A ONU estima que 300 000 crianças estejam lutando em conflitos em quinze países Há uma batalha sendo perdida: é aquela que procura evitar que as crianças continuem a servir de bucha de canhão. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se para discutir o assunto, no mês passado, e divulgou a assombrosa estimativa de que existem pelo menos 300.000 menores de 18 anos de armas na mão em quinze países. A maioria desses combatentes se encontra na África, mas o problema está longe de ser africano. Também há adolescentes nas fileiras da guerrilha comunista da Colômbia, país que faz fronteira com o Brasil, e na Chechênia, região separatista da Rússia. Um grupo de trabalho com representantes de 100 países reúne-se periodicamente desde o início dos anos 90, mas até agora tudo o que conseguiu foram sucessos isolados. No mês passado, com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), um dos lados da guerra civil no Sudão começou a desmobilizar parte de seus 11.000 combatentes infantis. Cerca de 100 crianças entregaram seus fuzis e roupas camufladas. No ano passado, 7.000 menores que lutaram na guerra civil em Serra Leoa começaram a ser devolvidos aos familiares. A tarefa de tirar todas as crianças do campo de batalha é complicada – impossível, dizem alguns. Um dos motivos é a falta de consenso sobre a idade certa para ir à guerra. Uma convenção da ONU sobre os direitos da criança estabelece que a infância só termina aos 18 anos – mas abre exceção para o recrutamento militar, que pode começar aos 15. A Marinha inglesa, por exemplo, aceita grumetes com 16 anos, e o Exército dos Estados Unidos recebe recrutas de 17. Outra dificuldade é que o problema real passa longe dos civilizados padrões militares ingleses e americanos – são as crianças seqüestradas e obrigadas a lutar por milícias e caudilhos em países miseráveis. A criança tem uma noção moral incompleta do que é certo ou errado e do significado da vida e da morte. Por isso, ela se torna um soldado obediente e perigoso. Nos países africanos que vivem intermináveis conflitos tribais, os guerreiros infantis agem como alucinados armados, roubando à população e matando sem motivo. O fato de esses combates serem travados com armas leves tornou ainda mais conveniente a utilização de crianças. A mistura entre brincadeira e matança tem resultados bizarros. Na Libéria, outro país africano, os pequenos combatentes – os mais novos, de apenas 5 anos – combinam roupas camufladas com vestidos femininos e peruca. Em um braço carregam um fuzil AK-47, no outro um urso de pelúcia. E adotam apelidos inspirados em seus métodos de tortura favoritos, como "Capitão Arranca-Olhos". As crianças africanas são raptadas de casa ou de campos de refugiados. Os pais que tentam impedir o seqüestro são torturados e mortos. Algumas vezes, para provar lealdade ao grupo, o garoto é obrigado a matar a própria família. As meninas são levadas para acampamentos militares onde prestam serviços braçais e se tornam escravas sexuais. Estima-se que em Uganda um só grupo guerrilheiro tenha seqüestrado e armado 5.000 crianças. Na Colômbia, os guerrilheiros das Farc usam método semelhante. A população pobre das áreas dominadas pela guerrilha é obrigada a contribuir de alguma forma para a causa revolucionária, o que inclui entregar os filhos. Um relatório da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch de setembro passado contém um depoimento em que Adriana, uma adolescente colombiana, conta o ritual pelo qual foi obrigada a passar aos 12 anos: "Nós matamos sete paramilitares e tivemos de beber o sangue deles para vencer o medo. Só os mais medrosos tinham de fazer isso. Eu era a mais medrosa de todos, porque era a mais nova". É uma tarefa difícil devolver à vida normal crianças como Adriana. Elas não se acostumam com a idéia de que a violência não é a maneira mais legítima de conseguir as coisas. Em Angola, em 27 anos de guerra mais de 10.000 crianças participaram de combates. Em julho do ano passado, a última criança-soldado foi devolvida aos parentes. Espera-se que consiga usar sua energia infantil para jogar bola e estudar, e não mais para matar pessoas. Como disse um dos soldados adolescentes que entregaram seus fuzis no Sudão, no mês passado: "Eu vou ter de voltar a pegar em armas logo. Não acredito que não vá mais haver guerra. O inimigo ainda está por aí". Revista Veja 04 de Fevereiro de 2004