Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Segundo Ciclo em Ciências da Comunicação
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM
COMUNICAÇÃO PÚBLICA, POLÍTICA E
INTERCULTURAL
A Viagem nos Descobrimentos como
Promoção da Interculturalidade:
A circum-navegação do globo por Fernão Magalhães
- Consequências e contributos culturais
Helda Celene Garcia Correia
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Segundo Ciclo em Ciências da Comunicação
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM
COMUNICAÇÃO PÚBLICA, POLÍTICA E
INTERCULTURAL
A Viagem nos Descobrimentos como
Promoção da interculturalidade:
A circum-navegação do globo por Fernão Magalhães
- Consequências e contributos culturais
Orientador: Doutor Américo Nunes Peres
Helda Celene Garcia Correia - aluno 32991
Vila Real, Dezembro de 2011
Ao meu Avô Eduardo (in memorian),
Pelo carácter, pelos ensinamentos e afecto:
“A Morte é a curva na estrada,
Morrer é só não ser visto.”
(Fernando Pessoa, 1932)
As adversidades que encontrei no caminho,
Só fortaleceram a minha vontade.
Os sorrisos, abraços e palavras que recebi,
Acompanharam o meu trajecto até aqui.
3
Índice geral
Resumo ............................................................................................................... 6
Abstract .............................................................................................................. 7
Introdução ........................................................................................................... 9
1. Metodologia de Investigação........................................................................ 14
2. Em torno do conceito de cultura(s) .............................................................. 16
3. A influência material das culturas – aculturação e transculturação ............. 20
4. O processo da interculturalidade .................................................................. 27
5. A interculturalidade na expansão Portuguesa .............................................. 29
6. O reconhecimento na esfera da interculturalidade ....................................... 36
7. A Circum-navegação do globo por Fernão de Magalhães ........................... 40
7.1. Antecedentes gerais das viagens dos Descobrimentos: ......................... 40
7.2. Os relatos das viagens como testemunho na época ............................... 41
7.3. A questão política, religiosa e social nesta viagem ............................... 43
7.4. Consequências desta descoberta ............................................................ 44
7.5. A multiculturalidade na constituição da tripulação desta viagem ......... 46
7.6. Referências e homenagens a Fernão Magalhães ................................... 47
8. O processo de análise de conteúdo – as categorias ...................................... 48
9. Análise de conteúdo do Relato da Viagem, por Antonio Pigafetta .............. 51
Considerações finais ......................................................................................... 64
Referências bibliográficas ................................................................................ 67
Webgrafia ......................................................................................................... 68
ANEXOS .......................................................................................................... 73
ANEXO I .......................................................................................................... 74
ANEXO II ........................................................................................................ 75
ANEXO III ....................................................................................................... 76
ANEXO IV ....................................................................................................... 77
ANEXO V ........................................................................................................ 78
ANEXO VI ....................................................................................................... 79
ANEXO VII ..................................................................................................... 80
ANEXO VIII .................................................................................................... 81
ANEXO IX ....................................................................................................... 82
4
Agradecimentos
O meu primeiro agradecimento é dirigido, inquestionavelmente, ao meu
Orientador de Dissertação, o Doutor Américo Peres, que me incentivou desde o início
para a elaboração desta dissertação. Pelo seu marcado profissionalismo, pela sua
experiência, e ainda, pela sua delicadeza e humanismo, o meu obrigada e inegável
reconhecimento.
Um agradecimento ao Doutor Galvão Meirinhos pela atitude jovial e
responsável com que sempre lidou com os alunos, orientando-os sempre que solicitado
e pela forma experiente como abordou as questões académicas, desde as funções de
Director deste Mestrado, até às funções de Docente das unidades curriculares
leccionadas.
Aos Doutores Gonçalo Fernandes e José Belo. Ao primeiro, pelo
acompanhamento rigoroso e dinâmico na unidade curricular leccionada neste ciclo de
estudos (Pragmática da Comunicação) e pela sua cordialidade. Ao segundo, pelas
atitudes, que sempre pautaram o seu relacionamento com os alunos e pelo
acompanhamento responsável que sempre ofereceu aos mesmos no percurso académico.
Aos restantes Docentes que me acompanharam neste ciclo de estudos, e que
me ofereceram o seu empenho, a sua experiência e o seu apoio, o meu obrigada.
Agradeço especialmente aos meus pais, que me apoiaram incondicionalmente
em mais um passo no meu percurso académico. Pelo seu amor e paciência, a minha
gratidão, que será sempre pequena perto dos seus gestos.
5
Resumo
A dissertação académica que ora se expõe e defende integra-se no âmbito das
viagens dos Descobrimentos, em especial, uma viagem realizada no século XVI – a
circum-navegação do Globo por Fernão Magalhães. Esta foi o corolário das descobertas
de rotas e passagens marítimas (e para além destas, o achamento de novas terras, a
confirmação de ideias e teorias científicas) na Época dos Descobrimentos Portugueses e
Espanhóis, uma vez que eram estas as duas únicas Coroas que disputavam a descoberta
e a posse de mar e de terra, facto que deu origem ao Tratado de Tordesilhas (Junho de
1494), e mais tarde, ao Tratado de Saragoça (Abril de 1529).
Este estudo pretende ser uma reflexão sobre a interculturalidade e o impacto da
diversidade cultural, quer no reconhecimento, por um lado, quer na valorização
/desvalorização das diferenças.
O trabalho integra uma introdução, na qual são expostos alguns dos efeitos
(razões e consequências, directas e indirectas) do encontro entre povos, bem como da
génese da globalização à época dos Descobrimentos. Além disso, clarificam-se alguns
conceitos, ou melhor assume-se a tentativa de delimitação conceptual – cultura(s),
aculturação, viagem, interculturalidade, comunicação intercultural, alteridade, entre
outros.
O tronco desta dissertação é assim formado por um conjunto de ideias,
conceitos e perspectivas que pretendem, por um lado, contextualizar a questão da
interculturalidade, e por outro, identificar, com base na técnica de análise de conteúdo, a
existência e práticas de interculturalidade na época, mais precisamente na viagem de
circum-navegação marítima realizada por Fernão Magalhães.
Trata-se de uma exposição teórico-conceptual, por um lado, de definições de
alguns autores na área de estudo seleccionada, e por outro, das opções metodológicas
seguidas e o tratamento dos dados recolhidos.
Relativamente à questão do reconhecimento e notoriedade, a nível nacional, da
descoberta de Fernão Magalhães, esta começou por ascender a outro nível, mais
condizente com a grandiosidade do feito, embora muito tardiamente, nos finais do
século XX. Sobre esse facto, são apontadas algumas referências, homenagens, recepção
literária, e até uso do nome do navegador por instituições e em produtos
6
comercializados, que atravessam fronteiras, levando o nome do descobridor a terras que
o desconhecem na actualidade.
Por fim, são apresentadas as considerações finais sobre as perspectivas
abordadas em torno do tema da comunicação intercultural, tendo como pano de fundo a
viagem de circum-navegação marítima realizada por Fernão Magalhães.
Palavras-chave: Comunicação intercultural; Interculturalidade na expansão
marítima; Fernão Magalhães e Interculturalismo;
Abstract
The Jouney at the Discoveries Age as promoter of interculturality:
The circum-navigation of the globe by Magellan
The work that is displayed and defended is combined in the scope of the trips
of the Discoveries, in special, a trip carried out in the XVI century – the circum
navigation of the globe by Fernão Magalhães (Magellan). This trip was the corollary of
the discoveries of routes and maritime passages (and beyond these, the discovery of
new lands, the deconstruction of religious myths, and the affirmation of scientific
theories) at the time of the Portuguese and Spanish Discoveries, a time when these two
Crowns were the only ones that disputed the discovery and ownership of sea and land,
fact that gave origin to the Treat of Tordesilhas (June 1494), and later, to the Treat of
Saragoça (April, 1529).
This research intends to be a reflection about interculturality and the impact of
the cultural diversity, either about the acknowledgment or valorization/devaluation of
differences.
The work presents an introduction, in which some of the effects (reasons and
direct or indirect consequences), of the meeting between peoples, as well of the genesis
of globalization to the time of the Discoveries, and later following with the clarification
of some concepts, or better, the attempt of conceptual delimitation – culture(s),
7
acculturation, voyage (trip), interculturality, intercultural communication, alterity,
among others.
The trunk of this work is formed by a set of ideas, concepts and perspectives
which intend to contextualize the interculturality issue, on one hand, and to identify,
based on the theoretical contempt analysis, the existence and practices of interculturality
at that time, more precisely at the sea circumnavigation of the globe time, accomplished
by Magellan.
This is a theoretical and conceptual exposition of definitions of some authors in
the selected area of study, on one hand, and of the methodological options which were
followed as well as the treatment of the collected data, on the other hand.
Relatively to the question of the recognition and notoriety, at national level, of
the discovery of Magellan, it started to ascend to another level, more congruently with
the grandiosity of the fact, even so very delayed, in the ends of the XX century. On this
fact, this work also points some references, tributes, literary reception, and also, the use
of the navigator’s name by institutions and commercialized products which cross
borders, leading the name of this navigator to lands that are unaware of him.
Finally, the work presents its final considerations about the approached
perspectives around the intercultural communication issue, having as background the
trip of sea circumnavigation of the globe by Magellan.
Key-words: Intercultural communication; Interculturality on the maritime
expansion; Magellan and Interculturalism;
8
Introdução
O tema escolhido para esta dissertação pertence ao grande conjunto das
viagens realizadas na Época dos Descobrimentos, e especificamente, a viagem
realizada1 entre 1518 e 1522, à volta do mundo, por um navegador português, ao serviço
da Coroa Espanhola, após a Coroa portuguesa ter rejeitado os seus serviços como
navegador.
Algumas das razões que me levaram a escolher para objecto de estudo esta
viagem específica prendem-se não só pela grandiosidade da epopeia levada a cabo pela
tripulação comandada por Fernão Magalhães, mas principalmente pelo facto desta
viagem de circum-navegação do globo, em particular, me causar grande fascínio e
curiosidade, decidi trabalhar a ideia da sua viagem como meio fundamental para a
interculturalidade. Outra razão que me impele a debruçar-me sobre esta viagem, é o
facto de Fernão Magalhães ter sido um descobridor pouco lembrado em território luso
(não esquecendo as referências à grandiosa viagem e personalidade de Fernão
Magalhães, feitas por Camões, em Os Lusíadas e, por Fernando Pessoa, em Mensagem),
no meio de tantos outros que integram o painel dos descobridores portugueses. Talvez o
facto se deva, a uma questão de orgulho ferido, que de forma injusta perdurou na
consciência portuguesa, pois a descoberta de Magalhães foi feita em nome da Coroa
Espanhola (após a ideia e os planos terem sido recusados pela Coroa Portuguesa). No
estrangeiro, pelo contrário, encontram-se diversas referências enaltecedoras à
personalidade e viagem deste descobridor, que se reflectem na literatura, na educação, e
na escultura.
As viagens realizadas por portugueses na época dos descobrimentos são
tratadas desde há bastante tempo, quer por profissionais (historiadores, sociólogos e
antropólogos), quer por docentes e, ainda, por estudantes de vários níveis académicos.
A razão deste interesse pelas viagens marítimas, realizadas há mais de 500 anos, e
durante os séculos XIV a XVI, pode assumir diversos contornos, consoante a área de
estudo em questão, mas todas as áreas partilham da ideia de descoberta que esteve na
origem dessas viagens. É a ideia de descoberta que impulsiona os reinos e seus
1
- Apesar do navegador, e Capitão-Comandante, não ter chegado vivo até ao fim da epopeia,
tendo perecido em 1521, em combate, na Ilha de Cebu, pertencente às actuais Ilhas Filipinas.
9
descobridores a navegar por mares “nunca antes navegados”, parafraseando Camões,
desbravar terras desconhecidas, descrever povoações e sociedades encontradas,
estabelecer comunicação com essas sociedades, estabelecer trocas comerciais e
organizar todo um conjunto de mapas cartográficos sobre a região achada, com
descrições pormenorizadas, quer de rotas marítimas e dos centros populacionais, quer
do tipo de solo cultivável e de recursos naturais, fauna, flora e formações rochosas.
As viagens nos Descobrimentos portugueses possibilitaram não só a expansão
e fortalecimento do Reino e da Fé Cristã, como também o conhecer dos Outros, das suas
características, das suas diferenças e semelhanças com o descobridor.
O facto antropológico mais importante da época dos Descobrimentos
portugueses, e no entanto, o menos tratado, é sem dúvida, o facto de essas terras já
serem habitadas à data das descobertas. À excepção das Ilhas da Madeira e dos Açores,
nenhuma outra terra se encontrava desabitada. Pelo contrário, todas elas tinham
sociedades devidamente organizadas, hierarquizadas e implantadas, o que significa que
os descobridores não encontraram nada que já não existisse. A descoberta, no
verdadeiro sentido da palavra só ganha valor quando vista do prisma do descobridor, e
em tudo o que se refere a esta visão unilateral da globalidade já existente.
Os portugueses foram à descoberta do mundo, mas ele já existia no seu todo,
povoado por diferentes tribos, sociedades e clãs – os portugueses (assim como os seus
concorrentes, espanhóis) é que não conheciam a imensidão de terras de que o planeta
era composto. Foi precisamente esta descoberta, esta aquisição de conhecimento sobre
outras paragens que marcou uma época portuguesa e espanhola, caracterizada pela
abertura ao mundo, pelo contacto com outras gentes, culturas, saberes e valores –
porque mais nenhum povo, antes, tinha navegado tanto mar, desbravado tanta terra,
traçado tantas rotas, erguido tantas bandeiras do Reino, e estabelecido tantas trocas
comerciais, assim como foi, também, Portugal, um dos principais países a fomentar e a
fornecer o negócio da escravatura. De acordo com Fontes2:
[…] A escravatura moderna tem uma data simbólica: 1415 – ano em que os
portugueses conquistaram Ceuta. A expansão marítima através do Atlântico e depois
do Pacífico alargou à escala mundial as possibilidades deste negócio. (…)
2
- Consultado em 15/08/2010.
10
No século XVI, o tráfico dispara para abastecer as “necessidades” do país, a
colonização do Brasil, as explorações de S. Tomé, mas também as necessidades de
Espanha e das suas possessões na América. […].
Também, segundo Gomes (2008):
[…] Portugal conheceu o regime de escravidão através das relações de comércio
com mercadores árabes e a transformação dos mouros vencidos na guerra em cativos
ou servos. Era comum a troca de prisioneiros mouros por escravos de pele escura,
em proporção favorável em quantidade aos portugueses. (…) Com os
descobrimentos marítimos, em breve os portugueses se aperceberam de que havia
muito a ganhar se, juntamente com outras mercadorias, levassem também escravos.
(…) O comércio de escravos tornou-se rapidamente a principal fonte de lucro (…).
(Gomes: 20083).
O empreendimento das viagens marítimas além Reino desvendou, não só a
extensão do planeta em solo, mas também e, principalmente, tornou possível o contacto
entre habitantes de zonas com imensa lonjura entre si, e como referimos atrás, esta tornase a base para o estabelecimento de comunicação entre povos e trocas comerciais,
proporcionando, a longo prazo, a aculturação.
Outra sorte de efeito resultante do contacto entre os povos, antes separados
pelo mar e pelo desconhecimento, é a miscigenação. Este fenómeno é defendido por
muitos autores, como a forma lusitana de povoar os territórios, mas é também, e na linha
de pensamento que mais nos interessa, uma forma de entrecruzar culturas, e ainda mais
importante, o desenvolvimento de uma nova etnia que dará origem a outras etnias, fruto
de constantes miscigenações. De acordo com Almeida (2003):
[…] A palavra miscigenação – miscigenar é misturar, misturar genes. Nos 500 anos
da cultura portuguesa, da história portuguesa, os portugueses misturaram os seus
genes na África, na América do Sul (no Brasil), e na Ásia. Miscigenaram-se,
misturaram-se e criaram os mulatos – os brasileiros dizem que os mulatos são uma
criação portuguesa – por causa da sua miscigenação. (…)
Os portugueses miscigenaram-se porque não tinham em sua companhia as suas
mulheres. Então viajavam só os homens. Quando os ingleses vieram para a América
3
- Consultado em 15/08/2010.
11
como para a Índia, vinham já casais por não querem estes se misturar, uma atitude
diferente da dos portugueses (…). (Almeida: 20034).
