Análise de obras literárias
A brasileira de prazins
Camilo Ferreira Botelho
Castelo Branco
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SumÁrio
1.
Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 9
3.O AUTOR.................................................................................................. 12
4.
A OBRA..................................................................................................... 14
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5.Exercícios............................................................................................ 42
A brasileira de prazins
Camilo Ferreira Botelho
Castelo Branco
A brasileira de Prazins
1. Contexto social e HISTÓRICO
A invasão napoleônica, a vinda de D. João VI para o Brasil em 1808 e a
Independência do Brasil em 1822 agravam bastante a situação econômica portuguesa. Em 1820 inicia-se uma revolução liberal, visando à modernização do
país. Pretendia-se que os bens da Igreja e da nobreza fossem mobilizados para
que a burguesia pudesse dispor desse capital para investir na terra. Havia uma
pequena burguesia industrial, mas a maioria da população era camponesa.
Influenciados pela Revolução Francesa, os setores liberais defendiam a
criação de uma Constituição, a liberdade de comércio e o direito de participação
política de todo cidadão.
Em 1826, com a morte de D. João VI, Portugal vive uma crise sucessória:
D. Pedro fora aclamado Imperador do Brasil em 1822, abdicando do trono português, deixando como sucessora sua filha Maria da Glória, com apenas sete
anos de idade. D Pedro outorgou a Portugal uma Carta Constitucional, tendo
por objetivo a contenção dos excessos da Constituição de 1822.
Em 1826, o irmão mais novo de D. Pedro, D. Miguel, casa-se com a sobrinha D. Maria da Glória, tornando-se rei durante a menoridade da rainha. O
casamento teve por finalidade aplacar os ânimos daqueles que consideravam D.
Miguel o legítimo sucessor de D. João, já que D. Pedro havia optado pelo trono
do Brasil.
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D. Miguel, que em princípio acatou as imposições feitas pelo seu irmão
Pedro, em 1828 é aclamado rei de Portugal pelos seus partidários.
Uma vez rei, D. Miguel nega a Carta Constitucional e persegue os liberais
que lhe faziam oposição.
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Em 1831, D. Pedro abdica do trono brasileiro e regressa à Europa. Com um
exército de mercenários, os liberais, chefiados por D. Pedro, invadem Portugal
em 1832. O conflito se estende até 1834, com a vitória das tropas liberais, sendo
D. Miguel exilado.
Os miguelistas, seguidores de D. Miguel, também chamados realistas,
legitimistas e absolutistas, representavam a mentalidade conservadora, calcada
no passado de glórias e na memória de um país aristocrático, enquanto D. Pedro e
seus seguidores, chamados liberais, constitucionais e malhados, representavam
a mentalidade liberal e burguesa calcada em novas relações comerciais.
Com a derrota dos conservadores, ocorre a expropriação e distribuição
das terras, instaurando novas relações sociais no campo e a formação de um
grupo governante, cujos componentes eram oriundos de uma nova burguesia
de proprietários rurais.
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A brasileira de Prazins
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2.Estilo literário da época
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A palavra romântico deriva do latim romanice e significa “à maneira dos
romanos”. No século XII, o termo rommant referia-se à língua vulgar, ou seja,
toda língua que não fosse o latim.
Das acepções da palavra romantismo, convém distinguir: 1) a palavra romantismo deriva de romântico (romantic) que, por sua vez, deriva de romance
(roman) e o adjetivo romântico designava na Inglaterra do século XVII as narrativas fantasiosas das novelas de cavalaria; 2) romântico no século XVIII, na
França, designa paisagens selvagens e pitorescas; 3) romântico, no século XIX,
na Alemanha, designa uma tendência artística contrária ao Classicismo.
Como o adjetivo romântico é empregado sem muito rigor, normalmente
ocorrem algumas confusões, porque ora designa um estado de espírito, uma
atitude, e, portanto, presente em todas as épocas, ora designa uma escola literária
no início do século XIX.
Como escola literária, o Romantismo surge na Alemanha, com a publicação
da revista Athenäeum, editada pelos irmãos Schlegal, de 1798 a 1800, em Iena,
espalhando-se daí para o restante do mundo.
Na Inglaterra, tem início em 1798, com a edição da Lyrical Ballads, de autoria
conjunta de Wordsworth e Coleridge. Na França, o Romantismo passa a ter plena
aceitação em 1820, com a obra Méditations, do poeta Lamartine.
Em Portugal, o ano de 1825, com a publicação de Camões, de Almeida
Garrett, marca o início do Romantismo português.
O Romantismo valoriza, sobremaneira, o idealismo e o espiritualismo.
Por idealismo entenda-se o primado do sujeito sobre o objeto, ou seja, o
universo interior é mais importante que a realidade exterior e, por isso, as
emoções importam mais que a realidade, a subjetividade vale mais que a realidade externa e as emoções falam mais alto que a razão. Por espiritualismo,
entenda-se que a realidade é espírito e a matéria (o real) é inferior ao espírito,
devendo apenas servi-lo.
O Romantismo valoriza a noite, o sonho, a dor, a arte e a natureza como
formas de fugir da realidade, de negar a razão. Para os românticos, em oposição
ao Iluminismo do século XVIII, não é a razão que leva o homem ao conhecimento
do infinito, mas o sentimento e a fantasia. Por isso, cabe ao poeta e não ao racionalista a descoberta do sentido da vida.
O ser humano encontra-se no limiar de dois mundos: pela alma está ligado
ao divino, e aí reside sua grandeza; pelo corpo está preso à matéria, e aí reside
sua desgraça. Sua metade matéria o prende ao mundo físico, o que faz com que
ele sinta uma profunda nostalgia do infinito e do divino e toda e qualquer separação, seja da infância, do lar, da amada ou da pátria, desperta nele a saudade do
infinito. Por isso, para ele a vida é insuportável e a morte é vista como solução
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para o sofrimento. Como os cristãos chamam a este mundo de século, vem daí
o “mal do século”, isto é, a consciência de que este mundo é apenas sofrimento,
portanto o melhor a fazer é abandoná-lo, seja através do sonho, seja através da
morte, vista como “a recompensa da vida”. O homem nasceu para a dor, não
para a alegria.
Para o romântico, o sentimento mais importante é o amor, porque liga o
homem ao infinito. Todo amor terreno é apenas a superfície do amor infinito,
que só pode ser alcançado pela morte. Daí a morte completar o amor, pois só
no infinito o homem pode viver a plenitude do sentimento amoroso. Por isso,
o final feliz não é importante, porque a única felicidade possível reside na comunhão com o infinito. O sentimento elevado ao infinito é o que o romântico
chama de sublime.
Como a alma do homem não é deste mundo, ele se rebela contra toda e
qualquer regra que deseja prendê-lo, pois acredita que a sua alma é livre. Nada,
pois, pode prendê-lo, nem as regras da sociedade nem as regras da criação literária. Daí a ideia de ruptura contra todas as regras da arte e contra tudo o que
aprisiona o homem.
A relação do homem e a sua parte divina podem ocorrer por intermédio da
nação, que o romântico entende como um povo que se organiza politicamente
num território, em decorrência de uma vontade divina. Por isso, a inspiração
vem do povo e o artista é nacionalista, devendo saber traduzir, em seus textos,
a “alma do povo”. Não é por acaso que, no Romantismo, surge uma ciência que
procura investigar a sabedoria popular, sob o nome de Folclore.
O individualismo romântico não é contrário ao sentimento nacionalista,
porque, em sua solidão, o romântico sente simpatia por todos os seres do universo
e, em particular, pelo ser humano. Em seu egocentrismo, ele se sente integrado
ao cosmos.
Quadro das principais características românticas
Liberdade de expressão
•
Escapismo, fuga da realidade através do retorno à infância, ao passado
histórico, através do sonho e da morte
•
Individualismo, egocentrismo
•
Subjetivismo, valorização das emoções
•
Nacionalismo
•
Idealização da realidade
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
3.O AUTOR
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, em 16 de março
de 1825, ano em que tem início o Romantismo em Portugal, com a publicação de
Camões, de Almeida Garrett. Cedo perdeu os pais (ficou órfão de mãe aos dois
anos e de pai aos dez) e teve muitas dificuldades na infância e adolescência.
Casou-se aos 16 anos com Joaquina Pereira França, deixou a mulher, tentou fazer
Medicina no Porto (1844) e Direito em Coimbra (1845), viveu com outras mulheres. Fez Jornalismo no Porto e, tomado durante meses pelo fervor da religião,
em 1850 entrou para um seminário, que logo trocou pela boêmia portuense e
pela leitura de escritores franceses. A paixão por Ana Plácido, casada com um
comerciante, levou à prisão dos dois por adultério (1861), na cadeia da Relação.
A união, porém, se consolidou: o casal jamais se separaria, indo viver em Lisboa
com três filhos extremamente problemáticos e, posteriormente, em São Miguel
de Seide, sempre com problemas financeiros. Camilo Castelo Branco fez tudo
para viver da literatura, tornando-se, inclusive, o primeiro escritor profissional
de seu país. A concessão, em 1885, do título de visconde de Correia Botelho não
lhe melhorou as condições de vida, agravadas pela doença e pela ameaça de
cegueira, além da melancolia crescente e autodestrutiva. Camilo Castelo Branco
representou em seu país diversas tendências da literatura europeia do século XIX,
mas, tanto por convicções estéticas como por temperamento, foi sobretudo um
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autor romântico. Versátil, de produção numerosa (são 137 títulos divididos em
180 volumes), compreendendo o romance, o teatro e a crítica literária, realizou-se
como romancista de feição gótica, às vezes irrefreavelmente sentimental. Reconstituiu em suas obras o panorama dos costumes e dos caracteres de Portugal de
seu tempo, quase sempre em profunda sintonia com a maneira de ser e sentir
do povo português. Usufruiu de grande prestígio em vida junto ao público e à
crítica, sendo a personalidade literária mais popular do Portugal de sua época.
Em 1890, ao saber-se definitivamente cego, Camilo suicidou-se com um
tiro de pistola à cabeça.
Pode-se dizer que a obra de Camilo Castelo Branco parte de um romantismo
idealizador e sentimental e chega aos experimentos da composição de estilo naturalista. Na sua fase plenamente romântica, deu a suas novelas caráter folhetinesco,
entre o patético e o macabro. As obras a seguir foram marcadas pela leitura de
Eugène Sue: Anátema (1851), Mistérios de Lisboa (1854), Duas épocas na vida (1854),
O livro negro do padre Dinis (1855). Numa outra etapa, o materialismo de consciência social de influência balzaquiana valoriza a realidade social em Vingança
(1858), Carlota Ângela (1858), A morta (1860). Seus livros mais conhecidos refletem
a experiência do cárcere, abordando como tema o amor reprimido e exacerbado:
O romance de um homem rico (1861), Amor de perdição (1862), Amor de salvação
(1864), O olho de vidro (1866), A doida do Candal (1867), O retrato de Ricardina (1868),
A mulher fatal (1870). De outra linha, Doze casamentos felizes (1861), Estrelas funestas
(1861), Estrelas propícias (1863) veiculam intento moralizador. Em Coração, cabeça
e estômago (1862), A queda dum anjo e outros, prevalecem toques de humorismo
discreto. Camilo também fez romances históricos, como O judeu (1866).
