POLÍTICAS DA MEMÓRIA DA I GUERRA MUNDIAL EM PORTUGAL 1918-1933 ENTRE A EXPERIÊNCIA E O MITO SÍLVIA CORREIA ___________________________________________________ Dissertação de Doutoramento em História Política e Institucional Contemporânea (JULHO, 2010) AGRADECIMENTOS O presente trabalho resulta de uma prolongada luta, a qual contou com muitos aliados que surgiram ao longo do seu trajecto e da sua construção. Uma primeira palavra de agradecimento para os meus orientadores. Sempre presentes ao longo do processo, souberam transmitir as ideias certas, nos momentos certos. Nuno Severiano Teixeira dispôs-se, desde logo, a guiar este trabalho, problematizando os sucessivos exercícios de investigação com uma vigilância crítica que permitiu fixar a matéria complexa aqui tratada. Ao mesmo tempo, potenciou um espaço efectivo de criação intelectual, ao respeitar a minha liberdade de actuação. José Medeiros Ferreira mediu essa liberdade com observações argutas, transformando, também ele, o desafio da tese numa aventura com vários ritmos. Uma menção especial a todos os que me abriram as portas dos seus fundos, nomeadamente a Liga dos Combatentes, bem como a todos os muitos outros lugares onde a busca de pontas soltas sobre mortos, inválidos e cultos era, à primeira vista, estranha. Um reconhecimento também especial àqueles que contribuíram para enriquecer a aproximação à memória, quer com heranças de familiares, quer com testemunhos orais. A colaboração de responsáveis e funcionários de muitos arquivos, bibliotecas e centros de documentação em Portugal, Reino Unido e França, com especial atenção ao Arquivo Histórico Militar, foi preciosa. Um agradecimento, em particular, às funcionárias e amigas da biblioteca do ICS onde passei um tempo de escrita nem sempre fácil. Seria imperdoável não mencionar aqueles de quem, ao longo desta viagem, recebi os estímulos necessários e uma inestimável solidariedade. Os que, oriundos de muitos e muitos lugares, me acompanharam não só com sugestões de trabalho, mas com o apoio, o carinho e a amizade, parte imprescindível para a realização do projecto. Os que tiveram no coração desta jornada, principalmente aqueles que coabitaram com as minhas deambulações e incertezas. Àqueles que leram e releram este trabalho… Entre residências e viagens, mais do que imprescindíveis com as suas contribuições, foram amigos que ajudaram a construir a pessoa que sou hoje, que me alimentaram a necessária incursão teórica numa ou noutra fase deste trabalho, sem pretensão a não ser a da amizade e a da solidariedade: Daniel Lanero, Eliana Andrade, Valcionir Correia, Miles Patterman, Isabel Sá, Daniel Melo, Vivian Chieregati, Cláudia Castelo, Simone Patterman, Isabel Silva, Nelson Antão, Célia Tavares, Jorge Alberto, Marta Macedo, Inês Brasão, Ana Prata, António Araújo, Joana Fialho, Yvete Santos e Zé Nuno Matos. A estes dois o imenso companheirismo. E, por último, àquele que esteve lá desde a minha saída da Universidade do Minho, abrindo caminhos, sem abandonar o porto de abrigo. Aos meus pais... RESUMO Constituindo um dos acontecimentos mais traumáticos da História do século XX, a Grande Guerra encerra uma afectação global e revolve nevralgicamente todas as sociedades mobilizadas. No âmbito da História Cultural, com uma inevitável aproximação à História Política e Social, são aqui investigadas as políticas de memória da I Guerra Mundial em Portugal (1918-1933), num quadro de referência europeu. Reconhecendo a existência de uma cultura de guerra europeia, homogénea e hegemónica, procura-se perceber a natureza do mito da experiência de guerra em Portugal, numa análise que não pode deixar de considerar as profundas divergências em torno da sua participação no conflito em território europeu, assim como os desastrosos efeitos que determinaram a especificidade do seu processo rememorativo e que o relegaram ao possível estatuto de vencedor mutilado. Numa dialéctica entre memória oficial, pública e de grupo, pretende-se esmiuçar as políticas da memória através dos projectos oficiais de rememoração, pelo cruzamento dos seguintes eixos de análise: os combatentes como protagonistas, da sua integração social à regulamentação associativa; os processos de monumentalização da memória de guerra (formas, ritmos de implantação e rituais de reactualização do seu significado). Eixos que poderão esclarecer algumas questões. Em primeiro lugar, explicar até que ponto a incapacidade da I República em projectar uma consistente política memorial e a incapacidade em lidar com os traumas gerados pela guerra reflectiram a sua fragilidade, tendo precipitado a sua falência em 1926. Em segundo lugar, atendendo à delineação histórica dos espaços públicos de memória, identificar se existiu uma estruturação oficial da concepção memorial na base da legitimação histórica da política republicana. Por fim, a partir da natureza dos processos rememorativos, apreender se a apropriação da experiência da frente pela cultura de guerra alimentou e legitimou o discurso das transformações políticas de Portugal no pós-guerra. Neste sentido, este exercício visa desconstruir, por um lado, a ideia de que a génese dos regimes autoritários de direita acorreu exclusivamente na guerra e, por outro, a noção de que a guerra e a cultura de guerra inauguram uma ruptura de modernidade nas sociedades liberais. ÍNDICE Introdução ............................................................................................................ 