PERSONAGEM
Historiadora resgata a República brasileira
Aos 75 anos, Maria Cecília Ribas Carneiro acumula na memória a intimidade da História - da
história brasileira deste século. Principal colaboradora de Hélio Silva - autor de O Ciclo de
Vargas (Editora Civilização Brasileira), com 16 volumes e um fora de série, e dos 21 volumes
da História da República Brasileira (Editora Três) -, ela revela que o historiador transformou-se
em um getulista na medida em que fazia pesquisa sobre os dois governos de Getúlio Vargas.
Mas acredita que a admiração pelo ex-ditador tenha brotado, também, por sua influência.
"Getúlio foi o único estadista que o País conheceu até agora", vaticina.
Maria Cecília fala, em entrevista exclusiva ao Jornal do Commercio, sobre Carlos Lacerda, que
garante ter forjado o tiro no pé no atentado da Rua Torneleros, no Rio, quando saiu morto o
major Vaz; conta que ela teve de escrever um texto "completamente errado" sobre a
participação dos militares na repressão à Intentona Comunista de 1935 para obter entrevista
exclusiva do marechal Eurico Gaspar Dutra, que negava-se a falar sobre o assunto; e revela
que a carta-testamento de Getúlio Vargas não foi a única que o ex-presidente escreveu antes
de suicidar-se. "Jango chegou a levar para o Uruguai uma carta de Getúlio para ser publicada
lá, mas ao chegar soube do suicídio e retornou ao Brasil", diz.
A historiadora falou, também, sobre a sua convivência com o poder desde a adolescência,
quando ouvia em sua casa, através de uma fina "cortina de filé", as confabulações de um grupo
de conspiradores ao redor de uma mesa a favor de Getúlio Vargas na Presidência da
República. Uma convivência que sempre teve com civis e militares e que, reconhece, ajudou
em muito a realizar as pesquisas históricas mais tarde.
Maria Cecília está no Recife a convite do diretor do Arquivo Público do Estado, Ronildo Maia
Leite, para fazer uma conferência, hoje, às 17h, no auditório do arquivo, sobre a República
Velha, chamada também de "a República dos Carcomidos".
Atualmente, ela escreve, sozinha, após a morte de Hélio Silva em um convento beneditino,
mais três volumes (números 22, 23 e 24) da coleção História da República Brasileira, que
promete serão os últimos. "Não tenho mais condições de prosseguir. Não vou aceitar mais
nenhuma oferta e pedido", garante, sem muita convicção. E revela que foi de Hélio Silva a
determinação para que a Editora Três vendesse os livros em bancas de jornais. "Ele queria que
os estudantes pudessem comprar os livros mais baratos, que tivessem acesso à história do
País", lembra. Mas adverte: são diferentes as coleções da Civilização Brasileira (esgotada) e a
da Editora Três. Em 1986, o JC publicou uma série de artigos de Hélio Silva sobre a Era
Vargas.
DEPOSITÁRIO JUDICIAL - Maria Cecília dá a impressão de que sempre conheceu Hélio Silva,
amigo pessoal de seu pai, o desembargador Edgar Ribas Carneiro, e muito mais velho que
ela. "Quando criança, ele me irritava muito perguntando quando eu iria me casar", recorda, com
carinho. Hélio era depositário judicial, tinha um cartório no antigo Edifício do Supremo Tribunal
Federal, na Avenida Rio Branco, no mesmo edifício onde seu pai trabalhava; exerceu ainda a
medicina (foi cirurgião); morreu como monge beneditino e está enterrado no Mosteiro de São
Bento, no Rio. "O atual abade de Olinda, dom Basílio Penido, brincava muito com Hélio
dizendo que ele tinha jeito de monge. E acabou acontecendo", lembra a amiga. Depois da
morte do amigo, ela tornou-se oblata da Ordem Beneditina.