E segundo Fontes5:
[…] Ao longo de três séculos cruzaram-se no Brasil três culturas distintas: a
portuguesa (europeia), a negra (africana) e a indígena. É a partir delas que se irá
criar toda a riqueza da cultura brasileira. (…) No Brasil, uma parte substancial dos
colonizadores portugueses se miscigenou com índios e africanos, em um processo
muito importante para a formação do País. (…) A famosa pintura “Redenção do
Can”, feita em 1895 por Modesto Brocos y Gómez, sintetiza a ideia pairante na
época: através da miscigenação, os brasileiros ficariam a cada geração mais brancos
[…].6
O empreendimento das viagens marítimas além Reino e, principalmente, da
primeira viagem de circum-navegação do globo, por Fernão Magalhães, consolida-se, a
nosso ver, como a génese da globalização, seja no sentido da intensificação das relações
socioculturais e político-económicas, seja no sentido da interdependência dos actores e
acontecimentos, que não teve o seu boom em meados do século XX, com a recuperação
europeia da 2ª Guerra Mundial e o fim da Guerra Fria, uma vez que estes
acontecimentos despoletaram, sim, a globalização económica. Quer a criação do Plano
Marshal, em 1947, para a recuperação pós guerra dos países europeus, quer a queda do
muro de Berlim, em 1989, e o fim da Guerra Fria, com o consequente colapso do bloco
socialista e o desmoronamento da União Soviética, em 1991, foram, todos eles, factores
impulsionadores de crescimento e abertura da economia, ancorados em ideais do
capitalismo. Os acontecimentos desta época não foram precursores da globalização, mas
antes, manifestações político-económicas da evolução do fenómeno da globalização,
que teve o seu embrião na Idade Média.
Como defende Sobral (2004):
[…] Com o nível de intensidade com que conhecemos hoje, a globalização é um
fenómeno relativamente recente. Todavia, teremos de recuar até ao século XV para
4
- Consultado em 15/08/2010.
5
- Consultado em 15/08/2010.
6
- É possível observar esta pintura através do ANEXO Nº I a este trabalho.
12
encontrarmos a origem deste processo. A campanha dos descobrimentos portugueses
deu início a uma nova era e impulsionou a globalização […]. (Sobral: 20047).
Seguindo uma linha de pensamento idêntica, Oliveira e Costa, e Lacerda
(2007) defendem:
[…] Apesar de o debate sobre a globalização estar dominado pela Economia, pela
Sociologia e pela Ciência Política, os historiadores começam agora a alertar para o
facto de a globalização não ser mais do que uma etapa de um processo histórico que
terá tido início no período estudado por Fernand Braudel. Foi por isso que a equipa
dirigida por Pierre Léon, que elaborou a História Económica e Social do Mundo,
iniciou a sua análise precisamente com um olhar sobre os «mundos fechados», nas
vésperas do arranque da Expansão Portuguesa, encarada como o início do processo
de descompartimentação do mundo (Léon, 1984). (…) (Oliveira e Costa; Lacerda:
2007: p. 27).
Estes autores são, entre outros, quem confirma e defende a perspectiva de que a
globalização teve início na época dos descobrimentos, e mormente, a nosso ver, com a
primeira viagem de circum-navegação do globo, por Fernão Magalhães, apresentandose a Idade Média a época mais profícua em contactos humanos de diferentes culturas,
originando miscigenações e migrações, que promoveram maior disseminação, por um
lado, e estudo, por outro, dessas culturas ou de alguns dos seus elementos culturais.
As Descobertas trouxeram outras consequências, além de novas terras, novas
gentes e novos saberes, trouxeram novos valores que tiveram repercussão na evolução
dos países, na economia, na ciência e nas políticas mundiais. Assim, verificou-se, por
um lado, a desconstrução de mitos e comprovação de teorias anteriores e, por outro, a
descrição das terras encontradas, quer no seu rebordo, quer no seu interior,
possibilitando a experiência e a exactidão na elaboração da cartografia, que no século
XVI era já perfeita, desenhando e retratando os continentes com fiel precisão.
As viagens dos Descobrimentos foram, sem dúvida, o entrar numa nova era,
diferente em tudo e completamente desconhecida do universo de saberes, valores, leis e
crenças, quer dos protagonistas, quer do tecido societário, que também foi afectado pelo
alargamento da concepção do mundo.
7
- Consultado em 12/08/2010).
13
Este estudo pretende ser uma reflexão sobre a interculturalidade e o impacto da
diversidade cultural, quer no reconhecimento, por um lado, quer na valorização
/desvalorização das diferenças.
O trabalho integra uma introdução, na qual são expostos alguns dos efeitos
(razões e consequências, directas e indirectas) do encontro entre povos, bem como da
génese da globalização à época dos Descobrimentos. Além disso, clarificam-se alguns
conceitos, ou melhor assume-se a tentativa de delimitação conceptual – cultura(s),
aculturação, viagem, interculturalidade, comunicação intercultural, alteridade, entre
outros.
O tronco desta dissertação é assim formado por um conjunto de ideias,
conceitos e perspectivas que pretendem, por um lado, contextualizar a questão da
interculturalidade, e por outro, identificar, com base na técnica de análise de conteúdo, a
existência e práticas de interculturalidade na época, mais precisamente na viagem de
circum-navegação marítima realizada por Fernão Magalhães.
Trata-se de uma exposição teórico-conceptual, por um lado, de definições de
alguns autores na área de estudo seleccionada, e por outro, das opções metodológicas
seguidas e o tratamento dos dados recolhidos.
São ainda apontadas referências, homenagens, e até, uso do nome Fernão (de)
Magalhães por instituições e em produtos comercializados, que atravessam fronteiras, e
divulgam o nome deste navegador e de Portugal.
1. Metodologia de Investigação
A elaboração deste trabalho académico seguiu uma metodologia de corte
hermenêutico que se baseia na análise, compreensão e interpretação de textos. Os textos
abordados compreendem a análise e o enquadramento teórico-conceptual do processo
intercultural, tendo como texto principal, “Viagem à volta do mundo, por António
Pigafetta”. In Fernão de Magalhães – A primeira viagem à volta do Mundo contada
pelos que nela participaram (1990), e como texto de apoio, Primer viaje en torno del
globo (2004).
14
De acordo com Chaumier, In Bardin (2009), a análise documental é (…) «uma
operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um
documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar, num estado ulterior, a
sua consulta e referenciação» (…). (Bardin: 2009 p. 47).
A análise de textos aborda uma leitura crítica dos mesmos, utilizando a análise
de conteúdo, e neste caso concreto, processa-se pelas seguintes fases: selecção de
documentos, de acordo com a temática escolhida; identificação dos documentos,
delimitando os documentos a uma determinada área; e análise documental, de forma a
conhecer os contributos do documento e o seu alcance. É nesta última fase, que são
extraídos elementos de informação do documento para melhor reflectir sobre o quadro
teórico-conceptual. Os elementos de recuperação de dados são, neste caso, o texto
primário, que é o suporte imediato, que foi seleccionado na primeira fase, e sobre o qual
incide o estudo; a análise documental desenvolvida sobre esse texto primário; e o
veículo de dados, isto é, a linguagem documental que nos permite retirar informação,
sobre os quais será desenvolvido o tema.
Em oposição ao texto primário, são considerados textos secundários, todos
aqueles que são coadjuvantes no esclarecimento e entendimento do texto primário. Neste
grupo de textos, podemos incluir, dicionários, enciclopédias e referências bibliográficas,
entre outros.
Segundo Berelson (1952), […] a análise de conteúdo é uma técnica de
investigação para a descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto
da comunicação. […] (Berelson, In Coutinho: 2008)8.
Para que seja objectiva, essa descrição exige uma definição precisa das
categorias de análise, de modo a permitir que diferentes pesquisadores possam utilizálas, obtendo resultados semelhantes, e, para ser sistemática, é necessário que a totalidade
de conteúdo relevante seja analisada em relação a todas as categorias significativas. A
quantificação permite obter informações mais precisas e objectivas sobre a ocorrência
das características do conteúdo.
Bardin (2009), também segue esta linha de pensamento, especificando ainda
mais:
8
- Autor citado por Coutinho, Consultado em 06/07/2010.
15
[…] A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações,
visando obter, por procedimentos objectivos e sistemáticos de descrição do conteúdo
das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. (…)
A análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre
as quais se debruça […]. (Bardin: 2009: p. 44-45).
De acordo com Bardin (2009); Peres (1999); Vieira (1999), entre outros,
entendemos que o tratamento das falas pode ser diferenciado, todavia, a frequência e a
intensidade dos conteúdos é abordada de uma forma semelhante, estabelecendo
negociação de significados.
2. Em torno do conceito de cultura(s)
O conceito de cultura é de difícil limitação, pois existem várias dimensões
através das quais podemos clarificar este conceito, desde a sociológica, a estética, a
económica, a religiosa, antropológica, entre outras. No presente trabalho, e na matéria
em que nos interessa abordar, incidiremos sobre a cultura no seu sentido sociológico
e/ou antropológico.
Falar em cultura e tentar definir o conceito é quase como tornar único este
conceito para a generalidade das áreas académicas e da vida prática. Sendo assim, o que
se pretende neste trabalho é uma aproximação, a mais adequada possível, para o tema
em estudo.
Partimos do princípio geral de que a cultura é a base de qualquer sociedade.
Isto quer significar que é através da cultura de uma sociedade que esta se desenvolve e
através da qual se reconhecem e auto reconhecem os membros da mesma, como um
sinal de pertença à comunidade. Por outro lado, é a própria sociedade que perpetua a
cultura, através da transmissão de saberes, tradições e usos, e que a desenvolve,
actualizando-a, com a introdução de transformações e através do contacto algo
permanente, senão mesmo permanente, com as culturas de outras sociedades. Por esta
razão há autores que defendem que a cultura não é um produto acabado, mas um
produto em constante evolução e transformação. De acordo com Pereiro (2006):
16
[…] A mudança cultural é o aspecto dinâmico da cultura, o “panta rei” (tudo se
move, tudo se muda) dos gregos. É inquestionável que nenhuma cultura é totalmente
estática e de que a cultura constrói-se através de processos sociais.
As culturas podem intercambiar traços mediante o empréstimo ou a difusão. (…) A
aculturação é outro mecanismo de mudança que consiste no contacto e intercâmbio
entre duas ou mais culturas. (…)
A globalização é outro motivo de mudança, pois vincula as pessoas de todas as
partes do mundo através dos meios de comunicação […]. (Pereiro: 2006: p. 17-18).
O mesmo autor refere ainda:
[…] Um aspecto importante da mudança cultural é a mestiçagem, os sincretismos e
hibridismos. (…)
A preocupação pela mudança sóciocultural é muito antiga. Já na Grécia Clássica
face à ideia de Parménides, que afirmava que o mundo é estático e organizado,
Heráclito defendeu a ideia de que o mundo está em permanente mudança, que tudo
flui e nada fica (…). (Pereiro: 2006: p. 20-21).
E será assim mesmo, pois basta-nos comparar apenas décadas entre si, como as
de 50 e 70, ou as de 60 e 90, para ver que as diferenças existem e são enormes, entre
uma e outra década, assim como também é diferente o século XIX do século XX. Cada
uma destas épocas, maiores ou menores em extensão, apresenta especificidades
económicas, políticas, de valores e conceitos de vida, que não se encontram na época
anterior nem na futura, apesar de influenciarem o devir e a evolução da cultura seguinte.
Desta forma, a cultura é dinâmica. Ela é um mecanismo adaptativo e cumulativo, que
funciona em velocidades distintas nas diferentes sociedades.
Neste contexto, é essencial reflectirmos sobre algumas definições e
entendimentos do conceito de cultura. Iniciamos pela perspectiva de um antropólogo
inglês de meados do século XIX:
[…] Cultura é o complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis,
costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade". Portanto corresponde, neste último sentido, às formas de organização de
um povo, seus costumes e tradições transmitidas de geração para geração que, a
partir de uma vivência e tradição comum, se apresentam como a identidade desse
povo.
17
A cultura explica e dá sentido à cosmologia social. Ela é a identidade própria e um
grupo humano em um território e num determinado período […]. (Tylor, In
Carvalho: 20089).
Evocando a perspectiva de um antropólogo norte-americano, do início
do século XX:
[…] O conceito de cultura que eu defendo é essencialmente semiótico. Acreditando,
como Max Weber, que o homem é um animal agarrado às teias de significado que
ele teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e sua análise, portanto não como
uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à
procura do significado […]. (Geertz, In Carvalho: 200810).
Prosseguindo para a perspectiva de um antropólogo cubano, de meados do
século XX:
[…] Las culturas son prácticas de vida que generan dinámicas específicas para dar
cuenta de la relación que mantienen con lo que van reconociendo como “sus”
tradiciones, es decir, con aquellas referencias fundamentales que se comparten en
común y se convierten para la gente en fuente de identidad y, por lo mismo, también
en fuente de reconocimiento mutuo como miembros de tal o tal cultura. […] Toda
cultura implica una red de signos en interacción que permite contextualizar su
producción, explicando lo que sucede y pautando lo que puede suceder. El hecho de
que un grupo de personas forme parte de una misma cultura implica que tienen en
común un mismo sistema de significación. El carácter normativo e interpretativo de
este sistema de significación pauta la producción cultural y pauta los modos de
interpretar esos productos culturales […]. (Fornet. In Alas: 200711).
Trazemos ainda à colação um antropólogo brasileiro, da mesma época:
[…] Cultura é o processo acumulativo resultante de toda a experiência histórica das
gerações anteriores.
Define-se ainda, mais completamente, cultura como um sistema coletivo de sentidos,
signos, valores, práticas sociais, processos sócio-politicos, criados historicamente
9
- Consultado em 10/07/2010.
10
- Consultado em 10/07/2010.
11
- Consultados em 07/07/2010.
18
por grupos sociais para estruturar as suas identidades coletivas, como referência vital
do seu dia-a-dia nas relações entre si e com outros grupos […]. (Krohling: 200812).
No contexto português, Stoer e Cortesão (1999), abordam diferentes
concepções de cultura, criticando a folclorização das diferenças e o relativismo cultural,
mas entendem a diversidade cultural como uma riqueza da condição humana.
Em todas estas definições de cultura, que se afiguram díspares entre si,
encontramos pontos em comum.
A cultura, por um lado, é a forma de identificação de uma sociedade e, por
outro, é o processo por excelência através do qual os membros de uma determinada
sociedade se reconhecem, a si próprios e a outros indivíduos, como pertencentes à
mesma.
A cultura resulta, assim, da aceitação13 das convenções estabelecidas entre os
membros de uma determinada comunidade, que pautam e regulam o comportamento
não só social, mas também espiritual de cada indivíduo comunitário, formando assim
um conjunto de conhecimentos, comportamentos, valores e crenças enraizado nas
atitudes dos membros dessa comunidade. Neste sentido, a cultura forma a identidade, a
alma de um povo, que o diferencia de todos os outros povos. Esta identidade tem a sua
base ou pilar no processo de enculturação, processo através do qual, desde os primeiros
instantes da vida um indivíduo é impregnado pela sua cultura (a da comunidade onde
nasceu e à qual pertence) através de um sistema de estímulos e de proibições mais ou
menos explícitas, ou seja, um conjunto de valores, regras e crenças que apreendeu no
processo primário de socialização.
Por outro lado, a cultura, não sendo um fenómeno estático, é ela própria,
geradora de modificações de conteúdo ou matéria, e até de forma, não só pelo contacto
com outras culturas e outras sociedades, como também através da modificação das
circunstâncias de vida da própria comunidade social. Neste sentido, a cultura é um
factor impulsionador de transformações sociais, que encontra expressão na interacção
entre culturas, nomeadamente, na aculturação, no choque cultural e na interculturalidade
12
- Consultado em 10/07/2010.
13
- Existem, todavia, desvios a esta aceitação e enraizamento de normas e valores, e para estes
casos, a comunidade social cria um sistema de protecção e punição, como é o conjunto de códigos
jurídicos, sejam estes reduzidos a escrito, ou passados oralmente de geração em geração.
19
– a interacção entre culturas por excelência, por ser a mais pacífica no processo de
interacção e a mais benéfica para os efeitos dessa interacção.
Quer seja o conjunto que inclui conhecimentos, comportamentos, crenças,
arte, moral, leis, costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como
membro da sociedade, ou as teias de significado que o homem produz e analisa, ou uma
rede de signos que contextualiza o reconhecimento da pertença de um grupo de
indivíduos a uma determinada sociedade, quer seja, por fim, o processo acumulativo de
toda a experiência histórica de gerações anteriores – a cultura é o processo através do
qual um conjunto de valores, crenças, hábitos, normas e comportamentos identifica uma
sociedade. Além disso, o próprio processo cultural é susceptível de mudanças, estando o
seu conteúdo exposto a influências, quer pela geração para a qual é transmitida, quer
pelo contacto com outras sociedades, que se pautam por valores, crenças, hábitos,
normas e comportamentos diferentes.
3. A influência material das culturas – aculturação e
transculturação
Tendo em mente o âmbito e conceito de cultura abordados no capítulo anterior,
e, principalmente, o facto de a cultura não ser estática, chegamos racionalmente à
conclusão de que os processos culturais compreendem todos os procedimentos e
significados, quer para o grupo, como para cada um dos membros que o integram.
Falar em cultura e processos culturais não é a mesma coisa. A cultura é o
resultado, por um lado, da necessidade de organização da comunidade, e por outro lado,
de um ou mais processos culturais. Os processos culturais são as variadas formas de
transformação cultural – formas através das quais as culturas interagem e são
influenciadas aquando do contacto e intercâmbio entre si.