1 Capítulo I. Experiência e cultura(s) de guerra: problemas e perspectivas ...... 17 PARTE I OS ANTIGOS COMBATENTES: ENTRE A CELEBRAÇÃO DA VIDA E A INÉRCIA POLÍTICA Capítulo II. Da frente a casa: linhas de rememoração ..................................... 43 II. 1. Guerra total: mobilização e desmobilização .................................................... 45 II. 2. Extractos das experiências e memória de grupo ............................................ 49 II. 2.1. A morte ..................................................................................................... 52 II. 2.2. O voluntarismo: o combatente-cidadão ............................................. 55 II. 3. O retorno e a recepção das tropas: os primeiros formatos comemorativos ..................................................................................................... 59 II. 3.1. Sidónio Pais e a apropriação política da vitória ................................. 60 II. 3.2. O retorno das tropas .............................................................................. 68 II. 3.3. «Em vão busquei um sorriso na multidão…» .................................... 75 Capítulo III. Os combatentes: corpos, identidade e assistência ...................... 79 III. 1. O homem “novo” da guerra .............................................................................. 81 III. 2. As vítimas da guerra: assistência e (des)integração ........................................ 87 III. 2.1. As palavras e as situações ..................................................................... 87 III. 2.2. A assistência em tempo de guerra ...................................................... 89 III. 2.3. Os inválidos e as iniciativas no contexto internacional ................... 92 III. 3. Portugal e os inválidos de guerra: (des)integração, regulamentação e reacção ................................................................................................................. 97 III. 3.1. A Cruzadas das Mulheres Portuguesas e os inválidos ..................... 98 III. 3.2. O Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra de Arroios: ........................................................................................................... 100 Uma experiência de modernização ............................................................ 101 A polémica e o debate em torno do IRMGA ............................................ 105 III. 4. A cobertura legal do inválido ............................................................................. 113 III. 4.1. As reformas legais e o estatuto do inválido .................................... 114 A comissão e o código ................................................................................ 116 A sequência legislativa posterior ................................................................ 119 III. 4.2. Os impasses e as resistências ............................................................. 121 III. 4.3. Os limites da norma e a heterogeneidade de manifestações ....... 129 Capítulo IV. O movimento associativo: organização e reacção....................... 139 IV. 1. A delimitação de uma problemática ............................................................... 140 IV. 2. A Liga dos Combatentes da Grande Guerra: organização ........................ 144 IV. 2.1. A génese da Liga .................................................................................. 144 IV. 2.2. A evolução institucional ..................................................................... 149 IV. 2.3. Os membros e as agremiações .......................................................... 153 IV. 2.4. Os meios financeiros .......................................................................... 156 IV. 3. A Liga dos Combatentes da Grande Guerra: acção .................................... 159 IV. 3.1. A política de assistência ...................................................................... 159 IV. 3.2. Dois apelos ........................................................................................... 164 IV. 3.3. Imprensa e presença (crítica) na praça pública .............................. 166 IV. 3.4. A afirmação da identidade de grupo ................................................ 168 A adesão à Fédération Interalliée des Anciens Combattants ..................... 168 O I Congresso Nacional de Combatentes (1929) ...................................... 171 IV. 4. Uma transição imposta ...................................................................................... 177 IV. 4.1. A Liga e a aglutinação da Cruzada das Mulheres Portuguesas, da Junta Patriótica do Norte e da Comissão dos Padrões da Grande Guerra .................................................................................................................. 177 A Casa dos Filhos dos Soldados da Junta Patriótica do Norte ................. 180 IV. 4.2. As mudanças e o modelo… .............................................................. 188 Capítulo V. O movimento de antigos combatentes em Portugal e a definição pública da memória da Grande Guerra ............................................ 195 V. 1. Os antigos combatentes são…: militância e política ................................... 