A REVISTA EDUCAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DO REGIME MILITAR NA DÉCADA DE 1970 Maria Rita de Almeida Toledo – Unifesp – [email protected] Daniel Revah –Unifesp – [email protected] Palavras-chave: revista Educação; forma jornalística; formação docente Esta comunicação é fruto de um projeto de pesquisa que investiga a relação entre as diferentes modalidades de impresso e os discursos e modelos pedagógicos que produzem e veiculam, sobretudo com o objetivo de analisar as transformações que esses discursos e modelos sofrem sob a injunção da forma material e jornalística que caracteriza parte desses periódicos1. A investigação dessa relação é particularmente relevante em face da crescente presença de periódicos educacionais que incorporam os recursos do jornalismo e que incidem na formação de professores, de forma notável desde a década de 1980. A pesquisa, no entanto, recua a um período anterior, de modo a abranger e assim flagrar as primeiras tentativas de mudança no padrão dos periódicos educacionais dirigidos ao professor. Com esse objetivo, são pesquisados, analisados e comparados quatro periódicos. Dois deles foram lançados por uma editora privada, a editora Abril. Trata-se das revistas ESCOLA (1971-1974) e Nova Escola (1986), a última com edições mensais até os dias de hoje. O terceiro periódico é Educação Hoje, lançada pela editora Brasiliense em 1969. O quarto é a revista Educação, que foi lançada pelo MEC em 1972 e interrompida em 1984. Esta última será objeto desta comunicação. A perspectiva teórica que orienta a pesquisa e a análise desses impressos educacionais nutre-se dos pressupostos da História Cultural, que sempre considera a sua configuração material ao tratar dos discursos pedagógicos e dos saberes que os impressos produzem e veiculam, neste caso envolvendo dispositivos textuais e tipográficos sob a injunção da forma jornalística que caracteriza em especial as revistas de banca de jornal. Para tratar de certos aspectos do discurso pedagógico, como os relativos à produção da memória e à configuração dos modelos pedagógicos, essa perspectiva teórica é redimensionada a partir da rede conceitual procedente da psicanálise de orientação lacaniana, com a qual se operou na análise de determinados discursos em trabalhos anteriores. Os impressos educacionais vêm sendo objeto de estudos de natureza diversa há algumas décadas, inclusive com novos enfoques teóricos que procedem de correntes historiográficas que ganharam relevância na década de 1990. A importância dessas pesquisas é ressaltada por vários autores, como Nóvoa, para quem a análise da imprensa educacional “permite apreender discursos que articulam práticas e teorias, que se situam no nível macro do sistema mas também no plano micro da experiência concreta (...) Trata-se, por isso, de um corpus essencial para a história da educação, mas também para a criação de uma outra cultura pedagógica” (Nóvoa, 1997, p.11). Ao se referir à “criação de uma outra cultura pedagógica”, Nóvoa aponta para o papel da imprensa educacional como configuradora do próprio campo da educação escolar. Um papel que no caso do Brasil torna-se particularmente relevante no século passado, como evidenciam os trabalhos de Marta Carvalho, que analisa os impressos sob os marcos da História Cultural, entendida como arqueologia dos objetos em sua materialidade (Carvalho, 2006, p. 142). Desse modo, além de serem utilizados como fonte para investigar diferentes aspectos da história da educação, eles próprios são analisados como objetos que conformam o campo da educação escolar porque são portadores de dispositivos materiais estratégicos na produção e ordenação das representações e práticas sociais desse campo. Na análise de Carvalho, uma das maneiras de conceber o impresso educacional é como dispositivo modelizador que incide no surgimento do modelo escolar paulista, no período republicano. Uma análise que pode ser estendida aos impressos educacionais que, em suas várias formas, acompanham a constituição da forma escolar, configurando-a. E nesse ponto cabe ressalvar que não são apenas os impressos educacionais os que se relacionam com o surgimento da forma escolar, pois a sua constituição é indissociável das formas sociais escriturais e da proliferação dos textos impressos nas sociedades européias. Esses processos, próprios da modernidade, são concomitantes e solidários (Vincent, Lahire e Thin, 2001). Inclusive, ligam-se ao processo de surgimento do Estado moderno, cujo papel foi fundamental no que