O estilo naturalista aparece satirizado nos romances Eusébio Macário (1879)
e A corja (1880). Em sua última fase, o aspecto sentimental aparece unido ao
aspecto social e histórico, aproximando-se da estética realista-naturalista, como
ocorre em A brasileira de Prazins (1882).
Em termos estético-cronológicos, Camilo Castelo Branco é o principal
representante da segunda geração romântica portuguesa.
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4.A OBRA
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A brasileira de Prazins
A brasileira de Prazins contém uma introdução, 20 capítulos, uma conclusão
e um P.S. (post-scriptum).
O termo “brasileira” que aparece no título da obra não designa alguém que
nasceu no Brasil, como se pode pensar no primeiro momento. No século XIX, em
Portugal, o termo brasileiro aplicava-se ao português que vinha ao Brasil fazer
fortuna como imigrante e que, uma vez rico, retornava ao seu país. Na obra de
Camilo Castelo Branco A brasileira de Prazins, a personagem Marta é “brasileira”
não porque nasceu no Brasil, mas porque se casou com Feliciano de Prazins, português que fez fortuna em Pernambuco e retornou à sua terra, sendo, portanto,
tratado pelos seus compatriotas como “brasileiro”.
Em A brasileira de Prazins temos duas histórias paralelas, com alguns
pontos de ligação. De um lado, temos a história de Marta, que acaba enlouquecida em razão de seu amor por José Dias e de uma doença hereditária, a
paixão não correspondida de Zeferino por ela e o casamento desta com seu
tio Feliciano de Prazins. De outro lado, temos a história do farsante Veríssimo
Borges, que se passa por D. Miguel com o intuito de extorquir dinheiro dos
provincianos miguelistas.
O tempo e o espaço são os mesmos para as duas narrativas: o norte de
Portugal por volta de 1840. O tempo do enunciado da história é 1882, isto é,
o narrador está escrevendo em 1882 uma história que teve início em 1843.
No início da história, Marta tem catorze anos e, no término, cinquenta e três anos.
O personagem Zeferino das Lamelas faz a ponte entre as duas narrativas, pois
ama Marta e deseja conseguir o seu amor por intermédio de prestígio político
em defesa da causa miguelista.
A brasileira de Prazins mescla elementos da escola romântica com elementos
da escola realista-naturalista, sobretudo no que diz respeito à loucura de Marta. A
causa da loucura é a impossibilidade da união amorosa entre os amantes (causa
romântica), mas o narrador procura justificá-la cientificamente, apoiando-se na
teoria do determinismo hereditário (causa científica).
O livro principia por uma introdução que tem por finalidade conferir
veracidade e autenticidade ao relato, recurso muito empregado por Camilo
Castelo Branco.
Entre as diversas moléstias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos – a mais dispendiosa – leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros
achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pílulas e tisanas [medicamento líquido
de um enfermo]. E, quando cuido que me curo com as drogas e me ilustro com os arcaísmos, arruíno o estômago, e enferrujo o cérebro numa caturrice académica. [Manteve-se
a acentuação original]
Constou-me aqui há dias que a Srª Joaquina de Vilalva tinha um gigo [cesto de vime] de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez
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de malhais de pão, assentavam sobre missais. O meu informador denomina missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar à
Srª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver, mas até mos
deu todos – que escolhesse, que levasse.
Examinei-os com alvoroço de bibliómano. Eles, gordurosos, úmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores como ao leitor delicadamente sensual se lhe afigura a face
da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverizada de bismuto [brilho branco
e avermelhado].
Havia sermonários latinos, um Marco Marullo, três retóricas, muitas teologias
morais, um Euclides, comentários de versões literais de Tito Lívio e Virgílio. Deixei tudo
na benemérita podridão, tirante uma versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e
um muito raro Entendimento literal e canstrviçam portugueza de todas as obras
de Horacio, por industria de Francisco da Costa, impresso em 1639. (Manteve-se
a grafia original)
Disse-me a dadivosa viúva de Vilalva que os livros estavam na adega havia mais de
trinta anos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético [tuberculoso];
que o seu homem – Deus lhe fale na alma – mandara calcar o quarto onde o estudante
acabara, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto – trastes, roupa e livralhada.
Contou-me isto secamente do extinto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão
fagueira o ventre grávido de uma gata maltesa que lhe resbunava no regaço, passandolhe pela cara a cauda em atritos de ama flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos
um afecto nostálgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos
meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma
meiguice antiga – a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!
A Srª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento, ofereceu-me uma
das crias da sua gata que andava para cada hora e se chamava Velhaca – ajuntou com a
satisfação de quem completa um esclarecimento interessante. Agradeci o porvindouro
filho da Velhaca, fiz uma carícia no dorso crespo da mãe, que ma recebeu familiarmente,
e saí com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que a Srª Joaquina,
com um riso céptico indisciplinado, me disse serem do tempo dos Afonsinhos. – Porque o seu sogro, acrescentou, era um asno às direitas que comprava a bula para poder
comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que
os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, juntando à heresia um anexim de
limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos pecados que entram
pela boca.
Depois informaram-me que esta viúva, bastante estragada no moral e ainda mais
no físico, andara de amores ilícitos com um escrivão do juiz de paz, o Barroso, um dos
7500 do Mindelo, que lera o Bom senso do cura João Meslier, e a saturara de má filosofia,
e também a esbulhara de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua riqueza – a Fé, o
bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e contentes para os mistérios
da eternidade.
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A brasileira de Prazins
Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as páginas dos dois livros, preparado
para o dissabor de encontrá-los mutilados, defeituosos, com folhas de menos, comidas
pelas ratazanas colaboradoras roazes do galicismo na ruína da boa linguagem quinhentista. Folheei o Entendimento literal e constrviçam até páginas 154, e aqui
achei um quarto de papel almaço amarelecido, com umas linhas de letra esbranquiçada,
mas legível e regularmente escrita. O conteúdo do papel, onde se conheciam vincos de
dobras, era o seguinte:
“José, teu irmão, quando eu hoje saía da igreja, onde fui pedir a Nossa Senhora a tua
vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a pedir a Deus pela tua alma. Eu já não
posso chorar mais nem rezar. Agora o que peço a Deus é que me leve também. Se não morrer,
endoideço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao pé de ti”.
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Marta.
Não é preciso ser a gente extraordinariamente romântica para interessar-se, averiguar, querer notícias das duas pessoas que têm nestas linhas uma história qualquer,
mais ou menos vulgar. Ocorreu-me logo que o estudante, a quem o livro pertencera,
tinha morrido na flor dos anos. Além disso, na margem superior do frontispício do
volume, está escrito o nome do possuidor – José Dias de Vilalva, e a carta é dirigida
a um José. Concluí ser o cunhado da viúva quem recebera a carta.
Voltei a casa da Srª Joaquina, muito açodado, como um antropologista que
procura uni dente pré-histórico, e perguntei-lhe se o seu cunhado se chamava José
Dias; e se tinha alguma conversada, quando morreu. – Que sim, que o cunhado era
José Dias e que morrera pela Maria da Fonte.
– Pois ele amou a Maria da Fonte? – perguntei com ardente curiosidade histórica, para esclarecer a minha pátria com um episódio romanesco das suas guerras
civis. Ela sorriu e respondeu:
– Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por aí andavam os da
Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papelada dos escrivães, sabe vossemecê?
Acho que foi então ou por perto. – E ajuntou: – Ele gostava aí muito de uma moça,
isso é verdade. Era a Marta...
– Marta? – disse eu com a satisfação de ver confirmada a assinatura do bilhete.
– Vossemecê conhece-a?
– Não conheço.
– É a brasileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem quinze
quintas entre grandes e pequenas.
– Bem sei; mas nunca vi essa mulher.
– Não que ela nunca sai do quarto; está assim a modos de atolambada há muito
tempo. Credo! há muitos anos que a não vejo. Dá-lhe a gota, salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa má no interior. É uma pena. Não sabe o que tem de seu. O
Feliciano é o homem mais rico destes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e
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pão de milho. Ele quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem
do Brasil todos os anos, vai a pé, e mete ao bolso umas côdeas de boroa e quatro maçãs
para não ir è estalagem.
Interrompi com interesse de artista:
– Disse-me que ela endoidecera. Foi logo depois da morte do seu cunhado?
– Isso já me não escordo. Quando eu vim casar para aqui já meu cunhado tinha
morrido. O que me lembra é dizer-me o meu defunto, que Deus tem, que o rapaz ganhou
doença do peito por mor dela. Esses casos há muita gente que lhos conte. Há por aí muito
homem do seu tempo. Pergunte isso ao Senhor Reitor de Caldelas que andou com ele
nos estudos e sabe todas essas trapalhadas. – E num tom de notícia festival: – Olhe que
o gatinho nasceu esta noite; lá lho mando assim que estiver criado.
Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?
– Faça-me o favor de lhe não cortar nada.
Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa crítica de uma dama inglesa à nossa costumeira
de desorelhar e derrabar gatos. Ela, lady Jackson, escreve que lhe fazem compaixão os
pobres bichanos que, sem cauda nem orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos.
Excelente senhora!
Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldelas na feira de Santo urso. Achei-lhe
um semblante convidativo, animador a entabular-se com ele uma indagação de curiosidades sentimentais.
Fazia respeitável a sua batina sem nódoas o padre Osório. Parece que também as
não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve mocidade, nem as ambições
que suprem os doces afectos do coração mutilados pelo cálculo ou congelados pelo temperamento. Há trinta e dois anos que pastoreia uma das mais pobres freguesias do arcebispado.
Pregou alguns anos com aplauso dos entendidos e inutilidade dos pecadores. A retórica é
a arte de falar bem; mas os vícios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa,
embora não se diga.
Como pregava gratuitamente, o vigário de Caldelas era chamado por todos os
mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os panegíricos dos santos mais
ou menos hipotéticos, pediam-lhe que pregasse da cura milagrosa de umas maleitas ou
de um leicenço – casos que a pobre Natureza e o periódico chamado Esculápio só de per
si não poderiam explicar.
O vigário subia ao púlpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem
muito singela. Afirmava que Deus era tão bom, tão previdente, que dera à condição enfermiça do homem forças vitais, sobresselentes que resistiam à destruição; e que a Natureza,
grande milagre do seu Criador, só de per si era bastante para a si mesma se restaurar.
Ora, um abade rico, bacharel em Teologia, que lhe ouvira estas ideias assaz naturalistas,
perguntou-lhe, à puridade, se ele negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito
das sezões e dos leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois,
acrescentou: – Deus fez o supremo milagre da ciência para centuplicar as forças à natu18
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reza enfraquecida. – O teólogo enrugou cientificamente a fronte cheia de suspeitas e
replicou: – O Senhor Reitor foi ferido da peste do século. Está iscado de Voltaire e de
Alexandre Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.