O fenómeno da aculturação é um dos processos de transformação cultural, cuja
reflexão tem sido problematizada até meados do século XX.
Referimos a seguir algumas das definições existentes do conceito de
aculturação:
20
[…] La aculturación se entiende como el proceso mediante el cual una cultura es
transformada debido a la adopción a gran escala de usos culturales que han venido
de otra societad, de modo que a mediano o a largo plazo los nuevos usos reemplazan
a los patrones culturales tradicionales. Ello siempre es consecuencia de relaciones
históricas directas entre pueblos culturalmente distintos, especialmente si se trata de
procesos de conquista y colonización de pueblos y grupos étnicos […]. (Alas:
200714).
Neste contexto, a ideia de transformação implica a ideia de movimento
cultural, um dos meios pelos quais ocorre uma dialéctica concreta consistente no facto
de uma sociedade desempenhar o papel de sujeito receptor de um determinado número
de influências culturais.
Esta transmissão cultural modifica, substitui os usos culturais e pode até
transformar os indivíduos ou grupos de uma sociedade.
Todavia, e pelo que se depreende da parte final do texto, Alas (2007) defende
que o fenómeno de aculturação acontece apenas no âmbito dos processos de conquista,
isto é, nas colonizações e ocupações político-militares, ou seja, ocupações, todas elas,
através da violência. Situar o fenómeno da aculturação nestes contextos, é afirmar que
uma das culturas se apresenta como superior à outra, o que torna a esfera de acção deste
fenómeno bastante limitada.
Como defende o historiador francês, Nathan Wachtel15 (In Macedo 2004), […]
Aculturação é todo o fenómeno de interacção social que resulta do contacto entre duas
culturas, e não somente da sobreposição de uma cultura a outra, ou do domínio de uma
sobre a outra (…). (In Macedo: 2004).
Sobre este entendimento de aculturação, Macedo (2004) adverte:
[…] Wachtel, questiona a maneira como o termo vem sendo utilizado amplamente
por historiadores, antropólogos e etnólogos, por responder aos problemas do
colonialismo e comportar a ideia de uma supremacia da cultura europeia,
14
- Consultado em 07/07/2010.
15
- Citado por Macedo (2004). Consultado em 13/07/2010.
21
generalizando assim o conceito e campo de acção do fenómeno, mas reduzindo o
seu alcance e influências […]. (Macedo: 200416).
Este entendimento de aculturação é o oposto do anterior, Alas (2007), e já
bastante aberto, possibilitando variadas formas de aculturação, entre elas, a mestiçagem
de culturas, ao invés de limitar a ocorrência deste fenómeno às actividades de
colonização e ocupação, como é usual fazer-se na numa concepção reducionista de
antropologia. Para Wachtel17, a aculturação é constituída por processos, com
consequências finais diferentes, e não é ela própria um processo único.
O mais importante, nesta noção, é o facto de o autor individualizar o conceito
de aculturação relativamente ao de domínio, o que significa que a existência e o
desenvolvimento da aculturação não resultam sempre na sobreposição de uma cultura à
outra, mas antes no enriquecimento de ambas as culturas, pelo contacto com a outra,
pois ambas as culturas são dinâmicas, activas e aptas à realização de alterações na outra
cultura.
Outra perspectiva do conceito é a defendida por Sam e Berry (1992) e por
Berry, Poortinga, Segall e Dasen (1992), para quem o termo aculturação se refere às
mudanças culturais resultantes do encontro entre grupos com bagagens culturais
diferentes.
Esta pode ser uma definição simplista, à primeira vista, mas é extremamente
concisa, e representa o melhor ponto de partida para um melhor entendimento da esfera
de acção do fenómeno.
Para Sam e Berry (1992), são, ainda, dois os aspectos envolvidos no processo
de aculturação: a manutenção cultural (significando o grau da preservação da identidade
cultural) e o contacto e participação (referente à graduação da envolvência dos
indivíduos em outros grupos culturais). Num sentido semelhante, Poortinga, Segall e
Dasen (1992) apontam dois componentes envolvidos no processo de aculturação:
desprendimento cultural e aprendizagem cultural. O primeiro abrange a perda (parcial
ou total) da cultura originária e de características comportamentais, e o segundo, referese à aquisição de novos modos para viver em novo contexto cultural.
16
- Consultado em 13/07/2010.
17
- Citado por Macedo (2006). Consultado em 13/07/2010.
22
Estes últimos entendimentos do conceito de aculturação parecem os mais
acertados, pois analisam o processo que se desenvolve e que resulta do contacto
permanente entre duas culturas distintas, sem que o resultado final seja apenas o de
desaparecimento ou abafamento de uma das culturas, através da adopção total,
voluntária ou forçada, da outra cultura. Assim sendo, a consequência ou efeito final
deste fenómeno pode assumir uma de três situações diferentes: a manutenção da
integridade cultural de cada cultura, apesar do contacto, permanecendo cada cultura
intacta às influências exteriores, ou, a partilha, aprendizagem e aquisição18 de valores,
normas, comportamentos (de alimentação, vestuário e de sociabilidade), hábitos e
crenças, e até da linguagem, o que resulta no aparecimento de uma terceira cultura,
constituída por pedaços de cada uma das outras culturas em contacto, e na qual se
reconhece parte dos membros das duas sociedades, ou ainda, o domínio completo de
uma cultura sobre a outra, fazendo com que o seu núcleo identitário desapareça por
força da imposição, ou adopção, total da outra.
Em conclusão, sobre o conceito de aculturação, o entendimento do conceito
que prevalece até hoje, entre a maioria dos antropólogos, sociólogos e etnólogos, afasta,
como único resultado, a ideia de domínio cultural, de ingerência total de uma cultura na
outra, que é o fenómeno no qual as conquistas, expansões, colonizações e ocupações
militares, se materializaram, quase sempre, desde a Roma Antiga, às sobejamente
conhecidas ocupações militares que tiveram lugar desde o século XX por toda a Europa
e África.
A aculturação, nestes moldes, designa então o fenómeno da alteração que
resulta do contacto entre duas culturas, em que uma exerce maior influência sobre a
outra, fazendo, em última análise, com que aquela enfraqueça e adopte, forçosamente,
os traços característicos e identitários da primeira. A aculturação, em lato sensu, resulta
da alteração dos modelos culturais das sociedades aculturadas, isto é, resulta da
transformação dos patterns das culturas sujeitas à mudança cultural.
18
- A aquisição é um elemento do processo de aculturação defendido por J. H. Schuman em
1978, no que concerne à aprendizagem de uma segunda língua – uma língua estrangeira, mas que pode, a
meu ver, ser estendido a outros aspectos da cultura de uma qualquer sociedade, na medida em que o
estrangeiro pode apreender não só a língua, mas também as normas, os comportamentos, os hábitos, etc.,
de outra sociedade. A teoria de Schuman pode ser encontrada em The acculturation model for second language acquisition. In: GINGRAS, R. C. (Ed.) Second-language acquisition & foreign language
teaching.
23
O conceito de aculturação foi, até ao primeiro quartel do século XX, o único
conceito que existiu para analisar e definir os fenómenos de alterações culturais
resultantes do contacto permanente entre duas culturas distintas.
A partir de finais da terceira década do século XX, alguns autores introduziram
um outro conceito de transformação social, que visava analisar e compreender melhor
os efeitos causados pelo contacto entre duas culturas. Este novo conceito pretende
corresponder a uma maior exactidão da análise das consequências e efeitos do contacto
permanente entre culturas. Esse conceito é o de transculturação.
A transculturação é o processo pelo qual um fenómeno passa de uma cultura
para outra, dizendo respeito aos contactos e aos cruzamentos de culturas diferentes.
Em 1940, o etnólogo cubano Fernando Ortiz, introduziu este conceito, também
lhe chamando, transculturalidade, no pensamento antropológico. No prefácio à obra de
Ortiz, Malinowski19 observa:
[…] Toda mudança cultural… ou toda transculturação é um processo no qual se dá
sempre qualquer coisa em troca do que se recebe. É um processo no qual as duas
partes da equação saem modificadas. Um processo a partir do qual emerge uma nova
realidade, composta e complexa, uma realidade que não é uma aglomeração
mecânica de características, nem sequer um mosaico, mas um fenómeno novo,
original e independente. Para descrever tal processo o vocábulo transculturação
proporciona um termo que não contém a implicação de uma dada cultura à qual deve
ter a outra, mas uma transição entre duas culturas, ambas ativas, ambas contribuintes
e ambas cooperantes para o advento de uma nova realidade civilizatória. A
transculturação pode ser o resultado da conquista e dominação, mas também da
interdependência e acomodação, sempre compreendendo tensões, mutilações e
transfigurações (…). (Malinowski, In Carvajal: 201020).
A Enciclopédia livre, Online, de edição em português (Brasil), tem muito em
comum com o conceito anterior:
[…] Transculturação é o processo que ocorre quando um indivíduo adota uma
cultura diferente da sua, podendo ou não implicar uma perda cultural. A
transculturação está ligada à transformação de padrões culturais locais a partir da
adoção de novos padrões vindos através das fronteiras culturais em encontros
19
- Autor citado por Carvajal (2010). Consultado em 12/08/2010.
20
- Consultado em 12/08/2010.
24
interculturais ou migrações transacionais, envolvendo sempre diferentes etnias e
elementos culturais. É a transformação de padrões a partir do elemento externo […].
(Wikipedia21).
Ou ainda, de acordo com o entendimento da Wikipédia, Enciclopédia Livre,
Online, edição em Inglês:
[...] Transculturation encompasses more than transition from one culture to another;
it does not consist merely of acquiring another culture (acculturation) or of losing or
uprooting a previous culture (deculturation). Rather, it merges these concepts and
additionally carries the idea of the consequent creation of new cultural phenomena
(neoculturation). Ortiz also referred to the devastating impact of Spanish colonialism
on Cuba's indigenous peoples as a "failed transculturation." Transculturation can
often be the result of colonial conquest and subjugation, especially in a postcolonial
era as native peoples struggle to regain their own sense of identity […].
(Wikipedia22).
Desta forma, o conceito de transculturação expressa melhor as diferentes fases
do processo transitivo de uma cultura para outra, porque este não consiste somente na
alteração de uma ou ambas culturas pelo contacto com a outra, que é o que em rigor
indica a expressão inglesa acculturation23, mas cujo processo implica também e
necessariamente a perda ou o desenraizamento de uma cultura precedente, o que se
poderia denominar deculturação; e, além disso, significa a consequente criação de novos
fenómenos culturais que se poderiam denominar de neoculturação.
Assim sendo, a transculturação pode ser o resultado da conquista e dominação,
mas também da interdependência e da criação, sempre compreendendo tensões,
mutilações e transfigurações. Tantas são as formas e possibilidades de intercâmbio
sócio cultural, que são muitas as suas denominações: difusão, assimilação, aculturação,
hibridação, sincretismo, mestiçagem.
21
- Consultado em 12/08/2010.
22
- Consultado em 12/08/2010.
23
- [Acculturation is the process whereby the attitudes and/or behaviors of people from one
culture are modified as a result of contact with a different culture. Acculturation implies a mutual
influence in which elements of two cultures mingle and merge.] In http://www.enotes.com/acculturationreference/acculturation-172816 Consultado em 12/08/2010.
25
A transculturação é um fenómeno que está presente no multiculturalismo,
sendo este entendido, em termos sociológicos, como a presença de diferenças culturais
numa determinada sociedade, presença que se faz sentir pela existência de afirmações
de identidades religiosas, étnicas, nacionais, raciais, etc.
Efectivamente, multiculturalismo pode conter diferentes significados. Neste
sentido, introduzimos algumas noções deste termo. Digo noções, porque sendo um
conceito polissémico, as dificuldades de consenso a nível conceptual são múltiplas, e
como tal, neste trabalho, entendemos por multiculturalismo, lato sensu, e não o
aprofundamento do conceito.
De acordo com o Dicionário da Língua portuguesa - Infopédia (201024), ele é
[…] a coexistência de várias culturas diferentes num mesmo país ou numa mesma zona.
[…], e segundo o Dicionário Online de português (201025), é […] A prática de
acomodar qualquer número de culturas distintas, numa única sociedade, sem
preconceito ou discriminação […]. Estas noções, principalmente, a última, serão úteis
mais adiante, quando se abordar o conceito e alcance de interculturalidade.
Uma abordagem mais completa e complexa, é apresentada por Santos e Nunes
(2007):
[…] A expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas
culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades
«modernas». Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as
diferenças culturais num contexto transnacional e global (…).
O conceito de multiculturalismo é, também ele, controverso e atravessado por
tensões. Ele aponta simultaneamente ou alternativamente para uma descrição e para
um projecto (Stam, 1997). Enquanto descrição, pode referir-se a:
1.
a existência de uma multiplicidade de culturas no mundo;
2.
a co-existência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado-nação;
3.
a existência de culturas que se interinfluenciam tanto dentro como para além do
Estado-nação.
É na medida em que o multiculturalismo como descrição das diferenças culturais e
dos modos da sua interrelação se sobrepõe ao multiculturalismo como projecto
político de celebração ou reconhecimento dessas diferenças que ele tem suscitado
críticas e controvérsias (…).
24
- Consultado em 12/08/2010.
25
- Consultado em 12/08/2010.
26
Apesar das críticas acima enunciadas, o termo «multiculturalismo» generalizou-se
como modo de designar as diferenças culturais num contexto transnacional e global.
Isso não significa, contudo, que tenham sido superadas as contradições e tensões
internas apontadas pelos críticos (…). (Santos e Nunes: 2007: p. 5).
O fenómeno da transculturação designa o processo complexo de intercâmbios
culturais que ocorrem aquando dos contactos entre sociedades e culturas distintas, no
decorrer do tempo histórico, e estes contactos podem ser provocados por várias razões,
desde migrações, emigrações, ocupações militares, ou serem resultado de processos de
colonização.
Em termos políticos e éticos, a transculturalidade e o multiculturalismo oscilam
entre um universalismo que encara os indivíduos como cidadãos com direitos iguais, e
os defensores dos particularismos culturais. Conciliar as duas posições será respeitar o
direito a uma cultura própria, com o direito à cidadania, ou seja, à participação plena na
vida pública.
4. O processo da interculturalidade
A interculturalidade é um processo, uma mentalidade em construção, orientada
pela compreensão, solidariedade e fraternidade entre culturas diferentes. Ela refere-se à
interacção entre culturas de uma forma recíproca, favorecendo a integração assente
numa relação baseada no respeito pela diversidade e no enriquecimento mútuo.
A expressão define, também, um movimento que tem como ponto de partida o
respeito pelas outras culturas, superando as falhas do relativismo cultural ao defender o
encontro em pé de igualdade entre todas elas, ou seja, um relativismo ético-crítico que
assuma a consciência dos limites.
O interculturalismo é um fenómeno que não se limita a conhecer as várias
culturas, mas que potencia a interacção cultural.
Miquel Alsina (1999) define o multiculturalismo e a interculturalidade,
respectivamente, como:
27
(…) Se puede entender el multiculturalismo como la ideología que propugna la
coexistencia de distintas culturas en un mismo espacio real, mediático o virtual;
mientras que la interculturalidad sería las relaciones que se dan entre las mismas.
(...) la interculturalidad haría referencia a la dinámica que se da entre (...)
comunidades culturales […]. (Alsina: 199926).
A mentalidade intercultural permite o enriquecimento da educação,
principalmente, dos jovens, na base da compreensão pela diversidade, tornando-os mais
participativos na construção da Democracia, mais atentos às diferentes formas e estilos
de aprendizagem, mais aptos à comunicação entre eles e entre as gerações, encorajandoos a resolverem os seus conflitos de forma não violenta, promovendo, assim, a paz e a
harmonia.
Cardoso, defende, inspirando-se na teoria de Claude Clanet, que,
[…] O conceito de Interculturalidade compreende reciprocidade das relações entre
os povos que coexistem no mesmo espaço, com respeito pela identidade (cultural
também) de cada um, para o que se torna indispensável que a educação dos seus
jovens tenha essa base para que se possa afirmar intercultural. [...] (Cardoso: 2008:
p. 21).
O conceito de Interculturalidade é utilizado no âmbito das Ciências Sociais e
Humanas. É um conceito que implica processos que se fundamentam na interacção e
reciprocidade cultural entre pessoas ou grupos humanos pertencentes a culturas
diferentes.
Conforme refere Garcea (1998):
[…] The peculiarity of intercultural communication lies in its pragmatic approach to
reality. It is based on a few abstract general truths, such as the fact that all humans
have a culture, value orientation, etc. allowing them to understand and interpret an
endless amount of practical experiences […]. (Garcea: 199827).
26
- Consultado em 15/08/2010.
27
- Consultado em 14/08/2010.
28
Como conceito autónomo, surgiu, na Europa das Migrações28, da necessidade
de melhor integração dos filhos dos trabalhadores migrantes, pois através de uma
educação intercultural era mais fácil às crianças dessas famílias inserirem-se no sistema
de educação do país de acolhimento e, também, adaptarem-se melhor, no caso de
regressarem ao país de origem.
