MARIA CRISTINA DOS SANTOS PEIXOTO CENÁRIOS DE EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: BORDANDO LINGUAGENS CRIATIVAS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES (AS) Tese apresentada ao Programa de PósGraduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense para a obtenção do título de doutor, sob a orientação da Prof. Dra. Mary Rangel Área de Concentração: Cotidiano Escolar NITERÓI – RJ 2006 2 MARIA CRISTINA DOS SANTOS PEIXOTO CENÁRIOS DE EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: BORDANDO LINGUAGENS CRIATIVAS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES (AS) Tese apresentada ao Programa de PósGraduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense para a obtenção do título de doutor, sob a orientação da Prof. Dra. Mary Rangel Área de Concentração: Cotidiano Escolar BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Professora Doutora Mary Rangel Universidade Federal Fluminense Orientadora _______________________________________________ Professor Doutor António Freire Universidade Fernando Pessoa Porto – Portugal _______________________________________________ Marise Rocha Universidade Federal de São João Del Rey ________________________________________________ José Maurício Alvarez Universidade Federal Fluminense ________________________________________________ Lia Ciomar Faria Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro 3 DEDICATÓRIA Aos jovens, hoje professores, que tiveram a coragem de abrir a “porta” da Oficina: Despertando o Ser, e, comigo, voaram nas asas da criatividade vivendo e convivendo, poeticamente, com as artes, no cotidiano de nossa escola pública. A vocês: Aline de Abreu Fonseca Ayliane de Lima Furtado Ana Flávia Nascimento de Carvalho Ana Paula Silva Adriana Castro Beatriz Ribeiro da Silva Clara Emídio Gomes da Silva Débora Natália Schiff Salomon Fernanda Danielle Silva Gizele da Conceição Silva Izabella Fernanda Silva Marques Josiane Barci João Roberto Casanova de Souza Kelly Guimarães Luciana da Silva Goudinho Madelene de Mattos Maria da Conceição Figueira Maria Oliveira da Costa Mariana Gomes Gouveia Patrícia Ceia Araújo Priscila Locatelli Priscila Silva Fernandes Sandra Albano Suellen Fonseca da Silva 4 AGRADECIMENTOS Solidariedade a gente não agradece, se alegra. Herbert de Souza (Betinho) Tive a oportunidade de vivenciar encontros com pessoas que muito me iluminaram com suas presenças. Dentre todas com quem temos compartilhado de suas formas criativas de inventar a vida, permitindo-nos continuar a largar a nossa visão/escuta existencial e espiritual, quero com o coração e a mente, agradecer especialmente a Walter e Marina, meus pais, os quais, hoje, os sinto com a sensibilidade do meu coração. Ela, mãe-fada, que com a sensibilidade das mãos, a tudo transformava, ensinando-me a alquimia da cozinha e a magia dos bordados... Também a Paulo, esposo paciente, nestas três décadas de comunhão de nossas vidas. Luciene, Ana Carolina, Felipe, Frederico, filhos dedicados, que sempre torceram pela minha trajetória como educadora. Graziela, nora dedicada, que em muitos momentos, salvou-me das tiranias do “velho” computador. Milena, neta querida, que já ensaia os seus passos nas artes. Maria, amiga fiel, com a arte do açúcar e do sal da terra nos alimenta diariamente. Mary Rangel, minha orientadora que tem a capacidade de acreditar nas potencialidades de cada um dos seus educandos. Balina Bello Lima, que na década de 1980 instigou-me a trançar os fios das artes à minha prática pedagógica. Darci Cardoso e Maria Alice Baptista, irmãos no trabalho voluntário, com quem aprendi as “artes de fazer” e, juntos, temos sido “arteiros”. Rosane Lima Palhano e Lúcia Moisés, amigas e educadoras que, competentemente, foram artesãs nesta tessitura, enlaçando fios, cortando-os, dando nós e pontos cheios, quando necessário. 5 Aos professores doutores: António Freire, Luigi Bordin, José Maurício Alvarez, Lia Faria, Carmen Perez, que solidária e competentemente aceitaram o convite de interlocução com esta tese. Aqueles que os olhos não vêem, mas que o coração sente... A luz divina do meu eu interior. Ao Cristo, que de braços abertos, me fortalece. A todos, o meu eterno carinho. 6 RESUMO Esta tese pretende mostrar uma pesquisa qualitativa com a arte, através de uma abordagem integral, em diferentes linguagens expressivas. Foi realizada com a participação de jovens, do Curso de Formação de Professores, no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, Niterói, RJ, quando se construíram ambiências, em uma Oficina de Criação. A pesquisa pretendeu a ampliação da consciência dos educandos, ao incluir, no processo de construção do conhecimento, o corpo, a imaginação, a intuição, o sonho, o lúdico e o prazer. O educando foi instigado a expressar, através das imagens - corporal, cênica, plástica, musical - e da palavra, a sua subjetividade, através das categorias: auto-conhecimento, criatividade e a solidariedade. Como suporte teórico buscou-se as contribuições de Morin, Baumman, Sennet, entre outros, e, sobre o processo de criação, Ostrower, Read, Teixeira, Mendes, Vygotsky - com sua visão sócio-histórica. A metodologia orientou-se pela análise de conteúdo – Bardin, Trivinös - além das pistas oferecidas por Certeau e Ginzburg. Buscaram-se cenários de “arteducação” comprometidos com uma formação mais plena do educador. PALAVRAS-CHAVES: educação pela arte - múltiplas linguagens - formação de professores. 7 ABSTRACT This thesis - Sceneries of education through art: composing creative languages in teachers´ education - intends to show a qualitative research with art through a complete approach in different meaningful languages. The work was conducted with students of Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho for teachers’ education course in the town of Niterói, state of Rio de Janeiro. Different kinds of environment were formed in our art workshop. The research intended to enlarge the students´ consciousness, since it includes the body, imagination, intuition, dream, playful activities and pleasure in the process of building knowledge. The students were encouraged to express their subjectivity through corporal, scenic, plastic, musical, images, and through words. Self-knowledge, solidarity, and creativity were encouraged to be achieved. The theorical background was based upon books and words of Morin, Baumman, Sennet, among others, and about the process of creation. The work was based upon Ostrower, Read, Teixeira, Mendes and Vygotsky with his social historical view. The methodology was conducted through analysis of content – Bardin, Trivinõs, besides teachings of Certeau and Ginzburg. Sceneries of “arteducation” engaged with a more complete form of teachers´ education were searched for. Key- Words: education through art – multiple languages – teachers’ education 8 Résumé (Sommaire) Cette thèse prétend montrer une recherche qualificative avec l’art, à travers d’un regard integral, en utilisant des différentes langages expressives. Elle a été realizée avec la participation de jeunnes du Cours de Formation de Professeurs, à l’Institut de L’Education Professeur Ismael Coutinho, à Niterói – Rio de Janeiro, quand il a été construit « des ambiances » dans un Atelier de Création. La recherche a pretendue l’élargissement de la conscience des étudiants (élèves), en ajoutant, dans le process de constrution de la connaissance, du corps, de l’imagination, de l’intuition, du rève, du ludique et du plaisir. L’élève (L’etudiant) a été incité à s’exprimer, à travers les images – corporelle, scénique, plastique, musicale – et la parole, sa subjectivité, par des categories: l’autoconnaissance, la créativité et la solidarité. Comme support thèorique on a cherché les contribuitions de Morin, Baumman, Sennet, parmi d’autres; et, sur le processus de création, Ostrower, Read, Teixeira, Mendes, Vygotsky – avec sa vision socio-historique. La méthodologie a été orientée par l’analyse du contenu – Bardin, Trivinös – au delà des pistes offertées par Certeau et Ginzurg. On a cherché des scénarios de « l’art-education » engagés dans une formation plus complete de l’educateur. LES MOTS-CLÉS: Education par l’art - Plusieurs langages -Formation de professeurs 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO : PREPARANDO A PALETA PARA ESTA TESSITURA/PINTURA: A PROPOSTA E OS OBJETIVOS _______________________________12 1ª CENA: BUSCANDO CAMINHOS ONDE BATE MAIS FORTE O CORAÇÃO________________________________________20 2 ª CENA: DEFININDO CORES NA PALETA: EDUCAÇÃO, ARTE E VIVÊNCIA/EXPERIÊNCIA__________________________38 3 ª CENA: NA TELA, AS CORES QUE NOS ENREDAM : DAS CRISES, AOS FIOS DA COMPLEXIDADE_____________________60 4 ª CENA: NAS MÃOS A PALETA. OS PÉS NO CHÃO DA ESCOLA ________________________________________________ 99 5ª CENA: COLORINDO A PALETA COM OS EDUCADORES ARTISTAS_______________________________________111 6ª CENA: AS CORES NA PALETA VÃO SE TOCANDO, ENVOLVENDO-SE UMAS AS OUTRAS, DEFININDO NOVOS TONS: A METODOLOGIA__________________144 7ª CENA: AS TINTAS COLORIDAS DAS AMBIÊNCIAS________ 157 8ª CENA:CORES E FIOS NA TRAMA DA VIDA: POR UMA CONCLUSÃO ____________________________________294 9ª CENA: LIMPANDO A PALETA PARA NOVAS E COLORIDAS CRIAÇÕES______________________________________307 REFERÊNCIAS__________________________________________308 10 ANEXOS______________________________________________318 1- Imagens_________________________________________ 319 2- Proposta Pedagógica – Objetivos______________________322 3- Questionários_____________________________________327 11 INTRODUÇÃO: PREPARANDO A PALETA PARA ESTA TESSITURA E PINTURA: A PROPOSTA E OS OBJETIVOS Oficina de Criação: Despertando o Ser – Educandas do Curso de Formação de Professores - IEPIC – Niterói – RJ – 2004 Proposta de vivência: Tecelagem – após contação da história: A moça tecelã - Maria Colasanti 12 Proposta de vivência: Modelagem coletiva em argila IEPIC - 2003 “Toda boa história é, está claro, uma imagem e uma idéia, e, quanto mais elas estiverem entremeadas melhor terá sido a solução do problema.” Henry James, Guy de Maupassant1. Estas imagens ilustram o objeto da presente pesquisa – Cenários de Educação através da arte: bordando linguagens criativas na formação de educadores (as). Tais imagens são capazes de narrar histórias vividas, representando símbolos e mensagens, sobre momentos de um fazer pedagógico comprometido com o processo de criação de jovens, futuros (as) educadores (as), realizado no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho – Niterói, RJ. Minha atuação como educadora e formadora de professores há trinta anos, autorizame, neste momento histórico, marcado por profundas contradições, pela fragmentação do 1 Epígrafe contida em: MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.16. 13 conhecimento e do próprio ser humano, a penetrar nos complexos embates teórico-práticos vivenciados na formação de professores. Tal realidade leva-me a perceber que a ciência tem se baseado na própria exclusão do ser humano (MORIN,1999), somando-se à exclusão do corpo, do afeto, ao desconectar o pensamento do sentimento, a objetividade da subjetividade humana no processo de aprendizagem. Mergulhada nessas reflexões, constato o lugar periférico da arte - educação na instituição-escola e a necessidade de articular a arte aos meus fazeres pedagógicos, compreendendo a sua importância - um dispositivo para uma aprendizagem vivencial e criativa de si mesma e do outro. Nesta perspectiva, entendo que, mais do que o empobrecimento da vivência da arte no cotidiano escolar, é o olhar simplificador/redutor sobre o processo de criação, que não tem colaborado com o rompimento da fragmentação existente, sem viabilizar uma aprendizagem cheia de sentidos e significados. A atualidade exige uma formação de professores menos fragmentada, que vá em direção à inteireza e à complexidade do ser humano, permitindo romper com as polaridades que, há séculos, foram impostas pela racionalidade, ainda presente, e a necessidade de se pensar a escola como um espaço potencial de criação de saberes humanos – sociais, éticos, lógicos, corpóreos, estéticos e culturais. Motivada por estudos teóricos que refletem sobre mudanças paradigmáticas e sobre a arte, e, portanto, comprometida com práticas pedagógicas criativas no cotidiano no/do espaço/tempo, que se propõe a formar educadores, tenho trabalhado no sentido de que a arte seja um instrumento educativo, justificando a relevância da pesquisa cujos seguintes objetivos a nortearão: • Elaborar uma Proposta Pedagógica de vivências em arte, em uma visão sóciohistórica, através da Oficina de criação, tendo o cotidiano do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho – Niterói, RJ, como locus da investigação. 14 • Acompanhar o processo de formação de educadores, que se compõem de jovens, através das vivências em arte, em suas múltiplas linguagens, através de uma abordagem integral de arte. • Verificar de que maneira a vivência criativa através de diferentes formas de linguagens / imagens possibilitará a constituição dos sujeitos, servindo como elementos mediadores na formação do ser humano, em sua relação com o outro. • Investigar, se as experiências/ambiências em arte são capazes de facilitar uma visão mais complexa e consciente dos jovens sobre si mesmos, tendo em vista o autoconhecimento, como uma das aprendizagens fundamentais, uma vez que também é conhecimento. Para que estes objetivos tenham o alcance desejado, trago a 1ª Cena: Buscando caminhos onde bate mais forte o coração2, quando as primeiras cores da paleta de minha trajetória foram capazes de tonalizar indagações/ inquietações que se transformaram em práticas pedagógicas criativas – alicerces das minhas artes de fazer. A 2ª Cena: Definindo cores na paleta: Educação, Arte e Vivência/Experiência, teço considerações sobre esses conceitos, sem tratá-los de uma forma fechada e acabada. A partir daí, esclareço na 3ª Cena: Na tela, as cores que nos enredam: das crises, aos fios da complexidade, através da crise multidimensional que nos acomete, a crise ético-político que vem atingindo, entre outros, as concepções de Democracia e Cidadania, influenciando o cotidiano na formação de educadores (as). Nessa cena, incluo a análise feita por Edgar Morin sobre o paradigma da Complexidade, na tentativa de clarificar a crise da razão hoje instalada, justificando a necessidade de novas práticas pedagógicas comprometidas com uma razão que se operacionalize juntamente com o sensível do ser humano. Prosseguindo esta teia /construção, arriscarei desatar alguns nós, quando novas cores/fios, pontos “cheios”, se re-trançam, fortalecendo a tecelagem/pintura desenhada na 4ª Cena: Nas mãos, a paleta. Os pés, no chão da escola... Nessa etapa do estudo, soma-se o olhar sobre o cotidiano escolar na formação de educadores, espaço cotidiano de limitações e possibilidades. Já na 5ª Cena: Colorindo a paleta com teorias de educadores artistas, incluo os fios da “prata da casa”: Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiro Mendes – suas artes 2 Recorri ao poeta-cantor Gonzaguinha em Caminhos do Coração. 15 de dizer / fazer. Nesse momento, dedico o meu olhar de como a arte, enquanto expressão mais forte da originalidade do ser, encontra-se situada/contextualizada através das suas contribuições teóricas e vivenciais, além da tentativa de revisitar as décadas de 1960 e 1970, que representam anos importantes da História da Educação Brasileira, precisando ser recuperados. Dialogar com esses dois brasileiros, filósofos-educadores, não representa resgatá-los à presença para memorizar o passado, mas, trazer essas presenças capazes de gerar intervenções a respeito do nosso objeto de estudo que é a educação pela arte no curso de formação de professores (as). Tais presenças vêm reforçar, ainda mais, a crença que “a prata da casa” sempre poderá nos dessedentar com novas respostas e frutos saborosos! A partir de suas contribuições teóricas, ressalto: quais as possíveis pistas/saídas na perspectiva histórica escolar, para o ensino de arte, no momento atual? Com a idéia, As cores na paleta vão se tocando, envolvendo-se umas as outras, definindo novos tons, traço a 6ª Cena, quando desenho um caminho, através da opção metodológica da pesquisa, sem esquecer que, muitas vezes, a vivência com arte, não permitia uma solução pré-programada, legitimando que todo trabalho tem uma realidade complexa, de acordo com Morin (2000, p.194). A opção metodológica encontra ressonâncias nas reflexões de Bardin (1977), Triviños (1990) e Carlo Ginzburg (1989). Este último, com o paradigma indiciário, vem ensinar como apurar os nossos olhares. Nos vários autores cujos pensamentos se inscrevem na recorrência teórica desta pesquisa, observo a convergência de perspectivas. Verifico, mais uma vez, a dimensão do alcance e a pluralidade da arte. A 7ª Cena: As tintas coloridas das ambiências... as multicoloridas artes de fazer de educadores, esclareço sobre as diferentes ambiências que foram realizadas, os seus respectivos objetivos, os diferentes tipos de linguagens vivenciadas e os materiais expressivos, além das análises das produções criativas dos participantes, através das imagens 16 plásticas produzidas, dos seus escritos e das suas falas, puxando e entrelaçando fios/nós, que se cruzaram com os aportes teóricos sugeridos. Compartilho as narrativas escritas nos diários de bordo dos educandos; narrativas/diálogos sobre observações feitas, entrelaçando-as às imagens tecidas durante as ambiências. Assim, os fios das categorias – auto-conhecimento, criatividade, solidariedade – tingiram esta tessitura. Foram pontos e nós convidando a laçadas que deram forma, cor e movimento à pesquisa. Como culminância das vivências, analiso a construção coletiva de uma multicolorida tapeçaria. Dessa forma, investiguei/narrei/dialoguei sobre como eles foram construindo e expressando seus mundos, através das formas de expressividades criadas pelos jovens, suas percepções, seus processos de conhecer, de representar e de trabalhar seu auto-conhecimento, sua criatividade, através da sensibilidade, e da construção da solidariedade. Tudo isso constitui uma tentativa de verificar o resgate da arte, da vivência criadora, como forma geradora de educação no curso de formação de professores. Sem esquecer que os olhares e escutas foram se entrelaçando às vozes e aos diálogos instigantes com teóricos da arte. Na 8ª Cena: Cores e fios na trama da vida: por uma conclusão provisória, arrematamos esta tese, abrindo-a para novas indagações. Na 9ª Cena: Limpando a paleta para novas e coloridas criações... deixo um convite para que cada leitor registre as suas impressões. Na Introdução e na 1ª Cena desses cenários, decidi, propositalmente, a escrita na primeira pessoa do singular, revelando as trajetórias de uma subjetividade que, apesar de expressar a busca de uma identidade profissional, ética e solidária, não se constituiu una, mas profundamente marcada pelo entrelaçamento de uma polifonia de vozes, cores, representando muitos Outros que compartilharam e compartilham dessa tessitura. Assim, a partir da 2ª Cena, o Nós, surge como uma presença certa do outro e de muitos outros, no compartilhar de pensamentos/idéias, alimentados por sentimentos/emoções. 17 A intenção de escrever - lembrando que a escrita está relacionada a tecer, a fiar e a bordar - este estudo como se fosse um tecido, uma tessitura de fios coloridos que se enlaçam, entrelaçando-se em diferentes tipos de pontos e nós, vem da marca que trago na alma - a minha condição de ser mulher e mãe. Fico com Bárbara Koltuv (1990) em sua obra - A Tecelã - “Uma mulher é uma experiência e uma energia feminina que tece, que é tecida, que é desfeita e que se movimenta” (p.113). Vejo a arte como a presença do feminino no mundo. Enfim, caminhar de mãos dadas com a arte não é uma forma de resgatar esta energia feminina que a dominância patriarcal tenta banir? Ao arrematar esta Introdução, sinto que a opção deste tecer através de Cenas, vem da própria palavra cotidiano, que construiu sua visibilidade para o mundo contemporâneo, ao entrar em cena revestida pelo épico, por máscaras, por vestimentas e por cenários. As cenas mostram, também, a necessidade em dar suavidade e oxigênio à construção, permitindo um caráter mais dinâmico, de um tecido/construção que busca se fazer de forma criativa, com musicalidade e cheia de cores, apesar de, muitas vezes, apresentar-se de maneira linear. Em cada abertura da cena algo pode nos surpreender, pois, afinal, pesquiso sobre a arte, sobre o cotidiano, sobre a coragem de criar. Assim, voltando à epígrafe que iniciou esta Introdução, as Cenas nos sugerem que algo será narrado e que imagens surgirão, pois: “quanto mais elas estiverem entremeadas melhor terá sido a solução do problema” (MANGUEL, 2001, p.16). 18 1ª CENA: BUSCANDO CAMINHOS ONDE BATE MAIS FORTE O CORAÇÃO “Todo conhecimento começa pela curiosidade” (Paulo Freire) A elaboração de uma tese é sempre um exercício de busca de “verdades” que, em momentos de crises de certezas, nos requer “des-construir” muitos esquemas de pensamentos que nos enquadraram em parâmetros homogeneizadores, limitando-nos à visão sobre o “bom ou mau”, o “bem ou mal”, o “certo ou errado”, padrões de pensamento, de sentimentos e de ações, que vêm cristalizando a nossa mente dualista, frente às questões que nos situam no mundo. Com que instrumentais é possível romper/transgredir esse pensar/sentir e seus conseqüentes fazeres? Somam-se a essas incertezas momentos de tensão que ocorrem no ato de escrituras. Palavras se desarrumam na mente e no papel, fazendo-me decidir por alguns caminhos, obrigando-me a abrir mão de outros que, talvez, também, fossem interessantes. Mas, como busco os caminhos onde bate mais forte o coração, acredito que minhas perdas serão compensadas pela curiosidade, defendida por Freire e pelo cotidiano que alimenta os saberes e as artes de fazer. Voltando à epígrafe escolhida para iniciar o diálogo, ela me inspira a necessidade da curiosidade, como compromisso primeiro em toda a construção do conhecimento. Então, tomada pela curiosidade freireana, lanço os meus primeiros desafios na realização deste trabalho: 19 • Como dar conta deste estudo teórico-prático sem perder a sensibilidade e simplicidade que caracteriza o meu fazer/ ser? Entendo que ser educadora é nunca perder a sensibilidade – cognitiva e a simplicidade, sem deixar de viver a complexidade, que o saber/ fazer pedagógicos exigem, para que no “miudinho” do cotidiano escolar, saiba olhar fundo no olho de meninos, meninas, jovens, homens, mulheres, idosos, idosas e auscultar-lhes o que lhes falta, na tentativa de que, sabendo ver a si mesmos, também sejam capazes de ver o outro, enquanto alguém que pensa, mas também sente, emociona-se, que tem muitas alegrias e, também, muitas dores. Para mim, a falta não é somente a falta do pão (fome material), mas, acima de tudo, a falta (fome) da beleza que existe na busca do saber de si, do outro e de muitos outros. É bom lembrar que a palavra - Homem – significa humus, terra fértil. Também sinto que ser educador é fazer com que palavras que estejam dormindo nos educandos acordem em busca de vida, vida mais plena e mais digna. • Como seguir os rituais acadêmicos na área do cotidiano que, por sua complexidade, apresentam-se unos, múltiplos, dispersos, exigindo, muitas vezes, a ruptura com a linearidade, ainda presente nas pesquisas? Não estamos vivendo uma crise da razão? • Como não ficar presa às “verdades” que me constituem sobre a Educação pela arte, de modo a facilitar com que portas/janelas se abram para receber novos ventos? Aprofundando as minhas inquietações, ainda em companhia de Freire (1985a), que insiste em colocar a Pedagogia da Pergunta como a única forma de Educação Criativa, capaz de estimular a capacidade humana de assombrar-se e de resolver seus problemas existenciais (p.52), arrisco-me a tomar novamente a palavra e argumento, indagando: • Se o conhecimento que priorizo neste estudo teórico-prático é sobre a arte, o que ela significa para o espaço escolar de formação de professores e qual o lugar da arte, enquanto conhecimento/ linguagem / expressão? 20 • Como preparar educandos, futuros educadores, para os grandes enfrentamentos do milênio com um instrumental baseado praticamente em referenciais cognitivos, se a realidade presente exige que o processo educativo e o educando sejam vistos em sua inteireza? • Como se apropriar de um conhecimento pela via exclusiva do ponto de vista racional? • O momento presente não estaria exigindo o aprofundamento de metodologias mais integradoras? • Sobre a curiosidade, qual o seu papel na sociedade capitalista, caracterizada, entre tantas outras questões, pela globalização da produção cultural? Assim, mergulhada3 em muitas dúvidas e algumas certezas, afinal preciso encontrar caminhos, ponho-me a problematizar a respeito da Educação pela arte no processo de formação de professores, entendendo que um problema de pesquisa exige desconstruções e novos olhares em relação a conceitos e a teorias. Acrescento, com a ajuda do paradigma da complexidade, que se estamos mergulhados em um mar de incertezas, as nossas interrogações não têm um único trajeto mais correto, “é preciso começar por todos os lados ao mesmo tempo. Toda grande criação, na área da vida, parece-nos logicamente impossível antes e às vezes até depois do seu aparecimento.” (MORIN,1999, p.26). Considerando que é preciso começar por todos os lados ao mesmo tempo e movida por esta intenção/sentimento, faço, neste momento, a opção em relembrar os meus primeiros contatos com a arte. Lembro-me que desde os meus cinco anos (minha memória não consegue capturar o período anterior), sempre vivi com as artes. Em tudo, buscava trazer movimento: na exploração do meu corpo, nas brincadeiras de amarelinha, nas árvores que teimosamente tentava subir, nos desenhos coloridos que minhas mãos arriscavam traçar. Meu corpo bailava e a vida pulsava intensamente. 3 Tomamos emprestado a Lefèvre (1983), a palavra “mergulhar”, no sentido que, mergulhar no cotidiano implica numa mudança de postura necessária a um projeto bem mais ambicioso, que é o de mudar a vida. 21 Um dia, apesar do corpo já estar um pouco aprisionado, espreitei, fascinada, as paredes coloridas e cheias de movimento do Centro Educacional de Niterói, uma Fundação, cujos ideais se materializavam na figura sensível, competente e ímpar da Educadora Myrthes De Luca Wenzel. Naquele momento, nascia em mim, a certeza que somente as cores, o movimento pulsante poderiam dar-me sentido à Vida. Sem condições financeiras de estudar nessa Instituição, tive que deixar, de um lado, meus sonhos e desejos coloridos, e do outro, vi-me enclausurada em grades curriculares, uniformes, punições. Os traços/linhas dos meus cadernos, que esperavam os pincéis e tintas coloridas, por fim, terminavam, inevitavelmente, no preto e branco das linhas dos meus inúmeros cadernos. Era a Vida que tentava se fazer congelada/ paralisada!... As lindas caixas de lápis de cor, cujos cheiros/aromas, ainda hoje, o meu corpo respira, ficavam na pasta grávida de cadernos/ livros, ansiando para que, sobrando algum tempo, pudessem trazer vida/ cor às alvas linhas traçadas/ trançadas. Afinal, tentavam me fazer esquecer que era alguém criativa! Mas, como diz Certeau (1994) existem táticas e astúcias dos sujeitos, chamados praticantes, que vão na contramão do hegemônico, e, na impossibilidade de viver as artes plásticas - arriscava-me criativamente na arte da poesia. Quando me fiz professora, no miudinho do cotidiano sentido/ vertido de minha prática, a arte era minha cúmplice. Tornei-me uma “arteira4”, tecelã de mim mesma, quando, silenciosa e delicadamente, ia alinhavando minhas práticas, com pontos de “alinhavo”, pontos “cheios”, pontos “paris”, sem faltar os pontos “de trás”, e, tonalizando com cores brilhantes e movimento o meu fazer criativo que, amorosamente, foi se sacralizando no meu encontro com o outro. Era a arte banhando até as entranhas de mim mesma, como água de banho, água de cheiro acariciando e tomando conta de todo o meu ser. 4 Considero-me uma “arteira”, no sentido de que fiz alguns cursos em Arte. Diplomei-me em piano, freqüentei aulas de ballet clássico, dança flamenga, dança do vente, participei de oficina de cerâmica, oficina de pintura em tecido, aulas de canto, desenho e, há nove anos atuo, nas artes plásticas, participando de exposições (RJ e SP). 22 Assim, a arte, com a minha permissão, junto a tantos medos, muitas incertezas e outras coragens, foi saindo pelos meus poros, influenciando, profundamente, as minhas práticas pedagógicas cheias de constantes interrogações. Como educadora, trilhando trajetórias, muitas vezes, tão adversas, áridas, puramente racionais, destituídas de sentidos era impossível caminhar sem a arte, pois lhes faltavam a própria vida, faltava “alma”, aquele “algo” que nos afeta, emociona e que não se esquece porque pulsa. A minha inquietação quanto à força educativa da arte no processo de aprendizagem me fez entrar em contato com a Ampla Didática5, quando ousei construir uma Didática para a Educação de Valores, no Ensino Fundamental, alicerçada nos suportes teóricos defendidos por Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. Nesse momento, já defendia a necessidade da vivência e da criação, no processo de apropriação de um saber com sabor, que veio fundamentar teoricamente a minha Dissertação de Mestrado – “Educação Moral: um desafio...” (PEIXOTO, l984). Para superação das problemáticas cotidianas, precisava colocar-me como verdadeira alquimista, buscando, acima de tudo, acreditar nas próprias teorias, realimentando-as na prática pedagógica, sempre com o olhar atento e uma escuta sensível, articulando-a às teorias, numa trajetória cheia de idas e vindas, “fazendo e desfazendo”. Na tentativa de diminuir as tensões vividas, recuperando a mim mesma através de decisões tomadas na prática pedagógica, e, conseqüentemente, na relação professora /educandos, fui buscando soluções múltiplas, abrindo espaços mais fortalecidos, para que a arte pudesse conviver mais de perto nas aulas/encontros pedagógicos, indo em busca de novas linguagens expressivas da arte, quando, por meio de vivências oportunizávamos com que a criação, aliadas à paixão de conhecer, de sentir/saborear o saber, os educandos pudessem construir conhecimentos mais “coloridos” e comprometidos com uma aprendizagem significativa, e, conseqüentemente, menos fragmentada. 5 A Ampla Didática foi defendida pela professora Balina Bello Lima, em sua Tese de Livre Docência, pela Universidade Federal Fluminense. Propõe uma Didática com o “recheio” da dimensão criativa. 23 Assim, continuávamos a inventar o cotidiano de minhas práticas, como “arteira” do fazer, no dizer de Certeau (1994), ainda, através de táticas e astúcias sutis, reconfigurando, silenciosamente, saberes e resistindo à conformação imposta. Era através desse caminhar, quando se somavam medo, coragem e ousadia, que percebia a necessidade de buscar novas abordagens que alicerçassem a ressignificação do fazer, propiciando que os educandos, nas salas de aula, sentissem-se inteiros, com olhos interessados nas propostas oferecidas e na construção de conceitos. Essa foi especialmente a minha prática como professora de História, quando conteúdos eram transformados em vivências prazerosas, resgatando um ensino de História “como um carro alegre cheio de um povo contente”, no dizer do poeta (Chico Buarque)6. Quantas vezes, as aulas de História transcendiam os rituais de textos, falas, imagens, cores, sons e, como um verdadeiro processo alquímico, misturavam-se a pedaços de cravos, canelas, noz moscada, pimenta, que com seus cheiros/aromas fortes e quentes, convidavam cada um (a) a viver com todos os seus sentidos, ou melhor, com o seu corpo inteiro, um pouco de um período histórico, caracterizado pelo comércio das “especiarias”. A este processo fui chamando de uma prática vivencial, que irei, posteriormente, definir. Tornar conteúdos em vivências que oportunizassem a cada educando entrar em contato mais profundo com o seu processo criador, foi transformando o meu saber/fazer, ou seja, as minhas aulas em “oficinas perceptivas”, na qual as riquezas das elaborações expressivas e imaginativas dos educandos interagem com os encaminhamentos oferecidos pelo professor. Volto, agora, a narrar um outro momento, quando realizei uma vivência com alunos do 2º ciclo do Ensino Fundamental, na Escola Municipal Francisco Portugal Neves (Niterói–RJ). Nessa oportunidade, junto aos educandos, construímos conceitos específicos sobre o “Descobrimento do Brasil”. 6 Música do cubano Pablo Milanes, versão Chico Buarque de Hollanda, 1978. 