 2004, p.123). É preciso compreender que lugar esse aluno ocupa na cultura, "atento ao capital cultural que caracteriza as diferentes experiências estudantis e as suas produções de significado, através de seus antecedentes históricos, de posição, família e classe" (GIROUX, 1996, p.203). Ter em mente que o objetivo é permitir que ele consiga confrontar a dominação. O trabalho não deve ser domesticador, pelo contrário, deve promover a crítica. Há outra coisa: essas obras existem, e se as desconstruímos para revelar as estratégias de poder, é importante que possamos desconstruir o processo fabril, demonstrando o modo como tecnicamente o artista alcançou aqueles resultados. Buscar a compreensão do trabalho do homem do seu contexto e não um mito, como comenta Teresinha Franz: "nossa meta não há de ser encontrar um herói, nem tampouco um vilão, mas o artista do seu tempo" (2003b, p.34). Uma das críticas que faço a práticas educativas que envolvem a obra de Poty é o fato de elas não construírem conhecimento nesta parte da arte, mantendo misterioso o objeto, o que lhe confere uma aura sagrada, misteriosa. Em um dos capítulos, na pesquisa, está citado o uso do desenho para se ensinar coisas sobre um painel. É compreensível a carência de materiais, mas este dado não pode significar a escravatura do educando a uma única modalidade artística, nem o que possa tornar-se um exercício da comodidade docente, sem luta, sem transpor limites. Quando nós nos engajamos numa acomodação antecipatória, nós fizemos uso do conhecimento adquirido a partir de uma variedade de contextos para acomodar a singularidade de cada situação. Acomodamos não voltar o olhar do professor para a criança e o conhecimento em geral (KINCHELOE, 1997, p.219). Para compreender a arte, segundo Hernández (2000) e Franz (2003), são necessários conhecimentos interdisciplinares e transdisciplinares. Conhecimentos 183 estes que vêm de diversos campos culturais, como a antropologia, a história social e a estética. Segundo Franz (2003b), a arte, antes de ser produto da mente isolada de um artista, é uma síntese visual de determinado tempo e lugar. Por isso, para compreender a obra do artista é necessário ir àquele contexto. Há conhecimento no fazer da arte e este fazer precisa ser analisado. Autores como Pierre Bourdieu (2002) e Arthur Efland et al. (2003) e Barbosa (1991) são importantes para esta reflexão. A contribuição deles, aqui, é no sentido de afirmar que não pode haver um ensino da arte voltado à técnica, mas que o conhecimento desta complementa a compreensão. Com este complemento é possível um posicionamento crítico que não apenas critique a artesania, mas a compreenda em seu tempo, na cultura do artista, do sistema, que chegue ao outro lado, fazendo relação ao aluno, sua comunidade e à sociedade atual. Ao analisar a obra também pelo ponto de vista de seu fazer, sua artesania ou fatura, pode-se contrapor o mito do criador, do gênio, por se conhecer que a habilidade e a técnica foram aprendidas, e se desenvolveram pelo trabalho. Juntas, habilidade e técnica, geraram alguns pilares da fundação do mito Poty. Paulo Freire tem um pensamento que nos auxilia, aqui, a pensar o ensino de Artes Visuais que possa empregar o ensino das artesanias da arte com o fim de desenvolver o educando: se meu compromisso é com o homem concreto, com a causa da humanização, de sua libertação, não posso prescindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais me instrumentalizo para melhor lutar pela causa (2006, p.23). Bourdieu faz uma análise da idéia do gosto pela arte, com base na herança cultural e outros fatores. Ao sociólogo, para que se tenha posse dos bens simbólicos, é necessário que se possuam os instrumentos de apropriação deles (2004). Ao autor, a escola contribui neste sentido por meio de um ensino tradicional, que reproduz a cultura do dominante, impondo-a sobre as outras classes. É necessário um outro 184 posicionamento do educador sobre este conhecimento. Mais à frente, o pensamento de Giroux será empregue neste sentido. A análise de Bourdieu é precisa. Com o monopólio sobre esses bens simbólicos, a burguesia do século XIX construiu seu monopólio da arte. Disse Goblot (1989, p.110) que "a burguesia acercou-se da arte para fazer uma barreira". Feita a barreira, foram considerados como bons "todos os que estão do lado bom da barreira", e estes eram "iniciados ou assim considerados". Complementando, quanto a ser iniciado, isto significa um aprendizado que o inicia. Na percepção de Bourdieu, os habitus modelam o existir do indivíduo, e é socialmente que isto ocorre, como já foi dito nesta dissertação. O autor cita o hábito da visitação a museus (1998), a construção do afeto pela arte como sendo modelado pela família que possui este afeto e disposição, por exemplo. Ainda complementando este pensamento, em Regras da Arte49 (2002) Bourdieu analisa o hábito burguês do século XIX a partir do romance de Flaubert (1821-1888) A Educação Sentimental (1869). O sociólogo diz que Flaubert só pôde descrever os hábitos burgueses do personagem Frederic por ele ser burguês e ter a correspondência a seus hábitos (2002, p.30), estar do lado bom da barreira do nível, como diria Globot. Podemos pensar essa barreira, na atualidade, atendendo à diferença entre o ensino da arte em algumas escolas públicas e algumas escolas privadas das capitais, tendo como conseqüência a defesa do monopólio dos bens simbólicos da elite. Estive professor em uma escola privada, uma das mais conceituadas de Curitiba, por seis anos. Dispunha de sala ambiente, verba de material a que tinha acesso na papelaria da própria escola, visitas freqüentes a exposições de arte. A diferença não estava apenas na condição material que guarnecia as aulas, a hora-aula naquela escola era a mais bem paga na cidade. Havia incentivo ao aprimoramento profissional e discussões em grupo. 49 O sociólogo "reconstrói a história literária francesa da segunda metade do século XXI, revelando as regras que regem escritores e instituições literárias. Nele o autor desmistifica o gênio criador todo poderoso e apresenta os fundamentos para uma teoria da produção artística" (contracapa). 185 Outro fator era o capital simbólico dos alunos. A herança cultural de que dispunham e seu padrão social lhes garantiam acesso e disposição à arte. Muitos conheciam a Europa, museus, cidades, artistas e obras. A posse dos bens simbólicos que o ensino da arte nestas escolas possibilita é em parte mais eficaz por estes fatores. Mas não é garantia. Há currículos e profissionais que, com bom material ou não, não alcançam bons resultados. Não se pode generalizar. As escolas públicas vêm recebendo instrumental tecnológico e têm existido incentivo na formação contínua dos profissionais. Há a carência material, as dificuldades com a falta de salas-ambientes, o reinado absoluto das artes visuais na maioria das escolas ainda a ser vencido, o que levaria a uma maior democratização do saber. Como disseram Efland et al., "as questões de poder/saber constituíram a chave de algumas distinções entre o dominante e os marginalizados; nós e eles; nós e os outros" (2003, p.175). Estender a uma parcela maior da população a arte por um ensino mais consistente também significa permitir o conhecimento dos saberes, da sua relação com a sociedade no momento em que é utilizada. Assim, voltando à construção de conhecimento pelo fazer dos objetos e de novos objetos, permite ver por mais uma perspectiva. Permite que ele seja decifrado em sua materialidade. Uma vez que permite a posse, precisa permitir a crítica. O objetivo não é possibilitar que o sujeito avalie e valorize por conhecer a dificuldade da operação. Nem tampouco ensiná-lo a lógica modernista de "conferir posto aos artefatos culturais" (EFLAND et al., 2003, p.171) no aspecto moderno, diferindo estes artefatos construídos pelos esquemas da tradição como superiores a outros, como fizeram aquelas políticas culturais. É importante que o conhecimento crítico seja construído junto ao conhecimento do fazer. Não exige apenas artesania ou conhecimento técnico: "não há técnicas neutras que possam ser transplantadas de um contexto para outro" (FREIRE, 2006, p.24). É indispensável que a professora siga a linha crítica. A fala de Giroux é bem-vinda. Ele comenta que "os educadores críticos precisam compreender como as formas materiais e vividas de cultura estão 186 sujeitas à organização política, isto é, como são produzidas e reguladas (1997, p.137). Este compreender deve estar também ampliado pelo conhecimento da produção dos artefatos. Giroux pensa no conceito de experiência ligado "à questão mais ampla de como as subjetividades são inscritas nos processos culturais que se desenvolvem em relação à dinâmica de produção, transformação e luta" (GIROUX, 1997, p.137). Esse conceito de experiência pode ser transposto ao ensino das Artes Visuais? Leituras críticas, desconstruções, constatações sobre os discursos identitários e proselitistas precisam revelar o discurso do poder. Desconstruir o objeto permite que o educando não mantenha "suas fortes concepções mágicas" (FREIRE, 2006, p.40) acerca da obra, pela falta de instrumental de análise da fatura, da construção/criação do artefato. No cinema, nos livros, nas obras de arte, as ideologias tomam formas materiais, como diz Giroux (1992, p.198), caso da obra de Poty. Segundo ele, em contato com estes textos, as pessoas, "através de suas próprias histórias e subjetividades, representações e práticas materiais relativas a classe e ao gênero, [...] suas experiências", criam significados. Para o autor, o significado é "construído, negociado e recebido" (p.199) e estes são reproduzidos. A reprodução seria os "textos e práticas" que se prestam à seleção, fixação e legitimação de ideologias dominantes e normalmente têm pouco a ver com as classes em que são empregues (p.200). O autor defende, nesse texto, a idéia de que, contra ideologias, outra deve ser construída: uma ideologia crítica. Esta ideologia teria de se situar entre diferentes discursos ideológicos e as múltiplas subjetividades que constroem significado para os estudantes de diferentes classes, gêneros e antecedentes raciais (GIROUX apud THEOBORN, 1996, p.203). Contra a reprodução da ideologia por práticas e textos, Giroux defende a posição da ideologia crítica que contraponha a dominante em uma prática radical, 187 e que atue na reconstrução. O que teria como princípio a "troca do terreno teórico dos problemas de reprodução e mediação pela preocupação por uma apropriação" (1996, p.204) com os significados que o sujeito traga de sua história. Para concluir a idéia de Giroux, que vem ao encontro da que apresento: A tarefa da reconstrução não é simplesmente analisar o conhecimento e as relações sociais para dominar as ideologias ou as verdades subversivas não intencionais, mas é apropriar-se de seus elementos e habilidades materiais úteis e reestruturá-las como experiências coletivas. A produção de conhecimento vinculada às atividades transformadoras, e está situada dentro de uma problemática que toma como seu propósito desenvolver as práticas radicais na escola (p.204). Pela reconstrução e apropriação seria possível que os educandos alcançassem o "elevado nível de comprensão da arte" de especialistas, como diz Franz (2003, p.289). Para a autora, algumas das "falhas em nossa compreensão devem-se à falta de conhecimentos prévios" (2003, p.289) para a análise da obra de arte. Faz-se necessária muita atenção do educador para esta comunicação e desconstrução e reconstrução crítica. Por mais que os objetivos do ensino estejam claros a ele, sempre há, na comunicação pedagógica, percalços na compreensão. Isto pode gerar a construção de conceitos equivocados se a obra de Poty for apenas criticada e desconstruída para se perceber a ligação ao poder. O artista pode ser visto como um homem oportunista, um artista servil, ou sem personalidade, o que não é fato. Ele fez bem o que lhe foi ensinado fazer. A interpretação da mensagem emitida pelo educador nunca é compreendida pelo outro inteiramente. De certo ponto de vista, tudo é interpretação. Se a professora ou o professor analisarem a obra de Poty de modo a construir a crítica e emancipar as leituras, melhor. A obra possui valores, está exposta na cidade em muitos locais, mas o olhar sobre ela e sobre qualquer obra de arte deve ser construído pela educação para a compreensão crítica delas. 