– O reitor de Caldelas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o púlpito.
Estas informações e o aspecto lhano, harmónico do padre, animaram-me a dizer
lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns esclarecimentos a respeito de
uma carta encontrada num livro que pertencera ao seu condiscípulo José Dias de Vilalva.
– Recorda-se? – perguntei.
– Se me recordo do meu pobre José Dias! Pois não recordo? Parece-me que ainda sinto neste braço o peso enorme da sua face moda, e já lá vão trinta e cinco anos.
É preciso ter na alma dolorosas reminiscências para se recordar um amigo morto há
tantíssimo tempo, não lhe parece? Como sabe você que existiu esse obscuro filho de
um lavrador?
Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assinatura, gesticulou afirmativamente,
e, após uma breve pausa de recolhimento com as suas recordações, disse:
– Fui eu que pus esta carta entre as páginas de um livro do Dias. O meu pobre
condiscípulo, quando este papel lhe foi mandado à cama, já não o podia ler. Tinha caído no torpor, na indiferença que, a meu ver, é a compaixão da Providência pelos que
morrem amando e não querendo morrer. Já não via a vida nem a morte. Li esta carta; e,
como ele nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente. Era
um comento de Horácio que eu lia nos seus intervalos de modorra, a fim de dar ao meu
ânimo uma folga que me fortalecesse para resistir ao golpe final. Já sei pois o que você
deseja. Quer saber se esta Marta está no caso de merecer a consagração romântica que
Bernardim de Saint-Pierre usurpou às dores verdadeiras, para coroar de uma eterna
auréola a sua fantástica Virgínia.
– Não vou tão longe – respondi com a modéstia genial dos escritores que imortalizam. – A brasileira de Prazins não pode contar com o seu imortalizador em mim,
nem me parece bastante fecundo o assunto. Sei que temos um namoro de uma menina
com um estudante, o estudante morre e a menina casa com um sujeito que tem quinze
quintas. Se não há mais do que isto...
O cura interrompeu:
– Vejo que sabe quem é Marta; mas não a conhece bem. Virgínia [personagem
da novela de Bernadim de Saint-Pierre intitulada Paulo e Virgínia, de 1788] e
Francesca [personagem de Dante] na Divina Comédia e Julieta [personagem de
William Shakespeare em Romeu e Julieta] não são mais dignas de piedade nem de
romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permite que se abram intercadências
de luz no espírito para que a saudade rebrilhe na escuridão da demência é incomparavelmente mais funesto que o amor fulminante. O que é vulgar é morrer logo ou esquecer quinze dias depois. Quando eu tinha uma irmã que lia novelas, à custa de lhas
ouvir analisar com um entusiasmo digno de melhor emprego, achei-me envolvido na
literatura de Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de fazer presente do meu santo Afonso
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Maria de Ligório e da minha Teologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado
que me profetizou que minha irmã havia de morrer doida, a cismar nas patacoadas
das novelas. Ela não morreu doida; mas pensava em romancear a história de Marta,
porque dizia ela que, tendo lido trezentos volumes de novelas, não encontrara caso
imitante. – E, dando-me o bilhete de Marta: – Este quarto de papel é o exórdio de
uma agonia original.
Como a exposição do reitor saiu muito enfeitada de jóias sentimentais – detestável espécie arqueológica que ninguém tolera – farei quanto em mim couber por,
uma a uma, ir montando e refugando as flores de modo que as cenas dramáticas se
exponham áridas, bravias como serro de montanha por onde lavrou incêndio, sem
deixar bonina, sequer folhinha de giesta em que a aurora imperle uma lágrima. A
Aurora a chorar! de que tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra numa ideia
a sua certidão de idade e uma relíquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os bigodes
tingem-se; mas as frases – madeixas do espírito – são refractárias ao rejuvenescimento
dos vernizes.
Repare que o narrador se apresenta como autor da obra, afirmando que dará
forma literária ao discurso do padre Osório. Segundo o narrador, cabe a ele dar uma
forma artística ao discurso “espontâneo” e “natural” do padre.
O fato de ser o narrador um bibliófilo e ir à casa da viúva Sra. Joaquina Vilalva
e esta apresentar-lhe uma biblioteca abandonada desde a morte do cunhado, bem como
o fato de ele selecionar alguns livros, levá-los para casa e encontrar entre suas páginas
um manuscrito têm como finalidade conferir autenticidade à história. Os pormenores
que vão surgindo, as suspeitas do narrador de que o proprietário do volume, José Dias,
é o mesmo a quem o manuscrito era destinado, o relato da viúva sobre os amores, a
loucura e o casamento de Marta e o posterior relato do padre Osório que afirma ter
conhecido Marta e José Dias e participado de seus dissabores fornecem os elementos
para um história romântica. História que o narrador declara que reproduzirá fielmente,
cuidando apenas fazer alguns reparos no estilo sentimental do padre.
Capítulo I
Marta era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irmão
rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no espaço de vinte anos, lhe
mandara três moedas, com os seguintes encargos: à mãe 6$000 réis fortes, às almas do
Purgatório, de Negrelos, 3$000 réis também fortes, que lhos prometera quando embarcou, e o resto para ele – “5$400 réis, dizia, é que o maroto, podre de rico, me mandou
em vinte anos!
A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte, e,
afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro, mestre-de-obras,
muito endinheirado e já maduro, apareceu o José Dias, filho de um lavrador rico de
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A brasileira de Prazins
Vilalva, a namoriscá-la. Este rapaz estudava latim para clérigo; mas, como era fraco,
de poucas carnes e amarelo, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem
puxar pelas memórias. Os padres do Minho, naquele tempo, não puxavam quase nada
pelas memórias; ordenavam-se tão alheios às faculdades da alma que, sem memória
nem entendimento, e às vezes sem vontade, eram sofríveis sacerdotes, davam poucas
silabadas no Missal e liam os salmos do Breviário com uma grande incerteza do que
queria dizer o penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão fácil a ordenação – uma
coisa que se fazia com uma perna às costas, diziam certos vigários – sem precisão
absoluta de puxar pelas memórias, o Joaquim Dias quis tirar o filho do latim que
lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Frei Roque. Este padre-mestre tinha
uma irmã paralítica: sabia ler, e prendas de costura, marcava, fizera um pavão de
missanga, não desconhecia o croché e ensinava raparigas para se distrair.
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Marta, com quatorze anos, estudava com a irmã do padre Roque. Sempre que ela e as amigas iam para as aulas, ouviam gracejos dos alunos dos
padres-mestres. Apenas um não lhe dizia gracejos: José Dias.
Quando o pai de Marta soube dos gracejos dos rapazes, queixou-se ao padre
Roque. Este ordenou a Marta que apontasse os culpados, já que havia reclamado
ao pai. Marta não apontou um culpado, pois não fora ela que fizera a queixa.
O denunciante era Zeferino, um pedreiro de 32 anos, apaixonado por
Marta. Zeferino e, ciente das dificuldades financeiras de Simeão, pai de Marta,
propôs-lhe negócio de casamento. Simeão empenhou a palavra, prometendo a
mão da filha.
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Capítulo II
Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via,
48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da
sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, enfim, descansar‚
de vez, que já tinha para os feijões. Recomendava-lhe que fosse deitando o olho a uma
ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda
houvesse conventos è venda, os fosse apalavrando até ele chegar.
– Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos! – exclamou o Simeão, e foi
mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trepa de Santo Tirso e ao ex-capitão-mor
de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos beneditinos, o Pinto
Soares, um deputado gordo – a retórica viva do silêncio mais facundo que a língua,
de uma grande pacificação sonolenta –, perguntou-lhe se queria vender as quintas
dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com
espírito e um pouco de ateísmo, respondeu-lhe que não vendia para não transmitir
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
ao comprador a excomunhão que arranjara comprando bens das ordens religiosas.
Mas o Simeão, em matéria e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de
Franclim. Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos à venda,
ou quintas ai para quarenta mil cruzados.
Simeão fica eufórico ao receber carta e dinheiro de seu irmão Feliciano. Este avisava
que estava rico e pretendia retornar em breve para Portugal.
A notícia do retorno de Feliciano muda os planos de Simeão, fazendo com que ele
desfaça o negócio de casamento de sua filha com Zeferino.
Ao saber da novidade, Zeferino esbraveja com Simeão. Durante a discussão,
aparece José Dias com seus cães de caça. O pedreiro sabia dos amores de Marta com José
Dias e, por isso, resolve agredi-lo, mas é atacado por um dos cães, rasgando-lhe a roupa,
deixando-lhe as nádegas expostas. O espetáculo causa grandes risos em Marta.
Capítulo III
No terceiro capítulo, ocorre um desvio da história de Marta.
O Zeferino era afilhado do morgado de Barrimau, um major de cavalaria, convencionado em Evora Monte, miguelista intransigente, mas cordato. Vivia no seu escalavrado solar com um irmão egresso beneditino, Frei Gervásio, muito cevado e inerte,
que continuava em casa a sua missão monástica. Era um contemplativo. Não lia senão
no livro da Natureza. Se não dormia, estrumava o seu vegetalismo com muitos adubos
crassos de toucinho e capoeira, com um grande farfalhar de mastigação, porque dispunha
de dentadura insuficiente. Tinha outro sinal ruidoso de vida – era um pigarro de catarral
crónica, arrancado dos gorgomilos com tamanho estrupido que parecia ao longe o grito
rouco de um estrangulado, no 5º acto de um drama de costumes. A velha criada da cozinha, muito flatulenta, nunca pudera afazer-se às explosões daquela garganta escabrosa de
mucos empedrados. Quando o grasnido aspérrimo de pavão lhe feria os ouvidos, reboando
nos côncavos tectos dos salões, a mulher estremecia e raras vezes deixava de resmungar:
– Que medo! credo! diabos leve a esgana do homem. Deus me perdoe!
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Naquele ano, por meado de 1845, espalhara-se no ambiente dos realistas, como um
aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o Sr. D. Miguel. O seu enorme partido
sentia-se palpitar no anseio daqueles vagos anelos que estremeciam as nações pagãs ao
avizinhar-se o profetizado aparecimento do Messias. Afirmam-no os Santos Padres, e os
padres do Minho asseveravam o mesmo a respeito do príncipe proscrito. Frei Gervásio
recebia do alto da província cartas misteriosas de uns padres que paroquiavam na Póvoa
de Lanhoso e Vieira. Era ali o foco latente do apostolado. Naqueles estábulos de ignorância
supersticiosa é que devia aparecer, pelos modos, o presépio do novo redentor.
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A brasileira de Prazins
Zeferino foi visitar seu padrinho Zeferino Bezerra de Castro, que vivia
com seu irmão Frei Gervásio, para relatar-lhe o ocorrido e jurar vingança contra
Simeão e José Dias. O padrinho lhe disse, então, que se preparasse para uma
vingança maior e mais importante, pois D. Miguel estava retornando a Portugal
para retomar o trono. Disse-lhe, ainda, que fosse pegar a espada de seu pai, um
bravo miguelista, para empunhá-la em defesa de D. Miguel e de Portugal.