se refere à institucionalização da forma escolar nos séculos XVIII e XIX, quando intervém decisivamente ao substituir a Igreja no controle do ensino e criar as condições para a profissionalização dos professores. Nesse sentido, a escola, cuja cultura é predominantemente escritural, tomou os impressos como dispositivo fundamental de transmissão de saberes, de organização de suas práticas e de suas dinâmicas temporais, estabelecendo uma ordem dos impressos2, no jogo das prescrições e usos desses objetos3. Segundo Carvalho, para se desvelar os processo de constituição de modelos escolares é necessário tratar as idéias encarnadas nas suas condições materiais de produção e de circulação. Tal posição teórica implica tratar o impresso, pelo qual circulam representações e enunciados conformadores desses modelos, como objeto cultural que, constitutivamente, guarda as marcas de sua produção e de seus usos (Carvalho, 2003). É necessário, portanto, entender os impressos como objetos arqueológicos, cuja fabricação está imbricada às condições de produção (econômicas e políticas) e às representações dos sujeitos envolvidos nessa produção, seja em relação aos saberes ou conteúdos veiculados, seja em relação ao público leitor para o qual o objeto impresso está destinado. Essa perspectiva crítica apóia-se sobre os conceitos produzidos pela História Cultural, como os de estratégia, tática, representação e lutas de representação, exigindo determinado deslocamento no tratamento do impresso, que deixa de ser simples informante das idéias de um determinado período, sobre um determinado campo de conhecimento. O impresso passa a ser concebido como o próprio objeto a ser estudado porque é produto das formalidades das práticas da cultura na qual se originou, constituíndo também, no registro mesmo da sua forma material, o lugar onde se constituem representações que modelam essas mesmas práticas. Como se vê em determinadas análises historiográficas que têm se dedicado aos impressos educacionais, formação docente e imprensa se articularam no processo de constituição do próprio ofício, no processo de constituição da cultura pedagógica e nos processos de disputas e prescrições de modelos e práticas escolares. Adotando-se essa perspectiva é importante dimensionar a articulação entre impressos e processos de constituição de modelos escolares no Brasil, assim como com os processos inerentes à profissionalização docente. Em relação à formação docente, cabe apontar que as primeiras escolas normais no Brasil surgem ainda durante o Império, multiplicando-se a partir da década de 1870 (Tanuri, 2000, p.66). Mas a preocupação com a formação e profissionalização docente cresce em relevância sobretudo durante o período republicano, quando surge a escola primária graduada, com vários professores e classes numerosas e homogêneas. Na Primeira República, essa preocupação é um dos temas em debate em nível nacional, particularmente nas décadas de 1920 e 1930, quando ocorrem reformas de ensino em vários estados e surge uma intensa e acirrada polêmica em torno de distintos modelos pedagógicos. Os impressos educacionais participam ativamente nesses debates, produzindo e veiculando discursos que configuram o campo da educação escolar e os modelos pedagógicos em disputa – um papel que eles continuam a desempenhar até os dias de hoje. No âmbito desses impressos cabe destacar os periódicos educacionais destinados ao professor, empregados com frequência como fonte para nutrir suas reflexões e práticas em sala de aula. Dentre os que surgem e proliferam até a década de 1970, nota-se que em boa medida respondem a uma diferenciação observável na cultura docente: ora voltam-se para os docentes do primário, como é o caso da Revista do Ensino e da Revista do Magistério (Curso Primário); ora para o secundário e o normal, portanto para os professores dos ginásios e colégios, como as revistas Atualidades Pedagógicas, Educação Hoje e Revista do Magistério (Curso Secundário e Normal) (Revah e Toledo, 2011, p.151). A esse respeito é preciso considerar que desde o início da República a identidade docente vem sendo construída separadamente, com dois corpos docentes cuja distinção “se fez desde as tradições de formação até a hierarquia de salários”, estando “inscrita no próprio perfil dos periódicos a eles destinados, que procuravam apresentar as questões específicas dos diferentes níveis de ensino, assim como contemplar as competências de leitura concernentes aos dois corpos” (ibidem). Essa configuração tende a se