188 Poty não existe fora da história. Ele foi um ilustrador perspicaz, um gravador de grande conhecimento técnico, autor de histórias em quadrinhos, um desenhista apaixonado. Se ele chegou onde chegou com a ajuda do poder, foi legitimado por determidado contexto social, político e cultural. A obra de Poty não há de ser vista apenas como comprometida com o poder, mas como possibilidade de ensinar conhecimentos em Artes Visuais. Os conhecimentos em arte envolvem muitos outros fatores – científicos, históricos, operativos, técnicos e simbólicos. Fernando Hernández diz que, na perspectiva da educação para a compreensão crítica da cultura visual, é necessária a elaboração de imagens por procedimentos diversos como modos de diálogo com as imagens existentes (apud FRANZ, 2003, p.12). O conhecimento sobre o fazer dos painéis, sobretudo dos painéis em concreto aparente, pode contrapor os discursos que os painéis de Poty veicula. Como Hernández sugere, "a construção de relatos visuais (utilizando suportes diversos) relacionados com a própria identidade e com problemáticas sociais e culturais que ajudem a construir posicionamentos críticos nos estudantes" (apud FRANZ, 2003, p.12). Se Lazzarotto aparecer com a característica do conhecedor da artesania, o homem que possuía o conhecimento sobre uma produção, o artefato pode alcançar outra leitura. Pode surgir o conhecimento humano, surge a arte como um trabalho. Muitos fatores podem ser agregados em uma produção plástica que envolva a construção crítica de conhecimento, junto à desconstrução do discurso, para auxiliar a contrapor outro discurso ao que quer dominar. Está na postura do educador e na proposição da construção de um trabalho artístico, painel, com "pequenos relatos", como dizem Efland et al. (2003, p.161). Na organização do fazer artístico, caso seja proposta a construção de um painel, por exemplo, a comunidade pode estar envolvida. Seus "saberes de experiência feitos", como dizia Freire (apud GADOTTI, 2005, p.41), podem gerar 189 outros olhares sobre a obra e o fazer das obras. Pais, voluntários da comunidade, podem ajudar na criação e construção. Como foi o caso de um projeto de que apresento imagens a seguir. Os conhecimentos de construção civil, marcenaria etc. são indispensáveis. Eles mostram a cooperação, a participação, mas mostram também que as obras de Poty exigiram saberes que não são pertencentes à esfera de poder, que os dominados também têm saberes de imensa importância. Kincheloe (1997, p.219) diz que Os seres humanos são enredados em incontáveis caminhos num sinergismo sincrônico-diacrônico. Conscientes deste sinergismo, os professores pós-formais dirigem sua atenção para as forças ideológicas e sócio-econômicas, constroem consciência, enquanto, ao mesmo tempo, como as crianças individualmente e os alunos em sua vida real respondem a esta construção. "Saberes das pessoas" (Foucault), "saberes da experiência feita" (Freire) destas pessoas da comunidade não devem ser apresentados como mão-de-obra, mas como trabalho determinante à produção do dominante, e que é esquecido. 6.2 PENSAR NA CONSTRUÇÃO DE NOVAS IDENTIDADES A PARTIR DE POTY E DA ARTE CONTEMPORÂNEA Como diz Giroux, "reprodução, construção e reconstrução" são princípios para a análise dos textos materiais (1996, p.200). Após a análise dos "textos" – os painéis de Poty – e de gerar discussão, é importante apresentar outros artistas que trabalham o tema, construir a obra de Poty, discutindo seu caráter ideológico e a identidade paranista implícita na sua obra, escrever a identidade do grupo de outra forma, possibilitando que se identifiquem. Segundo o autor, é de grande importância que tenhamos no ensino da arte uma profunda preocupação com a maneira "como objetos, discursos e práticas constroem possibilidades e limitações para a cidadania" (GIROUX, 2003, p.156). Para isso, como este trabalho já advertiu, é necessário que o ensino 190 busque a inserção e a reflexão sobre a condição de vida dos estudantes aos quais apresenta obras de arte, e que o faça criticamente. Para isso é necessário ir além da aparência, buscando referências que permitam desvelar o significado das imagens em diversos contextos. Leituras que se prendem à superficialidade, sem buscar estas origens, levam ao perigo da transmissão das ideologias. Apresentar a obra de Poty por ele ser um artista local e referência no cenário artístico nacional, e por assinar a quantidade de obras que há na cidade de Curitiba, é importante, sim, mas o que esta dissertação buscou mostrar é, também, como temos reduzidas nossas práticas educativas pela falta de autonomia para vermos e mostrarmos além do que nos é exposto e do modo como nos é exposto. A realidade tem muitas faces, e ver por diversas perspectivas importa em muito à educação. A tarefa que o educador se propõe é a de, como dizia Paulo Freire, pensar certo: Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar certo não é que ― fazer de quem se isola, de quem se 'aconchega' a si mesmo na solidão, mas um ato comunicante. Não há por isso mesmo pensar sem entendimento, e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferido mas co-participado (2004, p.37). Justamente para que nossa prática seja libertadora e construa, por uma abordagem sociocultural, o conhecimento na arte, que possamos ver a obra de Poty não apenas pelo viés patrimonial que tem, não apenas pelo valor histórico que possui, não somente pela estética, e não unicamente como ideologicamente comprometida com o poder que é. A obra não se separa do homem, o homem não se separa da história e da sociedade que o construiu em seu tempo. Poty, sua obra e seu tempo precisam ser vistos por estes muitos lados. Para auxiliar na construção deste olhar, seguem algumas imagens de uma obra de Poty, "O Paraná", de 1987. 191 Esta alegoria encontra-se na fachada do Palácio Iguaçu, sede do governo do Estado. Monumental, possui 17 metros de extensão por seis metros de altura, e sua matéria é o concreto. Antes da colocação de perguntas que pretendem motivar uma reflexão, é importante ver a imagem da obra, observar os grupos e pensar no que tais agrupamentos podem significar. O Paraná. Poty Lazzarotto, 1987. 6 x 17 metros O painel no Palácio Iguaçu 192 A narração no painel "O índio e o tropeiro, as araucárias, os imigrantes, a formação do Paraná". O índio e o tropeiro, as araucárias, os imigrantes, a formação do Paraná Os semeadores do futuro, o homem e as gralhas-azuis 193 A extensa lista de perguntas que segue pretende mover à reflexão Um exercício ao olhar e que pode fazer ver além da obra. Pretende impulsionar pesquisas e trabalhos pedagógicos críticos sobre a obra de Poty Lazzarotto, desembocando em experiências artísticas. As questões se dividem em blocos por assuntos, e a elas não serão apresentadas respostas. "O Paraná, de Poty, é uma alegoria. Segundo Sandra Lourenço, a "alegoria é algo que diz (gorein) alguma coisa sobre determinado fato ou fenômeno por meio de outro (ale) fato ou fenômeno considerado determinante" (2003, p.42). Em nosso caso, a obra diz fatos do Paraná? Quais são os fatos ditos nesta obra? O que a dimensão do painel indica? Você consegue, através de suas obras e dos locais em que elas estão, pensar em arte oficial? O que o termo lhe sugere? De que modo se pode pensar em oficialidade em suas obras? Como relacionar significados encontrados nas alegorias paranistas com as histórias pessoais dos educandos? Como uma pessoa que desconheça algumas simbologias que a obra contém a compreende? Por quê? O que é necessário para haver identificação? Estas questões se abrem em muitas outras, pois a obra pretende representar o Estado e as pessoas. Como pensar em uma obra que represente um Estado de tanta diversidade? Isso poderia ser tratado homogeneamente, ou há diferenças culturais de norte a sul, das culturas na metrópole e das culturas no interior? Esta representação respeita individualidades? O semeador, figura central do painel, representa quem? 194 Como a mulher está representada? Sua figura diz respeito à atualidade, ao futuro ou ao passado? Como é esta representação? O local em que a obra está localizada não é um museu, não é uma rua, uma escola, ou outro local da cidade, é o Palácio do Governo. Podemos pensar algo sobre a relação da obra com seu suporte? A obra foi uma encomenda; o que isto pode significar? Por que as obras monumentais de Poty estão concentradas na cidade de Curitiba? Por que tantas de suas obras públicas estão localizadas em edificações ligadas ao governo? Quais são os títulos dessas obras localizadas nesses lugares? No painel, vemos, no primeiro grupo da esquerda, um índio e o tropeiro. No capítulo XX foi falado sobre a história de Curitiba, e alguns dados podem servir à reflexão dessas questões: O tropeiro está em pé sobre o índio? Como o painel não é todo produzido com a perspectiva renascentista – dando ilusão de profundidade aos planos –, o tropeiro e sua arma estão representados sobre o índio. O que isso pode levar a pensar? Não se pode imaginar que Poty, ao compor a alegoria e ao distribuir a narração, estivesse sobrepondo, valorizando ou inferiorizando uma ou outra cultura, mas há uma diferença no modo de representar os grupos. O grupo seguinte, os imigrantes, aparece em perspectiva, um grupo à frente e mais dois ao fundo, até o navio, que está no horizonte. É interessante lembrar que os ascendentes de Poty eram italianos. Talvez o verbo que narra este grupo seja: chegar, no gerúndio. O grupo estaria chegando, e a perspectiva foi um artifício à ilusão de temporalidade. Assim, pode-se pensar que o índio não chegou, ele é nativo, mas, e o tropeiro? 195 No Paraná, o imigrante ocupou lugar na construção do mito do "paranaense", as etnias usadas de forma "fundacional" (HALL, 2005, p.62), um esquema copiado da mistura das três "raças" na formação do "brasileiro". Esta construção sugere que os imigrantes foram acolhidos e que sua chegada ao País e ao Paraná tenha sido receptiva. No entanto, as histórias que essas pessoas contam é diferente. Ainda hoje grupos étnicos se mantêm em colônias bastante fechadas. Um tema interessante a pesquisar seriam as histórias dos imigrantes, o que os trouxe ao Brasil e ao Paraná e como foi este processo. Qual teria sido o motivo da vinda dos imigrantes ao Paraná, quais foram estes grupos, onde se mantiveram as colônias e como isto hoje se apresenta? Quais são os grupos de imigrantes no Paraná? Qual o mais numeroso deles? A representação de Poty é genérica ou específica aos imigrantes? Entre o primeiro e o segundo grupo há um conjunto de araucárias. Este é dos símbolos mais utilizados por Poty em seus painéis e murais. Por que esta árvore aparece no painel "O Paraná"? A araucária é uma árvore nativa do Paraná? Ela só existe nesta região? Essas perguntas podem trazer reflexões sobre a representação que se fez do Estado do Paraná a partir desta árvore. A partir dessas questões e da obra de artistas do início do século XX em Curitiba: Lange de Morretes, João Turin, entre outros, seria interessante pesquisar que significação a araucária teve no início e no fim do século, quando Poty a emprega. As palavras de Adalice Araújo (apud PEDROSO, 2006) nos servem para relembrar a questão: Pode-se afirmar que – após a visão romântica e folclórica dos artistas descendentes de imigrantes que, na década de 20, lançaram o Paranismo com olhar europeu, baseando-se na natureza paranaense como temática – finalmente Poty, também filho de imigrantes italianos, é o verdadeiro fundador do Paranismo – nas Artes Plásticas – por ter conseguido (de forma mais profunda nos anos 60) decodificar sua essência, suas raízes sociais, filosóficas e o clima exitencial do Paraná. 