VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9
O NASCIMENTO DO COMÉRCIO E O RESSURGIMENTO DAS CIDADES NA
IDADE MÉDIA PRODUZINDO UMA NOVA FORMA DO PENSAR
BOLETA, Umbelina Scandolara
INTRODUÇÃO
Este artigo tem o propósito de abordar a transformação econômica ocorrida na
Idade Média em função do surgimento do comércio e do renascimento das cidades,
transformações estas que consideramos fundamentais para a compreensão da sociedade
moderna, pois nesse momento estavam sendo lançadas, pouco a pouco, as sementes que
iriam consolidar uma sociedade com novos costumes e novos comportamentos.
Nesse sentido, vemos a necessidade de, em primeiro lugar, entender o contexto
histórico da época em que aconteceu o surgimento do comércio e das cidades para que
possamos entender melhor todas as transformações ocorridas na sociedade nesse período
que influenciaram e foram influenciadas por um novo modo de pensar.
Para que compreendamos o renascimento econômico que ocorreu na Idade
Média, mais especificamente a partir do século XI, se faz necessário discorrermos
rapidamente o período anterior onde surgiram os elementos essenciais para que tais
transformações pudessem ocorrer.
Em meio a esse contexto de mudanças ressaltaremos toda a luta da classe
burguesa visando garantir os seus direitos ou liberdades, onde
para atingirem a
conquista dessas liberdades a organização dos habitantes em associações foi fundamental
e indispensável.
Portanto, entendemos que, ao analisarmos as questões que influenciaram e
foram influenciadas com as mudanças econômicas medievais estaremos desse modo,
entendendo a sociedade como um todo. Compreenderemos, também, a ocorrência dos
fatos que levaram os homens medievais, paulatinamente, a mudarem a percepção da sua
realidade
resultando numa grande reestruturação da sociedade que, aos poucos,
consolidou a classe burguesa.
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Material e Métodos
Para alcançarmos o objetivo da nossa pesquisa, ou seja,
termos o
entendimento das transformações sociais que levaram ao surgimento do comércio e das
cidades procuramos efetuar leituras de vários períodos da história. Buscamos um
embasamento teórico por meio de alguns autores que tratam da história do período
medieval e, mais especificamente, de historiadores que revelam as mudanças
econômicas ocorridas no período em questão.
Por intermédio dessas fontes, observamos que o século XII destacou-se por ser
cenário de grandes transformações sociais que se sucederam ao ressurgimento da
atividade urbana e comercial e que influenciaram, decisivamente, o pensamento, os
costumes e a educação a partir desse momento histórico.
Desse modo, as referidas leituras nos deram o entendimento de que, no século
XII, os indivíduos estavam, gradativamente, retomando o comércio e desenvolvendo as
cidades.
Segundo Durkheim (1995), ao contrário do que se imagina, a Idade Média não
representou apenas o período histórico que transcorreu entre a Antiguidade e o
Renascimento, ou seja, uma época intermediária. Representou sim, um momento de
elaboração dos germes de uma civilização totalmente nova, com uma nova concepção e
novas idéias.
Para que possamos mostrar como ocorreu o renascimento das cidades e do
comércio se faz necessário pontuar algumas questões da Antiguidade, período da queda
do Império Romano, que segundo Pirenne (1982), foi onde se deu o princípio de todo
esse processo, onde surgiram elementos fundamentais para que as cidades e o comércio
se desenvolvessem, mostrando as mudanças que ocorreram conforme os homens foram
se organizando e ganhando, paulatinamente, uma liberdade econômica.
Uma grave crise econômica começou abalar o Império Romano a partir do
século III. A cidade deixou de ser o centro da vida, ocorrendo assim uma ruralização
econômica. Conforme o Império se enfraquecia, suas dificuldades militares
aumentavam. No século V, as invasões bárbaras contribuíram para que o Império
Romano do Ocidente ruísse completamente. As atividades comerciais e industriais
quase desapareceram, ficando limitadas à compra e venda de artigos de luxo, linho, lã,
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armas e escravos. Os mercadores, itinerantes, eram quase todos sírios ou judeus. A
indústria ficou restrita às atividades de artesãos. Com essa tendência da economia
voltada à vida agrária ganhava força a caminhada rumo ao sistema feudal.