alterar com a reforma de ensino instituída pela lei 5.692/71, que reorganiza os níveis do ensino ao criar o 1º e 2º Graus. Com essa reforma, a escola primária é convertida no primeiro ciclo de formação do aluno da escola de 1º Grau, enquanto o ginásio é transformado no seu segundo ciclo. A formação dos docentes dessa nova escola de 8 anos continuou diferenciada de acordo com a sua atuação no 1º ou 2º ciclos, mas a sua criação colocou no horizonte a constituição de um corpo comum de docentes, com a acomodação das diferenças historicamente construídas. A construção dessa escola e desse professor de 1º Grau constituiu um desafio e uma tarefa que também foi assumida pelos periódicos educacionais desse período. Entre os periódicos por nós analisados, a revista Educação aparece como a voz oficial instituidora da lei 5.692/71 e das políticas educacionais empreendidas pelo MEC no período, envolvendo todos os níveis de ensino. Como periódico educacional oficial é lançada pelo MEC em abril de 1971 e circula até fins do regime militar, quando chega ao nº 41, na edição de jan./dez. de 1984. Trata-se de um periódico que apresenta características que o aproximam das revistas que incorporam os recursos do jornalismo, como ESCOLA, editada pela editora Abril e vendida no circuito das bancas de jornal, à diferença da revista do MEC, que era distribuída em outros circuitos. Com esse periódico e concomitante à reforma de ensino, o MEC inaugura uma nova linha editorial, assim reformulando e reorganizando o seu material periódico. Essa reformulação é fruto de um nova política de impressos instaurada pelo então ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho. Essa alteração de padrão pode ser constatada comparando-se a revista Educação com a publicação que a antecede: a revista MEC4. Editada pelo Ministério de Educação e Cultura desde set/out de 1956 até novembro de 1970, a revista MEC assemelha-se em sua materialidade aos periódicos educacionais que predominavam na época, com um tamanho próximo ao da maioria dos livros (16,5 cm x 22,5 cm) e o uso de poucas imagens, em geral fotos em branco e preto, muitas delas fotos pousadas de autoridades. A capa é austera e muda pouco desde o seu lançamento, sempre sem apresentar qualquer imagem e com pequenas alterações no nome que figura na capa da revista. Essas alterações tendem a corresponder às mudanças políticas do período: a primeira, um ano após o golpe de Estado em março de 1964; a segunda, próximo ao início do período mais repressivo do regime, quando promulgado o AI5. A sua periodicidade varia desde a primeira edição, sendo bimestral no início e depois apresentando oscilações (trimestral, quadrimestral, semestral)5. Quanto ao número de páginas, não há um padrão, apresentando grande variação, há números com cerca de 60, 70, 80 páginas e outros superam as 100 páginas. Segundo Costa (2009), a revista foi dirigida por Delso Renault, desde de sua criação até seu último número6. A revista foi, ainda segundo Costa, imaginada e criada para divulgar em seus números matérias de grande interesse para a cultura e para a educação, além das políticas desenvolvidas pelo Ministério da Educação e Cultura. O impreso, pelo que pode-se extrair da análise de Costa, seria uma espécie de vitrine das políticas e feitos do MEC. Para tanto, publicava-se em suas páginas iniciais discursos dos homens do governo, como os dos próprios Ministros do MEC, os dos presidentes dos conselhos federais de educação, dos secretários ligados ao ministério, entre outros, que definiam a atuação do Ministério. Tais enunciados eram reafirmados pelas seções fixas da revista - “Notas e Informações”, “Conheça o Ministério”, “Projetos em andamento no Congresso”, “Cursos e Concursos”, “Perguntas e Respostas”, “Você Sabia?” e “Registro Bibliográfico” – que apresentavam, a cada número, o conjunto do ministério, suas políticas e suas ações (Costa, 2009, pp.52 passim)7. Além disso, na seção “Dos Jornais”, reproduziam-se as notas da grande impresa sobre o MEC de modo a dar a ver o impacto de suas ações na sociedade. Seu público foi definido como “amplo” e sua distribuição era realizada gratuitamente nas instituições educacionais, como escolas, universidades e centro culturais e para órgãos públicos como embaixadas, secretarias, conselhos e, ainda, para escritórios de comércio brasileiros no exterior. Dentre seus colaboradores, estavam Roland Corbisier, Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré (Costa, 2009, p.51). Com o encerramento dessa publicação, no nº 