196 Aparece no painel, cruzando-o da esquerda para a direita, uma revoada de aves – são as gralhas-azuis, um símbolo paranista. Qual a história que se ouve sobre a gralha-azul? A lenda é uma verdade? As gralhas-azuis, que no painel "O Paraná" voam em revoada, são aves gregárias, vivem em bando ou vivem sós? O que essas aves levam em seu bico? O que a expressão popular "levado no bico", ao lado do emprego destes signos como identidade, podem mover como reflexão em uma prática docente que contraponha idéias de identidade massificadoras? Como os significados implícitos nessa imagem criaram significado de identidade do Paraná? Isto é uma verdade ou uma verdade construída? Há uma diversidade grande de imagens de semeadores na história da arte, diversas delas criadas no realismo, como o semeador de Millet (1814-1875), e até mesmo no Paraná, o escultor Zacco Paraná (1884-1961), modelou o Semeador do Paraná, estátua em bronze oferecida pela colônia polonesa ao Estado, por ocasião do centenário da Independência do Brasil (1922). Esta obra se encontra na Praça Eufrásio Correa, em Curitiba. Apresentar essas diversas obras pode fazer pensar nos discursos que este gênero de representação criou nos séculos XIX, XX e XXI. Muitas das discussões apresentadas nesta dissertação estão presentes na alegoria "O Paraná": a representação androcêntrica do paranaense, a do Estado como a forte araucária, o trabalhador pela gralha, e o trabalho pelo pinhão, o futuro como promessa de fartura, a oficialidade, o comprometimento ideológico. No catálogo "A obra monumental de Poty", registro da exposição ocorrida no espaço cultural da Caixa Econômica Federal, consta que, em 1953, ano da inauguração do Palácio Iguaçu, Poty foi escolhido para executar o mural previsto na fachada do edifício. Mas somente 34 anos depois o mural se concretizou como um registro da origem paranaense (1998, s/p). 197 Naquele momento, "Poty foi assessor da comissão dos festejos do centenário e foi escolhido para executar o mural sobre um importante marco da história do Paraná: o Cerco da Lapa" (PEDROSO, 2006, p.82). Entre os marcos da comemoração dos cem anos de emancipação política do Estado está a Praça 19 de Dezembro, obra em que Poty participa na elaboração. Poty era organizador dos eventos, participava da criação de uma das obras, e recebe a indicação a uma obra no Palácio do Governo? Estes dados mereceriam esclarecimentos em uma pesquisa específica sobre a relação dos artistas com o poder no Paraná. O painel que Poty executaria teria a temática do Cerco da Lapa, motivo que foi esquecido, mas que se concretizou sob o tema da origem do Paraná, obra em que se destaca a figura do semeador, "alusão às novas colheitas, ao progresso acelerado dos nossos tempos" (PEDROSO, 2006, p.82). A narrativa, segundo a autora, ocorre da esquerda para a direita, iniciando com indígenas, os primeiros habitantes da região. Em seguida, os tropeiros, os imigrantes, os colonizadores. O sol surge bem visível, como um novo amanhã (2006, p.82). A autora diz que o semeador "trabalha em função do futuro. Ele é efetivado pelo próximo elemento, por meio da colheita". O ciclo torna a se completar pela gralha-azul, que semeia o futuro, com pinhões (p.82). A obra "O Paraná" tem caráter identitário. Bauman nos diz que "a 'identidade' é uma idéia inescapavelmente ambígua, uma faca de dois gumes" (2005, p.83), e, no tempo de formação de Poty, este ideal da identidade foi forte na arte, assim como na política. Naquele momento, construir a identidade do brasileiro e do Brasil vinha ao encontro da batalha interna do País pelos objetivos de modernização. Pode-se compreender essas idéias no início do século passado. Passado um século, o conceito de identidade foi revisto: 198 Estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes tradições culturais; e que são produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou outro: ou retornando a suas 'raízes' ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema (HALL, 2005, p.88). Vivemos momentos difíceis. Se a identidade fixa da modernidade não pode mais ser o modelo a seguir, a falta dela é aflitiva, "a preocupação das identidades alternativas traz uma incerteza oposta: qual das identidades alternativas escolher e, tendo-se escolhido uma, por quanto tempo se apegar a ela?" (BAUMANN, 2005, p.91). O autor adverte que "a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam". Pensando nisto, é necessário esclarecer que o objetivo deste item da dissertação não é a experimentação, a construção de identidade como um jogo de atualizações inconseqüente. Tem o desejo de que, pela criação artística, sejam manifestas identidades que existem, que não estejam inseridas, ou até da percepção das identidades surgidas desde o tempo em que Poty as representou. Pensar identidade na contemporaneidade em contraposição à representação moderna. Esta diferença de nossas identidades na atualidade é que a arte contemporânea traz uma multiplicidade de estilos e gêneros que já não é uma seta do tempo sobre o espaço de coabitação. Os estilos não se dividem em progressista e retrógrado, de aspecto avançado e antiquado. As novas invenções não se destinam a afugentar as existentes e tomar-lhes o lugar, mas a se juntar às outras, procurando algum espaço para se mover por elas próprias no palco artístico (BAUMANN, 1998, p.127). Efland et al. (2003, p.75) falam sobre a dupla codificação nas obras de arte contemporânea, uma questão que, segundo o autor, permite leituras múltiplas. A educadora Mirian Celeste Martins sugere, nas práticas educativas, as curadorias educativas50, em que a professora e o professor podem apresentar diversas 50 "Curadoria educativa: uma pesquisa que aprofunda". In: Mediação: provocações estéticas. Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes. Pós graduação. São Paulo, v.1, n.1, 2005, p.22-39. 199 imagens que, aproximadas, criam relações, relações que trazem as duplas conexões e outras relações. A obra de Poty precisa ser compreendida por atender às idéias modernas e, ao lado de outras obras, pode construir relações, conexões e novas formas de pensar o tema da identidade. No caso, poderíamos aproximar a obra de Ana Bella Geiger, em que a artista sobrepõe sua imagem em um postal e o contrapõe ao postal mostrando o índio em "Brasil nativo/ Brasil alienígena"51, próximo à imagem do primeiro grupo de figuras do painel "O Paraná", podendo promover ricas discussões. É para que tenhamos mais fundamentação na discussão sobre a identidade nas práticas da arte contemporânea e possamos promover a colisão de imagens da obra de Poty com a arte contemporânea que segue a reflexão. A idéia de identidade, como já dito, é uma tentativa do poder de tomar o que é popular como sendo nacional e servir a uma representação, homogênea, desrespeitadora das diversidades. Como disse Hall (2005 p.47), "identidades não estão impressas em nossos genes". Por isso, pensar no tema hoje pode ser extremamente interessante ao ensino, como sugeriu Hernandez (FRANZ, 2003, p.12). 51 Disponível em: http://www.revistamuseu.com. br/upload/sesc_08_anna_bella_geiger_brasil_ nativo_brasil_alienigena_1977_2004.jpg. Acesso em: 12 jul. 2007. 200 Segundo Mirzoeff, a cultura visual consiste em buscar meios de escrita e narração que permitam a permeabilidade transcultural das culturas e a instabilidade da identidade. Apesar do recente centralismo na identidade como um meio para resolver dilemas culturais e políticos, cada vez fica mais claro que a identidade é tanto um problema como uma solução (2006, p.51). Cabe, para tanto, adentrar um pouco na discussão da arte contemporânea com a identidade, na fotografia e na imagem, como uma potencialidade a ser explorada, uma vez que desde os anos cinqüenta a produção artística brasileira vem apresentando revisões críticas ao tema, e que, no ensino da arte, ainda é comum percebermos práticas que não aprofundam a discussão atual. Tadeu Chiarelli, crítico de arte paulistano e curador da exposição "Identidades Não identidades"52, construiu uma reflexão sobre o tema. Diz o crítico que na arte esta função pertencia à pintura desde o realismo no século XIX, tendo se esgotado, migrando para a fotografia. No Brasil, a representação do "brasileiro", depois de ser "excluído do universo de interesses da pintura modernista local (após o fim histórico das obras de Cândido Portinari, Di e outros)" (CHIARELLI, 2006, p.7) coube à fotografia. O crítico pergunta se "a fotografia brasileira de fato identificou o homem brasileiro, ou o homem brasileiro ficou identificado apenas através da imagem que esse tipo de fotografia criou" (p.8). Chiarelli diz que aquele ideal de "identidade nacional através de imagens paradigmáticas" se deteriorou na arte brasileira, "a partir de meados dos anos 70", lembrando a série de "trabalhos paródicos que Anna Bella Geiger realizou com cartões postais"53 ("Brasil nativo/Brasil alienígena"). 52 Museu de Arte Moderna de São Paulo, de 26/06 a 27/07/1997. 53 "Brasil nativo/Brasil alienígena" Anna Bella Geiger. Série de 19 cartões postais da editora Bloch e fotografias da artista realizadas pelo fotógrafo Luiz Carlos Velho. 110x32 cm, 5ª edição, 1977. 201 Nessa série a artista se auto-retratava como mulher, mãe, dona de casa, contrapondo as imagens dos cartões postais, muito populares nos anos 70 e presentes ainda hoje no mercado, com imagens dos índios brasileiros, em que havia um olhar fetichizado e colonizador. Chiarelli fala da perda da identidade na fotografia, da identidade do "homem brasileiro" ou mesmo do sujeito individual, esfacelado na sociedade contemporânea, essa fotografia explicita a sua própria perda de identidade nessa mesma sociedade repleta de novos meios para a "duplicação" da realidade, meios esses que aceleram a percepção tornando, para muitos, obsoleta a própria produção fotográfica (CHIARELLI, 1996, p.15). E aponta diversos artistas que mostram possibilidades de pensar a identidade e a "não identidade", como o título da mostra coloca. A fotografia tomou este destaque aqui não apenas pelas palavras de Tadeu Chiarelli e o pensamento sobre a identidade que ela traz, mas, principalmente, pela fotografia ter se tornado, na contemporaneidade, um meio artístico muito valorizado. Ela tanto é registro de obra, que vem assim a se tornar obra, como mostram diversos artistas contemporâneos, quanto pode ser arte já na preposição como tal. Como diz Efland, na arte contemporânea, o uso da fotografia, a digitalização das imagens, contradizem o modo moderno de criar na arte, "meios especificamente pós-modernos" (2003, p.63). 202 A fotografia ainda pode servir ao ensino da arte efetivamente. Ela pode articular os conteúdos do currículo e ser apresentada como linguagem e registro de ações. Muitos educadores adaptam banheiros nas escolas, impedindo a entrada da luz, transformando-os em laboratórios e trabalhando fotografia desde os anos 70 nas escolas brasileiras. Estas práticas se aproximam às da artista Paula Trope (1962), mostrando que o fardo da impossibilidade de ensinar pela fotografia pode ser diferente. Segundo Chiarelli, "a artista propõe o resgate da dignidade individual dos sujeitos que retrata, possibilitando a eles que registrem o mundo por eles mesmos" (CHIARELLI, 1996, p.10). Paula utiliza em sua obra o processo pin-hole, a fotografia com a latinha, como se costuma dizer no ensino da arte. Na 27ª Bienal Internacional de São Paulo, a artista apresentou fotografias feitas com esta técnica, resultantes de sua parceria no Projeto Morrinho. Este projeto foi criado em 2001 por Fábio Gavião, produtor de vídeos. Seu objetivo era "estimular a criatividade dos jovens moradores da comunidade de Pereira da Silva, conhecida como favela do Pereirão, no Rio, e transmitir conhecimentos técnicos de vídeo". Foi por intermédio de Gilberto Chateaubriand que Paula Trope chegou ao morro, incumbida pelo colecionador de criar um registro do "morrinho". Paula inicialmente imaginou registrar "brincadeiras, os brinquedos e os jovens da comunidade e começou a ensiná-los a fotografar com máquinas pinholes".54 Segundo Paula Trope, em entrevista concedida a Ricardo Oliveros, mostrar o trabalho na Bienal foi uma situação privilegiada esta que a gente tem de mostrar esta parceria. O trabalho conta uma história de um encontro, é uma oportunidade de ter os meninos como criadores. Estamos juntos discutindo a situação das comunidades dos morros do Rio de Janeiro e trazer para o mundo a arte. (http://27bienal. blog. uol. com. br). 