Guizot (1907), historiador do século XIX e estudioso do período medieval nos
pontua em seus escritos que após um longo período de caos onde a sociedade se
deslocava para todos os lados formando pequenas sociedades, os homens da Europa
Ocidental, com a implantação do feudalismo, finalmente, encontraram a paz e uma nova
maneira de viver.
Contudo era uma nova sociedade que ia começar, tão necessária, tão
inevitável, tão completamente a única consequencia possivel do
estado anterior, que tudo coube no seu molde e adoptou a sua fôrma.
Os elementos que mais repugnavam a este systema, a igreja, as
communas, a realeza, tiveram que se lhe amoldar (...) (Guizot, 1907,
p.120)
Entraram, nesse novo sistema, todos os elementos da sociedade. Todos os
pormenores da vida comum era assunto do feudalismo. Cabe ressaltar que, segundo
Heers (1981), não foram em todas as partes, em toda a sociedade, que as estruturas do
feudalismo se instalaram mais profundamente. Isto ocorreu onde prevalecia tanto a
exploração da terra quanto do guerreiro e onde, também, havia sido imposto o poder
carolíngio. Porém, em algumas sociedades o prestígio das cidades continuou inabalado.
Mas lá onde a riqueza e mesmo o poder militar permaneceram
concentrados nas cidades, onde as estruturas políticas e sociais dão
testemunho constante da herança romana, a cidade e o Estado
guardam seu prestígio e seu poder. Aqui a aristocracia não é guerreira
e rural, mas citadina e encarregada dos postos leigos ou eclesiásticos
(...) (Heers, 1981, p.78).
Simultaneamente à solidificação do feudalismo ocorreu o crescimento da
economia e, conseqüentemente, renasceram as cidades e o comércio. Exatamente nesse
momento, uma nova onda de invasões atingiu o sul da Europa, eram os árabes.
Com a expansão islâmica1, no século VII, o mar Mediterrâneo foi fechado,
causando um transtorno para os mercadores que circulavam sobre ele fazendo
1
As invasões islâmicas fechou o Mediterrâneo aos cristãos do Ocidente. Apenas algumas cidades do sul
da Itália mantiveram comercialização com os árabes e Veneza, no mar Adriático, conservaram relações
comerciais com Constantinopla, embora com grande dificuldade.
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exportações e importações de mercadorias. A movimentação desses homens sustentava
as cidades romanas, mas, apesar dessas cidades terem perdido o poder econômico com a
interrupção do Mediterrâneo, sobreviveram por serem os centros de administração
diocesana, pois membros da Igreja nelas conservaram suas residências.
A Itália Meridional, o mar Egeu e o Adriático, foram salvos devido às frotas
bizantinas que conseguiram reagir aos ataques muçulmanos. Contudo, o Império
Bizantino não conseguiu continuar resistindo por muito tempo e acabou sendo destruído
numa grande parte da sua região, pelo estabelecimento dos bárbaros no Império.
Veneza, que havia mantido uma preponderância econômica no século IX, pois
foi a única cidade que os carolíngios não se apoderaram, apesar da distância, mantinha
com o Império Bizantino um comércio constante, o que favorecia tanto um quanto o
outro.
Vê-se uma grande diferença entre Veneza, que sobrevivia somente
do
comércio por estar localizada no centro de um canal, portanto, sem área rural e da
Europa Ocidental como um todo, pois esta valorizava apenas a terra, desconsiderando o
comércio.
Dessa forma, O Império Bizantino do Império Carolíngio se distinguia muito,
pois aquele, apesar dos ataques sofridos, não deixara desaparecer o luxo da vida urbana.
Para Pirenne (1982), são dois mundos extremamente opostos, onde os valores de cada
um são distintos, ou seja, a terra e o comércio.
As cidades faziam o papel de tentar cada vez mais impulsionar o comércio,
tentando expandi-lo pelo mar. Desse modo, aqueles que ficavam em terra trabalhavam
visando também o comércio.
O desenvolvimento urbano que teve início no século X, conforme pontua
Verger (1990), foi uma conseqüência do aumento populacional causado por vários
fatores.