47, em 1970, e o início da revista Educação, em 1971, notam-se estas transformações: mudança no tamanho, que fica próximo ao das revistas de banca de jornal, à semelhança das revistas da editora Abril, como Claudia, Capricho e ESCOLA (esta tem 20,5 cm x 26 cm, enquanto a revista Educação tem 21 cm x 29 cm); um número de páginas padrão, que em geral se mantém até 1980; uso de fotos sangradas e coloridas nas capas, com destaque para jovens estudantes, de ambos sexos (segundo se observa nos quatro primeiros números); emprego abundante de fotos, em geral branco e preto, mas também há fotos coloridas, muitas delas sugerindo movimento, como as que apresentam alunos fazendo alguma atividade. Como impulsionador das novas tecnologias da comunicação8, o regime militar não ficou alheio às mudanças nos impressos periódicos, logo incorporando a nova forma material e divulgando as reformas de ensino e sua atuação política, no mesmo período em que Abril o faria. Também é importante notar que o novo periódico é transferido para a responsabilidade de uma equipe, liderada por Mozart Baptista Bemquerer9, e Delso Renault deixa de fazer parte do comitê editorial. A revista Educação é lançada atrelada à reforma instituída pela lei 5.692/71 e apresentada, em seu editorial inaugural, como parte da estratégia de divulgação da lei do ensino sancionada pelo presidente militar Emílio Garrastazu Médici, reafirmando, de certo modo, a mesma função que a Revista MEC possuia até então. Porém, para se estabelecer como estratégia eficaz, a revista adota dupla dispositivo: de um lado, incorpora a inovação disponível da indústria gráfica do período, constituíndo-se como um objeto moderno; de outro, funciona como lugar de apropriação e reordenação dos termos críticos dos discursos políticos e educacionais que circulavam no período. Além disso, as páginas do periódico destinavam-se à área educacional, deixando os temas e assuntos da cultura para outro periódico do prório MEC, a revista Cultura10. O novo desenho da política editorial do MEC afastava-se portanto do que havia ordenado a produção do periódico anterior e construía fronteiras entre suas ações educacionais e suas ações culturais, materializadas nos dois periódicos do ministério. Em relação à segunda estratégia adotada, no primeiro editorial sobressaem as representações que o ministério fará circular nas páginas de sua revista sobre sua própria política educacional. Afirma-se que a lei está “fadada a realizar a revolução na Educação. Revolução no melhor sentido sociológico, atingindo as raízes do sistema vigente e propondose a modificá-lo em curto prazo”. Conforme é possível notar nas representações que a revista materializa em suas páginas, há uma ressignificação de termos como “revolução” ou “sociológico”, ressignificadas segundo o discurso oficial. Nesse sentido, a descrição que o editorial faz da Lei e da ação do regime militar implica numa dupla potencia – negativa ou positiva – da ação revolucionária: ação de mudança imediata sobre a educação [e sobre o país], alterando profundamente o estado das coisas, ancorada, contudo, no “melhor sentido sociológico”. A idéia de “melhor”, na conjuntura da Guerra Fria e dos regimes militares da América Latina, implica o “pior” da sociologia, entendida como aquela que poderia revolucionar no sentido negativo. Diferenciação sugerida pelo próprio editorial no que segue: A educação é um direito natural. Numa sociedade sacudida por violenta explosão de conhecimentos novos, queremos que esse direito leve a um processo de realização do homem, a que todos tenham acesso natural. Queremos que, através da educação, cada criatura humana adquira mais valor, no sentido dignificante que lhe empresta o Pe. Lebret e, através da articulação correta do “social” com o “econômico”, logre-se a promoção humana global ou, como a define François Perroux, de todo homem e todos os homens. A perspectiva de “promoção humana” delineada nesse editorial recusa pelo menos duas referências implícitas na crítica feita à “materialização do homem”, que nesse texto é considerada “o problema possivelmente mais trágico do mundo contemporêneo”. Recusa-se, obviamente, o materialismo no viés do marxismo, mas também o materialismo de uma sociedade capitalista que “à proporção que mais produz bem-estar, parece mais se afastar de Deus” (Educação, 1971, n. 1, p. 1). De um lado, o marxismo é recusado nas operações discursivas que se apropriam de termos de seu campo discursivo para inseri-los em outro, assim dando-lhes outro