54 A grafia em inglês é pin-hole, e consiste em um processo fotográfico ultilizando como câmera uma lata, ou caixa escura com orifício, que sensibiliza o papel fotográfico diretamente, sem revelação química. <http://27bienal.blog.uol.com.br/>. 203 O site consultado ainda traz a entrevista de Nelcilan Souza de Oliveira, 23 anos, um dos jovens participantes do projeto Morrinho há nove anos, e que trabalharam com Paula Trope. A pergunta de Ricardo Oliveros a Nelcilan foi se o trabalho com Paula Trope havia mudado algo em sua vida, ao que o jovem responde: O que mudou é que eu não conhecia nada do conceito de arte. Então hoje estou conhecendo mais, estou entendendo mais, estou tendo mais informações do que é. Porque estou acostumado a trabalhar com arte neste projeto. Mas agora estamos com fotografias nos museus e exposições de fotos. Agora que estou entendendo e estou achando mais legal, principalmente está sendo importante colher os frutos deste trabalho, tanto para mim quanto para os outros garotos do projeto (http://27bienal. blog. uol. com. br). Para Tadeu Chiarelli, a obra da artista tem um caráter de desamparo, pelo "uso original do processo pin-hole, que distorce a 'normalidade' da visão instituída" (CHIARELLI, 1996, p.10-11). É possível pensar que este trabalho atualiza a idéia de identidade como identidade social. É surpreendente o retrato das cidades construídas e fotografadas pelos meninos, expostos na última Bienal. A sugestão que as fotos nos dão é de uma identidade urbana desconhecida, e que aos adolescentes, seus construtores e que se auto-retrataram em frente usando a pin-hole, é íntima. A ação atualiza um gênero consagrado, o auto-retrato, ampliando a gama do que o indivíduo vê auto-retratado. Projeto Morrinho. Paula Trope, 27ª Bienal de São Paulo 204 Trabalhos como os de Paula Trope têm forte sentido de cidadania. A prática da fotografia pin-hole não é uma novidade no ensino da arte, mas o sentido que ele recebe no Projeto Morrinho é algo que a escola precisa aprender. É comum se ouvir falar do uso do retrato como forma de construir auto-estima, e, bem se sabe, não alcança este objetivo. No caso do trabalho que discutimos, é muito distinto e não tem este objetivo. O projeto constrói conhecimento em arte e promove a cidadania. As discussões atuais que tangem a identidade social são extremamente ricas, pois vale lembrar que, "numa sociedade esmagada por contradições de toda ordem, onde as grandes massas humanas marginalizadas continuam sem voz e sem nem semblante que as identifique" (CHIARELLI, 1996, p.9), ações em torno deste viés precisam ser desenvolvidas. Uma outra artista que em sua poética apresenta questões críticas à idéia de identidade é Ana Teixeira (1957). Ana produz uma reflexão sobre a questão buscando promover novas identidades. Sua obra pensa em valorizar a subjetividade como identificação maior do indivíduo. Suas ações ocorrem nas ruas, onde cria um espaço entre o público, "uma zona intermediária", e envolve as pessoas em uma "arquitetura lúdica". Distribui fac-similes de carteiras de identidade em que as pessoas são convidadas a escolher frases, criadas pela artista: 'Tenho sonhos'; ‘Ainda tenho sonhos'; 'Amo e não basta'; 'Adoro falar sozinho'. A carteira de identidade que Ana cria tem o espaço para a foto da pessoa a ser preenchido "buscar uma imagem entre os objetos do mundo compartilhado e a noção de subjetividade" (www.arteven.com/ ana-teixeira.html em 12/07/2007). Em uma ação, no Viaduto do Chá (2003/SP), a artista permaneceu 4 horas criando essas novas identidades do público, que formou uma longa fila em torno de seu carrinho. Segundo a artista: "Foram 4 horas, uma bolha na mão que carimbou mais de 600 vezes, muito cansaço nas pernas e essa gente toda identificada não mais apenas por um número, um nome, um rosto ou uma profissão. Essa gente que agora tem uma outra identidade". 205 Ana Teixeira em ação no Viaduto do Chá em 2003 Muitos artistas atualmente criam ações que atravessam o campo da ação educativa, como as citadas anteriormente. São estas obras, ações e interações ao público que podem nos mostrar outros olhares do fazer artístico, as subjetividades e individualidades. Poderia ainda se apresentar uma grande lista de artistas que trazem, em suas poéticas, reflexões importantes a esta discussão, como: José Leonilson (1957-1993) – sua obra apresenta um potencial imenso para construir representações e reflexões em torno de assuntos referentes à sexualidade, à perda, à dor, à saúde pública e ao cuidado individual; Rosana Paulino (1967), artista negra que apresenta as reflexões sobre a mulher negra, a negritude e a diferença, o preconceito velado; Nazareth Pacheco (1961) – seus objetos apresentam metáforas à vaidade e aos padrões de beleza enquanto forma de violência e abarca questões sobre o corpo e a diferença. Nazareth Pacheco s/título, 1996 206 A artista Nazareth Pacheco nasceu com uma série de problemas devido a má-formação do feto no período pré-natal. Passou por inúmeras cirurgias para que seu corpo "se adaptasse a padrões convencionais de 'normalidade' e 'beleza'" (CHIARELLI, 2007, p.iv). Assim como a artista Fernanda Magalhães, que tem uma produção significativa apresentando crítica ao padrão feminino de beleza e à consideração médica de "obesidade mórbida", vale lembrar de Rosângela Rennó (1952), que apresenta reflexões sobre a imagem, a feminilidade, a violência, o cárcere, a individualidade, as coleções, e seu vídeo "Rosângelas". Neste trabalho a artista coletou histórias de muitas mulheres chamadas Rosângela. A artista criou um roteiro que dirigiu e interpretou as muitas histórias das muitas Rosângelas. Muitas identidades, um mesmo nome. José Leonilson. " 34 com scars", 1991. Acrílica e bordado s/voile, 41x31 cm Rosângela Rennó, "Obituário permanente", 1991. 84 negativos 4x5, resina de poliéster e parafusos. Essas poéticas de artistas, e tantas outras, contrapostas a obras com caráter de identidade homogêneo, apresentam às subjetividades escapes à massificação e ao doutrinamento velado. 207 Berger já dizia que se a nova linguagem das imagens fosse utilizada de outro modo, conferiria, pelo seu uso, uma nova forma de poder. Poderíamos, através dela, iniciar a definição das nossas experiências, com maior rigor, em áreas onde as palavras não são adequadas (ver começa antes das palavras). Não só a experiência pessoal como a experiência histórica, essencial da nossa relação com o passado: ou melhor dizendo, a experiência de procurar dar significado às nossas vidas, tentar compreender a história, da qual podemos tornar-nos agentes dinâmicos (1996, p.37). A Construção É importante pensar, contudo, que o ensino contemporâneo não se afirma nas produções artísticas de apenas um grupo. Justamente por se compreender contemporâneo, o ensino precisa colocar-se como permeável, aberto à diversidade do mundo atual, e fazê-lo no sentido de ampliar o universo de seu grupo, relacionando-o a culturas e à história, pela criticidade sempre presente, e à autonomia dos educandos e educadores. Na atualidade a arte apresenta o que Efland chama de "dupla codificação" (2003, p.65), expressão aparentemente contraditória, o que se percebe também na crítica e no ensino da arte. Tudo convive, desde que apresentado de modo atualizado. Na produção artística todos os limites entre as linguagens, os meios, as operações, foram abertos. Isto, no Brasil, já conta com mais de cinqüenta anos. Convivem produções artísticas que se valem dos meios mais tradicionais até as mídias digitais, e, muitas vezes, é na utilização de técnicas acadêmicas revistas criticamente que estas obras se colocam nas discussões da atualidade. Justamente por este fator, é necessário que o ensino da arte se apóie na cultura visual; no popular e no erudito; no moderno, no acadêmico e no contemporâneo. 208 Cruzar os tempos, ousar inversões da cronologia da arte, tomando o princípio rizomático de pensar55, para que no choque das aparentes contradições surjam interpretações que apresentem a relação do indivíduo com a arte e a cultura. Este modo de pensar pode tomar temas, imagens, conceitos e seguir por escolhas de afinidades. Anteriormente foi falado sobre os fazeres da arte na escola serem importantes tanto para contrapor discursos dominantes, como também para desmistificar a figura do artista como mito e para construir conhecimentos significativamente, como diz Raimundo Martins: "conceitos e empiria, ou significados e experiência, devem estabelecer relações de tradução, ou seja, processos de conservação do conceitual em experiência ou da experiência em conceitos" (2005, p.142). No caso do ensino da arte em torno da obra de Poty, poucas são as pessoas que conseguem compreender o processo de sua fatura. Complexo e específico, ele se mantém misterioso, e de certa forma isto pode até ser pensado como um dos fatores que divinizam a obra. Os painéis de cimento são uma marca registrada de Poty. Apesar de não ser uma invenção sua, e de possivelmente tratar-se de uma evolução técnica de princípios decorativos das artes aplicadas aproximada da modelagem em relevos da academia, o desenvolvimento que o processo sofreu ao longo da história do artista coloca a questão da criação técnica, ou da técnica inventiva. As imagens abaixo mostram um pouco as diferenças formais do modular de Poty. No primeiro painel o processo é do recorte da imagem na madeira, e estes recortes fizeram parte do molde para ter a inversão. Em vários momentos do painel ele usa o cavado e o que foi cavado, obtendo a imagem no positivo e negativo. 55 A idéia do Rizoma é de Gilles Deleuze e Félix Guatarri. Seria um modo de pensar que se conecta a outros em diversas relações e conexões. Segundo Olívio Abreu Filho, o Rizoma "recusa-se à idéia do pensamento como representação, sua submissão à lei da reflexão e da unificação". É "capaz de conectar-se com as multiplicidades". Disponível em: <http://www.scielo. br/pdf/ mana/v4n2/2418. pdf>. Acesso em: 26 jul. 2007. 209 1967 1987 Na década de 80, o processo é mais elaborado, o artista já usava há tempo o isopor. De fácil manejo, permitiu maior plasticidade ao processo. Poty pôde trabalhar planos intermediários, sobreposições que mostram o quanto aprendeu empiricamente, incluindo outros planos, para ter a relação de modelado pelo contraste, usando o claro e o escuro. Pensando no ensino da arte, como transpor o fazer da arte, como aqui se propõe, para fazer ver o saber? Mesmo dentro do quadro difícil que vivemos no ensino da arte, muitas escolas e muitos professores e professoras desenvolvem trabalhos significativos, conseguindo espaço político através de práticas corajosas. Exemplo disto é o trabalho da professora Solange Gabre, desenvolvido na Escola Santana Mestra em Curitiba. Seu projeto utilizando a obra de Poty, pensando em patrimônio, envolveu a comunidade e mostrou à direção da escola e dos colegas uma face do ensino da arte que a escola desconhecia. Ao revelar o fazer da obra de Poty e utilizar a quadra de esportes da escola, ao definir o tema do painel com seus alunos, ao convidar um artista escultor para falar de sua obra56, a professora mostrou diversas faces da arte. 56 Neste projeto, as professoras trabalharam com o tema do patrimônio. Levaram seus alunos ao Museu Alfredo Andersen, onde também conheceram a obra do escultor Alfi Vivern. Este artista aceitou o convite da professora, visitou a turma de alunos e mostrou seu processo de trabalho, inclusive. 