Foi, antes de tudo, dos campos vizinhos que as cidades extraíram o
aumento de sua população, atraindo para si os homens que os
progressos demográficos, a melhoria das técnicas agrícolas, o
abrandamento das obrigações senhoris haviam deixado disponíveis.
(Verger, 1990, p.26).
Alguns homens que viviam no mar saqueando mercadorias, foram aos poucos
organizando-se nas costas marítimas, ou seja, foram construindo casas para
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armazenarem seus produtos. Esses homens deram início a primeira etapa do comércio e
no final do século IX transformaram-se em mercadores.
As conseqüências das primeiras cruzadas foram lucrativas para os mercadores
italianos, pois, estes utilizaram suas embarcações para abastecerem os exércitos, o que
acabou proporcionando uma certa vantagem a eles. Os lucros obtidos pela guerra
fizeram os homens reformarem as formas de embarcações já existentes.
Portanto, as cruzadas foram, para os mercadores, um acontecimento
significante que, acabou favorecendo-os e concedendo às cidades comerciais alguns
privilégios.
O comércio marítimo, na realidade, foi importante tanto em mar quanto em
terra, pois, o deslocamento dos homens de algumas regiões para outras provocou o
conhecimento dos produtos adequados para o lugar. Com isso, em terra os homens
plantavam e se organizavam para conseguir aumentar a produção de produtos para
abastecer os diferentes lugares.
Aos poucos, essa organização do comércio, a tentativa de cada vez mais
produzir para o lucro, acabou gerando a necessidade de indústria, ou seja, produzir
muito para exportar e lucrar abundantemente.
O tecido foi um dos produtos que originou um grande desenvolvimento do
comércio em terra e em mar, pois os tecelões expandiram-se em diversas regiões
durante o século XII. Era muito procurado para satisfazer o luxo da sociedade da época.
Em várias regiões da Europa durante a Idade Média, os homens buscaram técnicas de
aperfeiçoamento para fabricação de tecidos. Algumas delas transformaram-se em
indústrias, que segundo Pirenne (1982), correspondiam a uma indústria de luxo.
Certamente, não só em Flandres havia fábricas de tecidos. A
tecelagem de lã é, por sua natureza, um trabalho doméstico cuja
existência tem sido comprovada desde os tempos pré-históricos e que
se encontra onde quer que exista lã, isto é, em todas as regiões
(Pirenne, 1982, p.42).
Com isso a fabricação de tecidos tornou-se mundial. As fábricas abasteciam os
portos, onde as embarcações levavam as mercadorias aos seus destinos.
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As cidades, com o desenvolvimento do comércio cresciam cada vez mais,
porém, quando o mar Tirreno foi bloqueado, houve uma certa decadência das
cidades, pois a população de artesãos e comerciantes praticamente se extinguiu,
devido a falta de favorecimento para suas atividades.
A maioria das cidades sobreviventes foram aquelas que, nela residiam os
bispos. Essas cidades episcopais sobreviveram graças aos homens dos campos que
abasteciam as necessidades da Igreja.
Com a decadência do Império Carolíngio, manifestou-se um longo período de
insegurança na sociedade, o que provocou nos homens a necessidade de proteger-se
contra tudo e todos. Para tanto, eles passaram a construir suas moradias de maneira
diferente daquelas em que viviam. Visavam uma proteção extrema e para isso
construíram grandes castelos, com alguns andares, protegidos com enormes muralhas.
Esses castelos construídos pelos príncipes, ou esses burgos, subsistiam somente do
campo e serviam de proteção aos homens que precisavam de abrigo. Os mercadores
normalmente se abrigavam no interior desses burgos, porém, com o tempo esses burgos
foram tendo falta de espaço para tantos homens desprotegidos, o que acarretou o
desenvolvimento de um novo burgo ao redor do já existente.
Nasceram assim, ao lado das cidades eclesiásticas ou das fortalezas feudais,
aglomerações mercantis, cujos habitantes se dedicavam a um gênero de vida
em perfeito contraste com a que levavam os homens do interior das muralhas
(Pirenne, 1982, p.48).
Esses novos burgos contrastavam-se com os burgos do interior das muralhas,
pois enquanto este, era somente agrícola aquele era movido pelo comércio.
Os burgos antigos deram origem ao nome “burguês” para seus habitantes,
porém, os novos burgos acabaram dominando o burgo antigo devido ao seu
desenvolvimento.