24 Após uma conversa diagnóstica sobre os conceitos que já tinham sido formulados sobre o “Descobrimento”, lembrando que eram alunos de 10 a 12 anos, entramos em contato com as imagens produzidas pelo filme “1492 – A conquista do Paraíso”7. Assistimos uma parte do mesmo, para que percebessem o momento histórico da Europa, ao final do século XV, a viagem e a tecnologia da época, o que possibilitou a construção das caravelas, a bússola, o quadrante, além da reflexão do papel de Colombo e dos habitantes da América, que viviam tempos históricos diferentes. Partimos, então, para uma reflexão sobre Portugal, Cabral, as naus e os índios brasileiros. Em momento posterior, vivenciamos uma prática de harmonização pessoal, através da respiração e um relaxamento, com música de fundo, ouvimos Vangelis, da trilha sonora do próprio filme, para que pudessem entrar no túnel do tempo e vivenciar, por meio da imaginação, esse tempo/espaço histórico, ou seja, a chegada dos portugueses nas terras brasileiras. O relaxamento proporcionou que os educandos escolhessem o personagem com o qual se identificavam e que gostariam de expressar. Fomos aos livros para que pudessem observar as ilustrações dos mesmos, através de diversos autores e fontes, incluindo figuras ilustrativas da época. Esses momentos foram coroados de ansiedade, intensa participação, proporcionando espaço para que verdadeiramente sentissem ser os sujeitos dessa história. Convidados a esse tipo de vivência, os educandos passaram por momentos de trocas de idéias, de indecisões e desconfianças, características dessa fase da vida. Mas, ao mesmo tempo, percebíamos olhos que brilhavam, mãos que tocavam num gesto de escolha, sorrisos que se abriam ao descobrirem o que gostariam de representar. Chegamos a uma outra etapa, um pequeno trabalho corporal, e posteriormente, cada um foi fotografado individualmente, quando orientei que o importante era a expressão do 7 Filme de Ridley Scott, 1999, USA. 25 rosto, o olhar, o sorriso ou a seriedade, dependendo de como gostaria de trabalhar o seu personagem escolhido. Nesse momento, a expectativa diante da possibilidade de serem fotografados, do identificar-se, algo tão importante para o resgate de nossa identidade histórica. Após a revelação das fotos e da alegria de mirar-se, levantamos a proposta de que recortassem o seu rosto e então, montassem cenas individuais ou coletivas, que retratassem este momento histórico do “Descobrimento”, a partir da opção que já tinham feito do seu personagem. Esta fase da proposta desdobrou-se em algumas aulas e foram coroadas de muito prazer e alegria, quando mãos se colocaram a recortar, a colar, a criar formas, tudo isso recheado com muitas cores e decisões que precisavam ser tomadas. Com a minha escuta e observação atentas, pude perceber a dificuldade de uma aluna em recortar o seu rosto, recortando-o tanto que, estragou-o, tendo que substituí-lo por um outro, 3 x 4 e em preto e branco. Não era nosso objetivo aprofundar as causas de sua dificuldade, o fato de vivenciá-la, por si só, já representava uma oportunidade para seu autoconhecimento, o que nos leva a refletir sobre o quanto de conteúdos internos devem ter vindo à tona nessa vivência, as suas questões mais íntimas de identificação, de auto-estima, e a oportunidade de transcendê-la, por não ter se omitido de participar, trazendo de casa, um outro retrato seu. A aprendizagem teórico-vivencial sugerida nesta proposta, não excluiu a dialética existente entre a ação – reflexão – ação, porém ampliou o conceito de “práxis”, que apresenta uma ação social e racional, para abrir-se às vivências, enquanto uma dimensão profundamente subjetiva, uma vez que busca caminhos que levam á transformação interior, sem perder a dimensão do coletivo. O processo de criatividade e imaginação, que exige processos mentais e afetivos, transbordava entre os educandos. Uma jovem, ao recortar o seu rosto, igualmente destacou o de uma colega que também tinha saído em sua foto e, brilhantemente, aproveitou-a, para que 26 na sua representação plástica fosse ela sua filha, uma indiazinha presa no suporte que usam os índios para carregarem seus filhos nas costas (Anexo 1). São representações que extrapolam o texto e o contexto estudado! São conteúdos simbólicos, verdadeiros jornais vivos de nosso inconsciente, que, ao serem construídos, fazem descobrir suas próprias potencialidades. São vontades interiores que se manifestam como formas, gerando a produção da arte. E, assim, as mãos foram construindo, desenhando, colorindo, tecendo suas histórias, até chegarmos à elaboração do texto escrito, quando falas transformavam-se em textos, surgindo a expressão do vivido, de conceitos já construídos e outros a serem forjados, refletindo um pouco do cotidiano de confrontos entre índios, donos da terra, do colonizador português, mesclado por suas próprias vivências significativas, em que alegrias e dores buscam canais para expressarem-se. A vivência oportunizou o encontro com um saber histórico cheio de sabor, pois, um saber que se fez amoroso, no espaço do sentir consigo e com o outro, um espaço que incluiu a subjetividade, o corpo, o coração, a razão, a imaginação, a intuição e a criatividade. Além disso, foi possível, através da conexão com a sua fonte criadora interior, buscar, ressignificar seu processo de aprender, em toda sua inteireza, uma vez que, ao criar, se dá forma, e, ao se dar forma, a vida adquire sentido. Tocada por tais idéias e sentimentos, volto-me aos debates sobre Formação - Profissão docente na atualidade, que se têm revelado através de profundas contradições sobre os caminhos/descaminhos traçados, não somente pela legislação vigente, mas, sobretudo, por práticas repetidoras/mecanizadas/descoloridas que se forjam no “chão da escola”, pela descaracterização sofrida no trabalho docente, mobilizando-nos a lançar um olhar crítico/criativo e uma escuta sensível às problemáticas do cotidiano escolar, no qual me encontro imersa. O problema principal, a que me dedico nesta pesquisa, surge das constatações vividas nas escolas públicas e privadas – Ensino Fundamental e Médio – como docente, como excoordenadora pedagógica da área de História, como ex-diretora de uma Escola Municipal de 27 Niterói (RJ), e, nos últimos oito anos, como docente no Curso de Formação de Professores (Ensino Médio) e no Curso Normal Superior, além da participação como educadora8 em um trabalho comunitário. Com o olhar atento nestes espaços de intervenções, por onde, cotidianamente “farejo”, fui percebendo, muitas vezes, no Curso de formação de professores, a presença da crise multidimensional que têm refletido na simplificação/fragmentação da realidade escolar. Simplificação esta imposta por uma racionalidade fechada, originando práticas desarticuladas na formação integral do futuro educador, além, dos seus fazeres encontrarem-se engessados em “grades curriculares”. Sobre estas questões, Alves (2000) sustenta que a inadequação da prática pedagógica não tem garantido qualidade no fazer pedagógico, o que fica caracterizado, por exemplo, na desmotivação de professores e educandos que não vêem perspectivas em suas produções. A realidade do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, no qual atuo junto ao Curso de Formação de Professores, reflete o quadro acima. No segundo ano pedagógico, a “grade curricular“, que pretende, como o próprio nome diz, aprisionar os saberes, reduzindoos, é composta de treze disciplinas que não se articulam, sem compor uma orquestra criativa. Alves e Garcia (2000, p.84-85), atravessando as fronteiras da fragmentação do conhecimento, registram que: É comum ouvir alunos do curso de formação de professores afirmarem não saber o que fazer com a filosofia, a sociologia, a psicologia, a antropologia ou a economia que estudaram nos primeiros períodos do curso. Para eles são fragmentos de um conhecimento desarticulado que não lhes parece ter qualquer sentido, pois não os ajuda a compreender o real. 3 Participo há 15 anos, como educadora e facilitadora de Oficinas de Criação, em uma Comunidade formada por uma classe social desfavorecida, às margens da lagoa de Piratininga (Niterói /RJ). Iniciamos este trabalho junta a um pequeno grupo de amigos, quando às sombras de um pé de jamelão, encontrávamos com crianças, jovens, adultos e avós, para aprendermos a tocar carinhosamente a mãe Terra através da argila e, com outros materiais, expressar idéias e emoções. 28 Esta questão provoca um distanciamento no que se refere aos reais objetivos da formação do professor, do Ensino Fundamental, quando se percebe que o espaço da subjetividade, da escuta e da fala que poderiam trazer o sentido e a busca de novos caminhos criativos em sua formação, encontram-se acorrentado nas “grades” orientadoras dos currículos. Dessa forma, a escola tem se apresentado, quase sempre, de forma massificadora, adestrando educandos com os seus corpos geralmente imobilizados em cadeiras enfileiradas, olhando para a “nuca” do outro, escutando falar de conteúdos que não podem ver, ouvir, pegar, cheirar, degustar, amar ou odiar. Presenciamos uma prática pedagógica que exclui o corpo na aprendizagem, o afeto, a emoção, a imaginação, enfim, exclui o significado da própria vida, nutrindo o desprazer dos educandos quanto ao desejo de aprender, a falta de sentido e significado de conteúdos que não se articulam com a vida. Quantas vezes, conteúdos de artes são trabalhados de forma apenas intelectual, não atingindo o sensível? O fazer criativo não estaria sempre vencido pela cognição? A legitimidade da presença da arte, nos espaços escolares, deu-se a partir da Lei 5692/71, que, apesar da sua fundamentação humanista, paradoxalmente, ocorreu em um momento caracterizado pela Pedagogia Tecnicista, impossibilitando um fazer criador em uma concepção mais plena, comprometida com a construção de educandos mais inteiros e sensíveis. Observamos que, geralmente, a Educação Artística enfoca objetivos de maneira muito geral, tornando-se uma disciplina pulverizada por tópicos, técnicas, “produtos” artísticos que empobrecem o verdadeiro sentido do ensino de arte, e, no que diz respeito aos espaços de ensinar e aprender no Ensino Médio, tais contradições se agudizam ainda mais. No contexto destas reflexões, trago a análise de Araújo (2003) em seu trabalho Vitrines de concreto na Cidade: juventude e grafite em São Gonçalo - quando sinaliza que há uma forte tendência, que perpassa a quase totalidade dos grafiteiros, no sentido de desvincular a instituição escolar do aprendizado e do exercício dessa manifestação pictórica. Tal realidade, vem reafirmar que a arte, no cotidiano do espaço escolar, encontra dificuldades em se articular com os interesses, com os desejos, com as expressões de vida dos (as) próprios (as) jovens. 29 Quantos olhares não foram capazes de perceber as necessidades, os interesses e as potencialidades de jovens, que, se tivessem sido auscultados, teriam dado chance à instituição-escola para exercer a sua legítima função educativa! Por sua vez, educadores que trabalham com a arte, normalmente, apontam problemas enfrentados nos espaços escolares, quanto ao seu ensino e à sua aprendizagem: por um lado, chamo de aspecto endógeno - o bloqueio da expressão em diferentes linguagens, de grande parte de educandos que não acreditam no seu potencial de criação, porque tiveram poucas oportunidades de vivências criativas, em função da presença de modelos estereotipados; por outro lado, o aspecto exógeno, as dificuldades na organização de atividades em função do tempo exíguo de aulas, a quase inexistência de atividades culturais extra-escolares, a falta de sala de aula adequada, além da falta de material específico. Na realidade, geralmente, o ensino de arte, no curso de formação, vem se restringindo ao aprendizado de técnicas, que acontecem por meio de aulas espremidas entre disciplinas que, em geral, são consideradas mais sérias, não tendo um espaço de ambiências, próprio para a criação, reafirmando o seu lugar periférico no currículo e nas escolas. Sabemos que o domínio da técnica é fundamental para a execução de qualquer trabalho, no entanto, o problema surge quando a técnica se transforma em um fim em si mesmo, quando a expressão e a iniciativa dos alunos são relegadas a segundo plano, passando a atividade a ser mecânica e desprovida de sentido. Entendo, no entanto, que o cotidiano trança sentidos, além, do desejo sincero que, em minhas aulas/encontros, a vida pulsasse através dos olhos brilhantes dos educandos, das educandas. Como era surpreendente a minha chegada em sala, com um simples saco de fantasias, muitas delas até vencidas pelo tempo! Aquela conhecida frase, “puxa, você veio hoje?”, que, muitas vezes, como professores, ouvimos e ficamos desanimados, transformavam-se, nessas aulas-oficinas, em verdadeiros gritos – “Pessoal, Cristina chegou!” . Movida por estas narrativas, cheias de vida, trago o depoimento de um educando que participou de uma aprendizagem vivencial no ensino de História, na década de 1980, no 30 Colégio Paulo Assis Ribeiro, Niterói, RJ, quando em um encontro por acaso, (no sentido moriniano, a ordem pode nascer da desordem, tendo o acaso um papel na organização e na evolução - Pena-Vega, 2003, p.156), em 2004, os ex-educandos Jorge Wallace Bretas e Cristiane foram capazes de reconhecer-me e relataram: Você era uma professora de História que usava a arte em suas aulas; fotografava o que encenávamos, para que depois, escrevêssemos sobre as imagens. Outras vezes, você sugeria um relaxamento, deitados no chão, e, depois, propunha viagens imaginárias. Lembro-me, diz Wallace, que as suas aulas despertaram a minha curiosidade. naquela época comecei a visitar a biblioteca da escola e li um livro, acho que foi sobre a Viagem de Marco Pólo (2005). É importante registrar que Jorge Wallace está cursando o Curso de Graduação em licenciatura em História, no UNILASALLE (Instituto Superior de Ensino La Salle – RJ). Nas observações sobre o processo pedagógico, percebo que o que fica realmente como aprendizagem no educando e, em sua memória, é, principalmente, originário da emoção, daquilo que foi significativo no aprender. Isso é mais difícil, quando a razão encontra-se descolada de sentimento, sendo necessário, então, transcender a lógica do ensinar-aprender, lançando-se em uma “operação de caça”, no dizer de Certeau (1994) no “incerto”, complexo, múltiplo e colorido universo da emoção e do afeto. Era a arte que já pulsava nas aulas, cuja presença atestava a possibilidade de um ensinar/aprender mais significativo. Muitas vezes, a arte me assaltava sem pedir licença e, quando percebia, já tinha feito propostas um tanto ousadas aos educandos. Surpreendia-me, ao ver, os seus olhos brilhantes e fixos aos meus. 31 Talvez, a cumplicidade com a arte fosse um “pretexto” para um diálogo sincero e íntimo, o tão esperado diálogo em nossas salas de aulas, pois, nesses momentos, havia a escuta, a fala, o compartilhar de idéias e materiais, a presença certa de dúvidas, conflitos (serei capaz de fazer?), mas, sobretudo, de sorrisos e da alegria. Dessa forma, cuidadosamente novos saberes e olhares iam sendo incorporados à minha prática, novos diálogos com outros campos do saber, outras formas de linguagens, que não somente a escrita, o verbal, mas, também os símbolos, as imagens, o corpo, os gestos, na tentativa do rompimento do silêncio e na busca da expressão da inteireza humana, permitindo-me repensar a Educação e, mais diretamente, o meu fazer pedagógico. Muitas vezes, rompendo com o ideário mecanicista vigente nas escolas nas quais atuava/atuo, ideário este que nos tem engessado através de ações pedagógicas fragmentadas e, portanto, distanciadas de nós mesmos e do outro, contribuindo para a separação entre sujeito/objeto, conteúdo/forma, razão/emoção. Ao longo desses últimos quinze anos, foram incorporadas a este estudo teóricoprático, novas experiências, através de Cursos em Arte-Educação, Teatro na Educação9, Trabalhos Corporais10, Formação em Arte-Terapia11, cujos objetivos se propunham somar às experiências racionais e lógicas, outras dimensões do aprender. O aprofundamento das novas abordagens leva-me a reafirmar a necessidade de uma pesquisa tendo como locus a formação de professores. Mais do que buscar um trabalho prático e aliá-lo a algumas teorias, a pesquisa sobre a arte e a formação de professores, aqui proposta, objetiva aprofundar as bases teóricas que lhe dão suporte. Em sua relação dialética, pretende trazer luz à própria prática, que pode se enriquecer indo ao encontro de caminhos intuitivos, produto das tessituras expressivas que, coletivamente, juntos aos educandos, vamos criando. 9 Participei do Curso Introdutório do Teatro do Oprimido Augusto Boal, RJ, 1997. Participei, durante seis meses, do Curso de Dança Criativa, método Alexander, com a professora Karla Relvas, RJ. 11 Além de vivências em Brasília, no Centro de Criação (Pirenópolis), com Susan Bello, e um curso de um mês, em Janeiro de 2000, em Barcelona sobre Art y Vida. Também concluí os Cursos: Formação em Arte-terapia, na Clínica Pomar e o Pós-Graduação em Arte –Terapia, na Universidade Cândido Mendes-RJ, durante os anos de 1997 a 1999. 10 32 Dessa forma, entendo que novos fundamentos teóricos, metodológicos e práticos necessitavam ser estudados, por formadores de professores, articulados às vivências e saberes dos educandos; assim, também, verifiquei se uma Proposta Pedagógica reflexiva / criativa, para os cursos de formação de professores, a partir de oficina de criação que designei de “Espaço Vivencial: Despertando o Ser”, poderia atuar como mediadora na formação de uma consciência mais ampla e ética do educador, frente ao seu mundo (interior e exterior), colaborando na abertura das fronteiras escolares para a interação/socialização do futuro educador no meio ambiente em que vive/atua. Enfim, as vivências pretenderam oportunizar que o futuro educador entrasse em contato com a sua subjetividade, suas linguagens e expressões primeiras, que reencontrasse o seu caminho próprio e construísse novos saberes necessários à sua formação, resgatando o sentido originário da palavra saber, que significa saborear, mediado por atividades expressivas, em interlocução com diferentes abordagens (corporal, cênica, plástica, poética, musical), que integrem as quatro funções psíquicas do Ser (pensamento, sentimento, sensação e intuição). Tais funções poderiam possibilitar que criação e vida se articulassem e se completassem, através da inclusão do educando como ator social do seu próprio processo. Portanto, poderiam vivenciar, consciente e sensivelmente, a sua complexidade, além da possibilidade de uma melhor percepção do outro, do seu companheiro de trajetória, abrindo-se para um processo de socialização pautado em relações solidárias, cooperativas e amorosas. Para tanto, se fez necessário trazer a definição de Educação, Arte e Vivências como elementos basilares do tecido/pintura que apresentei. Na tessitura teórica, entrelaçaram-se os fios dos estudos sobre a crise multidimensional e paradigmática, instalada hoje na sociedade, colocando em risco a construção de uma cidadania comprometida realmente com o ser humano, principalmente, a partir do olhar de Harvey (1992), Sennet (2000), Geertz (1978,2001), Baumann (1999,2001), Bobbio (1990,1992), Linhares (2000), que foram acrescidos à reflexão do paradigma da complexidade, analisado, principalmente, por Edgar Morin (1999, 2000 a, b,c, 2003 a,b) e Boaventura de Souza Santos (2000). Destacadamente, fui juntando as laçadas teóricas sobre a arte, em suas diferentes formas de linguagens, enquanto um dispositivo de aprendizagem de si mesmo e do outro. Tais laçadas foram se colorindo com as idéias sensíveis de artistas 33 educadores como Anísio Teixeira (1970,1971,1994), Augusto Rodrigues (19701972), Durmeval Trigueiro Mendes (!968,1969,1972,1973,1987,1994), Fayga Ostrower (1983,1987), Peixoto (1997,1999,2003), Campos (2003). Outros se somaram como: Henri Lefèbvre (1983,1991), Vygotsky (1999 a, b, 2003), Pareyson (1997), Byington (1996), Herbert Head (2001), Ernst Fischer (1976), Ortega y Gasset (2002,2005). Fios foram se enlaçando - os do cotidiano - a partir de Pais (2001), com a sua sociologia do cotidiano, Certeau (1994,1998), Garcia (2000), Alves e Oliveira (2001). Somando-se a esses, os fios dos estudos sobre Juventude, uma vez que os sujeitos da pesquisa são jovens e, em suas criações, trazem suas formas de ressignificar suas existências. Para tanto, dialoguei com Carrano (1997, 2003) Sposito (1997, 2003), Abramo (1997), Peralva (1997), Pais (2003) e Melucci (1997), que têm evidenciado as dificuldades de definição dessa categoria, em função dos seus diferentes “âmbitos” das investigações. Também outros diálogos derem suporte a essa tessitura, como os de Freire (1985, 1987) Linhares (2003), Taylor (2003), Larrosa (2002). Muitos outros fios/nós se somaram a esses, ao longo desses cenários, como desenhos de um todo que formaram as cenas; sem faltar nessa tessitura / pintura, as laçadas criativas que ornamentaram o centro (se entendemos que há um centro), tecidas pelas mãos operosas dos (as) jovens, principais parceiros (as) desta pesquisa, que com arte / poesia, preparavam-se para serem educadores (as). Como nos diz Taylor (2003, p.59), “o ser humano para continuar ser autenticamente humano, deve habitar o mundo como poeta”. Esta foi a minha tentativa, fazer o exercício de investigar a possibilidade de unir a razão/emoção, o objetivo/subjetivo, o pensar/fazer, pois pressinto, com Gonzaguinha, em Caminhos do Coração: 34 É tão bonito quando a gente pisa firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos. É tão bonito quando a gente vai á vida Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração... 35 2ª CENA: DEFININDO AS CORES NA PALETA: EDUCAÇÃO, ARTE E VIVÊNCIAS/EXPERIÊNCIAS Isto sabemos. Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família... Tudo o que aconteceu com a Terra, aconteceu com os filhos da Terra. O homem não tece a teia da vida; ele é apenas um fio. Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo. Ted Perry12 As reflexões trazidas na epígrafe nos fazem pensar que ao definir Educação, Arte e Vivência, não há o intuito de reduzir essas áreas do conhecimento, provocando a fragmentação tão questionada. Entendemos que cada área, representa os fios da teia do próprio saber/fazer pedagógicos, uma vez que, fazem parte de um mesmo todo. 12 Epígrafe contida no livro: CAPRA, Fritjop. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos .São Paulo: Cultrix,1996. 36 Assim, vamos tecer alguns conceitos/categorias para que o diálogo que desejamos fazer alcance a clareza desejável, e. assim, partilhar essa urdidura com interlocutores que comigo a tecem/tecerão. • As cores da Educação Partimos da compreensão etimológica do termo educar, que vem do latim ex – ducere, conduzir para fora, significando encorajar o desenvolvimento e a expressão das qualidades únicas de cada pessoa, implicando, dessa forma, uma parceria, um caminhar junto, diálogos, troca de olhares e de experiências, escutas sensíveis e manifestações das relações entre humanos e mundos. Entretanto, de acordo com Yunes (1997), a Educação, por muitos séculos se manteve como instrumento de domesticação e adaptação dos indivíduos aos papéis sociais que lhes foram reservados pelos sistemas, exigindo, atualmente, uma visão complexa que articule a construção de um sujeito a sua singularidade e a sua solidariedade (p.2-4). A concepção de Educação que trazemos se apóia na questão de um processo complexo e, por isso, não é passível de definições lineares. Com esse olhar, reafirmamos o conceito de Educação, enquanto um ato criador - criar é dar a vida. Assim, através do criar, o qual é mediado pela linguagem, pelo diálogo e por imagens, se poderá chegar à complexidade do Ser. No processo de vivência desta complexidade o Ser poderá construir uma consciência de si mesmo e do mundo que o cerca, reafirmando sua identidade cultural, tendo em vista a constante mutação em que se constitui a consciência humana. Nesta trilha de pensamento, Durmeval Trigueiro Mendes (1973) esclarece que a Educação que é criatividade, não pode ser uma especialização, nem ser vista exclusivamente no âmbito da racionalidade científica e técnica, mas educação como condição própria do homem, reafirmando o valor do indivíduo como fonte primária de criatividade (p.232-234). Acrescentamos que Educação é um fenômeno social múltiplo, envolvendo os processos de formação do ser humano, que ocorrem em espaços/tempos diversos, em função de formas específicas de pensar e agir que os caracteriza, sustentando-se no respeito à liberdade de expressão. 37 Também Paulo Freire, em suas obras: A educação como prática da liberdade (1979) e A importância do ato de ler (1985), como em tantas outras obras13, nos instiga a pensar a educação enquanto um ato político. Paulo Freire entende o homem como um ser inacabado, sendo este ponto, uma das suas teses básicas sobre a Educação - o homem sujeito da Educação. Dessa forma, a educação deverá instigar e criar situações para que o ser humano construa atitudes reflexivas e conscientizadoras, através de ações comprometidas com o contexto sócio-cultural em seu entorno, percebendo-se como construtor de sua própria história. O momento presente tem exigido uma busca permanente por um entendimento mais aprofundado da realidade em que vivemos. Nesse sentido, uma educação que permita a construção da inteireza possível do ser, deverá provocar o des-ancorar do fragmentário e do mecânico, que ainda persistem em nossas teias do pensar/agir, em nossas teorias e nossas premissas. Herbert Read, teórico com quem dialogamos sobre a arte, sinaliza que os objetivos da Educação, deverão estar pautados “em uma concepção libertária da democracia, só podendo ser o de desenvolver, juntamente com a singularidade, a consciência social ou reciprocidade do indivíduo” (2001, p.6). O desenvolvimento da singularidade, segundo o autor, é um dos pontos fundamentais da Educação, pois, a capacidade de ser único, de se ter maneiras únicas de falar, de expressar a mente e a emoção, de ver e de inventar, constituem um valor inestimável para a humanidade, uma vez que propõe que: O objetivo geral da educação seja propiciar o crescimento do que é individual em cada ser humano, ao mesmo tempo em que harmoniza a individualidade assim desenvolvida com a unidade orgânica do grupo social ao qual o indivíduo pertence (Ibid , p.9). 13 Sugiro, para maiores estudos sobre a extensão das obras de Paulo Freire, a leitura do Dicionário de Educadores no Brasil: da colônia aos dias atuais. RJ: UFRJ & Brasília: INEP,2002.p.893-899. 38 Surge, assim, a Educação como incentivadora do crescimento, sendo que este só se torna aparente na expressão, através de signos e símbolos audíveis ou visíveis. Portanto, para o autor, “a educação pode ser definida como o cultivo dos modos de expressão – é ensinar as crianças, jovens e adultos a produzir sons, imagens, movimentos, ferramentas e utensílios” (Ibid., p.12). Em direção a este mote, Read sugere que o objetivo da educação consiste no desenvolvimento de qualidades genéricas de discernimento e sensibilidade, fundamentais até mesmo para a matemática ou a geografia, instigando-nos a perceber a preocupação com a dimensão integral da educação. Ainda na perspectiva de uma Educação comprometida com uma totalidade possível, que situe a Educação frente aos desafios e incertezas de nosso tempo, trazemos Edgar Morin (2000), quando em suas recorrências, propõe saberes necessários para à Educação do futuro. Nesse sentido, a Educação deverá criar situações para que o educando aprenda sobre os métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o todo em um mundo complexo. Continuando com Morin, o primordial para todo o processo de Educação deveria ser a construção de um ser humano consciente sobre a sua condição humana, enquanto ser uno, múltiplo, ético, enquanto um ser de compreensão. Para tanto, a Educação deveria voltar-se para complexa reforma do pensamento humano. Educar para este século exige ver a realidade em sua unidade e multiplicidade, percebendo-a como um todo, como um holus, permitindo, sobretudo, uma relação de consciência com a realidade, uma vez que é facilitada a consciência de algo, quando se tem uma certa visão da totalidade. Neste sentido, educar é caminhar para a totalidade, implicando numa unidade interna dentro de cada um de nós. 39 Assim, educar o educador é permitir que ele/ela se sinta incluso como sujeito humano, permitindo-o viver seu processo de globalização no âmbito da interioridade e da subjetividade humana, atualizando toda a sua potencialidade. Enfim, a educação deve ser pensada e praticada como um processo contínuo de ação – reflexão – ação que permitirá o ser humano construir-se continuamente, na sua relação inter e intrapessoal, desenvolvendo-se nas dimensões física, biológica, psíquica, cultural, social, histórica, ética e espiritual. • As cores da Arte Buscamos, neste momento, trazer a compreensão que fomos construindo sobre arte, sabendo que tentar conceituá-la é uma tarefa bastante complexa. Vários autores têm tentado defini-la e o nosso esforço será articular algumas de suas reflexões. A arte é a linguagem natural da humanidade e representa um caminho de conhecimento da realidade humana (OSTROWER, 1998, p.25-26). Assim, ela se faz presente, juntamente com a Ciência, desde as primeiras manifestações humanas, nascendo há cerca de trinta mil anos, apresentando-se como elemento mediador das interações humanas, quando o ancestral humano, o homem de Cro-Magnon, dá um impulso em sua inteligência e passa a ser capaz de utilizar a sua imaginação e a sua habilidade de criar imagens esculpidas e pintadas. Ao manipular cores, formas, gestos espaços, sons, silêncios, movimentos, luzes vai representando ambições, sonhos e valores de sua cultura; tudo isso, antes de saber escrever com a intenção de dar sentido a algo, de comunicar-se com os outros, de interpretar o mundo em que vivia pela linguagem da arte. Entre os 25.000 anos e os últimos 1400 anos, a história da arte não é uma evolução do primitivo para o sofisticado, nem do simples para o complexo, mas uma história das formas variadas que a imaginação assumiu na pintura, na escultura e na arquitetura. Ao percorrermos a história, percebemos que todos somos criadores, tendo esse poder gerador dentro de nós, pronto para ser acessado e, assim, fecundar nosso tempo segundo as nossas próprias potencialidades criativas. 40 No entanto, o homem, em função do seu mundo, poderá apresentar dificuldades em acessar tais potencialidades, e nesse sentido, tomamos emprestadas, as palavras de Fischer (2002), que afirma ser a arte necessária, à medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais dividida em interesses e classes, esquecida do espírito coletivo. Acrescenta que a função da arte é refundir esse homem, torná-lo de novo e são (p.8), concluindo, que a arte é o meio indispensável para a união do indivíduo como o todo (p.13). Etimologicamente, a palavra arte, que em sua origem latina vem de ars, corresponde ao termo grego techne, técnica, tendo como significado toda espécie de atividade do homem submetida a regras. Assim, temos o sentido lato, correspondendo a uma habilidade, saber fazer; e o sentido estrito, como ofício e ciência. Todavia, disse Picasso certa vez, “A arte não é a aplicação de uma regra de beleza, mas aquilo que o instinto e o cérebro podem conceber além de qualquer regra” (Coleção Arte nos Séculos, 1969). Não existe apenas uma definição sobre o que é arte. Sabemos que a idéia de arte é construída socialmente, com base em referências históricas, através de teorias e outras referências sobre a formação escolar e os contextos sócio-culturais. Alguns entendem a arte sendo ao mesmo tempo, uma atividade, uma forma de expressão e um campo de conhecimento. (Apud. Peixoto, 2003, p.36). Somamos a estas reflexões, as contribuições de Pareyson (1997) ao entender a arte como fazer, como conhecer ou como exprimir. Tais concepções, segundo o autor, ora se contrapõem e se excluem umas as outras, ora, pelo contrário, aliam-se e se combinam de várias maneiras, como se pode perceber na trajetória da história da arte na humanidade. A arte, enquanto fazer, não pode ser vista somente no sentido de executar, pois, várias atividades humanas têm seu lado executivo e realizativo. Assim, não basta o fazer, para se definir a arte. Faz-se preciso entendê-la também como invenção. “Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (PAREYSON, 1997, p.21-22), sendo uma atividade que, de forma simultânea e inseparável, articula execução e invenção. Ainda, o autor acrescenta que a arte é, portanto, um fazer em que o aspecto realizativo é particularmente intensificado, unido a um aspecto inventivo. 41 Sendo assim, no fazer criativo podem-se articular uma produção, um trabalho e uma construção, representando a expressão de uma cultura e de sentimentos; uma interpretação; um conhecimento do mundo. Confrontamos tais reflexões, com o dizer de Mendes (1972), que com as suas recorrentes análises sobre a arte, revela-nos: “A Arte é a expressão mais forte de originalidade de cada cultura. A arte é o fazer que se confunde com o ser, o fazer que é criação, criação do próprio ser” (p.1). Sendo assim, a concepção de arte que ora apresentamos, poderá auxiliar na fundamentação de uma proposta de ensino e aprendizagem que se direciona para uma articulação do fazer, do representar e do exprimir. Portanto, o fazer artístico através da criação, representa uma forma de mobilização de ações que resultam em construções de formas novas, a partir da natureza e da cultura, sendo, também, resultado de expressões imaginativas, provenientes de sínteses emocionais e cognitivas. Ortega Y Gasset (1883-1955), pensador espanhol, filósofo, jornalista e ativista político, dedicou parte de suas reflexões, de uma forma irreverente, aos estudos no campo das artes, ao escrever sobre a desumanização da arte, um ensaio publicado em 1925. Os seus apontamentos representam, para esse estudo, uma tentativa de olharmos em direção a História da arte, ampliando a nossa capacidade de entendimento. Dessa forma, no primeiro quartel do século passado, envolvido pela fecundidade de uma sociologia da arte, o autor discutia como a arte artística não era inteligível por todos, utilizando-se de recursos que não se apresentavam genericamente humanos (2005, p.25). Embora seja impossível uma arte pura, não há dúvida alguma de que cabe uma tendência à purificação da arte. Essa tendência levará a uma eliminação progressiva dos elementos humanos, demasiadamente humanos, que dominavam na produção romântica e naturalista E, nesse 42 processo, chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da obra será tão escasso que quase não se verá. Então teremos um objeto que só pode ser percebido por quem possua esse dom peculiar da sensibilidade artística. Seria uma arte para artistas, e não para a massa dos homens... (Ibid., p.29). Assim, a arte artística apresentava-se como uma nova arte, que nascia naquele momento histórico. Um novo estilo que se caracterizava pela desumanização da arte; pela possibilidade de se evitar as formas vivas; pelo entendimento que a obra de arte é apenas uma obra de arte; pela possibilidade de considerar a arte como um jogo; por sua apresentação irônica; além da arte ser vivenciada sem o compromisso com a transcendência (Ibid., p.31). Frente a este quadro, o autor assevera que, dessa forma, surge a possibilidade de uma nova sensibilidade estética, caracterizada por sua pluralidade. Tal sensibilidade estética não se dá apenas nos criadores de arte, mas, também, nas pessoas que são apenas o público, ou seja, as pessoas capazes de perceber valores artísticos. Em direção a esse mote, a nova arte permitiu com que o ser humano criador pudesse se descomprometer com a realidade percebida, ousando ir contra ela, ou seja, sendo capaz de deformá-la, de desumanizá-la. Percebemos que as contribuições orteguianas sustentadas no início do século passado e caracterizadas por uma forte carga de sensibilidade e ousadia, representam a possibilidade de ampliação dos cristalizados olhares humanos, frente aos divergentes sentidos que a arte, historicamente, foi construindo. Não é este olhar, que nós educadores deveremos ter, se desejamos que a arte ressignifique as ações humanas? Lembramos, mais uma vez, de Paulo Freire (1985a), ao enfatizar a importância da criatividade na formação do homem: 43 Na verdade, quanto mais se ‘embrutece’ a capacidade inventiva e criadora do educando, tanto mais ele é apenas disciplinado para receber ‘respostas’ a perguntas que não foram feitas (p.53). Trazemos mais um interlocutor para esta tessitura - Herbert Read, inglês e profundo estudioso sobre a arte e a educação do século XX (1893-1968). Este autor defende a tese do valor da arte como meio educativo (p.15), acreditando, juntamente com Platão, que “a arte deve ser a base da educação” (p.1), traz um olhar filosófico e psicológico em seus estudos sobre o tema e a compreende sobre dois pilares: um princípio da forma, oriunda do mundo orgânico e do aspecto objetivo universal de todas as obras de arte, e um princípio de criação peculiar à mente humana, que impele o homem a criar e a apreciar a criação de símbolos, fantasias e mitos que assumem uma existência objetiva universalmente válida apenas em virtude do princípio da forma. Nessa perspectiva, a forma é uma função da percepção e a criação é uma função da imaginação. Essas duas atividades mentais exaurem, em sua interação dialética, todos os aspectos psíquicos da experiência estética, além de incluir outros aspectos como os biológicos, os sociais e os educacionais (p.36). Read (2001) considera que sua tese não é original, uma vez que tem sua origem nas reflexões filosóficas de Platão, sobre a arte, muitos séculos atrás, as quais, segundo ele, nunca foram levadas a sério por seus seguidores, que não as tornaram exeqüíveis. Uma vez que as questões basilares desta pesquisa referem-se à vivência da arte no Curso de Formação de professores, que se compõem de jovens, são importantes as contribuições de Read, sobre as modificações dos modos estéticos de expressão que podem ocorrer durante a fase da adolescência. O autor admite que, normalmente, uma profunda mudança ocorre na criança por volta dos 11 anos de idade, mudança nos processos mentais, que têm efeitos profundos em seus modos de expressão, ocasionando, quase sempre, o desuso desses modos estéticos de expressão, sem contar as mudanças de natureza psicológica, que, também, ocorrem nessa fase. 44 Mas pressupor que os modos de expressão visuais ou plásticos (imagistas) são conseqüentemente eliminados, significa incorrer em petição de princípio. Eles podem exibir uma tendência a desaparecer, mas, talvez, seja essa tendência que nossos métodos educacionais deveriam se opor, preservando não apenas a funções da imaginação, mas, também, a unidade de percepção, mais necessariamente essencial: não apenas o intercâmbio continuamente vitalizador entre a mente e os eventos concretos do mundo natural, mas, também, a contínua alimentação da psique do indivíduo a partir dos níveis mais profundos da mente (READ, 2001, p.184). O autor, ainda acrescenta que, se a arte é tão variada quanto a natureza humana, pode ser preservado um modo de expressão estética por todos os indivíduos após os 11 anos de idade, bem como durante toda a adolescência em geral e além dela – se estamos preparados para sacrificar, até certo ponto, aquela devoção exclusiva à aprendizagem dos modos lógicos de pensamento que caracterizam nosso atual sistema educacional (p.185). A arte da criança declina depois da idade de 11anos porque é atacada por todos os lados – não apenas excluída dos currículos, mas, também, da mente, pelas atividades lógicas que chamamos de aritmética e geometria, física e química, história e geografia, e até a literatura da maneira como é ensinada. O preço que pagamos pela distorção da mente adolescente é altíssimo: uma civilização de objetos hediondos e seres humanos disformes, de mentes doentes e lares infelizes, de sociedades divididas e equipadas, com armas de destruição em massa. Alimentamos esses processos de dissolução com nosso conhecimento e nossa ciência, com nossas invenções e descobertas, e nosso sistema educacional tenta manter-se no ritmo do holocausto; mas as atividades criativas que poderiam sanar a mente e tornar belo nosso meio ambiente, unir o homem com a natureza e nações, nós as descartamos como se fossem fúteis, irrelevantes e vazias (Ibid., p.185). 