Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú
ISSN 2318-566X
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DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A DETERMINAÇÃO JUDICIAL
PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO
MARCOS CÉSAR BOTELHO1
RESUMO
O presente artigo trata do fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo
pelo Estado por determinação judicial, analisando o aspecto da separação de
poderes e a possibilidade de o Judiciário determinar o fornecimento dos
medicamentos como forma de realização de políticas públicas, efetivando o
direito fundamental à saúde.
1 INTRODUÇÃO
O fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado,
sobretudo quando envolve determinação judicial, tem despertado intensos
debates.
Estes debates abarcam a separação dos Poderes e a possibilidade de
o Judiciário determinar a realização de políticas públicas, a escassez de
recursos e a necessidade de proteção adequada ao direito fundamental à
saúde.
A importância desta discussão levou o Supremo Tribunal Federal a
realizar audiência pública para ouvir opiniões dos mais diversos segmentos da
sociedade, tamanha a controvérsia que envolve o tema.
1
Advogado da União. Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de
Ensino. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público –
IDP/DF. Professor no curso de Direito nas Faculdades Integradas de Jaú/SP.
Professor Adjunto na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
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O
presente
artigo
visa
discutir
o
fornecimento
gratuito
de
medicamentos de alto custo pelo Estado por determinação do Poder Judiciário
analisando o tema à luz das ideias de Klaus Günther e Jürgen Habermas.
O desiderato é tratar do tema considerando o direito à saúde como
direito fundamental que exige do Estado não apenas medidas positivas, mas a
implementação de ações de proteção e respeito a esse direito. Além da análise
do modelo de Günther e Habermas, buscar-se-á mostrar que a determinação
judicial para o fornecimento de medicamentos deve considerar não apenas o
caso concreto, com suas nuances, mas três parâmetros, a saber, o princípio da
máxima efetividade, da proteção ao núcleo essencial do direito e da proibição
da proteção insuficiente.
O desenvolvimento do artigo observou, portanto, a necessidade de
enquadramento da saúde enquanto direito social fundamental, o que exigiu,
primeiramente, a sua conceituação, passando pela análise da proposta de
Abramovich e Courtis de superação da tradicional distinção entre direitos de
defesa e direitos prestacionais.
Em seguida, foram abordados os principais aspectos da proposta de
Klaus Günther de fundamentação e aplicação do direito, modelo que
posteriormente foi incorporado por Jürgen Habermas, e que aponta para a
necessidade de se considerar a norma como impregnada de caso, o que
levaria a sua aplicação com fundamento na necessidade de adequação e
coerência ao caso concreto.
No passo seguinte foram estabelecidos três parâmetros como
necessários para que o modelo de Günther e Habermas tenha maior eficácia, a
saber, o princípio da máxima efetividade, da proibição da proteção insuficiente
(Untermassverbot) e da proteção ao núcleo essencial da norma, culminando
com uma apreciação do papel judiciário na determinação de fornecimento de
medicamentos e as exigências para que tal determinação cumpra o papel de
concretizar o direito fundamental à saúde sem ocasionar a desestabilização do
ordenamento jurídico.
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2 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Diretamente ligado à vida, a saúde é um dos principais direitos
fundamentais sociais, situado, portanto, nos chamados direitos fundamentais
de segunda geração ou segunda dimensão.
Compreendida, inicialmente como a ausência manifesta de doença, a
saúde apresenta diversos outros aspectos importantes que não podem ser
ignorados2.
Curiosamente, nos tempos do Antigo Testamento, a ideia de doença
era ligada a uma situação de debilidade ou esgotamento, isto é, a força vital
quebrantada; também havia um componente religioso na consideração de
certas doenças, onde o enfermo era visto como puro ou impuro para participar
da comunidade cultual3. No começo da era cristã, a saúde ainda estava
atrelada a preceitos de ordem religiosa. Lembra Daniel-Rops que “Não há
necessidade de dizer que todas as medidas relativas à saúde, mesmo as mais
humildes e terrenas, estavam sob o controle da religião.”4
A saúde parecia estar ligada a um conceito amplo de bem-estar físico,
psíquico, social e espiritual. A ausência de saúde poderia implicar em
precariedade física e, por conseguinte, no impedimento do exercício das
atividades normais do dia-a-dia; ou poderia resultar em problemas de ordem
psicológica, capazes de tirar a condição do indivíduo de portar-se de forma
coerente com os preceitos de ordem religiosa; também poderia causar óbices
sociais, estando, neste caso, ligada a noção de pureza/impureza, que promovia
a segregação e evitava uma vida social plena; ou, por fim, poderia trazer
problemas de ordem espiritual, já que a ideia de pecado/culpa resultava em um
afastamento do relacionamento com o divino.
2
DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitário, p. 7.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia del antiguo testamento, p. 195-198. É importante salientar
que para Israel do Antigo Testamento, os processos de enfermidade e cura não podem ser
separados da ação de Iahweh.
4
DANIEL-ROPS, Henry. A vida diária nos tempos de Jesus, p. 208.
3
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A concepção da saúde como bem-estar completo do indivíduo tem
previsão, nos tempos atuais, em documento da Organização Mundial da Saúde
de 1946, em que se alinhava ela como o “[...] estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou
enfermidade”5.
Enquanto bem-estar completo do indivíduo, a saúde está ligada à ideia
de direitos humanos, referindo-se à vida digna, o que levou a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 a prever a saúde e bem-estar como
direito fundamental6.
Portanto, não restam dúvidas de que o direito à saúde é reconhecido
como direito fundamental7, pois compõe a noção de qualidade de vida, ligandose, assim, a dignidade da pessoa humana 8, sendo considerado pelo
ordenamento jurídico brasileiro como um direito social, conforme clara dicção
do artigo 6º, in verbis:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência social aos desamparados, na
forma desta Constituição.
Ao positivar a saúde como direito social, a Constituição assegura um
direito subjetivo9 de segunda dimensão, reconhecendo-se que, de outro lado, a
saúde é dever do Estado, consoante prescreve o artigo 196, da Lei
Fundamental, in verbis:
5
DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit., p. 8. “O primeiro conceito
teórico-formal de saúde surgiu em 1946, com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao
reconhecê-la como um dos direitos fundamentais de todo ser humano, independentemente de
sua condição social, econômica, de sua crença religiosa ou de suas convicções políticas.”
ABUJAMRA, Ana Carolina Pedutti; MARTIN, Andréia Garcia. O direito à saúde do idoso: as
políticas públicas como instrumento de inclusão social e seu controle jurisdicional, p. 67.
6
“Artigo XXV, 1. Toda a pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e
os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora do seu controle.”