A cidade moderna foi fruto dos burgos que se desenvolveram gradativamente,
ou seja, conforme foi chegando uma nova população aos redores das muralhas, os
homens foram criando e tentando suprir as novas necessidades para satisfazer as
prioridades do dia-a-dia que, por conseguinte, levou ao desenvolvimento.
No período, com o aumento da produção de tecidos e não havendo pessoas
suficientes para realizar o trabalho, que era só executado pelas mulheres, os homens
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foram obrigados a trabalharem na tecelagem para suprir as exigências da exportação.
Produziam mercadorias para o comércio. Assumiram uma profissão que não dependia
mais dos seus Senhores para realizá-las. Eles não eram mais os servos que serviam à
corte, mas sim homens que produziam para comercializar suas próprias mercadorias,
para o lucro. Antes a garantia de sobrevivência para esses homens que era somente a
terra passou a ter uma outra forma de vida e outra maneira de ver a sua realidade.
O comércio foi, aos poucos, despertando um interesse geral nos homens, pois
os comerciantes iam cada vez mais acumulando riquezas. A vontade de conseguir uma
vida melhor, levou os homens que viviam nos campos subordinados aos seus Senhores
a procurarem funções junto aos indivíduos urbanos que já tinham um ofício. Todo esse
movimento foi aumentando a população urbana e deixando os senhores dos feudos, sem
servos.
Os homens que num período anterior procuraram abrigo do seu Senhor, no
momento, fugiam para não serem capturados e obrigados a retornar para a vida rural.
A burguesia no início de seu desenvolvimento acatou e respeitou as ordens das
classes dirigentes, porém, depois de adquirir uma certa autonomia passou a reivindicar
seus direitos de liberdade para movimentar-se de um lado para outro, de ter seus bens
materiais e de excluir a sua função de servil. A luta pela liberdade de suas ações foi
transformando-se em reivindicações constantes. Esses homens partiam em busca de um
direito deles próprios, ou seja, um direito natural que visava a liberdade de realizarem
seus ofícios naturalmente. Porém, esse direito precisava tornar-se oficial. Os burgueses
precisavam de uma pessoa que os representasse perante a sociedade e que lutasse pelas
suas reivindicações. Assim, os mercadores entraram num acordo para eleger uma pessoa
que tivesse competência e compreendesse os seus direitos, os árbitros, que logo se
converteram em jurisdição permanente.
Com muita insistência, os homens das “novas” cidades conseguiram que a
sociedade fosse aderindo ao seu gênero de vida. Assim, os indivíduos do interior das
muralhas, com exceção do clero, foram adaptando-se aos privilégios dos burgueses.
Segundo Pirenne (1982), eram dois mundos distintos, divididos pela muralha.
No interior desta, existia uma sociedade que era regida conforme as leis políticas do seu
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território. Atravessando as muralhas havia uma outra sociedade, com outras
preocupações e seguindo regras divergentes às “antigas” cidades.
Portanto, as cidades burguesas defenderam seus direitos e suas razões, lutaram
pelos seus ideais, sem importar com a classe que os governava.
No início, essas “novas” cidades tinham um número pequeno de habitantes,
porém, isso não os amedrontava e nem tampouco os impedia de lutar pelas suas
ambições.
Em contrapartida,
os latifúndios, devido as suas raízes já consolidadas,
preservavam sua maneira de ser, ou seja, sua organização.
No começo a maioria das cidades era cercada por altas muralhas, fazendo
assim um núcleo urbano, chamado burgo. Mas com o aumento da população os burgos
ultrapassaram os limites das muralhas. Então os habitantes dos burgos passaram a ser os
comerciantes e artesãos, também chamados de burgueses. Com o progresso do comércio
e do artesanato, o crescimento social da burguesia também se alterou. Mas, a partir do
século XI, quando as cidades começaram a crescer e os burgueses a se destacarem, a
situação mudou. As cidades tinham ganhado prestígio econômico e poder e, os
burgueses, começaram a se organizar em busca de sua autonomia em relação ao feudo.