45 Tais reflexões sustentadas teoricamente há mais de meio século, vêm reafirmar os objetivos defendidos por esta pesquisa que propõe estimular os (as) jovens a desafiarem suas mentes e seus sentimentos, no sentido de exercitarem criativa e plenamente suas formas únicas e singulares de expressão. Os fios da tessitura desenvolvida por Read, posteriormente, ampliar-se-ão, entrelaçando-se às linguagens expressivas criativas dos educandos, na medida em que as suas reflexões teóricas iluminam questões como: a criatividade; a relação entre a arte e o intelecto; a expressão como comunicação e como uma atividade social. Na trilha de Read, situa-se Viktor Lowenfeld (1970), afirmando que o processo educativo deverá ter, como parte mais importante, o desenvolvimento da sensibilidade perceptual, pois quanto maior for a oportunidade para desenvolver uma crescente sensibilidade e maior conscientização de todos os sentidos, maior será também a oportunidade de aprendizagem. Os autores com os quais começamos a enlaçar os fios da arte vêm ressaltar a estreita relação entre arte, educação, aprendizagem, ou seja, o valor pedagógico da arte no sentido de conhecimento, de expressão de sentimentos/emoções, de comunicação, de sensibilidade perceptual, de interação do homem com o seu mundo, além do seu potencial para a criação. Buscamos ressonâncias com Ostrower (1987, p.224), artista e educadora, ao dedicar os seus estudos teóricos e práticos a respeito da Criatividade e Processos de Criação, admite que todos os seres nascem com potencialidades sensíveis, e nos convida a pensar que: A capacidade de criar formas expressivas contém um forte componente afetivo. Para criar, é preciso dar-se de corpo e alma, integrar a matéria em questão, identificarse com ela a fim de poder sondar as possibilidades de configurá-la em no desdobramentos formais. A autora ainda acrescenta que: “o potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-consciente do homem, e se faz presente nos múltiplos caminhos em que o homem procura captar-se e configurar as realidades da vida”. 46 Para Ostrower a arte é uma necessidade espiritual do ser humano, tendo como prova disso o fato irrefutável de todas as culturas na história da humanidade, desde os tempos mais longínquos até a atualidade, terem criado obras de arte, em pintura, em escultura, em música, em dança como forma de expressão da essencial realidade de seu viver. As formas de arte representam a única via de acesso a este mundo interior de sentimentos, reflexões e valores de vida, a única maneira de expressá-los e também de comunicá-los aos outros. E sempre as pessoas entenderam perfeitamente o que lhes fora comunicado através da arte (Ibid. p.25). Estabelecemos diálogos com Vygotsky (1999; 2001, 2003b) por representar um fecundo interlocutor em nossas reflexões sobre a arte, sustentando que a atividade criadora é toda realização de algo novo, tratando-se de reflexos de algum objeto do mundo exterior, de determinadas construções do cérebro ou dos sentimentos que vivem e se manifestam no próprio ser humano (2001, p.7). Além destas reflexões, Vygotsky, em sua obra - Psicologia da Arte (2001, p, 321) enfatiza que: Não é por acaso que, desde a Antiguidade, a arte tem sido considerada como um meio e um recurso da educação, isto é, como certa modificação duradoura do nosso comportamento e do nosso organismo. Tudo de que trata esse capítulo – todo o valor aplicado da arte, acaba por reduzir-se ao seu efeito educativo, e todos os autores que percebem uma afinidade entre a pedagogia e a arte, e, vêem inesperadamente o seu pensamento confirmado pela análise psicológica. . 47 Percebemos o sentido educativo da arte e a prática a ela relacionada sugerido pelo autor em seus estudos, o qual sustenta que a arte é trabalho do pensamento, mas de um pensamento emocional inteiramente específico, considerando que ainda não foi elucidado devidamente Uma vez que nos limitamos somente à análise dos processos que ocorrem na consciência, dificilmente encontraremos respostas para as questões mais fundamentais da psicologia da arte. Não saberemos em que consiste a essência da emoção, que, para ser entendida, precisa ir além do consciente (p.57). Não é necessária uma perspicácia psicológica especial para perceber que as causas mais imediatas do efeito artístico estão ocultas no inconsciente, e que só penetrando nesse campo conseguiremos estudar de perto os problemas da arte (Ibid., p.81). Dessa forma, além de Vygotsky (1988, 1999, 2001, 2003 a, 2003 b) fortalecemo-nos em Baquero (1998), quando estes dois teóricos refletem sobre a linguagem, como constituidora do sujeito, ou seja, a arte potencializando a linguagem como instrumento do pensamento. Afirmam que, quando o indivíduo se apropria da cultura e da linguagem, ele se auto-organiza, uma vez que elas são dinâmicas, possuem movimento e não se cristalizam. De acordo com Vygotsky (2001), a arte, como forma de expressão da linguagem,14 tem a função de signo15, fazendo a mediação do homem com o mundo e servindo como instrumento de transformação e de desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. A arte pode clarear o pensamento, reorganizando internamente o ser humano, pois na construção de seu espaço interno, é possível a criação de uma consciência de si, o que, posteriormente, também foi sustentado por Mendes (1972;1973). 14 Vygotsky entende a linguagem enquanto um signo mediador e transformador por excelência. É um instrumento psicológico, com materialidade simbólica, com função de desenvolvimento e tem marca cultural. É um meio de comunicação, de conexão de certas funções psíquicas de caráter social. É um meio de união das funções em nós mesmos, além de ter uma função representativa. 15 48 Vygotsky (2001), ao defender a concepção histórico-cultural de desenvolvimento e aprendizagem, sustenta que, além da função de comunicação, a linguagem é constitutiva do pensamento - à medida que o torna signo - exercendo a função mediadora entre sujeito e objeto, organizando a realidade, a ação e o comportamento humanos. Nesse enfoque, Vygotsky atribui importância à linguagem no processo de internalização, que, por sua vez, cria a consciência. Assim, a linguagem parece desempenhar o duplo papel em: reconstruir internamente os Processos Psicológicos Superiores (PPS) e identificar-se como instrumento de mediação na interiorização deles. Neste ponto, retomamos Ostrower (1996) que em seus estudos a respeito dos processos de criação, sustenta que a sensibilidade variável de cada um, na estrutura única de uma individualidade juntamente com a imaginação e a linguagem adquirem formas pessoais e subjetivas. “Daí, não se conclui que a linguagem em si seja subjetiva. Ela é objetivada como ordenação essencial de uma materialidade. Essa objetivação da linguagem pela matéria constitui um referencial básico para a comunicação (p.37)”. No diálogo que trazemos de Vygosky e Ostrower sobre a questão da linguagem, inferimos que a mediação defendida por Vygotsky, far-se-ia através da objetivação da linguagem pela matéria, ou seja, a matéria objetivando a linguagem. Sobre o seu estudo específico a respeito da psicologia da arte, Vygotsky (2001) afirma que “a arte é apenas uma linguagem do sentimento que temos de avaliar em função do que dizemos sobre ela” (p.304). Além disso, há vários sentidos da arte, tais como: o psicológico, o social e o pedagógico. O primeiro compreende a relação entre os estados de sentimento, de emoção, de inconsciência e de consciência do homem, afetados pela apreciação ou pela realização de alguma obra de arte. Em relação ao sentido social da arte, afirma que a arte é o social em nós, ressaltando que “o social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções pessoais” (p.315), afirmando que, quando a arte mexe com as emoções mais íntimas do indivíduo o seu efeito é social nos sentimentos humanos. Em relação ao sentido pedagógico da arte, mostra que a crítica da obra de arte tem força social basilar, e sua função consiste em servir de mecanismo transmissor entre arte e sociedade (p.321). 49 O nosso interlocutor russo, ao se referir às atividades mentais, focaliza que: O cérebro humano não se limita a ser um órgão capaz de conservar ou reproduzir nossas experiências passadas, é também um órgão combinador, criador, capaz de reelaborar e criar com elementos de experiências passadas novas normas e planejamentos... É precisamente a atividade criadora do homem que o faz um ser projetado para o futuro, um ser que contribui no criar e que modifica seu presente (VYGOTSKY, 2003, p.9). Sobre a relação da imaginação com a realidade, Vygotsky (2003), em sua obra - La imaginación y el arte em la Infância - traz quatro formas que articulam a atividade imaginadora com a realidade. A primeira forma “consiste no fato de que toda elocubração se compõe sempre de elementos tomados da realidade, ou seja, extraídos da experiência anterior”. Assim, a imaginação sempre vem da experiência, constrói-se com materiais tomados do mundo real, podendo criar novos graus de combinações, mesclando elementos reais, combinando imagens da fantasia (Ibid., p.17). A segunda das formas de vinculação entre a função imaginativa e a realidade, é considerada mais complexa. Se no primeiro caso a imaginação se apóia na experiência, no segundo caso é a experiência que se apóia na fantasia, pois, se não se imaginar, por exemplo, o quadro da Revolução Francesa ou do deserto de Saara, não se poderia de forma alguma criar a imagem desses quadros, segundo Vygotsky. Seguindo este raciocínio, a terceira das formas é o enlace emocional que se manifesta de duas maneiras: por um lado, todo sentimento, toda emoção tende a manifestar-se em determinadas imagens concordantes com ela, como se a emoção pudesse eleger impressões, idéias, imagens congruentes com o estado de ânimo que nos dominasse naquele instante. 50 E, por último, a quarta das formas de relação entre fantasia e realidade, consiste em que o edifício erigido pela fantasia pode representar algo completamente novo, não existente na experiência do homem, nem semelhante a nenhum outro objeto real, como é o caso das invenções. Resultado da imaginação combinatória do homem, sendo, que esta forma, não se ajusta a nenhum modelo existente na natureza. Dessa forma, entendendo que o cérebro é um órgão criador capaz de possibilitar com que o ser humano, em suas atividades de criação, invente o futuro, Vygotsky (2001, p.325) ainda sublinha: É provável que os futuros estudos mostrem que o ato artístico não é um ato místico celestial da nossa alma, mas um ato tão real quanto todos os outros movimentos do nosso ser, só que, por sua complexidade, superior a todos os demais. A citação vygotskyana nos estimula para um futuro que acreditamos já se constrói nos espaços escolares, (e por que não, em espaços educativos em geral?) - a materialização de práticas reais e de profundidade, que lancem mão da arte, em suas diferentes linguagens expressivas, de maneira significativa e articulada a um pensar complexo, possibilitando atingir as nossas raízes e as nossas asas enquanto seres humanos. Para arrematar as nossas reflexões sobre a arte, não poderíamos deixar de iluminar essa tessitura com o olhar antropológico trazido por Clifford Geertz. Este autor sustenta que é difícil falar de arte, uma vez que ela parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar, mesmo quando se trata das artes literárias, que utilizam algo concreto como a palavra. (GEERTZ, 2001, p.142). A ‘arte’, diz meu dicionário, que por sinal é apropriadamente medíocre, é ‘a produção consciente, ou 51 arranjo de cores, formas, movimentos, sons ou outros elementos de uma forma que toca o sentido de beleza’, uma maneira de expressar que parece sugerir que os homens nascem com o poder de apreciar, como nascem com o poder de entender piadas e só precisam que se lhes dê ocasiões para exercitar esse poder (Ibid., p.178). Em seus ensaios sobre a antropologia interpretativa, estimula-nos a pensar a respeito da arte como manifestação de sentidos e significados que as coisas têm para a vida a seu redor. Para Geertz o processo de atribuir à produção de arte um significado cultural é sempre um processo local, e, além disso, tentar sentir o processo de produção da arte é explorar uma sensibilidade, que é, essencialmente, uma formação coletiva, “e as bases de tal formação são tão amplas e tão profundas como a própria vida social” (2001, p.149). Os discursos sobre arte que não sejam meramente técnicos ou espiritualizações do técnico – ou pelo menos a maioria deles – têm, como uma e suas funções principais, buscar um lugar para a arte no contexto das demais expressões dos objetivos humanos, e dos modelos de vida a que essas expressões, em seu conjunto, dão sustentação. (Ibid., p.146). Entendemos que, esse olhar antropológico sustentado por Geertz, enfatizando a dinâmica e força dos saberes e práticas locais, vem ao encontro da nossa proposta de pesquisa sobre a arte, no cotidiano da formação de educadores, pois consideramos que a força da expressão estética existe em cada ser, não se reduzindo a apenas um pequeno grupo de “eleitos”. 52 • As cores da Vivência/Experiência Entre idas/ vindas, entre fazeres/des-fazeres em um compasso/ritmo que vai da educação à arte e da arte à educação, fios vão costurando ambiências, tecendo detalhes, colorindo o pano de fundo da Oficina de criação. Mas, criar ambiências nos lembra Vivências, nos lembra Experiências. Entendemos Vivência, como um saber do todo através da experiência das partes que possibilitem encontros com o próprio potencial, considerando o ser em suas múltiplas formas de expressão. Uma vivência ou uma experiência possibilita um aprendizado circular, integrando as funções psíquicas: pensamento, sentimento, sensação e intuição, articulados em um todo expressivo do ser. Elas favorecem a inclusão do sujeito no processo de globalização de sua interiorização/exteriorização, proporcionando tomar consciência do todo, possível, através da ação, ou seja, um perceber-se em ação. Assim, incluímos as considerações de Larrosa (2002), na tentativa de ampliar a idéia de Experiência, sem cair na sedução por definições, que poderão, de forma um tanto cartesiana e linear, aprisionar a idéia que nos move. Pensar no significado da experiência, leva-nos a diferenciá-la de experimentação. Para tanto, Larrosa16poderá ser um aliado nas reflexões/instigações. Segundo esse autor, experiência, em espanhol, é “o que nos passa”. Em português, experiência é “o que nos acontece”, assim, pode ser o que nos passa, o que nos acontece e também o que nos toca. Continuando sua análise, distingue experiência de informação, sendo que, ao contrário, a informação não deixa lugar para a experiência, é quase uma antiexperiência. Por outro lado, sustenta que por excesso de opinião, a experiência tem se tornado rara, também por falta de tempo e pelo excesso de trabalho. Sobre tal questão, Ostrower (1987) complementa que o nível de especializações que o trabalho capitalista exige na atualidade, através de sua tecnologia, do adestramento técnico, secundarizando no indivíduo a sua sensibilidade e a inteligência espontânea do seu fazer, têm 16 LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. RJ: Revista Brasileira de Educação. Jan/ Fev/ Mar/Abr, n.19, 2002. 53 comprometido o aspecto imaginativo da criação humana – a superespecialização carece de qualificações criativas, excluindo do viver o vivenciar (p.38-39). Assim, torna-se relevante diferenciar experiência de experimentação. Herdamos da ciência moderna, sustentada pelo paradigma cartesiano, a conversão da experiência enquanto método objetivo, como um experimento, um caminho seguro e previsível, o que Larrosa (2002, p.28) adverte: “A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível”. Esse autor ainda traz ricas diferenciações entre experimento e experiência, quando acrescenta que um experimento é genérico, sua lógica produz acordo, consenso, homogeneidade, além de ser repetível, preditível e previsível, enquanto a experiência é singular, sua lógica produz diferença, heterogeneidade, pluralidade, sendo irrepetível e dotada de uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Enfim: a experiência não é um caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pre-dizer’ (Ibid., p.28). As reflexões sustentadas por Larrosa possibilitam um fecundo diálogo sobre a questão das Vivências com arte. Assim, entendemos que uma Vivência Pedagógica, ou dizendo de outra forma, uma Pedagogia Vivencial17, representa aquilo que nos toca e, para que sejamos tocados, se faz necessário que seja algo criativo que, articule todos os nossos sentidos, através de linguagens expressivas, e, também, unifique nossas funções psíquicas: pensamento, sentimento, sensação e intuição. 17 Para maior aprofundamento ver BYINGTON, Carlos Amadeu B. Pedagogia simbólica: a construção amorosa do conhecimento de ser. RJ: Record: Rosa dos Ventos, 1996. 54 Outrossim, uma vivência pedagógica se traduz em imprevisibilidade, singularidade, originalidade, pluralidade, diferença, inclusão, incerteza, permitindo abertura para o inusitado/desconhecido, para aquilo que, muitas vezes, nossos olhos não são capazes de ver. Para tanto, exige uma lógica diferente a que estamos acostumados. Precisamos de ousadia, de criatividade para romper com o tempo cronológico, cartesiano e com os espaços excludentes que nos impõem lógicas reducionistas, pois, acreditamos com Ostrower (1987) que criar representa uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer (p.28). Enfim, a partir da compreensão e da prática aguçada acerca do valor das vivências pedagógicas, sustentamos a nossa tese - será possível trazer, para o espaço escolar, uma vida pulsante, um pulsar de práticas que, pela sua poesia, valha a pena ser vivida?! Foram as minhas próprias vivências com a arte, que me possibilitaram ir às raízes que me entrelaçaram nas artes de fazer, ressignificando o meu existir pedagógico, permitindo-me sempre muitas indagações: Por que a busca por experiências divergentes, plurais, abertas para o desconhecido, indo além daquilo que os meus olhos vêem? Dizendo de outra maneira, por que sou movida pelo processo de criar que possibilita abrir os meus canais de sensibilidade e o dos educandos? Voltando à epígrafe, dessa 2ª Cena, ainda argumento: Tudo isso, não representa o sentimento de que somos um fio criativo, nesta grande teia que se chama Vida? 55 3ª CENA: NA TELA, AS CORES QUE NOS ENREDAM: DAS CRISES, AOS FIOS DA COMPLEXIDADE Como o futuro é absolutamente incerto, é preciso pensar com a incerteza, mas não a incerteza absoluta, porque navegamos num oceano de incerteza através de arquipélagos de certezas locais (MORIN, 1999). Trazer uma citação de Edgar Morin (1999), como epígrafe para esse 3º cenário, não significa perder de vista as categorias conflito /contradição que, como educadora, de olho na realidade social, instiga-me à busca de caminhos que problematizem questões desafiadoras e comprometidas com discussões do ser humano, principalmente em um momento em que a lógica capitalista o tem reduzido ao mínimo. • Algumas cores não luminosas da crise Pretendemos aqui, inicialmente, alguns matizes do momento atual, através da análise do contexto em que estamos imersos, que, conseqüentemente, têm influenciado a todos nós educadores que visceralmente estamos mergulhados no cotidiano da escola brasileira. As reflexões que nos assaltam, fruto da crise multidimensional que nos constrange, sugerem-nos indagar: que formas de pensar, sentir e agir, ou seja, que produções de 56 subjetividades estão sendo construídas por essa sociedade, cuja lógica se encontra instalada no paradigma hegemônico que, em nome do capital, tem esquecido do próprio ser humano, ou melhor, quando este tem sido reduzido a um mero cliente? Para nós educadores, frente aos cotidianos, a tarefa não tem se apresentado de modo fácil. Sabemos que a história se constrói dialeticamente, entre permanentes avanços e recuos. Acreditamos que encontraremos saídas/pistas, se abrirmos mão dos trilhos dogmáticos impostos, buscando novas trilhas, no coletivo e em solidariedade com o outro, nosso companheiro de jornada. A sociedade atual, marcada pelos ditames do capital, tem estimulado a criação de valores e virtudes descartáveis/diversificadas, o planejamento e ganhos de curto prazo, a capacidade de se movimentar com rapidez em respostas às mudanças do mercado ou do planejamento, além da perda de perspectiva futura: A dinâmica de uma sociedade do ‘descarte’ (...) começou a ficar evidente durante os anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos, criando um monumental problema sobre o que fazer com o lixo; significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos saudáveis, apego às coisas, etc. (...). Por intermédio desses mecanismos (altamente eficazes da perspectiva da aceleração do giro de bens de consumo) as pessoas foram forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade, as perspectivas da absolencência instantânea (HARVEY, 1992, p.258). Nesse clima ideológico, são construídos novos sistemas de signos e imagens, que surgem com o objetivo de manipular o gosto e a opinião de pessoas que são destituídas de um senso crítico apurado. As imagens tornam-se mercadorias, transformando-se em sistemas de produção e comercialização, que refletem uma verdadeira tirania de imagens, através de uma acumulação de espetáculos a serem consumidos sem critério valorativo. Se por um lado produzem-se imagens efêmeras, por outro, produzem-se para o povo, imagens estáveis cercadas de autoridade e poder. Acrescenta, ainda, Harvey: 57 A imagem se torna importantíssima na concorrência, não somente em torno do reconhecimento da marca, como em termos de diversas associações com esta ‘respeitabilidade, qualidade, prestígio, confiabilidade e inovação’. A competição no mercado da construção de imagens passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as empresas. O sucesso é tão claramente lucrativo que o investimento da construção da imagem (patrocínio das artes, exposições, produções televisivas e novos prédios, bem como marketing direto) se torna tão importante quanto o investimento em novas fábricas e maquinarias (Ibid., p.260). Produz-se uma subjetividade, na qual o importante não é nem o Ser nem somente o Ter, mas o Parecer Ter, valorizando a performance, e a vida passa a significar o adquirir uma imagem competente, confiável, pós-moderna através da compra de um sistema de signos, como etiquetas de moda, marcas de carro, discursos e saberes “progressistas”, entre tantas outras imagens criadas. Assim, cria-se a desconstrução, afirmando a imagem pela imagem, e a sua produção especializa-se na aceleração do tempo e do espaço que se reduz, tornando-se ínfimo e efêmero. Tempo e espaço desaparecem como dimensões significativas para os seres humanos, entrelaçando-se no mesmo espaço e no mesmo tempo diferentes mundos, mesmo que dentro de uma precariedade. Os espaços urbanos se constroem como uma pluralidade de estilos múltiplos e diversificados que coexistem, interpenetram-se e colidem, e as cidades passam a ser signos e imagens, na qual tudo é fragmentado, instantâneo e volátil. As reflexões nos fazem deduzir que, foi no plano ético, que as conseqüências foram mais profundamente perversas, atingindo o ser humano, as suas relações sociais, a sua integridade e a sua dignidade. Reafirmando estas proposições em seu diagnóstico sobre a contemporaneidade, Richard Sennett (2000), ao analisar as conseqüências do sistema econômico para a formação ética, argumenta que o ambiente de trabalho moderno traz a corrosão do caráter humano. 58 Aponta que a experiência do tempo é a marca maior do novo capitalismo, superando, inclusive, a questão das novas tecnologias. Segundo o autor, ¨o curto prazo¨ é a nova maneira de organizar o tempo. A expectativa de retorno rápido dos investimentos caracteriza, não apenas o setor financeiro, mas, sobretudo, os investimentos subjetivos. Sennett analisa, especialmente, o mundo do trabalho, mas parece justo e adequado expandir suas idéias para o campo da educação, no qual, hoje, impera aquilo que é passageiro, efêmero, descartável. Como se situa a formação inicial e continuada dos profissionais de ensino dentro desta lógica que impera o “curto prazo”? Quais os reais objetivos dessas formações? A quem elas servem e têm servido? Ainda, segundo Sennett, a categoria flexibilidade se sustenta na insegurança, fazendo com que o indivíduo ceda diante das novas formas de pressão/opressão que se exercem sobre ele. Valores como fidelidade, compromisso e confiança, que eram a espinha dorsal dos relacionamentos organizacionais, cedem lugar ao individualismo, a competição e conflitos de várias ordens. O trabalho já não existe para servir à família, ao contrário, o afasta dela, conseqüência natural da vida flexível, descartável, do “ficar sem compromisso”, das relações superficiais definidas pelas regras de mercado, da lei da oferta e da procura, que muda ferozmente. As constantes mudanças põem em risco valores éticos e morais, pois não há certo ou errado, não há parâmetro para conduzir o trabalho de forma correta. O mais cruel de tudo é tornar os trabalhadores descartáveis, uma vez que as relações não têm necessariamente que criar vínculos. Percebemos que essa flexibilidade caracterizada por formas alternativas de trabalho descartável atingiu até mesmo o espaço universitário, enquanto lócus de ensino, pesquisa e extensão. Esses são os labirintos do capital que, no seu limite, penetram pelos caminhos da violência direta e da fragmentação do ser humano. Nesta linha de argumentações, acrescentamos, no sentido de ampliar e responder às questões instigantes referendadas por Richard Sennet, as interlocuções de Sygmunt Baumam, de origem polaca, professor emérito de sociologia das Universidades de Leeds e de Varsóvia. Este autor tem orientado suas reflexões para áreas de estudo como: Modernidade, PósModernidade e Globalização, temas que, mundialmente, são vivenciados por todos nós. 59 Sobre a questão da Modernidade, Bauman analisa como ocorreu a passagem da chamada Modernidade “sólida”, na perspectiva da teoria clássica, para a nova Modernidade “líquida”, característica da contemporaneidade. Tal transição muda profundamente o significado de categorias como: emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade. Este autor sustenta que a Modernidade pesada ou sólida era impregnada da tendência ao totalitarismo, sendo inimiga da contingência, da variedade, da ambigüidade, da idiossincrasia. Entre os principais ícones dessa modernidade estavam a fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados, a serem obedientes e mecanicamente seguidos, sem envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual (BAUMAN, 2001, p.33-34). No entanto, de uma forma travestida de nova, a modernidade vai assumindo uma outra feição, de condensada passa à fluida/ líquida, não deixando, no fundo, de ser moderna, ao manter sua característica compulsiva, obsessiva e incompleta de modernização, a sua insaciável sede de destruição criativa, que em nome de maior produtividade e competitividade é capaz de reduzir e de desmantelar (Ibid., p.36). Se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado dos seus deveres ‘emancipatórios’, exceto o dever de ceder a questão da emancipação às camadas média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização contínua (Ibid., p.38). 60 Bauman acrescenta que duas características fazem a nossa modernidade atual apresentar-se de forma nova e diferente. A primeira característica diz respeito à descrença sobre a possibilidade da sociedade chegar a um estado futuro de perfeição, de justiça, de ordem, de satisfação das necessidades humanas e a segunda é a desregulamentação e privatização das tarefas e deveres modernizantes, colocando no indivíduo a plena responsabilidade pelo seu aperfeiçoamento e por sua própria vida, ficando cada um entregue a si mesmo. A partir de tal lógica, ser moderno, hoje, significa a capacidade de mover-se continuamente em busca de uma insaciável satisfação que, por sua vez, é impossível de ser atingida porque está sempre no futuro. Tal reflexão nos estimula a pensar que a lógica posta não tem permitido o ser humano viver, potencialmente, o tempo presente, que representa a sede do corpo, do pulsar, da respiração – lugar da CRIAÇÃO. Lançar-se no movimento acelerado da modernidade faz desconectar o ser humano do seu corpo, das suas reais sensações, projetando indivíduos ansiosos por um futuro – lugar de PROJETOS NÃO REALIZADOS. Projetados para um futuro, a compulsão por escolhas torna-se um vício e os indivíduos consumidores se vêm diante de um mundo com infinitas possibilidades, destruindo a capacidade de se chegar à satisfação. Retomando os fios sobre individualidade, o mesmo autor complementa que a apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de ‘individualização’, assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada ‘sociedade’. Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim o significado da ‘individualização’ muda, assumindo sempre novas formas (Ibid., p.39). 61 Assim, a mudança de significado de individualização, sugere, atualmente, novos entendimentos, apresentando este processo como uma história em curso e infindável, em lugar de um destino predeterminado. Para o autor, a individualização consiste em transformar a identidade humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências de sua realização. Nessa ótica, os seres humanos não nascem em suas identidades, precisam tornar-se o que já se é. Frente à construção de uma individualização cuja responsabilidade única se colocava nas mãos do próprio indivíduo, cabe apenas a ele conformar-se, de imitar, de seguir o padrão, de não se desviar da norma. De acordo com estas reflexões, os estamentos, lugares pertencidos por hereditariedade, passam a ser substituídos pelas classes, como objetivo de pertencimento fabricado, devendo, também, ser buscado e renovado continuamente, reforçando a premissa que ser moderno, significa mover-se constantemente. Pode-se dizer que a divisão em classes (ou em gênero) foi um resultado secundário do acesso desigual aos recursos necessários para tornar a auto-afirmação eficaz... As pessoas com menos recursos e, portanto, com menos escolhas, tinham que compensar suas fraquezas individuais pela ‘força do número’ – cerrando fileiras e partindo para a ação coletiva... O ‘coletivismo’ foi a primeira opção de estratégia para aqueles situados na ponta receptora da individualização mas incapazes de se auto-afirmar enquanto indivíduos se limitados a seus próprios recursos individuais claramente inadequados (Ibid.,p.41- 42) . Arrematando estas questões, Bauman argumenta que, tanto no estágio leve quanto no fluido, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha, podendo a auto-suficiência de o indivíduo ser outra ilusão. 62 Desta forma, entendemos que a individualização tem sido construída historicamente, por forças poderosas que, teimosamente, reduzem a capacidade de pensar a complexidade vivida, além de fomentarem o não conhecimento e compreensão do ser humano, quanto à sua própria condição primeira - SER HUMANO. Como driblar uma sociedade cuja maneira de moldar seus membros é ditada primeiramente e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidores? “A norma que mossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel” (BAUMAN, 1999, p.88). E, ainda acrescenta: O dilema sobre o qual mais se cogita hoje em dia é se é necessário consumir para viver ou se o homem vive para poder consumir. Isto é, se ainda somos capazes e sentimos a necessidade de distinguir aquele que vive daquele que consome (Ibid., p.88-89). Neste viés, a satisfação do consumidor deveria ser instantânea e isso em um duplo sentido: deveria satisfazer de imediato, sem exigências de habilidades; e deveria esta satisfação, terminar “num abrir e fechar de olhos”, ou seja, no momento em que o tempo necessário para o consumo tivesse terminado. E esse tempo deveria ser reduzido ao mínimo. Bauman discute sobre duas condições humanas: sermos, na realidade, indivíduos de jure ou de facto. O primeiro significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, tendo como o único remédio tentar sempre com determinação. Sobre a segunda condição, de sermos indivíduos de facto, esta nos levaria a ganhar controle sobre nossos destinos e tomar as decisões que, em verdade, desejamos. O autor adverte que há um grande abismo entre essas duas condições, que contaminam a vida dos indivíduos contemporâneos. Uma vez que as causas das contradições e sofrimentos humanos encontram-se descoladas do contexto social e reduzidas à individualidade, buscam-se soluções imaginárias, nas quais os indivíduos atemorizados possam pendurar coletivamente os seus temores. Daí 63 vivermos um tempo dos cadeados, das grades, dos arames farpados, dos condomínios fechados, dos playgrounds. Neste ponto de nossa tessitura, buscamos fazer interlocução com Bauman, quanto a indagações que pontuam o estudo, relativas ao imediatismo/ instantaneidade das vontades/ ações humanas, à insegurança na/da existência e à precariedade das relações afetivas, que têm marcado de maneira profunda a vida contemporânea de crianças, jovens e adultos da chamada da modernidade líquida. Quanto ao imediatismo e à vida instantânea, experimentados de forma ampla na atualidade, o autor sublinha que as noções de tempo/espaço se flexibilizaram a tal ponto, que vivemos um tempo que se acelera abruptamente e um espaço que a cada dia se comprime, apesar não ser mais um obstáculo à vida humana. O espaço tornou-se ‘processado/centrado/organizado/normatizado’ e, acima de tudo, emancipado das restrições naturais do corpo humano. Foram, portanto, a capacidade técnica, a sua velocidade de ação e o seu custo de utilização que a partir de então ‘organizaram o espaço’... Planejado, o espaço moderno tinha que ser rígido, sólido, permanente e inegociável... Sobre esse espaço planejado, territorialurbano-arquitetônico, impôs-se um terceiro espaço cibernético do mundo humano com o advento da rede mundial de informática... Doravante, as pessoas não podem ser separadas por obstáculos físicos ou distâncias temporais (BAUMAN, 1999, p.24). Fizeram-nos acreditar que este espaço cibernético impunha a não separação física entre as pessoas, e que a não distância temporal fosse verdadeira. No entanto, é possível perceber, frente à proposta da globalização, que grande parte das pessoas sente-se separadas por obstáculos físicos e temporais. Dessa forma, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-las, em vez de homogeneizar a condição humana, emancipa alguns e confina uma 64 grande parte da sociedade do seu significado e da sua capacidade de doar identidade.