Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A DETERMINAÇÃO JUDICIAL PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO MARCOS CÉSAR BOTELHO1 RESUMO O presente artigo trata do fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado por determinação judicial, analisando o aspecto da separação de poderes e a possibilidade de o Judiciário determinar o fornecimento dos medicamentos como forma de realização de políticas públicas, efetivando o direito fundamental à saúde. 1 INTRODUÇÃO O fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado, sobretudo quando envolve determinação judicial, tem despertado intensos debates. Estes debates abarcam a separação dos Poderes e a possibilidade de o Judiciário determinar a realização de políticas públicas, a escassez de recursos e a necessidade de proteção adequada ao direito fundamental à saúde. A importância desta discussão levou o Supremo Tribunal Federal a realizar audiência pública para ouvir opiniões dos mais diversos segmentos da sociedade, tamanha a controvérsia que envolve o tema. 1 Advogado da União. Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP/DF. Professor no curso de Direito nas Faculdades Integradas de Jaú/SP. Professor Adjunto na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ O presente artigo visa discutir o fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado por determinação do Poder Judiciário analisando o tema à luz das ideias de Klaus Günther e Jürgen Habermas. O desiderato é tratar do tema considerando o direito à saúde como direito fundamental que exige do Estado não apenas medidas positivas, mas a implementação de ações de proteção e respeito a esse direito. Além da análise do modelo de Günther e Habermas, buscar-se-á mostrar que a determinação judicial para o fornecimento de medicamentos deve considerar não apenas o caso concreto, com suas nuances, mas três parâmetros, a saber, o princípio da máxima efetividade, da proteção ao núcleo essencial do direito e da proibição da proteção insuficiente. O desenvolvimento do artigo observou, portanto, a necessidade de enquadramento da saúde enquanto direito social fundamental, o que exigiu, primeiramente, a sua conceituação, passando pela análise da proposta de Abramovich e Courtis de superação da tradicional distinção entre direitos de defesa e direitos prestacionais. Em seguida, foram abordados os principais aspectos da proposta de Klaus Günther de fundamentação e aplicação do direito, modelo que posteriormente foi incorporado por Jürgen Habermas, e que aponta para a necessidade de se considerar a norma como impregnada de caso, o que levaria a sua aplicação com fundamento na necessidade de adequação e coerência ao caso concreto. No passo seguinte foram estabelecidos três parâmetros como necessários para que o modelo de Günther e Habermas tenha maior eficácia, a saber, o princípio da máxima efetividade, da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot) e da proteção ao núcleo essencial da norma, culminando com uma apreciação do papel judiciário na determinação de fornecimento de medicamentos e as exigências para que tal determinação cumpra o papel de concretizar o direito fundamental à saúde sem ocasionar a desestabilização do ordenamento jurídico. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ 2 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE Diretamente ligado à vida, a saúde é um dos principais direitos fundamentais sociais, situado, portanto, nos chamados direitos fundamentais de segunda geração ou segunda dimensão. Compreendida, inicialmente como a ausência manifesta de doença, a saúde apresenta diversos outros aspectos importantes que não podem ser ignorados2. Curiosamente, nos tempos do Antigo Testamento, a ideia de doença era ligada a uma situação de debilidade ou esgotamento, isto é, a força vital quebrantada; também havia um componente religioso na consideração de certas doenças, onde o enfermo era visto como puro ou impuro para participar da comunidade cultual3. No começo da era cristã, a saúde ainda estava atrelada a preceitos de ordem religiosa. Lembra Daniel-Rops que “Não há necessidade de dizer que todas as medidas relativas à saúde, mesmo as mais humildes e terrenas, estavam sob o controle da religião.”4 A saúde parecia estar ligada a um conceito amplo de bem-estar físico, psíquico, social e espiritual. A ausência de saúde poderia implicar em precariedade física e, por conseguinte, no impedimento do exercício das atividades normais do dia-a-dia; ou poderia resultar em problemas de ordem psicológica, capazes de tirar a condição do indivíduo de portar-se de forma coerente com os preceitos de ordem religiosa; também poderia causar óbices sociais, estando, neste caso, ligada a noção de pureza/impureza, que promovia a segregação e evitava uma vida social plena; ou, por fim, poderia trazer problemas de ordem espiritual, já que a ideia de pecado/culpa resultava em um afastamento do relacionamento com o divino. 2 DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitário, p. 7. WOLFF, Hans Walter. Antropologia del antiguo testamento, p. 195-198. É importante salientar que para Israel do Antigo Testamento, os processos de enfermidade e cura não podem ser separados da ação de Iahweh. 4 DANIEL-ROPS, Henry. A vida diária nos tempos de Jesus, p. 208. 3 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ A concepção da saúde como bem-estar completo do indivíduo tem previsão, nos tempos atuais, em documento da Organização Mundial da Saúde de 1946, em que se alinhava ela como o “[...] estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”5. Enquanto bem-estar completo do indivíduo, a saúde está ligada à ideia de direitos humanos, referindo-se à vida digna, o que levou a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 a prever a saúde e bem-estar como direito fundamental6. Portanto, não restam dúvidas de que o direito à saúde é reconhecido como direito fundamental7, pois compõe a noção de qualidade de vida, ligandose, assim, a dignidade da pessoa humana 8, sendo considerado pelo ordenamento jurídico brasileiro como um direito social, conforme clara dicção do artigo 6º, in verbis: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência social aos desamparados, na forma desta Constituição. Ao positivar a saúde como direito social, a Constituição assegura um direito subjetivo9 de segunda dimensão, reconhecendo-se que, de outro lado, a saúde é dever do Estado, consoante prescreve o artigo 196, da Lei Fundamental, in verbis: 5 DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit., p. 8. “O primeiro conceito teórico-formal de saúde surgiu em 1946, com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao reconhecê-la como um dos direitos fundamentais de todo ser humano, independentemente de sua condição social, econômica, de sua crença religiosa ou de suas convicções políticas.” ABUJAMRA, Ana Carolina Pedutti; MARTIN, Andréia Garcia. O direito à saúde do idoso: as políticas públicas como instrumento de inclusão social e seu controle jurisdicional, p. 67. 6 “Artigo XXV, 1. Toda a pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle.” 7 BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 558. 