O pai de Zeferino, Gaspar das Lamelas, durante a guerra civil em Portugal,
havia lutado ao lado dos miguelistas, também chamados realistas, absolutistas e
legitimistas. Com a derrota de D. Miguel, os partidários de D. Pedro, chamados
pelos rivais de liberais, constitucionais e malhados, confiscaram os bens dos miguelistas, entre eles estava Gaspar das Lamelas, que fugiu.
Sem saber o paradeiro do pai, Zeferino tornou-se pedreiro. Quando Gaspar
retornou, conseguiu retomar a posse das suas terras, mas encontrou-as em estado
precário. Daí o seu ódio pelos liberais.
Na noite do Natal de 1838, Gaspar das Lamelas, completamente embriagado, saiu às ruas de espada na mão gritando vivas a D. Miguel, no que foi
seguido por outros homens também embriagados. Juntos, foram até a casa do
respeitado miguelista Zeferino Bezerra de Castro, que procurou, inutilmente,
dissuadi-los da revolta.
O bando seguiu, então, para a cidade de Santo Tirso, que, avisada, aguardou
os revoltosos, que foram facilmente eliminados. Gaspar das Lamelas conseguiu
fugir a nado, levando entre os dentes sua espada. Sua fuga espetacular, entretanto,
será a causa de um reumatismo que o deixará paralítico.
Capítulo IV
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Do Alto Minho continuavam as notícias alegremente agitadoras.
O Cristóvão Bezerra, ex-capitão-mor de Santa Marta de Bouro, escreveu ao seu
parente de Barrimau. Dizia-lhe que constava que o Sr. D. Miguel estava no seu
reino, e – o que mais era – muito perto dali. Que não se podia explicar mais pelo
claro sem ter a certeza de que seu primo entendia a cifra de comunicação entre os
membros da Ordem de S. Miguel da Ala, instituída pelo Sr. D. Afonso Henriques
e renovada ultimamente pelo monarca legítimo – explicava. O major Bezerra era
comendador da ordem e conhecia a cifra: – que escrevesse francamente. E, desconfiando do correio, mandou a Santa Marta de Bouro o afilhado, o filho do alferes
Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a impar de soberba por tal
mensagem, posto que não participasse do segredo do padrinho, que era discreto,
disse ao pai:
– Ou eu me engano, ou o Sr. D. Miguel está por aí, não tarda...
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
Cristóvão Bezerra escreveu ao seu parente Zeferino Bezerra para noticiar
que D. Miguel estava de volta e, com ele, a restauração tão sonhada pelos miguelistas. A informação deveria ser mantida no mais absoluto sigilo, sob pena
do plano ser desmantelado pelos liberais.
Desconfiado da notícia, Zeferino Bezerra mandou seu afilhado Zeferino
às terras de Bouro para obter detalhes do caso. Zeferino trouxe, então, a notícia
de que D. Miguel estava hospedado na casa do abade de São Gens de Calvos,
o abade Marcos Antônio de Fria Rabelo, no concelho de Póvoa de Lanhoso.
Pouquíssimas pessoas tinham acesso ao rei, que de lá tramava com generais
estrangeiros o golpe.
Zeferino Bezerra estranhou o fato de D. Miguel contar com forças estrangeiras, o que considerava um desrespeito à fidelidade dos miguelistas. A suspeita
de Zeferino o faz consultar altas patentes e perceber que havia algo errado.
Quando Cristóvão Bezerra percebeu que Zeferino Bezerra não daria crédito
às suas notícias, escreveu ao primo dizendo-lhe que havia visto pessoalmente o rei,
na noite de 16 de abril de 1845, na casa do abade de Calvos. Disse-lhe, ainda, que
na ocasião o rei havia distribuído títulos e condecorações a clérigos e leigos.
Mais uma vez o major Zeferino Bezerra consultou as patentes e uma vez
mais obteve a notícia de que D. Miguel não estava em Portugal, mas o boato não
era de todo ruim, pois fizera despertar uma agitação preparatória.
O major Zeferino Bezerra contou a verdade a seu sobrinho Zeferino. Este
não acreditou no padrinho, dizendo-lhe que não apenas Cristóvão, mas Vasco
Cerveira Lobo, ex-tenente-coronel do exército realista, afirmava a presença de
D. Miguel em Portugal.
Capítulo V
Seis anos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamelas andava em rodaviva de Barrimau para Quadros, o Cerveira não tinha alterado sensivelmente os seus
hábitos. Estava muito gordo, saúde de ferro – um desmentido triunfante aos foliculários que desacreditam as virtudes higiénicas, nutrientes do álcool. Os vomitórios
quotidianos explicavam a depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava
pelos cinquenta anos, com um arrogante aspecto marcial, de intonsas barbas grisalhas – olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As filhas não mostravam
vestígios alguns de educação senhoril. (...)
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Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, antes da guerra civil portuguesa,
havia sido amigo pessoal de D. Miguel e assíduo frequentador do palácio real. Aos
trinta anos casara-se com D. Honorata, mulher por quem não tinha amor, apenas
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A brasileira de Prazins
interesse. Com a vitória dos liberais, o tenente-coronel Cerveira Leite fora preso e
perdera a patente. A partir daí, nunca mais foi o mesmo homem. Entregou-se ao
vício do álcool, dizia indecência às mulheres e não raramente dormia sobre o próprio
vômito. Recebia amantes dentro de casa e maltratava a mulher. As filhas tornaram-se
mulheres vulgares e os filhos, bêbados.
Quando Zeferino lhe disse o que sabia sobre D. Miguel, Cerveira Lobo quis
seguir imediatamente ao encontro do amigo. Zeferino, um pouco desanimado, disselhe também a opinião de seu padrinho, que achava que tudo era uma simulação. Em
princípio, Cerveira concordou com a opinião do major Zeferino Bezerra. Mas, quando
soube que Cristóvão Bezerra jurou ter beijado a mão do rei, mudou de idéia. Pediu ao
Padre Rocha, um homem sensato, que lhe escrevesse uma carta a D. Miguel e incumbiu Zeferino de entregá-la ao rei. O Padre Rocha, embora miguelista, não acreditou
na história, mas escreveu a carta, com o intuito de saber quem estava caçoando do
velho tenente-coronel.
Capítulo VI
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Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira
desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com
raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta
e seis e quarenta anos. Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que
acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um
olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão
a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a
janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em
mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar,
fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
– Vossa Majestade passou bem?
– Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.
– Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Abade foi chamado às oito horas para
confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o
almoço a Vossa Majestade, se ele não chegasse às nove e meia.
– Quando quiser, Senhorinha, quando quiser, visto que o abade deu essas ordens
e quem manda aqui é ele.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua Majestade
farejava com as narinas anelantes num forte apetite. A criada voltou com toalha,
guardanapo, louça da índia, talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua Majestade,
muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escritos, cosidos com seda escarlate,
e um grande tinteiro de chumbo com penas de pato.”
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
A residência do Abade Marcos Rebelo era uma casa velha e pequena; nela
estava o hóspede tratado como D. Miguel. Logo após o almoço, devorado solenemente pelo suposto rei deposto, a criada anunciou-lhe a chegada do visconde
de Nunes, a quem ela tinha em conta como cafajeste, porém ele se tornara um
homem de confiança do rei.
O visconde entrou e trancou-se no quarto com o rei. O abade chegou em
seguida e foi informado pela criada que o rei já havia almoçado e estava, no momento, na companhia do visconde Nunes. O abade entrou no quarto e entregou
a D. Miguel uma carta de Cristóvão Bezerra em que este solicitava ao rei que
recebesse um mensageiro portador de uma carta de Vasco Cerveira Lobo, que
se dizia “nobre e velho amigo”.
Com o auxílio do visconde, o rei simulou lembrar-se do amigo Cerveira
Lobo e autorizou a vinda do mensageiro. A sós com o visconde, o falso rei confessou temer ser descoberto.
De repente, a criada anunciou a chegada de um mensageiro. O rei e o visconde fecharam-se no quarto. Era uma carta do abade de Priscos, juntamente com
cem peças de ouro, donativo das senhoras Botelhas, de Braga. Dois grossos cartuchos foram deixados sobre a mesa. O abade deu um recibo ao mensageiro.
O visconde e o rei saíram do quarto, viram os dois cartuchos e vibraram
de alegria ao saber que se tratava de ouro.
Os dois saíram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Eles tinham ouvido
falar em recibo. O visconde Nunes, esgazeando os olhos, foi apalpar o embrulho, e muito
baixinho:
– Arame! Pesa que tem diabo! É ouro! Começa a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a língua de fora quanto lhe foi possível. Nem
parecia um rei!
Capítulo VII
Às sete da noite, a soirée do monarca de Calvos compunha-se do visconde Nunes,
seu secretário privado e brigadeiro de infantaria, do abade capelão-mor de el-rei, de dois
reitores, cónegos despachados, e o ex-sargento-mor de Rio Caldo, nomeado capitão-mor de
Lanhoso. Estavam todos em pé resistindo à licença de se sentarem. A cadeira de sola estava
com o príncipe encostada ao relógio; e, na mesa central, papéis, o tinteiro de chumbo, o
Novo Príncipe, de Gama e Castro, a Besta Esfolada e o Punhal dos Corcundas, do bispo
Frei Fortunato. Em cima das caixas do milho estava um meio alqueire com feijões brancos,
destinados às tripas, e dois foles vazios que a Senhorinha tencionava encher de grão para a
fornada quando el-rei se recolhesse. Sobre um dos foles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se o apresentante da carta de Vasco da Cerveira.
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26
A brasileira de Prazins
Estavam presentes na casa do abade, em reunião com o rei, além do Visconde Nunes, alguns clérigos e um militar. Todos aguardavam o mensageiro de
Vasco Cerveira, que vinha a ser Zeferino das Lamelas.
Às oito horas, chegaram Zeferino e Cristóvão Bezerra. Feitas as apresentações, D. Miguel pediu a Zeferino detalhes sobre seu pai, que havia lutado na
batalha de Santo Tirso. Impressionado e compadecido com o relato de Zeferino,
D. Miguel promoveu o pai de Zeferino a coronel e o próprio Zeferino ao posto
de sargento-mor.
D. Miguel leu para si a carta de Cerveira Lobo e anunciou que iria respondê-la
de próprio punho. Na resposta, acabou por solicitar ao missivista a doação de três
contos de réis para o movimento revolucionário.
Impressionado com tudo o que havia presenciado, Zeferino viajou a noite
toda sem dormir, até chegar, na tarde do dia seguinte, a Quadros, onde entregou
a carta do rei a Vasco Cerveira Lobo.
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Capítulo VIII
Quando Zeferino entregou a carta com um gesto soberbo da sua intervenção
entre o fidalgo e o rei, o Cerveira olhou para o sobrescrito com estranheza, e disse que
a carta não era para ele; e lia:
– Ao conde de Quadros, general do exército real. Isto que diabo é?