Ainda adolescente, Maria Cecília começou a fazer o índice remissivo, a cronologia dos fatos e
mexia na redação dos textos do historiador. "Porque Hélio teve uma base escolar muito fraca
em Português, embora tenha sido todo inteligência", explica, com cuidado. Mas foi somente
mais tarde que começou a fazer pesquisas para o historiador e só em 1972 foi reconhecida,
oficialmente, sua colaboradora com a publicação do volume 12 do Ciclo de Vargas - 1942:
Guerra no Continente.
A explicação pela demora do reconhecimento chega com mágoa contida. "Era o editor Ênio
Silveira, da Civilização Brasileira, que não deixava publicar o meu nome", sentencia. Mas,
imediatamente depois do desabafo, conta que foi ela, também, que incentivou Hélio Silva a
deixar o jornalismo (começou a escrever para o extinto jornal A Rua e Tribuna da Imprensa, de
Carlos Lacerda). "Disse muitas vezes a Hélio: você está perdendo seu tempo, a imprensa é
muito fugaz. Escreva livros!", ordenou.
Seu grande trunfo como pesquisadora aconteceu quando os dois buscavam informações para
o volume sobre 1935. Por conhecê-la há vários anos, o então presidente do Superior Tribunal
Militar, general Mourão Filho, deixou que levasse para casa os 42 volumes do processo sobre
a Intentona Comunista, com textos e fotos. "Deixou porque se dava com Hélio e tinha confiança
em mim", explica. Depois, seguiu como bolsista da Organização dos Estados Americanos
(OEA) para Washington (EUA) para pesquisar na Biblioteca do Congresso e no Pentágono. E,
após 1964, custeada pelo professor Cândido Mendes, foi pesquisar na Biblioteca Lindon
Johnson, no Texas, com farto material sobre o golpe militar. Mas teve o arquivo cerceado pelo
ex-embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon.
CONVIVÊNCIA HISTÓRICA - Maria Cecília não disfarça quando fala do ex-governador da
Guanabara, Carlos Lacerda. Um homem do qual disse jamais ter tido confiança e pelo qual
nunca colocou a mão no fogo. "Eu nunca acreditei nele e essa foi a razão de minhas
discussões com Hélio", diz. E é por causa dessa descrença que ela garante que Lacerda forjou
o ferimento no pé. "Como pode um homem com uma bala no pé descer e subir escadas como
ele fez ao pedir ajuda para transportar o major Vaz? Uma vez eu quebrei o dedo mínimo do pé
e fiquei sem fala tamanha foi a dor", compara.
Além disso, lembra-se, Lacerda disse que ficou com a cabeça do marjor Vaz no colo. "Ele viu o
sangue pingando no seu sapato e disse que estava ferido", afirma. Mas a certeza mesmo do
falso atentado ao governador ela teve muitos anos depois, no inicio da década de 90, após a
morte de Hélio Silva. Localizou o médico que engessou o pé de Lacerda e, de tanto insistir, o
homem acabou dizendo que não tinha visto a arma e a bala e que saía muito sangue do
ferimento. "Aí, perguntei: como pode engessar um pé com tanto sangue? E o risco de
gangrena? Ele ficou sem graça e sem resposta", lembra.
Mas o que mais parece afetá-la quando se trata de Carlos Lacerda foi a resposta que ele deu a
um questionário enviado por Hélio Silva. "Escreveu que a gente estava criando o mito Vargas
através de crônicas", conta. "Como se livros com mais de 300 páginas possam ser chamados
de crônicas", desabafa. E a resposta do historiador parece que agradou à amiga: "Hélio
escreveu que chamar seus livros de crônicas não desmerecia seu trabalho. Os maiores
cronistas que a História conhece são os evangelistas".
Este jeito todo especial de fazer pesquisa levou Maria Cecília a questionar o marechal Dutra
sobre a versão de que os militares aquartelados no 3º Regimento de Infantaria (RI), na Praia
Vermelha, em 1935, teriam sido mortos dormindo. "Ele me garantiu que numa prontidão
absoluta o oficial só poderia desabotoar a gola e, com a arma ao lado, se recostar, mas nunca
dormir", comenta. Em outra ocasião, foi medir a distância entre o alto do forte e a muralha para
saber como teria morrido um soldado durante a insurreição.