Esse movimento de independência das cidades em relação ao feudo é chamado de
movimento comunal. Tal movimento serviu de base para o processo de emancipação de
algumas cidades. Poderia ocorrer de maneira pacífica, pagando-se ao senhor feudal ou
pelo uso das armas, por meio de combate. Oliveira e Mendes (2005) evidenciam a
necessidade das cidades em defender os seus interesses:
Eis, então, Senhores, como estavam as cidades no curso do século X;
elas tinham mais força, mais importância, mais riquezas, mais
interesses a defender. Era-lhes ao mesmo tempo mais necessário do
que nunca defender essas coisas, pois estes interesses, esta força,
estas riquezas, tornaram-se um objeto de cobiça dos senhores
(Oliveira e Mendes apud Guizot, 2005, p. 36).
Acrescentam, também, a luta dessas cidades para escapar do jugo de seus
senhores:
A libertação das comunas no século XI foi fruto de uma verdadeira
insurreição, de uma verdadeira guerra, guerra declarada pela
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população das cidades aos seus senhores. O primeiro fato que
encontramos sempre em tais histórias é recrutamento dos burgueses
que se armaram de tudo aquilo que se encontrava à mão; a expulsão
dos representantes do senhor que vinham exercer alguma
extorsão;uma empresa contra o castelo; todas elas características de
uma guerra (Oliveira e Mendes apud Guizot, 2005, p. 37-38)
As cidades independentes, as comunas, começaram a planejar uma forma de
governo com direito a magistrados que se encarregavam de administrar e defender tanto
as cidades como seus interesses. Elas tinham política própria. Os burgueses de maior
riqueza e poder ocupavam os principais cargos, elaboravam leis, criavam tributos,
controlavam os impostos para fazer e manter a construção de obras.
A população urbana, ressalta Pirenne (1982), aumentou em grande proporção a
partir do século X, pois libertos das violências bárbaras que até então haviam sido
perseguidos, os homens iniciaram uma imigração do campo para a cidade que
prosseguiu sem interrupção até o século XIII. Esses indivíduos que partiam do campo
para a cidade, não tinham a noção de conquistar o lucro, viviam submetidos às ordens
do seu senhor e suas funções eram voltadas para a subsistência da corte. Com isso, os
servos afastaram-se dos seus senhores e partiram em busca de uma nova forma de vida
o que os levou a aproximarem-se dos burgueses. Dessa forma, os homens dos campos
saíram da submissão do seu protetor e foram se submeter aos serviços da burguesia,
realizadas nos burgos.
Toda essa transformação que se deu das classes rurais para as classes urbanas,
deve-se também ao renascimento do comércio, pois os homens antes de criarem a
necessidade do comércio, sobreviviam dos produtos cultivados da terra onde plantavam.
Porém, a ascendência do comércio e, consequentemente, do lucro, inspirou os
homens a produzirem o excedente para territórios externos aos seus.
Com o comércio, nos séculos XII e XIII, o dinheiro assumiu sua posição como
medida de valor e relações comerciais. Desse modo, os preços das mercadorias se
elevaram, e a aristocracia, cada vez mais, consumia produtos que convinham à sua
posição social. Os costumes foram alterados, as “novidades” trazidas pelos mercadores
como, por exemplo, alimentação, vestuário, mobília e armamento passaram a ser
necessidades prioritárias para as suas vidas.
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Os lugares em que o comércio era mais acentuado ocorreram uma notável
decadência do regime senhorial. Com o desenvolvimento do comércio a população rural
passou a dispersar-se para a cidade, formando uma mistura de culturas, conforme o solo
e o clima da região.
O comércio, conforme foi se desenvolvendo chegou a um estágio que os
homens necessitaram de uma melhor organização para os seus negócios. Os indivíduos
que comercializavam necessitaram de proteção, de melhores transportes e de pessoas
confiáveis que dirigissem seus negócios.
Além da circulação de mercadorias por terra e por mar, os mercadores
realizavam feiras periódicas, onde faziam suas reuniões sobre mercados internacionais.
Essas feiras deram um grande impulso às trocas na Europa após o século XI2. Após este
século, as feiras tinham um caráter internacional e com mercadores profissionais. Suas
realizações eram periódicas e aconteciam em pontos estratégicos, cruzamentos de rotas
que facilitavam a presença de comerciantes das mais variadas origens. As feiras mais
importantes da Europa foram as de Champanha.
