Maria José Constâncio Presidente do Conselho Directivo da APOCEEP. Membro do Conselho Económico e Social Papel dos serviços de interesse geral na construção da Europa 35 A matéria dos SIG, reconhecida como importante para o modelo europeu de sociedade, tem desencadeado um intenso debate e levanta questões difíceis de equacionar e resolver, sobretudo quando se trata do financiamento e da sua compatibilidade com as regras da concorrência. A evolução a que está sujeito o fornecimento destes serviços, no contexto de uma tendência para confiar a sua prestação a entidades privadas, complica ainda mais as soluções justas. No recente debate, em todo o caso, ficou mais clara a vontade dos Estados-membros para assumirem a responsabilidade política sobre os serviços que consideram relevantes, ou seja, reforçou-se o conceito de subsidiariedade. Se a Constituição europeia vier a ser adoptada, como espero, os Parlamentos nacionais terão maior influência na defesa da subsidiariedade e será mais difícil à Comissão Europeia forçar a introdução de práticas concorrenciais nos casos em que estas não contribuam claramente para a prestação de serviços em melhores condições. A transparência nas relações financeiras entre os Estados e as empresas, quer sejam públicas, quer privadas, é o princípio que recolhe apoio mais generalizado. Neste aspecto, há muito que fazer em Portugal e a APOCEEP procura contribuir para que o princípio da transparência seja respeitado. 36 The issue of Services of General Interest, acknowledged as being important for the European social model, has led to an intense debate and raises issues that are difficult to analyse and resolve, particularly when the issue concerns financing and its compatibility with the rules of competition. The evolution to which the supply of these services is subject within the context of a tendency to entrust its provision to private entities, further complicates the just solutions. In the recent debate, in any case, Member States’ wish to assume political responsibility for the services they consider relevant was made quite clear, that is, the concept of subsidiarity was strengthened. If the European constitution is adopted, as I hope it will be, then the national parliaments will have greater influence in defending subsidiarity and it will be more difficult for the European Commission to force the introduction of competitive practices in cases where these do not clearly contribute to a provision of services under the best conditions. The transparency of financial relations between States and companies, public or private, is the principle that garners a more generalised support. In this respect there is much to be done in Portugal and APOCEEP will seek to ensure that the principle of transparency is respected. “Nos últimos anos, o papel da União Europeia na definição da forma futura dos Serviços de Interesse Geral (SIG) situou-se no centro do debate sobre o modelo europeu de sociedade”. É esta frase que encontramos a abrir o Livro Branco da Comissão Europeia1 sobre os SIG, publicado em Maio. Neste artigo tentarei sintetizar o caminho percorrido desde que, com o Tratado de Amesterdão, o conceito de serviços de interesse económico geral (SIEG) foi introduzido na lei fundamental da União Europeia através do artigo 16. No artigo 16, reconhece-se “a posição que os serviços de interesse económico geral ocupam no conjunto dos valores comuns da União e o papel que desempenham na promoção da coesão social e territorial”, pelo que a Comunidade e os Estados-membros “zelarão para que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições que lhes permitam cumprir as suas missões”. O artigo 16 refere-se apenas a serviços transaccionados no mercado e, portanto, com valor comercial, em relação aos quais se colocam questões de compatibilidade com as leis da concorrência, razão por que este artigo começa por salvaguardar o disposto nos artigos 73, 86 e 87. Com o tempo, foi-se verificando que a fronteira entre serviços com valor comercial e sem valor comercial era difícil de traçar e que tal fronteira se move constantemente à medida que o Estado vai confiando ao sector privado o fornecimento de serviços que tradicionalmente assegurava de forma directa. A Carta dos Direitos Fundamentais, aprovada em Nice, refere também no seu artigo 36 os serviços de interesse económico geral e o seu contributo para promover a coesão social e territorial da União. Tal veio a justificar a recomendação do Conselho para que a Comissão viesse a preparar, em colaboração com os Estados-membros, formas