A interculturalidade procura, assim, compreender e resolver problemas que
surgem ao nível das relações humanas decorrentes de diferenças étnicas, religiosas e
culturais no seu sentido global, que frequentemente emergem das migrações e de grupos
minoritários.
Repensando esta abordagem, e relembrando o tema principal desta dissertação,
pensamos que não será pretensão, nem arrojo excessivo, defender o interculturalismo
como fruto e geração de um Humanismo de que a história europeia está cheia e que
timbrou de modo particular o relacionamento dos europeus com os povos com quem
foram contactando e até com aqueles a quem foram colonizando. Este Humanismo
europeu29, ainda hoje é sentido por parte dos países de acolhimento daqueles que daqui
emigram, ou que viajam turisticamente. Traduz-se não só numa atitude de respeito pelo
Outro, pela alteridade, tal como é marcado(a) pela sua cultura, como também numa rara
capacidade de adaptação às outras culturas, sem perda da própria identidade, e ao
mesmo tempo de miscigenação sem preconceitos.
5. A interculturalidade na expansão Portuguesa
Importa, neste momento do trabalho, fazer um parêntesis relacionado com a
actividade expansionista portuguesa, e relacionado também com a teia cultural em que
28
- Nome dado ao aumento exponencial de emigrações europeias desde o início do século
XIX, até ao início do século XX. Durante este tempo, ocorreu a maior percentagem de imigração, com
destino às Américas (do Norte, Centro e Sul), protagonizada por cidadãos de várias nacionalidades do
Velho Continente, e entre eles, cidadãos portugueses.
29
- Um Humanismo principalmente português e espanhol, já que eram as duas únicas potências
em concorrência pelo mar e pela terra entre os séculos VI e XVI.
29
se inseria Fernão Magalhães, uma vez que o navegador era português de origem, e viveu
em território português até à altura em que iniciou a sua participação nas viagens das
descobertas. Apesar de Fernão Magalhães ter passado algum tempo em terras
descobertas, como por exemplo, em Goa, de 1511 a 151230, ao serviço da Coroa
Portuguesa e de, mais tarde, ter adoptado nacionalidade espanhola, a verdade é que o
facto de ser nascido e criado em Portugal, pesou na sua bagagem cultural,
principalmente na forma como encarava o Outro, o estrangeiro, o descoberto. Por esta
razão, torna-se necessário abordar a questão da interculturalidade na expansão
Portuguesa, isto é, a forma como Portugal iniciou a globalização, entrando em contacto
com culturas diferentes e levando a essas culturas a sua própria identidade cultural.
“ Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e
em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir.
Da minha língua vê-se o mar.”
(Vergílio Ferreira, 1991)
A Expansão Portuguesa foi, desde as suas origens, um processo multifacetado,
em que coexistiam diversas dinâmicas, nomeadamente políticas, económicas, sociais,
religiosas ou científicas.
Até ao século XV, nenhuma civilização tinha consciência da verdadeira
dimensão do Planeta e da riqueza humana e geográfica existente. Ao contrário dos
impérios que se haviam formado anteriormente, os novos impérios nascidos com a
globalização assentaram, inicialmente, em processos de expansão marítima. O desbravar
do Oceano Atlântico foi decisivo para o arranque deste processo. Na verdade, o
Atlântico foi o derradeiro obstáculo à circulação do Homem pelo Planeta e a viagem de
Gil Eanes, em 1434, abriu as portas à Modernidade, pois rompeu com o medo do Mar
Tenebroso, que inibia a circulação pelo oceano e a comunicação entre os continentes.
30
- Em Julho de 1511 Goa foi tomada pelos Portugueses, sob o comando de Afonso de
Albuquerque, e com a participação de Fernão de Magalhães, após tentativas anteriores frustradas de
tomada daquela terra.
30
A partir do século XV, uma mesma civilização interferiu simultaneamente em
inúmeras regiões do Globo, e dessa forma, pela primeira vez na História, um mesmo
modelo civilizacional31 insinuou-se ao mesmo tempo junto de sociedades dos outros três
grandes continentes e criou, numa mesma época, sociedades coloniais de matriz
semelhante, dispersas por todo o mundo. Além disso, o movimento das Descobertas fezse pelo mar, pelo que superou distâncias, desencadeando, por isso, muitos choques
culturais bruscos, bem diferentes daqueles que haviam decorrido por via de choques
fronteiriços.
Os primeiros contactos com diversas civilizações espalhadas pelo mundo
foram seguidos por relações duradouras, que possibilitaram primeiro a emergência de
um império marítimo e, depois, a formação de um império territorial.
A criação de um sistema global, organizado em rede, teve outros protagonistas,
mas foram os Portugueses, seguidos dos Espanhóis, que promoveram a primeira grande
revolução geográfica, e a navegabilidade de três oceanos uniu os continentes,
possibilitando diversos intercâmbios culturais.
O encontro do europeu com o Outro não é feito apenas por uma das partes, mas
implica uma reciprocidade de imagens, ainda que as fontes sobre a percepção europeia
sejam mais abundantes e acessíveis que as demais partes do processo dos
descobrimentos do Globo.
As primeiras visões ficaram registadas nos mais variados tipos de documentos
como, por exemplo, cartas, crónicas ou relatos de viagens, escritos por homens das mais
diversas formações, nomeadamente, missionários, oficiais, régios ou simples
aventureiros. Alguns exemplos de autores desses relatos são, Pêro Vaz de Caminha,
Padre António Vieira, Álvares Cabral e Álvaro Velho, entre tantos e tantos outros.
31
- A cultura europeia de tradição portuguesa, que foi derramada pelo mundo, através dos
Descobrimentos, consistia num grande legado intercultural. A estrutura política da sociedade portuguesa
assentava num modelo de relacionamento de matriz feudal, que havia sido trazido pelos povos
germânicos, aquando da queda do Império Romano, mas o Direito e a Religião eram herdeiros sobretudo
das tradições de Roma. A Filosofia e a Ciência, por sua vez, tinham as suas origens no legado grego. A
numeração utilizada provinha da nação Árabe. O sucesso da navegação oceânica teve um forte contributo
da utilização da bússola, uma invenção vinda da China, tal qual a pólvora. Assim, os Portugueses levaram
consigo esta síntese cultural, a que se acrescentavam o seu hábito de fixar fortalezas e futuras cidades em
lugares acidentados, na lógica da velha tradição castreja das populações pré-romanas.
31
É necessário ter em conta que, quando os Portugueses fizeram os seus
apontamentos sobre o Outro, as suas opiniões eram moldadas por uma cultura que se
debatia entre o recentíssimo valor da experiência e os elementos da tradição medieval
que construíra uma visão geográfica do mundo condicionada pelas concepções bíblicas,
o que se nota bem nas expressões utilizadas pelos descobridores e ou relatores da
viagem, como por exemplo, as classificações sobre os tipos humanos, que revelam uma
leitura religiosa – o mouro ou infiel (num primeiro contacto com outra cultura) e o
gentio, geralmente associado à negritude da Guiné (primeiro patamar de comparação na
expansão marítima de Portugal), sem religião aparente ou seguidor de um Islamismo
pouco convicto. Esta é uma classificação própria do Renascimento português, época do
encontro de culturas, que define o Outro essencialmente pelas suas crenças religiosas. A
religião é a chave e o motor da antropologia do século XVI. Contudo, as navegações
portuguesas vão lidar com o Outro interno, o herege, o judeu, mas, sobretudo, com o
muçulmano. No entanto, descobre-se o Outro exterior, o africano, o ameríndio e o
asiático, na sua maioria gentio ou sem inclinação religiosa. O discurso sobre o Outro
constrói-se através de um jogo de analogias.
Em termos políticos, os reinos são classificados também como gentios ou
mouros, havendo sempre o cuidado de referir se existe uma comunidade mercantil
muçulmana e qual a sua relação com o poder.
A compreensão do Outro teve como objectivo principal a construção de um
conhecimento utilitário. Os Portugueses interessaram-se pelas sociedades descobertas,
porque desejavam estabelecer com elas relações comerciais e políticas, além de
evangelizar os povos descobertos, espalhando a Fé cristã e aumentado assim o poder da
Igreja.
Sobre a interculturalidade e a compreensão do Outro na expansão marítima
portuguesa, Oliveira e Costa e Lacerda, afirmam o seguinte:
[…] Há três grandes fases na História da Expansão – a do império marítimo (puro)
até primeiro terço do século XVI; uma segunda fase de transição de um império
marítimo para um territorial que vai até ao segundo terço do século XVII; uma
terceira fase da afirmação do império territorial, a partir de finais do século XVII. A
afirmação do império territorial só se explica pela capacidade dos portugueses em
estabelecer, com sucesso, sociedades mestiçadas em todos os locais onde se fixaram.
A interculturalidade é um processo associável ao período de dominação territorial e
quase não existe enquanto Portugal dispunha essencialmente de um império
32
marítimo; ou seja, a interculturalidade desenvolve-se quando os portugueses partem
ao contacto efectivo com os outros, e com eles convivem nas suas próprias terras
[…] (Oliveira e Costa; Lacerda: 2007: p. 8).
Durante a expansão marítima e territorial portuguesa, e apesar das críticas,
foram missionários e mercadores que lideraram alguns dos avanços mais importantes
desse período, fosse território brasileiro ou africano adentro, fosse na consolidação do
comércio no Extremo Oriente Asiático. Importa notar que estes novos movimentos
expansionistas geraram muitos mais fenómenos de interculturalidade que os
movimentos iniciais, propriamente de descoberta, pois assentavam num contacto muito
mais próximo e menos autoritário, logo mais interactivo com as populações indígenas.
Depois, há também a questão da cultura da língua portuguesa nos territórios descobertos
e ocupados, e ainda, a questão dos casamentos inter-étnicos ou mestiços nesses
territórios.
A primeira questão relaciona-se com o desejo de homogeneizar a comunicação
entre portugueses e os novos súbitos da corte de Portugal, e tem também a ver como a
imposição da cultura dominante. A segunda questão está relacionada com dois motivos.
O primeiro, é resultante do facto de nas embarcações portuguesas viajarem, em maioria
absoluta, homens, e assim, quando atracavam e se fixavam nas novas terras, não existia
presença feminina portuguesa para iniciar a colonização e encetar uniões ou casamentos
inter-étnicos. Desta forma, levaria bastante tempo, e seria impraticável, o envio de
colonos, e principalmente, de mulheres, do Reino para a África, Brasil e Oriente. Por
esta razão, algum tempo depois da tomada das terras, os casamentos inter-étnicos,
mistos ou mestiços eram autorizados32, e através destes, a cultura portuguesa era
também disseminada, exercendo presença e força na cultura dos povos descobertos,
32
- Em Goa, por exemplo, Afonso de Albuquerque concedeu aos portugueses que casassem
com nativas e que se estabelecessem definitivamente na terra um pequeno dote pago pelo Estado e uma
parcela de terra para a agricultura, retirada à aristocracia muçulmana. Já a sociedade colonial brasileira
foi, desde o início, profundamente intercultural, pela interacção de três culturas com raízes diferentes: a
ameríndia, a europeia e a africana. Os contactos entre os vários povos originaram uma série de novas
etnias que exigiram, na época, a construção de uma nova nomenclatura, para identificar os nascidos dos
vários casamentos mistos. Este cruzamento biológico originou intercâmbios linguísticos, religiosos,
técnicos, botânicos e alimentares.
33
além de aumentar a demografia com influência lusa, que era a intenção principal dos
casamentos inter-étnicos.
O incentivo aos casamentos mistos (mestiçagem, ou miscigenação) deve ser
compreendido à luz de um projecto expansionista, marcado pela ausência de mulheres
brancas. Por outro, a necessidade de criar uma estrutura comercial e administrativa, em
vastos pontos do Império Português, só podia ser feita através da mistura com as
populações locais. Portugal, na época da Expansão, era um pequeno reino na Europa,
com uma população reduzida, cujos homens se disseminavam pelos quatro continentes.
O cristianismo teve também um papel fundamental na difusão e enraizamento,
em algumas situações, da cultura portuguesa pelas terras descobertas. A prática da fé e a
sua expansão possibilitaram um contacto mais próximo com o Outro, e neste contacto, a
transmissão de um pedaço da cultura portuguesa. O processo de acomodação cultural
levado a cabo pelo cristianismo, principalmente através dos Jesuítas, proporcionou uma
verdadeira convivência e troca culturais. A actuação dos Jesuítas no Brasil, no Japão e
também na Índia meridional, foi feita com respeito pela cultura local, estudando a
língua desses povos, ensinando música e cântico litúrgico, e usando o teatro. Todos
estes meios de contacto mais próximo com o Outro, são meios de aproximação ao Outro
e dele a nós – são pontes para o entendimento e para o conhecimento mútuo.
Outro factor muito importante para a interculturalidade na expansão portuguesa
é a intervenção de determinados sujeitos, que se encontravam em situação de fuga
prisional ou deserção militar. Esse factor é desenvolvido por Oliveira e Costa, e Lacerda
(2007) que sublinham:
[…] Com efeito, as manifestações precoces e mais interessantes de intercultura, em
que o protagonista da adaptação a novos hábitos era o Português, tenderam a
realizar-se em espaços periféricos, por indivíduos, muitas das vezes marginais ao
Estado, que funcionaram como intermediários entre os Portugueses e os povos
locais. Estes «lançados» penetravam no interior de África, fugidos das autoridades,
procurando uma vida alternativa junto das populações locais. Muitos adoptaram o
modo de vivência indígena, livrando-se da roupa, adoptando a religião, a língua
nativa e casando com africanas, constituindo as primeiras famílias mestiças. Estes
indivíduos e os seus descendentes mantinham relações privilegiadas com os poderes
africanos, chegando a casar com membros das famílias reais, servindo de
intermediários no comércio com os Portugueses, beneficiando assim do melhor dos
dois mundos.
34
Alguns «lançados» eram degredados que procuravam, através do serviço ao Infante
ou à Coroa, uma forma de diminuir a sua pena. No entanto, este grupo de homens
não foi constituído exclusivamente por Portugueses: alguns eram africanos
capturados, a quem era ensinado Português, oferecidos presentes e depois
reenviados à sua terra de origem para explorarem o interior do continente. Por mais
diversas que fossem as suas origens, os «lançados» eram sempre produto de uma
aculturação […] (Oliveira e Costa; Lacerda: 2007: p. 91- 92).
Sobre a importância que a expansão portuguesa teve na revelação e mudança
das culturas e na escrita da história, cito, ainda, Oliveira e Costa, e Lacerda (2007), que
no seu trabalho sobre a expansão portuguesa nos séculos XV e XVIII, afirmam o
seguinte:
[…] Parte das vitórias lusas contra as potências europeias, que tentaram conquistar o
seu espaço no superdimensionado Império Lusíada, deveram-se à capacidade de os
Portugueses criarem uma colonização de raízes profundas, baseada, exactamente,
nos casamentos inter-étnicos. Os Portugueses criaram famílias, comerciaram,
impuseram o Português como língua franca e evangelizaram, e assim, quando outras
nações europeias procuraram o seu próprio espaço no processo expansionista
tiveram de lidar com uma forte presença da cultura portuguesa e com os inúmeros
processos de mestiçagem que esta desenvolvera […] (Oliveira e Costa; Lacerda:
2007: p. 117-118).
A actividade expansionista portuguesa originou uma mutação social, cultural e
económica, a nível global, sendo ainda responsável pelo redesenhar da geografia
mundial e pelo início de inúmeras trocas comerciais transnacionais, alterando, também,
os hábitos de consumo das populações.
Conforme relembram Oliveira e Costa, e Lacerda (2007), […] Uma das áreas
em que a dinâmica de fluxos multidireccionais se manifestou foi na circulação de
plantas, que está associada a mudanças de hábitos alimentares e também à adopção de
novos hábitos sociais […] (2007: p. 88).
No seguimento desta ideia, basta lembrar que a transferência do cultivo da
batata, do feijão, do milho e do tomate, desde a América para a Europa e para a China,
provocou profundas alterações nas dietas alimentares dessas civilizações e contribuiu
decisivamente para os surtos de crescimento demográfico verificados em ambos os
espaços no século XVIII.
35
Entre os produtos que alimentaram as grandes rotas mercantis intercontinentais
da Época Moderna contam-se produtos como o tabaco, o chá, o café e as especiarias.
Todos eles tinham localizações muito específicas, até ao início do século XVI, mas,
depois todos passaram a ser consumidos por um número crescente de sociedades
espalhadas pelo mundo e o próprio cultivo das plantas transferiu-se para novas regiões.
O hábito de beber chá, por exemplo, notado pelos Portugueses quando chegaram à
China, também se transferiu para as sociedades europeias e suas colónias. Como é
sabido, foi D. Catarina de Bragança33, rainha de Inglaterra, quem introduziu a moda de
beber chá na corte britânica, e esta bebida de origem asiática, levada para Londres por
uma portuguesa, acabou por se tornar num elemento marcante da cultura inglesa.