8 ABUJAMRA, Ana Carolina Pedutti; MARTIN, Andréia Garcia. Op. cit., p. 67. 9 STF, AgRg no RE nº 393.175-0, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 02.02.2007. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Sendo o direito de todos, a saúde impõe a obrigação de ações positivas por parte do Estado; além disso, em razão da ideia da solidariedade social, o dever de respeito recai sobre toda a sociedade. A saúde é um direito e dever fundamental da pessoa humana, o que significa que a sua eficácia não é apenas vertical, havendo, outrossim, uma eficácia horizontal vinculativa de todos os sujeitos privados10. Contudo, para além da concepção tradicional de direitos sociais como direitos à uma prestação Victor Abramovich e Christian Courtis propuseram uma abordagem distinta acerca da estrutura dos direitos fundamentais, entendendo que a distinção entre direitos de defesa e direitos prestacionais não é suficiente para abarcar toda a complexidade presente nas relações sociais contemporâneas11. Segundo Abramovich e Courtis, a compreensão dos direitos fundamentais deve passar pela ideia de três níveis de obrigações que tais direitos geram, a saber: a) obrigações de respeito, que se referem ao dever estatal de não-ingerência ou obstaculização do direito; b) obrigações de proteção, relativas à atuação estatal no sentido de impedir que terceiros venham a exercer ingerência indevida ou criar obstáculos ao exercício do direito; c) obrigações de satisfação, que envolvem deveres de garantir que o titular dos direitos possa per si exercê-los, além de obrigações de promoção, que abarcam as medidas estatais que possibilitem o desenvolvimento de condições para que os titulares dos direitos possam exercê-lo12. Esta classificação proposta por Abramovich e Courtis leva em consideração as peculiaridades de cada situação concreta. Lembram que no 10 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988, p. 1. BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 558. 11 ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 24. 12 Id. Ibid., p. 29 e 31. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ campo dos direitos sociais nem sempre a atuação estatal envolve a transferência de recursos, podendo ser, por exemplo, o dever de estabelecer algum tipo de regulação13. O direito fundamental à saúde pode exigir, muitas vezes, que o Estado atue negativamente, no sentido de não implementar medidas que possam contribuir para a ofensa ao direito à saúde, ou para evitar que terceiros atuem provocando danos à saúde pública14. Também podem abarcar que o Estado garanta que os cidadãos exerçam plenamente o direito fundamental à saúde ou, nos casos em que algum fator externo ou interno impeça o exercício desse direito, que o Estado atue promovendo esse direito. Note-se, por exemplo, que o artigo 198, inciso II da Constituição Federal alude ao atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, o que deixa claro que não se podem considerar os direitos sociais, em particular, a saúde, como simples direito prestacional. À guisa de conclusão deste tópico, conclui-se que a saúde não significa simples ausência de enfermidade; sua ideia abarca o bem-estar completo do indivíduo, razão por que, a saúde está ligada à noção de dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, um direito fundamental. Cuida-se, ainda, de um direito fundamental social, que a primeira vista pode levar a ideia de que se trata de um direito prestacional; todavia, enquanto direito fundamental, a saúde impõe três níveis de obrigação ao Estado, a saber, a obrigação de respeito, a obrigação de proteção e a obrigação de satisfação. 3 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS EM HABERMAS: COLISÕES INTERNAS E EXTERNAS A análise da existência de uma resposta correta, especificamente no que tange ao fornecimento de medicamentos de alto custo, pressupõe a prévia 13 ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Op. cit., p. 33. Ao apreciar questão envolvendo judicialização do direito à saúde, o Ministro Gilmar Mendes asseverou que: “Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote).” (STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010). 14 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ compreensão da distinção que existe entre os conceitos de princípio e regra. Embora as abordagens não se apresentem uniformes na filosofia jurídica, os principais estudiosos do tema concordam que nos discursos de aplicação não é possível considerar a existência tão-somente de normas sem que se faça uma cisão entre os princípios e as regras. As eventuais colisões entre as normas resolvem-se de maneira distinta, conforme se considere que estejam em choque regras ou princípios. Robert Alexy, por exemplo, apresenta uma distinção que ressalta o aspecto peculiar dos princípios como mandatos de otimização15. Ou seja, enquanto a aplicação da regra se dá na forma da introdução de uma cláusula de exceção com a declaração da invalidade de uma delas, nas colisões entre os princípios, sua natureza de mandatos de otimização exige que haja a sua aplicação no mais alto grau em que seja efetivamente possível. Habermas, com base no pensamento de Klaus Günther, rejeita essa distinção feita por Alexy entre regras e princípios16. Tanto para Habermas, quanto para Günther, os possíveis conflitos entre normas não são resolvidos pela distinção entre os conflitos que ocorrem entre regras e aqueles que são entre princípios. Eles partem da diferenciação entre as colisões internas e as externas. Com isso, Habermas e Günther querem mostrar que não é possível falar-se em norma que não contenha referência situacional, isto é, toda e qualquer norma, seja ela jurídica ou moral está impregnada de caso17. Isso implica na resolução dos conflitos entre as normas pela consideração de sua dimensão de validade e sua dimensão de aplicação. Ou seja, quando há uma colisão entre regras, a solução ocorre no âmbito da dimensão de validade ou de fundamentação, o que Günther denomina de 15 ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón practica, p. 140. BOTELHO, Marcos César. O procedimentalismo em Alexy e o papel da corte constitucional, p. 38. 16 BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 559. 17 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre a justificação e a aplicação das normas jurídicas, p. 85. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ colisão interna; as colisões externas demandam soluções na dimensão de aplicação das normas18. As colisões internas afetam a validade da norma, o que se dá pela negação levada a cabo independentemente das situações reais de aplicação. A dimensão de validade se constrói no campo da abstração, não estando impregnada de caso, diferentemente das colisões externas que se dão nas atividades concretas de aplicação da norma. É através da observação das características próprias do caso concreto que as colisões entre normas são resolvidas, capacitando o intérprete/aplicador a obter a resposta correta para o caso em análise. Habermas, apropriando-se dessas ideias de Günther, também defende a necessidade de resolução de conflitos na dimensão de sua aplicação. Para que isso ocorra, não é possível partir-se de standards morais previamente estabelecidos como entende Dworkin, tampouco recorrer-se a uma Grundnorm ou “regra de reconhecimento” como propõem, respectivamente, Kelsen e Hart19. A consideração das peculiaridades do caso concreto é o ponto de partida para a solução de conflitos externos, levando à necessidade de adequação da norma as contingencias da realidade. A eficácia de uma norma e a sua capacidade de fornecer uma resposta correta depende de sua apreciação nos discursos de aplicação através da consideração das particularidades do caso concreto. Não se trata de advogar o experimentalismo defendido por Mangabeira Unger, o qual busca um projeto democrático livre de dogmatismos otimistas ou pessimistas e que seja capaz de proporcionar as condições necessárias ao progresso material e de independência individual20. 18 GÜNTHER, Klaus. Um concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica, p. 281. BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 560. 19 Importante esclarecer que a Grundnorm de Kelsen é pressuposta, não estando inserida no sistema jurídico, diferentemente da “regra de reconhecimento” de Hart que integra o sistema. Sobre o tema, conferir PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito, p. 161-179; 245-271. 20 UNGER, Roberto Mangabeira. O direito e o futuro da democracia, p. 16. Sobre o movimento Critical Legal Studies conferir TUSHNET, Mark V. Critical legal theory, p. 80-89. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ O experimentalismo democrático de Unger não considera a práxis argumentativa além do próprio papel das instituições, em particular da Corte Constitucional, como garantidora dos procedimentos democráticos inclusivos. E não é possível a obtenção de uma resposta correta para o caso concreto sem que se considere o papel das instituições democráticas na construção da força cogente da norma. Embora Unger compreenda que pensar sobre ideais e interesses não pode ser feito separadamente sobre o pensar acerca das instituições e práticas, pois essas atividades não são momentos estanques, havendo a incorporação de um pelo outro, sem que esse processo redunde em assimilação por uma das partes21, não há qualquer alusão ao mecanismo que torne viável que o indivíduo participe do processo de fundamentação e aplicação das normas jurídicas. Adequação da norma ao caso concreto como defende Habermas não se confunde com experimentalismos ou tentativas diante da situação posta em análise. Günther, inclusive, defende que a aplicação da norma como adequação se dá em um contexto em que a versão fraca de “U” deve ser considerada, tornando exigível que se observe apenas as características da situação que se analisa22. Significa que a resposta correta somente é possível quando se considera as questões peculiares do caso concreto o que já afasta qualquer experimentalismo, na medida em que tais características da situação posta 21 UNGER, Roberto Mangabeira. O direito e o futuro da democracia, p. 14. “A versão mais fraca de ‘U’ parte de uma proposta já selecionada de norma, para colocá-la em uma perspectiva situacional generalizante e relacioná-la com os interesses virtuais de todos. Por isso, esta versão deve ser complementada por um discurso de aplicação que realce a perspectiva específica da situação e a relacione com os interesses dos outros como pessoas concretas. Em situações de aplicação, ainda não se trata da capacidade de universalização de interesses afetados, mas, inicialmente, apenas do seu descobrimento e da relevância situacional. Reserva-se à aplicação ‘U’, na versão mais forte, se o interesse representado na norma contextualmente adequada é realmente legítimo e se, portanto, pode ser aceito por todos em conjunto.” GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, p. 72. Conferir também, BOTELHO, Marcos César. A legitimidade da jurisdição constitucional no pensamento de Jürgen Habermas, p. 112-122 22 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ vinculam, de certa maneira, o aplicador que não poderá “criar” uma situação nova, mas adequar a norma a todas as características de uma única situação 23. Habermas, porém, assevera que a interpretação e estruturação dos direitos é feita pelo legislador, cabendo à justiça apenas a mobilização das razões que lhe são dadas segundo o “direito e a lei”, possibilitando ao aplicador da norma chegar a decisões que possuam coerência com determinado caso concreto24. Com isso, Habermas quer dizer que não cabe ao Judiciário adentrar na análise da validade do direito. No entender do pensador tedesco, “O paradigma procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático.”25 Isso significa que a norma construída democraticamente, segundo o paradigma procedimentalista, obtém a sua validade justamente em função do procedimento democrático e inclusivo26. No âmbito da jurisdição constitucional, por exemplo, a sua atuação se dá, em um primeiro momento, através de discursos de aplicação, fundamentados em pressupostos legitimadores extraídos da Constituição Federal27. Logo, o Tribunal Constitucional aplica a norma com base no critério de adequação, estando a validade pressuposta; somente quando a norma não permita mais uma aplicação coerente é que o Tribunal Constitucional poderá 23 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, p. 70. Cf. BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 561. Este, inclusive, é um dos pontos de distinção entre os modelos de Roberto Unger e Jürgen Habermas, já que neste, há um viés normativo, enquanto que Unger ressalta a capacidade de domínio sobre os contextos como ponto fundamental para a liberdade do indivíduo. Sobre esta questão vale a pena conferir TEIXEIRA, Carlos Sávio Gomes. A esquerda experimentalista: análise da teoria política de Unger, p. 47 e seguintes. 24 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo II, p. 183. 25 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo II, p. 183. 26 “Dado que as normas jurídicas são impostas, o momento da validade ou da aceitabilidade racional, presente na dimensão da validade jurídica, se liga à validade ou aceitação social.” Id. Ibid., Tomo I, p. 195. 27 BOTELHO, Marcos César. Audiências públicas e a abertura democrática do Supremo Tribunal Federal: Legitimidade discursiva e consequente concretização de direitos fundamentais, p. 268. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ adentrar nos discursos de fundamentação da norma, quando passa a tratar do controle abstrato de normas28. 