(ibid., p.25) Nesta linha de argumentação, nos reportamos à realidade da maioria das escolas públicas brasileiras, que se encontra distante desse espaço tecnicamente organizado, nos moldes do espaço cibernético. Sem tal atrativo técnico, dentre desta lógica, o espaço passa a não ter significado, tornando-se um espaço impotente. Frente a estas provocações, colocadas pela modernidade fluida, vale indagar: Por que não aproveitar as brechas, que a falta tecnológica impõe aos espaços escolares, para potencializar o que a escola tem de mais valioso – O SER HUMANO? Voltando a questão do imediatismo/ instantaneísmo, Bauman sustenta que no mundo dos consumidores, a satisfação de quereres voláteis e perecíveis com data de validade, não dura muito, pois, as possibilidades materiais são infinitas e sedutoras, sendo preciso mover-se, ou melhor, correr permanentemente em busca de novos objetos para o prazer, busca de novos exemplos e receitas de vida, projetados para a obsolência imediata. Assim, fazem-nos acreditar, por um lado, que a felicidade depende unicamente da competência pessoal de cada um, e, por outro lado, que somos pessoalmente incompetentes ou não tão competentes como deveríamos e poderíamos ser, se nos esforçássemos mais. Há muitas áreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma ‘compra’. ‘Vamos às compras’ pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa ‘dependência’ do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor 65 meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo (BAUMAN, 2001, p.87-88). Na linha desta ótica, a escolha racional na era da instantaneidade significa buscar a gratificação evitando as conseqüências e as responsabilidades que elas podem gerar (Ibid.,p.148). Assim, na falta de segurança em longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia razoável (Ibid., p.185). Além das questões pontuadas pelo autor, há que considerar que a Globalização tem sido um paradoxo. Ela tem favorecido com que os mais ricos, economicamente, ganhem dinheiro mais rápido, deixando de lado ou marginalizando dois terços da população mundial. A Globalização, com a preocupante polarização do mundo, tem arrastado as economias para a produção do efêmero, do volátil e do precário e, por sua vez, a indústria atual tem funcionado cada vez mais para a produção de atrações e tentações humanas. Dessa forma, tem-se assistido os habitantes locais ficarem excluídos da participação econômica e social, enquanto experiências emancipatórias. No mundo globalizante e localizante, a sociedade de consumo é uma sociedade estratificada. Cada um se situa em função do seu grau de mobilidade, que vai depender de onde se encontre entre os que estão embaixo ou entre os que situam encima. Os mundos sedimentados nos dois pólos, no alto e no pé da nova hierarquia da mobilidade, diferem acentuadamente; também se tornam cada vez mais incomunicáveis entre si. Para o Primeiro Mundo, o mundo dos globalmente móveis, o espaço perdeu sua qualidade restritiva e é facilmente transposto tanto na sua versão ‘real’ como na versão ‘virtual’. Para o segundo mundo, o da ‘localidade amarrada’, daqueles impedidos de se mover e assim fadados a suportar passivamente qualquer mudança que afete a localidade onde estão presos, o espaço real está se fechando rapidamente (BAUMAN, 1999, p.96). 66 A fotografia trazida pelo autor, ao retratar a dinâmica da sociedade atual, provoca profundas indagações sobre a formação de jovens, que, vivendo esta cotidianeidade, vêm construindo uma subjetividade marcada por modos de pensar e de sentir, que se distanciam de uma construção cidadã e ética, a respeito de si próprio, do outro e do cosmo. Consideramos o desafio que representa a superação desta problemática, o que nos tem instigado a procurar trilhas, através das artes, sensibilizando os jovens a ampliar sua capacidade de pensar e sentir, no sentido de que ações reflexivas e singulares, possam fazer um contraponto ao instituído. Sentir-se um produtor/criador e, não apenas, um consumidor, que seja capaz de adiar, conscientemente, sua satisfação, exige ações e práticas, bem sabemos, nada fáceis de serem realizadas! Somam-se aos apelos do consumo, do imediatismo, da instantaneidade e do curto prazo da modernidade “leve”, à insegurança. Correndo em busca de sensações táteis, visuais ou olfativas, que chamaríamos de superficiais, os consumidores tentam escapar da agonia chamada de insegurança. Desejam estar livres do medo, do erro ou da incompetência. Ao consumirem e ao viverem tais sensações, sentem-se seguros, confiantes. “A admirável virtude dos objetos que encontram quando vão às compras é que eles trazem consigo (ou parecem por algum tempo) a promessa de segurança (Ibid. p.96). Bauman, em sua provocativa análise, ainda discute sobre a precariedade dos laços afetivos que, pela lógica imposta, pretende substituir a política de vida “até que a morte nos separe”, por “enquanto durar a satisfação”. Dessa forma, os relacionamentos encontram-se fadados a serem tratados como coisas, como objetos destinados a serem consumidos como produtos para satisfazerem aos indivíduos. Basta lembrar que na era da Internet, podemos nos comunicar em poucos minutos com pessoas de lugares os mais diversos, repartir a intimidade com estranhos, através de um simples endereço eletrônico, sem que saibamos nem mesmo onde o nosso interlocutor reside. Isto nos preserva de viver, intensos e duradouramente, muitos dos nossos sentimentos. 67 Se o laço humano, como todos os outros objetos de consumo, não é alguma coisa a ser trabalhada com grande esforço e sacrifício ocasional, mas algo de que se espera satisfação imediata, instantânea, no momento da compra – e algo que se rejeita se não satisfizer, a ser usada apenas enquanto continuar a satisfazer (e nem um minuto além disso) -, então não faz sentido ‘jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim’, tentar cada vez mais, e menos ainda sofrer com o desconforto e o embaraço para salvar a parceria (Ibid., p.188). Pessoas inseguras, vivendo a precariedade do processo de globalização, tendem a ver o mundo como uma grande vitrine de produtos para consumo imediato, fazendo com que os laços humanos duradouros sejam difíceis de alcançar.“Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança, não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação” (Ibid.,p.189). De acordo com estas premissas, a promessa e a esperança de satisfação, precedem a necessidade que se promete satisfazer e serão sempre mais intensas e atraentes que as necessidades efetivas (BAUMAN, 1999, p.90). O autor salienta que existe uma outra ligação entre o consumo e a desintegração dos laços humanos. O consumo é uma atividade solitária, mesmo que a realizemos junto com outros, diferente do caso dos esforços produtivos que exigem uma atividade cooperativa. No consumo, a cooperação é desnecessária e supérflua. Frente às questões levantadas por Bauman, vale argumentar: o imediatismo e a insegurança da modernidade têm sido os responsáveis, entre tantos outros aspectos, pela precariedade dos laços afetivos? Ou, ao contrário, o não fortalecimento dos laços de solidariedade e parceria estaria provocando práticas imediatas, instantâneas geradoras da insegurança entre os indivíduos? 68 Acreditamos que a sociedade, ao secundarizar o fortalecimento de laços solidários, por não investir de forma sincera e atraente nas necessidades humanas afetivas, tem colaborado para a formação deste quadro. Apostamos na capacidade do ser humano de ser solidário e cooperativo, e ficamos com Wallon: “Somos seres geneticamente sociais”. As análises feitas por Bauman nos fazem constatar que as atuais políticas obsoletas de vida, calcadas em aspectos, tais como: o imediatismo, o instantaneísmo, a descontinuidade, a descartabilidade, a insegurança, a precariedade das relações afetivas, são produtos legítimos da modernidade líquida, trazendo desconexões ao mundo contemporâneo e influenciando, sobremaneira, as dinâmicas escolares através dos sujeitos sociais envolvidos. Sabemos que este quadro tem trazido conseqüências profundas para o sistema educacional, penalizando principalmente países periféricos como o Brasil e tem ampliado o nosso olhar de educadora, ao percorrer os caminhos de uma formação-profissão docente marcada por políticas excludentes, que não reconhecem social e economicamente o docente, trazendo obstáculos à sua formação/ação. Nesta ótica, muitas indagações têm nos perseguido: Qual o lugar do educador no contexto social brasileiro? Quem são esses educadores? Quem, atualmente, busca os cursos de formação? Quais são as agências formadoras desses profissionais? Quem são os educadores que trabalham nessas agências? Qual a qualidade do trabalho realizado por tais agências? Que práticas curriculares são necessárias para uma formação mais plena dos educadores? Quais as possibilidades de construir alternativas democráticas que viabilizem pensar em uma inclusão do profissional do ensino para além de uma inclusão patológica, defendida, por Martins (1997). Entendemos que é impossível pensar /atuar em Educação de forma descolada dos conflitos econômicos, sociais, culturais, das demarcações político-ideológicas do Estado. A ideologia neoliberal existente tem justificado/ naturalizado/ampliado os processos de “exclusão” social e das novas desigualdades que se cristalizam, através de aliadas políticas 69 que as alimentam trazendo, por sua vez, conseqüências perversas para o sistema educacional, como é possível analisar, através dos dispositivos legais vigentes18. Além disso, a modernidade tem construído um aparato educacional cuja lógica capitalista perversa se impõe por meio do controle dos corpos, mentes e afetos, retirando dos sujeitos sua condição espontânea de ser e impedindo-os da vivência do seu processo natural, enquanto sujeitos de criação/ produção, muito mais do que seres meramente consumidores. É possível que sujeitos, marcados por tal lógica, transcendam as formas de expressões domesticadoras e disciplinadoras que lhe foram impostas? Na perspectiva de busca de superação desta lógica, pois, afinal, somos seres humanos e não “coisas obsoletas”, o espaço escolar poderá enfatizar a vivência de linguagens autênticas, no sentido que elas toquem mais profundamente corpos, mentes e afetos, no que eles têm de mais natural e espontâneo, sem os artificialismos da modernidade, para que crianças e jovens sejam capazes de avançar, enquanto sujeitos históricos comprometidos com escolhas verdadeiramente criativas e conscientes. As reflexões teóricas que trouxeram uma breve análise dos labirintos das crises e suas conseqüências no espaço educativo, levam-nos a perceber nos cotidianos escolares nos quais atuamos que, o “chão da escola”, cujas bases /alicerces foram construídas no contexto sóciopolítico-econômico que lhe serve de pano de fundo, encontra-se arenoso e profundamente fragmentado, dificultando uma semeadura de profundidade de práticas pedagógicas mais criativas e conscientizadoras. Enfim, indo ao encontro destas análises, interrogamos: 18 Atualmente existem três agências formadoras de professores: A formação em nível médio e a formação em nível superior, que tem sido contemplada pela Graduação em Pedagogia e a Graduação no Curso Normal Superior (ISEs). Criou-se, assim, uma rede paralela de formação, a qual tem provocado embates sobre o poder de cada uma dessas instâncias. Em agosto de 2000, o Decreto n° 3276/99 que estabelecia a exclusividade do Curso Normal Superior para a formação de professores foi alterado, pelo Decreto n° 3554/00, permanecendo apenas a “preferência” e não mais a “exclusividade” neste fazer. Tudo isso retrata os perversos labirintos do capital, aos quais nos encontramos atrelamos à política neoliberal imposta. 70 É possível vivenciar uma formação/ação docente em uma perspectiva complexa e não mecanizada que dê espaço ao fazer criativo enquanto ato educativo, no sentido de potencializar os (as) educadores (as), em contraponto às práticas pedagógicas repetitivas, velozes, descontínuas, engessadas e mutiladoras do sujeito? Neste quadro de indagações, fruto das contradições próprias de uma sociedade marcada pela desigualdade, em todos os seus âmbitos, na tentativa de não perder o norte, ficamos com Bourdieu (1998, p.5-11). Será que não é também por não conhecer a escola em sua profundidade, por não nos solidarizarmos com ela, que lhe impomos espelhos desanimadores, infiltrados com um tipo de fatalismo econômico, que acaba fortalecendo os nossos adversários e fazendo-nos ora desesperados, ora desanimados, percebendo-os como invencíveis? Na perspectiva de análise conflitante da escola brasileira, que tem sido alimentada pelos dispositivos legais existentes, além do fatalismo econômico que tenta nos atingir, existem práticas pedagógicas sensíveis/solidárias/dialógicas que, não obstante, os percalços vividos, podem ser observadas no cotidiano escolar. Tais práticas ousam distanciar-se das lógicas definidoras da exclusão, indo, “taticamente” em sua contramão, permitindo experiências democráticas mais conscientizadoras, desmaterializando apatias, muitas vezes reinantes, em busca de alimentar sonhos/desejos de aprendizagens significativas. Neste sentido, a atuação autônoma / reflexiva/ criativa dos (as) professores (as), articulada à ação-reflexão-ação pedagógica se apresenta como uma opção por um desenho de um projeto democrático mais pleno, criando espaços para que se percebam autores /dirigentes, no dizer de Gramsci (1978), através de um processo de participação ativa, tanto intelectual e social, na ressignificação de novos projetos sociais e educacionais mais orgânicos que possam dar conta dos desafios, constituindo-se em experiências profundamente ricas. 71 Não poderia faltar a esta tessitura, quando se fala de um projeto democrático, as considerações de Bobbio (1992), em sua discussão sobre os direitos humanos: Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (p.1). Tais reflexões são de um valor inestimável para a construção teórica que tentamos fazer, uma vez que o autor conjuga três fatores fundamentais, os alicerces desejáveis para uma vivência responsável e comprometida com um ser humano mais pleno, que são: os direitos, a democracia e a paz. Quanto aos direitos humanos, que são aqueles que deveriam pertencer a todos os homens, Bobbio sustenta que eles são históricos, sujeitos a mudanças constantes. Nascem em certas circunstâncias, sendo caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes (Ibid., p.5;18). O autor, ainda aprofunda suas reflexões sobre os fundamentos dos direitos humanos, uma vez que se apresentam de forma heterogênea, muitas vezes, diversas entre si, e, quando não incompatíveis, como diz ser possível perceber na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, considera que o problema mais grave da atualidade, com relação aos direitos do homem, não significa mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los, apontando, dessa forma, para um problema em âmbito mais amplo e político. Hoje, a 72 questão aponta na direção de se encontrar qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que eles sejam continuamente violados (Ibid., p.25). Assim sendo, pensar em uma educação de profundidade, que faça com que os nossos jovens reencontrem a si mesmo, capacitando-os a viverem de forma mais consciente e plena, deverá favorecer a luta pela garantia de políticas públicas que persigam os seus direitos. Para a efetivação desta luta, torna-se necessário, como considera Morin (2000), que o pensamento se amplie, indo na contramão do pensamento/conhecimento redutor, o qual alimenta políticas sociais, também redutoras, minando as potencialidades e as liberdades humanas. Não há dúvida que somente a partir da inclusão/participação das/nas riquezas oferecidas pelo conhecimento, construirar-se-à a oportunidade da vivência do processo democrático, ampliando a capacidade do educador de sentir-se construtor do seu saber/fazer. O caráter polissêmico da formação - profissão docente nos faz pensar a possibilidade de construção de uma prática consciente/emancipadora do educador, o que representa um esforço de superação da perspectiva excludente, para ir além, em busca de saberes/fazeres docentes que ressignifiquem o seu comprometimento em direção à sua autonomia, enquanto sujeito histórico do seu processo de existir, o que poderia representar a possibilidade de incluir novas vivências reflexivas/criativas/sensíveis ao trabalho docente sempre de olho nos contextos sociais, ainda marcados pela desigualdade social e seletividade escolar. Haveria novas tintas, novos pincéis que trouxessem novos coloridos ao “azul e branco” tão comum, no espaço escolar? As teias multicoloridas da complexidade ao construir o conhecimento poderiam tomar por base a des-construção dos conhecimentos anteriores, e, assim, possibilitar a ampliação de pensamentos/ações? Será que as crises conjunturais da sociedade, em seus âmbitos: social, cultural, político e econômico, não são analisadas, no dizer de Morin (2000, p.172) de forma abstrata e fragmentada, sem conciliar o lugar das paixões, dos desejos, da libido, que também fazem parte da economia? 73 • As cores da Complexidade A partir deste mote, sem perder as categorias conflito/contradição que entendem o ser enquanto uma categoria concreta e histórica, trago à cena as contribuições teóricas apontadas por Edgar Morin sobre complexidade, não no sentido que seja um diálogo que venha “facilitar” / “suavizar” as contradições educacionais existentes de forma a universalizá-las, mas buscando em seus aportes trilhas para superação da fragmentação inadequada que nos acometeu, na tentativa de entendimento da crise atual da razão e as possíveis direções em busca de uma nova racionalidade que dê conta deste ser em uma dimensão maior. Sabemos, no entanto, que a perspectiva da complexidade não vem trazer uma resposta simples, mas um problema ao desafio que enfrentamos. Edgar Morin é um filósofo e um sociólogo da contemporaneidade que discute sobre o paradigma da complexidade. Incansável explorador na superação das estruturas deterministas e fragmentadas do saber, Edgar Morin aos 56 anos, publica, em 1977, o 1º volume do livro O Método (A natureza da natureza), quando se dedica, durante quinze anos, a completar esta obra que é composta de mais três volumes: A vida da vida (1980), O conhecimento do conhecimento (1986), As idéias: habitat, vida, costumes, organização (1991). Seus textos fazem críticas à ciência, ressaltando sua responsabilidade e seu papel na sociedade, abrindo espaço para um debate fecundo, crítico/ reflexivo da Filosofia e da Ciência, para a auto-organização de ambas, além de propor a comunicação entre as ciências, rompendo com as fronteiras que as separam, para a compreensão da complexidade da realidade e também para a compreensão da realidade da complexidade. Sabemos que a humanidade vive momentos críticos. Nos últimos anos o conhecimento construído e acumulado pelo homem direcionou-se para seu maior bem-estar, no entanto, o uso inadequado desse mesmo conhecimento tem ameaçado a sobrevivência do cosmo, do planeta, do próprio homem, trazendo como conseqüência uma crise sem precedentes. Os efeitos colaterais decorrentes dessa crise fizeram com que o ser humano se tornasse, de certa forma, uma espécie automatizada, individualizada, egocêntrica, que tem se distanciado da noção de solidariedade. 74 As problematizações defendidas por Edgar Morin nos remetem à análise deste contexto atual que reflete tais crises vivenciadas e as possibilidades de sua superação neste momento histórico, propondo novas oportunidades de conciliação com o cosmo, não a partir da síntese e da redução, mas da reforma e amplitude do pensamento e das ações, instigandonos a viver/ revelar/ desvelar a realidade em sua complexidade. A respeito do ser humano, o autor entende que a noção de sujeito compreende uma definição subjetiva e biológica, simultaneamente, não podendo ser reduzida à uma concepção nem humanista, nem metafísica, e, tampouco, à uma concepção anti-metafísica, que sugere a inexistência do sujeito, mas compreende a inseparabilidade de todas elas, o que implica ir além da noção de indivíduo, sendo percebido como um ser único no seu aspecto subjetivo. Nesse sentido, define o sujeito de forma ontológica – lógica – organizacional. Dentro desta linha de argumentação, Morin ao trazer para reflexão o Sujeito, faz uma análise a respeito do paradigma dominante/hegemônico, que se baseou na exclusão do próprio sujeito, separando-o do objeto. Reafirma ser imperioso postular o problema da disjunção total objeto - sujeito, que restringiu o monopólio do sujeito à especulação filosófica e metafísica e o objeto sendo atributo da ciência. ignorou-se que as teorias científicas não são o puro e simples reflexo das realidades objetivas mas co-produtoras das estruturas do espírito humano e das condições sócioculturais do conhecimento”( Ibid.,1999, p.7). O autor acrescenta que, na atualidade, o retorno do sujeito constitui um problema fundamental, que está na ordem do dia, uma vez que a ciência atual necessita ter o compromisso de entender o sujeito social Em o Método III (1986), salienta que é preciso pensar que o desenvolvimento da “big sciense” leva a um saber anônimo, que não mais é feito para obedecer à função que foi a do saber durante toda a história da humanidade, a de ser incorporado nas ciências, nas mentes e nas vidas humanas. O novo saber científico é feito para ser depositado nos bancos de dados e para ser usado de acordo com os meios e segundo 75 as decisões das potências (p.127). Dito de outro modo, atualmente, a regra se impõe cegamente, obedecendo-se às máquinas e não se conhecendo para onde vai essa máquina. Por que chegamos a isso? O diagnóstico foi feito há cinqüenta anos por Husserl numa famosa conferência sobre a crise da ciência européia. Ele mostrou, então, que houve um buraco cego no objetivismo científico: era o buraco da consciência de si mesmo (p.127). Isso nos revela a dificuldade de conhecer cientificamente a ciência que vem crescendo com o paradoxo desse conhecimento. Por um lado, o progresso inaudito dos conhecimentos em seus aspectos benéficos, e por outro lado, o progresso incrível da ignorância, com os seus caracteres nocivos e mortíferos, acrescentados ao progresso crescente dos poderes dos cientistas na sociedade em relação aos próprios poderes da ciência (p.119). Essas argumentações vão no sentido contrário ao entendimento que se tem sobre a questão da racionalidade que deverá apresentar-se aberta, porque a verdadeira racionalidade supõe sempre que o nosso saber não esteja completo e que algo novo venha modificá-lo (p.136), sem os preconceitos e ostentações ainda tão comuns aos meios científicos. Enfim, a quem e a que interesses a ciência estaria servindo? Sobre o desafio da complexidade, apresentado por Morin, alguns teóricos poderiam argumentar que a questão da complexidade não se constitui hoje uma novidade, considerando que desde que o ser social existe, já pressupõe a presença da complexidade, sendo que o homem pela sua forma simplista de análise, não dá conta de tais questões. A despeito da posição levantada, desconsiderar as contribuições deste teórico acerca da complexidade poderia ser um caminho redutor e equivocado, pois, ao se pensar na complexidade, acreditamos ser possível abrir espaços nos intrincados labirintos da própria existência. A ciência é, e continua a ser uma aventura. [ ] que permite , hoje a contestação das suas próprias estruturas de pensamento. Bronovski dizia que o conceito da ciência não é nem estático nem eterno, talvez estejamos num momento crítico em que o próprio conceito de ciência está a modificar-se (MORIN, 2000 b, p.26). 76 Na trilha destas questões, Morin pontua que o paradigma dominante sustenta a idéia da disjunção do sujeito do objeto, da alma do corpo, da existência e da essência, reduzindo o ser e o saber, sendo que os dois aspectos existentes no ser humano, o aspecto biológico (encarnado no cérebro) e o aspecto cultural (ligado ao espírito), encontram-se separados, sem jamais criarem laços, atestando que quanto mais se separam, mais se reduzem. Propõe que devemos ir do físico ao social e também ao antropológico, porque todo o conhecimento depende das condições, possibilidades e limites do nosso conhecimento. Sendo assim, é necessário enraizar o conhecimento físico e biológico numa cultura, numa sociedade, numa história, numa humanidade. Vivemos, hoje, uma hiper-especialização (só na Medicina existem por volta de quatro mil especialidades), cujas especializações não se comunicam umas com as outras, levando os técnicos especialistas a esquecerem que os grandes problemas humanos são transversais, multidimensionais e planetários. Percebemos que a fronteira disciplinar com sua linguagem e com os seus conceitos que lhes são próprios isola a disciplina em relação às outras e em relação aos problemas que ultrapassam as disciplinas. A partir de tais reflexões, Morin sugere o paradigma da complexidade, que se encontra fundamentado sobre a distinção, sobre a conjunção e a implicação mútua. O cérebro implica a mente e, reciprocamente, a mente só pode emergir a partir de um cérebro situado no interior de uma cultura, e, por sua vez, o cérebro só pode ser reconhecido por uma mente (Morin, 1999). Assim, o pensamento que é complexo, que é tecido em conjunto, não pode ser linear, uma vez que integra os modos simplificadores do pensar e, conseqüentemente, nega os resultados mutiladores e reducionistas, comprometendo-se com a amplificação do saber, levando à inseparabilidade do conhecimento e da ação, como todo o conhecimento mental, constrói estratégias para solucionar problemas que nos desafiam pelas incertezas vigentes e pela incompletude do saber (Método III, p.192). 77 No entanto, o autor reconhece que o pensamento complexo ainda é marginal tanto para a abordagem científica, epistemológica, quanto para a filosófica, e, por isso, suscita malentendidos fundamentais. Sobre esta questão, em seu livro Ciência com Consciência (2000), complementa: O primeiro mal-entendido consiste em conceber a complexidade como receita, como resposta em vez de considerá-la como desafio e como motivação para pensar. Acreditamos que a complexidade deve ser um substituto eficaz da simplificação, mas que, como a simplificação vai permitir programar e esclarecer (Ibid., p.176). Por outro lado, a complexidade pode ser concebida como o inimigo da ordem e da clareza e, nessas condições, aparece como procura viciosa da obscuridade. Há que se elucidar que o complexo não é necessariamente o complicado, o imbricado, o confuso, fazendo-nos lembrar problema e não solução. O segundo mal-entendido consiste em confundir a complexidade com a completude. O problema, no entanto, é da incompletude do conhecimento. O pensamento complexo não luta contra a incompletude, mas sim contra a mutilação. Por exemplo, ao pensar o ser humano, ao mesmo tempo, enquanto ser físico, biológico, social, cultural, psíquico e espiritual, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificador separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante (Ibid., p.176). O pensamento complexo é o pensamento que, armado dos princípios de ordem, leis, algoritmos, certezas, idéias claras, patrulha no nevoeiro o incerto, o confuso, o indivizível, o indecisível. (Ibid., p.180) 78 A dificuldade do pensamento complexo é justamente de enfrentar a confusão, a incerteza e a contradição, e, ao mesmo tempo, ter que conviver com a solidariedade dos fenômenos existentes em si mesmo. Ostrower, na obra - Sensibilidade do intelecto (1998) – afirma: Não há de se confundir complexidade com complicação. Ao serem complexas, as coisas não se tornam mais complicadas, e sim, mais específicas em sua diferenciação, mais verdadeiras. A noção de complexidade refere-se ao grau de organização de um fenômeno, físico ou mental, ao modo específico pelo qual se interligam os componentes, estabelecendo-se em equilíbrio dinâmico – um equilíbrio ativo, nunca passivo ou mecânico. Em vez de uma combinação de fatores aleatórios e desconexos – que sem dúvida seria complicado -, lidamos com configurações que apresentam um alto grau de integração coerente. Ao se relacionarem os diversos componentes e as possíveis interações em níveis mais elevados e ao tornarem a totalidade mais diferenciada, também os significados serão mais sutis e diferenciados (p.197). Com os suportes teóricos a respeito da complexidade, Izabel Petraglia (2001) salienta que a complexidade guarda em si as noções de complicação (confusão, desordem) e completude (solidariedade advinda da necessidade de não se isolar os objetos), aliadas à noção da incerteza que permite ao ser humano construir consciência do próprio limite, de saber que não tem limites, jamais podendo abrir mão das incertezas, visto que não há saber total, que este vai se construindo, não linearmente, mas em espiral, sem se esgotar (p.50). A autora citada, ao referir-se sobre o termo complexidade, esclarece que este surgiu na obra de Morin a partir do final dos anos sessenta, advindo da cibernética, da teoria dos sistemas e do conceito de auto-organização. (Ibid., p.47-48). A idéia da espiral nos sugere o rompimento com a causalidade linear, a idéia do princípio da dialógica (diferente da dialética), que propõe juntar os princípios, as idéias e as noções relativas ao Ser e ao Saber, além de incluir o princípio hologramático. Este princípio 79 ressalta que, uma parte do todo, representa o todo, como uma unidade complexa que contém quase a totalidade da informação. Não somente a parte está no todo, mas o todo está na parte. Podemos exemplificar, ao lembrar que a totalidade do nosso patrimônio genético está contida no interior de cada célula do corpo. Sobre esta questão já afirmava Blaise Pascal, citado por Morin (2000 b): “eu considero impossível conhecer o todo se eu não conheço particularmente as partes, como conhecer as partes se eu não conheço o todo”, ou seja, o todo não se reduz a uma simples soma dos elementos que constituem as partes, sendo mais do que isto, pois cada parte apresenta sua especificidade, que, em contato com o outro, modifica as partes e também o todo (p.30). Essas reflexões nos remetem a alguns conceitos como ordem/ desordem/ organização, que se encontram presentes no Universo e na sua formação. Ao observarmos o universo, em sua conjunção ordem-desordem, constatamos a sua própria organização. Assim, a ordem (que transcende a antiga idéia determinista de estabilidade/ permanência), em função de aspectos do acaso, desintegra-se, desordenando seu estado original, e, é a partir dessa desordem, que se inicia o processo de transformação, e o sistema se organiza. É este paradoxo ordem-desordem que promove a organização. Isto não quer dizer que a organização se reduza à ordem, ela inclui o binômio ordemdesordem. Sobre a questão do acaso, Morin diz que a desordem vai além da idéia do acaso, esclarecendo não saber se o acaso é uma desordem objetiva ou fruto da ignorância humana, sendo, por sua vez, sua natureza incerta. Não seria este o desafio de todo processo criativo, que representa o próprio processo de existir e de viver? A mudança paradigmática que se apresenta, fruto das contribuições morinianas, sugere uma urgente reforma do pensamento, além de uma ciência que se alie à consciência. Reafirmando esta assertiva, o autor, em seu livro, Ciência com Consciência (2000), na contracapa, nos instiga a refletir. 