6. O reconhecimento na esfera da interculturalidade
“ Ou aprendemos a viver como irmãos,
ou vamos morrer juntos como idiotas ”
(Martin Luther King, 1963)
Esta frase encerra em si toda a intenção e alcance da alteridade, do
interculturalismo, assim como o objectivo da educação intercultural.
A palavra alteridade possui o significado de um indivíduo se colocar no lugar
do outro na relação interpessoal, com consideração, valorização, identificação, e diálogo
com o outro.
A questão da alteridade é indissociável da questão da interculturalidade, no
sentido em que uma é a prática da outra, e a outra é o resultado contínuo da boa prática
da primeira. Trata-se de conceitos gémeos, no sentido de andarem de mãos dadas, pois
separados são inoperacionais.
33
- D. Catarina casou com Carlos II, em 1662. Seu dote incluía a cidade de Bombaim e de
Tânger para o domínio britânico, pois Portugal, em busca de apoios contra Filipe IV de Espanha na
Guerra da Restauração, a isso se comprometera pelo tratado de paz e aliança assinado com o rei inglês.
36
A prática da alteridade conduz da diferença à soma nas relações interpessoais
entre os seres humanos revestidos de cidadania, e através da relação alteritária é
possível exercer a cidadania e estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os
diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o
contrário, ou seja, quando sujeitos inseridos em ambientes multiculturais conseguem
respeitar a diversidade cultural, através do intercâmbio, do respeito, da compreensão e
do convívio pacífico, vivendo e aprendendo com os novos mapas da interculturalidade.
A não prática da alteridade, pelo contrário, é sinónima da desumanização do
Outro, e esta equivale à anulação do Outro, fazendo com que ele não exista num plano
igual ao nosso. A este respeito, existe, na dramaturgia inglesa, uma peça fenomenal,
escrita por Shakespeare, que foi levada séculos mais tarde ao cinema34, e que demonstra
na perfeição esta desumanização e a queixa do Outro perante o tratamento que lhe
conferem35. A peça é o Mercador de Veneza, escrita entre 1594 e 1597, e cita-se o
monólogo de Shylock (o agiota judeu), numa rua de Veneza:
[…] E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm
mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos
alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se
curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e
o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não
sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não
morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos
iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um
cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual
deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança […]
(Shakespeare36).
34
- Em 1973, protagonizada por Lawrence Olivier (como Shylock), e mais tarde, em 2004,
protagonizada por Al Pacino, no papel do agiota judeu.
35
- Desde finais do século XII, até finais do século XIII, que na Inglaterra, os judeus eram
confinados e trancados em Ghetos, de onde saíam de manhã para trabalhar, e para onde voltavam ao
entardecer, com hora de recolha, sob pena de morte. Além desta limitação, conta-se (até na própria Peça
O mercador de Veneza) que os judeus eram muitas vezes humilhados em praça pública pelos cristãos. A
Comédia O Mercador de Veneza foi escrita entre os últimos anos do século XVI, numa altura em que os
judeus não estavam presentes em Inglaterra, pois tinham sido expulsos em 1290, e só viriam a ser
readmitidos em solo britânico em 1655.
36
- Consultado em 16/08/2010.
37
Através deste excerto d’ O Mercador de Veneza, podemos observar a forma
singular e brilhante como Shylock, nas palavras de Shakespeare37, expõe a questão da
humanização/desumanização do Outro, semelhante do cristão, mas estrangeiro, e por
isso diferente – e por isso também, considerado inferior, ele e a sua cultura.
Este exemplo da ausência da prática da alteridade serve perfeitamente como
ponto de partida para entendermos melhor a ideia de interculturalidade e o efeito da
prática da alteridade.
A interculturalidade contém uma dinâmica de tolerância e de alteridade, de
respeito pelos ritmos de aprendizagem diferentes do Outro, pela forma de ver o Outro –
não como um objecto a estudar e a analisar, mas como um sujeito também capaz de
perceber e repensar a sua própria cultura – em que a diferença deve ser a base de uma
relação entre iguais.
Um princípio fundamental do entendimento do multiculturalismo, segundo
Sidekum (2008), é que […] O outro está dentro, e não fora do nosso contexto cultural.
[…] (Sidekun).
Partilhamos deste entendimento e estendemo-lo à interculturalidade e à
educação intercultural, porque o essencial aos nossos olhos deve ser o facto de o Outro
existir no nosso contexto cultural, independentemente de convivermos bem ou não com
essa presença. Assim, a educação intercultural interfere e trabalha precisamente o factor
da aceitação da outra identidade, do outro ser, do Outro, através da alteridade,
transformando em positiva a convivência e a coexistência culturais.
Sobre o entendimento da educação multicultural, que se apoia na prática da
alteridade, Hanley, defende que […] Essentially, multicultural education is about
change trough education. (…) Multicultural education harbors a place for a multitude of
voices in a multicultural society and a place for many dreams […]. (Hanley: 199938).
No mesmo sentido, mas de uma forma mais específica, Peres, afirma, numa
entrevista ao Jornal A Página da Educação, quando questionado sobre o alcance da
educação intercultural:
37
- Shakespeare é acusado, por alguns autores, de ter escrito esta comédia específica numa
base anti-semitista, enquanto que outros autores elogiam o dramaturgo pela forma como ele entende o
comportamento das pessoas na época, expondo assim os seus preconceitos e tirando partido dessa
exposição para um melhor entendimento e aceitação do Outro.
38
- Consultado em 16/08/2010.
38
[…] eu descubro-me no Outro, e o Outro descobre-se em mim; (…) as realidades
são plurais e diversas, mas eu posso desenvolver projectos em comum. E é isso que
está implícito na concepção da educação intercultural - respeitar o outro, valorizá-lo
e aprender com ele. Sem me colocar numa posição de superioridade, porque,
efectivamente, todos podemos aprender uns com os outros […]. (Peres: 1999: p. 4).
Neste contexto, trazemos ainda à colação uma reflexão acerca do termo o
Outro.
Abrindo um dicionário da língua portuguesa e um dicionário de sinónimos da
mesma língua, e procurando a definição de Outro, deparamo-nos com uma situação
interessante: a palavra – outro – tem a grandeza de ser uma antinomia, retendo em si
duas verdades contraditórias. Outro, significa não ser o mesmo, como tal, aquele que é
diferente, distinto. No entanto, entre os seus sinónimos encontramos também o
semelhante e até mesmo o igual.
Efectivamente, podemos entender que a alteridade, ou outridade (porque é
relativa à existência de Outro) é a concepção que parte do pressuposto básico de que
todo o homem interage com e é interdependente de outros indivíduos. Desta forma, e de
acordo com uma visão mais antropológica, a existência do eu-individual só é permitida
mediante um contacto com o Outro. De acordo com uma visão mais filosófica, podemos
dizer que o eu apenas existe a partir do outro, da visão do outro, o que lhe permite
também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do
diferente quanto dele mesmo, sensibilizado que está pela experiência do contacto. Nesse
sentido, a mentalidade intercultural está aberta a uma pedagogia do respeito pelo outro,
como ser humano que também é – em tudo o que é corpo e espírito é igual a nós, e
aberta a uma pedagogia para a igualdade e para a interacção de diferenças culturais.
39
7. A Circum-navegação do globo por Fernão de Magalhães
7.1. Antecedentes gerais das viagens dos Descobrimentos:
Com o alvorecer do século XV, a Europa inicia a sua mais extraordinária era
de transformação desde a queda do Império Romano.
Os interesses comerciais que surgiram, nos finais da Idade Média, nos portos
da orla ocidental da Europa, olhavam com certa inveja para o monopólio italiano e
germânico do comércio com o Oriente. Os tecidos de algodão e seda, as especiarias, as
tintas, os perfumes e as pedras preciosas do Oriente encontravam mercado pronto no
Ocidente, ainda que os preços quadruplicassem em trânsito, devido aos onerosos
transportes por caravana desde o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho até aos portos do Mar
Mediterrâneo. A expansão do Império Otomano pelas rotas do comércio da Europa com
a Ásia resultou na imposição de taxas ainda mais pesadas ao comércio oriental.
Confrontados com esta situação, os comerciantes, os marítimos, e mesmo os
governantes ibéricos iniciam a procura de novas rotas para o Oriente.
A difusão de antigas ideias, que consideravam a terra esférica, foram
retomadas por pensadores e exploradores ousados que sonhavam atingir o Extremo
Oriente, quer contornando a África, quer atravessando o misterioso Atlântico.
Novas ideias a nível político, religioso, económico e social, desafiavam o
provincianismo da vida medieval. Por outro lado, o aumento da população obrigava ao
cultivo de outras terras, à fundação de novas cidades e tornara necessárias maiores
quantidades de alimentos e de outros bens. Surgiu uma nova classe média de
comerciantes – a burguesia, que prosperava com o comércio florescente das cidades.
A Europa precisava agora de metais preciosos para cunhar as moedas
indispensáveis a este comércio em desenvolvimento e, inevitavelmente, virou-se para o
Oriente para obter o ouro e as outras mercadorias preciosas que os cruzados tinham
visto os comerciantes árabes vender nos mercados do Médio Oriente. Porém, o que a
Europa mais desejava era especiarias, os condimentos utilizados no tempero e
conservação da carne. Esta necessidade, aliada à ideia do enorme lucro que se dizia
resultar de um só carregamento (embarcação) de especiarias, despertaram, em especial,
o interesse dos monarcas portugueses e espanhóis, que tinham assim a oportunidade de
consolidar as suas políticas expansionistas.
40
Durante o final da Idade Média, os navios de vela foram-se desenvolvendo
gradualmente, tornando-se, no século XV, navios verdadeiramente oceânicos (para a
época) e capazes de suportar as tempestades atlânticas, além de suficientemente rápidos
e próprios para o mar, permitindo longas viagens sem necessidade de reabastecimento
e/ou reparação. Por outro lado, os progressos na arte de navegar tornaram possível o
afastamento da costa sem receio de a perder de vista, nomeadamente, através da agulha
magnética, trazida da China para a Europa por intermédio dos Árabes e dos Cruzados, e
da medição da velocidade do navio pelo tempo de passagem de qualquer objecto
flutuante. Assim, conhecido o rumo e a velocidade do navio, estimava-se o percurso
com razoável margem de erro, o que ofereceu bastante apoio aos navegadores, até à
descoberta de outros utensílios de navegação.
No intervalo de meio século apenas, ousados navegadores europeus,
descobrem um caminho marítimo para a Índia, a América e circum-navegam a terra,
além de navegarem para África.
7.2. Os relatos das viagens como testemunho na época
Durante os séculos XV e XVI, com os Descobrimentos, nasce e desenvolve-se
um novo género literário: a literatura ou relato de viagens.
Este tipo de literatura teve os seus antecedentes na necessidade pragmática de
registar rotas, distâncias, condições atmosféricas, acidentes geográficos e todos os
elementos que pudessem facilitar a repetição e/ou o prosseguimento das viagens
efectuadas. Depois, a esta necessidade juntou-se a curiosidade e a vontade em descrever
tudo quanto se via, desde os povos descobertos e os seus costumes, aos animais e
plantas nunca antes vistos.
Na literatura de viagens podemos incluir os diários de bordo, cartas enviadas
ao rei, roteiros e descrições. Em suma, toda uma série de textos directamente
relacionados com a política expansionista da época. Era comum os marinheiros ou
viajantes, ou ainda, os escrivães, apontarem as suas notas dia a dia, conforme o passar
dos acontecimentos, e daí, não ser de estranhar que muitos destes relatos tomem a forma
de diários, como é o caso do Diário de Colombo e o de Pigafetta.
41
A maior dificuldade que se levantava na elaboração destes relatos estava no
facto de se descrever coisas totalmente novas e desconhecidas, para as quais não havia
sequer um nome ou uma explicação, mas havia a sua descrição, feita pelo observador, e
era ele quem transmitia essa novidade e a apresentava à sua cultura. Essa novidade era
um mundo cultural desconhecido, encoberto pela distância, com outras concepções de
vida, outras ideias, crenças, conhecimentos. Numa palavra, o Outro.
No que se refere à literatura de viagens, um dos exemplos mais conhecidos é,
sem dúvida, a Carta de Pêro Vaz de Caminha a D. Manuel I. Nessa Carta temos a
descrição da descoberta do Brasil, com informações importantes acerca dos povos que
aí habitavam, as suas características físicas e comportamentais, os seus costumes, as
suas línguas, o clima e a natureza (plantas e animais) que os rodeava. Outros exemplos
são, o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro Velho, a Carta do
descobrimento da América, de Cristovão Colombo, e a Peregrinação, de Fernão Mendes
Pinto, apesar da controvérsia que envolve este último autor.
Estes textos são, pois, o testemunho da surpresa, o relato do insólito, o
depoimento entusiasmado ou apreensivo sobre a nova realidade física e humana.
Por um lado, é o desejo de conhecer novos mundos que leva os homens a
registar as novidades encontradas nas viagens marítimas, assim como a registar também
os acontecimentos durante essas viagens. Por outro lado, é a curiosidade que induz os
eruditos do sul e do norte da Europa a lerem e a traduzirem o testemunho que os
navegadores, marinheiros e escrivães, nos legaram.
Relativamente ao valor que estes testemunhos tinham na época, ele deve-se,
principalmente, ao facto dos registos e das cartas dirigidas aos monarcas darem a
conhecer as características geográficas, geológicas, ambientais, populacionais, culturais
e de vida animal, das terras descobertas, possibilitando à Corte e aos comerciantes um
estudo de viabilidade da fixação de gentes e da exploração dos recursos naturais e
humanos dessas terras, assim como a Evangelização dos povos que nelas habitassem.
Aliás, foi sempre após a recepção destas novidades escritas, na Era dos Descobrimentos,
que os monarcas tomavam a vital decisão de colonizar e explorar as terras descobertas,
ou pelo contrário, abandoná-las, por serem inférteis.
42
7.3. A questão política, religiosa e social nesta viagem
Além dos factores económicos, como o alto preço que se pagava pelas
mercadorias oriundas do Oriente, trazidas pelos árabes, e do desejo de encontrar novas
rotas para o Oriente, fizeram-se reflectir, nesta viagem, em particular, as questões
política, religiosa, e social.
O principal motivo para a primeira viagem de circum-navegação, foi, sem
dúvida, o desejo de procurar e estabelecer uma nova rota marítima para as Índias, e
principalmente, para as Molucas, de onde vinha o ouro das especiarias, tão ansiado
pelos espanhóis. A rota de navegação existente até esse momento, até à índia, pertencia
aos portugueses, e o motor principal desta viagem foi encontrar um caminho, uma rota,
que não passasse pelos pontos daquela, e que permitisse à coroa Espanhola chegar à
fonte das especiarias, e não só, e afirmar-se no mercado destes produtos, uma vez que os
muçulmanos detinham o monopólio do comércio de especiarias, além da seda, tecidos
de algodão, perfumes, esmeraldas, rubis e safiras, entre o Ocidente e o Oriente.
Intrínseco a esta razão, está o fortalecimento do poder real. Através dos
tesouros transportados para o reino, e do lucro obtido em cada viagem, os recursos e o
poder do monarca aumentavam exponencialmente, conferindo-lhe maior autoridade.
A religião, natural aliada da Coroa, proporcionou outro incentivo, para as
viagens dos Descobrimentos em geral, pois no fim do século XIV, a maior parte da
Europa tinha já perdido o espírito de cruzada, enquanto esse zelo permanecia ainda na
Península Ibérica, onde séculos de luta, contra os mouros, tinham deixado uma
animosidade permanente contra os infiéis. Além disto, a expansão marítima oferecia-se
como um magnífico, e bem aproveitado, mote para a evangelização e cristianização de
outros povos, aumentado assim o rebanho de Deus.
O específico momento desta viagem é um momento oportuno de ampliar a fé
cristã, levando-a além fronteiras, e principalmente, aos povos do Oriente, com riquezas
tão desejadas pelos Europeus, e em especial, pelos Espanhóis.
A ambição renascentista pela fama e pelo triunfo pessoal e pelo
reconhecimento dos feitos individuais, foram outro factor que acompanhou desde o
início as viagens das descobertas, contribuindo para o surto de exploradores e
navegadores que se seguiria até ao século XVIII, e esta viagem, a primeira de circumnavegação marítima, não seria diferente nesse sentido.
43
Outro factor que contribuiu para esta viagem, assim como para as anteriores e
posteriores viagens, foi a ascensão de uma nova classe social – a burguesia, constituída,
essencialmente, por armadores e comerciantes. Formando uma classe social acima da
plebe, e bastante abaixo da nobreza, mas não menos importante por isso, os burgueses
alimentavam o sonho de chegar às fontes de produção de especiarias e outros produtos,
de forma a aumentar o seu poderio económico e afirmar cada vez mais a sua ascensão
social.
7.4. Consequências desta descoberta
A primeira viagem de circum-navegação marítima, pensada, iniciada, e quase
terminada por Fernão Magalhães, resultou em enormes consequências a vários níveis do
conhecimento, quer provando teorias, e desfazendo mitos, quer descobrindo factos
novos e acordando ou aumentando assim a curiosidade social e de investigação, para
além, é claro, dos efeitos económicos que teve, e que foram mais imediatos, como o
fortalecimento do comércio nacional e transnacional, o fortalecimento da ascensão da
burguesia e o fortalecimento ou reposicionamento político, neste caso, de Espanha.