4 PARÂMETROS PARA ADEQUAÇÃO DA DECISÃO AO CASO CONCRETO 4.1 Princípio da máxima efetividade No âmbito da Teoria Geral do Direito, a validade da norma jurídica é expressa sob três aspectos, a saber, a validade técnico-formal ou vigência, a validade fática ou eficácia e a validade ética ou fundamento 29. A vigência expressa a executoriedade compulsória da norma jurídica, quando preenchidos os requisitos relativos à competência do órgão para a sua elaboração, observância do devido processo legislativo e competência material do órgão elaborador da norma. Segundo Paulo Nader, a vigência expressa a validade formal o que “[...] significa que a norma social preenche os requisitos técnicos-formais e imperativamente se impõe aos destinatários.”30 A eficácia ou validade fática aponta para o atributo da norma que expressa a sua aptidão a produzir os efeitos sociais planejados 31. Diz respeito a sua adequação visando à produção concreta de efeitos, sendo que as condições fáticas referem-se à adequação à realidade (eficácia semântica) e as condições técnicas para a atuação da norma (eficácia sintática) 32. Por fim, a validade ética ou o fundamento axiológico aponta para a correspondência que deve haver entre a norma aos ideais e aos sentimentos de justiça da comunidade que rege33. A efetividade, a princípio, não faria parte do conceito de validade, que, como visto, pode ser formal, fática ou axiológica. Contudo, a norma jurídica 28 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, Tomo I, p. 325. BOTELHO, Marcos César. Audiências públicas e a abertura democrática do Supremo Tribunal Federal: Legitimidade discursiva e consequente concretização de direitos fundamentais, p. 270. 29 BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao direito, p. 242. 30 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito, p. 94. 31 Id. Ibid., mesma página. 32 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 424. 33 Id. Ibid., p. 426. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ precisa de um atributo referente à sua efetiva observação por seus destinatários. Cuida-se, portanto, da ideia de efetividade, relacionada justamente com a observação da norma jurídica efetiva pelos destinatários e aplicadores do direito34. Todavia, o princípio da máxima efetividade não parece se referir ao conceito de efetividade exposto no parágrafo anterior. Segundo Mônica Serrano, “O intérprete deve realizar o ato interpretativo de forma a conceder ao texto constitucional a maior eficiência possível.”35 Refere-se à exigência de que a atividade hermenêutica seja levada de uma maneira que confira maior eficácia à norma constitucional36. Lembra Tavares que esse princípio impõe que “Não se deve interpretar uma regra de maneira que algumas de suas partes ou algumas de suas palavras acabem se tornando supérfluas, o que equivale a nulificá-las.”37 Esse quarto plano, ao relacionar-se com o cumprimento efetivo e real da norma, aponta para uma aproximação entre o dever-se e o ser da realidade social38. Significa que a efetividade diz respeito à densidade normativa e, portanto, tratam da efetividade social da norma. O princípio da máxima efetividade atenta para esta necessidade de se conferir maior densidade normativa à norma de direito fundamental, vedando interpretações que venham a esvaziar seu conteúdo ou que impeçam que a norma produza, no caso concreto, todos os efeitos possíveis que dela se possa esperar39. 34 NADER, Paulo. Op. cit., p. 94. SERRANO, Mônica. O sistema único de saúde e suas diretrizes constitucionais, p. 27. 36 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1124. 37 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 109. 38 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, p. 220. 39 Ao apreciar questão envolvendo o artigo 40, § 21 da Constituição Federal, na qual se pugnava pela aplicação do rol de doenças que autorizavam a aposentadoria por invalidez no serviço público, o Superior Tribunal de Justiça, ante a falta de norma legal estadual regulamentadora do preceito constitucional, aplicou o princípio da máxima efetividade, conforme excerto que se transcreve: “Assim, embora não haja lei editada com o propósito específico de regulamentar, no âmbito estadual, o art. 40, § 21 da Constituição Federal, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais - do qual decorre a sua autoaplicabilidade, sempre que não haja fundamento insuperável a impedir que isso ocorra - impõe que se adote, para os efeitos nele previstos, o rol de doenças consideradas pela legislação estadual como incapacitantes para o exercício de função pública, autorizando a concessão de 35 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Daí que o princípio da máxima efetividade exige que a densificação dos preceitos constitucionais, especialmente de direitos e garantias fundamentais, obedeça a uma hermenêutica que lhes otimize a eficácia, sem que haja alteração de seu conteúdo40. 4.2 Da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot) O princípio da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot), proibição de proteção deficiente ou proibição da insuficiência constitui-se em um subprincípio do princípio da proporcionalidade. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, constitui-se em uma espécie de garantismo positivo41. A proibição da proteção insuficiente aponta para a exigência de ser observado certo mínimo de proteção, abaixo do qual a proteção seria insuficiente42. Ou seja, há um patamar mínimo de proteção abaixo do qual haveria uma deficiência na obrigação do Estado de proteção. O Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao analisar a interrupção da gestação, asseverou que a vida humana intra-uterina deve receber proteção estatal, impondo limites aos direitos fundamentais da mulher, que não seriam amplos ao ponto de suspender o dever de levar a termo a gestação do filho. E, embora o Tribunal tenha asseverado que existem situações excepcionais previstas em lei, casos em que estão presentes gravames que venham a pôr em risco valores vitais próprios, cabe ao Estado promover a adequada proteção da vida intra-uterina, o que, em razão do princípio da proibição de insuficiência, não permite que haja a livre desistência da utilização do direito penal e do efeito de proteção da vida humana que é decorrente 43. aposentadoria por invalidez permanente.” (STJ, RMS 27.064, Primeira Turma, rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgamento 23.04.2009, DJe 11.05.2009). 40 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional, p. 111. 41 STF, RE 418.376/MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento 09.02.2006, DJe 23.03.2007, voto Ministro Gilmar Mendes. 42 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado, p. 59-60. 43 BVferGE 88, 203, 28.05.1993. Segundo o Tribunal Constitucional Federal Alemão, “O dever de tutela estatal abrange também a proteção da vida humana na fase intra-uterina contra Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ No entender do Tribunal Constitucional Federal Alemão, O Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela, que levem - considerando os bens conflitantes – ao alcance de uma proteção adequada e, como tal, efetiva (proibição de insuficiência)44. Essa dupla face de Janus presente na proporcionalidade revelando, de um lado, uma proteção positiva (proibição do excesso) e uma negativa (proibição de insuficiência) leva a certa diminuição na liberdade de conformação do legislador45. Ou seja, “[...] se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot).46” Cabe ao legislador determinar o tipo de extensão da proteção, já que, embora a Constituição estabeleça a proteção como objetivo, não apresenta uma configuração detalhada, razão por que caberá ao legislador tal mister, estando limitado, contudo, pelo princípio da proibição da proteção insuficiente47. É fundamental destacar, porém, que o princípio da proibição da proteção insuficiente não diz respeito apenas à liberdade de conformação do legislador. Cabe a sua aplicação, outrossim, na formulação e execução de políticas públicas pelo Poder Público (Executivo). A eleição de escolhas pelo gestor público, sobretudo diante da escassez de recursos, deve primar pela implementação das medidas que redundem na proteção adequada e suficiente. A 6ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que o princípio da proibição da insuficiência incide não apenas sobre a atuação do gestor público, mas também aos particulares que prestam serviços públicos por meio de delegação: perigos oriundos de influências dos círculos familiar ou social da gestante, ou das atuais e previsíveis condições da vida da mulher e da família, os quais agem contra a disposição de levar a termo a gestação do filho.” 