210 Fotos do Projeto "Patrimônio Cultural Curitibano" desenvolvido em 2005 por uma equipe de duas professoras da SME, Solange Gabre e Elisabeth Busatto. Justamente por esta dificuldade em se ensinar Artes Visuais nas escolas, que só pode ser vencida por um posicionamento político do profissional ao mostrar que a arte constrói conhecimento e significado, é que apresento algumas sugestões do Manual Educativo para Professor 'Propósitos', que acompanha o documentário "A obra monumental de Poty", pertencente ao acervo da DVDteca Arte na Escola, desenvolvido em 2006. No material é proposto um projeto de trabalho na escola, envolvendo a criação de um painel. Fui um dos autores dos materiais educativos que acompanham os documentários sob coordenação e parceria na escrita com Mirian Celeste Martins, e naquele momento, para mim, era mais simples falar sobre as ações que acompanham o ensino da Arte. Mais simples, porque algumas reflexões sobre o ensinar determinadas operações me surgiram com esta pesquisa. Hoje compreendo não existir "uma educação neutra" (FREIRE, 2006, p.11). Apesar de assinar tudo o que propus, 211 sugiro ampliações, compreendendo ainda que será "no processo que os alunos compreenderão os procedimentos da arte e ainda deixarão uma marca no patrimônio da escola" (BUCHMANN, 2006, p.15). Passos para a reconstrução Reconstruir um painel exige projetar. Qual é o objetivo do projeto? Quais são os fundamentos a esta idéia? O que justifica esta prática? Quais os recursos que precisam ser previstos e orçados para dar conta deste objetivo? Os fundamentos de acordo com todas as discussões que apresentei nesta dissertação giram em torno do problema da ideologia, da identidade, da compreensão da obra de Poty. Pois digamos que o fundamento o objetivo fosse: revelar identidades. Os fundamentos do projeto precisariam garantir que soubesse o que este termo significava no tempo de Poty e o que o termo significa na atualidade, por exemplo, saber o que dizem autores da educação e da arte. Seria isto o que permitiria à educadora e ao educador, agir. Mas este projeto só se justificaria se estes educandos estivessem com suas identidades intimidadas, escondidas no grupo, ou enfraquecidas diante de grupos mais fortes na escola. Para alcançar este objetivo, seriam necessários recursos como livros, conversas sobre a timidez estranha que se percebe, a fim de mover outro posicionamento. Precisaria também de materiais, isopor suficiente, cimento, pá, areia, caixa, tinta, tela de alumínio, mão-de-obra, entre outros. Sem pensar isto tudo, e articular uma parte com a outra, o projeto não se sustentaria. Ainda precisariam estar projetados o local, os valores, o tempo. Depois disto tudo, pode-se ir ao ateliê. A compreensão da inversão das imagens e da luz pela inversão é o próximo passo. Para tal é importante mostrar imagens e gravuras para ampliar o repertório sobre a linguagem. Hoje entendo que as imagens da gravura contem- 212 porânea junto da tradicional podem estender a compreensão para outros contrastes, os sociais. O contraste das imagens a seguir pode trazer pela poética de Rosana Paulino e de Poty a diferença de pensar a gravura nos momentos em que as obras foram produzidas, uma vez que a reprodução da imagem, no caso de Rosana, se abre a questões da gravura contemporânea pelos processos distintos dos artesanais, a estamparia industrial. Ao mesmo tempo, ambas são os modos dos artistas representarem a família. No caso de Rosana Paulino, a representação não tem a força do gênero retrato, como o tradicional, mais presente na obra de Poty. A artista retrata pela memória, coloca-se entre os seus familiares, apresenta fotos com o valor sentimental. Poty, Dona Júlia. Gravura em metal, 1945 Rosana Paulino "Parede das memórias", 1994 (retrato de sua mãe) 8x8x3 As técnicas tradicionais da gravura não são possíveis na escola, mas pode-se gerar aproximações pelo uso das borrachas, do isopor utilizado em embalagens. O que é importante na experiência é escavar uma superfície, a matriz da imagem, que esta seja intintada posteriormente, para ser impressa no papel. A matriz deve receber a tinta e, depois, sobre ela, o papel, com leve pressão, a fim de que a tinta grave no papel a imagem invertida. O que foi cavado na matriz aparece em branco e a superfície não alterada é a cor da tinta. E ainda, o que se via na direita, após a impressão, na cópia, fica na esquerda. 213 A partir dessa experiência de gravar uma imagem e invertê-la as crianças apreendem alguma possibilidade para compreender a inversão para que se prossiga o painel na escola. O início é a observação de diversos painéis e murais. Imagens de murais mexicanos, painéis da arte aplicada, e até paredes de tumbas e templos em diversas culturas antigas, como a dos Maias, por exemplo, podem mostrar a comunicação que a arte monumental do mural permite e fazer entender por que este modo de fazer arte sempre interessou ao poder. Escolher um tema que se verta sobre o cotidiano das crianças, respeitando suas culturas, é o que lhes faz atribuir maior significação ao trabalho, assim como a escolha do local que receberá o painel. Quais seriam os problemas que aquela comunidade vive na atualidade? Qual a identidade social deste grupo? Como eles são vistos na escola e no bairro e como eles se vêem? Qual o traço que os identifica e como eles têm se identificado com isto? São um grupo coeso ou não? Há problemas de preconceitos entre a turma, entre elas? Há problemas de violência, de que ordem? Como os afeta e como lhe afeta? Há descaso político-administrativo em relação ao bairro, à escola? Qual a idade do grupo e quais são suas aspirações e frustrações? A identidade deles não seria esta? Ou ela está encoberta, mesmo? Este ponto é dos mais importantes, uma vez que a parte operativa é, na maior parte do tempo, de aplicação técnica. É comum, na escola, turmas receberem um "rótulo". Uma imagem que as acompanha em toda a sua vida na instituição. Uma marca que, impingida, ou sugerida ao grupo, muitas vezes é assumida. No grupo, os indivíduos, mesmo aqueles contrários ao rótulo, respondem por ele. Como comenta Denise Camargo, "muitos professores, e a escola, não levam em conta a emoção dos alunos, promovendo a contínua negação da individualidade [...] a escola segue negando a subjetividade e a diferença, o que leva inapelavelmente ao processo de exclusão" (2006, p.17). Este é um papel da arte, promover a consciência do indivíduo para ele estar no grupo, escolher ser do grupo, sem ser o grupo. O coletivo é massificador. 214 As diferenças nele não podem surgir, e pode ser que a arte venha a possibilitar que as diferenças se expressem. Ter uma identidade importa, e ela pode ser escolhida, pode ser percebida e afirmada. Voltando aos passos da criação do painel, depois do tema abordado, das imagens apresentadas e da reflexão sobre a individualidade para a construção técnica, é o momento de transformar o tema em imagem, sair do projeto e pôr as mãos na matéria. Uma opção facilitadora seria criar a imagem com formas geométricas a partir do projeto inicial. A união e divisão do retângulo permitem a descoberta da multiplicação e permanência da formas. Ao invés de o grupo participar do corte das formas, ele pode recebê-las cortadas. Dispor "as partes de isopor e deixar que eles troquem-nas de lugar e percebam os resultados" (BUCHMANN, 2006, p.15). A criação de diversas composições distintas, como um jogo de formas e encaixe, pode trazer a noção estética dos distintos arranjos. Depois disto, as formas precisam ser fixadas. Em vez de cola, para firmar as formas na chapa de isopor que as suporta, palitos de dente dão excelente resultado, perfurando as formas e unindo-as ao isopor. Por último, os moldes precisam ter as laterais cobertas, transformar o molde em uma caixa aberta, "a altura das paredes laterais destes módulos são a espessura de cada parte", devendo-se esclarecer aos alunos que a superfície do painel terá a forma da imagem que está no fundo da caixa (BUCHMANN, 2006, p.15). "Com a caixa pronta e bem vedada, é hora de fazer a massa de cimento, que é: areia média e cimento, na proporção de 3 de areia para 1 de cimento e água" (BUCHMANN, 2006, p.15). É necessário ajuda. É quando a comunidade pode participar. "No chão, as caixas devem receber, primeiro, um pouco de pó de cimento para soltar e, depois, a massa de cimento, colocando por cima uma malha de tela de cerca para dar apoio depois de seca. Nos cantos, introduza parafusos na massa (serão por estes pontos que o painel será preso à parede). Para fixá-lo, os alunos precisam de ajuda novamente" (BUCHMANN, 2006, p.16). 215 Depois do projeto concretizado, todo o processo pode surgir, em mostras, na apresentação de portfólios, que devem ter sido propostos no início de todo o projeto, permitindo que os educandos, como diz Hernandez (2000, p.165), [...] reflitam a trajetória de aprendizagem [...] de maneira que, além de colocar em evidência seu percurso e refletir sobre ele, possam contrastálo com finalidades iniciais de seu processo e as intenções educativas e formativas dos docentes. A função do portfólio se apresenta assim como facilitadora da reconstrução e reelaboração, por parte de cada estudante, de seu processo ao longo de um curso ou de um processo de ensino. Terminado o trabalho, o painel precisa ser fixado na escola. O resultado deste processo em torno da criação artística e percepção de identidades ainda tange ao ensino sobre o patrimônio. O patrimônio público passa a ser conhecido dos estudantes pela experiência que os mobilizou enquanto grupo, e pode ser revisto com crítica, compreendido como objeto de seu tempo. O painel construído na escola é um registro de um momento de suas vidas na escola, um registro que tange o campo da estética e da subjetividade. Zelar pelo painel na escola é zelar pelo "bem" com o qual o grupo se identifica. É uma experiência em comum. É pela ramificação e entrelaçamento – identidade, prática política, o patrimônio – que projetos pedagógicos devem ser entendidos pelos educadores na escola como uma práxis radical, como disse Giroux, "vinculada às atividades transformadoras e situada dentro de uma problemática" (1992, p.204) que tomam "textos culturais em relação com suas situações e efeitos históricos que devam conservar e subverter os significados de acordo com sua validade, não por uma tradição já construída mas por uma comunidade em processo" (GIROUX, 1992, p. 204). Pensar em identidade na escola no momento em que vivemos é um desafio. Representar as diferenças, as semelhanças, e o convívio delas nos espaços sociais é uma forma de legalizarmos emoções que podem estar anexas, encobertas ou dissimuladas, por não encontrarem espaço a vivê-las socialmente. Por isso "oportunidades de falar com suas próprias vozes para autenticar suas próprias experiências" (GIROUX, 1992, p.256) por movimentos que deflagrem a discussão em torno destas representações permitem que os sujeitos se coloquem como indivíduos nos grupos. 