– É isso mesmo, fidalgo; isso que aí está vi-o eu com estes olhos escrever elrei o Sr. D. Miguel, ontem à noite, das nove para as dez. O Senhor Conde é vossa
excelência mesmo, e eu sou sargento-mor das Lamelas; lá ficou o meu nome no livro
e mais o de meu pai, que foi despachado coronel por el-rei.
–O teu pai?! Coronel!...
– É como diz.
– Ora essa!... coronel! caramba! – disse, despeitado; parecia-lhe iníqua a
promoção; mas ocorreram-lhe os velhos caprichos análogos de el-rei; as injustiças de
algumas patentes superiores desde 1828 até à convenção. E abriu a carta com moderado entusiasmo. Parecia que a sua razão imergida, restaurada depois de duas horas
bem roncadas, de papo acima, queria duvidar da autenticidade de um D. Miguel que
fazia sargento-mor um pedreiro, e coronel um reles alferes que passara das milícias de
Barcelos para infantaria. Achava natural e plausível em si as charlateiras de general
e a coroa de conde; mas as mercês feitas aos dois plebeus... Caramba! – Uma intermitência de juízo. Enfim, abrira a carta e lera para si com uma custosa interpretação,
ora aproximando, ora distanciando o papel dos olhos.
A pouco e pouco, desavincou-se-lhe a fronte carregada, iluminaram-se-lhe os
olhos, coava-se-lhe no sangue o suave calor do convencimento. Lia coisas que lhe
evidenciavam um Sr. D. Miguel autêntico, o autor da carta. Conhecia-lhe a letra.
27
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
Lembrava-se muito bem; era assim; e então a assinatura – Miguel, Rei – era tal qual.
Chegou a um certo período que devia impressioná-lo mais pela mudança súbita que lhe
transluziu no semblante. Depois dobrou vagarosamente a carta.
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Cerveira Lobo descobriu que o rei o havia nomeado conde e general, o
que lhe agradou; entretanto, não conseguia entender os motivos do rei para
conceder a patente de coronel a um alferes e a de sargento-mor a um pedreiro,
no caso Zeferino. A benevolência do rei soava-lhe como um despropósito. Com
certa desconfiança, começou a ler a carta. No decorrer da leitura, entretanto, ficou convencido sobre a autoria da carta: era mesmo de D. Miguel. Em seguida,
pediu ao Zeferino detalhes do encontro.
Para dar provas de seu prestígio junto ao rei, Cerveira mandou chamar o
padre Rocha e pediu-lhe que lesse a carta. O padre Rocha não ficou convencido
sobre a autoria da carta e decidiu investigar se D.Miguel seria mesmo o autor.
Capítulo IX
Ao entardecer do dia 15 de Maio de 1845, o padre Luís de Sousa escrevia a sua
correspondência para Londres. Anunciou-se o padre Bernardo Rocha, perguntando a
hora menos ocupada para poder dar duas palavras ao reverendo dono da casa. Foi logo
recebido. Que todas as horas eram livres para receber os amigos.
Padre Rocha principiou alegando que os seus sentimentos políticos eram bem conhecidos; que cumpria sempre as ordens que recebia do centro realista, e que facilmente
daria o sossego da sua vida em sacrifício das suas convicções. Que se julgava com direito
a fazer uma pergunta e a exigir que lhe respondessem a verdade.
– Se a pergunta for feita a mim, não poderei responder de outra maneira. Que quer
saber, padre Rocha?
– Se o Sr. D. Miguel está em Portugal.
– Não, senhor. Há 15 dias estava em Itália. – E abrindo uma gaveta, extraiu de
uma pasta muito ordinária de carneira surrada com atilhos um papel que mostrou. – Aqui
está uma carta assinada pelo Sr. D. Miguel de Bragança, datada no 1º de Maio. Quanto
a isto, está satisfeito. Que mais quer saber?
– Mais nada. Agora corre-me o dever de justificar a pergunta.
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O padre Rocha foi ao Porto para consultar o padre Luís de Sousa Couto,
que sabidamente mantinha correspondência com D. Miguel. Este lhe respondeu
que D. Miguel não estava em Portugal, e sim na Itália. O padre Rocha, então,
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A brasileira de Prazins
justificou o porquê de sua pergunta, narrando ao colega a armadilha em que
estava caindo Cerveira Lobo. Os dois padres concordaram que o falso D. Miguel
deveria ser denunciado às autoridades.
Feita a denúncia, uma escolta de infantaria cercou a casa do abade de Calvos, enquanto todos ainda estavam dormindo. Despertados pelas coronhadas e
pelos gritos dos soldados, o abade tentou esconder o rei na adega, mas este foi
encontrado e recebeu voz de prisão.
O abade tentou proteger o rei, convencido que estava de sua legitimidade,
e, sem que ninguém percebesse, colocou no bolso do casaco do prisioneiro o
dinheiro das Botelhas. Os soldados levarem como provas do crime papéis em
que constavam os nomes e as nomeações decretadas pelo falso rei.
Capítulo X
Daí a pouco fez-se um torvelinho de povo à porta do Governo Civil. A soldadesca
afastava a multidão com frases persuasivas de coronha de arma. Formou-se a escolta,
e o preso saiu, de rosto levantado e afoito, rara a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com
uma ansiedade aflitiva. –Que se parecia... e ia jurar que era ele! – quando um realista
convencionado e que estava no grupo, o major de Vila Verde, disse com um desdém de
achincalhação:
– Olha quem ele é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!
– Quem é? quem é? –perguntavam todos.
– É o Veríssimo, foi furriel [graduação militar entre cabo e sargento] da minha
companhia, andou com o Remexido, [José Joaquim de Sousa Reis, líder revolucionário realista que certa vez atacou o quartel de São Bartolomeu de Messines], e
safou-se de Messines com o pré [o dinheiro] dos guerrilhas.
O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe à orelha:
– Ouviste, ó Zeferino?
– Estou banzado! –murmurou o outro.
– Olha que espiga! três contos! hem?
– Raios parta o Diabo! – disse o pedreiro, numa síntese condensada da sua incomensurável angústia.
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Em Braga, sede do Governo Civil da região, estavam presentes Zeferino das
Lamelas e Cerveira Lobo com três contos de réis para entregá-los ao rei, quando
chegou a notícia da prisão do falso D. Miguel. Quando exposto aos olhares dos
populares, Cerveira percebeu certa semelhança entre o prisioneiro e o rei, mas
foi logo dissuadido por um dos presentes que reconheceu o falsário.
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
O falsário era Veríssimo Borges, que havia estudado em Coimbra, abandonando os estudos em nome da política. Tornou-se militar e combateu em
prol dos miguelistas. Tendo ferido a perna, durante uma batalha no porto,
passou a coxear, o que o tornou ainda mais parecido com D. Miguel, pois este
coxeava levemente.
Com a vitória dos liberais, Veríssimo Borges voltou para casa e encontrou
o pai em situação financeira comovedora. Impossibilitado de viver com o pai,
passou a viver sob os cuidados de uma tia viúva, D. Águeda, que pensou em
fazer do sobrinho um padre. Veríssimo, pensando na vida farta que os padres
levavam, decidiu seguir a vida religiosa.
Em Braga, para onde se transferiu, reencontrou Torcato Nunes, antigo
companheiro militar. Os laços de amizade se estreitaram e, quando surgiu a
guerrilha de José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, os amigos forem servir a
causa revolucionária.
Veríssimo pediu à tia dinheiro para quitar as despesas do sacerdócio e
partiu em defesa de D. Miguel. Mais uma vez os miguelistas foram derrotados
e Veríssimo retornou à casa de sua tia D. Águeda, não sem antes roubar o “pré”
(os vencimentos dos militares sem patente).
Em um curto espaço de tempo, morreram o pai e a tia, e a herança desta
lhe permitiu uma vida abastada. Mandou chamar o amigo Torcato Nunes e, em
dois anos, conseguiu dilapidar a herança da tia e voltar à pobreza. Tentou a vida
como amanuense, escudeiro, feitor, mas o envolvimento com mulheres obrigou-o
constantemente a mudar de ofício. Acabou fugindo com Libânia para o Porto,
onde tentou ser professor. Um dor de dentes da mulher, entretanto, inspirou-o a
tornar-se dentista. Na cidade do Porto, reencontrou seu amigo Torcato Nunes.
Durante um jantar com Veríssimo e Libânia, Torcato Nunes reparou na
semelhança existente entre Veríssimo Borges e D. Miguel e resolveu criar um
plano para tirar proveito de tal semelhança. Libânia ficaria empregada num tear,
enquanto os amigos, depois de venderem o que possuíam, seguiriam para Póvoa
de Lanhoso e para São Gens de Calvos.
Capítulo XI
O Torcato, antes de entrar em casa, foi à residência. Ia misterioso, circunvagava uns
olhares cautelosos: – se ninguém o ouviria? – perguntava ao abade Mairos.
E o abade, entrepondo as cangalhas nas páginas do breviário: – Pode falar, que
estou sozinho. Que é?
– D. Miguel I está em Portugal – disse, curvando-se-lhe ao ouvido, com uma voz
gutural.
30
A brasileira de Prazins
– Você que me diz?! Como sabe isso? Pataratas!
– Chego agora do Porto; estive com o escrivão fidalgo, o Ferreira Rangel, e com
o abade Gonçalo Cristóvão. El-rei está nesta província. Desconfia-se que é em Braga,
e o José Alvo Balsemão disse-me que talvez eu o visse brevemente no nosso concelho,
porque o levantamento há-de começar por aqui.
– Que me diz você, amigo Torcato? – sacudia os braços, fazia estalar os dedos
como castanholas, tinha gestos mudos de exultação extática – que ia escrever ao abade de
Priscos, que indagasse, que aparecesse... – É preciso trabalhar, preparar os ânimos...
– Chitão! – acudiu o Nunes com o dedo a prumo sobre o nariz. – Nada de espalhafato! Não ferva em pouca água, abade. Se der à língua, esbarronda-se o negocio. O rei
só há-de aparecer aos seus amigos quando os generais entrarem pela Galiza. Não fala a
ninguém; não se dá a conhecer. Diz que só falara em Lisboa com o conde de Pombeiro e
com o Bobadela, e no Porto com o José António, o morgado do Bom Jardim, e mais com
o padre Luís do Torrão... O abade conhece.
– Pois não conheço? como as minhas mãos; é o vice-rei nas províncias do norte...
o nosso bom padre Luís de Sousa, que pelos modos está nomeado patriarca de Lisboa...
Que pechincha, hem?
– É esse mesmo... Bem! até logo; vou ver a mulher e os filhos a casa, que ainda
lá não fui. Um abraço, amigo abade! Parabéns! A choldra vai cair! Vida nova! Daqui
a um mês está todo esse Minho em armas, e ei rei à frente dos seus vassalos. Outro
abraço, e viva el-rei!
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Na casa do padre Marcos, de modo sigiloso, Nunes o advertiu-o de que o
levante do Norte estava por estourar, pois D. Miguel estava de volta a Portugal.
A notícia deveria permanecer em segredo, caso contrário poderia atrapalhar os
planos do rei.