sentido, como “mais valor” e materialização. O primeiro ganha um valor positivo quando se afirma o seu “sentido dignificante”; enquanto o segundo, que podemos supor é uma implícita remissão ao materialismo dialético, é desqualificado porque concerne ao problema “mais trágico”. Assim ressignificados, esses mesmos termos também supõem a valorização e ao mesmo tempo a crítica ao mundo capitalista. Mas, toda essa operação está calcada nos termos de um direito natural, cuja origem está na obra divina de Deus que criou a “criatura humana”. O significante “revolução” é inserido no universo da Igreja Católica, adotando a forma peculiar de depurar, à luz da doutrina, os discursos em voga no debate educacional, delimitando em terreno próprio os sentidos que devem ser atribuídos a eles. A educação nessa perspectiva cristã e humanista deve preparar para a vida, não para o trabalho no sentido marxista de extração da mais valia, mas para o valor dignificante de uma vida orientada espiritualmente. Destaca-se a vida numa reforma que valoriza a profissionalização e, em consequencia, o trabalho, mas não se fala em trabalho, ao menos nesse editorial. Ao citar o Pe. Lebret e François Perroux11, vinculados ao “Centre Economie et Humanisme”, o editorial inaugural de Educação filia-se à perspectiva humanista cristã que valorizava sobremaneira a pesquisa sociológica para com ela desenvolver reformas que permitissem a passagem de um estágio “menos humano das sociedades para outro mais humano, segundo o ritmo mais rápido possível com menos custo financeiro e humano, baseado na solidariedade” (Lebret, 1962, p.16). Mais do que isso, o movimento “Economie et Humanisme” era abertamente crítico às concepções do marxismo12, do capitalismo e do nazismo; entendendo como uma de suas tarefas fundamentais encontrar e desenvolver uma quarta via, uma doutrina para o desenvolvimento social que respeitasse a “pessoa” e o “bem comum”. Para tanto, o Movimento propunha o desenvolvimento de pesquisa e intervenção sobre as comunidades de base em suas unidades territoriais elementares que, por sua vez, se integrariam progressivamente em unidades regionais, nacionais e internacionais. A chegada de Pe Lebret ao Brasil, em 1947, propiciou a fundação do Movimento Economia e Humanismo no país e do SAGMAC (Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais), um escritório de consultoria sobre desenvolvimento urbano que passa a trabalhar junto aos governos estaduais, no planejamento das reformas de base e seus planos de ação13. De todo modo, é curioso que Passarinho tenha procurado inscrever as ações do MEC sob essa perspectiva, dado que o próprio regime militar havia censurado as ações e perseguido os principais quadros formados por Pe Lebret no Brasil, como Plinio de Arruda Sampaio e Francisco Withaker, que haviam participado do governo Jango, nas ações em prol do desenvolvimento do nacional14. Teria Passarinho encontrado no discurso de Pe Lebret ponte possível para deslocar a imagem que à época se fazia do MEC, de suas ações e dele próprio, marcados pela pecha do reacionarismo, da arbitrariedade e da violência, em decorrência da política autoritária do regime, buscando então afirmar uma outra imagem, democrática e pacifista? Ainda no editorial, o ministro Passarinho explicita um desejo: realizar a educação ideal, com a finalidade última de alcançar “uma sociedade solidária, em que cada pessoa, feita 'à feição de Deus', assuma as responsabilidades que lhes são indeclináveis, no exercício consciente da cidadania democrática”. Como se vê, esse “exercício consciente” implica apenas obrigações e posições dos indivíduos numa sociedade determinada pela feição de Deus e pelas necessidades econômicas e sociais definidas por aquela leitura sociológica que os homens no poder produzem. A ideia de participação, como aparecia com força no debate educacional antes do AI5, conforme se observa por exemplo nas páginas da revista Educação Hoje, está longe de fazer parte do vocabulário da revista Educação. Se as duas partilham significantes como democracia e democratização do ensino, vida e preparação para a vida, o que elas instituem difere sobremaneira. Nessa revista do MEC, esses significantes estão no registro do discurso humanista e cristão do ministro, que abre a nova publicação e a difusão da várias reformas educacionais em curso nesse período. A lei 5.692/71, nessa perspectiva, encarnaria a dupla possibilidade de democratizar a educação, abrindo as portas do secundário para boa parte da população, e, ao mesmo