44 BVferGE 88, 203, 28.05.1993. 45 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais, p. 180. 46 Id. Bem jurídico e constituição: os limites da liberdade de conformação legislativa e a aplicação (corretiva) da nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung) à lei dos juizados especiais, p.89 47 BVferGE 88, 203, 28.05.1993. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Os serviços de educação, quando prestado por particulares por meio de delegação, se sujeitam ao regime jurídico-administrativo das entidades políticas por ele responsáveis, incluindo suas prerrogativas e obrigações. Dessa forma, também estão as entidades particulares de ensino, no exercício de sua atividade educacional, assim como os entes estatais, condicionadas à observância do princípio da proibição da insuficiência ou da proteção deficiente (Untermassverbot). Tal princípio consiste no reconhecimento da existência de uma violação do dever de proteção quando as entidades sobre quem esse recai não adotam nenhuma medida concreta ou adotam medidas inteiramente insuficientes ou ineficazes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais48. O princípio da proibição da proteção insuficiente reforça o entendimento de Abramovich e Courtis, relativo à existência de três níveis de obrigações, dentre as quais, a obrigação de proteção. Ana Carolina Lopes Olsen, em interessante dissertação sobre a eficácia dos direitos fundamentais, asseverou que: Segundo a proibição da atuação insuficiente, tanto o legislador, quando da especificação de normas relativas a direitos fundamentais sociais prestacionais, quanto o administrador, quando da realização de atos concretos de prestação social, estão obrigados a alcançar limites mínimos do fim estabelecido na norma. Trata-se da aplicação da proporcionalidade para o fim de resguardar a efetividade da prestação positiva prevista em uma norma de direito fundamental social, de modo que a ação dos poderes públicos também deverá ser submetida aos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito49. Portanto, o princípio da proibição da proteção insuficiente incide não apenas sobre a atividade do legislador, mas também na atuação do gestor público. Ademais, não se pode negar que esse princípio também se espraia sobre a atuação do intérprete/aplicador do direito que, constatando que a proteção oferecida é insuficiente, deve promover medidas que torne adequada e suficiente a proteção aos direitos fundamentais. 4.3 Princípio da proteção do núcleo essencial (Wesensgehaltsgarantie) 48 TJRS, Apelaçaõ Cível nº 70020833109, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Odone Sanguiné, julgamento 17.09.2008. 49 OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais frente sociais frente à reserva do possível, p. 79. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ O caráter não-absoluto dos direitos fundamentais possibilita que eles sofram restrições, inclusive na forma de coexistência de diversos direitos fundamentais em um ordenamento jurídico. Contudo, mesmo os limites aos direitos fundamentais sofrem de limites a sua implementação, cogitando-se de limites dos limites (Schranken-Schranken)50. Segundo Jane Pereira, o princípio da proteção do núcleo essencial consiste em uma garantia que foi concebida na Constituição Federal Alemã de 1949, sendo que o seu desiderato é de restringir a liberdade do legislador em matéria de direitos fundamentais51. Esse princípio liga-se com a liberdade de conformação do legislador, impondo limites à sua atuação, visando garantir a força vinculante da Lei Fundamental. No entender Mendes: [...] a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais deriva da supremacia da Constituição e do significado dos direitos fundamentais na estrutura constitucional dos países dotados de Constituições rígidas52. Canotilho advertiu que a determinação da essência de um direito não se constitui em tarefa de fácil execução, principalmente quando se analisa a questão perante os juízos de balanceamento de bens e direitos em caso de conflito53. O jurista português entende que o núcleo essencial tem papel importante na garantia dos direitos, asseverando que a ideia do núcleo essencial foi desenvolvida tendo em vista o regime de proteção de direitos, liberdades e garantias54. Todavia, Canotilho lembra que há um problema a ser enfrentado e que diz respeito à saber se a doutrina do núcleo essencial não deve ser alargada aos direitos econômicos, sociais e culturais55. Diz Canotilho: 50 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 38. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais, p. 366. 52 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 39. 53 CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais, p. 261-262. 54 Id. Ibid., p. 262. 55 Id. Ibid., mesma página. 51 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Sendo assim, o punctum saliens da questão é este: como determinar o núcleo essencial do direito à saúde? Como o direito à saúde implica um feixe de prestações, como determinar o nível essencial de prestações sociais?56 Daí que o princípio do respeito ao conteúdo essencial dos direitos revelar uma proclamação, bem como uma face sinalizadora da nova vinculação e subordinação de todos os poderes do Estado aos direitos fundamentais57. Logo, “[...] o conteúdo essencial é definido como o âmbito de proteção do direito que é inviolável à ação legislativa”58, sendo seu desiderato, por conseguinte, “[...] evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental mediante estabelecimento de restrições descabidas, desmensuradas ou desproporcionais.”59 Uma questão fundamental é que o princípio da proteção do núcleo essencial não diz respeito apenas ao Poder Legislativo. A sua vinculação e subordinação atinge a todos os Poderes. Problemas podem advir da atividade hermenêutica dos Tribunais, que no exercício de sua tarefa concretizadora de direitos está limitada ao conteúdo essencial das normas. Se as regras do direito somente entram em vigor no momento da sua aplicação, quando, então há aperfeiçoamento dos modelos jurídicos60 resta claro que a esta atividade concretizadora e integradora da norma à realidade subjazem limites decorrentes do conteúdo essencial das normas61. Decisão interessante foi proferida pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao analisar situação envolvendo homicídio qualificado e a aplicação de pena de prisão perpétua62. Cuidou-se de caso em que o Tribunal Estadual de Verden apresentou questão perante o Tribunal Constitucional Federal Alemão, 56 Id. Ibid., mesma página. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p. 367. 58 Id. Ibid., mesma página. 59 MENDES. Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 39. 60 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, p. 28. 61 Segundo Coelho (Op. cit., p. 43), “[...] ao aplicador do direito – por mais ampla que seja a sua necessária liberdade de interpretação – não é dado, subjetivamente, criar ou atribuir significados arbitrários aos enunciados normativos, tampouco ir além do seu sentido linguisticamente possível, um sentido que, de resto, é conhecido e/ou fixado pela comunidade e para ela funciona como limite da interpretação.” 62 BVferGE 45, 187, 21.06.1977. 57 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ onde considerava o § 211 StGB inconstitucional na medida em que a única pena prevista para o homicídio qualificado era a pena de prisão perpétua, sem abrir ao juízo a possibilidade de penalizar em conformidade com a culpa concreta verificada em cada caso. O Tribunal Constitucional Federal Alemão entendeu que o § 211 StGB era norma constitucional. Entendeu-se que um dos pressupostos da execução da pena compatível com a ideia de dignidade humana é que, ao condenado à prisão perpétua reste, em princípio, uma chance de voltar, algum dia, a gozar da liberdade. Asseverou a Corte que a pena deve ter uma relação proporcional justa entre a gravidade do delito e a culpa do autor, razão pela qual o conteúdo essencial da garantia da liberdade residia não na vedação a prisão perpétua, mas sim na possibilidade de que o condenado a tal pena tivesse a chance de algum dia voltar a dispor novamente da liberdade. Em razão disso, a garantia do núcleo essencial residia não na proibição de prisão perpétua ou na sua conjugação com a existência de indulto, considerada pelo Tribunal insuficiente, mas que houvesse norma regulamentadora da possibilidade de alcance da liberdade. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista entendeu que “A reserva legal estabelecida pelo art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade profissional a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial.”63 Para o Pretório Excelso: A exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da Constituição64. 63 STF, RE 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.06.2009, DJe 13.11.2009. 64 Afirmou-se, ademais: “No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Tais decisões mostram, primeiramente, que limitações aos direitos fundamentais não podem gerar, como consequência o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental. Também mostram que não é possível fixar um parâmetro ou delimitação abstrata, a partir da qual haveria ofensa do núcleo essencial do direito fundamental, impondo que o aplicador/intérprete considere as peculiaridades do caso concreto. 5 O JUDICIÁRIO, POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE A concretização do direito à saúde, especificamente no que tange a determinação pelo Poder Judiciário para que o Estado forneça gratuitamente medicamentos de alto custo não é matéria das mais fáceis e, tampouco, objeto de consenso entre os estudiosos. Basta dizer que a controvérsia sobre o tema levou o Supremo Tribunal Federal a realizar audiência pública para discutir diversas questões referentes ao direito fundamental à saúde65. Dois pontos têm suscitado grande controvérsia, a saber, a judicialização da saúde, mais especificamente se o Poder Judiciário pode determinar a execução de políticas públicas, e o alto custo de medicamentos excepcionais frente à reserva do possível. Consoante visto nos tópicos anteriores, a saúde é direito fundamental social, estando ligado à dignidade da pessoa humana, na medida em que o conceito de saúde abrange o bem estar completo do indivíduo. Com isso, ao Estado impõem-se três níveis de obrigação, relativas ao respeito, proteção e satisfação. que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição.” (STF, RE 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.06.2009, DJe 13.11.2009) 65 Cf. BOTELHO, Marcos César. Audiência pública – saúde no Supremo Tribunal Federal – Breves considerações, p. 10-17. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ A concretização dos direitos fundamentais pressupõe a consideração dos discursos de aplicação, afastando a ideia de que uma resposta correta possa ser obtida pela apreciação do fundamento de validade da norma. Na verdade, com esteio no pensamento de Klaus Günther e Jürgen Habermas viuse que a questão envolve colisões externas, exigindo que o intérprete/aplicador aplique norma que seja coerente e adequada com as exigências do caso concreto, pois não é possível falar-se em norma que não contenha referência situacional (a norma está impregnada de caso). Contudo, a referência situacional, com a resolução da colisão externa pela aplicação da norma coerente e adequada exige alguns parâmetros que irão auxiliar o aplicador/intérprete da norma, a saber, o princípio da máxima efetividade, a proibição de proteção insuficiente e o princípio da proteção do núcleo essencial da norma fundamental. A concretização do direito à saúde suscita divergências em razão de sua natureza prestacional e pelo fato de que se faz necessária a sua adequação ao mínimo existencial e a reserva do possível 66. Essa questão revela tons mais dramáticos quando a concretização do direito à saúde pressupõe o fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Poder Público. O Pretório Excelso reconheceu que a noção da reserva do possível frente às necessidades sociais impõe ao Poder Público a formulação de políticas públicas voltadas à implementação de direitos fundamentais sociais, gerando, obviamente, escolhas alocativas de recursos67. Essa escolha alocativa de recursos, fundamentada em opções políticas (escolhas trágicas) tem como fundamento critérios de macrojustiça, como por exemplo, número de cidadãos atingidos pela política eleita. Neste passo, 66 STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010. 67 STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto: “Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‘escolhas trágicas’ pautadas por critérios de macrojustiça.” Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ questiona-se se o Poder Judiciário poderia concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça). É certo que não estará o Poder Judiciário apto a examinar determinada pretensão sob uma ótica mais global (macrojustiça). São as características do caso concreto, especificamente na dimensão individual do direito à saúde, que naturalmente limitam o âmbito de apreciação do Poder Judiciário. Pensar de outra forma seria atribuir ao Poder Judiciário o papel de formular políticas públicas, tornando a judicialização do direito à saúde, por exemplo, uma indevida gestão no Poder Executivo. Contudo, não é possível afastar a responsabilidade do Poder Judiciário na manutenção aplicador/intérprete da integridade considerar do que, ordenamento embora a jurídico. sua Cabe ao compreensão da macrojustiça seja limitada, não pode ele valer-se disto para subtrair-se da responsabilidade na manutenção da integridade do sistema jurídico. Não se trata aqui de adotar a ideia do juiz Hércules de Dworkin, descrito pelo filósofo americano como aquele que é possuidor de uma habilidade, sabedoria, paciência e perspicácia sobre-humanas, consciente de suas responsabilidades constitucionais. O aplicador/intérprete a que nos referimos não é um ser idealizado, um juiz ideal, mas aquele que tem contato com o caso concreto e que deve interpretar e aplicar a norma de uma forma construtiva, afastando irracionalidades que possam atingir a integridade do direito68. Corroborando esta argumentação, tem-se a ideia exposta pelo Ministro Gilmar Mendes por ocasião do julgamento da Suspensão de Liminar nº 47AgR: [...] a garantia judicial da prestação individual de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do 68 BOTELHO, Marcos César. A lei em Ronald Dworkin: breves considerações sobre a integridade no direito, p. 61. Embora Dworkin refira-se à necessidade de manutenção da integridade do Direito, ele rejeita uma referência situacional da norma quando idealiza o juiz Hércules. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser sempre 69 demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta . A outro prisma, fundamental considerar que, se o Poder Judiciário não tem condições de ter uma compreensão adequada da macrojustiça, não menos verdadeiro é o argumento de que o Poder Executivo igualmente não terá condições de ter uma visão adequada da microjustiça. Logo, a concretização do direito fundamental à saúde exige a formulação de políticas públicas e aplicação/interpretação das normas de forma adequada. Em outras palavras, concretizar o direito fundamental à saúde é conjugar harmonicamente a macrojustiça e a microjustiça. Daí que o Pretório Excelso entendeu que é possível a judicialização da saúde nos casos em que o problema reside na execução das políticas públicas pelos entes federados. Em outras palavras: [...] na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas70. A conclusão lógica a que o Pretório Excelso chegou é que, nestes casos, o Judiciário não cria políticas públicas, mas apenas determina seu cumprimento. A determinação pelo Poder Judiciário para o fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado é possível. Contudo, cabe ao juiz considerar as peculiaridades do caso concreto. Em outras palavras, cabe-lhe considerar que a norma a ser aplicada está impregnada de caso, razão por que não é todo e qualquer pedido de fornecimento de medicamento que deve ser deferido pelo Judiciário. 69 STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010. 70 STF, SL 47-AgR/PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento 17.03.2010, DJe 30.04.2010. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ O Pretório Excelso reconheceu que a atividade judicial que determina distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes confere efetividade aos preceitos fundamentais da Constituição Federal 71. A alusão, por exemplo, a “pessoas carentes” aponta para um elemento fático e concreto que deve ser considerado pelo magistrado no momento da decisão. Ao Poder Judiciário cumpre a tarefa de proteger e satisfazer o direito fundamental à saúde, mas também de respeitá-lo. Significa que decisões desarrazoadas de juízes, ao conceder liminares para que o Estado forneça medicamentos de alto custo à determinada pessoa, sem consideração das características da situação pode conduzir ao desrespeito do direito à saúde da coletividade72. Aplicar a norma é adequá-la à referência situacional, sobretudo pelo fato de que os discursos jurídicos de aplicação produzem decisões em condições de tempo escasso e saber incompleto 73. É essa adequação à referência situacional que permite que o magistrado, mesmo em condições de tempo escasso e saber incompleto, isto é, mesmo não tendo uma compreensão adequada da macrojustiça, produza decisão concretizadora do direito fundamental à saúde, prestigiando a dignidade da pessoa humana e sem comprometer o sistema jurídico74. E, ao aplicar a norma, adequando-a ao caso concreto, deverá o magistrado atentar-se para interpretações que levem ao completo esvaziamento do conteúdo essencial do direito fundamental à saúde. A proteção ao núcleo essencial da norma deve estar subjacente à sua análise do caso concreto, servindo-lhe de parâmetro, seja enquanto direito individual, seja enquanto direito coletivo. 71 STF, AgRg no RE nº 393.175, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento 12.12.2006, DJ 02.02.2007. 72 A comprovação de que o medicamento é essencial à manutenção da saúde cabe ao paciente. Neste sentido: STJ, RMS nº 33.463/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgamento 20.10.2011, DJe 26.10.2011. Sobre a inadequação da utilização de mandado de segurança para pleitear fornecimento de medicamentos: STJ, RMS 22.115/SC, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgamento 12.06.2007, DJ 22.06.2007. 73 GÜNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica, p. 281. 74 BOTELHO, Marcos César. O fornecimento de medicamentos pelo Estado: considerações à luz do pensamento de Klaus Günther, p. 560. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ A decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão no caso envolvendo a prisão perpétua75 ilustra bem este ponto, pois a validade desta espécie de pena está condicionada a existência de uma chance para que o condenado possa reaver a sua liberdade. Aplicada a ideia à questão do fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo, a conclusão que se segue é que o Estado não tem a obrigação de fornecê-los, a menos que a efetividade do direito à saúde de determinado paciente dependa de determinado remédio. Isso afasta o fornecimento de medicamentos em todo e qualquer caso e, de outro lado enfraquece argumentação fundamentada na reserva do possível. O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se pronunciar sobre a reserva do possível e o problema da escassez em questão envolvendo a concretização do direito fundamental social à educação. Segundo este sodalício, o estado de escassez decorre, em muitos casos, do resultado do processo de escolha do gestor público76. O ponto fundamental deste arresto do Superior Tribunal de Justiça é a consideração de que a realização de direitos fundamentais não se constitui em opção do governante e, portanto, não pode ser inserido no campo de juízo discricionário do gestor público, sendo que a escassez fundamentadora do princípio da reserva do possível somente ocorrerá quando não houver possibilidade de implementar políticas públicas que promovam direitos fundamentais e não quando esta escassez decorra de escolhas do gestor: Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade77. 75 BVferGE 45, 187, 21.06.1977. STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento 20.04.2010, DJe 29.04.2010. 