Veríssimo Borges hospedou-se em Lanhoso, dizendo ser um viajante de
terras distantes. O proprietário da estalagem convidou o hóspede a assistir a
uma comédia intitulada Médico fingido, na qual seu filho fazia o papel de namorado. Veríssimo aceitou o convite e assistiu à peça em um camarote. Seu amigo e
cúmplice Nunes estava presente no espetáculo, em companhia do padre Marcos.
Este reconheceu em Veríssimo a figura do rei D. Miguel.
Como estava chovendo, o padre Marcos convidou o suposto rei para abrigar-se na sua residência, em Calvos. Aceito o convite, Veríssimo passou a noite
na casa do padre. Como na manhã seguinte a chuva persistia, o padre pediu ao
Nunes que buscasse a bagagem do seu hóspede na estalagem de Lanhoso. Na
tarde desse dia, o padre Marcos, muito emocionado, ajoelhou-se e disse ao seu
hóspede que o reconheceu, que sabia ser ele o rei D. Miguel.
31
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
Capítulo XII
Depois, bem sabem, senhores, como aquele padre Rocha despenhou abruptamente
o desfecho da farsa, cuidando que vingava a moral e punia com degredo o celerado que
infamava o sacratíssimo nome de el-rei D. Miguel. No trânsito para a Relação, a meia
légua, na estrada do Porto, o Veríssimo, com delicadas maneiras e o seu aspecto venerável, obteve que o sargento da escolta lhe permitisse alugar a mula de um almocreve que
seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com chocalho, sem
estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze praças do 8, entrou ao cair da
tarde em Famalicão.
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Denunciado pelo padre Rocha, Veríssimo foi desmascarado e preso. Como
não havia testemunhas de acusação e o juiz, Fortunato Leite, era um antigo amigo
de Norberto Borges, pai de Veríssimo, este foi absolvido.
Em liberdade, Veríssimo e Nunes viviam sob a proteção de Fortunato Leite.
Quando em 1846 ocorreu uma luta entre os liberais (liberais radicais e liberais
conservadores), os dois tomaram o partido de Fortunato Leite, que era um liberal conservador. Terminadas as discórdias entre os liberais, Nunes conseguiu o
posto de “escrivão de direito” e Veríssimo tornou-se fiscal e em seguida diretor
de alfândega.
Capítulo XIII
O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os três contos de réis, foi
para as Lamelas, e entrou de noite, para que o não vissem. Ele tinha-se gabado aos
vizinhos de que estava despachado sargento-mor e seu pai coronel reformado. Ao José
Dias de Vilalva e mais ao pai, que era regedor, mandara-lhes dizer que eles brevemente
haviam de topar com o seu homem. Da Marta de Prazins dizia trapos e farrapos. A
sua paixão não tinha outro respiradouro. Além disso, não podia esquecer-se da nádega
exposta pelo cão às descompostas gargalhadas da rapariga. Era uma vergonha crónica.
E, para remate de desastres, voltava para as Lamelas, a ouvir as rabugices do pai que
lhe chamava cavalgadura – que se deixasse de política e fosse fazer paredes, que é o
que ele sabia.
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Concluída a história do falso D. Miguel, Zeferino, envergonhado, retornou
para Lamelas. Ele havia contado para várias pessoas que ganhara a patente de
sargento-mor do próprio D. Miguel. Para maior tristeza, ficou sabendo que Marta
e José Dias eram amantes.
32
A brasileira de Prazins
Simeão, o pai de Marta, aprovou a união. A mãe de José Dias, entretanto,
era contra, porque acreditava que Marta teria herdado o comportamento doentio da mãe, Genoveva de Prazins, que era epiléptica e adúltera e morrera louca,
atirando-se no rio Ave.
Como a notícia de que José Dias e Marta eram amantes espalhou-se rapidamente, Maria de Vilalva, mãe de José Dias, passou a prender o filho à noite
num quarto sem janelas.
José Dias pediu a seu confessor, o padre Osório, que intercedesse a seu
favor junto à mãe. O padre tentou demover Maria de Vilalva de sua ideia fixa,
mas não obteve êxito.
Amargurado e doente do pulmão, José Dias estava pressentindo que
viverá pouco.
Capítulo XIV
Em Março daquele ano, 1846, os setembristas de Braga fomentaram os motins
populares do concelho de Lanhoso. Na Inglaterra, na câmara dos comuns, lorde Bentinck explicou tragicamente, em frases pomposas, a origem dessa revolução, que um
desdém indígena chamou “rebelião da canalha”. Ele disse que os Cabrais mandaram
construir cemitérios; mas não os muraram; de modo que entravam neles cães, gatos e
porcos-bravos em tamanha quantidade que chegaram a desenterrar os cadáveres1. As
nações e os naturalistas deviam formar uma idéia assaz agigantada do tamanho dos
gatos portugueses que desenterravam cadáveres, e das boas avenças dos nossos cães
com os referidos gatos na obra da exumação dos mortos, e não menos se espantariam da
familiaridade dos javalis que vinham do Gerês colaborar com os cães e gatos naquela mineração das carnes podres das terras de Lanhoso. A origem pois da insurreição nacional
de 1846 está definida nos fastos da Europa revolucionária. Foi uma reação, uma batalha
social à canzoada e gataria confederadas com o focinho profanador de porco-montês.
E daí procedeu escreverem os jornalistas da Alemanha, um país sério, que a revolução
do Minho era o “tipo da legalidade”. Os cadáveres servidos nos banquetes ilegais e
nocturnos dos javalis, com a convivência de gatarrões a rosnarem com o lombo eriçado, e molossos de colmilhos [cães ferozes] ensanguentados foi caso que impressionou
grandemente as raças tudescas, por ser um acto proibido pela Carta Constitucional.
Quer fossem os setembristas de Braga, quer a alcateia das feras coligadas, o certo é que
a insurreição do Alto Minho talou esta província e a transmontana, devastando as
papeletas impressas e os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos gatos
e seus cúmplices fez sofrer ao capital do país uma diminuição de 77 milhões e meio de
cruzados, segundo o cálculo do ministro da Fazenda Franzini, muito retrógrado, mas
um génio no algarismo.
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1
Carta dirigida ao cavalheiro José Hume. Versão de Antônio Pereira dos Reis, 1847, p. 99.
33
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
Em março de 1846, teve início uma revolta popular que ficou conhecida
como Maria da Fonte. O governo português criou uma lei que proibia o enterro
de pessoas nas igrejas, determinando que os sepultamentos fossem realizados
nos cemitérios. Ao norte de Portugal, na região do Minho, Maria da Fonte liderou as mulheres em revolta contra essa lei. A revolta ganhou amplitude e alguns
oportunistas aproveitaram-se dela para tentar restaurar a monarquia e colocar
no poder o rei exilado D. Miguel.
Zeferino das Lamelas passou a liderar um grupo de vadios e a perseguir
os que apoiavam o atual governo. Na verdade, o plano de Zeferino consistia em
matar ou prender José Dias, para afastá-lo de Marta.
Ciente das intenções de Zeferino, o pai de José Dias convenceu-o a fugir.
Joaquim de Vilava, pai de José Dias, foi preso, mas conseguiu fugir e encontrar-se
com o filho em Braga.
Nesse meio tempo chegou a Portugal Feliciano de Prazins, irmão de Simeão, pai
de Marta. Simeão, ciente da fortuna do irmão, fez planos de casá-lo com Marta.
Feliciano, virgem aos quarenta e sete anos, sentiu nascer o amor pela sobrinha de dezesseis anos. Quando Zeferino soube das intenções de Feliciano em
se casar com Marta, quis prendê-lo, mas Feliciano foi para a cidade do Porto.
José Dias e seu pai continuaram em Braga. Simeão pressionava a filha a se
casar com Feliciano. Marta se recusa, veementemente.
José Dias escreveu a Marta, prometendo-lhe casamento. Contava com a
ajuda do padre Osório para a realização de seu intento.
De volta para sua casa, em Vilalva, sempre amparado pelo padre Osório,
José Dias vem a falecer. Até o momento final, manifestou profundo ódio pela
mãe por esta não ter consentido o casamento.
Em Prazins, ao saber da morte do amado, Marta tentou cometer suicídio,
atirando-se no rio Ave, como o fizera sua mãe. Socorrida por pessoas que estavam
próximas, Marta teve uma convulsão e perdeu os sentidos.
Capítulo XV
O Simeão de Prazins tinha sido antigamente regedor um ano; depois, caído o ministério e o governador civil que o nomeara, voltou ao poder o Joaquim de Vilalva, cartista
puritano, com a restauração da Carta. Duas restaurações boas. O Simeão lembrava-se
com saudades da sua importância no ano em que governara a freguesia – o respeito dos
rapazes recrutados, as considerações dos taverneiros, que davam jogo em casa, das raparigas solteiras que andavam grávidas, a autoridade do seu funcionalismo na junta de
paróquia, etc. Ora, como o Joaquim de Vilalva, desgostoso e doente com a morte do filho,
pedira a demissão, o administrador nomeou a regedoria no de Prazins. O brasileiro achou
que era bom ter de casa a autoridade para maior segurança dos seus cabedais e pessoa.
Foi uma desgraça.
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34
A brasileira de Prazins
Quando o governo conseguiu colocar fim à revolta chamada Maria da
Fonte, Zeferino assistiu à morte de Cerveira Lobo durante uma fuga comandada
por um escocês a serviço da causa miguelista. Desconsolado, retornou à casa do
pai, onde lamentou sua triste sina.
Em função do estado de saúde do filho, Joaquim de Vilalva afastou-se do
cargo de regedor, que já havia sido ocupado pelo pai de Marta. Com seu afastamento, Simeão de Prazins voltou a exercer o cargo.
O governo, no intuito de desarmar a população, determinou que as autoridades regionais recolhessem as armas nas regiões mais rebeldes, entre elas
Lamelas. Simeão, à frente de um batalhão militar, invadiu a casa de Zeferino e
apreendeu as armas de fogo. O sargento do destacamento pretendia confiscar,
inclusive, a famosa espada de Gaspar, mas acabou desistindo ante as lágrimas
do velho inválido. Zeferino, que no momento da invasão havia fugido, quando
soube do ocorrido, manifestou todo seu ódio contra Simeão.
Na semana seguinte, quando Simeão retornava de Famalicão, onde fora fazer negócios para Feliciano, foi violentamente agredido por homens mascarados.
Os dois homens que acompanhavam Simeão conseguiram fugir e denunciaram
o crime no vilarejo mais próximo. Socorrido, Simeão foi levado sem esperanças
para casa. Marta, ao ver o pai banhado em sangue, desmaiou. Quando acordou,
ouviu o padre dando a extrema-unção ao seu pai.
As suspeitas da tentativa de homicídio recaíram sobre Zeferino. Tamanha
era a certeza da autoria do crime que uma vizinha, invadindo o quarto de Marta,
gritou-lhe que o responsável por aquilo era o pedreiro.