de assegurar “greater predictability and increase legal certainty in the aplication of competition rules relating to services of general interest”. Por esta altura aprofundou-se a noção de que o artigo 16 não era suficiente para resolver as situações de incerteza legal que se desenvolvem nomeadamente quanto ao financiamento dos serviços. Queixas apresentadas por empresas que se consideram lesadas em termos de concorrência provocam em muitos casos situações de incerteza que impedem a tomada de decisões em tempo útil, nomeadamente quanto a investimentos importantes para assegurar a continuidade do abastecimento e a qualidade do serviço. Adiante darei nota dos vários passos já dados pela Comissão e pelo Parlamento Europeu nos últimos anos que permitiram chegar à presente versão do Livro Branco. O CEEP 2 acompanhou todo este processo, através de pareceres e de um diálogo permanente com a Comissão Europeia, ao mesmo tempo que apresentava, na Conferência Intergovernamental sobre o Futuro da Europa, propostas destinadas a figurar no projecto de Constituição. As recomendações do Conselho e do Parlamento Na sequência do Conselho de Nice, a Comissão Europeia preparou um relatório que veio a ser apresentado, um ano mais tarde, no Conselho de Laeken3. Simultaneamente, o Comité dos Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu preparou também um relatório4 divulgado pela mesma altura. O documento da Comissão apresentado em Laeken reconhece o papel dos SIG como base do “modelo europeu de sociedade”. O acesso aos SIG é um valor partilhado pelos cidadãos europeus, contribui para a competitividade da indústria, fortalece a coesão social e territorial e constitui “uma componente vital da política de protecção dos consumidores na Comunidade”. Este documento da Comissão pretendia clarificar muito especialmente as condições de aplicação do artigo 86, que permite derrogações às regras da concorrência. Para que as derrogações sejam aceites e o direito a aplicar auxílios de Estado seja reconhecido, deve ser demonstrado o carácter indispensável dos custos adicionais relacionados com a prestação do serviço de interesse geral que, de outra forma e em condições puramente comerciais, não seria viável. O documento da Comissão reconhece que os Estados-membros utilizam uma gran- 37 38 de margem de discricionariedade, afirma que havia relativamente poucos casos de queixa ou de contestação do volume de auxílio e recomendava a aplicação da Directiva 80/723, de 25 de Junho, relativa à transparência das relações financeiras entre os Estados-membros e as entidades públicas (revista em 2000). A Comissão pretendia manter durante o ano de 2002 um sistema de consulta permanente com os Estados-membros sobre auxílios de Estado relacionados com SIG e avaliar de seguida essa experiência, numa abordagem que poderia conduzir à adopção de um regulamento que “isentasse certos auxílios da obrigação de notificação”. Pretendia também reforçar a capacidade de avaliação dos SIG ao longo do processo de liberalização, numa base sectorial, e citava casos em que tinham sido estabelecidas salvaguardas e períodos transitórios de adaptação. Quanto à sugestão do Conselho para que fosse preparada uma directiva, a Comissão declarava que essa directiva só poderia ser muito geral e apontar para padrões mínimos de serviço. Na prática, a Comissão assumia uma posição defensiva, afirmando que a “abordagem sectorial combinada com padrões elevados de protecção do consumidor” poderia ser mais adequada para promover serviços de alta qualidade. A verdade é que continuava a faltar uma verdadeira avaliação dos impactos da liberalização à luz dos objectivos indicados no artigo 16. Por outro lado, a opinião do Parlamento Europeu (Relatório Langen) era bastante crítica quanto às condições em que se movimentavam as entidades prestadoras de serviços de interesse geral. Os pontos mais críticos referiam-se à subsidiariedade – os Estados-membros e as suas autoridades locais devem decidir quais os SIG que disponibilizam e “os métodos apropriados de gestão”; à necessidade de tratar sem discriminação as entidades públicas e privadas responsáveis por fornecer SIG; à necessidade de clarificar a distinção entre serviços económicos e não económicos, sendo certo que estes últimos não deveriam ser sujeitos às regras de concorrência; ao inconveniente de substituir monopólios públicos por monopólios privados, conjugado, embora, com a afirmação de que a abertura dos mercados em áreas onde dominavam no passado os monopólios do Estado “pode satisfazer um modelo de concorrência