7
BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à
luz do pensamento de Klaus Günther, p. 558.
8
ABUJAMRA, Ana Carolina Pedutti; MARTIN, Andréia Garcia. Op. cit., p. 67.
9
STF, AgRg no RE nº 393.175-0, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 02.02.2007.
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Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Sendo o direito de todos, a saúde impõe a obrigação de ações
positivas por parte do Estado; além disso, em razão da ideia da solidariedade
social, o dever de respeito recai sobre toda a sociedade. A saúde é um direito e
dever fundamental da pessoa humana, o que significa que a sua eficácia não é
apenas vertical, havendo, outrossim, uma eficácia horizontal vinculativa de
todos os sujeitos privados10.
Contudo, para além da concepção tradicional de direitos sociais como
direitos à uma prestação Victor Abramovich e Christian Courtis propuseram
uma abordagem distinta acerca da estrutura dos direitos fundamentais,
entendendo que a distinção entre direitos de defesa e direitos prestacionais
não é suficiente para abarcar toda a complexidade presente nas relações
sociais contemporâneas11.
Segundo
Abramovich
e
Courtis,
a
compreensão
dos
direitos
fundamentais deve passar pela ideia de três níveis de obrigações que tais
direitos geram, a saber: a) obrigações de respeito, que se referem ao dever
estatal de não-ingerência ou obstaculização do direito; b) obrigações de
proteção, relativas à atuação estatal no sentido de impedir que terceiros
venham a exercer ingerência indevida ou criar obstáculos ao exercício do
direito; c) obrigações de satisfação, que envolvem deveres de garantir que o
titular dos direitos possa per si exercê-los, além de obrigações de promoção,
que abarcam as medidas estatais que possibilitem o desenvolvimento de
condições para que os titulares dos direitos possam exercê-lo12.
Esta classificação proposta por Abramovich e Courtis leva em
consideração as peculiaridades de cada situação concreta. Lembram que no
10
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e
efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988, p. 1. BOTELHO, Marcos César. O
fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à luz do pensamento de Klaus
Günther, p. 558.
11
ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles,
p. 24.
12
Id. Ibid., p. 29 e 31.
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campo dos direitos sociais nem sempre a atuação estatal envolve a
transferência de recursos, podendo ser, por exemplo, o dever de estabelecer
algum tipo de regulação13. O direito fundamental à saúde pode exigir, muitas
vezes, que o Estado atue negativamente, no sentido de não implementar
medidas que possam contribuir para a ofensa ao direito à saúde, ou para evitar
que terceiros atuem provocando danos à saúde pública14.
Também podem abarcar que o Estado garanta que os cidadãos
exerçam plenamente o direito fundamental à saúde ou, nos casos em que
algum fator externo ou interno impeça o exercício desse direito, que o Estado
atue promovendo esse direito. Note-se, por exemplo, que o artigo 198, inciso II
da Constituição Federal alude ao atendimento integral, com prioridade para
as atividades preventivas, o que deixa claro que não se podem considerar os
direitos sociais, em particular, a saúde, como simples direito prestacional.
À guisa de conclusão deste tópico, conclui-se que a saúde não significa
simples ausência de enfermidade; sua ideia abarca o bem-estar completo do
indivíduo, razão por que, a saúde está ligada à noção de dignidade da pessoa
humana, sendo, portanto, um direito fundamental. Cuida-se, ainda, de um
direito fundamental social, que a primeira vista pode levar a ideia de que se
trata de um direito prestacional; todavia, enquanto direito fundamental, a saúde
impõe três níveis de obrigação ao Estado, a saber, a obrigação de respeito, a
obrigação de proteção e a obrigação de satisfação.
3 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS EM HABERMAS: COLISÕES
INTERNAS E EXTERNAS
A análise da existência de uma resposta correta, especificamente no
que tange ao fornecimento de medicamentos de alto custo, pressupõe a prévia
13
ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Op. cit., p. 33.
Ao apreciar questão envolvendo judicialização do direito à saúde, o Ministro Gilmar Mendes
asseverou que: “Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não
contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um
postulado de proteção (Schutzgebote).” (STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar
Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010).
14
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compreensão da distinção que existe entre os conceitos de princípio e regra.
Embora as abordagens não se apresentem uniformes na filosofia jurídica, os
principais estudiosos do tema concordam que nos discursos de aplicação não é
possível considerar a existência tão-somente de normas sem que se faça uma
cisão entre os princípios e as regras.
As eventuais colisões entre as normas resolvem-se de maneira distinta,
conforme se considere que estejam em choque regras ou princípios. Robert
Alexy, por exemplo, apresenta uma distinção que ressalta o aspecto peculiar
dos princípios como mandatos de otimização15. Ou seja, enquanto a aplicação
da regra se dá na forma da introdução de uma cláusula de exceção com a
declaração da invalidade de uma delas, nas colisões entre os princípios, sua
natureza de mandatos de otimização exige que haja a sua aplicação no mais
alto grau em que seja efetivamente possível.
Habermas, com base no pensamento de Klaus Günther, rejeita essa
distinção feita por Alexy entre regras e princípios16. Tanto para Habermas,
quanto para Günther, os possíveis conflitos entre normas não são resolvidos
pela distinção entre os conflitos que ocorrem entre regras e aqueles que são
entre princípios.
Eles partem da diferenciação entre as colisões internas e as externas.
Com isso, Habermas e Günther querem mostrar que não é possível falar-se em
norma que não contenha referência situacional, isto é, toda e qualquer norma,
seja ela jurídica ou moral está impregnada de caso17.
Isso implica na resolução dos conflitos entre as normas pela
consideração de sua dimensão de validade e sua dimensão de aplicação. Ou
seja, quando há uma colisão entre regras, a solução ocorre no âmbito da
dimensão de validade ou de fundamentação, o que Günther denomina de
15
ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón practica, p. 140. BOTELHO,
Marcos César. O procedimentalismo em Alexy e o papel da corte constitucional, p. 38.
16
BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo estado: considerações à
luz do pensamento de Klaus Günther, p. 559.
17
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre a justificação e a aplicação das normas
jurídicas, p. 85.
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colisão interna; as colisões externas demandam soluções na dimensão de
aplicação das normas18.
As colisões internas afetam a validade da norma, o que se dá pela
negação levada a cabo independentemente das situações reais de aplicação. A
dimensão de validade se constrói no campo da abstração, não estando
impregnada de caso, diferentemente das colisões externas que se dão nas
atividades concretas de aplicação da norma.
É através da observação das características próprias do caso concreto
que as colisões entre normas são resolvidas, capacitando o intérprete/aplicador
a obter a resposta correta para o caso em análise.