77 STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento 20.04.2010, DJe 29.04.2010. 76 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ Daí concluir a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas78. O princípio da máxima efetividade das normas de direitos fundamentais traz consigo a necessidade de que o administrador público não venha a efetuar escolhas que resultem em preterição dos direitos fundamentais. Da mesma maneira, ao aplicador/intérprete da norma cabe proceder de tal maneira que os direitos fundamentais não sejam preteridos em razão de outras políticas não prioritárias, seja deferindo o fornecimento medicamentos de alto custo em situações em que ele não é devido, seja indeferindo nos casos em que o direito fundamental à saúde está ameaçado79. Não haveria coerência na aplicação da norma se fosse deferido o fornecimento de medicamento de alto custo, havendo outras alternativas disponíveis e com eficácia comprovada, pois tais medidas resultariam em alocação indevida de recursos pelo Poder Judiciário travestidas de concretização de direito fundamental. A adequação e coerência da norma ao caso concreto também tem estreita vinculação com o princípio da proibição da proteção insuficiente. A obrigação do Estado de satisfação do direito fundamental exige que as medidas tomadas tenham coerência com a situação normada, já que haveria uma proteção deficiente nos casos em que a norma carecesse de densidade normativa. 78 STJ, Resp. 1.185.474/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julgamento 20.04.2010, DJe 29.04.2010. 79 Neste sentido, excerto do voto do relator no AgRg na Petição nº 1.996/SP, cujo caso versou sobre ação civil pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo visando compelir o Estado de São Paulo a fornecer medicamento Interferon Peguilado para pacientes do SUS, portadores de Hepatite “C”, presentes e futuros: “No mérito, melhor sorte não possui o agravante, porquanto vislumbrei que a decisão suspensa tinha potencial para causar lesão à saúde e à ordem pública, nesta compreendida a administrativa, visto que generalizou, em cognição sumária, a adoção de procedimento que, filtrado pelo sistema de consulta à comunidade científica, não logrou aprovação da maioria.” (STJ, AgRg na Pet. Nº 1.996/SP, Corte Especial, Rel. Min. Nilson Naves, julgamento 03.03.2004, DJ 05.04.2004) Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ A outro prisma, inadequação da norma à situação normada significa que àquele programa da norma pertence outro recorte da realidade social (âmbito ou domínio da norma) que ele escolheu ou criou como seu âmbito de regulamentação80. Segundo Friedrich Müller: Os elementos materiais que têm suas raízes no real só formam parte do âmbito normativo na medida em que possa se demonstrar, ao concretizar a norma para um caso concreto, que se trata de componentes imprescindíveis da normatividade concreta81. Daí que o âmbito normativo não se constituir em um amontoado de fatos materiais, sendo, por seu turno, “[...] uma conexão, expressada como realmente possível, de elementos estruturais extraídos da realidade social desde a perspectiva seletiva e valorativa do programa normativo.”82 Somente essa consideração possibilita que a proteção expressada pela norma de direito fundamental seja eficaz, afastando deficiências na sua aplicação e concretização. A coerência e a adequação, portanto, exigem que a proteção ofertada pela norma de direito fundamental não seja deficiente ou insuficiente. Mais do que oferecer um instrumental que possibilite uma leitura eficaz do caso concreto, Günther e Habermas propõem um método que visa buscar uma solução correta ao caso, o que afasta uma solução deficiente ou insuficiente. Com estas ponderações não restam dúvidas de que o fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Estado deve considerar os fatores do caso, da realidade, sob pena de a norma não se apresentar adequada e coerente ao caso que se propõe normatizar, o que significaria, além disso, em uma diminuição na efetividade da norma de direito fundamental, em uma proteção insuficiente ou deficiente, e em ameaça a próprio núcleo essencial do direito fundamental. 6 CONCLUSÕES 80 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do direito constitucional, p. 58. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes, p. 30. 82 Id. Ibid., mesma página. 81 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ A saúde não pode ser compreendida tão-somente como ausência de doença. A noção de saúde advogada pelos instrumentos internacionais e incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro aponta para um conceito de saúde que abarca o bem estar completo do indivíduo. Neste prisma, a saúde afigura-se como um direito fundamental, haja vista estar ligado à dignidade da pessoa humana. É direito social fundamental que não pode ser compreendido de maneira estanque à ideia de dignidade da pessoa humana. Por ser direito social, a compreensão da saúde pode levar, em um primeiro momento, a sua caracterização como simples direito prestacional. Contudo, a distinção tradicional entre os direitos de primeira e os de segunda geração como, respectivamente, direitos de defesa e direitos prestacionais deve ser superada. Para tanto, viu-se a proposta de Abramovich e Courtis, de fixação de níveis de obrigação, a saber, o a obrigação de proteção, a obrigação de respeito e a obrigação de satisfação, proposta que demanda uma análise concreta do direito e as exigências obrigacionais presentes em cada caso. A efetividade da proposta de Abramovich e Courtis exige um modelo adequado de aplicação da norma, o que levou à consideração das ideias desenvolvidas por Klaus Günther e Jürgen Habermas que se referem ao fato de que a norma está impregnada de caso, razão por que a sua aplicação deve considerar as especificidades do caso concreto, buscando ser adequada e coerente a estas características. Contudo, verificou-se, ainda, que o modelo de Günther e Habermas deve estar aliado a alguns parâmetros que devem ser observados pelo aplicador/intérprete da norma, a saber, o princípio da proibição da proteção insuficiente ou deficiente, da máxima efetividade da norma e da proteção ao núcleo essencial da norma. Com base nestas considerações, analisou-se o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado, levando a conclusão de que cabe ao aplicador/intérprete da norma conferir máxima efetividade a norma protetiva de Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ direito fundamental à saúde, através de uma aplicação que considere as peculiaridades do caso concreto, tornando a norma adequada e coerente com tais exigências, propiciando, desta maneira, que o núcleo essencial do direito fundamental à saúde, tanto em sua dimensão individual, quanto coletiva, seja preservado, garantindo-se, por fim, que a proteção seja suficiente e eficaz. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X __________________________________________________________________________ REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 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