socialmente responsável que serve os interesses dos cidadãos e tem em conta o carácter mutável das suas necessidades”. O parecer do Parlamento Europeu insistia com a Comissão para preparar as bases de uma directiva-quadro por forma a reforçar o enquadramento legal em que são fornecidos os SIG. E também para que fosse realizada uma “avaliação precisa e comparativa do impacto real da política de liberalização dos SIG antes que se iniciassem novas liberalizações”. O Livro Verde sobre os serviços de interesse geral Durante o Inverno de 2003, o CEEP manteve contacto permanente com a Comissão Europeia enquanto esta ia preparando o Livro Verde que viria a ser divulgado a 21 de Maio. Esperava-se que este documento traçasse os princípios fundamentais de uma directiva e a forma de articulação com as directivas sectoriais já existentes ou a desenvolver em novos sectores. Simultaneamente, o CEEP que, na pessoa do seu presidente, acompanhou a Convenção sobre o Futuro da Europa, teve oportunidade de apresentar uma proposta no sentido de a promoção de serviços de interesse geral ser considerada um dos objectivos da União e figurar, portanto, no artigo 3 da Primeira Parte do Projecto de Constituição Europeia. Quando foi divulgado o Livro Verde, em Maio, esta referência parecia aceite. Mais tarde, na versão final, veio a ser retirada, ao mesmo tempo que era introduzido o artigo III-6 destinado a substituir o actual artigo 16: “Artigo III-6 Sem prejuízo dos artigos III-55, III-56 e III-136, e atendendo à posição que os serviços de interesse económico geral ocupam, enquanto serviços a que todos na União atribuem valor ao papel que desempenham na promoção da sua coesão social e territorial, a União e os seus Estados-membros, dentro dos limites das respectivas competências e no âmbito da aplicação da Constituição, zelam por que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições, designadamente económicas e financeiras, que lhes permitam cumprir as suas missões. A lei europeia estabelece esses princípios e condições, sem prejuízo da competência dos Estados-membros para, na observância da Constituição, prestar, mandar executar e financiar esses serviços.” O Livro Verde5 foi bem acolhido na medida em que, mais uma vez, reconhece os SIG como elemento essencial do modelo europeu de sociedade: – “O seu papel [dos SIG] é essencial para garantir maior qualidade de vida para todos os cidadãos e ultrapassar os problemas da exclusão social e do isolamento”. – No contexto do alargamento, “a garantia de SIG eficazes e com elevada qualidade e em especial o desenvolvimento das indústrias de rede e a respectiva interconexão são essenciais para facilitar a integração...” – “Os SIG estão no cerne dos debates políticos. Incidem na questão central do papel das autoridades públicas numa economia de mercado...” As referências ao Alargamento da União contribuíram para deslocar o enfoque em direcção ao modelo de sociedade, até como forma de sensibilizar os novos Estados aderentes para as limitações do mercado que, no seu zelo de novos convertidos, eles tendem por vezes a esquecer. O Livro Verde está organizado em quatro capítulos. No primeiro, sobre o âmbito de uma acção comunitária (produzir ou não uma directiva-quadro), são analisadas as difíceis questões da subsidiariedade, da articulação com a legislação sectorial e da distinção entre serviços económicos e não económicos. Sobre todas estas questões, a Comissão coloca perguntas e não avança de forma suficiente com soluções. Na segunda parte, intitulada “Uma definição comunitária de serviços de interesse geral”, embora continuem a ser formuladas perguntas, a Comissão apresenta um texto mais elaborado no que respeita ao conjunto de obrigações que podem configurar aquela definição. Estes princípios são os seguintes: serviço universal, continuidade, qualidade do serviço, acessibilidade de preços, protecção dos utilizadores e dos consumidores. Na terceira parte, a Comissão ocupa-se da boa governança: organização, financiamento e avalia- ção. Havia grande expectativa quanto à forma como seriam abordadas as questões do financiamento, uma vez que é através dos auxílios de Estado que se gera maior incerteza na compatibilidade com as regras de concorrência. Ora, neste ponto, o Livro Verde pouco adiantou. A verdade é que, à data da sua publicação, corria ainda no Tribunal Europeu o Processo Altmark relativo a uma empresa de Transportes Urbanos na Alemanha. O acórdão sobre a matéria de financiamento desta empresa seria proferido em Julho de 2003 e a Comissão Europeia evitou pronunciar-se sobre assuntos de financiamento para não entrar em contradição com o tribunal. Na quarta parte, o documento refere-se aos SIG no contexto da globalização. Refere o compromisso de abertura dos sectores liberalizados a operadores de países terceiros, bem como o papel que os SIG poderão desempenhar na cooperação com os países em desenvolvimento. Em cada capítulo são formuladas questões, num total de 30, às quais a Comissão Europeia convida as partes interessadas a responder até 15 de Setembro. 