Tomada pelo remorso por acreditar ser ela o motivo da vingança de Zeferino, Marta fez várias promessas pedindo pela vida do pai. Numa madrugada,
quando Marta, padre Osório, D. Teresa e Feliciano cuidavam do enfermo, este
pediu à filha que se casasse com Feliciano. Marta disse que sim e, em seguida,
sofreu uma convulsão.
O médico acreditava que Marta herdara a epilepsia da mãe.
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Capítulo XVI
Relatava o vigário de Caldelas:
– O cérebro do Simeão, se era refractário aos golpes da dignidade, não era mais
sensível às comoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto à cabeça: nem honra nem
predisposições inflamatórias. Cicatrizou a ferida; começou a comer galinhas com a
fome de um canibal e com o prazer carnívoro de uma raposa. Dera tacitamente Marta
o consentimento de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e,
se minha irmã lhe tocava nesse assunto, dizia: – Quanto ao casamento – prosseguiu o
padre Osório – eu cismava se a primeira noite nupcial seria a véspera de escandalosas
desavenças, arrependimentos, choradeiras, divórcio, vergonhas, coisas; mas ocorria35
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
me que Feliciano me confessara repetidamente que saíra da sua aldeia aos doze anos e
tornara casto e puro como saíra. E eu então, atendendo a que a castidade, além de ser
em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas ignorâncias anatómicas, e umas inconscientes condescendências com as impurezas alheias, descansava, tranquilizava o meu
espírito escrupuloso. Uma falsa compreensão da honra alheia às vezes me aconselhava
que mandasse o brasileiro conversar sobre o assunto com o operário que o luar enganara em certa noite; mas a honra, como a consciência, não são quantidades constantes
no geral das pessoas; são condições da alma tão variáveis como a matéria exposta às
mudanças climatéricas. Ora as condições mentais e morais de Feliciano Prazins eram
as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que direito ia eu estragar
aquele excelente organismo?
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Simeão resistiu aos ferimentos e sobreviveu. Receoso de sofrer novo ataque
de Zeferino, preferiu não prestar queixa judicial contra o pedreiro.
Zeferino, imerso em desgosto amoroso, entregou-se à bebida e ao jogo.
Quando soube do casamento de Marta com Feliciano, enviou ao noivo uma carta
anônima, denunciando os encontros amorosos entre Marta e José Dias. A carta
terminava com uma ameaça ao noivo.
Intimidado com as ameaças do pedreiro, Feliciano resolveu dar um fim
trágico àquela situação: procurou por Francisco Melro e ofereceu-lhe uma casa
pela vida de Zeferino.
Na noite em que saiu para matar Zeferino, Francisco Melro presenciou uma
briga na qual o pedreiro caiu vitimado por um golpe de faca. Relatou o ocorrido
a Feliciano, no dia seguinte, dizendo que o pedreiro não morrera por suas mãos.
Mesmo assim, Feliciano cumpriu a palavra, pagando Melro com uma casa.
Capítulo XVII
A Marta, numa tristeza inalterável, desde que saiu da igreja. Ao fim da tarde,
fechou-se com D. Teresa no seu quarto, abriu o baú, e tirou do fundo o pacotinho das
cartas do José Dias, e disse-lhe:
– A senhora há-de guardá-las; e, quando eu morrer, queime-as, sim?
– E se eu morrer adiante de ti? – perguntou D. Teresa risonha.
– Diga então ao Sr. Padre Osório que as queime: porque olhe – e abraçou-se nela a
chorar, a soluçar – eu... eu morro, ou endoideço. Cheguei a esta desgraça; estou casada para
fazer a vontade a meu pai, cuidando que ele morria; não sei como hei-de sair disto senão
acabando de vez ou perdendo o juízo como a minha mãe... bem sabe como ela acabou.
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36
A brasileira de Prazins
Numa propriedade adquirida pelo “brasileiro” Feliciano de Prazins, na
capela da quinta da Retorta, celebrou-se o seu casamento com Marta. Durante a
festa, temendo ficar na companhia do noivo, Marta não se afastou de D. Teresa,
irmã do padre Osório, queixando-se de visões estranhas e dores. Quando advertida pelo pai para ir deitar-se com o marido, Marta teve uma convulsão.
Após a crise, Marta dormiu no quarto de D. Teresa, ficando Feliciano sozinho na noite de núpcias.
Entretanto, Marta não conseguiu evitar por muito tempo o marido, que
aos poucos acabou por possuí-la. Ela, então, contou à irmã do padre Osório que,
enquanto o marido a beijava, tinha visto José Dias.
O médico que veio para consultar a esposa de Feliciano não deu importância para as circunstâncias do ocorrido na primeira noite do casal, chegando
mesmo a aconselhar Feliciano, como medida terapêutica para a esposa, que
proporcionasse a ela uma gravidez.
O transcorrer do tempo só faz agravar a moléstia da enferma. Durante as
crises, Marta dava gargalhadas e chamava o marido de José. O padre Osório
consultou um grande clínico, que conhecia a família Prazins, e este lhe disse que
considerava Marta um caso perdido.
Capítulo XVIII
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“Marta, a beata, a senhora brasileira de Prazins, como lhe chamavam as regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado; mas sobre todos
os devocionários o da sua leitura dilecta era o Pecador Convertido ao Caminho da
Verdade, edição do seu confessor varatojano, Frei João de Borba da Montanha.
São impenetráveis os segredos revelados no tribunal da penitência por Marta ao
seu director espiritual. O padre Osório, não obstante, suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciência, solicitada por miúdas averiguações do missionário,
saudades, reminiscências sensualistas, carnalidades que se lhe formalizavam no espírito
dementado, enfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o padre a sua conjectura,
sabendo que Frei João lhe mandara ler no Pecador Convertido, três vezes por dia, o
capítulo 33, intitulado Resistência às tentações contra a castidade. Fortalecia esta
hipótese ter dito Marta a D. Teresa que a alma de José Dias lhe aparecia em sonhos; e
às vezes, mesmo acordada, lhe parecia senti-lo na cama à sua beira; e então mordia o
travesseiro para que o tio a não ouvisse chorar. Pode ser que estas revelações, comunicadas ao confessor, um simplório incapaz de destrinçar entre doença e pecado, fossem
acompanhadas de particularidades sensitivas que Marta por vergonha não contava à sua
amiga. É certo que a confessada do varatojano lia, declamando, diante do seu oratório,
três vezes, por dia, a Resistência às tentações contra a castidade.
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37
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
Marta, a cada dia, tentava encontrar algum conforto na religião, apegandose, sobremaneira, ao seu novo confessor, o Frei João Borba da Montanha, famoso
por praticar exorcismos.
A “brasileira de Prazins” tinha visões com José Dias e desejos de amor
físico pelo amante morto, o que foi interpretado pelo seu confessor como provas
inequívocas da presença do diabo, que havia adquirido a forma de José Dias para
instigar Marta à luxúria para poder possuí-la. Era necessário, portanto, realizar
o exorcismo.
Capítulo XIX
O confessor não podia explicar-se. O seu praxista Brognolo [autor de um manual de exorcismo], ampliado pelo padre-mestre arrábido Frei José de Jesus Maria,
admoestava-o a ocultar de terceiras pessoas os sinais evidentes da obsessão de uma
alma, sem estar devidamente aparelhado para o combate e na presença do inimigo.
O aparelho, neste caso, era a estola, a água benta, o latim – uma língua familiar ao
Diabo. Além dos preceitos da arte, havia a inviolabilidade do segredo da confissão; e
uma caridade decente aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adúlteras do
demônio incubo [demônio que surge nos pesadelos das mulheres instigando-as
a praticar o pecado], figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigário de
Caldelas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a brasileira de Prazins
estava possessa, muito gravemente energúmena [possuída pelo diabo]. O padre
Osório abriu um sorriso importuno, destes que vêm de dentro em golfos involuntários
como a náusea de um embarcadiço enjoado. O egresso reparou no trejeito herético da
boca do padre, e perguntou-lhe se tinha alguma dúvida a pôr.
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Familiarizado que estava com o histórico de Marta, o padre Osório discordava das interpretações diabólicas do Frei João de Borba da Montanha. Padre
Osório tinha uma visão mais realista e racionalista dos problemas da enferma,
acreditando que Marta tivesse alguma doença mental, enquanto Frei João Borba
atribuía todos os sintomas da enferma a trabalhos do diabo, acreditando ser a
prática do exorcismo o único método eficiente para auxiliá-la.
A notícia de mais uma crise de Marta interrompeu a discussão dos religiosos.
Capítulo XX
Marta estava no quarto, onde tinha o seu oratório de pau-preto com frisos dourados, e dentro uma antiga escultura em marfim de um Cristo dignamente representado
na sua agonia humana. De cada lado da cruz ardia uma vela de cera benzida. Frei João
38
A brasileira de Prazins
entrara de sobrepeliz e estola: seguiam-no o Feliciano com uma vela de arrátel acesa, e o
Simeão com a caldeirinha da água benta. Marta, com um pavor na vista, tremia, de pé,
encostada à cómoda. O exorcista sentou-se, e chamou a energúmena com um gesto imperativo de cabeça. Ela aproximou-se hesitante e ajoelhou. Frei João compôs o semblante e
deu à voz uma toada lúgubre em conformidade com a rubrica de Brognolo – com grave
aspecto e voz horrível, diz o demonómano. Começou por exercitar o Preceito provativo, a ver se havia efectivamente demónio. E então bradou, fazendo estremecer Marta:
In nomine Jesu Christi. Ego Joannes est minister Christi... Vinha a dizer, em
vulgar, ao Demónio ou aos espíritos imundos, vel vobis spiritis inmundis, que, se
estavam no corpo daquela criatura, dessem logo um sinal evidente, ou vexando-a, ou
movendo-lhe os humores, segundo o seu costume, pelo modo que por Deus lhe fosse
permitido: eo modo quod a Deo juerit permissum. Marta estava retransida de um
sagrado horror, posto que não percebesse do latim do padre senão demónio e espíritos
imundos. Nunca lhe tinham dito que ela estava endemoninhada, e à sua mentalidade
faltava-lhe neste lance a força convincente e a energia da palavra para combater o
engano do seu confessor. Não tinha vigor de carácter nem rudimentos de inteligência
para reagir. Educada em melhores condições, sucumbiria com a mesma vontade inerte
sob a violência do confessor. Há condescendentes humildades mais vergonhosas sem
o diagnóstico da demência que as desculpe. Ela estava de joelhos; mas, não podendo
suster-se, sentou-se num arfar de suspiros, ansiada, até que as lágrimas lhe explodiram
numa torrente.
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Acompanhado por Simeão e Feliciano, Frei João realizou uma série de
sessões de exorcismos, que apavoraram ainda mais a enferma. Marta, sem compreender o ritual, sentia-se constrangida e assustada com os gestos e as palavras
de Frei João. Tratada como se fosse o próprio demônio, apavorada com os gritos
em latim do Frei João, Marta entrou em surto epiléptico, o que foi interpretado
pelo exorcista como evidência da presença do diabo. Por fim, em meio a uma
sessão brutal, Marta perdeu os sentidos e desmaiou. O religioso interpretou seu
desmaio como vitória sobre satanás.