80 As ciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos. As ciências naturais não têm consciência da sua inscrição numa história. As ciências não têm consciência do seu papel na sociedade. A ciência não tem consciência dos princípios ocultos que comandam as suas elucidações. As ciências não têm consciência de que lhes falta uma consciência. Nas discussões sobre os limites da ciência, Morin nos remete aos trabalhos de Popper, Kuhn, Feyerabend, Lakatos (2000b, p.21), que assinalam como traço comum o fato de mostrar que as teorias científicas, como os icebergs, têm enorme parte imersa, que não é científica, que representa a zona cega da ciência, encontrando-se cega para suas atividades, para o seu papel na sociedade e para suas responsabilidades humanas, sendo, entretanto, indispensável ao próprio desenvolvimento da ciência. Nesse sentido, vivemos a simplificação do conhecimento e do ser humano, como salienta Morin, e, também, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2000; 2001) ao referir-se aos dois pilares: regulação e emancipação que apóiam o projeto sócio-cultural da modernidade e que têm se esgotado na presença de profundos antagonismos. Tais reflexões nos fazem repensar sobre os limites da ciência, instigando a Sociologia a dedicar seus estudos e discussões sobre os direitos mínimos de cada cidadão do mundo. Para Santos (2000) cada um desses pilares constitui-se de três princípios. Ao campo da regulação, pertencem: os princípios do Estado - apoiados em Hobbes (Leviatã); os princípios do mercado – referente às idéias de Locke; os princípios da comunidade. Ao campo da emancipação, pertencem as três lógicas de racionalidade, que são a racionalidade estética-expressiva da arte e da literatura, a racionalidade moral-prática da ética e do direito e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. Sobre esta análise, ressalta Santos (2000) que a construção abstrata dos pilares os torna infinitos, maximiza-os, tornando problemáticas as tentativas de compatibilidade entre eles, a 81 menos que haja concessões mútuas ou que se firmem compromissos em torno das divergências surgidas deste entrelaçamento. Nesta perspectiva, Santos (2001) nos remete a uma de suas perplexidades, diante dos desafios que são impostos a nós e que, provavelmente, ainda irão nos envolver nos próximos anos, principalmente, desafios de ordem econômica, como o desemprego, atingindo, frontalmente, a condição de ser humano. Problema este que, entre outros, caracteriza a existência de uma Crise do Capital. Uma outra perplexidade, segundo o autor, diz respeito, à chamada Globalização, que vem ocorrendo nas últimas décadas, favorecendo a multiplicação de redes planetárias de comunicação e informação que têm orientado no sentido de naturalização do consumismo no contexto nacional e mundial. Aliás, hoje, pensa-se no cidadão, como aquele capaz de ser um consumidor, negando-o o direito de ter suas necessidades básicas garantidas. Em direção a este mote, Santos (2001) ainda sustenta um terceiro desafio: em momento que, aparentemente, ocorrem uma revalorização dos indivíduos, em que tantos se dedicam às análises da vida privada, dos modos e estilos de vida, estes mesmos indivíduos se transformem em sujeitos menores, “meios sujeitos”, e suas vidas como nunca, tornam-se tão públicas, devido aos eficientes meios de comunicação, que têm vendido sucesso, fabricando verdadeiros “simulacros”, de ser-se único. Um outro aspecto apontado por Santos (2000; 2001) relaciona-se à questão da Democracia, que segundo o autor, quanto ao conceito de participação, este tem sido atingido pelo conformismo, pela apatia política, observando-se, atualmente, uma convivência pacífica entre democracia e neoliberalismo. Assim, os dois pilares, segundo Santos, parecem estar totalmente esgotados. O nível de racionalidade cognitiva-instrumental, terreno no qual se alastra uma grande crise, tem se caracterizado pela falta de ética no campo das pesquisas científicas, tem provocado injustiças sociais, além do descaso com as questões ecológicas e com a destruição da qualidade de vida no planeta. Quanto ao nível de racionalidade moral-prática, quatro dilemas se apresentam: a quase inexistência de valores como a autonomia e a subjetividade das práticas políticas e do cotidiano; a jurisdificação da vida social, que tem aniquilado o 82 cidadão, dificultando o uso do bom senso ou até mesmo do senso comum, dotando de uma ética individualista e irresponsável, frente a si mesmo e ao mundo em seu entorno. Tais questões postas nos fazem concluir que nos encontramos em uma fase de transição paradigmática entre uma modernidade em crise e diante de um novo paradigma, ou novos paradigmas que, ainda, não se delinearam claramente, mas que permitem abrir brechas para soluções que se comprometam com ações mais humanizantes, preocupadas com à recuperação de valores éticos, com a sensibilidade das pessoas através da arte, da solidariedade e com a dignidade da vida. Santos (2000) propõe que uma nova concepção transformadora jamais se concretizará enquanto estivermos fora da realidade dos contextos sociais, pois, é nela que devem se concentrar nossas buscas, e, só a partir dela, será possível transformar a realidade adversa com que, hoje, nos deparamos. Com esse olhar, o autor argumenta que surgem alguns sinais de esperança para o futuro que se delineia, através de concepções avançadas à nova realidade sobre os direitos humanos, os quais mudam, fundamentalmente, os conceitos de solidariedade e respeito. Sobre a racionalidade estética-expressiva, Santos (2000) sustenta que, nesse nível, apresentam-se os sinais do futuro pelo esgotamento da arte e da cultura modernas e pelo descaso com que a arte, hoje produzida, é contemplada, em contraste com os preços que se pagam para adquiri-la. Frente a tais constatações e uma vez que a racionalidade estética expressiva da arte, apresenta-se como eixo importante deste estudo teórico-prático, iremos, posteriormente, aprofundar estas considerações recorrendo a teóricos ligados ao processo de criação humana. Retornando a questão da complexidade com Morin, juntamente com as perspectivas de transformações apontadas por Santos, verificamos que as mudanças que se apresentam na sociedade, talvez, sejam oriundas da grande parte imersa da ciência, que não é considerada científica, representando sua zona cega, mas, que traz em si um potencial para as transformações, das quais os espaços/ tempos escolares têm, clandestina e marginalmente, se apropriado 83 Estariam os educadores aproveitando as pistas e os espaços cegos deixados pela ciência para vivenciarem o desafio da aprendizagem da complexidade do real? Por iniciativa da Unesco, Edgar Morin foi solicitado a sistematizar um conjunto de reflexões que servissem como ponto de partida para se repensar a Educação do século XXI, o que possibilitou a elaboração do seu livro, Os setes saberes necessários à Educação do Futuro (2000a). As considerações apresentadas são um convite para que nós educadores possamos repensar os nossos saberes e fazeres, em uma tentativa desafiadora, que nos possibilite reaprender a reunir a parte e o todo, num movimento de verdadeira globalização do Ser e do Saber, contextualizados na “Terra- Pátria”. Segundo o autor, a educação do futuro deve ter como prioridade a ética da compreensão planetária, ética, enquanto atitudes e práticas transformadoras que revelem/ desvelem a complexidade da realidade. O mesmo autor sugere, enfim, que a Educação seja pensada em uma perspectiva complexa. Queremos destacar que a cultura que é veiculada nos tempos/ espaços escolares ainda se encontra dissociada entre o humano e o científico. Por um lado, a cultura humanista, defendendo a inteligência geral, revitalizando as obras do passado, incitando à reflexão, e, por outro, a cultura científica responsável pelo compartilhar entre as disciplinas, valorizando as obras do presente, suscitando o pensamento consagrado à teoria e não uma reflexão sobre o destino humano e o seu futuro. O que Morin (1999) acrescenta: Nossa formação escolar e, mais ainda, a universitária nos ensina a separar os objetos de seu contexto, as disciplinas umas das outras não para relacioná-las. Essa separação e fragmentação das disciplinas é incapaz de captar o que está tecido em conjunto. O pensamento que recorta e isola permite aos especialistas e expertos ter grandes desempenhos em seus compartimentos, e, assim, cooperar eficazmente nos setores não complexos do conhecimento,... Mas a lógica a que obedece... ignora, oculta ou dissolve tudo que é subjetivo, afetivo, livre e criador ( Ibid., p.11 ). 84 É essa realidade fragmentada, vivenciada no cotidiano escolar, que desejamos transcender. Dessa forma, assistimos a própria ciência reconsiderar questões relativas à subjetividade humana, ao afetivo e à criação, como parâmetros para entendimento mais amplo do Ser, constituindo problemáticas fundamentais, que estão na ordem do dia. A atitude de globalizar, sendo uma qualidade fundamental do espírito humano, deverá ser sempre desenvolvida. Se a ciência clássica excluiu o sujeito, é hora de incluirmos o mesmo sujeito às novas propostas educacionais. A construção do conhecimento deverá se dar pela capacidade de se situar toda a informação em seu contexto e, se possível, no conjunto global no qual se insere, o que implica em não sofisticar, formalizar e abstrair, e sim, a possibilidade de conceituar e globalizar. Quanto à prática pedagógica, observa-se que os currículos não têm oferecido um diálogo entre os saberes que se configuram sem uma visão de conjunto. Assim, como já anunciamos anteriormente, algumas iniciativas se apresentam como pistas para a materialização das reformas que se fazem necessárias, uma vez que existem ciências multidimensionais como a Geografia, que engloba em seus estudos, desde a geologia até os fenômenos econômicos e sociais, e a História, que abarca a multidimensionalidade das realidades humanas. Isto posto, argumentamos que a Ecologia científica, as Ciências da Terra, a Cosmologia já são ciências polidisciplinares que têm por objeto não apenas um setor ou uma parte, mas um sistema complexo. Morin sublinha a importância de se pensar em conceitos como interdisciplinaridade, que tem sido tão insuficiente quanto à ONU para unir as nações, mas que pode ser analisado como um movimento de troca, de cooperação, tornando-se algo orgânico, sugerindo, também, que se pense no conceito de polidisciplinaridade que se constitui em uma associação de disciplinas em torno de um projeto ou de um objeto comum, além do conceito da transdisciplinaridade, na qual esquemas cognitivos atravessam as disciplinas. Sobre a questão da transdisciplinaridade, Morin nos provoca, dizendo que a ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar. 85 Dentro dessa visão propõe que devemos “ecologizar” as disciplinas, isto é, levar em conta tudo o que lhe é contextual, aí compreendidas as condições culturais e sociais. Voltando a questão da aprendizagem da complexidade, a arte, enquanto um dispositivo educacional, favorece a complexidade nos processos de pensar/fazer humanos. No âmbito da prática pedagógica é de suma importância que se busque a unidade multidimensional da realidade vivenciada, articulando as artes à construção dos conceitos/ categorias. Sob tal ótica, Morin (2000 b) argumenta a importância das ciências do imaginário, pois acredita que as realidades imaginárias são extremamente importantes para o ser humano. Portanto, a riqueza que, por exemplo, é trazida pela poesia e pela literatura, não deverão ser vistas como luxo ou ornamento estético, mas como escolas de vida, escolas de complexidade. Quando lemos literatura, poesia, quando analisamos uma obra de arte, por exemplo, aprendemos, compreendemos, percebemos o que as ciências não chegam a dizer, porque ignoram os sujeitos humanos. É possível descobrir a si mesmo na poesia, nos romances, em um sonho pessoal, se trabalhados e expressos em uma linguagem artística Não temos dúvidas quanto às reflexões de Morin (1999), principalmente, ao sustentar que: A poesia faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos a dimensão da existência humana. Revela que habitamos a Terra não só prosaicamente... mas, também, poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está dizível. As P artes e levam-nos à dimensão estética da existência (Ibid.,p.26). 86 Sobre a ampliação da dimensão estética da existência, quando se permite que as artes sejam vivenciadas em nossas vidas, Ostrower (1987), argumenta que:“Einstein, o grande gênio da física, também tocava violino e fazia filosofia” ( p.40). Nesta linha de argumentações, a autora, ainda sublinha: Na verdade, porém, o ser humano não pode ser considerado em partes, só pode ser considerado como um todo integrando as partes. Se decerto não cabe negligenciar as várias contribuições específicas nos processos criativos, tampouco cabe atribuir função predominante seja ao inconsciente seja ao consciente. O ato criador, sempre ato de integração, adquire seu significado pleno só quando entendido globalmente (ibid. p.55-57). Morin (1999), ainda aponta a necessidade de se globalizar e contextualizar o conhecimento, o que a Psicologia cognitiva já propõe, enfrentando o desafio da complexidade do real que reside no duplo desafio da religação e da dialética da certeza /incerteza. É preciso religar o que era considerado como separado e aprender a fazer com que as certezas interajam historicamente com as incertezas. Para que se materialize tal reflexão, acreditamos que a dimensão criativa na aprendizagem poderá contribuir na articulação das partes, tentando integrar o saber na vida, através da vivência da complexidade e da inteireza, que o ato da criação pode proporcionar. Quando o Ser cria, pensamento e ação se colocam em movimento; a ação é capaz de provocar “desordens”, inquietações, impedindo um único pensamento que seja redutor. Contrariamente, o pensamento é capaz de ampliar o olhar e o sentir de múltiplas formas, favorecendo o contato com a subjetividade e a inteireza possível, podendo atingir uma consciência ética mais ampliada sobre o mundo que o cerca. Esta abordagem que propõe unir as partes e o todo, ressignifica o saber e o fazer, uma vez que permite que o educador compreenda a teia de relações existentes entre todas as coisas, para que possa pensar a ciência una e múltipla, simultaneamente, realizando a desejada reforma do pensamento. 87 Sobre o papel do educador, Morin (1999) defende que a sua missão não deve se dissolver na profissão, o que acrescenta Platão, quando declara ser fundamental para o educador ter eros, isto é, ter amor. Amor para com a matéria que se ensina, para com as pessoas a quem se ensina. “Creio que é ressurreição trinária do amor, da missão e da fé que se poderá tentar formar os cidadãos do terceiro milênio” (MORIN, 1999). Pensando nos espaços escolares, a partir das reflexões morinianas, não se pode reformar uma instituição, se anteriormente as mentes não forem reformuladas, mas se podem reformar as mentes, ainda que a instituição não seja previamente reformada. Tal assertiva demonstra uma impossibilidade lógica, mas é desse tipo de impossibilidade que a vida se nutre. (MORIN,1999, p.15). Desta forma, a reforma poderá vir através da problematização do Ser humano, da natureza, do mundo, além de ser preciso problematizar o que traria soluções para os problemas da ciência, da técnica, do progresso. Devemos argumentar sobre o que acreditávamos que era a razão e que, amiúde, não era mais do que uma racionalização abstrata, muitas vezes representada por uma racionalidade doentia que acredita que o real pode esgotar-se num sistema coerente de idéias, ou seja, o real é mais do que o real e não pode se fechar, reduzir-se em si mesmo. A complexidade do real representa um convite para que, juntos, pensemos os caminhos dos cotidianos escolares, frente às trilhas da complexidade do conhecimento. Tentando reforçar e clarificar algumas idéias, Morin, em suas argumentações, sugere a construção de uma ciência que, com consciência, articule aquilo que o ser humano dissociou. Para tanto, há necessidade de uma reforma do pensamento, transformando-o em pensamento complexo que permita o emprego total da inteligência, que entenda o erro, a fragilidade da verdade, do mistério, do mito, da multidimensionalidade do real, na concretização de um novo paradigma que rompa com os limites do determinismo e da simplificação e incorpore o acaso, a probabilidade, o contexto que globaliza, além do entrelaçamento histórico das certezas com as incertezas, como parâmetros necessários à compreensão da realidade, sem, no entanto, buscar um princípio unitário, pois isso representaria uma redução e anularia toda a diversidade. 88 Este é um profundo caminho a ser perseguido, no qual o Ser humano deverá ser visto, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto de sua construção e do mundo. Intuímos que o Ser humano deverá ser a grande descoberta deste século sabendo que não existem receitas, pois precisamos lidar com o inusitado, com a incerteza. A investigação com as artes, em suas diferentes linguagens, poderá ser uma aliada no sentido de oportunizar vivências complexas e criativas, além de estar contribuindo para o enfrentamento da crise da razão que se estalou no mundo e em nossas cabeças, alimentada pelos paradigmas ainda hegemônicos. O ato de criação representa uma tentativa dessa superação, voltando-se a uma nova racionalidade, sabendo-se do problema dos limites dessa racionalidade uma vez que, na esfera da realidade, existe uma parcela de irracionalidade. (PENA-VEGA, 2003, p.106). É nesta perspectiva, sobre a defesa da dinâmica da complexidade da prática educativa, que percebemos que a complexidade não se constitui teoria acabada e nem uma verdade imutável, mas, um campo teórico aberto, amplo, capaz de possibilitar que uma nova lógica de organização passe a existir. Investigar o processo criador de jovens, futuros educadores com um olhar moriniano é aceitar o convite que Morin nos faz para ver o mundo com novos olhos de ver, desafiando a linearidade imposta, sem saber por onde começar, buscando perceber as vivências criativas, como um caleidoscópio que, em cada movimento, se cria / recria, em mil formas coloridas, instigando-nos à grande aventura e magia de viver. E, para tanto, nada melhor do que mergulhar no cotidiano escolar ! 89 4ª CENA: NAS MÃOS, A PALETA. OS PÉS, NO CHÃO DA ESCOLA “A fonte primeira de todo o conhecimento é o cotidiano, é o vivido” (PAIS, 2003, p.47). Quando Pais (2003, p.16), na epígrafe, refere-se ao cotidiano e ao vivido, trazemos o cotidiano escolar, como locus da complexidade, que deverá ser analisado não somente como espaço/tempo em que circulam saberes/fazeres, mas, sobretudo, em uma perspectiva metodológica, como alavanca do conhecimento . Como capturar na cotidianidade do Curso de Formação de Professores os espaços de criação com os gestos e os sentidos? Como perceber o fugaz da realidade, os detalhes criativos que, em uma concepção hegemônica, escapam dos olhares mais sensíveis, ficando à margem das propostas curriculares dominantes? Com esse olhar, Lefèbvre (1991, p.19-20) representa um valioso interlocutor, quando indaga:“Não consistiria ele (o cotidiano) uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a atividade produtora (criativa) se projeta, precedendo assim criações novas?” . Em uma via de mão dupla, podemos sugerir que os estudos sobre/do cotidiano abrem as portas para o pensamento/ação complexo, ou o pensamento complexo se abre para os estudos do cotidiano. 90 Tomo por mote as reflexões morinianas, ao sustentar que o pensamento científico disciplinador, com suas concepções quantitativas, não abriu espaço para o cotidiano, uma vez que trivializou a realidade individual, social e cultural. Os cotidianos, em uma ótica do paradigma19 da complexidade, são uma fonte de enigmas a serem revelados/desvelados, em um campo fértil de permanentes surpresas fluidas e não descoladas do social.Também nos fazem espreitar a realidade que, em sua dinâmica, pode ser imaginada, descoberta e construída. Apesar dos cotidianos se apresentarem como rotineiros, regulares, insinuam um caráter de imprevisibilidade, de ingovernabilidade, navegando por si mesmos, sem bússola (Ibid., p.81). Esta é a sua riqueza! Escolher a área de pesquisa “no”, “sobre” e “com” o cotidiano escolar, nos faz ser cúmplice deste cotidiano, que com sua rebeldia, traz manhas e manhãs, como nos cantam os poetas: “Conhecer as manhas O sabor das massas É preciso amor pra (SATER; TEIXEIRA, 1990) e as manhãs. e das maçãs. poder pulsar...” O sabor das manhãs, porque para os estudos no/sobre/com o cotidiano há sempre uma nova manhã, uma nova oportunidade, pois o cotidiano é movimento, é rotação (dia e noite), também, é translação (primavera, verão, outono, inverno), pois, em nosso caso, vivendo abaixo dos trópicos, com estações tão híbridas, lugares de múltiplas faces e de povos, estas estações se entrelaçam, colorem-se, mostrando suas astúcias/manhas. A metáfora das manhãs nos sugere a idéia do tempo, que, no cotidiano, se faz fluido, contínuo, mas, também, representa um tempo - lentidão, capaz de tecer surpresas, suspiros e silêncios. 19 Acrescento que paradigmas são estruturas de pensamento que de modo inconsciente comandam nossas ações e discursos. 91 Continuando com os nossos poetas, aliás, não podemos esquecer que foi a literatura a responsável pela entrada do cotidiano no pensamento e na consciência (LEFÈBVRE,1991, p.8), no cotidiano há manhas, porque ele se permite ser indisciplinado, incoerente, incerto, camuflando-se e iluminando-se. Também é marcado por várias histórias que não são sincrônicas, embora o cotidiano o seja, pois se vive muitos tempos ao mesmo tempo. Nele, não existe a linearidade, somente o pulsar, uma vez que: Uma prática cotidiana abre um espaço próprio numa ordem imposta, exatamente como faz o gesto poético que dobra ao seu desejo o uso da língua comum num reemprego transformante (CERTEAU, 1998, p.339). Pensar em um cotidiano e suas práticas em Arte é exercitar uma educação do ver, do observar, desvelando os tons característicos do próprio cotidiano, o que Lefèbvre (1983, p. 45) sublinha: Os defensores da cotidianidade têm então uma outra maneira de olhar o mundo. Eles pretendem fazer surgir o extraordinário do ordinário, ‘ desenvolver uma maneira não trivial de ver a trivialidade’. Porém, não basta apenas olhar mais atentamente as coisas. Mergulhar no cotidiano implica numa mudança de postura necessária a um projeto bem mais ambicioso, que é o de mudar a vida. Só com essa perspectiva podemos aqui falar de redescobrir o cotidiano ou a vida cotidiana.... Não basta pretender alcançar o cotidiano, mas é necessário, para conhecê-lo verdadeiramente, querer transformá-lo. Com estas interlocuções, ampliamos a visão de um cotidiano que se faz, não deixando de influenciar e ser influenciado por um contexto social mais abrangente. 92 Assim, buscamos falar de um cotidiano que, de forma profunda, vivenciamos no curso de formação de professores, quando expectativas, muitas vezes, recaem sobre nós educadores, em um momento em que a globalização da economia tem aumentado as nossas responsabilidades quanto a uma formação mais integral do futuro educador. Em contrapartida, as condições que nos são oferecidas, em sua maioria, não nos permitem atender a tais expectativas, ocasionando profundas contradições, sentimentos conflitantes de menos valia, de auto-limitação e de incompetência, que são escamoteadas e engessadas nas rotinas das salas de aula, nos planejamentos, nas/os pautas/ diários preenchidas/os... Partindo da idéia sobre a escola que somos, enquanto professora de uma Instituição que sempre se orgulhou do fato de ser o Curso Normal mais antigo da América do Sul, fundado em 1835, observo a precariedade desse espaço. Profissionais qualificados, em sua maioria, por universidades públicas, mas profundamente desmotivados pelas constantes desvalorizações dirigidas pelos governos estaduais. Escola sucateada, salas de aulas sujas, sem nenhum recurso material (inexistência de folha de papel, de máquina copiadora). Precariedade da biblioteca que se encontra, normalmente, fechada por falta de responsável pelo seu uso. Ausência de coordenadores pedagógicos e de orientadores educacionais. A existência de apenas um psicólogo, para quase mil educandos, que tentam se formar em professores. Continuando este quadro desolador, educandos desmotivados trazendo dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita, além das lacunas quanto ao processo de construção do conhecimento. Isso sem falar nas constantes crises de violência/insegurança que nos assaltam. Não somente a violência instalada pela marginalidade, mas a violência sobre as indefinições da continuidade do próprio Curso, que, aliás, representa um espaço histórico na trajetória da formação de professores. Por que após quase uma década da legislação em vigor, não há interesse do governo estadual em transformar esse espaço de importância histórica, em um Instituto Superior de Educação? Ao contrário, temos vivido constantes momentos de constrangimentos. Lelis (2001) referindo-se a Weber (1997), destaca os problemas que, há décadas, se arrastam nos espaços das Escolas Normais, como a desarticulação entre os diferentes tipos de conhecimentos que compõem o currículo, a redução e o esvaziamento das disciplinas de 93 caráter instrumental, a ausência de projetos pedagógicos organicamente construídos pelos docentes, além dos constantes constrangimentos que nos impõem. Sustenta que os anos passados em escolas normais bem poderiam ser considerados como “anos descoloridos”, tal é a falta de glamour da instituição. No Ensino Médio, as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais, quanto ao ensino de arte, sustentam uma consistente proposta teórica, que, no entanto, não é possível ser legitimada na prática pedagógica, em função da sua complexidade, tanto em relação à efetiva contração de profissionais que atendam às diferentes linguagens expressivas, quanto às condições físicas das escolas e aos recursos materiais necessários para tal fim. Nesta perspectiva, dentre os fundamentos dos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (1998, p.169) destacamos: Conhecer arte no Ensino Médio significa os alunos apropriarem-se de saberes culturais e estéticos inseridos nas práticas de produção e apreciação artísticas, fundamentais para a formação e o desempenho social do cidadão... As diretrizes enunciadas aqui buscam contribuir para o fortalecimento da experiência sensível e inventiva dos estudantes, e para o exercício da cidadania e da ética construtora de identidades artísticas. Esse fortalecimento se faz dando continuidade aos conhecimentos de arte desenvolvidos na educação infantil e fundamental em música, artes visuais, dança, e teatro, ampliando saberes para outras manifestações, como as artes audiovisuais. Em seguida, percebemos que os PCN, negam-se em articular os embates históricosociais e políticos que a escola brasileira tem passado ao longo de sua existência, ao sustentar que: 94 Nota-se um descaso de muitos educadores e organizadores escolares, principalmente no que se refere à compreensão da Arte como um conhecimento humano sensível-cognitivo, voltado para um fazer e apreciar artísticos e estéticos e para uma reflexão sobre sua história e contextos na sociedade humana (Ibid., p.170). No contexto desta citação, fica-nos a indagação: Quem tem sido responsável pela formação destes profissionais? Quais são os referenciais e instrumentais que avaliam o descaso que se diz observar? Quem são estes avaliadores dos educadores de arte? Qual tem sido a contrapartida dos órgãos responsáveis pela formação de profissionais do Ensino de arte, para que se viabilizem as propostas? Prosseguindo na análise, o documento destaca que com a Lei nº 5.692, a arte passa a ser tratada como experiência de sensibilização, deixando, no entanto, de ser valorizada como conhecimento humano, histórico na educação escolar. Sendo que a partir de 1987, os Congressos Nacionais e Internacionais sobre Arte e Educação abrem espaços para discussões sobre cursos de arte, nas diversas linguagens artísticas, cuja preocupação é que o conhecimento em Arte seja cada vez mais fortalecido na educação, com qualidade e no mesmo patamar de igualdade com os demais conhecimentos humanos presentes na escola básica (p.170-171). A preocupação do nosso estudo teórico-prático não se impõe, nesta perspectiva, que o conhecimento da arte seja fortalecido na Educação, atingindo o mesmo patamar de outras áreas do conhecimento. Não percebemos que a questão fundante refira-se a uma hierarquia de conhecimentos, mas, sobretudo, que a arte seja vivenciada no cotidiano escolar como um instrumento educativo, como um dispositivo para uma aprendizagem significativa e criativa sobre os saberes do mundo, sobre os saberes de si (auto-conhecimento, que também é conhecimento), somando-se aos saberes sobre o outro. Ou seja, a arte seja vivenciada em uma abordagem integral. 95 Todavia, os PCN ressaltam que existem algumas tentativas de melhoria do trabalho educativo de arte em escolas médias brasileiras nas últimas décadas, considerando-se urgentes estudos, pesquisas, discussões, mudanças profundas nos valores, conceitos e práticas que sustentem a presença da arte e de suas linguagem, com a inclusão de práticas artísticas em suas diversas interfaces, interconexões e usos de novas tecnologias de comunicação e informação. Todas estas propostas são levantadas, apesar de não se apontar o compromisso das instâncias educacionais superiores na operacionalização de práticas comprometidas com tais objetivos. Em nosso entender, caso as sugestões não se materializem no “chão da escola”, mais uma vez, a responsabilidade recairá sobre os ombros dos educadores, engrossando a lista dos seus descasos! No que se refere ao Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho – RJ, ao analisarmos a atual proposta pedagógica relativa à área das artes, observamos que as diretrizes apontadas nos PCN são, teoricamente, contempladas, como verificamos, nos principais objetivos que consideramos mais relevantes para o estudo que realizamos: Experimentar e explorar as possibilidades de cada linguagem artística; Compreender e usar a arte como linguagem (busca pessoal/ coletiva). Articulando a percepção, imaginação, emoção, investigação, sensibilidade e a reflexão ao realizar e fruir produções artísticas individuais e grupais; Experimentar e conhecer materiais variados; Instrumentos e procedimentos artísticos diversos; Reconhecer, diferenciar e saber utilizar como propriedade diversas técnicas de arte, meios de comunicação, da imagem (fotográfica, cartaz, televisão, vídeo, história em quadrinhos); 96 A produção artística visual, em espaços diversos, por meio de: desenho, pintura, colagem, gravura, escultura, instalação e outros. (Projeto PedagógicoIEPIC- 2000). Na análise feita, das diretrizes do Projeto relativas à área de artes, verificamos o compromisso da Instituição em seguir as orientações pontuadas pelos PCN. Entretanto, na prática, constatamos tanto na observação feita no/do/sobre o cotidiano escolar, quanto nas entrevistas com dois professores de artes, que atuam na formação de professores, as inúmeras dificuldades encontradas por estes profissionais na operacionalização dos objetivos propostos, a começar pela falta de profissionais das diferentes áreas expressivas, principalmente, no que se refere à música, dança, teatro, a ausência de espaços e materiais específicos para o trabalho com as artes, a impossibilidade da freqüência a espaços culturais, em visitas interativas, e, principalmente, a não articulação das diferentes áreas do conhecimento em projetos pedagógicos. Envolvidos pelo mito do progresso, pois, afinal, não podemos formar profissionais excluídos digitalmente, constatamos, nesse espaço educativo, a construção de um Núcleo Tecnológico, com inúmeros computadores, ligados à Internet. A atual lógica que se impõe, sugere que precisamos estar conectados com uma rede, mesmo que o preço seja a perda da nossa individualidade! E, indagamos: como aprender a solidariedade, tão urgente, navegando horas a fio em redes virtuais, que não nos possibilitam olhar no olho do outro? Frente às inquietações que nos movem, vale refletir: e os espaços para fazer as conexões mais profundas com as nossas potencialidades, como construí-los, até mesmo, materialmente? Há que se considerar, outrossim, a dificuldade do trabalho com arte, sem um material didático específico, pois, uma prática com a arte, que lance mão, exclusivamente, de sucatas, mesmo sabendo de sua riqueza, não atingirá a amplitude que o processo de criação exige. 97 A existência de Projetos que oportunizassem vivências integradoras de linguagens da arte na escola, poderiam comprometer-se com que, por exemplo, as áreas da arte, da literatura, da história, que representam disciplinas com forte apelo à religação, pudessem articular o que tem sido considerado como separado. Essa seria uma tentativa de que essas áreas fossem vivenciadas com toda a sua potencialidade, favorecendo a integração dos saberes na Vida e a possibilidade de se habitar a Vida poeticamente (MORIN, 1999), e, assim, estaríamos ampliando o olhar do educando favorecendo uma aprendizagem significativa, pois, mais articulada/ inteira e criativa. No contexto destas constatações, é preciso a conscientização do que nos falta no espaço/tempo escolar e, urgentemente, encontrar caminhos para pensar sobre práticas pedagógicas em arte na formação de professores, que favoreçam a articulação entre saberes/fazeres significativos, permitindo uma formação mais inteira/complexa e inclusiva, que desperte o educando para a ampliação do seu pensamento, do seu auto-conhecimento, da sua criatividade, da sua sensibilidade e para a aprendizagem da convivência solidária. Estes representam enfrentamentos a serem vividos no cotidiano escolar, uma vez que, não se deverá formar um profissional em “condições mínimas”, ao contrário, deverá se possibilitar o investimento de uma formação qualificada que instrumentalize o futuro educador para o exercício de novas práticas transformadoras/ reflexivas/criativas, enfim, éticas e emancipatórias. Respaldados no desejo de uma inclusão emancipatória do educador, entendemos ser fundamental o rompimento com uma formação preocupada puramente com a racionalidade/ competência técnica, indo-se além, levando-o a recuperar a capacidade de pensar com autonomia sobre a própria prática, refletindo sobre o próprio trabalho, pensando sobre si, pois, com a sua autoconsciência, vai se fazendo/construindo-se no cotidiano escolar. Na mesma linha de pensamento, Schõn (1992) complementa que refletir sobre a ação é pensar sobre o que fazemos e pensar enquanto fazemos algo, o que nos torna investigadores do próprio fazer. Paiva (2003), ao aprofundar estudos sobre as contribuições de Schõn (1992), ressalta que o autor distinguiu o conhecimento na ação, a reflexão na ação, a reflexão sobre a ação e sobre a reflexão na ação. Essas dimensões compõem o pensamento 98 prático do profissional, e defendem processos de ensino comprometidos com programas de formação profissional que garantam a emancipação social dos educadores (p.50-62). Ao propormos o resgate do educador enquanto ser histórico que se constrói dialeticamente, buscamos suporte em Gramsci (1978), ao sugerir que se faça um inventário sobre si mesmo, criticando a concepção de mundo para torná-la unitária e coerente. Para tanto, assinala que o ponto de partida para a elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, como nos tornamos, nesse processo histórico em que fomos construídos, enquanto sujeitos. Em outras palavras, se mecanicamente nos foi imposto uma concepção de mundo é preferível pensar sem consciência crítica, ou é preferível: Elaborar a própria concepção de mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este próprio trabalho do cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (Ibid., p.12). Neste diálogo, quando enlaçamos vários fios, necessários para uma tessitura robusta da formação de professores, marcada, ainda, por sua “inclusão patológica”, pela proletarização do magistério e alimentada por uma formação técnica caracterizada por uma autonomia parcial, percebemos que precisamos alinhavar este tecido, com os fios criativos da convivência que poderão ser responsáveis por novas trilhas definidoras de práticas pedagógicas emancipatórias, enriquecendo, sobremaneira, o cotidiano escolar. Completamos este diálogo com Maturana (1998) que, nos instiga a pensar no humano, enquanto a fusão do racional com o emocional e a articulação de seus saberes, pois, parte da premissa que não é a razão que nos leva à ação, mas a emoção. Acrescenta que sem a aceitação e respeito por si mesmo não se pode aceitar o outro, como legítimo outro na convivência, não havendo, dessa forma, o fenômeno social. 99 Ao ressaltarmos o desafio da vivência articulada da razão com a emoção, do objetivo com o subjetivo, retornamos a Morin (2000 b) - o cotidiano é o espaço da realização do complexus, onde tudo se entrecruza e entrelaça, sem perda da variedade e da diversidade das complexidades que o tecem (p.188). Frente aos profundos embates que vivenciamos talvez esta seja uma importante pista: Estou preso à vida e olho os meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas... O tempo é minha matéria, o tempo presente, Os homens presentes, a vida presente. Carlos Drummond de Andrade - Mãos dadas. 