LIMPEZA GERAL - Atualmente, escreve o último volume da História da República Brasileira.
Trata do primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso, sobre o qual diz estar atolado em
economia e finanças, sem grandes movimentações políticas. "Não me dá prazer escrever",
confessa. E já entregou, mas não recebeu ainda o pagamento integral da Editora Três, os
volumes sobre o Governo Sarney ("Deixou o Governo com inflação de 1.760% e ainda foi a
Paris comemorar o bicentenário da queda da Bastilha com 150 pessoas e 14 quilos em ouro
em pó para colorir as ponte da cidade"); sobre o Governo Collor ("Ele é um louco. Dei ao último
capítulo o nome de `O Reinado de Canapi', porque é inacreditável o que aquela família gastou
em dólares"); e sobre o Governo Itamar ("Tenho péssima impressão dele").
A historiadora não poupa sequer Jânio Quadros. Conta que recebeu de José Aparecido de
Oliveira, após a morte do ex-presidente, uma grande quantidade dos bilhetinhos que ele
enviava a ministros e funcionários públicos. "Tive o trabalho de ler toda aquela porcaria. Não há
um que se aproveite, nem como anedotário", garante. Sobre José Aparecido, diz que, apesar
de seu amigo, tem um gosto muito estranho. "Era ligado ao Jânio e é amigo de Itamar",
alfineta.
Mas ela está preocupada, agora, é com os arquivos do historiador, resultados de anos de
pesquisas. É que grande parte dele sumiu da Faculdade Cândido Mendes, onde funciona o
Centro de Pesquisas. Maria Cecília esteve afastada, ano passado, por causa de um desastre e
quando retornou viu que o arquivo havia sumido. "Invadiram a sala e limparam tudo", diz. Ela
dá graças a Deus porque conseguiu salvar os arquivos de Juarez Távora, que levou para casa
antes do acidente de carro. "Existem estandes inteiras com poucos livros", conta.
POETA PEQUENO - Hélio Silva morreu aos 91 anos como monge beneditino, uma vocação
que descobriu tardia e que o levou a isolar-se do mundo, dos amigos e dos familiares. Mas
Maria Cecília lembra que o historiador queria mesmo era ficar no Mosteiro beneditino do Rio,
mas com a condição de poder sair, ir ao médico, visitar parentes e freqüentar a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI e a biblioteca. "O dom abade disse que assim não podia não, que o
mosteiro não era albergue".
Mas o destino acabou fazendo com que Hélio Silva fosse enterrado neste mosteiro. Doente e
se cuidando há anos de um tumor na próstata - que nunca revelou em vida a ninguém -, o
historiador acabou morrendo em um hospital e seu corpo levado ao mosteiro para uma missa
celebrada com a comunidade dos monges e outra para a intelectualidade, amigos e
autoridades. "Como ele era de um outro mosteiro, a regra não permite que fosse enterrado fora
do mosteiro de origem. Mas os monges do Rio acabaram descobrindo uma espécie de
exceção, porque um monge tinha sido enterrado no século 17 no Mosteiro do Rio quando ele
estava de passagem", revela.
Hoje, Maria Cecília conta que está diante de um outro problema deixado pelo amigo e
historiador. Poeta nas horas vagas, Hélio Silva havia pedido antes de morrer ao acadêmico
Antônio Houaiss que lesse seus poemas e fizesse uma avaliação crítica. "Ele queria saber se
tinham condições de ser impressos", lembra Maria Cecília. Mas Houaiss deu um cruel
veredicto: "Hélio, você é um grande historiador. Você não pode diminuir seu nome como
historiador por causa desses poemas." Conformado, Hélio Silva deixou uma ordem para a
família jamais publicá-los.
Ocorre que o filho, Hélio Ferraz, já teria fechado acordo com a Editora Três para a publicação
das poesias. "Se isso ocorrer, irá contrariar as ordens deixadas por Hélio. E isso não pode
acontecer", adverte a historiadora e amiga.
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