O objectivo principal desta viagem, desdobrado em dois, foi atingido.
Primeiro, foi descoberta e traçada uma nova rota para a aquisição e transporte de
especiarias, nomeadamente, o cravo, das ilhas Molucas, actuais Filipinas, utilizando
para isso uma passagem marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico, a sul da
América. Segundo, apesar de só ter regressado uma nau das cinco que partiram, a sua
preciosa e cobiçada carga, ela também, um dos objectivos da viagem, valeu para cobrir
os encargos da expedição.
Esta viagem possibilitou, ao mesmo tempo, o conhecimento de territórios
escondidos, permitindo, mais tarde, a exploração desses territórios, assim como outras
rotas para eles. Desta forma, esta viagem impulsionou tremendamente outras viagens de
exploração às terras do Sul e ao Pacífico, levadas a cabo por exploradores e estudiosos
académicos.
Outra descoberta feita com a primeira circum-navegação marítima tem a ver
com o fuso horário, que à época era desconhecido, mas que através desta viagem foi
desvendado, ficando a saber-se que navegando de Este para Oeste se ganha um dia.
44
Com esta viagem, confirmou-se, também, e definitivamente, que a terra era
esférica, como já tinha pensado Colombo e defendido Galileu Galilei. Além da
comprovação desta teoria, esta viagem revelou ainda um novo céu, isto é, a existência
de outras constelações estelares e formações de nebulosas.
A primeira circum-navegação do globo, por Fernão Magalhães, permitiu
alcançar, para além dos objectivos principais do próprio navegador e nos quais a coroa
espanhola apostou todo um conjunto de contactos com novas realidades, culturas e
costumes, fauna e flora, distintas da conhecida, à época, pela Europa.
Com esta viagem, Magalhães e Del Cano, rasgaram o mundo conhecido até
então, e depois deles e desta viagem, mais nada foi igual. Mais do que qualquer outra, a
nosso ver, esta viagem originou uma massa de conhecimento fundamental para o
alargamento dos horizontes do saber científico e humanista, uma vez que a expedição
abrangeu, em termos de viagem, um maior número de terras, povos, e também, de
distância marítima percorrida, já que navegou três oceanos: o Atlântico, o Pacífico e o
Índico. Fundamentalmente, esta viagem proporcionou a geógrafos, astrónomos,
cartógrafos e navegadores, uma primeira ideia acerca da verdadeira dimensão da Terra,
mostrando-a bem maior do que se julgava ser, mas também, menos misteriosa, porque
apesar de difícil, o seu território era alcançável. Relativamente à cartografia, podemos
comparar, através dos anexos III, IV e V, a perfeição das linhas e limites do mapa do
Mundo e do Estreito de Magalhães, com um desenho e uma imagem de satélite, mais
recentes, nos anexos I e VI.
Foi a partir desta grande viagem que o verdadeiro Novo Mundo se abriu à
Europa e, particularmente, a Portugal e Espanha, seus grandes exploradores e
colonizadores.
Em termos de conhecimento, esta viagem, em particular, proporcionou um
colossal salto quantitativo e qualitativo na mentalidade da época, salto esse, apenas
comparável, em nossa opinião, à era da globalização informática, liderada pela Internet,
em que a Rede se transformou na sala de estar e biblioteca de qualquer cidadão mais ou
menos letrado, tendo este acesso a um vasto conjunto de informação sobre a sua e outras
culturas, e acesso, mesmo, a relacionamentos interpessoais, embora a característica
marcante destes seja a ausência de contacto físico, e visual, o que origina uma
transformação na forma de encarar e avaliar o outro e os relacionamentos, a nível
psicológico.
45
Esta foi a viagem que abriu definitivamente as portas ao conhecimento, e
transformou a concepção da Terra e do ser humano, ficando já muito pouco território
por desvendar, e enormemente enriquecido o estudo em áreas como a antropologia, a
sociologia, e as ciências exactas.
Além dos navegadores, marinheiros e viajantes foram os civis, principalmente,
comerciantes e colonos, e a igreja, quem desempenhou um papel importante na prática
da interculturalidade. Os navegadores, marinheiros e viajantes, em primeira linha,
porque foram eles os primeiros a ter contacto com o Outro e a reduzir a escrito as
novidades, diferenças e semelhanças. Os comerciantes e colonos, porque foram estes
quem manteve um contacto mais estável e duradouro com o Outro, convivendo na sua
cultura e na do outro, introduzindo e assimilando novidades, incorporando no seu modo
de viver e personalidade, elementos de uma e outra cultura, chegando mesmo a
miscigenar-se com este, factor que se revelou fulcral para a colonização das colónias,
mas também para a transculturação e multiculturalismo. A Igreja, porque através da
construção de escolas, e nem sempre causando conflitos, cristianizou rapidamente as
populações, incutindo-lhes o espírito católico, que perdura até hoje.
7.5. A multiculturalidade na constituição da tripulação desta
viagem
Esta viagem ou expedição constitui, talvez, a viagem com maior grau de
multiculturalidade na constituição da própria tripulação, de todas as viagens realizadas
na época das Descobertas.
Quando Fernão Magalhães teve o aval de Carlos I, monarca de Espanha, para
empreender a viagem de circum-navegação marítima, em busca de outra rota para as
Índias, e à descoberta de terras desconhecidas, devido à sua vasta experiência marítima
e feitos anteriores, foi nomeado capitão-general da expedição, constituída por cinco
naus. Esta nomeação não agradou a muitos espanhóis, que em complôt, decidiram
limitar a sua autoridade em viagem. Desta forma, este grupo conseguiu que fosse
nomeado para comandante de uma das cinco naus um espanhol, e outros espanhóis para
posições-chave, sendo as restantes naus, comandadas por portugueses.
46
Uma das maiores dificuldades no início desta expedição foi o recrutamento da
tripulação, uma vez que aos marinheiros espanhóis, orgulhosos, não lhes agradava
servir sob as ordens de um estrangeiro, e pior, de um português. […] Com efeito, o
único que se alistou de boa vontade parece ter sido Antonio Pigafetta, um jovem nobre
italiano que queria ver «os aspectos grandiosos e terríveis do aceano» […]. (Selecções
do Reader’s Digest: Os Grandes Exploradores de Todos os Tempos: p. 80).
Apesar das dificuldades no recrutamento da sua tripulação, Magalhães
conseguiu reunir um grupo de 250 homens, constituído por italianos, franceses,
alemães, flamengos, mouros e negros, bem como portugueses. Foi assim que este grupo
tão heterogéneo de tripulantes formou a tripulação de tão arriscada e famosa expedição.
Ora, este facto, só de per si, indica que o interculturalismo, embora não fosse estudado,
com este nome, na época, era já praticado, devido ao resultado do recrutamento das
tripulações para as viagens marítimas e, principalmente, para esta viagem, que juntou
sete nacionalidades e, no mínimo, três concepções de vida diferentes e três culturas
distintas. Em suma, a própria tripulação desta viagem representava a existência e o
diálogo entre o Eu e o Outro, sem mesmo ser preciso sair do porto de embarque, em
Sanlucar de Barrameda.
7.6. Referências e homenagens a Fernão Magalhães
Neste ponto são indicadas algumas referências e homenagens a Fernão
Magalhães, assim como estudos sobre este navegador e até recepção literária da sua
grande viagem39.
No capítulo de referências e homenagens ao navegador, existem os poemas de
Camões, n’ Os Lusíadas, Canto X, Estrofe 138, e de Fernando Pessoa, em Mensagem, II
Parte – Mar Português, Poema VIII, constando ambos de Anexos a esta dissertação,
com os Números VIII e IX.
Na vertente dos estudos realizados sobre o explorador, existem diversas obras e
autores, que se dedicaram à investigação da sua vida e/ou feitos. É o caso, por exemplo,
39
- Sem menosprezar, é claro a existência de toponímia em ruas, avenidas, instituições, além
do Estreito e das Nebulosas que tomaram o seu nome.
47
de Laurence Bergreen (Fernão Magalhães, para além do fim do Mundo), Kurt Honolka
(A odisseia de Fernão Magalhães), Jean Michele Barrault (Fernão Magalhães – A Terra
é redonda), e Gonçalo Cadilhe (Nos Passo de Magalhães), entre muitos outros.
No capítulo da recepção literária, a viagem do descobridor originou a
transformação da própria viagem, e provavelmente, através da leitura do Diário de
Pigafetta, em banda desenhada, como é o caso, por exemplo, dos desenhos de Guido
Buzzellicom com texto de Milo Milani, que constam do Anexo IX a este trabalho, assim
como das referências bibliográficas do mesmo. Para além da conversão daquela viagem
neste tipo literário, existem cópias, edições traduzidas em diversas línguas, do Diário de
Pigafetta, como é o caso, por exemplo, dos documentos consultados para a análise de
conteúdo nesta dissertação e que constam das referências bibliográficas da mesma.
Uma situação muito importante, e que merece um olhar mais atento, por se
tratar da utilização do nome do navegador, no âmbito da diplomacia cultural e
económica, é a utilização da Marca Fernão de Magalhães como marca chapéu para
alguns vinhos de Denominação de Origem Controlada (DOC) da Adega Cooperativa de
Sabrosa. A estratégia comercial desta agremiação tem sido aproveitada pela Autarquia
de Sabrosa, como forma de estreitar laços culturais e promover a troca comercial, com
as suas congéneres de Sanlucar de Barrameda e Guetaria, em Espanha, Cebú, na
República das Filipinas, Punta Arenas, no Chile, Rio de Janeiro, no Brasil. Estas são
algumas das cidades em que Fernão Magalhães aportou, durante a viagem, e onde
passou dias/meses, nutrindo, a sociedade desses países, há já algum tempo, um carinho
especial pelo navegador de naturalidade portuguesa.
8. O processo de análise de conteúdo – as categorias
A análise de conteúdo é definida por Bardin (2009), como:
[…] Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter por
procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variadas inferidas) destas mensagens
[…]. (Bardin: 2009 p. 44).
48
Para que seja objectiva, essa descrição exige uma definição adequada das
categorias de análise, de modo a permitir que diferentes pesquisadores possam utilizálas, obtendo resultados semelhantes. Para ser sistemática, é necessário que a totalidade
de conteúdo relevante seja analisada com relação a todas as categorias significativas. A
quantificação permite obter informações mais precisas e objectivas sobre a ocorrência
das características do conteúdo.
As fases que integram a análise de conteúdo são três: a pré-análise; a
exploração do material; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. A
pré-análise consiste, principalmente, na escolha dos documentos a serem submetidos à
análise, e à formulação dos objectivos a atingir. O tratamento dos resultados, a
inferência e a interpretação, que constituem a terçeira fase, são, na prática, o estudo,
agrupamento e conclusões referentes aos dados recolhidos durante a exploração do
material de investigação. A exploração do material, que integra a segunda fase da
técnica de análise de conteúdo, é o momento mais delicado e trabalhoso da
investigação, pois é durante esta fase que o investigador procede à codificação do
material. Segundo Bardim, […] A organização da codificação comprende três escolhas
(no caso de uma análise quantitativa e categorial): – o recorte: escolha das unidades; –
A enumeração: escolha das regras de contagem; – A classificação e a agregação:
escolha das categorias […] (Bardin: 2009; p. 129).
Por sua vez, as unidades a que Bardin se refere, não são mais do que os
elementos do texto a ter em conta no seu estudo. Assim, estas unidades podem ser de
registo, quando consistam em: tema; léxico, sintático, semântico, objecto ou referente,
personagem, acontecimento, e documento, enquanto unidade do género; ou de contexto,
quando integrem frases (em comparação à palavra na unidade de registo) ou parágrafos
(em comparação ao tema na unidade de registo). A unidade de contexto corresponde ao
segmento da mensagem cujas dimensões são superiores às da unidade de registo, e que
é perfeita para a melhor compreensão da unidade de registo.
A escolha das categorias é uma tarefa que se insere na fase de exploração e
codificação do material, e é transportada para a fase seguinte, a do tratamento dos
resultados, a inferência e interpretação, porque é através da aplicação das categorias de
análise que o investigador encontra os dados com os quais vai inferir e interpretar os
49
resultados dessa operação, e é também com base nesses resultados que o investigador
vai formular as suas conclusões finais sobre a investigação.
Antes de se proceder à categorização, é necessário recortar o texto, na fase da
exploração do material, através de unidades de registo e de contexto. Bardin (2009)
explica cada um destes conceitos;
(…) A unidade de registo é a unidade de significação a codificar e corresponde ao
segmento de conteúdo a considerar como unidade de base, visando a categorização e
a contagem frequencial. (…)
A unidade de contexto serve de unidade de compreensão para codificar a unidade de
registo e corresponde ao segmento da mensagem, cujas dimensões (superiores às da
unidade de registo) são óptimas para que se possa compreender a significação exacta
da unidade de registo. Esta pode, por exemplo, ser a frase para a palavra e o
parágrafo para o tema […]. (Bardin: 2009: p. 130, 133).
As categorias de análise são o meio que permite ao investigador encontrar e
provar a existência de unidades de registo e/ou unidades de contexto, que fundamentam
e testemunham o facto ou teoria que ele defende no seu trabalho. São estas categorias,
pelas quais o texto é “peneirado”, que permitem a selecção e estudo fidedignos dessas
unidades.
De acordo com Bardin (2009) […] a categorização é uma operação de
classificação de elementos constitutivos de um conjunto por diferenciação, e
seguidamente, por reagrupamento, segundo o género (analogia), com os critérios
previamente definidos (…). (p. 145).
Em suma, a categorização, enquanto instrumento e processo de análise, permite
reunir o maior número de informações à custa de uma esquematização prévia e assim
correlacionar classes de acontecimentos para ordená-los. A categorização representa a
passagem dos dados brutos a dados organizados.
50
9. Análise de conteúdo do Relato da Viagem, por Antonio
Pigafetta40
Efectivamente, após a realização de várias leituras da obra que serviu de
fundamento a este estudo – “ Viagem à volta do mundo, por António Pigafetta” In
Fernão de Magalhães A primeira viagem à volta do Mundo contada pelos que nela
participaram (1990) – seguindo as indicações de Ludke e André (1986) e Vala (1986),
construímos categorias ou tipologias, tentando de acordo com Bardin (2009) agrupá-las,
tendo em conta os aspectos comuns.
Para esta análise, foram eleitas 10 (dez) categorias de análise de conteúdo
constituídas por conceitos, que passo a enumerar: Viagem; Cultura/Religião;
Descoberta; Encontro; Laços; Troca comercial; Ideias e valores, Diferenças culturais;
Poder; e Interculturalidade.
As unidades de registo que precedem a categorização são baseadas em
unidades de registo objecto ou referente, no sentido em que se trata de temas-eixo, em
redor dos quais o discurso se organiza, agrupando à sua volta tudo o que o locutor
exprime a seu respeito.
De seguida, é apresentada cada uma das categorias de análise de conteúdo, com
alguns registos seleccionados do diário de Pigafetta. Estes registos funcionam apenas
como amostra do que existe no documento, pois não é objectivo desta dissertação
incluir o seu conteúdo na totalidade, mas antes, analisá-lo e escolher os registos mais
marcantes – e que nos permitam aferir da existência de cada uma das categorias
seleccionadas para a análise de conteúdo:
I. A categoria “Viagem” pretende significar a referência do narrador à ideia e
conteúdo da palavra viagem, entendida à época. Os registos enquadrados
por esta categoria são:
40
- Antonio Pigafetta iniciou viagem na nau principal, Trindade, onde viajava também o
Capitão General, Fernão Magalhães. Pigafetta acabou a viagem na nau Victoria, comandada por
Sebastian del Cano.
51
I.I. (…). Soube que se acabava de fretar em Sevilha uma frota de cinco navios, destinada a
descobrir as ilhas Malucas, de onde nos vêm as especiarias, e que D. Fernão de Magalhães,
(…), que já por mais de uma vez havia percorrido o oceano com glória, havia sido nomeado
capitão-general desta expedição. (…), fui de barco a Málaga, e daí passei a Sevilha por
terra, onde esperei três meses antes que a frota estivesse em condições de partir […]. (p. 2324).
I.II. […] O Capitão-general Fernão de Magalhães tinha resolvido empreender uma longa
viagem pelo oceano, onde os ventos sopram com violência e as tempestades são muito
frequentes. Havia também resolvido abrir um caminho que nenhum navegador conhecera
até então (…). (p. 24).
I.III. […] A 10 de Agosto de 1519, segunda-feira, de manhã, estando a frota abastecida de tudo
necessário, com uma tripulação composta por duzentos e trinta e sete homens, foi
anunciada a partida com uma descarga de artilharia, e largada a vela do traquete.