100 5ª CENA: COLORINDO A PALETA COM TEORIAS DE EDUCADORES ARTISTA “Não se trata de saber o que todo o mundo sabe, trata-se de como saber e como torná-lo operacional” (PENA-VEGA, 2003, p.160). Ao enfatizar estudos de alguns teóricos, com quem dialogamos sobre a arte, o nosso objetivo é capturar saberes que, somados aos que construímos em nossas trajetórias, ampliem olhares e direcionem operacionalizações, como sugere a epígrafe, oferecendo-nos, no caso deste estudo teórico-prático, pistas sobre o processo de criação de futuros educadores. No entanto, não podemos esquecer como nos salienta Triviños (1994, p.132-133), em sua análise sobre pesquisa qualitativa, que nesse tipo de investigação, a fundamentação teórica não existe como um capítulo separado. Ela serve para apoiar, se possível, as idéias que vão surgindo no desenvolvimento da pesquisa. Apoiados nessa ótica, não desejando simplificar e tampouco reduzir as contribuições dos teóricos, decidimos não esgotar as suas reflexões nesse 5° cenário, para que suas idéias possam retornar como fios dourados, que venham tecer juntos, às análises que, posteriormente, faremos. Por isso, optamos em iluminar nosso diálogo, resgatando um pouco da História da Educação Brasileira, que muito nos alimentou as esperanças na década de 1960, representando um importante momento histórico, para a educação de nosso país. 101 Sabemos que o ensino de arte no Brasil tem sido marcado por concepções e, conseqüentemente, permeado por práticas escolares bastante diversificadas. Entender tais cenários, remetem-nos à possibilidade de mergulhar nas histórias que, dois educadores brasileiros nos legaram em suas crenças sobre a arte enquanto uma força educativa na formação do homem e da mulher brasileiros. Nesta perspectiva, o estudo nos provoca no sentido de irmos em direção às valiosas contribuições daqueles que consideramos os “fios da prata da casa”: Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiro Mendes e suas artes de dizer/fazer. Na tentativa de análise dos pressupostos sustentados por estes dois filósofos e educadores brasileiros, buscamos gerar intervenções que ampliem as considerações a respeito da arte, enquanto um dispositivo criativo/educativo na formação do ser humano. • Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) “A mais educativa das atividades é a atividade de criação artística”. (TEIXEIRA, Anísio,1970) Sou de uma geração de educadores que cursou uma formação universitária em nível de graduação e pós-graduação nas décadas de 1970 e 1980, e não recebeu incentivo de ler Anísio Teixeira. Nesse período, sob forte influência sociológica nas análises do contexto educacional, Anísio era considerado “escolanovista”, “tecnicista”, “americanista” e “liberal”. E, como se deu o meu encontro com o professor Anísio? No final da década de 1980, em momento de tomada de decisão na elaboração dos planejamentos para um curso de pós-graduação em Educação, cujo módulo se chamava Inovações em Educação, vislumbrei a possibilidade da opção de trazer Anísio Teixeira para 102 enriquecer o nosso cenário, dentre aqueles comprometidos com a inovação da educação brasileira. Assim, junto aos professores com os quais compartilhamos este trabalho, no período de 1989 a 2001, do Amapá até o Paraná, sempre ficava a satisfação, as inquietações sobre a trajetória brasileira do tão “ilustre desconhecido”, comprometido com a escola pública, Anísio Teixeira! Queremos, dessa forma, fazer jus a sua importante contribuição à educação de nosso país, considerando a atualidade do seu pensamento em relação à educação pública de qualidade, a ênfase dada à formação dos educadores, ao valor do fazer criativo na formação integral do ser humano, além do compromisso com a pesquisa, enquanto área de investigação acadêmica. Não nos deteremos nas contradições existentes em algumas de suas análises, que consideramos serem fruto das próprias contradições do momento histórico vivido e da sua formação, as quais não invalidam, de forma alguma, o seu compromisso com a educação brasileira. Enfim, Anísio desafiou a sociedade brasileira com a discussão, ainda necessária, que a Educação não é privilégio. Sua trajetória enquanto homem público iniciou-se aos 24 anos, como Inspetor Geral do Ensino da Bahia, foi criador da Universidade do Distrito Federal (1931), um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, Diretor do CAPES e do INEP, participante ativo na elaboração da 1ª LDB, além dos livros que escreveu expressando uma compreensão profunda da História da sociedade brasileira. Ressaltamos a importância de Anísio Teixeira no que diz respeito à arte na formação do ser humano, ao investir em uma das suas mais relevantes iniciativas que foi a construção do Centro Popular Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador – Bahia, popularmente chamado de Escola Parque, síntese da proposta de educação pública de tempo integral. Inaugurado parcialmente em 1950, representou o reflexo de sua proposta maior que era a valorização do ser humano, como ser ímpar, uma vez que ele via a Educação como uma obra de vida. A multiplicidade das práticas educativas existentes, através dos oito setores de trabalho: teatro, biblioteca, educação física, pavilhão de trabalhos, artes plásticas, jornal, rádio 103 e banco econômico, constituíam uma imagem viva em prol dos benefícios da educação integral, ou seja, um processo educativo que via o ser humano em sua inteireza, em sua individualidade, mas visando o coletivo. Procurava desenvolver o ser em todos os seus aspectos de personalidade e buscando ampliar os valores maiores da pessoa humana, como a liberdade com responsabilidade, pensamento crítico, criativo, senso das artes, a convivência solidária, o espírito curioso a novas idéias e a capacidade para o trabalho produtivo (CARVALHO, 1983). Sob essa perspectiva, Anísio Teixeira define a educação através da arte com uma arte prática. Ao enfatizar a educação prática buscava conciliar na formação docente a aprendizagem de métodos de investigação e técnicas de ensino com a reflexão filosófica, contribuindo para elaborar respostas criativas às situações do cotidiano da sala de aula (NUNES, 2000, p.19). Dessa forma, a experiência de educação integral, proposta por Anísio, reunia o ensino da sala de aula com o que ele chamava de auto-educação. No discurso de inauguração da Escola Parque, sobre a importância da formação dos professores, ressalta: Teremos os professores primários comuns para as escolas-classe e para a escola-parque, os professores especializados de música, de dança, de atividade física, recreação e jogos. Em vez de um pequeno gênio para tudo, muitos professores diferenciados em dotes e aptidões para realização da tarefa sem dúvida extraordinária de formar e educar a infância nos seus aspectos fundamentais de cultura intelectual, social, artística e vocacional (ÉBOLI, 1985, p.51). A Escola Parque tinha como principal objetivo proporcionar um espaço onde houvesse a vivência da autonomia, da iniciativa, da responsabilidade, da cooperação, da honestidade, do respeito a si mesmo e aos outros. 104 Sobre essa experiência, a jornalista Yvone Jean, em sua reportagem publicada na revista Leitura (Jan/1958), em visita ao Pavilhão de Trabalho, que incluía as artes aplicadas, industriais e plásticas, observou: Ao penetrarmos no Centro, ao chegarmos a uma espécie de passarela, dominando o centro de imenso galpão de uns 100 metros de comprimento, de onde vislumbramos centenas de crianças muito ativas, cada um soltou um ‘oh’ espantado, encantado, admirado, pois esta não era uma escola parecida com qualquer outra. A claridade, a luminosidade, os coloridos e a música que se tocava, nos colocavam num mundo diferente. Como explicar as múltiplas atividades de crianças que recebem educação integral– metade do dia na classe, metade na escolaparque? Havia crianças-alfaiates, sapateiros, marceneiros, tecelões, pintores, artesãos, manipulando o sisal, o couro e tudo mais. Oh! Conhecemos muitas escolas que ensinam aos alunos o aproveitamento de palha e a tecelagem. O que era diferente era o ambiente no qual se moviam estes meninos e meninas que olhavam os visitantes nos olhos, sem complexos, com olhar claro e seguro e com alegria. . Eis aí uma fotografia do que era possível ser vivenciado naquele espaço educativo, o qual acolhia crianças da periferia de Salvador, crianças e adolescentes que tiveram a oportunidade de compartilhar a arte em toda a sua dimensionalidade. Este texto-fotográfico nos possibilita viajar em nossa imaginação e percebermos/sentirmos as cores das paletas e telas, a alegria de corpos soltos no ar, o embalo de músicas e instrumentos, a alegria nas faces de quem, assumindo o seu fazer/agir, tem a coragem de criar, dando vida à própria vida. O compromisso, a responsabilidade, a cooperação presentes simbolizam a oportunidade que o processo criativo proporciona ao conectar o ser consigo mesmo, possibilitando ser tudo o que se nasceu para ser, uma vez que suas potencialidades estão sendo vivenciadas. É a arte ressignificando a vida, é a vida pulsando em toda a sua plenitude! 105 Os educandos de nove a quatorze anos escolhiam as técnicas de seu interesse, no ato da inscrição em turmas, no pavilhão de trabalho que freqüentavam. O desenho era a atividade fundamental e de relevante importância que todos os alunos realizavam. Observava-se o entrosamento com a técnica de tapeçaria, um dos pontos altos do trabalho criador, além de bordados diversos, a confecção de cartazes, máscaras, pinturas de trajes e cenários para o teatro, além da preparação de convites, avisos, murais, programas de comemorações e divulgação do movimento dos outros setores. Nesse contexto criador, as técnicas apropriadas eram: cartonagem, encadernação, recuperação de livros, artefatos de couro, de metal, de madeira, modelagem, cerâmica, cestaria, alfaiataria, corte e costura, bordados diversos, confecção de bonecas e bichos, tapeçaria e tecelagem, que faziam com que cada um entrasse em contato com as suas potencialidades. A reflexão sobre tais práticas pedagógicas evidencia que há mais de cinqüenta anos a proposta da Escola-Parque defendia a possibilidade da vivência do potencial criador humano, na capacidade do educando expressar-se através de múltiplas linguagens, favorecendo, desse modo, uma ampla formação geral do indivíduo. As situações de aprendizagem criadas através dessas atividades, favoreciam a aprendizagem em grupo, as tomadas de decisões, a ajuda recíproca, o respeito mútuo, a troca de idéias e do julgamento de sugestões, enfim, a formação da amizade, enquanto um valor indispensável para a vivência coletiva. A disciplina era flexível, decorrente do próprio trabalho e das relações com os colegas. Pelo trabalho, o simples artesão está sabiamente ensinando os meninos a pensar, a prever, a ter paciência e tenacidade, a ser responsável e exato. Não existe a preocupação de se ensinar determinado trabalho, mas, fundamentalmente, de oferecer oportunidade para se aprender a trabalhar. Os grupos de meninos, que por ali passam, adquirem, no mínimo, habilidade em uma técnica, mas, seguramente, levam algo muito mais importante: o gosto e o amor pelo trabalho... As técnicas variadas, enriquecidas constantemente nas alternativas 106 do aprendizado, com sentido educativo, de formação da personalidade e não com característica ou cunho profissional (ÉBOLI,1985, p.52-53). Na verdade, na amplitude desse projeto não poderia faltar a questão da avaliação do mesmo. Para tal avaliação do aproveitamento dos educandos no Setor do Trabalho eram observados os seguintes aspectos: Colabora ele (a) no planejamento do trabalho? Compreende bem as instruções? Participa ativamente das várias fases do trabalho? Aproveita bem o tempo? Começa logo a trabalhar? Trabalha até encerrar o horário? É digno de confiança e assume responsabilidade? Está desenvolvendo auto-crítica e senso crítico? Procura descobrir e corrigir erros? Trabalha bem em grupo? Trabalha bem independentemente? Aceita bem as decisões do grupo? É cortês e respeita os direitos dos outros? (Ibid., p.64). Quanto ao setor artístico, que só foi inaugurado em 1963, este se colocava acima da média das atividades desenvolvidas em outras escolas. Encontrava-se sob a responsabilidade de profissionais de categoria. Temos, ali, a educação integrada na arte, não o passatempo dos teatros escolares, tão improvisados e de mau gosto (Ibid. p.70). Diante desse projeto, Anísio era considerado um visionário e não faltaram críticas ao seu empenho. Diante dos constantes ataques recebidos justificava-se:“ não se pode fazer educação barata como não se pode fazer guerra ... não há preço para a sobrevivência (1950). Tão grande investimento se justificava também pela simplificação por que passava a escola brasileira, tendo até quatro turnos diários, para atendimento dos alunos. E, sobre essa questão, ressaltava que os brasileiros depois de 1930, eram todos filhos da improvisação educacional. Nós, educadores do início do século XXI, não estamos ainda vivenciando tais provocações/ distorções dos sistemas de ensino, tanto na rede pública, indo da escola básica até a Universidade, quanto na rede privada? Acostumamo-nos, por exemplo, à redução do número de aulas que constam da grade curricular, para que se atenda ao precário número de professores (as) existentes nas escolas, mesmo sabendo que existe uma longa fila de concursados à espera de contratação! 107 A proposta de Anísio Teixeira também recebeu severas críticas daqueles que não aceitaram as suas aproximações com John Dewey, conferindo-lhe pejorativamente o adjetivo de “americanista”. No contexto destas reflexões, trazemos as observações apresentadas no livro: Chaves para ler Anísio Teixeira, quando Stela de Almeida Borges (1990) aponta as críticas que, na ocasião, eram feitas à Anísio, questionamentos estes, quanto à sua posição liberal. O Jornal O MOMENTO, em outubro de 1950, ao se referir à inauguração do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, ressalta que o educador teria se utilizado de uma fraseologia requintada de pseudo-intelectual e volteios de colibri sobre as questões sociais... os seus medos ante o avanço de revolta das grandes massas brasileiras contra o governo, as classes dominantes das quais ele é uma espécie de Peter Pan. O jornal ainda acrescenta as palavras que Anísio defendia: os pilares-Estado, Igreja, Família, e Escola, os pilares da dominação de classe, e que ele era um representante da classe dominante, defendendo seus interesses (1990, p.164). Assim, os críticos de sua época sustentam que a sua proposta representava uma escola a serviço do capitalismo com o objetivo de preparar os jovens para o fascismo. Uma escola que associa a tipologia de escola ao desenvolvimento urbano-industrial e se apóia numa teoria educacional – o escolanovismo. As críticas, a que Borges assinala, ainda continuam: Se em Anísio Teixeira, o conhecimento capaz de viabilizar o desenvolvimento da sociedade urbano-industrial, liberal, progressista, democrática é o conhecimento a partir da experiência prática, da ação, princípio que substancia a proposta da escola nova, prática e experimental, este é um postulado unidirecional, uniforme, exclusivo. Esta compreensão da ciência experimental como patamar básico para o desenvolvimento social, não dá conta das multiplicidades de conhecimento, da pluralidade, de verdades, da totalidade. Tomando a ciência como método seguro de conhecimento, esta posição não reflete a atividade humana em constante devir, mutável, histórica, em constante transformação (Ibid., p.171). 108 Além das questões, sustenta que a Escola primária representa uma réplica da sociedade, uma mini-comunidade que traz em si a concepção de trabalho dividido em Escola Classes para a instrução e Escolas-Parque para a educação (trabalho), as duas espacialmente separadas. Considera que as práticas educativas propostas atendem a um incipiente desenvolvimento industrial, que as práticas artesanais, como responsáveis na formação do homem comum, ao trabalhar com o barro, a madeira, o couro, estariam contribuindo para a manutenção do trabalho desqualificado para uma sociedade de classes. Frente a tantas provocações, gostaria de esclarecer que não compartilho dessas idéias, pois enquadrar determinadas teorias em contextos históricos diferentes, em outras culturas, em outros olhares e necessidades, significa, contrariamente, reduzir a multiplicidade/pluralidade e a totalidade do conhecimento e do ser humano. O pressuposto trazido por Eni Orlandi, citado por Chaves (1999, p.87), sustenta a fundamentação que se faz necessária. Esta autora argumenta que sempre que alguém diz alguma coisa, o diz de algum lugar da sociedade para um outro alguém, que também se encontra em algum lugar da sociedade. Isso faz parte da significação. O que nos faz indagar: De que lugar, falam os críticos? De que lugar falava Anísio Teixeira? De que lugar escreveu o jornalista para o jornal O MOMENTO? Quais os seus comprometimentos? A serviço de quem tais idéias foram escritas? Em que pese às provocações feitas pelo autor, não compartilho do mesmo entendimento a respeito da categoria experiência, que no caso da proposta da Escola-Parque representava uma experiência de criação. Não percebo nas atividades práticas sugeridas, a preocupação com a alienação, com o trabalho produtivo a serviço de um sistema econômico capitalista, e muito menos, que Anísio representasse o Peter Pan da burguesia nacional. Afirmar que Anísio aceita as divisões sociais do trabalho, separando o trabalho intelectual do manual é não ter a compreensão que uma experiência, por ser uma atividade prática e criativa, não se encontra descolada da reflexão. A arte é entendida como conhecimento. Quantas decisões são necessárias no ato de criação? Aliás, não tem sentido 109 uma teoria sem prática e, tampouco, uma prática sem uma reflexão teórica. Como se sustenta a relação dialética entre teoria e prática? Quanto à separação física dos espaços para as aprendizagens da Escola-Classe e da Escola-Parque, argumento que estes espaços só estavam separados por uma distância de aproximadamente quinhentos metros. A separação física não seria necessária em virtude do volume de atividades e instrumentos que exigiam a convivência com barulhos que poderiam vir a prejudicar um trabalho intelectual mais rigoroso? Imaginemos a multiplicidade de sons que coloriam esse espaço: vozes do coral, bandas que se mesclavam com serras elétricas, os alto-falantes da rádio escolar, somando-se aos ruídos criadores dos tornos. Não seriam verdadeiras vivências e experiências, no sentido dado por Larrosa, já anteriormente analisado por nós? Em nosso entender, tomando por base o referido autor, a partir do diálogo que fizemos com Larrosa, as práticas pedagógicas vivenciadas pela Escola-Parque não representaram experimentos em uma visão mecanicista, mas verdadeiras experiências criadoras capazes de ressignificar e dar sentidos aos fazeres dos educandos. Neste momento, vamos pedir emprestado e enlaçar mais alguns fios preciosos à nossa tessitura, que, generosamente, Maria Dolores Coni Campos (2003)20 teceu, com o seu jeito baiano e singular, ao escrever e receber cartas de arte-educadores e de artistas, que narraram as suas artes de fazer e criar. Entre tantas sensíveis narrações, trazemos dois depoimentos de educadores que nas décadas de 1950 e 1960, narram suas vivências na Escola Parque. Entre elas, a de Célia Pinto Resende (2003)21. Assim, ela nos conta: 20 Conhecer Dolores foi um desses grandes presentes que, de repente, sem esperar recebemos. Estudamos juntas em uma disciplina oferecida pela Edwiges Zaccur (2002). Enlaçamos conversas, em seu apartamento, sobre Arte, quando, generosamente, emprestou-me um dos seus valiosos tesouros – diversos números da Revista da Escolinha de Arte do Brasil. Depois, tivemos o prazer de assistir à apresentação de sua Dissertação de Mestrado: Encontros ontem: Encontros hoje. Cartas que vão, cartas que vem. Entre na roda você também. (Rio de Janeiro: UFF,2003) 21 Célia Pinto Rezende é uma professora aposentada do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, mas especialmente a Escola Parque, em Salvador/Bahia. Nasceu no interior da Bahia e reside, atualmente, em Salvador. 110 Fui bolsista de Artes Industriais e Desenho na Escola Parque em 1956. No ano seguinte, concorri a uma vaga para ensinar na própria escola. Aprovada no teste e requisitada ao Estado, passei logo a trabalhar. Fiquei, então, responsável por uma turma da Técnica de Cerâmica. Todas as turmas que freqüentavam a Escola eram formadas, levando em conta a preferência e escolha livre dos alunos. Num ambiente de cooperação e disciplina flexível, o professor orientava e estimulava, dando aos alunos oportunidade de criar, de se expressar, de aprender e se educar livremente. Sem preocupação de formação profissional. Os alunos chegavam sempre alegres. Muitos já com idéias do que desejavam fazer com o barro. No dia de abrir o forno para retirar os trabalhos queimados, o clima era de alegria, expectativa e surpresas. Todos participavam. Os alunos participavam com curiosidade e passaram a observar na redondeza, as tonalidades diferentes da terra para usarem em seus trabalhos. Em 1962, fui novamente ao Rio, enviada por D. Carmem, desta vez para freqüentar cursos na Escolinha de Arte do Brasil. Foi uma experiência muito importante. Um leque de informações. Aqui, continuei na Técnica de Desenho e também com a responsabilidade de orientar a aplicação dos desenhos das crianças nas Técnicas de Tapeçaria e Bordados diversos. Um grupo de professores ficou comigo e outro com Dona Elvira, que orientava um trabalho mais tradicional. Muitos tapetes da Escola participaram de exposições e foram muito apreciados por artistas e críticos. Além do entusiasmo com técnicas do setor de Trabalho, como Tapeçaria, Bordados etc, havia também com outros setores, como Recreativo, Teatro, Dança, com confecção de cenários e adereços, com a colaboração da Técnica de Madeira e a de Corte e Costura na confecção dos figurinos. Cartazes e convites para comemorações e eventos da Escola também eram feitos ali. Estou contando tudo isto, estendendo-me até demais, primeiro porque você se interessa e me incentiva, e segundo para tentar passar a idéia do que representou a Escola Parque para mim. Ali encontrei ambiente para realizar os planos desejos de crescer profissionalmente, vivendo, aprendendo, amadurecendo em todo o sentido (RESENDE, Apud, CAMPOS, 2003, p.60-64). 111 Desfio uma outra narrativa de Maria Celene de Andrade de Amorim (2003)22, também, uma das interlocutoras no trabalho de Dolores, que assim nos leva a viajar no tempo/espaço da Escola Parque: A história começa com uma seleção para bolsista, porta de entrada para a formação em nível de teoria e prática da educação integral concebida por Anísio Teixeira, para desenvolvimento naquele espaço educativo. Aprovada, passei nove meses em formação intensiva, tempo de uma gestação. Passei por diversas técnicas e aprendi, com grandes mestres e mestras..., a arte de trabalhar com madeira, modelagem, cerâmica, couro, metal cartonagem, cestaria, tecelagem e tapeçaria. O curso foi intensivo e intensivo também foi meu empenho para corresponder à oportunidade de que desfrutava. Não é todo dia que alguém tem, em seu currículo, uma composição de professores como os que propiciaram a minha formação. Como frutos desses nove meses, saíram muitos recémnascidos apresentados numa valorosa exposição. Orgulhosamente apresentei à minha família e aos meus amigos os meus bebezinhos: mesas, jarros, bancos, bolsas, cestas de vime e de cipó, blusas, sais, candeeiros de metal, tudo caprichosamente produzido, no ano de 1959. No ano seguinte, em 1960, comecei o meu percurso como docente da Escola Parque, em modelagem e cerâmica. Na peça crua trabalhava-se com o baixo vidrado, o que fazia com que a peça fosse decorada antes da queima final. Minhas turmas eram freqüentadas por uma média de dezoito alunos, com duas turmas em cada turno. Em um turno, eles freqüentavam as Escolas-Classe. Os alunos eram muito dedicados e faziam trabalhos muito bonitos, e sem nenhum desperdício de material. O ambiente era muito bem cuidado. O desenvolvimento dessas capacidades fazia parte do nosso cotidiano. Das minhas lembranças desse setor, tem prioridade a história de Manoel. Nem sempre o mesmo trabalho era iniciado e concluído pelo mesmo aluno, havia uma participação mais coletiva. Entretanto, Manoel desenvolvia um ciúme tal pelo objeto que produzia que deixei que ele o fizesse sozinho. No dia que o jarro ficou pronto, ele repetia 22 Maria Celene de Andrade de Amorim nasceu na Bahia. Licenciada em Desenho e Plástica pela Escola de Belas Artes da UFBA. Foi professora da Escola Parque do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, onde atuou como Diretora (1989). 112 entusiasticamente: É meu, foi eu que fiz sozinho, eu nunca tinha feito uma coisa sozinho e consegui fazer este jarro mais bonito de todos. Durante o tempo em que ele freqüentou os setores de trabalho sempre esteve em minhas turmas; nunca me abandonou e nem eu a ele, claro. Passei cinco anos em modelagem e cerâmica. Durante esse período, aconteceram coisas extraordinárias do ponto de vista educativo. Destaco a interação que ocorria entre modelagem e teatro. Incentivávamos os alunos a fazerem máscaras e fantoches de papel jornal. Carlos Petrovich era um dos professores de teatro do Parque. A partir do momento em que ele viu aquelas máscaras, passou a freqüentar o setor de modelagem em companhia de seus estudantes. Este, juntos aos nossos, com a parceria minha e de Petrô (era assim que este caro professor era carinhosamente conhecido), estabeleciam um movimento de produção de máscaras e fantoches, os quais eram usados nos movimentos teatrais da escola, que não eram poucos (AMORIN, Apud, CAMPOS, 2003, p. 65-66). As expressivas imagens narradas, entre tantas colhidas como flores pela Dolores, vêm confirmar a dinâmica, o envolvimento e a alegria que banhava a todos, professores e educandos, nesse grande laboratório criativo, que representou a Escola Parque. Assim, no percurso de nossas reflexões, sustentamos que uma proposta de educação integral precisa, acima de tudo, do fazer, ou seja, ver a manualidade como artífice da formação integral, o que não foi entendido quando da implantação dos Centros Integrado de Educação Pública (CIEP) no Estado do Rio de Janeiro, na década de 1980, por Darcy Ribeiro, durante o governo de Leonel Brizola, apesar de terem sido inspirados no projeto de Anísio Teixeira. Atuei, em um deles, no ano de 1985, quando pude vivenciar profundas contradições/desafios, marcados pela inexistência de práticas pedagógicas diferenciadas e articuladas ao fazer, que possibilitassem o processo criador dos educandos que, durante oito horas, permaneciam naquele espaço escolar. Como planejar o tempo/espaço escolar com um currículo baseado apenas nas disciplinas do “núcleo comum”, sem a presença de professores especializados para atividades artísticas, além de instrumentos e materiais específicos? 113 Vale ressaltar que a análise da situação dos CIEPs, fruto das experiências que lá tivemos, não desmerece a iniciativa ousada do prof. Darcy Ribeiro, juntamente com Leonel Brizola, naquele momento, Governador do Estado do Rio de Janeiro. Os problemas sociais e econômicos brasileiros já demonstravam sinais de uma profunda crise, e a proposta dos Centros Integrados de Educação Pública, na busca de uma escola pública de qualidade afigurava-se como uma possibilidade de rompimento com o sistema educacional vigente, apesar, bem sabemos, de alguns equívocos políticos e pedagógicos. Voltando aos fios coloridos trançados pela Escola – Parque, em seus vários espaços de criação, observava-se a convivência alegre entre crianças e jovens do mesmo sexo, como por exemplo, no teatro, na música nos esportes, nas danças. Provavelmente, em função do tipo de atividade mais pesada, como, carpintaria, marcenaria, elas fossem indicadas para os meninos. Além disso, sabe-se que os educandos ficavam dois anos nas oficinas, tendo a possibilidade de passar por várias delas. Dessa forma, constatamos, em meados do século passado, a preocupação de Anísio Teixeira com uma formação integral do educando, com a questão do fazer criativo, o que se verificava nas diversas entrevistas dadas para o Jornal da Escolinha de Arte do Brasil, que, naquele momento, já era uma marca nacional, frente aos compromissos de uma Educação através da arte. As suas formulações teóricas a respeito da vivência do processo criador representam um contraponto às idéias que tentavam enquadrá-lo como representante das classes dominantes, interessado pela formação de uma mão de obra barata a serviço do sistema capitalista. Entretanto, em que pese tal posicionamento, o interesse de Anísio Teixeira pela Arte se sustentava nas próprias interlocuções que tinha com Augusto Rodrigues, o criador da Escolinha de Arte do Brasil. Em entrevista para a Revista Arte e Educação da Escolinha, ano I – set/ 70, ressalta: Nem sempre nos lembramos de que a escola era, desde o século XIX, centros de instrução e, deste modo, é que se 114 fez pública e universal. Escola, como instituição de educação, no sentido integrativo do termo já é conceituação nova dos princípios de nosso século. Por isso mesmo, não havia idéia de arte em escola primária, mas apenas a de desenho, como treino para sua técnica (TEIXEIRA, 1970, p.3). Anísio, ao enfatizar a importância da criação das escolinhas de arte, como uma inovação pedagógica, compara-as a oásis de sombra e luz em oposição à aridez das escolas nacionais que chegam a lembrar verdadeiros desertos. Reafirma a importância do conceito inovador da arte, uma vez que não mais representa uma atividade especial de criaturas excepcionais, miraculosamente dotadas do poder de “redescobrir” a arte no emaranhado organizatório da vida racional, homogênea, mecânica, passiva e obrigatória da era de Gutemberg, mas atividade inerente ao senso humano de vida, que, felizmente, ainda se pode encontrar nas crianças que não foram completamente deformadas pelos condicionamentos inevitáveis da instrução morta e fragmentada das escolas convencionais de “retalhos” de informação, secos e duros como a vegetação habitual das zonas áridas. Dessa maneira, este autor sublinha que a arte veio a se fazer símbolo da verdadeira visão do mundo em contraste com a vida racionalizante e mecânica do mundo newtoniano, representando a forma de expressão do sentimento humano. Ainda sustentando que fazer arte é excepcional, mas senti-la é comum, geral e universal. Considera, ainda, que a criança, a despeito das forças de condicionamento da cultura, consegue escapar a esses condicionamentos, podendo conduzir sua vida a partir de formas mais livres/criadoras, possibilitando uma existência de criação, de beleza e de arte na descoberta de suas próprias potencialidades e na realização de si mesma, levando-a se sentir integrada, consciente, ao incorporar ao seu eu, o seu meio com todas as contradições existentes, pois, afinal, esta é a própria essência da educação. Acreditava que Augusto Rodrigues, através da Escolinha de Arte do Brasil: 115 Não estava a proporcionar um “recreio” artístico, mas estava a educar a criança pela forma mais alta, mais inteligente e mais reparadora e integrativa, que hoje possuímos para curar-nos das falsas deformações, que nos está ou nos irá impor o mundo de valores mortos ou moribundos de nossa civilização em transição” (Ibid. p.3). Conclui sua entrevista dizendo que chegará o dia que a experiência de Augusto Rodrigues estará presente em todas as realidades escolares brasileiras, que ele estaria a antecipar o nosso futuro, criando condições para novas mudanças, uma vez que para o artistaeducador, a Educação ou seria criadora ou não seria Educação. Para nós, distanciados no tempo em que as experiências aconteceram na escola-classe e escola-parque, ficam as imagens vividas intensamente por professores, educandos e comunidade, sendo cúmplice dos ambientes as pinturas de Mário Cravo, Caribé, que os embelezavam. Ali, o educando encontrava todas as condições para desenvolver suas capacidades e, mais tarde, ser capaz de dignificar, ou dar significado criador a todo tipo de fazer. Representou o sabor de uma experiência genuinamente brasileira marcada por lutas, contradições, muitas alegrias criadoras. • Outras pinceladas de prata : Durmeval Trigueiro Mendes (1927-1987) “A arte diversifica unindo. Não existe Educação, Sem Arte, sem Criatividade”(MENDES,1972). Durmeval Trigueiro Mendes foi um educador que, como ele próprio sustentava, tinha duas paixões intelectuais: a filosofia e a política. A experiência, desde os doze anos de idade, 116 no Seminário, o fez ir ao encontro da filosofia sem, no entanto, limitar-se aos estudos de Aristóteles e Santo Thomas de Aquino. Assim, buscou alicerçar seu pensamento em algumas categorias, tais como: consciência, sujeito/objeto, experiência, interdisciplinaridade, identidade, alteridade, historicidade, alienação e, mais tarde, mais profundamente, práxis, totalidade e vontade política. Vale ressaltar o seu interesse pela Educação através da Arte23. Nessa trajetória, desenhada pelo próprio contexto sócio-político, Mendes, ao sair do exílio que lhe foi imposto pela ditadura militar brasileira, integra o fato político como teoria, indo mergulhar no concreto das contradições existentes. Mesmo tendo atuado junto a órgãos governamentais, sua visão contestadora lhe possibilitou uma abordagem crítica quanto à tecnocracia, colocando-se como inimigo dessa lógica. Argumentava que o Estado nunca desejou resolver o problema da educação brasileira, criando o que se poderia chamar de desvio tecnocrático, ou seja, a substituição da política pela técnica, da participação pela eficiência (um conceito ambíguo). Dessa forma, demonstra ficar a educação limitada pela técnica e pela instrumentalização, com ênfase no fazer e não no fazer-fazer. A falácia da tecnocracia seria o remédio para salvar ou resguardar o imobilismo social e a conservação da estratificação social. Soma-se a tal imobilismo, a marginalização social, que representa uma das formas de alienação radical, reduzindo a separação do indivíduo de si mesmo, desintegrando-o de sua consciência. Assim, frente ao imobilismo social, à marginalização e à alienação, produzido pelo sistema capitalista brasileiro, que se encontra sustentado pelo regime tecnocrático, Durmeval Trigueiro Mendes sinaliza a descrença que existe com relação à Educação. Tentando travar um diálogo entre Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiro Mendes, no que diz respeito à educação brasileira, Anísio Teixeira ressalta, no discurso de inauguração do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em 1950, a falta de crença na educação, e, Durmeval Trigueiro Mendes, posteriormente, declara que as elites dominantes dos países subdesenvolvidos não crêem na educação em nível democrático, acreditam que o país, para 23 São relevantes os textos dedicados à arte, cultura e educação, divulgados pelo Jornal Arte e Educação, publicado pela Escolinha de Arte do Brasil. 117 progredir, não precisa da educação do povo, mas do refinamento de suas elites, sendo que um dos ingredientes dessa ideologia seria o tecnocratismo. Nesse contexto, sustenta: O tecnocrata é o demiurgo fácil. Sôfrego dos resultados, ele procura alcançá-los por todos os meios à mão. A sua idéia de eficiência é muito mais imediatista que a do filósofo, ou a do sociólogo, ou a do estadista. Como ele se caracteriza pela habilidade técnica, isto é, pela capacidade de fazer, se vem a dispor, igualmente, do poder, ele mistura os dois poderes, o de fazer com facilidade com o de impor com facilidade (MENDES,1994,p.54). Nessa perspectiva, Mendes acredita que enquanto o filósofo é, por excelência, um educador, o tecnocrata é um ”antieducador”, uma vez que o educador conhece os ritmos longos, densos e imprevisíveis que a práxis proporciona e articula para dentro e para fora de cada homem (Ibid., p.60). Por sua vez, a política educacional brasileira tem se equivocado em buscar o status de quantidade em detrimento da qualidade de suas ações educativas. Mudam-se os números, mas não se mudam as coisas numeradas e, sobre tal questão, constatamos também uma aproximação com Anísio, quando reflete a respeito dos baixos custos dispensados em Educação. Esse, por exemplo - como já nos referimos anteriormente, sobre as simplificações por que passava a educação brasileira, após 1930 - sinalizava que todos nós éramos filhos da improvisação; o que Mendes advertia era que a tecnocracia buscava obter uma inteligência política, ou técnica, ou burocrática, a baixo custo, o que nos fazia vivenciar, mais uma vez, a política das simplificações educacionais. Se se pode promover uma sociedade com cem mil pessoas exercendo o papel diretorial, por que educar dez milhões, 118 ou cem milhões, para exercer a democracia? Se o ‘desengrossamento’ do povo, até a limpidez, é tão dispendioso e ‘incerto’, por que não admitirmos a meiaeducação?