39 Os pareceres do CEEP e do Parlamento Europeu O parecer do CEEP colocou em foco o desequilíbrio até hoje presente na legislação e na prática comunitárias entre concorrência e liberalização, por um lado, como objectivos valorizados por razões económicas (a tónica dominante do tratado) e, por outro lado, promoção dos serviços de interesse geral como componente da coesão social e territorial. O parecer assumiu um tom de certo modo defensivo, na medida em que o CEEP temia que a criação de novos enquadramentos regulamentares sectoriais (sem que estivessem clarificados princípios gerais) fosse uma forma de transferir para o nível comunitário competências de nível inferior. O sector da água é dado como exemplo de regulamentação europeia a evitar num contexto em que se verifica grande diversidade de soluções institucionais entre Estados-membros (EM) e entre colectividades locais. A partilha de responsabilidades entre EM (ou colectividades locais, nos casos pertinentes) e instâncias comunitá- 40 rias é um ponto fundamental e o CEEP defende que a transferência de competências para o nível comunitário só deverá verificar-se quando houver justificação técnica para a integração num mercado europeu. Conforme já foi referido, a contribuição mais positiva do Livro Verde é a definição de SIG a partir de um conjunto de obrigações, mas a Comissão não apresenta soluções para questões tão importantes como a do carácter económico ou não económico do serviço, nem critérios para avaliar se o “efeito sobre as trocas entre EM” é de molde a justificar a aplicação das regras da concorrência tendo por objectivo evitar distorções. Para além do parecer do CEEP, é importante mencionar a resolução do Parlamento Europeu aprovada a 14 de Janeiro de 20046. Nos considerandos desta resolução, pode ler-se, por exemplo, o seguinte: – “considerando que, no que se refere à compatibilidade entre as regras do mercado interno e da concorrência e o bom funcionamento dos serviços de interesse geral, deve ser criada maior segurança jurídica, por forma a garantir as competências dos Estados-Membros em matéria e organização dos serviços de interesse geral”; – “considerando que a liberalização de sectores importantes do mercado interno constitui um factor de progresso tecnológico e de eficácia económica e pode trazer vantagens para os cidadãos, como, por exemplo uma maior oferta de serviços a preços mais vantajosos, mas que ainda é necessário fazer uma avaliação exaustiva das suas repercussões; que a insegurança jurídica, as posições dominantes e os abusos de mercado podem comprometer quer a liberdade do mercado, quer o bom funcionamento dos serviços de interesse geral”; – “considerando que na interpretação das disposições específicas dos tratados respeitantes aos serviços de interesse económico geral (como o artigo 86.2 do Tratado CE), nem a Comissão nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça garantiram até à data a segurança jurídica e um quadro operacional suficientemente coerente”. Com base nestes e noutros considerandos, o Parlamento Europeu “reitera o seu pedido de elaboração de um enquadramento jurídico nos termos do processo de co-decisão, dentro do respeito do princípio da subsidiariedade, quan- do forem aplicadas as regras do mercado interno e da concorrência”. O Parlamento recorda também “o carácter primordial do princípio da subsidiariedade, segundo o qual as autoridades competentes dos Estados-membros são livres de escolher missões, organização e modo de financiamento dos serviços de interesse geral e dos serviços de interesse económico geral; salienta que nenhuma directiva poderá estabelecer uma definição europeia uniforme de serviços de interesse geral, dado que a definição e a configuração dos mesmos deverão continuar a ser da competência exclusiva dos Estados-Membros e das suas subdivisões estabelecidas nas respectivas Constituições”. Desta forma, à União Europeia caberá “fixar os princípios comuns, incluindo os seguintes: universalidade e igualdade de acesso, continuidade, segurança, adaptabilidade, qualidade, eficácia, acessibilidade