Descemos o Bétis até à ponte de Guadalquivir, (…). Continuando a descer o Bétis, passase perto de Coria e de outras povoações até São Lucar, (…). De Sevilha a este porto
contam-se dezassete a vinte léguas […]. (p. 26).
I.IV.
[…] Quarta-feira, 28 de Novembro, saímos do estreito e entrámos no grande mar, que
logo chamámos »mar Pacífico«, no qual navegámos durante três meses e vinte dias, sem
comermos nenhum alimento fresco (…). (p. 43).
I.V. […] Durante estes três meses e vinte dias percorremos quatro mil léguas, pouco mais ou
menos, no mar que chamámos Pacífico, porque enquanto durou a nossa travessia não
sofremos a menor tempestade (…). (p. 44).
I.V. […] Graças à Providência, no sábado, 6 de Setembro, entrámos na baía de São Lucar, e, de
sessenta homens de que se compunha a tripulação quando saímos das ilhas Malucas, não
restavam mais do que dezoito, na maior parte doentes […]. (p.118).
II) A categoria “Cultura/Religião” intenta abarcar toda a bagagem de
aprendizagem, valores, conceitos, crenças, leis, moral e organização, que
caracteriza uma sociedade e com a qual os indivíduo se identificam. Neste
sentido, é necessário individualizar a Cultura/Religião europeia, e a
Cultura/Religião dos outros povos, pelos olhos de Pigafetta e filtro
europeu de cultura/religião. Deste modo, os registos seleccionados são:
52
a) Cultura/Religião europeia:
II.I. (…). Todas as manhãs íamos a terra para ouvir missa na Igreja de Nossa Senhora de
Barrameda, (…), e antes de partir o capitão-general ordenou que toda a tripulação se
confessasse; (…). (p. 26).
II.II. (…). Antes de abandonar este lugar, o capitão-general ordenou que cada um de nós se
confessasse e comungasse, como bons cristãos […]. (p. 39).
II.III. (…). Foi assim a nossa refeição, e não pude deixar de comer carne, apesar de ser Sextafeira Santa […]. (p. 52).
II.IV. (…). Enquanto navegámos por entre estas ilhas sofremos uma tempestade, que pôs em
perigo as nossas vidas, e fizemos o voto de irmos em procissão a Nossa Senhora da
Guia se tivéssemos a boa sorte de nos salvarmos (…). (p.109).
II.V. […] Terça-feira saltámos todos em terra, em camisa e descalços, com um círio na mão,
e fomos à Igreja de Nossa Senhora da Vitória e à da Santa Maria de Antígua, como
havíamos prometido fazer nos momentos de angústia […]. (p.118).
b) Cultura/Religião dos outros povos, pelos olhos de Pigafetta:
II.I. […] Os brasileiros não são cristãos, nem tão pouco idólatras, porque não adoram nada: a
natureza é a sua única lei (...). (p. 29).
II.II. […] Estes povos não têm nenhuma religião e só seguem a sua própria vontade. Não têm
rei nem chefe. Pintam o corpo e andam nus. Alguns deles usam uma barba comprida e
cabelos negros atados à frente caindo-lhe até à cintura. Usam também capeuzinhos de
palha. São robustos e bem proporcionados. A sua tez é de cor azeitonada, mas disseramnos que nascem brancos e que se tornam morenos com a idade. Pintam os dentes
artisticamente, de vermelho e negro, o que entre eles é sinal de beleza […]. (p. 47).
II.III. […] Estes povos são cafres, isto é, gentios […]. (p. 50).
II.IV. […] Passámos sete dias nesta ilha, durante os quais tivemos ocasião de observar os
seus usos e costumes. Pintam o corpo e andam nus, apesar de cobrindo as suas partes
naturais com um pedaço de pano. (…). São grandes bebedores e mascam
continuamente um fruto parecido com uma pêra, chamado «areca» […]. (p.57).
53
II.V. […]. Os ídolos destes países são de madeira, côncavos ou ocos por trás; têm os braços e
as pernas afastados e os pés voltados para cima; têm a cara larga, com quatro dentes
muito grandes, semelhantes aos do javali. São, geralmente, todos pintados […]. (p.68).
II.VI. […] As casas destes insulares são construídas como as das ilhas vizinhas, ainda que
não tão elevadas sobre a terra, e rodeadas de canas, à maneira de estacadas.
As mulheres deste país são feias. Andam nuas como as das outras ilhas, cobrindo as
partes sexuais com um pedaço de casca de árvore. Os homens andam igualmente nus
e, apesar da fealdade das suas mulheres, são muito ciumentos (…). (p. 98).
II.VII. […] Disseram-nos que é costume em Java queimar os corpos das principais
personagens que morrem e que queimam na mesma fogueira a sua mulher favorita.
(…). Se recusasse fazê-lo, olhá-la-iam como mulher desonesta e má esposa […]. (p.
112).
III) A categoria ”Descoberta” tem a intenção de significar o conjunto de
contactos com realidades e pormenores desconhecidos pelos tripulantes da
frota, englobando quer o achamento de terras e águas e suas riquezas, quer
a comprovação e negação de ideias, e outras situações, sendo a maior parte
delas o objectivo desta viagem. Neste contexto, apresentam-se os seguintes
registos:
III.I. […] Costeando sempre esta terra em direcção ao Pólo Antárctico, detivemo-nos em
duas ilhas, que encontrámos povoadas apenas por gansos e lobos-marinhos. Há tantos
dos primeiros e tão mansos que numa hora fizemos provisão para a tripulação dos cinco
navios. São pretos e parecem estar cobertos por todo o corpo com pequenas penas, sem
terem nas asas as necessárias para voar (…). (p. 32).
III.II. (…). Descobrimos um estreito, que chamámos «o estreito das onze Mil Virgens»,
porque foi no dia em que a Igreja as consagra. Este estreito, como depois pudemos
verificar, tem quatrocentos e quarenta milhas de comprimento (ou cento e dez léguas
marítimas, de quatro milhas cada uma) e meia légua de largura, pouco mais ou menos,
e desemboca noutro mar, a que chamámos «mar Pacífico». Este estreito está rodeado
de montanhas muito altas e cobertas de neve. É também, muito profundo, (…).
(p.39).41
41
- Pigafetta refere-se à descoberta do Estreito de Magalhães – a passagem marítima que
Magalhães afirmava existir entre mares.
54
III.III. […] A terra deste estreito, que à esquerda volta para sueste, é muito plana. (…). Nele
se encontra um porto seguro em cada meia légua, com água excelente, madeira de
cedro, sardinhas e muito marisco. (…). Enfim, creio que não há no mundo melhor
estreito do que este (…). (p. 42).
III.IV. […] O Pólo Antárctico não tem as mesmas estrelas que o Pólo Árctico, mas vêem-se
ali dois aglomerados de estrelinhas nebulosas que se assemelham a nuvenzinhas, a
pouca distancia uma da outra. No meio de estrelinhas notam-se duas muito grandes e
muito brilhantes, mas cujo movimento é reduzido. Ambas indicam o Pólo antárctico.
(…). Estando no mar alto, descobrimos a oeste cinco estrelas muito brilhantes,
dispostas exactamente em forma de cruz (…). (p.45).42
III.V. (…). Esperávamos chegar por esta rota ao cabo de Gatticara, que os cosmógrafos
situaram nesta latitude. Mas estão errados, (…). (p.46).
III.VI. […] Este rei que nos acompanhou disse-nos que na sua ilha havia pepitas de ouro tão
grandes como as nozes e mesmo como os ovos, misturadas com a terra, que
peneiravam para as encontrar, e que todos os seus copos, e mesmo alguns adornos da
sua casa, eram feitos com esse metal (…). (p. 54).
III.VII. […] A ilha de Zubu é grande. Tem um bom porto, com duas entradas, uma a oeste e
outra a este-nordeste. Está a 10º de latitude norte e a 154º de longitude da ilha de
demarcação. Foi nesta ilha, ainda antes da morte de Magalhães, que tivemos notícias
acerca das ilhas Malucas […]. (p.75).
III.VIII. […] Os portugueses propalaram que estas ilhas estão situadas num mar não
navegável por cauda dos recifes que se encontram por toda a parte e da atmosfera
nebulosa que as envolve em espessas trevas. No entanto, nada disto é verdade, e
nunca, até nas próprias Malucas, houve menos de cem braças de água […]. (p. 90).
III.IX. (…). Também nos abastecemos de uma água excessivamente quente, mas que,
exposta ao ar durante uma hora, se tornava muito fria. Dizem que isto se deve ao facto
de a água provir da montanha onde crescem as árvores do cravo. Por isto
reconhecemos o embuste dos portugueses, que querem fazer crer que falta
completamente a água doce nas Malucas e que é necessário ir buscá-la muito longe,
noutros países […]. (p.94).
42
- Pigafetta refere-se às Nebulosas de Magalhães e à constelação Cruzeiro do Sul.
55
III.X. […] todas as ilhas das Malucas produzem cravo., gengibre, sagu (que é a madeira de se
faz o pão), arroz, nozes de coco, figos, bananas, amêndoas (mais grossas que as nossas),
romãs doces e azedas, cana-de-açucar, melões, pepinos, cabaças, um fruto a que
chamam «comilicai», muito refrescante e do tamanho de uma melancia, outro fruto
semelhante ao pêssego, a que chamam «guave», e outros vegetais comestíveis (…).
(p.106).
III.XI. […] Para verificar se os nossos diários estavam correctos, perguntámos em terra que
dia da semana era, e responderam-nos que quinta-feira, o que nos surpreendeu,
porque, segundo os nossos diários, estávamos em quarta-feira. (…) Soubemos logo
que o nosso cálculo estava certo, pois, havendo navegado sempre para oeste, seguindo
o curso do sol, ao voltar ao mesmo sítio tínhamos de ganhar vinte e quatro horas sobre
os que tinham estado fixos num lugar (…). (p. 118).
IV) A categoria ”Encontro” pretende traduzir o avistamento e primeiro
contacto com os outros – indivíduos com diferentes culturas da europeia.
Neste conceito são incluídas os seguintes registos:
IV.I. (…). Um dia, quando menos esperávamos, apresentou-se-nos um homem de figura
gigantesca. Estava numa praia, quase nu, e cantava e dançava ao mesmo tempo,
deitando pó sobre a cabeça. O capitão enviou um dos marinheiros a terra com ordem de
fazer os mesmos gestos, em sinal de paz e amizade, o que o gigante compreendeu muito
bem, deixando-se conduzir facilmente a uma ilhota onde o capitão tinha desembarcado.
(…).
Este homem era tão alto que a nossa cabeça apenas chegava à sua cintura (…). (p. 33).
IV.II. […] Este homem era mais alto e mais bem feito que os outros. Tinha também, um
comportamento mais amável (…). (p.34).
IV.III. […] O capitão acolheu muito afavelmente s que subiram a bordo e deu-lhes alguns
presentes. Tendo-o sabido, o rei, antes de se retirar, quis dar ao capitão uma barra de
ouro e uma cesta cheia de gengibre, mas o capitão agradeceu-lhe, não aceitando o
presente. (…) Assegurando-lhe ao mesmo tempo que não vínhamos hostilizá-los, mas
como amigos, (…). (p. 51-52).
IV.IV. […] Enviou então um dos seus discípulos, com o intérprete, como embaixador ao rei
de Zubu. (…). O intérprete começou por sossegar o rei, dizendo-lhe que era um
costume nosso e que este estrépido não era mais do que uma saudação em sinal de paz
56
e amizade, (…). O rei, por intermédio do seu ministro, perguntou ao intérprete o que
nos tinha atraído à sua ilha e o que queríamos. (…). (p. 58).
IV.V. (…). Quando as suas mulheres nos avistaram, avançaram contra nós, com o arco na
mão, em atitude ameaçadora. Mas com alguns pequenos presentes depressa nos
tornámos bons amigos […]. (p.109).
V) A
categoria
”Laços”
pretende
referir-se
ao
estabelecimento
e
potencialidade de desenvolvimento de um relacionamento e parceria
duradouros, quer entre indivíduos de diferentes sociedades e culturas, quer
entre os seus governantes. Assim, os registos relacionados com este
conceito são:
V.I. […] O capitão disse ao rei que se ele tinha inimigos se juntaria voluntariamente a ele
com os seus navios e os seus guerreiros para os combater (…). (p. 56).
V.II. […] O capitão, por sua vez, assegurou ao rei, eu depois do seu regresso a Espanha,
voltaria a estas paragens com forças muito mais consideráveis e que o faria o mais
poderoso monarca daquelas ilhas, recompensa merecida por ter sido o primeiro a
abraçar a religião cristã […]. (p. 65).
V.III. […] Como se aproximava o dia fixado para a nossa partida, o rei visitava-nos com
frequência, vendo-se perfeitamente que se achava muito comovido, dizendo, entre
outras coisas lisonjeiras, que lhe parecia ser tal como um menino de peito ao ser
desmamado pela mãe. (...).
Aconselhou-nos a não navegarmos de noite, por causa dos recifes e escolhos que há
neste mar, (…), respondeu-nos que, neste caso, não tinha mais a fazer do que rogar e
mandar que rogassem a Deus pela prosperidade da nossa viagem […]. (p. 102).
VI) A categoria “Troca comercial” quer significar as trocas de produtos, seja
em moeda ou em género, efectuadas entre a tripulação da frota e as
sociedades com que se relacionaram durante a viagem. Seguindo esta
ideia, os registos eleitos são:
57
VI.I. […] Há neste país uma infinidade de papagaios. Por um espelhinho davam-nos oito ou
dez. (…). Algumas vezes, para conseguirem um machado ou uma faca de cozinha,
ofereceram-nos uma, e mesmo duas, das suas jovens como escravas (…). (p. 30).
VI.II. […] Sexta-feira, 22 do mês, os insulares cumpriram a sua palavra, e vieram com duas
canoas cheias de nozes de coco, laranjas, um cântaro de vinho de palmeira, e um galo,
para que soubéssemos que tinham galinhas. Comprámos-lhes tudo o que trouxeram
(…). (p. 50).
VI.III. […] Desembarcámos nesse dia muitas mercadorias e armazenámo-las numa base
colocada sob a protecção do rei, (…), para as vender por grosso (…). (p. 63).
VI.IV. […] Sexta-feira abrimos o armazém e expusemos todas as nossas mercadorias, que os
ilhéus olharam admirados. Por objectos de bronze, ferro e outras mercadorias davamnos ouro. As jóias e as várias bagatelas converteram-se em arroz, porcos, cabras e
outras virtualhas. Por catorze libras de ferro davam-nos dez peças de ouro com o valor
equivalente a ducado e meio cada uma (…). (p. 64).
VI.V. (…). O valor destas mercadorias, que íamos trocar por cravo, foi fixado da seguinte
maneira: (…). Como se vê fizemos um tráfico muito vantajoso, (…). Além do cravo,
fazíamos diariamente boa provisão de víveres […]. (p. 94).
VI.VI. […] Quarta-feira, 27, o rei lançou um pregão que dizia que quem quisesse nos podia
vender cravo livremente. Aproveitámos a ocasião e comprámos grande quantidade
[…]. (p.101).
VII. A categoria “Ideias e valores” visa, por um lado, traduzir o conjunto de
linhas mestras e objectivos previamente estabelecidos para a viagem, e que
não são mais do que o resultado da cultura de uma sociedade numa
determinada época e, por outro, o conjunto de características de
personalidade, desenvolvidas ou inatas, dos tripulantes da viagem. Com
base neste conceito, os registos recortados são:
VII.I. […] Estes povos são extremamente crédulos e bons, e seria fácil convertê-los ao
cristianismo (…). (p. 31).
58
VII.II. (…). Este respondeu que o seu amo, comandante da esquadra, era capitão ao serviço
do maior rei da Terra e que o objectivo da sua viagem era chegar a Maluco, (…). (p.
58).
VII.III. (…). Então o capitão, por mio do intérprete, disse aos reis que esta cruz era o
emblema que o seu imperador lhe tinha confiado para erigir onde pisasse terra, que
por conseguinte o queria fazer neta ilha, à qual este santo signo seria, por outro lado
favorável, (…). (p. 55).
VII.IV. (…). Pedimos-lhe que não fosse ele próprio, mas respondeu-nos que, como bom
pastor, nunca devia abandonar o seu rebanho […]. (p. 70-71).
VII.V. (…). Este cravo enviado pelo rei era o primeiro que embarcávamos e constituía o
principal objectivo da nossa viagem, e por isso disparámos várias vezes as bombardas,
em sinal de regozijo […]. (p. 99).
VII.VI. (…). NO entanto, a maior parte dos tripulantes, escravos mais da honra do que da
própria vida, decidiu esforçar-se em regressar a Espanha, quaisquer que fossem os
perigos que tivéssemos de correr […]. (p.117).
VIII.
A
categoria
“Diferenças
culturais”
pretende
significar
as
dissemelhanças observadas e relatadas pelo narrador, entre a cultura
europeia e a cultura das sociedades contactadas durante a viagem. Neste
contexto, foram retiradas do texto os seguintes registos:
VIII.I. […] Os homens e as mulheres são tão vigorosos e tão bem proporcionados como nós.