tempo, preparando a população brasileira para exercer conscientemente a cidadania. Pela própria forma como Passarinho descreve a reforma, percebe-se que esse exercício da cidadania atrela-se à preparação profissional vocacionada, que é destacada no editorial de abertura do primeiro número e ainda em editorial do segundo ano de publicação do periódico (1972). Nele, o ministro afirma: (...) as conquistas brasileiras no campo educacional, notadamente no governo do presidente Médici, são tão claras que mesmo os negativistas por conveniência de ordem ideológica não podem negá-las. A alfabetização em massa, bem sucedida, num dos mais ambiciosos projetos em curso no terceiro mundo, é apenas um dos indicadores dessa transformação, que se amplia no crescimento rápido da escolarização, na obrigatoriedade escolar dos 7 aos 14 anos de idade, na escola pré-vocacional do 1º grau, na escola profissionalisante, ou de habilitação profissional, de 2º grau, no aumento notável das vagas para a universidade. Nota-se nessa avaliação que todos os níveis de ensino são vistos sob o prisma do trabalho. Outro aspecto a observar, nos dois editoriais, é a atribuição da responsabilidade pelas reformas e pelo avanço no campo da educação ao presidente Médici. Esse lugar obviamente contrasta com o lugar reservado a esse general na memória sobre o regime militar construída pelos historiadores. Como já comentado, o discurso instituidor da 5.692/71 é posto em circulação por meio de uma fórmula editorial arrojada em termos de qualidade gráfica. Em relação às imagens, há um vasto uso de fotografias que acompanham as matérias e que incorporam em parte a perspectiva do fotojornalismo, com fotos que sugerem movimento e naturalidade, embora seja raro o uso de legendas que esclareçam a respeito da atividade fotografada e que articulem o conteúdo da foto com os conteúdos das matérias. Numa avaliação superficial dos primeiros números, percebe-se que esse tratamento dado às imagens mantém no anonimato tudo o que aparece nas fotos, sejam pessoas ou prédios. Essa fórmula, porém, procura guardar alguns dispositivos de leitura da tradição dos peridicos educacionais. Diferentemente da revista ESCOLA, que é a que mais se assemelha do ponto de vista material dentre os periódicos por nós pesquisados, na revista Educação a autoria das matérias consta desde o início, com a perceptível presença de profissionais da educação. O lugar autoral é guardado mesmo para a seção “Fatos da educação/do noticiário”, presente em todos os números do periódico. Além disso, na página de rosto, a assinatura institucional do MEC é destacada junto com o corpo editorial responsável pela produção gráfica e de seu conteúdo. Quanto às seções, há pouca variação na forma editorial até o início dos anos 80. Boa parte das matérias descreve a ação do ministério em termos de educação ou as opções político-pedagógicas adotadas pelo mesmo. Ademais, há uma seção, como já citado, que apresenta os fatos da educação referentes às ações do MEC. Há também uma seção em cada número que traduz sumariamente os artigos publicados em inglês, francês e espanhol, indicando a sua circulação internacional. A que leitor o MEC destinou esse periódico? Quem seria o leitor dessa revista? Ainda não foi possível pelos indícios levantados responder essas questões. Podemos apenas indicar que a expectativa dos editores era de que a revista Educação fosse também lida fora do Brasil. É o que indica o questionário acrescido a todos os números e direcionado ao leitor, em português, francês e inglês. O questionário traz uma advertência feita pelos editores, pelo menos no primeiro ano: “A continuidade da remessa está condicionada à devolução deste questionário”. Condiciona-se assim o recebimento do próximo número à leitura realizada do número recebido, o qual parece indicar que no primeiro ano o periódico não era vendido. Tal indício é reforçado pelo desaparecimento dessa advertência no questionário no mesmo número em que é estampado o preço da revista e o convite para a sua assinatura, feito com estas palavras: “Assine as Revistas que o Brasil exporta”. 15 Referências BATISTA, ANTÔNIO A. G. “Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos”. In: In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, Hitória e hstória da leitura. 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Costa indica que a Revista MEC nasceu como Boletim bimestral do MEC, com tiragem de 3000 exemplares, passando posteriormente ao formato de revista. Cf. Costa, 2009. 