196 V. 2. “Vozes públicas”, discursos e valores: para uma gramática da acção ....... 202 PARTE II O PULSAR DA MEMÓRIA: DO PRESENTE À PETRIFICAÇÃO DA MORTE Capítulo VI. As comemorações da I Guerra Mundial .................................... 217 VI. 1. O embasamento dos processos comemorativos .......................................... 218 VI. 1.1. As sociedades liberais, a religião civil e a afirmação do republicanismo .................................................................................................... 218 VI. 1.2. A vivência do conflito e o esboço dos formatos memoriais ....... 221 VI. 2. Ciclos e marcos temporais: as jornadas comemorativas no dualismo entre reminiscência e esquecimento ............................................................... 231 VI. 2.1. O 14 de Julho e o ansiado reconhecimento internacional ........... 232 VI. 2.2. O 9 de Abril e a consagração dos mortos ....................................... 240 VI. 2.3. O 11 de Novembro e a apropriação política .................................. 246 VI. 2.4. Linhas de persistências alternativas aos processos oficiais .......... 253 VI. 3. As efemérides portuguesas: ritos e símbolos ................................................ 257 VI. 3.1. A recapitulação do 9 de Abril: formas, símbolos e ideologias .... 259 VI. 3.2. A instrumentalização da dor – dos mortos aos heróis ................. 266 Capítulo VII. O(s) Soldado(s) Desconhecido(s) ............................................. 273 VII. 1. O herói na reestruturação das nações no pós-guerra .................................. 274 VII. 2. A consagração dos Soldados Desconhecidos portugueses ........................ 276 VII. 2.1. Entre a escolha do corpo, do tempo e do lugar ........................... 277 VII. 2.2. A crispação da opinião pública e a fragilidade do herói nacional ................................................................................................................ 287 VII. 2.3. “Ao seu soldado desconhecido / morto pela pátria” ................. 293 Capítulo VIII. O cemitério e a dissimulação da morte ................................... 301 VIII. 1. Da escatologia da morte à sua assimilação social e dissimulação política .................................................................................................................. 302 VIII. 2. Os mortos da Grande Guerra em Portugal: entre a laicização dos cemitérios e a integração da cultura de guerra europeia ............................. 309 VIII. 2.1. O tratamento dos caídos ................................................................. 309 VIII. 2.2. A Comissão Portuguesa de Sepulturas de Guerra e a criação lenta de um grande projecto cemiterial ............................................ 312 VIII. 2.3. O cemitério e os talhões portugueses na frente europeia: a centralidade dos mortos numa manifestação de cultura de guerra ........... 316 O cemitério militar português de Richebourg l’ Avoué: um caso excepcional ......................................................................................... 318 VIII. 2.4. Talhões e ossários em Portugal: repatriamento e reprodução cultural .................................................................................................................. 324 Capítulo IX. Os monumentos aos mortos da Grande Guerra ........................ 327 IX. 1. Lugares de memória ................................................................................................... 328 IX. 2. A sagração monumental dos mortos ............................................................... 333 IX. 2.1. Onde os poderes locais se afirmam: os primeiros monumentos ....................................................................................................... 335 IX. 2.2. Do padrão ao serrano… ....................................................................... 341 IX. 2.3. O serrano: a consensualidade de um formato generalizado .......... 344 IX. 3. Da imagem alada à mulher humanizada, da pátria à fragilidade representadas ....................................................................................................... 352 IX. 4. A Comissão dos Padrões da Grande Guerra: ............................................... 369 IX. 4.1. Organização e programa .................................................................... 369 IX. 4.2. A excepcionalidade na aliança do mito à marca artística ............... 375 IX. 5. A veiculação do poder no mito da experiência de guerra e as suas manifestações artísticas ..................................................................................... 384 IX. 5.1. Categorias: os lugares, os nomes e os símbolos ............................. 384 IX. 5.2. A face da precariedade do mito .......................................................... 393 Conclusão ......................................................................................................... 403 Fontes e bibliografia ........................................................................................ 421 Lista de quadros, gráficos e mapas ................................................................. 449 Lista de figuras e ilustrações ............................................................................ 450 Anexos ................................................................................................................... i