Comem algumas vezes carne humana, mas somente a dos seus inimigos. Não é pelo
apetite ou pelo sabor que o fazem, mas por um costume que, segundo nos disseram,
(…). No entanto, não os comem nos campos de batalha, nem vivos, senão que os
despedaçam e repartem entre os vencedores (…). (p.29-30).
VIII.II. […] Os brasileiros, tanto homens como mulheres, pintam o corpo, principalmente a
cara, de um modo estranho e de diferentes maneiras. Os cabelos são curtos e
lanudos, e não têm pêlo em nenhuma parte do corpo, porque se depilam (…). (p.30).
VIII.III. […] Estes povos, como já disse, vestem-se com a pele de um animal, com a qual
cobrem também as suas cabanas, que transportam para aqui ou para ali, para onde
mais lhes convém, não tendo residência fixa, como os ciganos, ora num local, ora
59
noutro. Alimentam-se ordinariamente de carne crua e de uma raiz doce, a que
chamam «capac» (…). (p. 37).
VIII.IV. […] Os habitantes das ilhas próximas daquela em que estávamos tinham nas orelhas
orifícios tão grandes e as extremidades tão alongadas que se podia meter o braço
neles. (…). Andam nus, apenas com um pedaço de casca de árvore para ocultar as
partes naturais, que alguns chefes cobrem com uma tira de algodão bordada a seda
nas pontas. (…). Têm cabelos pretos e tão compridos que lhes chegam à cintura. As
suas armas são: facas, escudos, maçãs e lanças guarnecidas de ouro. Como
instrumentos de pesca utilizam dardos, arpões e redes feitas mais ou menos como as
nossas. As suas embarcações são igualmente semelhantes às nossas (…). (p.50).
VIII.V. (…). Falando da sucessão entre eles, disseram-nos que, quando os pais têm certa idade,
o poder passa para os seus filhos, sem consideração nenhuma. Isto escandalizou o
capitão, que condenou este costume, dizendo que Deus, criador do Céu e da Terra,
ordenou expressamente que os filhos honrassem pai e mãe, ameaçando com o castigo
do fogo eterno os que transgredissem este mandamento (…). (p. 60).
VIII.VI. (…). Cozem o arroz em canas ou em vasos de madeira, conservando-se este mais
tempo do que o cozido em marmitas. Do mesmo arroz obtêm, utilizando uma
espécie de alambique, um vinho mais forte e melhor que o de palmeira (…). (p. 78).
VIII.VII. […] Os chineses são brancos e andam vestidos. Têm, como nós, mesas para comer,
e nas suas casas há cruzes, embora ignore o uso que delas fazem (…). (p.115).
IX. A categoria “Poder” refere-se, quer à superioridade em força bélica, à de
persuasão mental e à astúcia, quer à força de direcção e controle atribuída
ao superior hierárquico durante a viagem. Nesta categoria é necessário
individualizar o poder manifestado pela frota de Magalhães, e o poder
demonstrado pelas sociedades com as quais a frota se cruzou. Dentro deste
conceito, enquadram-se os seguintes registos:
a) Poder manifestado pela frota de Magalhães:
IX.I. […] Antes de partir estabeleceu algumas regras, tanto para os sinais como para a
disciplina (…). (p. 24-25).
60
IX.II. […] Erguemos uma cruz no cume de uma montanha próxima à qual chamámos «monte
Cristo» e tomamos posse desta terra em nome do rei de Espanha (…). (p. 38).
IX.III. […] O capitão quis reter os dois mais jovens e mais bem feitos, para os levar connosco
durante a viagem e conduzi-los mesmo a Espanha. Mas, vendo que era difícil prendêlos pela força, valeu-se da seguinte astúcia: (…). Consentiram, e então aplicaram-selhes os grilhões e fecharam-se os anéis, de maneira que se encontraram encadeados.
(…) A nossa gente queimou a cabana destes selvagens e enterrou o morto […]. (p.
35).
IX.IV. (…). Então o capitão, irritado, saltou em terra com quarenta homens armados,
queimou quarenta a cinquenta casas, bem como muitas das suas canoas, e matoulhes sete homens. (…).
No momento me que desembarcámos para castigar os insulares, (…). (p.46).
IX.V. (…). O intérprete respondeu que o seu amo, por ser capitão de um monarca tão grande,
não pagaria tributos a nenhum rei da Terra, que se o rei de Zubu queria a paz, teria a
paz, mas que, se queria a guerra, lhe faria a guerra (…). (p. 58).
IX. VI. (…). Houve, no entanto, uma aldeia numa ilha em que os habitantes recusaram
obedecer ao rei e a nós. Lançámos-lhe fogo e erigimos uma cruz, porque eram
idólatras (…). (p. 66).
IX.VII. […] Ao deixarmos a ilha, ou melhor, o porto, encontrámos um junco que vinha de
Burne. Fizemos-lhe sinais para que se detivesse, mas, como não obedeceu,
perseguimo-lo, apressámo-lo e saqueámo-lo. Levava a bordo o governador de
Palaon, com um dos seus filhos e o seu irmão. Demos-lhe o prazo de sete dias para
pagar de resgate quatrocentas medidas de arroz, vinte porcos, outras tantas cabras e
cinquenta galinhas (…). (p. 86).
b) Poder demonstrado pelas sociedades com as quais a frota se cruzou:
IX.I. […] Os insulares eram mil e quinhentos, formados em três batalhões, que
imediatamente se lançaram sobre nós com uma horrível gritaria. (…). O seu número
parecia aumentar, bem como a impetuosidade com que nos acometiam. (…). Durou o
desigual combate quase uma hora. Por fim, um insular conseguiu ferir, com a ponta de
uma lança, a testa do capitão, (…). Deram-se conta disso os indígenas e lançaram-se
todos sobre ele; (…). Assim morreu o nosso guia, a nossa luz e o nosso conforto (…).
(p. 71-72).
61
X. A categoria “Interculturalidade” abarca no seu alcance o conjunto de
relacionamentos e, em última análise, o resultado de reciprocidade nesses
relacionamentos. Neste sentido, foram recortados os seguintes registos:
X.I. (…). Ensinámo-lo a pronunciar o nome de Jesus, a oração dominical, etc., e chegou
mesmo a recitá-la tão bem como nós, mas com voz fortíssima. Por fim, baptizámo-lo,
dando-lhe o nome de João. O capitão-general presenteou-o com uma camisa, um casaco
curto, uns calções de pano, um barrete, um espelho, um pente, alguns guizos e outras
bagatelas. Voltou aos seus muito contente, segundo nos pareceu (…). (p. 35).
X.II. […] Durante a viagem conversei o melhor que me foi possível com o gigante patagão
que levámos no nosso navio, e por meio de gestos perguntava-lhe o nome patagão de
muitos objectos, de maneira que cheguei a formar um pequeno vocabulário. Estava já
tão acostumado que, apenas me via pegar na pena e no papel, vinha logo a dizer-me o
nome dos objectos que estavam à sua vista e das operações que via fazer. Entre outras
coisas, ensinou-nos o modo de acender um lume no seu país; esfregando um pedaço de
madeira pontiaguda contra um outro, até que o fogo pegasse numa espécie de medula de
árvore colocada entre os dois bocados de madeira. (…) Quando sentiu aproximar-se a
morte, devido à sua última doença, pediu a cruz, beijou-a e rogou-nos que o
baptizássemos, o que fizemos, dando-lhe o nome de Paulo […]. (p.43).
X.III. […] Os insulares familiarizaram-se tanto connosco que por seu intermédio pudemos
aprender os nomes de muitas coisas, sobretudo dos objectos que nos rodeiam. (…).
São corteses e honrados. (…) Para nos mostrarem a sua amizade, levaram o nosso
capitão nas suas canoas aos armazéns das suas mercadorias, tais como cravo, canela,
pimenta, noz-moscada, maça, ouro, etc., e por gestos deram-nos a entender que nos
países para os quais nos dirigíamos abundavam estes géneros. O capitão-general
convidou-os, por sua vez, a subirem ao navio, no qual instalou todo o que os podia
assombrar pela novidade (…). (p. 49).
X.IV. (…). Acrescentou outras passagens da História Sagrada, que agradaram muito a estes
insulares, despertando neles o desejo de se instruírem nos princípios da nossa religião
(…). (p. 61-62).
X.V. (…). O rei desta ilha subiu a bordo, e, para nos dar uma prova de amizade e aliança,
retirou sangue da mão esquerda e esfregou-o no peito e na ponta da língua. Nós fizemos
o mesmo (…). (p.76).
62
X.VI. […] Apresentámo-nos ao rei, que estabeleceu amizade e aliança connosco, e para
garantia pediu-nos uma faca, e com ela retirou sangue do seu peito, com o qual
molhou a cara e a língua. Nós repetimos esta cerimónia […]. (p.78).
X.VII. […] Advertiu-nos que deveríamos fazer três reverências ao rei, elevando as mãos
juntas por cima da cabeça e levantando ora um pé, ora o outro (…). (p.81).
63
Considerações finais
Desde a primeira viagem dos Descobrimentos, em 1434, quando Gil Eanes
passa o Cabo Bojador, até à primeira viagem de circum-navegação do globo, por Fernão
Magalhães, em 1519-1521, foi percorrido um longo caminho de evolução e
aprimoramento das técnicas de navegação, mas principalmente, um longo e frutífero
itinerário de interligação de continentes e povos com realidades distintas, desde a flora e
a fauna, à cultura e organização social. Esta interligação e contacto entre culturas
formaram um caldeirão de conhecimento, de descoberta, que alterou para sempre o
entendimento do mundo e do ser humano – dos outros, e de nós próprios.
Este caldeirão encontra-se em ebulição desde então, pois o processo de
formação cultural não estagna, estando, pelo contrário, em constante transformação e o
factor inicialmente responsável por essa transformação é o próprio contacto entre
culturas. Porém, neste processo de descoberta, de conhecimento, de aprendizagem e
assimilação, o papel fundamental de sujeito mediador e impulsionador é desempenhado
pela promoção da interculturalidade, sendo através desta prática que as ideias e os
valores sociais e culturais se modificam e adaptam às necessidades dos indivíduos e das
sociedades, constituindo, estes pilares, as características marcantes de qualquer
transformação social, e até mesmo, entre gerações, em lato sensu.
A fenomenal façanha que foi a intrépida viagem pensada por Fernão
Magalhães, chegando este a atingir o seu propósito – as ilhas Molucas, navegando de
este para oeste, antes de perecer em batalha numa das ilhas desse arquipélago, foi, sem
dúvida, a verdadeira viagem de cruzamento de mares, mas principalmente, a verdadeira
viagem de contacto com outras sociedades e outros valores, em suma, de contacto com
o Outro.
Foi através desta viagem que a Europa ficou a saber da existência de outras
sociedades e culturas, para além daquelas já encontradas em outras viagens. Mas esta
viagem, em particular, foi o rasgar de dúvidas e incertezas científicas e religiosas, e a
verdadeira possibilidade de aprofundar o estudo em áreas como a antropologia, a
geografia, a astronomia, a biologia, a sociologia, entre outras.
Foi também através desta viagem que o mundo europeu ficou a conhecer a
verdadeira dimensão do Mundo Terra, e aquilo que parecia impossível, tornou-se real e
próximo. A existência do Mundo, assim entendido, deixou de ser mito, hipótese e
64
blasfémia, para ser real, alcançável e, principalmente, multicultural – habitado por
sociedades com diferentes valores, crenças, consumos, formas de organização e
repositórios de aprendizagem.
As pontes e os olhares cruzados abordados nesta dissertação – a viagem nos
Descobrimentos como promoção da interculturalidade, principalmente, a circumnavegação do globo por Fernão Magalhães, defendem o interculturalismo como fruto e
geração de um Humanismo de que a história europeia está cheia e que timbrou de modo
particular o relacionamento dos europeus com os povos com quem foram contactando e
até com aqueles a quem foram colonizando. Este Humanismo europeu, ainda hoje é
sentido por parte dos países de acolhimento daqueles que daqui emigram, ou que viajam
turisticamente. Traduz-se não só numa atitude de respeito pelo Outro, tal como é
marcado pela sua cultura, como também numa rara capacidade de adaptação às outras
culturas, sem perda da própria identidade, e ao mesmo tempo de miscigenação sem
preconceitos.
As viagens nos Descobrimentos, tanto portugueses, como espanhóis,
possibilitaram não só a expansão e fortalecimento do Reino e da Fé Cristã, como
também o conhecer dos Outros, das suas características, das suas diferenças e
semelhanças com o descobridor.
O processo antropológico mais importante da época dos Descobrimentos é,
sem dúvida, o facto da esmagadora maioria dessas terras já serem habitadas à data das
descobertas. Existiam já nelas sociedades devidamente organizadas, hierarquizadas e
implantadas, o que significa que os chamados descobridores não encontraram nada que
já não existisse. Aquilo que estes exploradores fizeram, foi apenas revelar essa
existência, que lhes era desconhecida, a si, e à sociedade em que se inseriam.
Foi precisamente esta revelação que possibilitou, por um lado, o contacto com
outras culturas, outros modos de vida, e que permitiu, por outro, a aquisição de
conhecimento sobre essas culturas. Aliado a interesses políticos, económicos e
religiosos, que eram o fundamento principal para as viagens de descoberta (revelação)
do mundo (terras e povos), o contacto com o Outro deu origem a vários fenómenos
sociais como a miscigenação, a transculturação e a interculturalidade – não como ela é
vista hoje – produto da livre circulação de pessoas entre países, mas sim, como o
embrião desta existência.
65
Um dos aspectos fulcrais da mudança cultural, na Idade Média, e mormente,
nas Descobertas marítimas, foi precisamente a mestiçagem, ou miscigenação, uma vez
que ela potenciou de forma exponencial o contacto efectivo entre culturas. A
mestiçagem biológica potenciou a mestiçagem cultural.
O contacto intercultural, por sua vez, abriu caminho ao processo de
transculturação, que consiste na transformação de padrões a partir do elemento externo,
isto é, do contacto com outra(s) cultura(s).
A transculturação é um fenómeno que está presente no multiculturalismo,
sendo este entendido, em termos sociológicos, como a presença de culturas distintas
numa determinada sociedade – numa cidade ou país, presença que se faz sentir pela
existência de afirmações de identidades religiosas, étnicas, nacionais, etc., sem no
entanto, existir preconceito ou discriminação contra essa diferença.
Por fim, é a interculturalidade, ou a sua prática, com corolários como o respeito
pelo outro, pela sua diversidade (porque nós também somos diversos dele), que fomenta
a interacção entre culturas de uma forma recíproca, e sobretudo, o enriquecimento
mútuo.
A primeira viagem de circum-navegação do globo por Fernão Magalhães,
enquadrada na expansão marítima (pela simples razão de que através desta viagem foi
contactado um maior número de culturas do que em qualquer outra viagem realizada
sob aquele tema), abriu as portas ao Outro no nosso mundo e a nós no mundo do Outro,
abrindo igualmente um canal para a mestiçagem, transculturação e interculturalidade,
fenómenos que, de formas diferentes, potenciam o enriquecimento cultural.
Por estas razões, defendemos que a primeira viagem de circum-navegação do
globo por Fernão Magalhães foi a semente da globalização e da interculturalidade.
66
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72
ANEXOS
73
ANEXO I
Pintura de Modesto Brocos y Gomes: Redenção do Cam. 1895
Na pintura: avó negra, mãe mulata, esposo e filho brancos.
74
ANEXO II
Mapa da Circum-navegação do globo por Fernão Magalhães, de 2010.
75
ANEXO III
Mapa Mundi por Battista Agnese, veneziano, em 1540. Rota de Circum-navegação por Fernão
Magalhães
76
ANEXO IV
Mapa cartográfico elaborado por Willen Blaeu, holandês, em 1635.
77
ANEXO V
Mapa marítimo do estreito de Magalhães, elaborado após a viagem de Circum-navegação do militar inglês,
John Byron, em 1764.
78
ANEXO VI
Imagem/pormenor do Estreito de Magalhães, por Jacques Descloites. Modis Rapid Response team.
Nasa/GSFC, em Agosto de 2003.
79
ANEXO VII
[…] Eis aqui as novas partes do Oriente
Que vós outros agora no mundo dais,
Abrindo a porta ao vasto mar patente,
Que tão forte peito navegais.
Mas é também razão que, no Ponente,
Dum Lusitano um feito inda vejais,
Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho há-de fazer nunca cuidado. (…)
Homenagem a Fernão Magalhães em Os Lusíadas, Canto X: estrofe Nº 138
80
ANEXO VIII
[…] No valle clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do valle vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titans, os filhos da Terra
Que dançam da morte do marinheiro
Que quiz cingir o materno vultoCingil-o, dos homens, o primeiroNa praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda commanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas elles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do valle pelas encostas
Dos mudos montes. […].
Homenagem a Fernão Magalhães na Mensagem. II Parte – Mar Português – poema VIII.
81
ANEXO IX
Banda desenhada de Guido Buzzelli e Mino Millani, de 1982.
82
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Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Segundo Ciclo em