A prosperidade das feiras se deu por um fator de grande relevância, a garantia
de proteção por parte dos reis e dos senhores feudais. Toda essa proteção era devido ao
interesse econômico que eles tinham, pois eram cobrados impostos dos comerciantes.
O desenvolvimento das feiras impulsionou o crescimento do câmbio visto que
os cambistas estavam sempre presentes nas feiras e exerciam lugar de destaque, nelas
havia comerciantes de várias origens aumentando assim a variedade de moedas.
Apesar de a moeda estar em circulação e fazer parte de um grande número de
negociações, a troca não deixou de estar presente em todos os lugares que os
mercadores conseguiam levar seus produtos.
O comércio de exportação, de acordo com Pirenne (1982), foi a principal
causa para o desenvolvimento do comércio medieval e nesse processo, os judeus
tiveram papel significativo. Foram eles que, mesmo na época do declínio do comércio
internacional, especialmente do século IX, mantiveram-se no exercício do comércio. Foi
por meio desse tipo de comércio que, aos poucos, os homens descobriram o mundo,
2
Desde o século IX já existiam feiras como a de Saint Denis, perto de Paris, porém, elas tinham uma
dimensão local e limitavam-se à troca de produtos de primeira necessidade e eram semanais.
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conheceram novas culturas, novos comportamentos, novos pensamentos, que
viabilizaram grandes transformações.
O comércio medieval visava o luxo, ou seja, mercadorias de fácil transporte e
que rendia grandes lucros. Essa característica comercial perpassou longos períodos e fez
com que os mercadores fossem acumulando riquezas. As especiarias despertavam
interesse na maioria dos povos, inclusive naqueles que haviam perdido o costume pelo
luxo. A comercialização provocou uma aproximação cada vez maior entre a Europa
Ocidental e Oriental, favorecendo assim, um número maior de produtos, pois eram
novidades comerciais para ambos os lados.
Para o autor, o comércio foi, sem dúvida, o grande movimento da humanidade
para o capitalismo, para o consumo, pois ele está enraizado desde o início do
renascimento comercial. Porém, segundo o autor, nem todos os países tiveram ao
mesmo tempo o mesmo desenvolvimento e as mesmas condições para o comércio.
Conforme as circunstâncias para os mercadores realizarem seus ofícios, foi-se
estabelecendo condições para alguns desses homens irem acumulando riquezas. Os
indivíduos que conseguiram fazer fortunas foram aqueles que desbravaram os mares e
terras. Aqueles que realizaram o comércio local, apenas cumpriam o seu trabalho, de
produzir para satisfazer o tráfico a longa distância. Nesse processo, os mercadores
foram criando uma experiência talentosa para comercializar. A prática de vida desses
homens levou-os a adquirirem uma malícia sobre o comércio que os favorecia de forma
singular.
Algumas cidades destacaram-se devido as circunstâncias favoráveis, como
por exemplo, aquelas que tinham a residência do chefe da Igreja, que ganharam uma
influência superior a que poderiam ter. Entretanto, as cidades medievais, que mais se
desenvolveram e tornaram-se compostas por diferentes tipos de povos, segundo Pirenne
(1982), são as cidades criadas exclusivamente pelos burgueses.
A cidade medieval é, portanto, essencialmente uma criação da burguesia.
Existe só para os burgueses e graças a eles. Em seu interesse próprio e
exclusivo criaram as instituições e organizaram a economia. Ora, é evidente
que o progresso mais ou menos amplo da referida economia dependeu do
fato de ser a população, em cujo benefício funcionava, também mais ou
menos numerosa e ter participado do movimento comercial e industrial
(Pirenne, 1982, p.171).
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Conforme, essas cidades foram se desenvolvendo, criaram uma organização
extremamente burguesa. Os homens fizeram relações baseadas no comércio, nas suas
necessidades de trabalho, o que resultou numa organização social, política e econômica
embasada nas suas relações sociais produtivas.
Apesar de os homens dos burgos terem uma forma de vida muito diferente da
vida rural, os camponeses eram os grandes fornecedores da burguesia. O comércio se
desenvolvia, os pedidos aos camponeses aumentavam, ocorrendo assim, um aumento
cada vez maior de produção e de consumo.