216 CONSIDERAÇÕES FINAIS Minha história na educação pela arte mostrou-me algo muito importante: "ninguém se banha no mesmo rio", uma frase de Heráclito de Éfeso que é possivelmente uma das poucas verdades absolutas. Neste sentido, a pessoa que escreveu estas idéias não é a mesma que se iniciou professor no ensino superior de arte, nem tampouco aquele desenhista, ou aquele que se especializou no ensino da arte, muito menos aquele que se graduou artista ou, ainda, o garoto vindo do interior para fazer cursinho para ingressar no ensino superior, nem o menino que modelava barro na beira do rio Negrinho. Estes eus, sendo um outro, descobriram que carregam todos. Cometi equívocos, afirmei muitas coisas, mas hoje entendo a possibilidade de revê-las. Este trabalho fez-me repensar, pesar, medir, refletir sobre muitas coisas, mas, sobretudo, compreender que minhas idéias não devem ser tomadas como verdades absolutas. Poderão e deverão ser revistas. Depois de ver com certa distância minhas práticas e da série de leituras que a vida me ofereceu – na especialização, nas aulas, na escola, enfim, no mestrado –, revi muitas idéias. Inclusive aquelas sobre o trabalho das professoras que usavam "receitas" ou que, presas a uma concepção tradicional de arte, não ensinavam coisas da contemporaneidade. Pois bem, momento imaturo aquele, em que eu tinha uma predisposição piromaníaca em relação a esta realidade. Ao conhecer as dificuldades de se trabalhar com 40 crianças em sala de aula e tantas coisas a serem feitas ao mesmo tempo em 45 minutos, descobri que esse trabalho não termina ao sair da escola. Aliás, por melhor que se queira fazê-lo, parece sempre não tê-lo feito. Descobri a falta que faz não ter com quem trocar idéias, o que significa: "ter de se virar em dez" pela falta de apoio – desde o material até o político. Pude apagar o fósforo, guardar a caixinha e, com a fogueira, esperar São João. Ser professor não é fácil – a remuneração é indevida, o descaso político é cabal. Ser professora, então, na maioria das vezes, é complicado: há a casa, a família e uns moleques atrevidos com fósforo na mão querendo queimá-la viva. 217 O grupo de estudos "Arte eu ensino", com as professoras de artes, ensinou-me muita coisa. Reconheço que elas ensinaram-me muito, sobretudo porque, mesmo diante do cenário desolador que descrevi anteriormente, existem – e não são poucas – aquelas que desejam estudar e pesquisar, elaborar seu próprio material didático, buscar parceria para suas idéias. E que, em momentos certos ou de necessidade, usam até mesmo uma "receita". A partir de leituras sobre cultura, arte e sociedade, e no contato com professoras de arte em diversas situações de formação continuada, deixei de julgálas, primeiro porque, para sobreviver na função, desenvolvem uma estratégia que chamarei aqui de "compressor de dados", na tentativa de compactar informações e retirar delas o que julgam essencial trabalhar nas aulas. Esse "compressor" talvez seja utilizado por qualquer professora e professor. Mas, para quem trabalha no ensino básico, a coisa toda se complica. Afinal, não se pode esquecer o angustiante continente que é uma única aula de arte na semana, mostrar imagens e contextualizá-las, fazer e explicar uma proposta, demonstrar e permitir descobertas. Acrescente-se a isso o fato de que precisam pesquisar, em intervalos, conhecimentos específicos no campo da arte e do ensino. Falta, em parte significativa dos casos, entendimento da necessidade da leitura e da pesquisa, o que daria à professora e ao professor melhor compreensão do processo, o que lhe permitiria maior segurança no fazer pedagógico. Conseqüentemente, a realidade do ensino de arte é prova de que uma grande parcela de educadoras e educadores, comprometidos ou não, toma as informações já compactadas de colegas, de manuais, enfim, informações superficiais, adiciona-as a metodologias aceitas sem reflexão sobre as relações conteúdo-forma, e pronto: a aula está feita. Entre as professoras e professores deste grupo, é recorrente a citação dos artistas: Van Gogh, Tarsila do Amaral, Volpi e Poty em aulas de Artes Visuais, afinal, sobre estes artistas, as informações são abundantes e fáceis de conseguir. Em Curitiba, mais que sobre qualquer outro 218 artista há "informações compactadas" sobre Poty à disposição. Sua obra, como evidenciado, "interessa". Surpreendi-me ao constatar que o que foi dito nos projetos que selecionei, e nestes quatro que analisei, além de outros que não pude tratar pela falta do documento ou de tempo, parecia ser o que queriam que fosse dito (quem queria?). Essa fala obscura me parecia não vir das professoras, mas de outros, não necessariamente uma cópia ou plágio, mas sugeria o não pertencimento daquelas idéias. E isso me pareceu importante saber para desvelar o não-dito, o que se escondia por trás das argumentações da maioria dos projetos. Tive a oportunidade de questionar Poty, partindo do ponto de vista de que a compreensão que as professoras e provavelmente a maioria das pessoas possuem está acimentada como se fosse um grande painel: uma complexa operação de escolhas, recortes, colagens, inversões entre claro e escuro, sobrepostas a fatos e mitos justapostos sob, sobre e na argamassa, moldado a partir das relações de poder num confronto de forças que movimentam a ação das professoras. Passei a entender o quanto a linguagem, e portanto também a arte, tem de ideologia (FREIRE, 1992, p.66) depois de ler A Dominação Masculina (2003), de Bourdieu, e Pedagogia do Oprimido (2005) e Esperança (1992), de Paulo Freire, além de muitas outras leituras críticas que alicerçaram minhas reflexões e argumentações ao longo da construção desta dissertação. Ao perceber o quanto de Poty Lazzarotto entrava nas práticas das professoras e professores, revi minha visão sobre a produção deste artista. No momento em que o descobri, considerei-o interessante, porém mais tarde, trabalhando na Fundação Cultural de Curitiba, comecei a perceber que o estavam privilegiando. O que conhecia de sua obra eram os painéis na cidade e alguns desenhos. Depois de uma experiência com as professoras do grupo de estudos, quando visitamos as obras e executamos princípios de um painel à Lazzarotto, com o objetivo de apreender melhor as obras, passei a respeitá-lo profundamente, do ponto de vista formal e da fatura das obras. 219 Evidentemente, apesar de uma compreensão reduzida sobre a obra de Poty e do que se pode chamar de uma escolha pressionada, as professoras e professores assujeitam-se a uma ideologia. Para analisar essa força, com o intuito de pensar a influência da ideologia e do poder impedindo a autonomia, busquei o pensamento de Paulo Freire a fim de analisar a dominação e a autonomia em suas práticas. Revendo agora os pontos que propiciaram esta dominação e a reprodução daquelas idéias, entendo que o sistema de ensino e o "Escola Universidade" como formação contínua facilitam a dominação. Aquilo que é ofertado como um modo de propiciar o desenvolvimento torna-se uma faca de dois gumes. De um lado permite o contato com novas idéias, com a percepção de autores, textos e conhecimentos, provenientes do contato com a academia; no entanto, estas orientações, vindas da Universidade, vêm marcadas por valores e fortalecem a inculcação. Pude perceber, tanto pelos projetos como pelo contato que tenho com diversas professoras, que minha suspeita não era infundada. Pelo fato de a obra de Poty estar na cidade com sua monumentalidade e exposição, presente enquanto patrimônio, ela interessa às professoras, que a consideram um tema importante ao ensino por julgarem que ela é o melhor recurso para construir pertencimento, para gerar identificações e identidade. Interesses pertinentes à educação, mas que servem ao repasse de idéias prontas e de interesse do poder, às questões ideológicas de identidade curitibana e paranaense. Contudo, elas não questionam o motivo pelo qual apenas a obra deste artista é exposta maciçamente. Sua compreensão sobre a obra é reduzida pedagógica, artística e ideologicamente, como mostra a análise dos projetos apresentados no Escola Universidade. A força da dominação sobre as professoras se manifesta em seus projetos, por entenderem Poty como o maior representante de "nossa identidade"; pelo uso constante de discursos oficiais, como os PCNs de artes e falas de 220 prefeitos e outras autoridades, por exemplo; pelo entendimento que têm sobre as alegorias, de se tratar de fatos e não de interpretação da história; pelo uso de metodologias prontas sem adaptação e da prática constante da releitura, em papel ou azulejo, em que o desenho é colorido sobre os suportes, sem relação com conteúdos, operações da arte relativos às obras de Poty ou com questões relacionadas à compreensão que os grupos possam ter sobre as obras. Outro dado relevante é o pouco espaço dado à realidade e à cultura dos educandos e aos problemas que possam afetá-los. Se as professoras apresentam uma proposta que venha ao encontro de alguma necessidade social de seu grupo, como a criação das imagens para as calçadas no seu bairro, por exemplo, elas não constroem críticas e buscam a inculcação de conteúdos, sem ampliar a questão criticamente. A outra questão séria é que as professoras não compreendem o modo de fazer projetos – e as instruções do manual fornecido pelo Escola Universidade propicia este desentendimento –, seus objetivos nos projetos não têm fundamentos nem recursos projetados para a sua realização. O manual de orientação é uma peça na engrenagem da dominação. Ele não favorece o crescimento das professoras. Elas o cumprem sem compreender o que propõem. Não conseguem entender a previsão de recursos aos seus objetivos, não entendem que estes deveriam estar fundamentados a fim de lhes possibilitar maior desenvoltura no desenvolvimento do projeto. O que elas compreendem como recursos são apenas matérias, tanto que desejam ampliar a imaginação, tornar sensíveis os educandos, e ofertam giz. Quem fundamentaria isto na educação, na pedagogia? Neste "não saber", as professoras ofertam a obra de Poty como recurso. A projeção é incoerente e o corte do projeto, pelas instituições de ensino superior, se assim o avaliassem, privaria as professoras do aprendizado até da organização deste. As IES (Instituições de Ensino Superior), como os orientadores, são parceiros e se comprometem. Elas não desclassificam projetos que apresentam cópia 221 ou incoerência, e, assim, muitas vezes estas experiências desconexas chegam à escola, aos educandos. Muitos orientadores não orientam, muitas professoras não querem ser orientadas, é certo, mas há aquelas que querem, sim. Estas diferenças, de quem faz e de quem não faz, não aparecem, são barreiras de conveniências sempre difíceis de ser quebradas. Apesar desses posicionamentos, considero o "Escola Universidade" muito positivo, inclusive por bonificar os docentes, orientadores e universidade em tempos em que a dignidade do professor é diluída. Ele possibilita a apreensão da realidade do ensino público municipal por parte da universidade e ainda, na escola, ele amplia as possibilidades do ensino. Contudo, faz-se necessário que sejam revistos o manual de construção dos projetos, os critérios adotados para a seleção destes ao programa como "inovação e criatividade" (ESCOLA UNIVERSIDADE, 2006, p.13), por exemplo, e a orientação. A revisão do manual e a construção do problema precisariam ser revistas para dar clareza sobre se é uma pesquisa ou um projeto pedagógico, esclarecer que o projeto tem de ocorrer em 14, 15, 16 aulas, que os objetivos devem ser significativos, pautados na realidade e na fundamentação teórica, prevendo recursos que possibilitem o alcance do que se deseja para a mudança de comportamento dos alunos. Estes itens propostos pelo projeto precisam ser mostrados de um modo que fiquem compreensíveis a necessidade e a relação entre os itens, e que sejam escritos em uma linguagem acessível à cultura da professora. É necessário que a construção dos projetos ocorra no sentido de permitir que os docentes possam detectar em seu cotidiano, em suas práticas, situações de vazio entre a realidade, a prática e a teoria, para que estes vazios não sejam preenchidos com informações e atividades que não produzem sentidos, mas que estas situações se tornem perceptivas a eles, e os ensinem a atuar na conexão daquelas margens. E ainda, que faça esta conexão tendo em vista o social, a fim de fermentar no educando uma consciência crítica e a possibilidade de que venha a se colocar como indivíduo, e não como um recipiente vazio a ser preenchido. 