das tarifas, transparência, protecção de grupos sociais menos favorecidos, protecção dos utentes, dos consumidores e do ambiente, e participação dos cidadãos, tendo em conta as particularidades de cada sector”. Note-se que este enunciado de princípios proposto pelo Parlamento Europeu é mais ambicioso do que aquele que constava do Livro Verde. A resolução acentua as virtudes da liberalização e a introdução da competitividade que “proporcionaram, em alguns casos, vantagens significativas aos consumidores”, mas “considera necessário, tendo em conta os problemas verificados com a liberalização de determinados sectores, como os transportes ferroviários na Grã-Bretanha, avaliar de forma pluralista e contraditória, o impacto sobre o emprego, as necessidades dos utentes, a segurança, o ambiente e a coesão social e territorial, antes de dar início a novas fases de liberalização”. O capítulo mais difícil continua a ser o do financiamento dos serviços de interesse geral. O Parlamento “congratula-se pelo facto de, através do Acórdão Altmark, a jurisprudência europeia ter confirmado que uma compensação financeira ao abrigo das obrigações de serviço público não é da competência da regulamentação em matéria de auxílios estatais, a partir do momento em que preencha quatro condições cumulativas – clareza das obrigações, transparência dos parâmetros de cálculo, proporcionalidade, processos de adjudicação de contratos públicos ou comparação com os custos de uma empresa de referência”; mas constata que persistem incertezas quanto ao problema do método de cálculo dos custos relevantes e ao facto de outros procedimentos públicos transparentes e não discriminatórios não serem mencionados no acórdão. A propósito da legislação complementar e interpretativa do referido acórdão, o Parlamento “convida a Comissão a não recorrer ao n.º 3 do artigo 86 do Tratado para elaborar uma directiva a fim de assegurar a compatibilidade com o n.º 2 do artigo 86”. De facto, com base no n.º 3 do artigo 86, a Comissão pode aplicar directivas ou decisões aos Estados-membros que regulem a matéria do n.º 2, ou seja, a difícil matéria da compatibilidade entre as regras de concorrência e o cumprimento das missões que os Estados confiam aos serviços de interesse geral. Ora, a Comissão Europeia não acatou a recomendação do Parlamento e apresentou em Março um projecto de decisão relativa à aplicação do artigo 86 do tratado aos auxílios estatais, sob a forma de compensação de serviço público, concedidos a certas empresas encarregues da gestão de serviços de interesse económico geral, afastando a proposta do Parlamento para que estas matérias fossem tratadas em co-decisão. Vale ainda a pena mencionar algumas recomendações do Parlamento Europeu no que respeita às regulamentações sectoriais. O Parlamento “congratula-se com a liberalização sectorial até agora conseguida e aprecia o facto de especialmente os consumidores com baixo rendimento terem beneficiado da liberalização, em particular nos sectores da energia e as telecomunicações”. Louva as actividades das autoridades reguladoras nacionais e estimula-as a um reforço de cooperação e integração das disposições regulamentares nacionais a nível europeu. O Parlamento é muito claro quando “desaprova a ideia de subordinar os serviços de abastecimento de água e de tratamento de resíduos a directivas sectoriais de mercado único; entende que, devido às especificidades regionais do sector e à responsabilidade local em matéria de abastecimento de água potável, bem como a outros condicionalismos relativos à água potável, a liberalização dos serviços de abastecimento de água (incluindo o saneamento) não deveria ter lugar”. Assim, o Parlamento não encontra justificação para a criação de um mercado único no sector da água e saneamento, mas acentua que a “União deve continuar a ser inteiramente responsável por estes sectores no que diz respeito às normas de qualidade e de protecção ambiental”. O Livro Branco da Comissão Europeia O Livro Branco foi divulgado pela Comissão Europeia em Maio de 2004, um ano após a publicação do Livro Verde. O debate sobre este último documento contou com cerca de 300 contributos, entre os quais se destacam, para além da mencionada resolução do Parlamento Europeu, pareceres do Comité Económico e Social e do Comité das Regiões. No Livro Branco, a Comissão põe em evidência quer os consensos, quer as diferenças de pontos de vista que acabam por obstar a conclusões com carácter operacional. Há claramente consenso no que respeita à “importância dos serviços de interesse