(Ibid., p.58) Constatamos, assim, as aproximações entre esses dois teóricos brasileiros em suas pertinentes análises e preocupações a respeito da educação brasileira. Quanto à tecnocracia, o autor sustenta que nada tem contra a técnica, mas repele a dominação político cultural baseado na usurpação da razão e da cultura. Em contraponto a essa ótica limitadora e desqualificadora da Educação, Mendes propõe - uma consciência histórica capaz de articular a Educação ao desenvolvimento. Essa lógica romperia o processo anterior (tecnocrata), possibilitando unir, qualitativamente todos, até os limites das possibilidades de cada um e do seu meio. Nessa ótica, acrescenta que: “caso o desenvolvimento não atinja a consciência, produzirá desníveis, demonstrando o descompasso em que o país sempre atravessou em relação a um desenvolvimento que atingisse as consciências” (Ibid., p.54). Mendes (1968) argumenta em seu texto: “Para uma filosofia da Educação Fundamental e Média”, sobre as novas funções que se colocam para a Educação, em resposta às necessidades que a tecnologia e a industrialização vêm forjar, como marcas da especificidade da sociedade moderna. Destaca a ação de dois fatores: o trabalho e a educação. Ao longo das transformações ocorridas, o trabalho que, inicialmente, era colocado do lado oposto da educação, não integrado a outras categorias como a cidadania, o lazer e a cultura, passa a se constituir parte da educação, e esta do sistema de ação na sociedade. Por causa da educação, o trabalho se converte em instrumento de promoção humana e social. As articulações exigidas por um novo tipo de sinergia social desencadeado pelo processo científico e industrial, e mais a ascensão progressiva dos níveis de qualificação técnica e profissional, visam a conferir às principais instâncias elaboradoras dos ‘modelos de 119 ação’, entre elas a educação, a condição de práxis criadora e normativa do desenvolvimento. Daí surge o problema da educação permanente e de sua conexão com o problema do desenvolvimento (Ibid., p.90). Nesse sentido, a educação seria o lugar do encontro dos vários subsistemas de ação da sociedade e, numa perspectiva dinâmica, o instrumento das oposições e complementaridades entre eles, podendo, ao mesmo tempo, servir como instrumento que possibilite um tipo de ocupação e também que favoreça a construção de uma consciência crítica sobre a análise histórica da realidade. Na verdade, para Mendes (1968) o processo educacional representava um mecanismo de liberação do ser, com a possibilidade incessante de promoção social humana, que por sua vez, compreendia quatro dimensões básicas: a cidadania, o lazer, o trabalho e a cultura. Cada uma delas, com a sua nota distintiva: a dimensão política, a dimensão criativa, a dimensão social e a dimensão da consciência significante, através da qual se organiza o universo humano. Quanto à questão do fazer e da experiência, acrescenta que o fazer do homem é o seu fazer-se; que o ensino, ainda ligado à educação especulativa e verbal, tem de refazer-se no todo para fazer-se prático. No fazer incorpora o seu ser, o fazer que é fazer-se, refazendo o seu entorno e abrindo-se espaço para a sua própria re-criação permanente, permitindo explorar a inesgotável e in-finita instrumentalidade do Sujeito (Ibid., p.95). Indo em direção a esse mote, o autor pretende demonstrar que a educação eficiente é só a educação geral, a qual não tem sido incentivada em função do exagero da tecnocracia. A Educação geral deverá unir o prático, ligar o agir ao fazer e todo fazer ao agir, mediante uma práxis integradora do espírito e da matéria, ou melhor, ligada ao ser e à sociedade. Práxis, enquanto ação do homem pleno, em plena inserção no mundo: ação-pensamento, fundidos no engajamento social. Se a técnica é o domínio do fazer, este representa o ponto de encontro entre a matéria e o espírito, o ser e o mundo, a contemplação e a ação (1973, p.229). 120 Mendes conclui que toda práxis tende a basear-se em uma educação geral, e os espaços educativos poderão não se opor a técnica, mas deverão absorvê-la, ultrapassando-a e favorecendo a reconstituição histórica de nossa cultura. Compreendemos que, ao enfatizar a educação geral, como resultado de sua encarnação pela práxis, o que ocorre através das ciências e da linguagem, este autor vislumbra a possibilidade de se integrar criativamente os múltiplos saberes e fazeres. Retomando a questão da consciência - a qual se constitui de relevância para esse estudo direcionado para uma educação através da arte, no sentido de uma aprendizagem criativa de si mesmo e do outro - Mendes, ainda acrescenta, que ela é a condição geral da vida psíquica. O autor contrapõe a consciência ao processo de internalização, o qual significa uma consciência passiva, acompanhada pela percepção difusa quanto aos fenômenos culturais, econômicos e políticos. Nesse tipo de consciência, o indivíduo absorve o social sem reflexão crítica. Assim, quanto à Pedagogia, muitas vezes utiliza as categorias como “racionalidade”, “funcionalidade”, “eficiência” para neutralizar o conteúdo cultural e político, servindo para encobrir as contradições reais da sociedade brasileira. Frente a esse quadro, sublinha o autor a necessidade de se investir em um projeto de conscientização, em que na formação profissional, a técnica se constitua em uma práxis autêntica, abrangendo um projeto existencial global – no fazer que incorpore o ser, possibilitando a sua re-criação permanente (Ibid., p.17). Nessa perspectiva, o indivíduo, ao se profissionalizar, se tornaria um elemento ativo e criador, possuidor de uma consciência crítica e prospectiva. Neste ponto do nosso estudo, gostaríamos de trazer, para uma maior reflexão, a questão da categoria experiência. Para Mendes a experiência é de suma importância, uma vez que o nosso fazer é a experiência que retorna da percepção e se materializa na criação. Assim, percepção/ concretização/expressão representam reduções do universo ao individual, trajetórias realizadas pelo processo criativo, na arte e na educação, enquanto conceitos co-extensivos, ao 121 qual já nos referimos anteriormente. E mais: que nosso fazer tem sempre o nível de nossa experiência. Como o ser é a existência que se assume, a nossa práxis é a nossa criação. Continuando suas provocações, o autor admite que a educação é criatividade, em que estão presentes uma existência assumida; a imaginação como força pela qual a existência assume os objetos, assumindo-se a si mesmo, modificando-os e modificando-se; o nível experiencial, como linha de integração entre o exterior e o interior, o objetivo e o subjetivo, o ser e o fazer; o do fazer como artesanato da consciência aperceptiva e operatória; o da dialética entre o agir e o fazer, sendo o ser o próprio fazer; liberdade (1973, p.231). Sob essa perspectiva, a educação que é criatividade não pode ser uma especialização, nem ser vista exclusivamente no âmbito da racionalidade científica e técnica, mas educação como condição própria do homem, reafirmando o valor do indivíduo como fonte primária de criatividade (Ibid., 232-234). Pensando no processo educativo oferecido no ensino fundamental, sugere que os currículos não deveriam ter um desenho apenas baseado em critérios científicos e técnicos, uma vez que representa uma opção política e filosófica que vem de um saber mais radical, o saber dos valores, que estrutura o ser e a cultura do homem na sociedade. Os valores, no contexto da realidade, foram reduzidos às técnicas, constituindo-se em elementos alienadores para a formação do ser humano. Ao sugerir um desenho mais ampliado da ação educativa, enfatiza o espaço para questões da subjetividade humana articulada com a estrutura do próprio ser, sem que signifique atender a interesses individuais. Ao contrário, o processo educativo precisa ser visto com toda a sua dialeticidade, com suas tensões e rupturas, fundindo os interesses individuais e dos da sociedade. Corroborando com tais aportes, acrescenta que somente a práxis, enquanto uma ação eficaz, é capaz de mudar a consciência de cada um e dos outros (1968, p.60). Ao superar a marginalização / alienação /desintegração de sua consciência, o ser humano reintegra-se e transforma o seu empenho numa práxis, com uma consciência profunda de sua ação. O seu pensamento se torna rico em vida e ação, passando a existir através da práxis, ou melhor, o homem descobre que sua inserção no mundo se faz como práxis – ação dentro e ao longo da 122 qual ele se transforma e transforma o mundo, colhendo nessa inserção a visão de si mesmo (MENDES, 1969, p.9-18). Enfim, as contribuições desse autor, aqui apresentadas, nos apontam para a perspectiva de um fazer pedagógico que se comprometa com uma visão de totalidade que, acima de tudo, supere a racionalidade técnica instigando novos paradigmas para a sociedade e a escola brasileira em um fazer comprometido, sobretudo, com a construção da Democracia que será favorecida com o resgate do potencial criador do ser, com uma formação mais livre e uma consciência plena de si, do outro e do mundo em seu entorno. Em que pese os ditames impostos pelo sistema econômico capitalista, que a cada dia se complexifica criando os labirintos da exclusão social, Mendes nos sugere uma práxis que seja capaz de mudar o nível de consciência individual e coletiva. Para tanto, nos vislumbra com uma outra categoria - arte/criatividade - que vem alicerçada nas categorias experiência, totalidade e consciência, sustentando suas reflexões a respeito da Educação através da arte. Alguns de seus textos são relevantes para o entendimento da arte-educação, entre eles: A Arte como processo educativo fundamental (1959), Experiência e criação no campo artístico (1962), Universidade, teatro e povo (1963), Importância da criatividade na realização plena do homem adulto e do velho (1971), Em busca de uma consciência original (1972), Criatividade: a redefinição do papel do indivíduo na sociedade (Jornal do Brasil, 1974), muitos deles escritos para o Jornal da Escolinha de Arte do Brasil. Este fato evidencia que Mendes tanto quanto Anísio compartilharam, junto a Augusto Rodrigues, da importância educativa da arte na formação do ser humano. Ainda para Mendes, arte na educação significa educação em si mesma, ela ressignifica o ser possibilitando a busca de sua consciência primeira e original; favorece a vivência de totalidade, ao unir a objetividade do mundo com a sua essência/subjetividade. Por sua vez, o processo criador só poderá acontecer em um ambiente de experiências, não no sentido da experimentação, que reduz o conhecimento à simples habilidade prática (CHAVES,1999, p.95), mas a experiência como ação interativa, estimuladora da participação que permite a ruptura dos dualismos, comprometendo-se com a totalidade da realidade e com a inteireza possível do próprio ser. 123 Na verdade, para Mendes (1973, p.238) a arte, enquanto processo criador, não tem o privilégio da exclusividade, mas sim da exemplaridade, constituindo um modo privilegiado do fazer humano ligado ao ser, não como essência, mas como existência assumida. Esse assumirse que é realizado pela consciência. Muitos dos seus estudos articulam-se com o processo e o fazer criativos, entendendo que a educação é criação e que, por isso, não existe educação sem arte, sem criatividade, ou dizendo de outra forma, não existe arte na educação, existe arte-educação, a educação como consciência artesanal, como opus, como identidade do homo faber, do logos com a tecné. Nessa ótica, admite que, se a educação tradicional representa uma obra do logos e, se as décadas de 1960 e 1970 representam a obra da tecné, o futuro deverá representar uma integração dialética do logos, da técnica e do Eros, este último reconciliando logos e técnica e transcendendo-os como busca do humano como criação gratuita (Ibid., p.227). Entende que a técnica, enquanto sustentadora da vida humana, na atualidade, sem a inspiração da arte poderá ameaçar a existência ao desvalorizar o ser em detrimento dos interesses da máquina, do lucro, do poder e da dominação. Na categoria da totalidade, vê a arte como fonte de originalidade, uma vez que diversifica unindo, contrapondo-se ao nivelamento cultural, pois cada manifestação cultural corresponde a uma faceta do homem e todas elas reunidas formam a imagem do homem todo. Assim, contrapõe-se à visão de totalidade como um saber sistêmico, defendendo uma totalidade dialética, que é radical, forjada na realidade que vai se constituindo, analisando e criticando a própria totalidade e refazendo-a (MENDES, 1968, p.62-63). A realidade não se compreende senão como um Todo em evolução dialética, o que acrescenta: Nós estamos, sabidamente, num mundo dominado pela Totalidade: como filosofia e ciência, e como organização social. Poderíamos acrescentar que há, também, uma oposição entre a utopia e a ideologia da totalidade. A utopia pressupõe o reencontro incessante entre o indivíduo, os grupos, as instituições, no sistema social – e na Subjetividade criadora e ‘instituinte’. 124 Creio que temos de retornar a essa utopia, separando, nela, o fecundante do alienante – e criar novas formas de articulação da totalidade, diferentes da articulação tecnocrática, que realmente não articula nada do que está por dentro dela, e se limita a criar moldes que comprimem a complexidade, no plano real e no plano da consciência (Ibid., p.114-115). Este autor, assim, alinha-se aos paradigmas emergentes aos quais já nos referimos que se opõem à fragmentação do conhecimento, do ser humano, do seu pensar e do seu fazer, quando buscam a unidade da razão convergente. A visão paradigmática, ainda hegemônica, ao contrário, não colabora com que a vivência criadora, tanto individual quanto social, seja capaz de unificar na diversidade. Por outro lado, a unidade proporcionada pela arte une culturas em um sentimento de simpatia e solidariedade humana, sustentada por uma filosofia da criatividade que propõe um novo padrão de sociabilidade, através da redefinição do papel do indivíduo na sociedade. O corpo e a alma da cultura se refletem através da sensibilidade expressa nas primeiras impressões/experiências das crianças/jovens, impulsionando todas as elaborações posteriores, até mesmo as do plano científico, consideradas objetivas. Assim, Mendes (1968) ressalta: Mas o objeto é menos objetivo do que parece, é a realidade, mas também o modo de olhar a realidade, que a gente aprende quando abre os olhos ao mundo e começa a exercer sobre ele a aventura de nossa criatividade (Ibid., p.1). E, de uma maneira toda própria, nos faz ver que a arte é o fazer que se confunde com o ser. O ser se faz fazendo, fazer que é criação e, antes de tudo, fazer que é criação do nosso próprio ser. Desse modo, enfatiza a importância do fazer criativo na educação, não o fazer mecânico/tecnicista/convencional que é ensinado, mas o fazer da arte, o fazer de todos os fazeres, o fazer que é criação, para que neste fazer criativo, recrie a si mesmo.Neste fazer, no recriar-se, forja-se uma consciência de si por inteiro, contribuindo para a aquisição de uma 125 visão inaugural sobre si mesmo, enquanto sujeito autônomo, construtor de sua própria história, cheio de coragens para assumir-se. Nessa perspectiva, Mendes, ao final do seu texto: “Em busca da consciência original”, dialoga com Bergson sobre a dialética do “eu profundo” e o “eu de superfície”. Considera que somente o processo de criação que renova o ser e o mundo não se atrelando às convenções, permite a conquista do “eu profundo”. Bergson (1980, p.88) sublinha: O nosso eu toca no mundo exterior superficialmente; as nossas sensações sucessivas, embora apoiando-se umas nas outras, conservam algo da exterioridade recíproca que caracteriza objetivamente suas causas; e é por isso que nossa vida psicológica superficial se desenrola num meio homogêneo sem que este modo de representação nos custe um grande esforço. Mas o caráter simbólico na representação torna-se cada vez mais impressionante que penetramos mais nas profundezas da consciência: o eu interior, o que sente e se apaixona, o que delibera e decide, é uma força cujos estados e modificações se penetram intimamente, e sofrem uma alteração profunda quando as separamos uns dos outros para os desenrolar no espaço. Para Bergson o homem é o centro de evolução criadora e, Durmeval Trigueiro Mendes apoiado na idéia bergsoniana do “eu profundo”, enfatiza a importância da consciência que busca a originalidade do ser, o ser que se constrói fazendo, no fazer que é criação de si mesmo. Mendes (1973, p.238) enfatiza a originalidade do ser na criação, ressaltando que a arte é um instrumento fundamental para a formação do homem livre, estimulando-o à libertação da sua criação original. Complementa que a nossa liberdade se chama criatividade, que não é só fruto da razão, mas da existência assumida pelo indivíduo como aventura de sua consciência interrogativa. 126 No mesmo texto inclui que a criatividade tem o seu lugar, hoje, na sociedade. A arte é a busca do absoluto no particular, a busca do absoluto no indivíduo e não na esfera do universal em que ele se perde. Diferentemente do Si mesmo criado por Sócrates, que era apenas o espelho em que as idéias se miravam, hoje o Si-mesmo é fonte de valores e essências. Sentimo-nos esperançosos e otimistas frente às possibilidades que já foram vivenciadas em nosso país, ao revisitarmos a década de 1960, no que diz respeito ao espaço da arte na Educação, e, pensamos nas possíveis pistas/saídas na perspectiva histórica escolar, para o ensino de arte, no momento atual, cujas reflexões sobre as quais nos apoiamos, através dos diálogos que fizemos com Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiro Mendes, nos sirvam como suporte teórico para pensarmos a História da Educação Brasileira. Esses estudos alimentam nosso fazer pedagógico alicerçado no processo de criação e representam alicerces possíveis para a nossa construção, que se propõe perceber/sentir a arte como formadora da educação e não como mais um instrumento pedagógico, enfim, a arte como forma legítima da expressão do ser humano. 127 6ª CENA: AS CORES NA PALETA VÃO SE TOCANDO, ENVOLVENDO-SE UMAS AS OUTRAS, DEFININDO NOVOS TONS: A METODOLOGIA “Não tenho caminho novo. Novo é o jeito de caminhar”. (Thiago de Mello) Antes de avançar, vamos explicar os procedimentos metodológicos do trabalho. Pensar em uma “metodologia”, enquanto uma trajetória que favoreça o compartilhar de dinâmicas do trabalho vivencial desenvolvido na Oficina de criação, constituiu um enorme desafio frente à necessidade de construir um conhecimento novo, que, por sua vez, implicava na busca de inventar um novo caminho, algo que, aliás, não é nada fácil, uma vez que nos ensinaram a idéia de conhecimento como uma verdade. Tal lógica se configurava um tanto assustadora! Ao “farejar” esta trilha, fui tomada pelo pressentimento de que, talvez, as teorias, que têm os seus limites, não dessem conta de iluminar o material que originou das criações dos (as) educandos (as). Como se a teoria não fosse dar conta da própria vida. Com tudo isso, sentia-me, muitas vezes, paralisada e minhas angústias iam se transformando em uma única certeza, de que o caminho das inquietações é exaustivo mas, profundamente, revelador/desvelador, pois, afinal, essa foi uma vivência singular: ser uma pesquisadora. Também foi viver um tempo/espaço em que tentava unir o prazer dos estudos/pesquisa e o “desespero” de um tempo/espaço que se esvaía, como água que vai saindo, derretendo-se pelos dedos afora! 128 Mas, tentando deixar de lado minhas contradições, (se isso for possível!) voltamos a trazer as dobras da pesquisa, sabendo que a escolha de uma determinada metodologia sugere uma postura frente à realidade e à prática social, exigindo técnicas/procedimentos condizentes à postura adotada pelo sujeito. Assim, uma metodología é o conjunto de decisões a serem tomadas a partir de uma visão de mundo do sujeito frente ao objeto para a obtenção do conhecimento. (LEME,1989, p.98). Nesta perspectiva, elegemos a abordagem qualitativa de pesquisa, buscando priorizar os aspectos dinâmicos/complexos/subjetivos da natureza humana, o que nos fez procurar nos encontros vivenciais, facilitar o espaço de escuta atenta do que se tem a dizer e como se expressa esse dizer. Esta forma de abordagem qualitativa encontra eco na perspectiva de Lücke e André (1988), uma vez que prioriza os seguintes aspectos: a pesquisadora permaneceu em contato direto com os sujeitos da pesquisa futuros educadores, levantando dados em seu ambiente natural, (no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho); a maioria das informações veio através de imagens criadas pelos (as) participantes, além de suas narrações orais e escritas; deu-se uma atenção especial à opinião dos sujeitos. Ainda segunda as autoras citadas, a pesquisa possui atributos de um estudo de caso, uma vez que: • teve como objetivo descobrir no desenvolvimento das vivências, os conteúdos que poderão influenciar o auto-conhecimento dos(as) educando(as), acrescentando, no decorrer do trabalho, novos aspectos à pesquisa; • enfatizou à interpretação das imagens criativas e das narrações orais e escritas, atendo-se ao contexto em que foram vivenciadas; • descreveu o problema pesquisado, levando em consideração várias de suas dimensões, ou seja, a disposição individual durante as vivências, a participação no grupo, a transferência do vivenciado para suas situações de vida; 129 • usou diversos meios para a coleta de dados, através da análise, das imagens plásticas, poéticas, cênicas, das imagens fotografadas e filmadas, durante as vivências, da análise dos questionários; • expressou os relatos das experiências da pesquisadora no transcorrer da pesquisa. Tendo como objetivo da pesquisa a expressão da subjetividade dos educandos, procuramos nos encontros vivenciais, facilitar o espaço de escuta atenta do que se tem a dizer durante os processos de criação e como tem sido possível aos educandos se expressarem. No contexto desta reflexão, entendemos que as nossas próprias vivências criativas, que serão ressaltadas anteriormente, permitiram o encontro, enquanto pesquisadora, com o ato de criação dos participantes, favorecendo, inicialmente, no trabalho de pesquisa, um olhar mais livre de conceitos e crenças. Esta metodologia ainda encontrou-se fundamentada nas idéias da pesquisa-ação, no sentido dado por, René Barbier (1985, p.156) e Michel Thiollent (1986, p.14). Este último, a vê como um tipo de pesquisa social, de base empírica, concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo. Propõe um envolvimento ativo e cooperativo tanto do pesquisador quanto dos participantes, em uma metodologia dialógica, dinâmica, transformadora que favoreça a descoberta, a flexibilidade, além da conscientização/ participação crítica dos participantes. Tal abordagem é considerada como uma forma de experimentação em situação real, favorecendo com que o pesquisador intervenha conscientemente, mudando alguns aspectos da situação pelas ações que decidirem aplicar, através da análise da relação entre as observações que são feitas durante o processo e os fundamentos teóricos do estudo teórico-prático. Uma abordagem de pesquisa cujo caráter é contrário ao paradigma positivista, que com sua linearidade impossibilitava/a permanente interrogação, procurava entender que pesquisar é ter uma interrogação e andar em torno dela, em todos os sentidos, sempre buscando todas as suas dimensões, buscando cada vez mais sentidos e mais dimensões. O que Mendes (1973, p.237) sustentava: “O mundo se revigora, em cada interrogação” . 130 Em nosso entendimento, o olhar em todas as direções, supôs um olhar, um fazer em movimento, (por que não cíclico?), de idas e vindas, de fazer e desfazer, através de diferentes olhares, como um caleidoscópio que se recriava a cada novo movimento, sugerindo uma descrição/narração do investigado, e menos a tentativa de reduzi-lo a uma mera explicação. -Etapas do estudo 1 – Após as reflexões sobre a nossa experiência pedagógica de interlocução com as linguagens expressivas, partimos para a análise teórica relativa aos conceitos de Educação, Arte e Vivência, para, em seguida, lançarmos o olhar sobre as crises que nos envolvem, através das reflexões de educadores comprometidos com as abordagens para uma Educação Criativa e com a inteireza possível do Ser. Estes representaram o suporte teórico-prático necessário para que pudéssemos partir para: 2 - Dinamização da Oficina de Criação: Despertando o Ser. Planejamos atividades expressivas, sob forma de oficina, que ao serem vivenciadas coletivamente, instigaram o despertar da criatividade, da imaginação, do auto-conhecimento e da vivência da solidariedade. A oficina aconteceu no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, em uma sala adequada para a realização das ambiências, possibilitando o desenvolvimento do processo de criação de cada participante, no grupo, através do contato com diferentes linguagens, análise das imagens acessadas e posterior reflexão coletiva. Entretanto, esse espaço foi emprestado, com a condição de que no futuro, fosse uma sala que guardasse a memória do IEPIC, o que veio a acontecer no ano de 2005, impossibilitando a continuidade das vivências, como gostaria que ocorressem. Esse acontecimento vem mostrar-nos as manhas do cotidiano que com sua complexidade, a cada momento, nos surpreende, instigando a buscar novas saídas e pistas. Naquele momento, o sentimento que me tomou foi da força que o passado, que a memória tem sobre o presente, principalmente se estamos falando da instituição escola. Não sou desfavorável à intenção da memória, mesmo porque, minha formação primeira foi em 131 História. Mas, indagamos: onde fica o presente, que de alguma forma representa a vida, vida que pulsa?!. 3- Os praticantes24 da Pesquisa Os praticantes da pesquisa se compuseram de jovens, sobre cuja categoria chama-se Juventude, a respeito da qual gostaríamos de ressaltar o nosso entendimento. Uma vez que estamos mergulhados em uma crise multidimensional, cujos reflexos têm atingido a própria escola brasileira, crises estas, que são expressas no capital, no neoliberalismo, na globalização, na produção cultural, influenciando, sobremaneira, as vivências dos (as) jovens oriundos de segmentos sociais os mais diversos, este fato tem orientado o nosso pensamento no sentido de pensar em uma concepção de juventudes, na acepção plural dessa categoria. Estudiosos acerca da categoria juventude, Sposito (1997), Abramo (1997), Peralva (1997), Carrano (1997), Melucci (1997) têm evidenciado as dificuldades de definição desta categoria, em função dos seus diferentes “âmbitos das investigações, apontando para uma situação” de difícil resolução. Sposito no seu criterioso trabalho sobre juventude, sustenta que essa categoria encerra um problema sociológico passível de investigação, uma vez que os jovens são sujeitos históricos e culturais e suas análises não se encontram descoladas das influências conjunturais e dos processos sociais em que se movem. Entretanto, frente às dificuldades de análise, há um reconhecimento sobre a transitoriedade como característica da definição do jovem. Ainda, na trilha de Sposito, existem dois grandes blocos de estudos sobre juventude: o primeiro compreende a juventude como um conjunto social oriundo de uma determinada fase da vida; o outro bloco analisa a temática, enquanto subsumida no interior de outras dimensões da vida social. 24 Na visão de Certeau (1994) os sujeitos da pesquisa são considerados praticantes da vida cotidiana. 132 Entendemos, com Sposito (1997), que o termo juventude integra os segmentos da faixa etária de 15 a 24 anos, defendido pelos critérios demográficos, apesar de tais estudos se apresentarem, muitas vezes, limitadores. No caso brasileiro há uma tendência à antecipação do início da vida juvenil para antes dos 15 anos, na medida em que, grande parte do segmento desfavorecido materialmente é inserida no mercado de trabalho, exigindo certas características como autonomia e responsabilidade, diferentemente das experiências em países europeus, que tendem a ampliar este período. Além das questões suscitadas, a categoria juventude vem expressando os dilemas e embates característicos da contemporaneidade, sendo que no Brasil, nos últimos anos, tem crescido o interesse pelos estudos sobre este tema. Abramo (1997, p.25) aponta para o fato de que o mercado tem lançado produtos específicos para os jovens, como cadernos, programas na TV, cujos enfoques mais comuns são relacionados à cultura e ao comportamento, através de músicas, da moda, do estilo de vida, dos ídolos, do esporte e do lazer. Quanto aos noticiários que veiculam idéias sobre juventude, freqüentemente, relacionam aos problemas sociais, como à violência, ao crime, à exploração sexual, à drogadicção, ou, à medidas para erradicar tais problemáticas. Assim, ainda que políticas governamentais atualmente se preocupem com os jovens, elas buscam enfrentar os “problemas sociais” que afetam a juventude, tomando os jovens como problema, sobre os quais é necessário intervir, para salvá-los e reintegrá-los à ordem social (MELUCCI, 1997, p.26). Por sua vez, Peralva (1997, p.19) sustenta que, ao ser encarado como um “problema social”, a imagem da juventude traz ao imaginário adulto um temor, um sentimento de insegurança, constituindo uma outra dimensão da questão. Não se trata apenas de ser necessário uma prevenção ou punição, mas, o jovem passa a representar uma ameaça ao adulto indefeso. Os programas /ações que tomam essa perspectiva como mote, encarando o jovem como um problema social, vão em direção ao que lhes falta, distanciando-os de sua dimensão concreta, de suas potencialidades, sem a percepção dos embates sociais e históricos. Tratá-lo 133 por essa ótica, representa uma das formas favoráveis à continuidade de sua invisibilidade social sem suas interlocuções. Argumentamos se não haveria um interesse na manutenção deste estado de coisas, a desqualificação dos jovens na inserção/ inclusão em questões políticas, educacionais, sociais e certo temor na participação dos processos sociais em prol da Democracia? (Melucci, 1997; Peralva, 1997; Carrano (2003). Frente às representações sociais que lhes são feitas que, muitas vezes, nos impedem de perceber o jovem em sua situação real, como um ser existente, que tem conhecimentos, desejos, sonhos, amores e dores. Corroborando com tais aportes, Abramo (1997) acrescenta que poucos estudos focalizam o modo como os próprios jovens vivem e elaboram suas situações problemáticas. Daí, frente ao exposto, pretendíamos inverter a questão: quem são os jovens que participaram da Oficina? Quais são os seus sonhos, seus medos? De que modo eles se inserem e interferem, ou não, no social, na escola? Assim, a pesquisa que realizamos orientou-se no sentido de considerar os jovens como sujeitos que já são, com os seus conhecimentos, suas percepções e as influências que recebem do mundo em seu entorno, quando através da Oficina - um espaço de enunciação e expressão de seus direitos/deveres – viabilizamos a possibilidade de se verem mais inteiros, pela capacidade de pensarem e expressarem sobre si mesmos. Isto posto, a presente pesquisa teve como população alvo, jovens educandos, do segundo e terceiro anos do Curso de Formação de Professores do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, Niterói-RJ, local em que atuava/atuo como docente, percorrendo um caminho de dois anos e meio. No primeiro ano, 2002, houve a participação de onze jovens, futuras educadoras e um jovem. Nos anos de 2003 e 2004, participaram oito educandas. Os encontros na Oficina de Criação, Despertando o Ser, aconteceram às segundas-feiras, com uma duração média de duas horas semanais, perfazendo um total de setenta vivências. 134 O critério do número de participantes se justificou pelo fato de ser um trabalho vivencial, devendo oportunizar com que cada um fosse percebido pela facilitadora, em sua inteireza possível, favorecendo o processo de escuta de sua subjetividade, que incluiu seus sentimentos, suas emoções, seus medos, suas inseguranças e suas potencialidades. Os encontros ocorreram em horário diferenciado das disciplinas eletivas e contaram com a participação de um profissional da área da Psicologia, que, por mudança de residência, não pôde continuar colaborando na pesquisa. 4 – O corpus da pesquisa - o relatório (livro de vivências), nos moldes de diário de campo, para registro da experiência vivida em cada oficina, tanto dos praticantes, quanto da facilitadora; - a produção plástica de imagens dos(as) educandos (as); - o registro gravado e escrito das atividades; - as entrevistas; Foram realizadas em grupo, no sentido de troca das percepções sobre as vivências criativas; - os questionários de avaliação das oficinas; Foram empregados dois questionários, ao final do primeiro ano 2003 e outro em 2004. - os registros fotográficos e das filmagens; - a observação atenta e continuada. 5 – Plano de análise de dados Todo o material acumulado foi analisado tanto em suas recorrências como em diferenças que apresenta, possibilitando fazer a complexidade da vivência proposta. 135 Na análise das imagens, partimos dos escritos dos educandos, relativos a sua própria criação, articulando-as as suas escritas poéticas, aos registros que foram realizados pela dinamizadora/pesquisadora, durante as vivências na Oficina, entrelaçando-os aos suportes teóricos que fundamentaram a pesquisa. Esta proposta metodológica comprometida com um tecer de imagens, escritos e teorias, em um primeiro momento, poderia ter se apresentado um pouco ousada, dentro dos parâmetros hegemônicos que ainda nos “atormentam”, mas, a prática foi possível mostrar que já vivemos novos tempos/ventos e que viver intensamente é preciso, exigindo ousadia, coragem e utopias! Para entendimento dos questionários, organizados através de questões abertas, utilizamos a análise de conteúdo (Bardin,1977, p.42) que é definido como: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Esta análise constituiu-se das técnicas de análise do discurso, das relações, da expressão, da enunciação e da categorial. A palavra está para a análise de conteúdo, assim com a língua está para a lingüística. Na análise de conteúdo trabalha-se a palavra e suas significações procurando conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça (Ibid., p.42-44). Todas as técnicas de análise de conteúdo possuem as seguintes etapas: • descrição: indicação das particularidades do texto; • inferência: dedução lógica de conhecimentos, a partir da descrição; • interpretação: significação atribuída a essas particularidades. 136 A inferência é a base da especificidade da análise de conteúdo, pois permite ir da descrição à interpretação de forma controlada e explícita. As etapas enumeradas anteriormente, organizaram-se em três fases: 1ª) Pré-análise Esta etapa possuiu as seguintes finalidades: “A escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final” (BARDIN,1977, p.95). 2ª) Exploração do material Seu objetivo foi codificar os dados textuais obtidos, isto é, transformá-los, de modo a permitir representar seu conteúdo e/ou suas expressões, para facilitar a compreensão das particularidades da mensagem. Essas particularidades, geralmente, são usadas como índices. Na segunda etapa do método, fizemos a descrição analítica do conteúdo, quando o material analisado na primeira fase foi submetido a um estudo aprofundado, orientado pelos problemas formulados e pelo referencial teórico. 