222 O que poderia ser apresentado pelos docentes seria seu esboço do problema, construído a partir da realidade, como sugere Imbernón (2004). Isso exigiria outras ferramentas para propiciar a admiração da realidade, a reflexão sobre ela. Possivelmente isto exigisse duas medidas que parecem contradizer meu apoio ao programa: a diminuição de bolsas e o aumento de seu valor, além de seminários aos orientadores e, ainda, critérios de seleção pautados em construção de autonomia. Creio ainda que a interdisciplinariedade nos projetos não deveria ser permitida, até que pudesse ser revista a sua necessidade. Projetos interdisciplinares, na maioria das vezes, dificultam a construção de problemas entre áreas tão distintas como as que hoje são contempladas, e ainda, resultam em problemas maquiados. Por estes fatores, e pela falta de conhecimentos sobre conteúdos da arte pelas equipes, tomam a arte como recurso didático. Na maioria das vezes, esses projetos têm como problema situações referentes apenas a conteúdos atitudinais ou desta ordem. Apesar da grande importância desses conteúdos, seria necessário, a meu ver, outra forma de trabalho, cuja discussão foge ao escopo deste trabalho. Com a construção dos problemas por este caminho, poder-se-ia implementar a visão que as professoras têm sobre seus educandos e a relação deles com o que se vem ensinando em arte. Coisa que atualmente é negligenciada. É importante que a pesquisa pelos projetos prossiga e amplie, e ainda, apesar de não ter sido falado nesta dissertação sobre os relatos dos projetos, que eles pudessem ter um desdobramento poético e estético, como um continente da subjetividade da professora ou do professor. Os relatos poderiam assumir formatos diversos como portfólio e fazer artístico, podendo receber bordados, colagens, desenhos, ter formatos variados e preposições que revelassem a subjetividade da mulher professora. Contudo, a escrita desses projetos, que devem se verter a situações práticas e relacionadas ao social, necessita de professoras com autonomia, que consigam perceber a arte como faca de dois gumes, a qual, de um lado, pode libertar, 223 e de outro pode estar comprometida com grupos, idéias e projetos. Sem que isso seja consciente por parte delas, as escolhas permanecem a favor de um dos gumes, normalmente do mais afiado, o do poder. É necessária ainda a criação de instrumentos de Formação Contínua em artes e de programas, não só pela SME, mas também pelas universidades. As instituições de ensino superior têm grande responsabilidade sobre o problema da reduzida compreensão dos profissionais do ensino de arte. Distanciados da realidade, a forma como ensinam e o que ensinam negam o social e introduzem regras de conduta – modos considerados legítimos de ver, do que ver e do modo de ver; do que ensinar, e de como ensinar a ver. Prática que serve à ideologia e ensina a reprodução das idéias da classe a que serve. As IES precisam mostrar mais de um viés da arte, da história, das abordagens. É urgente que apresentem vários caminhos e permitam às professoras e professores escolhas relativas à cultura dos docentes. Escolhas que sejam respeitadas e apoderadas pela apresentação de práticas que demonstrem as possibilidades de conexões com diversas expressões nas artes visuais e nas culturas, e que mostrem o perigo dos usos das imagens, métodos e informações prontos. Repensar este abandono profissional que as universidades imprimem a seus egressos é fundamental, pois criticar é fácil. É importante a revisão dessas questões para que se apresentem aríetes contra ideologias e discursos hegemônicos, imperceptíveis a quem se mantém e é mantido ingênuo. Como é o caso das professoras que escolhem a obra de Poty e o usam de modo ingênuo. A obra de Poty não deixará de ser apreendida do modo como é, e com certeza ela não será retirada de onde está – não falo apenas do lugar simbólico na cultura brasileira, mas dos edifícios, fachadas, muros, interiores de instituições que atestam seu comprometimento ideológico. Ela tem importância, e grande potência. Potência a não ser reduzida à reprodução das idéias que veicula e às quais o ensino ingênuo, sem crítica, fomenta. 224 A obra pode, como apresentado no último capítulo desta dissertação, por um ensino da arte contemporâneo, trazer as identidades não como paranistas, masculinas ou femininas, machistas. Pode e deve mostrar a questão desta representação de identidade a partir dela, e, em face de outras obras, ampliar o olhar sobre o tema, a fim de que sejam contempladas, na discussão e representações, alternativas dos papéis do homem e da mulher, dos gêneros e transgêneros, de novas formas que a família assumiu na contemporaneidade. Neste capítulo senti a necessidade de incluir questões relativas à análise de um painel de Poty, inspirado nos instrumentos de análise crítica de obras de arte segundo Franz (2003). Propus ainda a discussão sobre o fazer da arte, por perceber, tanto nos projetos que analisei quanto na fala de professoras com quem tenho contato, que na atualidade a prática da releitura foi tão disseminada no ensino da arte que desarticulou os conteúdos da arte neste ensino. O que se ensina, afinal? A escola tem de legar o passado e dar instrumentos para que as pessoas mudem seu futuro. As operações da arte tradicionais ou contemporâneas precisam permanecer no ensino da arte, mas não podem ser ensinadas ingenuamente. As diferenças precisam ser contrastadas para mostrar que a arte sempre possibilitou a comunicação entre os homens, comunicação inclusive dos discursos ideológicos. O passado precisa ser considerado, não podemos defender os equívocos da arte moderna de inventar um novo começo, nem do ensino da arte que pensava que a criança nascia pronta. Que a arte não se ensina. Por isso, julguei importante apresentar o modo de aproximação de como Poty construía seus painéis em concreto, como forma de decifrar esta operação, sem ter o fim de valorar o processo do artista, mas como forma de ampliar a possibilidade de discussões, desmistificando-o, mostrando que o fazer na arte sempre foi um saber, marcado, é claro, por um tempo e uma cultura. Depois de todas as leituras que fiz e da compreensão que tenho, pude repensar a postura do ensino da arte na contemporaneidade, tomando a abordagem 225 sociocultural como uma postura do educador. A perspectiva sobre a história, sobre o ensino, as obras e as possibilidades do ensino têm para mim um outro sentido. Justamente por isso, entendo necessário rever o fazer artístico na escola e a consideração à cultura da qual advém o educando. As leituras da obra de Paulo Freire me auxiliaram muito. Entendo necessária a tomada de decisão (FREIRE, 2004), a consciência de que não pode haver prática neutra na educação (FREIRE, 2006), e de que o conhecimento está sempre ligado ao poder – tanto como libertação quanto dominação –, exigindo que os educadores percebam a quem falam, o que falam, pensando ainda no porquê de falar, comprometendo-se com a transformação do social pela visão crítica que possam ajudar a fomentar. Freire dizia que ninguém liberta ninguém, e também falou sobre a existência do contrário. Há alguém que passa a dominar alguém. Confrontos de força são presentes em todas as ações humanas. Domínio e poder, ambição e luta estão presentes em nossas estruturas internas. Para quê usar esta força é questão de escolha que demanda autonomia. Contudo, sem que nos percebamos dominados não alcançamos liberdade. Os limites sempre existiram e sempre existirão. Não é contra eles que um exercício político no ensino da arte deve se pôr – até este, que aqui toma idéias de tanta gente para falar, não pode escrever como quer, escolher o que quer e falar do modo como quer. Regras, normas e escalões não são empecilhos à consciência, são estágios da prática com a autonomia. Ao nos depararmos com o poder das forças: idéias, obras, conceitos, operações, é que percebemos a reprodução em nossas histórias, que revemos nossos atos, que entendemos no próximo passo a tentativa de romper com o que dissemos anteriormente, refazendo-nos livres, por um tempo, é certo. A utopia da liberdade, se alcançada, se tornaria absolutista ao tentar ditar-se como regra. Sem que nos percebamos dominados não nos libertamos. Sem perceber o jogo de poder a que podemos servir na escola – ferramenta ideológica, como 226 disse Althusser –, não nos damos conta do que fazemos a nossos alunos ao inculcarmos valores, idéias, conceitos e obras, negando o social como localização de onde esses devam acender. Infelizmente, a pesquisa não pode alcançar todos os objetivos. Seria necessária a construção da história das professoras, do que as fez professoras e do porquê de suas escolhas – entre elas, a escolha de Poty e de ser professora de artes. Localizei muitos documentos no arquivo da SME. No entanto, não pude localizar as professoras e os projetos. Julgava necessário apresentar as idéias das professoras, sem a intervenção da orientação das IES, por isso a insistência nos documentos. Foi este fator que me impediu também de me colocar como orientador de alguns desses projetos. Não teria como demonstrar as coisas sem as evidências documentais que as comprovassem. Do mesmo modo, os educandos não surgem, a não ser em algumas imagens fornecidas pelas professoras. Em contato com algumas professoras, pude formular uma outra hipótese: não são todas as obras que interessam do mesmo modo, nem tampouco a todas as professoras. Aparentemente, as professoras, sem formação específica em arte, interessam-se pelos painéis da década de 90, aqueles em azulejo. Possivelmente seria a cor um fator a ser investigado como foco do seu interesse. Pelas entrevistas que fiz, e pelos diversos projetos em que consegui ver resultados (arquivos da SME), os painéis mais utilizados são aqueles em azulejo, justamente as obras de Poty mais comprometidas ideologicamente. Contudo, uma pesquisa específica seria necessária para que se confirmasse a hipótese. Pude, ainda, nesta pesquisa, aprofundar o olhar sobre a obra de Poty e pensar nas ligações da arte com o poder. Ele foi um homem de seu tempo, precisa ser compreendido como sujeito que soube cumprir, e cumpriu bem, o que se propôs como homem e artista, um artista moderno. Sua obra e história precisam ser revistas no ensino a fim de possibilitar que os educandos consigam 227 atribuir significados positivos na história deles, reconhecendo Poty na história e na cidade de forma crítica, compreendendo-se sujeitos da transformação social por seus desejos e comprometimentos, não por uma idéia que não lhes pertence. O que concluo, com todo o trabalho, é que as professoras são dominadas por uma trama. São formadas para servir a ela e reproduzem em suas práticas a ideologia, por não compreenderem em si a dominação. Na ausência de crítica, não identificam o envolvimento de Poty com o poder, e não suspeitam que a oferta de sua obra é legalizada em suas práticas docentes. Não se vêem como instrumentos na transmissão dessas idéias, nem tampouco vêem a conseqüência disso. Além dos conhecimentos em arte, falta-lhes autonomia para projetar, na escola, práticas que desafiem a estrutura de todo o sistema em que estão imersas. 228 REFERÊNCIAS ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997. AGUILAR, Nelson. Norte no Sul. In: FERREIRA, Ennio Marques. 2001 Andersen Volta à Noruega. Curitiba: Sociedade dos Amigos de Alfredo Andersen: Secretaria de Estado da Cultura: Museu Alfredo Andersen, 2001, p.53-55. AMARAL, Aracy. Estágios no processo de formação de um perfil cultural. In: The Journal of decorative and Propaganda Arts. The Wolfson Foundation of Decorative and propaganda Arts, 1995. AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970: subsídios para uma história da arte no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2003. ARAÚJO, Adalice. Apresentação do livro In: PEDROSO, Daniela. Poty: murais curitibanos. O artista de nossas ruas. Curitiba: Editora Positivo, 2006. ARAÚJO, Adalice. 