Habermas, apropriando-se dessas ideias de Günther, também defende
a necessidade de resolução de conflitos na dimensão de sua aplicação. Para
que isso ocorra, não é possível partir-se de standards morais previamente
estabelecidos como entende Dworkin, tampouco recorrer-se a uma Grundnorm
ou “regra de reconhecimento” como propõem, respectivamente, Kelsen e
Hart19.
A consideração das peculiaridades do caso concreto é o ponto de
partida para a solução de conflitos externos, levando à necessidade de
adequação da norma as contingencias da realidade. A eficácia de uma norma e
a sua capacidade de fornecer uma resposta correta depende de sua
apreciação nos discursos de aplicação através da consideração das
particularidades do caso concreto.
Não se trata de advogar o experimentalismo defendido por Mangabeira
Unger, o qual busca um projeto democrático livre de dogmatismos otimistas ou
pessimistas e que seja capaz de proporcionar as condições necessárias ao
progresso material e de independência individual20.
18
GÜNTHER, Klaus. Um concepto normativo de coherencia para una teoría de la
argumentación jurídica, p. 281. BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos
pelo estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 560.
19
Importante esclarecer que a Grundnorm de Kelsen é pressuposta, não estando inserida no
sistema jurídico, diferentemente da “regra de reconhecimento” de Hart que integra o sistema.
Sobre o tema, conferir PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito, p. 161-179; 245-271.
20
UNGER, Roberto Mangabeira. O direito e o futuro da democracia, p. 16. Sobre o movimento
Critical Legal Studies conferir TUSHNET, Mark V. Critical legal theory, p. 80-89.
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O experimentalismo democrático de Unger não considera a práxis
argumentativa além do próprio papel das instituições, em particular da Corte
Constitucional, como garantidora dos procedimentos democráticos inclusivos. E
não é possível a obtenção de uma resposta correta para o caso concreto sem
que se considere o papel das instituições democráticas na construção da força
cogente da norma.
Embora Unger compreenda que pensar sobre ideais e interesses não
pode ser feito separadamente sobre o pensar acerca das instituições e
práticas, pois essas atividades não são momentos estanques, havendo a
incorporação de um pelo outro, sem que esse processo redunde em
assimilação por uma das partes21, não há qualquer alusão ao mecanismo que
torne viável que o indivíduo participe do processo de fundamentação e
aplicação das normas jurídicas.
Adequação da norma ao caso concreto como defende Habermas não
se confunde com experimentalismos ou tentativas diante da situação posta em
análise. Günther, inclusive, defende que a aplicação da norma como
adequação se dá em um contexto em que a versão fraca de “U” deve ser
considerada, tornando exigível que se observe apenas as características da
situação que se analisa22.
Significa que a resposta correta somente é possível quando se
considera as questões peculiares do caso concreto o que já afasta qualquer
experimentalismo, na medida em que tais características da situação posta
21
UNGER, Roberto Mangabeira. O direito e o futuro da democracia, p. 14.
“A versão mais fraca de ‘U’ parte de uma proposta já selecionada de norma, para colocá-la
em uma perspectiva situacional generalizante e relacioná-la com os interesses virtuais de
todos. Por isso, esta versão deve ser complementada por um discurso de aplicação que realce
a perspectiva específica da situação e a relacione com os interesses dos outros como pessoas
concretas. Em situações de aplicação, ainda não se trata da capacidade de universalização de
interesses afetados, mas, inicialmente, apenas do seu descobrimento e da relevância
situacional. Reserva-se à aplicação ‘U’, na versão mais forte, se o interesse representado na
norma contextualmente adequada é realmente legítimo e se, portanto, pode ser aceito por
todos em conjunto.” GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral:
justificação e aplicação, p. 72. Conferir também, BOTELHO, Marcos César. A legitimidade da
jurisdição constitucional no pensamento de Jürgen Habermas, p. 112-122
22
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vinculam, de certa maneira, o aplicador que não poderá “criar” uma situação
nova, mas adequar a norma a todas as características de uma única situação 23.
Habermas, porém, assevera que a interpretação e estruturação dos
direitos é feita pelo legislador, cabendo à justiça apenas a mobilização das
razões que lhe são dadas segundo o “direito e a lei”, possibilitando ao aplicador
da norma chegar a decisões que possuam coerência com determinado caso
concreto24.
Com isso, Habermas quer dizer que não cabe ao Judiciário adentrar na
análise da validade do direito. No entender do pensador tedesco, “O paradigma
procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condições do
procedimento
democrático.”25
Isso
significa
que
a
norma
construída
democraticamente, segundo o paradigma procedimentalista, obtém a sua
validade justamente em função do procedimento democrático e inclusivo26.
No âmbito da jurisdição constitucional, por exemplo, a sua atuação se
dá,
em um primeiro
momento,
através de
discursos de
aplicação,
fundamentados em pressupostos legitimadores extraídos da Constituição
Federal27.
Logo, o Tribunal Constitucional aplica a norma com base no critério de
adequação, estando a validade pressuposta; somente quando a norma não
permita mais uma aplicação coerente é que o Tribunal Constitucional poderá
23
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, p.
70. Cf. BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo estado:
considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 561. Este, inclusive, é um dos pontos
de distinção entre os modelos de Roberto Unger e Jürgen Habermas, já que neste, há um viés
normativo, enquanto que Unger ressalta a capacidade de domínio sobre os contextos como
ponto fundamental para a liberdade do indivíduo. Sobre esta questão vale a pena conferir
TEIXEIRA, Carlos Sávio Gomes. A esquerda experimentalista: análise da teoria política de
Unger, p. 47 e seguintes.
24
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo II, p. 183.
25
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo II, p. 183.
26
“Dado que as normas jurídicas são impostas, o momento da validade ou da aceitabilidade
racional, presente na dimensão da validade jurídica, se liga à validade ou aceitação social.” Id.
Ibid., Tomo I, p. 195.
27
BOTELHO, Marcos César. Audiências públicas e a abertura democrática do Supremo
Tribunal Federal: Legitimidade discursiva e consequente concretização de direitos
fundamentais, p. 268.
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adentrar nos discursos de fundamentação da norma, quando passa a tratar do
controle abstrato de normas28.
4 PARÂMETROS PARA ADEQUAÇÃO DA DECISÃO AO CASO CONCRETO
4.1 Princípio da máxima efetividade
No âmbito da Teoria Geral do Direito, a validade da norma jurídica é
expressa sob três aspectos, a saber, a validade técnico-formal ou vigência, a
validade fática ou eficácia e a validade ética ou fundamento 29.