geral enquanto pilar do modelo europeu de sociedade” e quanto às principais características do seu conteúdo, nomeadamente o serviço universal, a continuidade, a qualidade, a acessibilidade financeira assim como a protecção dos utilizadores e consumidores. Note-se que a perspectiva do Parlamento Europeu era mais ambiciosa. Reconhece-se também de forma generalizada o contributo para a Estratégia de Lisboa no que respeita à promoção da competitividade e da coesão social. A responsabilidade de proporcionar serviços de interesse geral pertence, em primeiro lugar, aos Estados-membros e às suas divisões territoriais. Em alguns sectores, essa responsabilidade passou a ser partilhada com as instâncias comunitárias, na medida em que se esboçou um mercado interno. Mas verificou-se no debate sobre o Livro Verde um largo consenso no sentido de não atribuir à Comissão poderes suplementares. Outra tendência manifestada foi no sentido de reservar a entidades nacionais e locais o fornecimento de serviços sempre que haja vantagens de proximidade, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, e desde que não haja “argumentos fortes a favor da definição de um conceito de interesse geral europeu”. A Comissão considera, por seu lado, que é possível dirigir mais claramente as políticas es- 41 42 truturais e os fundos a elas associados para os objectivos e promover a coesão e o acesso universal às redes transeuropeias. Neste ponto, o que se pode lamentar é a insuficiência dos meios orçamentais da União. Continua a salientar-se a necessidade de fazer avaliações mais aprofundadas sobre os serviços sujeitos a regulamentação sectorial, de forma a poder concluir sobre os resultados da liberalização e sobre as especificidades nacionais. Embora a Comissão reconheça que continua a verificar-se incerteza jurídica na área dos serviços de interesse geral, os resultados da consulta pública não são conclusivos sobre a viabilidade, nem sobre a vantagem, de produzir uma directiva de tipo horizontal. Assim, a Comissão prefere propor regulamentações sectoriais quando tal se justifique em termos de interesse geral europeu. Esta posição é provisória e será revista uma vez aprovada a Constituição europeia, pois o novo artigo III-6 prevê uma base jurídica própria. Até lá, a Comissão procederá a um exame detalhado da situação dos serviços de interesse geral e apresentará um relatório antes do final de 2005. Por outro lado, baseada na Direcção-Geral da Concorrência, está a tomar diversas iniciativas que interferem com a matéria dos serviços de interesse geral. As principais iniciativas são: – a proposta de directiva que tem por objectivo eliminar os obstáculos ao desenvolvimento das actividades de serviços no mercado interno europeu7; – a decisão baseada no n.º 3 do artigo 86 relativa aos auxílios de Estado concedidos sob a forma de compensação de serviço público às empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral; – a proposta de alteração da Directiva 80/ 723/CEE relativa à transparência das relações financeiras entre os Estados-membros e as empresas públicas. Conforme já foi referido, é criticável que a Comissão Europeia tenha ignorado a recomendação do Parlamento e tenha apresentado uma proposta de decisão quanto à aplicação do artigo 86, em vez de adoptar um procedimento susceptível de co-decisão. Por outro lado, a Comissão lançou um Livro Verde sobre as Parcerias Público-Privado8 que está sujeito a consulta pública e sobre o qual o CEEP se debruça actualmente. Os serviços sociais e de saúde, embora tenham sido considerados até agora como serviços não económicos e apresentem situações muito diversas nos Estados-membros, acabaram por merecer muitos comentários aquando da consulta pública sobre o Livro Verde. A Comissão considera que é necessário fazer um reconhecimento claro da distinção entre as missões e os instrumentos que deveriam favorecer a modernização desses serviços, num contexto marcado pela evolução das necessidades dos utilizadores. A Comissão pretende apresentar em 2005 uma comunicação sobre os serviços sociais e de saúde na perspectiva do interesse geral. COM (2004) 374. Centro Europeu de Empresas com Participação Pública e das Empresas de Interesse Económico Geral, representado em Portugal pela APOCEEP. 3 COM (2001) 598, de 17 de Outubro. 4 Report on the Commission Communication “Ser- vices of General Interest in Europe” – Reporter Werner Langen – A5-0361/2001 final. 5 COM (2003) 270 final, de 21 de Maio. 6 P5_TA (2004) 0018. 7 COM (2004) 2, de 13 de Janeiro. 8 COM (2004) 327 final, de 30 de Abril. 1 2