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LUCIANO: E você acha que é bastante freqüente o uso da obra do Poty na escola? – Olha, eu não tive muito, muito contato com as professoras de arte, das escolas, na prefeitura, a grande maioria das professoras de arte que eu conheci não eram formadas em arte, então havia um grande prejuízo, porque elas não conheciam, obras, artistas... Acreditavam que era só pintura, poucas que trabalhei tinham formação. Em seis anos só trabalhei com uma com formação em arte. Aí elas falavam, citavam. As demais, nenhuma era. LUCIANO: E a tua formação nesta época, você era professora de arte? – Nesta época eu era pedagoga, na época que fiz o projeto do Poty eu estava professora de arte, tinha outra de arte, uma de literatura, uma auxiliar de faltas, uma de ensino religioso. Quando fui, professora de artes na escola, eu me realizei. Fiz tudo o que você pode imaginar, porque eu não tenho formação, só tinham papel e lápis, eles só tinham papel... nunca tive medo de fazer sujeira... teatrinho em caixa de sapato, mesmo sem a formação, eu... LUCIANO: Você usava imagem? – Eu tinha um CD muito bom, uma fita de vídeo com a história dele, eu usei bastante isso, material que ela tinha. Com figuras dele. LUCIANO: O que você fazia na prática? – Nós fizemos uma releitura de uma obra dele. Em pintura, desenho? Desenho ... que mais? ... tentamos o mural, visitas às obras dele, no computador, olhando as imagens no CD, estudamos a vida, como desenvolveu cada obra... 238 LUCIANO: Você acha importante trabalhar ele, acha relevante? – Porque ele levanta bastante coisa da história do Paraná. Bastante situações e épocas do Paraná, e para você ter conhecimento, e para ter outra visão, não uma visão historicista, mas é uma visão de artista, mesmo, é diferenciada. Acho extremamente importante. LUCIANO: E você lembra algo que ele usa sempre? – Araucária, a senhora da carroça, que mais?, o vagão, que mais? ... figura fundo, gralha. A do Alto da XV, a da Torneira, a da FIEP, as que são de azulejo, de azulejo, Teatro Guaíra, os do Largo da Ordem... Praça do Homem Nú, acho que foi só. LUCIANO: Lembra do que os alunos comentavam? – Eles não conheciam, pouquíssimos tinham saído do bairro, principalmente a da Torneira, quarta-série, dez anos, brincavam de querer brincar embaixo da torneira. Faziam fila pra tirar banho embaixo da torneira. LUCIANO: A você a obra tem algum significado ? Você é daqui? – Sou daqui... Não sei se tem ou não tem, para mim. Eu nunca pensei. Eu gosto. É algo que me chama a atenção. Eu acho que ele representa bem a figura do paranaense. Eu não tenho formação. 239 Entrevista com Girassol - em 25.07.2007 LUCIANO: De onde você é ? – Sou de Horizontina, Rio Grande do Sul. Sou pedagoga de formação, dois anos de educação... fiz pós em pré-escola e vários cursos de Artes. LUCIANO: E você leciona há tempo? – Há quatro anos, desde que estou em Curitiba. LUCIANO: Você conhecia a obra de Poty? Conhecer não conhecia, tudo foi novidade. Foi com o projeto, levando também em conta que, no currículo, teria de ensinar sobre a história de Curitiba, os primeiros habitantes, imigrantes, colonização... então a gente analisou, estudou e achamos que seria melhor trabalharmos pelas obras do Poty, porque ele mostra, ele relata todo um fato histórico. LUCIANO: Você considera que Poty é muito usado na escola? Acha que é importante fazer trabalhos com sua obra na escola? – Pra nós foi um trabalho muito importante porque as crianças não conheciam os painéis, os pais também não conheciam, e à medida que fomos analisando as crianças.... na internet, como Poty estava representando as diferentes épocas ... LUCIANO: E você considera que Poty tem um grande significado para as pessoas de Curitiba? – No meu ponto de vista tem um grande significado... tem toda a história, Poty, ele tentou retratar a história de Curitiba. LUCIANO: E como foi o seu processo? Você usou imagem ? – A gente conversou com a comunidade... imagens dos painéis ... primeiro a explanação, depois fomos pra Internet ... com a comunidade, os pais, as grandes obras dos painéis, diversos materiais, como ele retratou, depois da visita a gente levantou questionamento sobre a história de Curitiba, e a partir disso começamos a prática, fizemos painéis, azulejos, eles tentaram retratar no seu ponto de vista e também inspirados pelas obras de Poty. LUCIANO: Você utiliza alguma metodologia específica? – Específica, não. 240 LUCIANO: E você fez releitura? – Releitura, nós fizemos, tentando representar o passado, o presente e o futuro de Curitiba. LUCIANO: Você tinha pensado em painel desde o começo? – Já no começo, à medida que o tempo foi passando, vimos que a gente tinha se empolgado um pouco no início, não sabíamos se a pintura ia durar, O azulejo, onde por o painel? Mesmo assim, fomos à luta e conseguimos LUCIANO: E o material, vocês compraram? – Não, tudo foi doação, não precisamos comprar absolutamente nada, os pais doaram os azulejos, a tinta guache, o verniz artesanal, e a comunidade também colaborou. LUCIANO: E o painel ficou na escola? – Não, a gente fez assim, devido à gente não ter usado a técnica adequada, a gente fez assim, fizemos uma exposição à comunidade e depois cada aluno levou o seu azulejo pra casa, por que eles gostaram muito, e alguns doaram o seu pra escola como lembrança desse trabalho. LUCIANO: A direção foi participativa, apoiou? – Por exemplo, assim ... a única dificuldade que a gente sentiu foi na hora quando a gente queria que a nossa intenção era deixar esse painel pra escola... deixar em uma parede..., mas aí, a gente começou a ver que não ía durar muito ... mas, apoio a gente teve... 241 Entrevista com Rosa - 23.07.2007 LUCIANO: Qual era o objetivo de vocês neste painel, por exemplo? No painel do Poty? – Na época como nós trabalhamos em cima de Poty, que retratava muito a cultura paranaense, a gente achou interessante citar vários pontos inclusive este da cidade, para eles conhecerem o trabalho de Poty. LUCIANO: A idéia desses símbolos, o que vocês salientavam, você lembra? Os símbolos dentro das obras ou as obras como símbolos? – As obras como um símbolo, mesmo. LUCIANO: E assim, os símbolos dentro da obra, você salientava alguma coisa? – Depois que a gente fez esse trabalho de construção de símbolo no bairro, a gente foi mostrar que Poty também tinha uma simbologia, não era isso? Acho que sim, também desenvolvia em várias obras dele, tinha elementos similares, tinha uma representação do Paraná. No caso, quando estávamos mostrando esse painel a gente tinha falado muito sobre a técnica que ele utilizava, ele tinha muito aquele trabalho com os azulejos/cerâmica e esse era um trabalho diferente, justamente ele usava o concreto, daí a gente tinha explicado pra eles que ele usava isopor, esculpia, ali provavelmente ela tava apontando: - "Vejam, esse trabalho foi feito naquela técnica que tinha explicado pra vocês". (comenta a foto da colega) LUCIANO: Ela está apontando a gralha. – Sim, mostrando que elementos ele representava, que ele usava, então ela ta mostrando. LUCIANO: E dessas figuras, como pinheiro, esse elementos, você tinha interesse em trabalhar essa identidade? – Foi justamente com esse objetivo. Fizemos da seguinte forma, falo que a cultura do Paraná tinha alguns elementos que simbolizavam, né? Então vamos desenvolver uma simbologia do nosso bairro, como os nossos elementos culturais. Foi assim que a gente fez aquela pesquisa. O que é, que representaria alguns elementos que vão representar nosso bairro, então a flor, algum animal ... 242 LUCIANO: Era assim que a pesquisa entrava? – Foi assim. Para representar também, o que você falou, da identidade, para eles criarem elementos que identificassem a característica do espaço, do lugar e da cultura deles, tanto que na pesquisa, além de, por exemplo, a natureza, tinha também arquitetura, tipos de casas, para complementar o que eles faziam, por exemplo, tinham vários elementos, vários aspectos de representação. LUCIANO: Este foi o trabalho que fizeram com eles? Essa chuva de pinhão? – Isso foi depois da pesquisa. O que nós fizemos, ao final da pesquisa que fizemos com eles, desenvolveram todos os símbolos, daí a gente concluiu quais os elementos que iriam identificar o bairro, né? Se eu não me engano eles escolheram a rosa. É o tipo de pétalas que lá onde nós trabalhávamos tinha o Parque dos Tropeiros, então nós fomos no parque dos Tropeiros e aí, lá no parque, que tem um espaço, lá eles fizeram esse trabalho em grupos, agora eles vão representar todos esses símbolos para colocar no trabalho de vocês. LUCIANO: Você acha que é bastante usado nas escolas? – Até de mais. LUCIANO: Por quê? – Acho que o Poty é muito popular. Eu vejo que as pessoas trabalham muito o Cândido Portinari, Poty, Van Gogh, por causa da orelha, por que os alunos adoram histórias tristes, né? O Poty, porque é fácil, tem muito, é mais popular, é fácil deles terem acesso, A gente como professora de 1ª a 4ª não temos formação de faculdade de artes, então elas vão na intuição, e o Poty Lazaroto é muito popular, acho que é fácil para a professora trabalhar o Poty. Eu também acho, no tempo do Rafael Greca, foi muito visado, muitos painéis, muita festa em cima, faz aniversário no dia da cidade. E aquilo marca. 243 ANEXO A - PROJETOS NºS 333/2005, 0945/2006, 2286/2006, 2300/2006 ESCOLA UNIVERSIDADE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA - SME/PMC 244 PROJETOS NºS 333/2005, 0945/2006, 2286/2006, 2300/2006 - ESCOLA UNIVERSIDADE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA - SME/PMC PROJETO Nº 2300 Em que ela acredita? Que mudança almeja no comportamento do educando? O que ela oferece para a mudança do comportamento dos alunos? • Fazer arte significa criar, recriar, transformar a realidade. • As crianças interpretam arte pelas próprias experiências e, a partir daí, constroem significações. Que as crianças saibam perceber, educar o olhar para perceber sentimentos, ampliar repertório, expressar pensamentos, sonhos e realidades, desenvolvendo imaginação criadora. • Contato com materiais: madeira, gesso, lápis de cor, texturas. • Visita a painéis. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO: 2286/2006. Em que ela acredita? Que mudança almeja no comportamento do educando? • • • • • • • • • • O que ela oferece para a mudança do comportamento dos alunos? Pesquisa bibliográfica, virtual in loco. Contextualização da história. Análise de fatos e obras. Produções e recriações/releituras. Notar-se parte da história e responsável pela evolução da cidade. Fomentar visão crítica. Desenvolver sensibilidade, percepção, imaginação. Compreender na arte a época e imaginação humana. Buscar e saber organizar informações dentro e fora da escola. Compreender a variedade dos produtos artísticos na história da cidade de Curitiba. • • Localização da cidade no estado, no país e no globo. • Estrutura da cidade. • Identidade – tropeiros, imigrantes, indígenas/cultura dos diversos países. • Passeios-trajetos, espaços e manifestações que mantêm vivo o gosto das artes. Contribuição dos antepassados. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO 0945/2006 Em que ela acredita? Que mudança almeja no comportamento do educando? O que ela oferece para a mudança do comportamento dos alunos? Contribuir para a construção de atitudes éticas, autonomas, solidariedade e respeito. Levar às gerações futuras o artista perfeito e o ser humano notável. Relatar o que ele desejou passar em cada desenho Utilizar a linguagem plástica [...] para produzir e comunicar idéias. Usufruir das produções culturais. Desenvolver a criatividade, respeito pelo patrimônio público. Estilo pessoal. Identificação da relação de autoconfiança por meio da identificação da arte com o fato histórico contextualizado nos painéis de Poty. • Instrumentos. • Interação com materiais e procedimentos. • Experimentos. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO 333/2005 Em que ela acredita? Que mudança almeja no comportamento do educando? O que ela oferece para a mudança do comportamento dos alunos? • • • • Propiciar a comunicação do aluno com a obra do artista. Analisar criticamente elementos de linguagem visual. Perceber semelhanças e diferenças características. Levar as obras de arte até os alunos para ampliar a relação com o trabalho do artista. • Pesquisa, problematização, materiais, técnicas para elaboração das atividades.