A vigência expressa a executoriedade compulsória da norma jurídica,
quando preenchidos os requisitos relativos à competência do órgão para a sua
elaboração, observância do devido processo legislativo e competência material
do órgão elaborador da norma. Segundo Paulo Nader, a vigência expressa a
validade formal o que “[...] significa que a norma social preenche os requisitos
técnicos-formais e imperativamente se impõe aos destinatários.”30
A eficácia ou validade fática aponta para o atributo da norma que
expressa a sua aptidão a produzir os efeitos sociais planejados 31. Diz respeito
a sua adequação visando à produção concreta de efeitos, sendo que as
condições fáticas referem-se à adequação à realidade (eficácia semântica) e as
condições técnicas para a atuação da norma (eficácia sintática) 32.
Por fim, a validade ética ou o fundamento axiológico aponta para a
correspondência que deve haver entre a norma aos ideais e aos sentimentos
de justiça da comunidade que rege33.
A efetividade, a princípio, não faria parte do conceito de validade, que,
como visto, pode ser formal, fática ou axiológica. Contudo, a norma jurídica
28
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo I, p. 325.
BOTELHO, Marcos César. Audiências públicas e a abertura democrática do Supremo Tribunal
Federal: Legitimidade discursiva e consequente concretização de direitos fundamentais, p. 270.
29
BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao direito, p. 242.
30
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito, p. 94.
31
Id. Ibid., mesma página.
32
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 424.
33
Id. Ibid., p. 426.
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precisa de um atributo referente à sua efetiva observação por seus
destinatários. Cuida-se, portanto, da ideia de efetividade, relacionada
justamente com a observação da norma jurídica efetiva pelos destinatários e
aplicadores do direito34.
Todavia, o princípio da máxima efetividade não parece se referir ao
conceito de efetividade exposto no parágrafo anterior. Segundo Mônica
Serrano, “O intérprete deve realizar o ato interpretativo de forma a conceder ao
texto constitucional a maior eficiência possível.”35 Refere-se à exigência de que
a atividade hermenêutica seja levada de uma maneira que confira maior
eficácia à norma constitucional36.
Lembra Tavares que esse princípio impõe que “Não se deve interpretar
uma regra de maneira que algumas de suas partes ou algumas de suas
palavras acabem se tornando supérfluas, o que equivale a nulificá-las.”37
Esse quarto plano, ao relacionar-se com o cumprimento efetivo e real
da norma, aponta para uma aproximação entre o dever-se e o ser da realidade
social38. Significa que a efetividade diz respeito à densidade normativa e,
portanto, tratam da efetividade social da norma.
O princípio da máxima efetividade atenta para esta necessidade de se
conferir maior densidade normativa à norma de direito fundamental, vedando
interpretações que venham a esvaziar seu conteúdo ou que impeçam que a
norma produza, no caso concreto, todos os efeitos possíveis que dela se possa
esperar39.
34
NADER, Paulo. Op. cit., p. 94.
SERRANO, Mônica. O sistema único de saúde e suas diretrizes constitucionais, p. 27.
36
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1124.
37
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 109.
38
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, p. 220.
39
Ao apreciar questão envolvendo o artigo 40, § 21 da Constituição Federal, na qual se
pugnava pela aplicação do rol de doenças que autorizavam a aposentadoria por invalidez no
serviço público, o Superior Tribunal de Justiça, ante a falta de norma legal estadual
regulamentadora do preceito constitucional, aplicou o princípio da máxima efetividade,
conforme excerto que se transcreve: “Assim, embora não haja lei editada com o propósito
específico de regulamentar, no âmbito estadual, o art. 40, § 21 da Constituição Federal, o
princípio da máxima efetividade das normas constitucionais - do qual decorre a sua autoaplicabilidade, sempre que não haja fundamento insuperável a impedir que isso ocorra - impõe
que se adote, para os efeitos nele previstos, o rol de doenças consideradas pela legislação
estadual como incapacitantes para o exercício de função pública, autorizando a concessão de
35
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Daí que o princípio da máxima efetividade exige que a densificação dos
preceitos constitucionais, especialmente de direitos e garantias fundamentais,
obedeça a uma hermenêutica que lhes otimize a eficácia, sem que haja
alteração de seu conteúdo40.
4.2 Da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot)
O princípio da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot),
proibição de proteção deficiente ou proibição da insuficiência constitui-se em
um subprincípio do princípio da proporcionalidade. Segundo Gilmar Ferreira
Mendes, constitui-se em uma espécie de garantismo positivo41.
A proibição da proteção insuficiente aponta para a exigência de ser
observado certo mínimo de proteção, abaixo do qual a proteção seria
insuficiente42. Ou seja, há um patamar mínimo de proteção abaixo do qual
haveria uma deficiência na obrigação do Estado de proteção.
O Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao analisar a interrupção da
gestação, asseverou que a vida humana intra-uterina deve receber proteção
estatal, impondo limites aos direitos fundamentais da mulher, que não seriam
amplos ao ponto de suspender o dever de levar a termo a gestação do filho. E,
embora o Tribunal tenha asseverado que existem situações excepcionais
previstas em lei, casos em que estão presentes gravames que venham a pôr
em risco valores vitais próprios, cabe ao Estado promover a adequada
proteção da vida intra-uterina, o que, em razão do princípio da proibição de
insuficiência, não permite que haja a livre desistência da utilização do direito
penal e do efeito de proteção da vida humana que é decorrente 43.
aposentadoria por invalidez permanente.” (STJ, RMS 27.064, Primeira Turma, rel. Min. Teori
Albino Zavascki, julgamento 23.04.2009, DJe 11.05.2009).
40
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional, p. 111.
41
STF, RE 418.376/MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento 09.02.2006,
DJe 23.03.2007, voto Ministro Gilmar Mendes.
42
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado, p. 59-60.
43
BVferGE 88, 203, 28.05.1993. Segundo o Tribunal Constitucional Federal Alemão, “O dever
de tutela estatal abrange também a proteção da vida humana na fase intra-uterina contra
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No entender do Tribunal Constitucional Federal Alemão,
O Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para
cumprir seu dever de tutela, que levem - considerando os bens
conflitantes – ao alcance de uma proteção adequada e, como tal,
efetiva (proibição de insuficiência)44.
Essa dupla face de Janus presente na proporcionalidade revelando, de
um lado, uma proteção positiva (proibição do excesso) e uma negativa
(proibição de insuficiência) leva a certa diminuição na liberdade de
conformação do legislador45. Ou seja, “[...] se de um lado há a proibição de
excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente
(Untermassverbot).46”
Cabe ao legislador determinar o tipo de extensão da proteção, já que,
embora a Constituição estabeleça a proteção como objetivo, não apresenta
uma configuração detalhada, razão por que caberá ao legislador tal mister,
estando
limitado,
contudo,
pelo
princípio
da
proibição
da
proteção
insuficiente47.