5 Costa indica que a revista “foi marcada por algumas descontinuidades, podendo-se perceber dois momentos distintos em suas publicações, interrompidas no segundo semestre de 1960 (no 25) e retornando em dezembro de 1963/janeiro de 1964. Assim, essa descontinuidade corresponde respectivamente ao primeiro período de 1956 a 1960, sendo o segundo de 1963/4 a 1970. Interessante destacar que no segundo momento a ‘MEC’ retornou com peculiaridades, na medida em que retomou sua numeração anterior, porém, as edições deixaram de ser bimensais, não seguindo nenhuma ordem de publicação” (Costa, 2009, p.52). Costa ainda destaca que “entre 1975 a 1977 o MEC lançou novamente uma revista chamada ‘MEC em Revista’”. Essa nova versão foi “modificada quase que em sua totalidade. Além de ter sua numeração reiniciada, o local de sua edição passa a ser no Distrito Federal, e não mais no Rio de Janeiro, como ocorria anteriormente”(idem, p.52). 6 Costa localiza a figura de Renault por meio da apresentação que faz dele o deputado Paulo Duque na edição de no 31 da “Revista MEC”. Segundo a autora, “D.R. era um intelectual, um homem de cultura e professor do ensino secundário” (Costa, 2009, p.51). 7 Costa detalha o funcionamento de cada uma das seções, assim como o aparecimento das mesmas ao longo da vida do periódico (idem). 8 Sobre o impulso que o regime militar dá à nascente indústria cultural no Brasil, consultar Renato Ortiz (1994) 9 Bemquerer aparece sempre como primeiro nome da equipe responsável. A partir do número quatro seu nome está mencionado no expediente como “Diretor da Diretoria de Documentação e Divulgação” (Educação, ano I, janeiro a março de 1972). A equipe é formada por Francisco de Assis Vieira, Hugo Mund Jr., Walmir Félix Ayala, Alfredo Pereira Lima Jr., Emy Albuquerque Pangelia, Maria de Lourdes Freire de Andrada Weitzel, Elba Maria Gomes Lontra, Norma Marquez e, como consultor, Heráclio Salles (Educação, ano I, n.1, abril a junho de 1971). 10 É importante destacar que do ponto de vista material, as duas revistas são muito parecidas: mesmo formato, mesmo estilo de capa e número de páginas, com uso abundante de imagens, entre outras características. 11 O movimento “Economie et Humanisme”, liderado internacionalmente pelo Padre Lebret, segundo Lamparelli, obteve grande importância no Brasil, sobretudo na defesa de determinadas concepções articuladas à noção de “processo de desenvolvimento”. Segundo o autor, o grupo do Pe Lebret defendia o “primado da política da solidariedade e do bem comum” como princípios de atuação, em prol do desenvolvimento nos países do terceiro mundo. Para tanto, propunha uma “metodologia de pesquisa empírica”, com “instrumentos de análise científica para orientar a ação”, visando ao “desenvolvimento pelo chamado ‘l’aménagement du territoire’”. Ainda, para Lamparelli, Pe Lebret e seu grupo tiveram grande importância na renovação do movimento católico leigo de jovens, operários e estudantes no Brasil (Lamparelli, 1994, p.90). Franços Perroux, segundo o mesmo autor, participou ativamente do movimento. Ver também Bosi, 2012. 12 Segundo Bosi (2012, p.254), “o chamado catolicismo social do século XIX, que começara com Lamennais e Ozanam, já deplorava a exploração do operário e a sua opressão, mas faltava-lhe a identificação de um pontochave, a mais-valia, que explicava a desigualdade de modo estrutural e a conectava com o conceito de acumulação capitalista, tão rico de desdobramentos. Lebret incorporou à sua teoria esse conceito, que lhe pareceu nuclear, mas não o partidarizou, isto é, não acolheu o corolário da luta de classes como pressuposto de uma política operária. Em outras palavras, compreendeu os fundamentos da exploração capitalista, tão bem expostos por Marx e Engels, mas não assimilou a sua proposta político-partidária. Aliás, essa atitude ficaria explícita no Manifesto de fundação do Movimento: Economia Humana não seria um partido a mais”. 13 Lamparelli informa que, em 1947, o Pe Lebret ministrou um curso na Escola de Sociologia e Política de São Paulo sobre as bases de Economia e Humanismo. Com urbanistas dessa Escola funda o SAGMAC, que atuou no Brasil e em outros países do 3o mundo, por mais de 15 anos (cf. Lamparelli, 1994; cf. também Bosi, 2012). 14 Sobre essa situação política de perseguição e censura aos brasileiros formados por Pe Lebret, consultar Bosi, 2012. 15 Eis as duas questões: “Qual o assunto desta revista que mais despertou sua atenção?”; “Com respeito a temas ou qualquer outro assunto, tem alguma sugestão a fazer?”.