Na manhã do dia seguinte, Marta fugiu da Retorta, correndo como louca
nas proximidades da casa do padre Osório.
Ao saber do exorcismo realizado, o médico de Marta disse ao Frei João
“injúrias que o frei não tinha dito ao diabo”.
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Conclusão
Marta regressou com D. Teresa, alguns dias depois. O brasileiro conveio no tratamento hidropático da esposa; e a compadecida irmã do vigário ofereceu-se como enfermeira
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
da pobre senhora que se abraçava nela com medo imbecil, a pedir-lhe que a não deixasse,
que a defendesse do missionário.
D. Teresa assistiu ao nascimento da primeira filha de Marta. Imaginava a irmã
do vigário que no espírito da mãe se havia de operar uma benigna mudança; que o amor
à filha seria diversão à saudade de José Alves; mas a medicina não esperava alteração
sensível, porque era matéria corrente nos tratados alienistas que um cérebro lesado não
se restaura sob a impressão do amor maternal, que só actua nas organizações normais.
Porém, D. Teresa não podia crer que Marta estivesse confirmadamente louca, posto que
nas suas conversações em que, raras vezes, se interessava, disparatasse, afirmando que
via a alma de José Alves, como quem conta um caso trivial.
Quando lhe mostraram a filha recém-nascida, contemplou-a alguns segundos;
mas nem balbuciou uma palavra carinhosa, nem fez gesto algum de contentamento.
A amiga dizia-lhe coisas muito meigas da filhinha, a ver se lhe espertava o coração.
Punha-lha nos braços, dava-lha a beijar. Marta cedia com tristeza e constrangimento,
beijando a filha como se fora uma criança alheia. A ama ia dizer às criadas que a brasileira era uma cafra, que não podia ver o anjinho do Céu.
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Após alguns dias, D. Teresa levou Marta para a Retorta. O marido desistiu dos exorcismos e concordou em dar-lhe um tratamento à base de água,
chamado hidropático.
Quando nasceu a primeira filha de Marta, D. Teresa teve esperanças de vêla melhorar. Embora as crises epilépticas diminuíssem, continuava a ter visões
com José Dias. Mas as esperanças de D. Teresa cedo se frustraram, pois Marta
recebeu a filha como se fosse uma criança alheia e os delírios com o amado morto
tornaram-se frequentes.
Feliciano entregou-se quase que exclusivamente aos negócios, chegando
mesmo a arrepender-se do casamento com a sobrinha. Chegou a imaginar, inclusive, que a viuvez não seria um mau negócio. Entretanto, quando a esposa
manifestava alguma calma, Feliciano a procurava para saciar os desejos que ele
tinha. Assim, em sete anos, Marta deu à luz cinco filhos.
Após a morte de D. Teresa, em 1848, Marta nunca saiu da Retorta, chegando
aos cinquenta e três anos completamente indiferente aos cinco filhos, que, aliás,
pareciam ter recebido parte da herança genética da mãe.
O padre Osório estava terminando seu relato ao autor quando avistou
Feliciano de Prazins, que, aos oitenta e quatro anos, embora fosse milionário,
tinha a aparência de um pobre coitado. O padre concluiu sua história com uma
ironia, dizendo-lhe que a fortuna de Feliciano ainda poderia prosperar muito,
“porque o velho Alexandre Dumas disse que os egoístas e os papagaios viviam
cento e cinquenta anos”.
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A brasileira de Prazins
P.S.
Com os subsídios ministrados pelo cura de Caldelas compus esta narrativa,
espraiando-me por acessórios do duvidoso bom senso, cuja responsabilidade declino dos
ombros daquele discreto sacerdote. Tudo que neste livro tem bafio de velhas chalaças,
ironias e sátiras é meu; e, se alguém por isso me arguir de pouco respeitador do vício
e da tolice, retiro tudo.
Se o meu condescendente informador me permite, ouso dizer-lhe – para nos
esquivarmos ambos às insídias da crítica portuguesa – que a demência de Marta não é
extremamente original nem o meu romance uma singularidade incontroversa. O que,
sem disputa, é original, é duvidar eu de que o sou.
Num Conto de Charles Nodier, autor remoto que se perde no crepúsculo da literatura arqueológica, há uma LÍDIA que endoideceu quando o marido, um barqueiro
de limpo nascimento e generosa índole, pereceu num incêndio salvando três crianças
e sua mãe.
Lídia enlouquece e cuida que seu esposo está no Céu de dia e a visita de noite.
Ela, desde o repontar da aurora, sai ao jardim, e colhe flores para o brindar quando ele
desce do azul com asas de penas de ouro. Ao cabo de seis anos deste sonhar delicioso, a
ditosa doida, quando andava a recolher as flores dilectas para o bouquet das núpcias
com o anjo de cada noite, sentou-se em dulcíssima sonolência e expirou.
As analogias de Lídia e Marta frisam pela visão dominante na demência de ambas
– uma espécie de ressurreição do amado. No que elas diversificam essencialmente é que
uma sonhou seis anos e a outra vai no trigésimo sétimo da sua demência; Lídia sonhou
absorvida na sua ideal aliança com um celícola, um bem-aventurado com asas de ouro;
Marta quando imerge alucinada no seu letargo, é a paixão leal ao amado sempre vivo
na terra e no seu coração. Lídia passa as noites em amplexos do marido celestial; Marta,
sem consciência da sua vida orgânica, tem cinco filhos, como se arrancasse de si a porção
ignóbil de seu ser e a rejeitasse ao sevo sensual do marido, ressalvando a alma dessa inconsciente materialidade. Quer-me, portanto, parecer que não há nódoa de plagiato no
meu livrinho – uma coisa original como o pecado.
O leitor pergunta:
– Qual é o intuito científico, disciplinar, moderno, deste romance? Que prova o conclui? Que há aí proveitoso como elemento que reorganize o indivíduo ou a
espécie?
Respondo: Nada, pela palavra, nada. O meu romance não pretende reorganizar
coisa nenhuma. E o autor desta obra estéril assevera, em nome do patriarca Voltaire,
que deixaremos este mundo tolo e mau, tal qual era quando cá entrámos.
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São Miguel de Seide, Dezembro de 1882.
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
O narrador colocou uma nota final para lembrar o leitor que a história narrada não é de sua autoria, mas do padre Osório. Afirma que apenas acrescentou
notas irônicas e satíricas. Procurou também livrar-se da acusação de plágio, embora
reconheçendo que a demência de Marta não era original. Comparou a demência
de sua personagem com a de um autor francês, Charles Nodier, chamada Lídia,
apontando as semelhanças entre ambas, mas frisando, sobretudo, as diferenças.
Ao final de seu Post-Scriptum, o narrador respondeu a uma pergunta dos
leitores da época sobre a finalidade do intuito científico do romance, dizendo-lhes
que o livro não tinha nenhuma pretensão, nem objetivava nenhuma mudança
na vida do indivíduo ou da espécie.
5.Exercícios
1.
No início do romance A brasileira de Prazins, de
Camilo Castelo Branco, Simeão, pai de Marta, faz um acordo com Zeferino das Lamelas.
Responda:
a)De que acordo se trata?
b)Por que Simeão não cumpriu o acordo?
2.
Em A brasileira de Prazins, duas narrativas são desenvolvidas com certa autonomia. Responda às seguintes questões:
a) Quais são as duas narrativas?
b) Quais são os pontos de ligação entre as duas narrativas?
Texto para a questão 3
Marta, a beata, a senhora brasileira de Prazins, como lhe chamavam as regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado; mas sobre todos os
devocionários o da sua leitura dilecta era o Pecador Convertido ao Caminho da
Verdade, edição do seu confessor varatojano, Frei João de Borba da Montanha.
a) Por que Marta era chamada de “a senhora brasileira de Prazins” ?
b) Frei João Borba da Montanha, após ouvir certas confissões de Marta, viu
apenas uma solução para seu caso. Qual foi a solução encontrada pelo frei?
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A brasileira de Prazins
4.
Em A brasileira de Prazins, um personagem funciona como elo entre as duas narrativas da obra. Trata-se de:
a)Marta.
b) Feliciano de Prazins.
c)Simeão.
d)José Dias.
e) Zeferino das Lamelas.
5.
D. Maria de Vilalva, mãe de José Dias, faz drástica oposição ao casamento de seu
filho com Marta. A razão dessa oposição deve-se:
a) ao fato de D. Maria de Vilalva atribuir à Marta os mesmos sintomas de comportamento da mãe, que era epiléptica e adúltera.
b) ao fato de D. Maria de Vilalva saber do envolvimento entre Marta e Zeferino
das Lamelas.
c) à formação de D. Maria Vilalva, que era fervorosamente católica e desejava
que seu filho fosse padre.
d)à inferioridade econômica da família de Marta.
e) ao fato de Simeão já ter prometido sua filha a seu irmão Feliciano.
6.
Com os subsídios ministrados pelo cura de Caldelas compus esta narrativa, espraiando-me
por acessórios do duvidoso bom senso, cuja responsabilidade declino dos ombros daquele
discreto sacerdote. Tudo que neste livro tem bafio de velhas chalaças, ironias e sátiras é meu;
e, se alguém por isso me arguir de pouco respeitador do vício e da tolice, retiro tudo.
No fragmento acima, extraído do P.S. (post-scriptum) do livro A brasileira de Prazins,
o narrador afirma não ser ele o verdadeiro autor da história narrada. Segundo
ele, a autoria do relato pertence:
a) à Marta, a brasileira de Prazins.
b) a padre Osório.
c) a Zeferino das Lamelas.
d)à D. Teresa, irmã do padre Osório.
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e) a Simeão, pai de Marta.
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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
GABARITO
1.
a) Simeão havia negociado o casamento de sua
filha Marta com o pedreiro Zeferino das Lamelas. Zeferino quitaria as dívidas de Simeão
e receberia Marta como noiva.
b)O ambicioso Simeão não cumpre o acordo ao
saber que seu irmão “brasileiro” retornaria
a Portugal. Como Feliciano está milionário,
Simeão prefere que a filha se case com o tio.
2.
a) As duas narrativas são: a história de amor
entre Marta e José Dias e a história do falso
rei D. Miguel.
b) A ligação entre as duas narrativas deve-se
ao espaço e ao tempo, pois ambas ocorrem
no norte agrário de Portugal, por volta
de 1840. Também a personagem Zeferino
das Lamelas funciona como ponte entre as
duas narrativas.
3.
a) Marta é chamada “brasileira” não por ter
nascido no Brasil, mas por ter se casado
com o “brasileiro” Feliciano de Prazins, um
português que havia feito fortuna no Brasil
e retornado a Portugal. “Brasileiro” era o
termo pelo qual se designava, no século
XIX, o português que vinha ao Brasil fazer
fortuna e depois retornava à pátria.
b) Frei João de Borba da Montanha aponta o
exorcismo como solução para os transtornos
de Marta.
4.E
5. A
6.B
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