É fundamental destacar, porém, que o princípio da proibição da
proteção insuficiente não diz respeito apenas à liberdade de conformação do
legislador. Cabe a sua aplicação, outrossim, na formulação e execução de
políticas públicas pelo Poder Público (Executivo).
A eleição de escolhas pelo gestor público, sobretudo diante da
escassez de recursos, deve primar pela implementação das medidas que
redundem na proteção adequada e suficiente. A 6ª Câmara Civel do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que o princípio da proibição da
insuficiência incide não apenas sobre a atuação do gestor público, mas
também aos particulares que prestam serviços públicos por meio de delegação:
perigos oriundos de influências dos círculos familiar ou social da gestante, ou das atuais e
previsíveis condições da vida da mulher e da família, os quais agem contra a disposição de
levar a termo a gestação do filho.”
44
BVferGE 88, 203, 28.05.1993.
45
STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de
excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como
não há blindagem contra normas penais inconstitucionais, p. 180.
46
Id. Bem jurídico e constituição: os limites da liberdade de conformação legislativa e a
aplicação (corretiva) da nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne
Normtextreduzierung) à lei dos juizados especiais, p.89
47
BVferGE 88, 203, 28.05.1993.
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Os serviços de educação, quando prestado por particulares por meio
de delegação, se sujeitam ao regime jurídico-administrativo das
entidades políticas por ele responsáveis, incluindo suas prerrogativas
e obrigações. Dessa forma, também estão as entidades particulares
de ensino, no exercício de sua atividade educacional, assim como os
entes estatais, condicionadas à observância do princípio da proibição
da insuficiência ou da proteção deficiente (Untermassverbot). Tal
princípio consiste no reconhecimento da existência de uma violação
do dever de proteção quando as entidades sobre quem esse recai
não adotam nenhuma medida concreta ou adotam medidas
inteiramente insuficientes ou ineficazes para garantir uma proteção
constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais48.
O
princípio
da
proibição
da
proteção
insuficiente
reforça
o
entendimento de Abramovich e Courtis, relativo à existência de três níveis de
obrigações, dentre as quais, a obrigação de proteção. Ana Carolina Lopes
Olsen, em interessante dissertação sobre a eficácia dos direitos fundamentais,
asseverou que:
Segundo a proibição da atuação insuficiente, tanto o legislador,
quando da especificação de normas relativas a direitos fundamentais
sociais prestacionais, quanto o administrador, quando da realização
de atos concretos de prestação social, estão obrigados a alcançar
limites mínimos do fim estabelecido na norma. Trata-se da aplicação
da proporcionalidade para o fim de resguardar a efetividade da
prestação positiva prevista em uma norma de direito fundamental
social, de modo que a ação dos poderes públicos também deverá ser
submetida aos exames de adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito49.
Portanto, o princípio da proibição da proteção insuficiente incide não
apenas sobre a atividade do legislador, mas também na atuação do gestor
público. Ademais, não se pode negar que esse princípio também se espraia
sobre a atuação do intérprete/aplicador do direito que, constatando que a
proteção oferecida é insuficiente, deve promover medidas que torne adequada
e suficiente a proteção aos direitos fundamentais.
4.3 Princípio da proteção do núcleo essencial (Wesensgehaltsgarantie)
48
TJRS, Apelaçaõ Cível nº 70020833109, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Odone Sanguiné,
julgamento 17.09.2008.
49
OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais frente sociais frente à
reserva do possível, p. 79.
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O caráter não-absoluto dos direitos fundamentais possibilita que eles
sofram restrições, inclusive na forma de coexistência de diversos direitos
fundamentais em um ordenamento jurídico. Contudo, mesmo os limites aos
direitos fundamentais sofrem de limites a sua implementação, cogitando-se de
limites dos limites (Schranken-Schranken)50.
Segundo Jane Pereira, o princípio da proteção do núcleo essencial
consiste em uma garantia que foi concebida na Constituição Federal Alemã de
1949, sendo que o seu desiderato é de restringir a liberdade do legislador em
matéria de direitos fundamentais51.
Esse princípio liga-se com a liberdade de conformação do legislador,
impondo limites à sua atuação, visando garantir a força vinculante da Lei
Fundamental. No entender Mendes:
[...] a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais deriva
da supremacia da Constituição e do significado dos direitos
fundamentais na estrutura constitucional dos países dotados de
Constituições rígidas52.
Canotilho advertiu que a determinação da essência de um direito não
se constitui em tarefa de fácil execução, principalmente quando se analisa a
questão perante os juízos de balanceamento de bens e direitos em caso de
conflito53. O jurista português entende que o núcleo essencial tem papel
importante na garantia dos direitos, asseverando que a ideia do núcleo
essencial foi desenvolvida tendo em vista o regime de proteção de direitos,
liberdades e garantias54.
Todavia, Canotilho lembra que há um problema a ser enfrentado e que
diz respeito à saber se a doutrina do núcleo essencial não deve ser alargada
aos direitos econômicos, sociais e culturais55. Diz Canotilho:
50
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 38.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais, p. 366.
52
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 39.
53
CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais, p. 261-262.
54
Id. Ibid., p. 262.
55
Id. Ibid., mesma página.
51
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Sendo assim, o punctum saliens da questão é este: como determinar
o núcleo essencial do direito à saúde? Como o direito à saúde implica
um feixe de prestações, como determinar o nível essencial de
prestações sociais?56
Daí que o princípio do respeito ao conteúdo essencial dos direitos
revelar uma proclamação, bem como uma face sinalizadora da nova vinculação
e subordinação de todos os poderes do Estado aos direitos fundamentais57.
Logo, “[...] o conteúdo essencial é definido como o âmbito de proteção
do direito que é inviolável à ação legislativa”58, sendo seu desiderato, por
conseguinte, “[...] evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental
mediante estabelecimento de restrições descabidas, desmensuradas ou
desproporcionais.”59
Uma questão fundamental é que o princípio da proteção do núcleo
essencial não diz respeito apenas ao Poder Legislativo. A sua vinculação e
subordinação atinge a todos os Poderes.
Problemas podem advir da atividade hermenêutica dos Tribunais, que
no exercício de sua tarefa concretizadora de direitos está limitada ao conteúdo
essencial das normas. Se as regras do direito somente entram em vigor no
momento da sua aplicação, quando, então há aperfeiçoamento dos modelos
jurídicos60 resta claro que a esta atividade concretizadora e integradora da
norma à realidade subjazem limites decorrentes do conteúdo essencial das
normas61.