Todo esse desenvolvimento do comércio fez com que se originassem as
corporações de ofícios. Pirenne assim as descreve:
Vê-se, com efeito, que os trabalhadores urbanos constituíram em fins do
século XI confrarias (fraternitates, caritates) nas quais se reuniam por
profissões. Adotaram para isso, como modelos, as corporações mercantis e
as associações religiosas formadas em torno das igrejas e dos mosteiros. Os
primeiros agrupamentos de artesãos distinguem-se, com efeito, por suas
tendências piedosas e caritativas. Devem porém ter correspondido, ao
mesmo tempo, à necessidade de proteção econômica. A urgência da sua
união uns aos outros, a fim de resistirem à concorrência dos forasteiros, era
demasiado premente para não se impor desde as origens da vida industrial
(Pirenne, 1982, p.180).
Com a formação das cidades, esses artesãos desempenharam o papel de
trabalharem não somente para os seus senhores, mas também para toda a sociedade
urbana. Esses homens foram essenciais para que o comércio conseguisse um bom
desenvolvimento, pois eles desempenharam suas funções por livre espontânea vontade e
que devido ao poder local dos burgueses, conseguiram gozar de privilégios
regulamentados pela autoridade pública.
Aos poucos, as corporações foram criando uma certa autonomia. No início do
século XIII organizaram algumas associações para reivindicarem os seus diretos.
Queriam, por exemplo, ter liberdade de reunir-se para discutir seus interesses, o direito
de eles próprios se administrarem e, também, interferir no governo tomando parte das
decisões junto com os ricos mercadores que possuíam este poder.
Os artesãos criaram uma força muito grande, sendo que se diferenciavam em
determinados locais, conforme a região e sua organização econômica, mas as
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corporações enfrentaram muitas resistências e conseguiram o direito de nomear os seus
decanos e os seus jurados.
Ao adquirirem seus direitos, as corporações foram divididas em categorias. A
hierarquia dos artesãos compunha-se do mestre que era o chefe da oficina e que tinha
seus aprendizes ao seu redor para aprenderem o exercício da profissão, enquanto que os
companheiros eram aqueles que recebiam o salário para completarem o trabalho.
Dessa forma, os demais trabalhadores, diferentes das funções dos artesãos,
acabaram, também, dividindo suas corporações3.
Diferenciavam-se os trabalhadores para a exportação daqueles que
trabalhavam para o mercado local. Quanto mais o comércio se desenvolvia, mais o
trabalho para exportação aumentava, exigindo assim, um maior número de
trabalhadores.
Em relação às corporações, Oliveira e Mendes (2005), preconiza que na
concepção de Guizot elas já existiam no mundo romano e que seus vestígios foram
perceptíveis em todas as épocas.
(...) no começo do século V, esta passagem estava feita: havia em
todas as grandes cidades da Gália uma classe bastante numerosa de
artesãos livres. Desde então, eles estavam constituídos em
corporações, em corpos de ofícios, representados por alguns de seus
membros. A maior parte das corporações, cuja origem se costuma
atribuir à Idade Média, remonta, sobretudo no sul da Gália e na Itália,
ao mundo romano (Oliveira e Mendes apud Guizot, 2005, p.50).
Essas corporações, em todas as épocas, sempre formaram uma das mais
notáveis parcelas do povo.
Para Pirenne (1982), as grandes transformações econômicas, ocorridas com a
sociedade medieval, deram-se até o final do século XIV. O desenvolvimento do
comércio e da indústria levou a sociedade a sofrer grandes mudanças, mudando
completamente a vida dos homens. Porém, essas transformações cessaram no início do
século XIV.
3
Essas eram as da indústria local: padeiros, ferreiros, sapateiros, remendões etc. Nestas, as ferramentas, a
oficina, a matéria-prima e o produto pertenciam ao trabalhador que o comercializava.
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O grande desenvolvimento da humanidade, segundo o autor, aconteceu
durante a Idade Média, período em que os homens lutaram para uma nova forma de
estabilização, tanto social quanto econômica.
O desenvolvimento do comércio e o renascimento das cidades propiciaram
uma maior proximidade entre as pessoas e, conseqüentemente, com novos ideais, novos
pensamentos e comportamentos.
