Ato falho
A expressão ato falho – lapsus linguae, lapso de linguagem – é usada, frequentemente, para
indicar um erro verbal, um engano de pequena gravidade, mas capaz de revelar o inconsciente,
segundo Freud.
O Eclesiástico 20:18 afirma “Lapsus falsae linguae quasi qui pavimento cadens” ou “o
deslize da língua que erra é como quem cai ao chão”.
Se não, vejamos:
- Quem é?
- Nunca o vi mais gordo!
- Como? Ele a cumprimentou, sorrindo, e você o retribuiu...
- Isto já me ocorreu muito, meu amor. Uma pessoa me cumprimenta, eu retribuo, e não me
lembro de quem se trata?
- Estranho, né?
- Estranho... o quê?
- Um cara lhe cumprimenta de cara tão boa, você o retribui com um sorriso, e não o
conhece?
- Meu amor, o que está havendo? Não to lhe entendendo? Que é isto? Eu amo você, meu
amor - abraçou o marido, com ternura.
- Vou ao banheiro primeiro, enquanto você vai trocar os seus sapatos.
- Ok, encontro-o depois, na livraria.
Despediram-se - com um tímido beijo na boca - e rumaram para direções opostas.
Antônio e Bernadete, raramente, iam juntos ao shopping e a outros lugares. Os dez anos de
casados, a cada ano, os individualizavam e seus desejos se opunham, diametralmente.
O marido era um psiquiatra, intelectual por natureza, dissidente de tudo e de todos, apesar
de haver granjeado entre seus pares, respeito, reconhecimento, autonomia. O convívio social,
para ele, era uma necessidade dolorosa, avesso que era a todo o tipo de convivência: familiar,
profissional, social. Era como, bem sabia, uma personalidade esquizóide, bem adaptada.
Construíra uma brilhante carreira, apesar do temperamento, emocionalmente, alienado,
introvertido, com violentas oscilações de humor. Como bom obsessivo, tinha profundo medo do
amor, quase tanto quanto do ódio e, sempre que possível, se escondia no seu mundo
essencialmente conceitual. Neste recanto, procurava, na atividade literária e artística, um puro
prazer estético, mas também aí se refugiava da ansiedade das exigências conflitantes dos
contatos diários com as outras pessoas, e da sua alienação. Seu sentimento, de falta de sentido
das coisas e da futilidade do mundo, se confrontava com o da maioria das pessoas do seu meio,
que, diferentemente dele, necessitavam da interação com os outros, para encontrarem significado
e importância, na vida. É claro que pouquíssimas pessoas que apresentam um padrão de
isolamento social - durante toda a vida - e indiferença pelas atitudes e sentimentos dos outros
(características principais da chamada personalidade esquizoide) possuem um grande talento
criativo - qualquer que este seja. Antônio era, porém, uma dessas raras exceções. Herdara do pai
o amor ao trabalho, e sua vida era hospital, consultório e casa.
A esposa, dedicada mãe do André, de cinco, e da Bianca, de quatro anos, era,
fundamentalmente, seu oposto – uma pessoa prática em tudo, e visceralmente afetuosa.
Deleitava-se e se aprazia com a vida: família, amizade, compras, vestuário, turismo (quando
possível) e a sonhar muitos sonhos, ainda não realizados.
Vinte e cinco anos os separavam na idade e, apesar de gozarem de aparente saúde, os
anos começavam a pesar no relacionamento deles, principalmente para o marido - que
completaria, agora, sessenta anos.
Alcançada a entrada do banheiro masculino, Antônio mudou, de repente, a trajetória e se
encaminhou para a saída do shopping, que dava acesso ao estacionamento. Passos rápidos
fizeram-no alcançá-lo, rapidamente.
Ali chegando, varreu rapidamente, com o olhar, os carros estacionados e, estacou,
divisando - já na saída - seu algoz, que num Chevrolet preto deixava o estacionamento. Fixou a
placa: SPX 3030. Pensou: “por um triz, o sacana”.Deu meia volta, e se deparou com sua mulher,
saindo pelo mesmo portão. Arguiu:
- Ué, o que você está fazendo aqui?
- To cortando caminho, meu amor. Vou pagar meu cabeleireiro, que fiquei devendo, na
semana passada. Lembrei, só agora. Não gosto de ficar devendo nada. E você?
- Você conhece um Chevrolet preto, placa de São Paulo, SPX 3030?
- Não. Por quê?
- Resolvi vir atrás daquele sujeito que lhe cumprimentou com aquela cara boa. Quando
cheguei aqui, ele já estava saindo.
- O quê? Você veio atrás daquele cara? Você tá ficando doido!
- Isto, queria conversar com ele e saber como, e de onde ele lhe conhece.
- Que isso, Chuchuzinho?! - replicou Bernadete, ruborizada e desconcertada, procurando
refazer sua fala equivocada, mudando de adjetivo e de tom: Que é isso, meu amor? Isso já tá me
ofendendo. O que você quer com tudo isso? Abraçou, novamente, o marido, com ternura, beijouo no rosto e, de novo, serenou-o com seu irresistível:
- Amo você, meu amor!
Outra vez, ambos ameaçaram continuar suas trajetórias pré-combinadas. Antônio, porém,
ainda interpelou sua mulher:
- Amor, seu cabeleireiro não é deste lado do shopping, não?! É na saída do outro lado!
- Óh, amor, que cabeça! É mesmo! – respondeu Bernadete, sorrindo, displicentemente.
Encontro-o na livraria, em uma hora, tá? Tchau.
- Até.
Antônio estava perplexo, furioso, paralisado. Ficou ainda um bom tempo vendo sua mulher
se distanciar: firme, célere, decidida a trocar seus sapatos.
Encaminhou-se para a livraria.
De repente, novo impulso e do telefone, do corredor mesmo do shopping, discou 9 3 --- ---.
-Do outro lado, Bernadete – prontamente - atendeu:
- Oi.
- Chuchuzinho...
- Ôh, cara louco! Você me cumprimenta, perto do meu marido e ainda sorrindo para mim.
Ele ficou uma fera. Foi até ao estacionamento, para saber de onde você me conhecia...
- Filha da puta...
Aos circunstantes daquele dia, no shopping, menos privilegiados pelos pormenores dessa
história, ficou apenas marcada a cena de um sujeito de cabelos grisalhos que, desvairadamente,
batia - de frente - a cabeça, na parede ao lado do telefone público. Eu, especialmente, sei que o
mesmo deu entrada, uma hora após, na emergência de um Hospital Psiquiátrico da cidade e,
recebeu o diagnóstico de Transtorno Paranóide Agudo.
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