Decisão interessante foi proferida pelo Tribunal Constitucional Federal
Alemão, ao analisar situação envolvendo homicídio qualificado e a aplicação de
pena de prisão perpétua62. Cuidou-se de caso em que o Tribunal Estadual de
Verden apresentou questão perante o Tribunal Constitucional Federal Alemão,
56
Id. Ibid., mesma página.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p. 367.
58
Id. Ibid., mesma página.
59
MENDES. Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 39.
60
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, p. 28.
61
Segundo Coelho (Op. cit., p. 43), “[...] ao aplicador do direito – por mais ampla que seja a sua
necessária liberdade de interpretação – não é dado, subjetivamente, criar ou atribuir
significados arbitrários aos enunciados normativos, tampouco ir além do seu sentido
linguisticamente possível, um sentido que, de resto, é conhecido e/ou fixado pela comunidade
e para ela funciona como limite da interpretação.”
62
BVferGE 45, 187, 21.06.1977.
57
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onde considerava o § 211 StGB inconstitucional na medida em que a única
pena prevista para o homicídio qualificado era a pena de prisão perpétua, sem
abrir ao juízo a possibilidade de penalizar em conformidade com a culpa
concreta verificada em cada caso.
O Tribunal Constitucional Federal Alemão entendeu que o § 211 StGB
era norma constitucional. Entendeu-se que um dos pressupostos da execução
da pena compatível com a ideia de dignidade humana é que, ao condenado à
prisão perpétua reste, em princípio, uma chance de voltar, algum dia, a gozar
da liberdade. Asseverou a Corte que a pena deve ter uma relação proporcional
justa entre a gravidade do delito e a culpa do autor, razão pela qual o conteúdo
essencial da garantia da liberdade residia não na vedação a prisão perpétua,
mas sim na possibilidade de que o condenado a tal pena tivesse a chance de
algum dia voltar a dispor novamente da liberdade.
Em razão disso, a garantia do núcleo essencial residia não na proibição
de prisão perpétua ou na sua conjugação com a existência de indulto,
considerada
pelo
Tribunal
insuficiente,
mas
que
houvesse
norma
regulamentadora da possibilidade de alcance da liberdade.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a exigência de diploma para o
exercício da profissão de jornalista entendeu que “A reserva legal estabelecida
pelo art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da
liberdade profissional a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial.”63 Para
o Pretório Excelso:
A exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo
- o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das
liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela
ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento,
uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo
exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art.
220, § 1º, da Constituição64.
63
STF, RE 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.06.2009, DJe
13.11.2009.
64
Afirmou-se, ademais: “No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação
estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não
autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de
jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no
momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio
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Tais decisões mostram, primeiramente, que limitações aos direitos
fundamentais não podem gerar, como consequência o esvaziamento do
conteúdo do direito fundamental. Também mostram que não é possível fixar
um parâmetro ou delimitação abstrata, a partir da qual haveria ofensa do
núcleo essencial do direito fundamental, impondo que o aplicador/intérprete
considere as peculiaridades do caso concreto.
5 O JUDICIÁRIO, POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONCRETIZAÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE
A concretização do direito à saúde, especificamente no que tange a
determinação pelo Poder Judiciário para que o Estado forneça gratuitamente
medicamentos de alto custo não é matéria das mais fáceis e, tampouco, objeto
de consenso entre os estudiosos.
Basta dizer que a controvérsia sobre o tema levou o Supremo Tribunal
Federal a realizar audiência pública para discutir diversas questões referentes
ao direito fundamental à saúde65.
Dois
pontos
têm
suscitado
grande
controvérsia,
a
saber,
a
judicialização da saúde, mais especificamente se o Poder Judiciário pode
determinar a execução de políticas públicas, e o alto custo de medicamentos
excepcionais frente à reserva do possível.
Consoante visto nos tópicos anteriores, a saúde é direito fundamental
social, estando ligado à dignidade da pessoa humana, na medida em que o
conceito de saúde abrange o bem estar completo do indivíduo. Com isso, ao
Estado impõem-se três níveis de obrigação, relativas ao respeito, proteção e
satisfação.
que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação,
expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição.” (STF, RE 511.961/SP, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.06.2009, DJe 13.11.2009)
65
Cf. BOTELHO, Marcos César. Audiência pública – saúde no Supremo Tribunal Federal –
Breves considerações, p. 10-17.
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A concretização dos direitos fundamentais pressupõe a consideração
dos discursos de aplicação, afastando a ideia de que uma resposta correta
possa ser obtida pela apreciação do fundamento de validade da norma. Na
verdade, com esteio no pensamento de Klaus Günther e Jürgen Habermas viuse que a questão envolve colisões externas, exigindo que o intérprete/aplicador
aplique norma que seja coerente e adequada com as exigências do caso
concreto, pois não é possível falar-se em norma que não contenha referência
situacional (a norma está impregnada de caso).
Contudo, a referência situacional, com a resolução da colisão externa
pela aplicação da norma coerente e adequada exige alguns parâmetros que
irão auxiliar o aplicador/intérprete da norma, a saber, o princípio da máxima
efetividade, a proibição de proteção insuficiente e o princípio da proteção do
núcleo essencial da norma fundamental.
A concretização do direito à saúde suscita divergências em razão de
sua natureza prestacional e pelo fato de que se faz necessária a sua
adequação ao mínimo existencial e a reserva do possível 66. Essa questão
revela tons mais dramáticos quando a concretização do direito à saúde
pressupõe o fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Poder
Público.
O Pretório Excelso reconheceu que a noção da reserva do possível
frente às necessidades sociais impõe ao Poder Público a formulação de
políticas públicas voltadas à implementação de direitos fundamentais sociais,
gerando, obviamente, escolhas alocativas de recursos67.
Essa escolha alocativa de recursos, fundamentada em opções políticas
(escolhas trágicas) tem como fundamento critérios de macrojustiça, como por
exemplo, número de cidadãos atingidos pela política eleita. Neste passo,
66
STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe
30.04.2010.
67
STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe
30.04.2010. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto: “Essas escolhas seguiriam
critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se
como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‘escolhas trágicas’ pautadas por critérios
de macrojustiça.”
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questiona-se se o Poder Judiciário poderia concretizar a justiça do caso
concreto (microjustiça).
É certo que não estará o Poder Judiciário apto a examinar determinada
pretensão sob uma ótica mais global (macrojustiça). São as características do
caso concreto, especificamente na dimensão individual do direito à saúde, que
naturalmente limitam o âmbito de apreciação do Poder Judiciário. Pensar de
outra forma seria atribuir ao Poder Judiciário o papel de formular políticas
públicas, tornando a judicialização do direito à saúde, por exemplo, uma
indevida gestão no Poder Executivo.