Diretamente ligado ao renascimento urbano no século XII, assinala Jacques Le
Goff (1988), está o nascimento do intelectual, ou seja, juntamente a outra revoluções
está a revolução cultural, que traz em cena o intelectual.
No princípio havia as cidades. O intelectual da Idade Média, no
Ocidente, nasce com elas. É com o seu desenvolvimento, ligado à
função comercial e industrial - digamos modestamente, artesanal –
que ele aparece (...) um homem que tenha profissionalmente uma
atividade de professor e de sábio, em resumo, um intelectual, este
homem somente aparece com as cidades (Le Goff, 1988, p. 20-21).
A insistência dos indivíduos em conseguirem uma liberdade de agir conforme
sua própria vontade e necessidade levaram os homens a uma reestruturação material que
encaminhou a sociedade para o surgimento de uma diferente classe daquela que
prevalecia no período, ou seja, o renascimento do comércio, aos poucos, consolidou
uma nova classe, a burguesa.
Conclusão
Nosso propósito, neste estudo, foi expor as mudanças ocorridas na idade
medieval em decorrência do surgimento do comércio e das cidades e que de uma
maneira ou de outra influenciaram as alterações de comportamento, atitudes, resultando
mudanças na sociedade como um todo.
Ao fazermos as leituras percebemos que no século XII acontecia o
renascimento do comércio e o desenvolvimento das cidades, portanto, estavam sendo
lançadas, pouco a pouco, as sementes que iriam consolidar uma sociedade com
costumes e sentimentos divergentes do mundo feudal.
VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9
Desse modo, com as buscas bibliográficas verificamos que as necessidades
criadas pelos homens, em seu momento histórico, propiciaram uma nova forma de
organização para atender suas necessidades, resolver seus problemas. Criaram uma
forma diferente de subsistência.
Nessa nova organização social, o desejo de obter riqueza foi, paulatinamente,
predominando, a luta pela sobrevivência não estava mais pautada no atendimento às
necessidades do senhor feudal, mas na conquista de riqueza, por meio dos mares, novas
terras, novos povos. Nesse momento histórico, as preocupações dos homens tenderam
para o comércio, desviando-se, pouco a pouco, das explicações religiosas.
Devido às alterações que estavam ocorrendo, despertou nos homens a ânsia
por novos conhecimentos, e outras necessidades foram sendo incorporadas à sociedade,
em especial as questões do comércio. O renascimento das cidades contribuiu para uma
aproximação dos homens, os quais passaram a conviver próximos uns dos outros, num
espaço físico onde todos lutavam pelos mesmos direitos, pelas mesmas necessidades.
Assim, alguns sentimentos, como malícia, a ambição, a amizade, fortaleceram-se na
vida dos indivíduos.
Essas leituras que reportam a Idade Média e as suas transformações
proporcionaram o entendimento sobre as questões que influenciaram tais modificações.
Analisando essas questões, averiguamos que o renascimento do comércio e das cidades
contribuiu para que os medievos despertassem para a importância da liberdade de suas
ações e, conseqüentemente, de pensamento e de comportamento, levando a sociedade a
passar por uma grande reorganização.
É mister salientar que durante um longo período, as duas formas de vida
sobreviveram, pois a velha ordem, a sociedade feudal, empregava todos os meios para
sobreviver aos anseios de uma nova ordem, a sociedade moderna, que,
progressivamente, deixava transparecer suas intenções, seus interesses. Embora
apresentassem interesses distintos, os dois mundos conviveram durantes séculos,
lutando pelos seus ideais.
Para concluir as nossas considerações salientamos que os valores sociais se
alteram e os homens procuram se adaptar às novas relações sociais, com isso, as
transformações são inevitáveis, e buscam corresponder às exigências sociais do
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momento. As atitudes e comportamentos dos indivíduos correspondem à realidade de
cada período, ou seja, são adequadas às exigências postas pela sociedade.
Referências
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Artes Médicas, 1995.
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HEERS, J. História medieval. Trad. Rolando Roque da Silva. 3. ed. São Paulo: DIFEL,
1981
LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Trad. Maria Julia Goldwasser. São Paulo:
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PIRENNE, H. A história econômica e social da Idade Média. Trad. Lycurgo Gomes da
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VERGER, J. As universidades na Idade Média. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo:
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O nascimento do comércio e o ressurgimento das cidades na Idade