Contudo, não é possível afastar a responsabilidade do Poder Judiciário
na
manutenção
aplicador/intérprete
da
integridade
considerar
do
que,
ordenamento
embora
a
jurídico.
sua
Cabe
ao
compreensão
da
macrojustiça seja limitada, não pode ele valer-se disto para subtrair-se da
responsabilidade na manutenção da integridade do sistema jurídico.
Não se trata aqui de adotar a ideia do juiz Hércules de Dworkin,
descrito pelo filósofo americano como aquele que é possuidor de uma
habilidade, sabedoria, paciência e perspicácia sobre-humanas, consciente de
suas responsabilidades constitucionais.
O aplicador/intérprete a que nos referimos não é um ser idealizado, um
juiz ideal, mas aquele que tem contato com o caso concreto e que deve
interpretar e aplicar a norma de uma
forma construtiva, afastando
irracionalidades que possam atingir a integridade do direito68.
Corroborando esta argumentação, tem-se a ideia exposta pelo Ministro
Gilmar Mendes por ocasião do julgamento da Suspensão de Liminar nº 47AgR:
[...] a garantia judicial da prestação individual de saúde, prima facie,
estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do
68
BOTELHO, Marcos César. A lei em Ronald Dworkin: breves considerações sobre a
integridade no direito, p. 61. Embora Dworkin refira-se à necessidade de manutenção da
integridade do Direito, ele rejeita uma referência situacional da norma quando idealiza o juiz
Hércules.
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Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser sempre
69
demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta .
A outro prisma, fundamental considerar que, se o Poder Judiciário não
tem condições de ter uma compreensão adequada da macrojustiça, não menos
verdadeiro é o argumento de que o Poder Executivo igualmente não terá
condições de ter uma visão adequada da microjustiça.
Logo, a concretização do direito fundamental à saúde exige a
formulação de políticas públicas e aplicação/interpretação das normas de forma
adequada. Em outras palavras, concretizar o direito fundamental à saúde é
conjugar harmonicamente a macrojustiça e a microjustiça.
Daí que o Pretório Excelso entendeu que é possível a judicialização da
saúde nos casos em que o problema reside na execução das políticas públicas
pelos entes federados. Em outras palavras:
[...] na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão
de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à
proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária
determinação judicial para o cumprimento de políticas já
estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência
judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla
discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de
políticas públicas70.
A conclusão lógica a que o Pretório Excelso chegou é que, nestes
casos, o Judiciário não cria políticas públicas, mas apenas determina seu
cumprimento.
A determinação pelo Poder Judiciário para o fornecimento gratuito de
medicamentos de alto custo pelo Estado é possível. Contudo, cabe ao juiz
considerar as peculiaridades do caso concreto. Em outras palavras, cabe-lhe
considerar que a norma a ser aplicada está impregnada de caso, razão por que
não é todo e qualquer pedido de fornecimento de medicamento que deve ser
deferido pelo Judiciário.
69
STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe
30.04.2010.
70
STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe
30.04.2010.
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O Pretório Excelso reconheceu que a atividade judicial que determina
distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes confere efetividade
aos preceitos fundamentais da Constituição Federal 71. A alusão, por exemplo, a
“pessoas carentes” aponta para um elemento fático e concreto que deve ser
considerado pelo magistrado no momento da decisão.
Ao Poder Judiciário cumpre a tarefa de proteger e satisfazer o direito
fundamental à saúde, mas também de respeitá-lo. Significa que decisões
desarrazoadas de juízes, ao conceder liminares para que o Estado forneça
medicamentos de alto custo à determinada pessoa, sem consideração das
características da situação pode conduzir ao desrespeito do direito à saúde da
coletividade72.
Aplicar a norma é adequá-la à referência situacional, sobretudo pelo
fato de que os discursos jurídicos de aplicação produzem decisões em
condições de tempo escasso e saber incompleto 73. É essa adequação à
referência situacional que permite que o magistrado, mesmo em condições de
tempo escasso e saber incompleto, isto é, mesmo não tendo uma
compreensão adequada da macrojustiça, produza decisão concretizadora do
direito fundamental à saúde, prestigiando a dignidade da pessoa humana e
sem comprometer o sistema jurídico74.
E, ao aplicar a norma, adequando-a ao caso concreto, deverá o
magistrado
atentar-se
para
interpretações
que
levem
ao
completo
esvaziamento do conteúdo essencial do direito fundamental à saúde. A
proteção ao núcleo essencial da norma deve estar subjacente à sua análise do
caso concreto, servindo-lhe de parâmetro, seja enquanto direito individual, seja
enquanto direito coletivo.
71
STF, AgRg no RE nº 393.175, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento
12.12.2006, DJ 02.02.2007.
72
A comprovação de que o medicamento é essencial à manutenção da saúde cabe ao
paciente. Neste sentido: STJ, RMS nº 33.463/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito
Gonçalves, julgamento 20.10.2011, DJe 26.10.2011. Sobre a inadequação da utilização de
mandado de segurança para pleitear fornecimento de medicamentos: STJ, RMS 22.115/SC,
Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgamento 12.06.2007, DJ 22.06.2007.
73
GÜNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para una teoría de la
argumentación jurídica, p. 281.
74
BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à
luz do pensamento de Klaus Günther, p. 560.
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A decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão no caso
envolvendo a prisão perpétua75 ilustra bem este ponto, pois a validade desta
espécie de pena está condicionada a existência de uma chance para que o
condenado possa reaver a sua liberdade. Aplicada a ideia à questão do
fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo, a conclusão que se
segue é que o Estado não tem a obrigação de fornecê-los, a menos que a
efetividade do direito à saúde de determinado paciente dependa de
determinado remédio.
Isso afasta o fornecimento de medicamentos em todo e qualquer caso
e, de outro lado enfraquece argumentação fundamentada na reserva do
possível. O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se pronunciar
sobre a reserva do possível e o problema da escassez em questão envolvendo
a concretização do direito fundamental social à educação. Segundo este
sodalício, o estado de escassez decorre, em muitos casos, do resultado do
processo de escolha do gestor público76.
O ponto fundamental deste arresto do Superior Tribunal de Justiça é a
consideração de que a realização de direitos fundamentais não se constitui em
opção do governante e, portanto, não pode ser inserido no campo de juízo
discricionário do gestor público, sendo que a escassez fundamentadora do
princípio da reserva do possível somente ocorrerá quando não houver
possibilidade de implementar políticas públicas que promovam direitos
fundamentais e não quando esta escassez decorra de escolhas do gestor:
Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo
de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes
para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de
investir em determinada área implica escassez de recursos para outra
que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com
festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na
ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de
qualidade77.
75
BVferGE 45, 187, 21.06.1977.
STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento
20.04.2010, DJe 29.04.2010.
77
STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento
20.04.2010, DJe 29.04.2010.
76
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Daí concluir a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:
É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do
possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos
Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador
público preteri-los em suas escolhas78.
O princípio da máxima efetividade das normas de direitos fundamentais
traz consigo a necessidade de que o administrador público não venha a efetuar
escolhas que resultem em preterição dos direitos fundamentais. Da mesma
maneira, ao aplicador/intérprete da norma cabe proceder de tal maneira que os
direitos fundamentais não sejam preteridos em razão de outras políticas não
prioritárias, seja deferindo o fornecimento medicamentos de alto custo em
situações em que ele não é devido, seja indeferindo nos casos em que o direito
fundamental à saúde está ameaçado79.
Não haveria coerência na aplicação da norma se fosse deferido o
fornecimento de medicamento de alto custo, havendo outras alternativas
disponíveis e com eficácia comprovada, pois tais medidas resultariam em
alocação indevida de
recursos pelo
Poder
Judiciário
travestidas de
concretização de direito fundamental.
A adequação e coerência da norma ao caso concreto também tem
estreita vinculação com o princípio da proibição da proteção insuficiente. A
obrigação do Estado de satisfação do direito fundamental exige que as
medidas tomadas tenham coerência com a situação normada, já que haveria
uma proteção deficiente nos casos em que a norma carecesse de densidade
normativa.
78
STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento
20.04.2010, DJe 29.04.2010.
79
Neste sentido, excerto do voto do relator no AgRg na Petição nº 1.996/SP, cujo caso versou
sobre ação civil pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo visando compelir o
Estado de São Paulo a fornecer medicamento Interferon Peguilado para pacientes do SUS,
portadores de Hepatite “C”, presentes e futuros: “No mérito, melhor sorte não possui o
agravante, porquanto vislumbrei que a decisão suspensa tinha potencial para causar lesão à
saúde e à ordem pública, nesta compreendida a administrativa, visto que generalizou, em
cognição sumária, a adoção de procedimento que, filtrado pelo sistema de consulta à
comunidade científica, não logrou aprovação da maioria.” (STJ, AgRg na Pet. Nº 1.996/SP,
Corte Especial, Rel. Min. Nilson Naves, julgamento 03.03.2004, DJ 05.04.2004)
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A outro prisma, inadequação da norma à situação normada significa
que àquele programa da norma pertence outro recorte da realidade social
(âmbito ou domínio da norma) que ele escolheu ou criou como seu âmbito de
regulamentação80. Segundo Friedrich Müller:
Os elementos materiais que têm suas raízes no real só formam parte
do âmbito normativo na medida em que possa se demonstrar, ao
concretizar a norma para um caso concreto, que se trata de
componentes imprescindíveis da normatividade concreta81.
Daí que o âmbito normativo não se constituir em um amontoado de
fatos materiais, sendo, por seu turno, “[...] uma conexão, expressada como
realmente possível, de elementos estruturais extraídos da realidade social
desde a perspectiva seletiva e valorativa do programa normativo.”82
Somente essa consideração possibilita que a proteção expressada pela
norma de direito fundamental seja eficaz, afastando deficiências na sua
aplicação e concretização. A coerência e a adequação, portanto, exigem que a
proteção ofertada pela norma de direito fundamental não seja deficiente ou
insuficiente. Mais do que oferecer um instrumental que possibilite uma leitura
eficaz do caso concreto, Günther e Habermas propõem um método que visa
buscar uma solução correta ao caso, o que afasta uma solução deficiente ou
insuficiente.
Com estas ponderações não restam dúvidas de que o fornecimento
gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado deve considerar os fatores
do caso, da realidade, sob pena de a norma não se apresentar adequada e
coerente ao caso que se propõe normatizar, o que significaria, além disso, em
uma diminuição na efetividade da norma de direito fundamental, em uma
proteção insuficiente ou deficiente, e em ameaça a próprio núcleo essencial do
direito fundamental.
6 CONCLUSÕES
80
MÜLLER, Friedrich. Metodologia do direito constitucional, p. 58.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica
estruturantes, p. 30.
82
Id. Ibid., mesma página.
81
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A saúde não pode ser compreendida tão-somente como ausência de
doença. A noção de saúde advogada pelos instrumentos internacionais e
incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro aponta para um conceito de
saúde que abarca o bem estar completo do indivíduo.
Neste prisma, a saúde afigura-se como um direito fundamental, haja
vista estar ligado à dignidade da pessoa humana. É direito social fundamental
que não pode ser compreendido de maneira estanque à ideia de dignidade da
pessoa humana.
Por ser direito social, a compreensão da saúde pode levar, em um
primeiro momento, a sua caracterização como simples direito prestacional.
Contudo, a distinção tradicional entre os direitos de primeira e os de segunda
geração como, respectivamente, direitos de defesa e direitos prestacionais
deve ser superada.
Para tanto, viu-se a proposta de Abramovich e Courtis, de fixação de
níveis de obrigação, a saber, o a obrigação de proteção, a obrigação de
respeito e a obrigação de satisfação, proposta que demanda uma análise
concreta do direito e as exigências obrigacionais presentes em cada caso.
A efetividade da proposta de Abramovich e Courtis exige um modelo
adequado de aplicação da norma, o que levou à consideração das ideias
desenvolvidas por Klaus Günther e Jürgen Habermas que se referem ao fato
de que a norma está impregnada de caso, razão por que a sua aplicação deve
considerar as especificidades do caso concreto, buscando ser adequada e
coerente a estas características.
Contudo, verificou-se, ainda, que o modelo de Günther e Habermas
deve estar aliado a alguns parâmetros que devem ser observados pelo
aplicador/intérprete da norma, a saber, o princípio da proibição da proteção
insuficiente ou deficiente, da máxima efetividade da norma e da proteção ao
núcleo essencial da norma.
Com base nestas considerações, analisou-se o fornecimento de
medicamentos de alto custo pelo Estado, levando a conclusão de que cabe ao
aplicador/intérprete da norma conferir máxima efetividade a norma protetiva de
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direito fundamental à saúde, através de uma aplicação que considere as
peculiaridades do caso concreto, tornando a norma adequada e coerente com
tais exigências, propiciando, desta maneira, que o núcleo essencial do direito
fundamental à saúde, tanto em sua dimensão individual, quanto coletiva, seja
preservado, garantindo-se, por fim, que a proteção seja suficiente e eficaz.
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