3ª) Tratamento dos dados e interpretação. Na última etapa da análise de conteúdo, foi feita a inferência, isto é, a partir dos dados observados nas etapas anteriores, deduziu-se elementos que foram além do que está escrito na mensagem, acerca do emissor, do receptor, da própria mensagem ou do seu meio de transmissão. 137 Nesta fase de interpretação referencial, a análise alcançou uma maior intensidade, com a ajuda da reflexão, da intuição, para que se estabelecesse as relações, na busca de desvendar o conteúdo latente dos dados (TRIVIÑOS, 1990, p.162). Ampliamos a análise dos dados com a abordagem explicitada por Ginzburg (2003), com o seu paradigma semiótico ou indiciário, quando nos conduziu a um outro olhar, devido ao seu interesse pela obra de arte. O autor contrapõe este paradigma, ao das ciências naturais, propondo a utilização de outros métodos, vistos como pistas traduzidas em sintomas, para Freud, em indícios para Holmes e em signos pictóricos para Morelli. Incentivando-nos a apurar os nossos olhares, as pistas/ indícios, muitas vezes, apresentam-se insignificantes, para o entendimento da realidade, apesar de ter surgido no século XIX, para as ciências humanas, as suas origens são muito antigas, vindo desde o período do homem caçador. Mas por trás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escuta as pistas da presa (Ibid., p.153). Por milênios o homem aprendeu a interpretar pegadas na lama, galhos quebrados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba e a tomar decisões em função delas. Muitas operações mentais foram sendo constituídas e transmitidas através de gerações (Ibid., p.151). Desta forma, os estudos de Ginzburg apresentaram um novo paradigma de apreensão mais aprofundada da realidade, baseando-se no método morelliano25 de reconhecimento de pinturas, cujo olhar, detém-se em formas/ pistas, quase sempre, negligenciáveis. Acreditamos que as vivências em arte, situadas no cotidiano escolar, representaram para nós pesquisadora, um farejar de sinais, uma vez que as imagens plásticas, escapavam do crivo defensivo do ego, possibilitando capturar, com maior amplitude e complexidade, através 25 Para maior entendimento sobre o método de Morelli, buscar GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. SP: Companhia das Letras, 1989. 138 do exercício de um olhar mais apurado, os elementos sensíveis da realidade, sendo que estes também foram expressos através de pequenos gestos, de sutis olhares, ricos em detalhes, arriscando-nos nessa verdadeira caçada. Cabe lembrar, ainda, voltando o nosso diálogo com Triviños, que a pesquisa qualitativa não segue uma seqüência muito rígida. Muitas vezes, a coleta de dados e a análise dos dados se entrecruzam. As informações recolhidas podem ser interpretadas, gerando a exigência de novas buscas de dados. Isto é possível acontecer, porque a pesquisadora, ao iniciar o seu trabalho, não se orienta por hipóteses levantadas a priori, o que ocasiona, geralmente, mudanças no seu percurso. E, se o caminho se faz ao caminhar, vamos em busca dos Cenários de arteducação. 139 RESSONÂNCIAS Quero falar de algumas verdades Entranhas do ar Trançados e fios, De sentimentos que falam, Que colorem, que se tocam, E, de flores que se abrem para o segredo do Céu. Quero falar de profundidades, Sentidas, vividas, Vertidas, na troca de olhares, Na mistura de cores, Nos suspiros e lágrimas... Quero falar do silêncio Das mãos que se abrem para o afeto Que sonham e reclamam, Que amassam o barro e, Milagrosamente dão-lhe Vida, E, que falam e que se expressam... Quero falar de VOCÊS, Corações amorosos e saltitantes, Que buscam com apetite, Os brotos tenros da Esperança, Que pressentem, Que a Vida é mais do que tudo isso e, Corajosamente, acreditam Que é tão bom CRIAR! Que é tão bom VIVER! ... Quero falar, falar de VOCÊS!... 140 141 7ª CENA: AS TINTAS COLORIDAS DAS AMBIÊNCIAS Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo Com o lápis em torno da mão imitou uma luva E se faço chover com dois riscos tem um guarda-chuva Se um pinguinho de tinta cair num pedacinho azul do papel. Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu. (TOQUINHO E VINÍCIUS, Aquarela, 1983). Propomos abrir esta Cena selecionando as diferentes ambiências que foram realizadas, os seus objetivos, os tipos de linguagens que entrelaçaram os Encontros, com os respectivos materiais expressivos vivenciados, representando, incluindo, dessa forma, as três fases do plano de análise de conteúdo – pré-análise, a exploração do material e a interpretação (BARDIN, 1977). Optamos em apresentar esta Cena, não com uma tessitura/pintura de fios lineares coloridos e soltos, sobre o relato das ambiências, mas, propomo-nos a enlaçar estes fios a pontos cheios e nós, expressos com muita “alma” e sensibilidade nas imagens, nas histórias/narrações tecidas pelos sujeitos participantes, sem a preocupação com uma cronologia dos encontros, na seqüência em que aconteceram. Esta representa a tentativa de “alinhavar o roteiro” do que foi vivenciado, unindo falas registros e imagens que o tornam profundamente significativo, pois, dão-lhe vida. Além de 142 lançarmos mão dos suportes teóricos que alicerçaram a pesquisa, iluminamos as categorias eleitas auto-conhecimento, criatividade e solidariedade com o tratamento dos dados e sua interpretação, ou seja, com a 3ª etapa da análise do conteúdo – a interpretação. Chamamos o espaço de - Oficina de Criação - por entendermos que oficina é um local de trabalho, e que o ser humano elabora seu potencial criador através do trabalho (OSTROWER, 1996, p.31). Dessa forma, a Oficina representa um local de um fazer, um fazer que se deseja criativo, na medida em que convide o corpo a participar, favorecendo a integração corpo e mente, objetividade e subjetividade, conteúdo e forma, razão e emoção, individual e coletivo, partes e todo, que permitam construções e des-construções de formas externas, de pensamentos e de sentimentos, ou seja, um fazer-se e um des-fazer-se contínuos, em um movimento circular. Sobre o movimento de percepção externa e interna, Vygotsky (1990) sugere que ele representa o começo de um processo que serve de base para nossa experiência criativa (p.128). Para que a Oficina de Criação tivesse vida e pulsasse no ritmo da própria vida, era necessário que se criasse um espaço em que pensamentos, sentimentos, emoções, sensações, intuições, encontrassem campo, para serem estimuladas e vivenciadas, o que exigia, acima de tudo o cuidar, no sentido dado por Boff (2000). Este cuidado, que, muitas vezes, falta em muitas de nossas práticas, pressupõe, acima de tudo, o respeito ao Outro, compreendendo-o como o legítimo Outro, sublinhado por Maturana (1998). O respeito advém da capacidade de olhar fundo no olho do educando e auscultar-lhe a “alma”, seu nível de compreensão sobre as coisas do mundo, seus sentimentos, seus sonhos, sua capacidade de criar, dar forma e transformar, além da possibilidade de permitir que o outro fale, expresse-se, critique, opine, ou seja, participe, intensamente, do seu processo de aprendizagem, aprendendo a aprender, aprendendo a ser e aprendendo a conviver. O cuidar se expressou, também, no respeito ao ambiente físico, que em suas dobras se fazia limpo, perfumado, florido, para que o contato com um pouco da beleza, pudesse apurar 143 todos os sentidos de uma forma mais inteira, a visão junto ao olfato, à audição, ao paladar e ao tato. Sobre os sentidos, percebemos que os educandos não têm vivenciado, nas escolas, as relações sinestésicas (integradoras) com a realidade. Não são estimulados a relacionar o que vêem com o que ouvem, com o que tocam, com o que provam e cheiram, muito menos a relacionar o que pensam com o sentem. Ao favorecer com que os sentidos nas ambiências fossem saboreados, possibilitou-se uma experiência, no sentido dado por Larrosa (2002), aquilo que nos toca, que nos faz viver o singular, o plural e a abertura para o desconhecido. As ambiências foram construídas com este cuidado, dando espaço para o diálogo, respeitando a escolha de cada um, quanto ao material a ser utilizado, buscando criar surpresas que despertassem a curiosidade e a imaginação. A atividade criadora ao dar ênfase à experiência sensível é reforçada pelas palavras de Vygotsky (2003 a): Quanto mais veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e assimile, quanto mais elementos da realidade disponha em sua experiência, tanto mais considerável e produtiva será, como as outras circunstâncias, a atividade de sua imaginação (p.18). A imaginação não se encontra descolada de um pensar, o que Ostrower (1996) esclarece, o imaginar seria um pensar específico sobre um fazer concreto, por meio da concretização de uma matéria (p.32). A autora, ainda continua: 144 O pensar específico sobre um fazer concreto vai além da idéia de uma tarefa a ser executada porque exeqüível. Os pensamentos e as conjeturas abrangem eventuais significados. Trata-se de formas significativas em vários planos, tanto ao evidenciarem viabilidades novas da matéria em questão, quanto pelo que as viabilidades contêm de expressivo, e, ainda, porque através da matéria assim configurada o conteúdo expressivo se torna passível de comunicação (p.33). De acordo com estes autores, a imaginação requer um espaço estimulador dos sentidos, provoca uma materialidade significativa, capaz de expressar-se através da forma. Assim, as ambiências foram sendo tecidas, contextualizando experiências, através de olhares/ escutas sinceros, nas trocas constantes, criando interações/relações vivas, tonalizando vozes, colorindo histórias em ritmos e compassos os mais diversos, em uma partilha de idéias, afetos e solidariedade. E sobre a ambiência e a sua relação com a solidariedade, Wallon (1956) enlaça fios à nossa tessitura, ao afirmar: Já se tomou consciência da solidariedade existente entre a ambiência e o indivíduo, este não podendo existir sem aquela, sendo, entretanto, o indivíduo capaz de também modificar o meio... O porvir da educação se encontra na disposição desses meios. Nada mais eficaz que a ação exercida sobre a criança e igualmente sobre o homem, através do ambiente (p.41). O compromisso em narrar as ambiências, pensando em uma formação mais inteira e solidária dos sujeitos da pesquisa, futuros educadores, fez-nos pulsar em direção de uma abordagem integral em arte comprometida, verdadeiramente, com o ser humano, em seu 145 processo de criação, através de uma visão sócio-histórica na concepção de Vygotsky, que busque trabalhar as potencialidades dos educandos. Como professora de Sociologia da Educação do Curso Normal (Ensino Médio), no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, em Niterói – RJ, iniciamos a Oficina de Criação, com um convite, que esclarecesse o que pretendíamos nesses encontros. No período de agosto de 2002 a dezembro de 2004, realizamos um total de setenta encontros, sendo que, cinco encontros aconteceram fora do espaço escolar. Três encontros no atelier de Cerâmica da artista Keiko Mayama (Itaipu-Niterói), e no atelier de pintura em tecido da artista Lilyan Guimarães Berlim, (Itaipu-Niterói), além de duas visitas interativas, ao Centro Cultural do Banco do Brasil (RJ) e ao MAC, Museu de Arte Contemporânea (Niterói). Nesta pesquisa não trouxemos para análise, exploração e interpretação todo o material que foi coletado durante os setenta encontros. 146 O critério para escolha do material se deu, sobretudo, em relação aos encontros que tiveram maior número de participantes, e, com isso, maior produção de materiais para estudo, possibilitando um aprofundamento qualitativo dos mesmos. No anexo 2 apresentamos um roteiro, através dos objetivos, das diferentes atividades desenvolvidas durante os encontros. Esclarecemos que, por dificuldades de articulação do projeto de pesquisa com as atividades curriculares da escola, a freqüência dos educandos aos encontros da Oficina foi flutuante, pois, tinham que freqüentar os horários dos estágios, sem contar com os problemas familiares, profissionais, que, muitas vezes, os impediam de permanecer na escola, à tarde, fora do horário das aulas. Tivemos, assim, nos primeiros quatro meses (Agosto a Dezembro de 2002) uma média de doze participantes, dentre eles, um do sexo masculino, e, nos anos de 2003 e 2004, uma média de oito participantes. Houve um retorno de trinta questionários e doze diários de bordo. • Abrindo a porta... trouxeste a chave? Os primeiros encontros tiveram como objetivo abrir os canais da sensibilidade para as propostas de criação, permitindo-se experienciar o ambiente, aguçando as sensações através dos sentidos da visão, do tato, do olfato, da audição e do paladar, percebendo o espaço em seus detalhes, o seu corpo nesse espaço e a presença dos parceiros nessa trajetória. A primeira vivência aconteceu no dia 12 de agosto de 2002, quando vinte educandos, na faixa etária de 14 a 21 anos, sendo dezenove mulheres e um homem, todos cursando o 3° ano do curso de formação de professores, foram surpreendidos, na entrada da sala da Oficina, com uma Porta de papel, com a inscrição do texto – Interiores- (autor desconhecido), também, com adaptações, chamado Portas, por Içami Tiba. 147 Portas Se você abre uma porta, você pode ou não entrar em uma nova sala. Você pode não entrar e ficar observando a vida. Mas se você vence a dúvida, o medo e entra, dá um grande passo: nesta sala, vive-se. Mas, também, tem um preço... São inúmeras outras portas que você descobre. Às vezes, quebra-se a cara, às vezes curte-se mil e uma. O GRANDE SEGREDO É SABER QUANDO E QUAL A PORTA QUE DEVE SER ABERTA. A VIDA NÃO É RIGOROSA. Ela propicia erros e acertos. Os erros podem ser transformados em acertos, quando com eles se aprende. Não existe a segurança do certo e do eterno. A VIDA É GENEROSA. A cada sala que se vive, se descobre tantas outras portas. E a vida enriquece quem se arrisca a abrir novas portas. Ela privilegia aquele que descobre seus segredos e generosamente oferece afortunadas postas. MAS A VIDA PODE SER TAMBÉM DURA E SEVERA, se você não ultrapassar a porta, terá sempre essa mesma porta pela frente. É a repetição perante a criação. É a monotonia monocromática perante a multiplicidade das cores. É a estagnação da vida... PARA A VIDA, AS PORTAS NÃO SÃO OBSTÁCULOS, MAS DIFERENTES PASSAGENS... Lemos o texto e, como nesta porta havia um buraco aberto com uma fechadura, os educandos foram estimulados para que olhassem, curiosamente, espreitando os segredos que na sala habitavam. 148 Provocamos algumas perguntas: Que porta é esta? Que portas fechamos e abrimos? Que portas maiores e pesadas fechamos? O que nos espera atrás desta porta? O que temos que abrir dentro de nós? O que anda trancado dentro de nós, bem escondido? Que mundo é esse dentro de nós que precisamos saborear? Vamos abrir esta porta? Para abri-la, o que precisamos? Trouxeram a chave? E lemos o poema de Carlos Drummond de Andrade: Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? As ambiências, através das diferentes linguagens expressivas sempre estimularam o dizer, o tomar a palavra (FREIRE, 1985), a curiosidade, a imaginação, filha da criatividade, a sensibilidade, a auto-percepção e a solidariedade. Sempre, após o ver uma imagem, ouvir um poema, fazer uma pintura ou escultura, tecer imagens em um pano, dançar o corpo no espaço, os participantes eram convidados a expressar oralmente e/ou pela escrita os seus sentimentos, suas expressões da “alma”, sugerindo com que mergulhassem na sua viagem lúdica pelos materiais. Suas imagens, falas, escritos iam fiando figuras, que entrelaçavam imagens e histórias, ilustrando o vivenciado, deixando a cada encontro fluir a linguagem que apostamos – a linguagem criativa, que vem 149 nutrir nossas reflexões sobre a criatividade, sobre o lugar da poesia na vida, sobre o conhecerse a si mesmo e o outro. Sobre o ambiente no qual nos acolhia, os participantes foram convidados a olhar atentamente a sala, percebendo seus detalhes, seus cheiros com os aromas de flores, as essências do Brasil, como cravo e canela, uma vez que, de acordo com Ostrower (1996), todo processo de criação exige uma percepção consciente de si mesmo e do ambiente ao seu entorno. Assim, foram tocando com as mãos o que encontravam, e com seus pés sentindo a temperatura do chão. Ainda era possível ouvir o som de uma música suave que, com seu ritmo, os envolvia mais profundamente na ambiência. Todo o seu corpo era convidado a participar, além de serem solicitados a olharem atentamente nos olhos de suas amigas e do amigo, parceiros na Oficina, percebendo neles o que ainda não tinham sido capazes de perceber. Fazemos, nesse momento, interlocução com Herbert Read (2001), quando afirma que a percepção e a imaginação são processos mentais básicos, implícitos na arte e na educação. Por exemplo, a atividade de desenhar ou pintar representa uma forma de atividade mental (p.239), sendo que a arte deverá ser a base de qualquer técnica educativa, ou seja, a arte representa o melhor guia para um sistema educacional que tenha alguma preocupação com as diversidades naturais de temperamento e personalidade (p.183). Voltando à descrição das ambiências, tapetes coloridos espalhados pelo chão, corpos neles sentados, um cheiro de limpeza, cortinas nas janelas, ou seja, uma sala cuidadosamente tratada. Era a primeira vez, que nesta escola, eles tinham a oportunidade de sentarem-se no chão, através de um ambiente acolhedor. Perguntamos: O que nos lembra a palavra chave? E, assim, palavras, começaram a serem “acordadas”: abertura, desafio, porta, portas, fechadura, oportunidade, alegria, sucesso, possibilidades, ouro, sabedoria, tesouro, encontro, desencontro, caminhos, parceria... Conversamos sobre as portas que a vida lhes têm apresentado e qual tipo de Porta poderá representar as vivências que serão acolhidas neste espaço. 150 Junto a papéis, lápis coloridos, pincéis e tintas, começaram a expressar e a escrever. Há sempre uma porta a ser aberta e novos prazeres a serem conhecidos. (PRISCILLA, 12/08/02). Desejo poder encontrar uma paz no meu ser. Aprender a separar e a conciliar os meus sentimentos. Adquirir sentimentos que ainda não tenho. Superar os maus momentos vividos até hoje. Descobrir novas portas em mim mesma. Ter concentração para o estudo e o trabalho. Observar as pequenas coisas (atenção). Coragem para abrir as portas da minha vida e ter discernimento para fechar aquelas que não me servem. (FABIANA, 12/08/02) Desejo me descobrir. Desvendar os mistérios do meu interior. Me conhecer o mais íntimo que puder. Me sentir mais livre, mais perto de mim mesma. Ser capaz de ser. Esquecer por alguns instantes as amarguras. Deixar o meu interior falar, gritar se for preciso. Deixar os meus medos morrerem para viver o impossível. (KARLA, 12/08/02). Em meio a tantos problemas, tantas questões mal resolvidas em que eu me encontro, espero hoje, nesta porta que foi aberta (onde o meu ser arde de expectativas) procurar valorizar mais o sentido da vida. Quero poder ter a capacidade de entender o que é viver, pois, ultimamente, não tenho conseguido pensar em mim, tenho tido frustrações e sem tentar descobrir o amanhã. Não quero mais estar abrindo uma porta com medo, não quero abrir uma porta pensando como vai ser a outra porta que irei ter que abrir após esta. Preciso aqui me desvencilhar desses medos (SUELLEN, 12/08/02). Surpreenderam-nos estes escritos, elaborados de forma tão transparente, profunda e sensível, pois este era o nosso primeiro encontro. Através dos escritos, os educandos revelaram a vontade e a coragem de conhecerem a si mesmos. 151 Tomamos emprestado os escritos de Ginzburg (2003, p.179), que nos auxiliam nesse exercício de aprender a olhar imagens, fotos, a ler textos, quando esclarece: Tratam-se de formas de saber tendencialmente mudas, no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática, regras pré-existentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista e intuição. Os relatos dos participantes sinalizavam que a pesquisa estaria indo ao encontro dos anseios dos jovens, que talvez não tivessem tido a oportunidade de vivenciarem uma aprendizagem de si mesmos, no espaço escolar. Com Ostrower entendo: Que os processos de criação representam, na origem, tentativas de estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde o homem se descobre, onde ele próprio se articula à medida que passa a identificar-se com a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das coisas e que novamente são transferidas para si (1996, p.53). Além dos escritos, imagens foram expressas, da natureza, do sol, de flores, de árvores, de corações vermelhos, outras simbolizando o desejo de paz, como a de Suellen: 152 . Em minha análise, a expressão da natureza, representou a necessidade de abrir espaço interno ao relaxamento, o que foi reforçado em suas falas. A presença dos desenhos de corações, provavelmente, estava ligada aos seus sentimentos amorosos, aos seus conflitos, tão comuns nesse período da juventude. A presença de imagens recorrentes como da natureza (planeta, mar, sol, lua, estrelas, montanha, peixes, rostos humanos), além dos traçados de casas, de caminhos, de portas, de barcos, de corações inteiros ou partidos, representam símbolos que transmitem significados profundos para a vida dos jovens. O desenho acima sugere que, a jovem ao utilizar o lápis cera, foi capaz de revestir todo o fundo do papel, retratando a intensidade de sua interioridade psíquica, que, consciente ou inconscientemente, desejava ser evidenciada. Também, a escolha do lápis cera poderá evidenciar, pela dureza do material e por ser facilmente controlável, a sensação de domínio do real, como o desenho nos aponta. No dizer de Ostrower, em sua obra: A sensibilidade do intelecto (1998), a expressividade das imagens produzidas pelo ser humano podem configurar a materialidade do 153 mundo, ao retratar paisagens, figuras, objetos. As escolhas feitas pelos educandos de temas como: sol, lua, estrelas, nuvens, flores, corações estariam representando aspectos produtivos da vida. Segundo a autora, esta é uma forma de demonstrar a busca pessoal por conquistas, além de ser uma forma de superação de conflitos íntimos. Na visão da autora sobre a arte como linguagem, todas as formas artísticas se nos apresentam como formas de linguagem, e, dentro da especificidade de cada linguagem, as formas nos comunicam um conteúdo bem profundo. Pois a arte se refere em última instância à própria condição humana e a certos questionamentos sobre a realidade de nosso viver. Ela sempre formula uma visão de mundo. É neste nível que ocorrem suas indagações e as tentativas de resposta (1998, p.4). Voltando ao nosso primeiro encontro, em sua finalização, todos disseram que voltariam na próxima segunda-feira, e, ainda, registramos a fala de uma delas: “Não senti nem o tempo passar, pensei que fosse 14:30 minutos e já são 15:30 minutos”. No segundo encontro, logo de início, uma participante começou a se alongar e, nós, aproveitamos a “dica” e convidamos todos a fazerem um trabalho corporal. Após, o aquecimento do corpo, mostramos imagens de pinturas de artistas brasileiros e estrangeiros de diferentes épocas, tendo como um dos objetivos, promover a apreciação estética destas imagens. Assim, foram tomando conta do nosso espaço, as pinturas de Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Monet, Renoir, Van Gogh, Salvador Dali, Leonardo da Vinci, Picasso, Cézanne, Goya, Velázquez e outros. Depois de uma atenta observação, convidamos que escolhessem uma imagem, instigando-os a falarem do seu momento, de seus interesses e de suas histórias de vida. Era uma forma criativa de se apresentarem para o grupo. Uma delas ao escolher uma imagem da Natureza-morta (1890-1894) de Cézanne, assim se expressou: “As crianças em roda – de Portinari, me infância que não tive. Desde cedo responsabilidades” (FABIANA, 2002). lembram a tive muitas 154 Outras, também, relataram: Cresci com a lembrança de um quadro parecido com este, na casa da minha tia. Ele me lembra tristeza.”(SUELLEN, 2002). O quadro de Turner – Pescadores em alto-mar (1796) me mostra o mar. Adoro mar, mas tenho medo, ele é traiçoeiro.As pessoas são falsas, elas usam máscaras. Às vezes, uso também máscaras para me proteger.” (KARLA, 2002). Que mergulho profundo, no mar de si mesma, a Karla foi capaz de dar, ao fazer a ligação entre seus três M – mar, medo, máscaras! Sobre o quadro de Goya – A Família do Duque de Osuña (1788), Renata, disse: “Gostaria que a família fosse assim.” A forma de expressão de Renata sobre a família, sugere-nos o processo de mediação que a arte estaria lhe possibilitando, deixando surgir conteúdos internos, vivências passadas, que, talvez, ela não pudesse extinguir, mas, com a ajuda da expressão artística, foi-lhe possível travar uma relação sadia e construtora de paz com o seu pretérito. Com a imagem O Beijo, Gustav Klim (1907-1908), Madalene disse: gostei do colorido do casal empolgado. Me lembra amor, união, união das raças. Ela é uma mulher branca e o cara preto”. Madalene é uma jovem negra, alta e bonita. Maria (2002) escolheu a obra do artista flamengo, Robert Campin – Madona Amamentando (1430): “Gosto desta imagem do contato da mãe com o filho. Não fui amamentada pela minha mãe. Fui criada por minha tia.” Sobre suas fragilidades, Débora, assim se expressou, ao escolher a imagem de A Primavera (1856) de Ingres: “Uma criança forte, um vaso de porcelana. Parece frágil. Eu já caí algumas vezes e tive de me levantar sozinha”. 155 O que fez Débora relacionar, o vaso de barro carregado pela variante da Vênus Anadyomènne, de Ingres, com a porcelana frágil que, como ela, é suscetível de quebrar-se? Suas narrativas iam, “sem pedir licença” enlaçando razão, sentimentos sentidos e vertidos, que fluíam ao contato com as coloridas imagens. Era o início de uma trajetória que ainda não tínhamos certeza onde nos levaria. Uma única certeza nos movia: é preciso afagar a terra, para a semente brotar:“afagar a terra, conhecer os desejos da terra, cio da terra, propícia estação, e fecundar o chão” (Milton Nascimento)26. Assim, por meio das artes de fazer/tecer dos educandos, foram surgindo imagens vivificadas que se somavam a diálogos, enriquecidos por uma polifonia de vozes que rompiam os silêncios escolares, dando lugar à PALAVRA, à PALAVRA AUTÊNTICA, vibrante, tonificada pelos corpos que as materializavam, e, dessa forma construindo espaços de produção criativa de linguagens, pois, entendemos com Vygotsky (2001), “tudo o que a arte realiza, ela o faz no nosso corpo e através dele” (p.320). 26 NASCIMENTO. Milton e HOLLANDA, Francisco Buarque de. O cio da terra, 1976. 156 • Corpos que falam, expressando formas singulares. Linhares e Trindade (2003) sublinham que há uma concepção de existência humana que conjuga a materialidade de corpos humanos à ação interventora que inclui as palavras. Somos corpos, comportamentos, palavras. (p.13-14). A capacidade de marcar os seus corpos/sentimentos com palavras e com memórias, demonstrada pelos escritos das vivências com as imagens, traz-nos ressonâncias na melodia suave do poeta mineiro, Queirós (1991): Há que se escrever a vida em flauta e vôo como cantam os pássaros. Buscar na memória a lembrança e a direção. Ocultar os rastros percorridos para perder-se no encontro e ninho. Decifrar o alfabeto rabiscado nas linhas do vento, gravado no fruto maduro, embaraçado na pena trocada. Como os pássaros, há que se escrever enquanto é dia e para todos (p.14). Dessa forma, além das vivências com as artes plásticas, priorizamos os trabalhos corporais, os relaxamentos, muito apreciados por eles, como foi avaliado, por todos, nos questionários27 de avaliação e auto-avaliação da Oficina: A oficina me relaxa. Faz bem. Sem contar que além de tudo é divertido, não é monótono. Cada dia há algo diferente, isto é, é muito estimulante. É tudo de bom e mais um pouco. Faz bem para a alma. Para o coração! As palavras ditas na hora do relaxamento tocam muito, trazem tranqüilidade, conforto. São ditas com o sentimento, aliás, tudo feito aqui foi com sentimento. O que mais gostei nos encontros foram as massagens em dupla, porque eu pude realmente sentir o poder que nossas mãos têm. 27 Deixamos livre a opção do educando se identificar nos questionários. 157 Os relatos trazidos pelas educandas vêm alimentar as teorias relativas à importância do trabalho corporal para o desenvolvimento do potencial criador do indivíduo e para um aprofundamento do auto-conhecimento.Corroborando sobre esta questão, Ostrower sublinha que: Formando a matéria, ordenando-a, configurando-a, dominando-a, também o homem vem a se ordenar interiormente e a dominar-se. Vem a se conhecer um pouco melhor e a ampliar sua consciência nesse processo dinâmico em que recria suas potencialidades essenciais. (1996, p.53). Observamos que, à medida que os educandos vivenciavam dinâmicas corporais, a sua criatividade se expandia, emergindo por meio dos movimentos corporais, ampliando, assim, o seu potencial nos trabalhos plásticos e na poesia. Sobre o trabalho corporal, a respiração passa a ter um valor importante, representando um veículo de sintonia profunda com o próprio corpo, como assinala Tarthang Tulku28 (1978): Porque o respirar indica os ritmos da vida, o modo com que respiramos assinala a disposição das nossas energias... Quando a respiração é consistentemente calma e regular, a energia aumenta e a saúde melhora. Dormimos melhor. Todo o organismo mental e físico se equilibra. A mente faz-se lúcida e o corpo alerta e sensitivo: a audição é mais clara, as cores são mais vibrantes e é possível saborear melhor os gostos da experiência... Uma vez que soubermos estabelecer contacto com a energia da respiração, a respiração se tornará numa fonte infinita de energias revitalizantes (p.39). 28 Há dez anos pratico Kum Nye, um sistema de relaxamento psicofísico, originário da tradição tibetana. Esta técnica foi trazida para o Ocidente pelo médico e lama Tarthang Tulku, autor de uma dezena de livros editados pela Editora Pensamento e outras. 158 No terceiro encontro, após o trabalho corporal que foi realizado, através de um relaxamento, ainda, com a intenção de explorar o poder do corpo, sugerimos que observassem a imagem de uma escultura: O Segredo, de Rodin. Conversamos sobre qual deve ter sido o porquê deste nome à escultura. Após, o diálogo que provocamos, perguntei quais os segredos que as mãos guardam? 159 LE SECRET - Auguste Rodin – 1909 Marbre - 89x50x41cm Lembrei, com Boechat (2003): As mãos da cultura ocidental estão aprisionadas. Urge libertá-las. Tanto na prática quanto na teoria. As mãos estão aprisionadas, na cultura e, portanto, em cada um de nós. Elas foram assim aprisionadas em prol de uma cultura excessivamente cerebral, pela tirania do racionalismo sobre a vivência emocional... Vivemos a fantasia de que toda nossa consciência está no cérebro, o córtex cerebral, tutor da racionalidade. Como bem lembrou José Saramago em seu livro ‘A caverna’, esquecemos que a consciência está, ao contrário do que muitos pensam, por todo o corpo, em especial na criatividade das mãos.”(p.7-8). Assim, pedimos para observarem suas mãos, sentindo sua textura, sua temperatura, acariciando-as e, depois, experienciando diferentes materiais, convidando-os a libertarem suas mãos do controle cerebral, no sentido de resgatar a importância que elas tiveram no passado, 160 pois, sabemos que, na sociedade industrial tentam substituí-la, por objetos industriais produzidos ao infinito, pela repetição infindável. Sempre buscávamos, após os relaxamentos, facilitar o contato com materiais plásticos diversificados, como: tipos diferentes de suportes, papéis, com texturas e cores diversas, caixas, tecidos, etamine, lãs. Junto a lápis coloridos, como lápis cera estaca, pastel oleoso e o pastel seco; tintas guache e acrílica, pincéis, trinchas, espátulas, esponjas. Também a argila foi, por várias vezes, utilizada. Estes materiais, frente às propostas sugeridas, funcionaram como recursos de expressão para que os educandos, ao vivenciar estas linguagens, fossem estimulados à criação, à imaginação, ao sentir, ao emocionar-se, à curiosidade, ao auto- conhecimento e à solidariedade. Após, a sensibilização com as mãos, dedicamos o encontro à construção do Diário de Bordo, um caderno, no qual pudessem relatar, através de uma escrita criativa, suas reflexões, seus sentimentos durante, e/ou, após as vivências. Com o objetivo de proporcionar uma relação afetiva e amorosa com o seu caderno, sugerimos que ilustrassem, criativamente, a sua capa, com imagens, figuras, palavras que expressassem o que a Oficina poderia lhes oferecer em relação a cada um e em relação à convivência que buscaríamos afirmar no grupo. As escritas poderiam ser desdobradas em outras escritas, até mesmo sobre os sonhos que lembrassem, após uma noite/dia de sono. Nesse clima de criação, algumas imagens nasceram... 161 A utilização da técnica da colagem fez com que no ato de colar, vínculos mais firmes consigo mesmo e com o meio fossem estabelecidos, além de reduzir a ansiedade de se atuar como um “artista”, criando formas, uma vez que estas já se encontravam disponíveis, em revistas, jornais ou em outros materiais. Era necessário, que as vivências possibilitassem aos jovens a afirmação de suas identidades, e, com esse objetivo, o encontro seguinte, além de uma dinâmica corporal, favoreceu com que através da leitura do Poema – Receita de dizer o nome (MURRAY, Roseana,1997, p.14), suas falas pudessem expressar sentimentos e características, em relação aos seus nomes. RECEITA de dizer o nome dizer o nome como se diz uma uma pedra um pedaço de sol dizer o nome como se diz um arco-íris um temporal uma ilha de água luz e coral 162 Ao dizerem o seu nome, de forma bem enfática29, ouvimos: Priscila – paciente Priscila – paz Isabela – inesquecível Kelly – querida Kelly - carinho Adriana – amiga Ana Flávia – amiga e feliz No Diário de bordo de Priscila, encontrei: “O nome é a essência da vida e principalmente a fonte de calor da alma cristalina” (02/09/02). Era a poesia tomando conta de sua vida! Após, dizerem os seus nomes fizemos uma roda criativa, e, sentados no chão, cada um foi convidado a ficar no centro e, de olhos fechados, ouvir os participantes chamá-lo pelo nome, de uma forma diferente, ou seja, com ritmos e entonações diferentes. Ao avaliarmos as impressões da vivência, verificamos como as diferentes vozes trouxeram lembranças para cada um, registradas em suas falas: “ Lembrei a forma como a minha mãe me chama. “Alguém me chamou de uma forma que me lembrou como meu pai me chama” “Fiquei insegura, com medo... Ficar de olhos fechados e as pessoas me chamando. “Lembrei de uma pessoa que me chamava assim”. “ Gostei, achei divertido”. 29 A dinâmica – Dizendo o nome, vivenciamos no Curso Introdutório, do Teatro do Oprimido de Augusto Boal – RJ – 1997. 163 O ficar atenta aos sons das pessoas os chamando, não seria uma forma de prestar atenção aos registros das melodias dos seus próprios ritmos interiores? Sobre a questão do som, vivenciado durante a dinâmica, é importante ressaltar que vivemos envoltos em um universo sonoro. Todos os sons possuem um potencial criador que se transforma em música, e esta, por sua vez, provoca profundas emoções em nós. Assim, estávamos possibilitando o brincar com os sons, como se brinca com os diferentes materiais expressivos, permitindo um tatear sonoro na busca de timbres diversos e experimentando diferentes velocidades dos sons, ou seja, uma forma criativa de explorar o próprio corpo. Ainda, buscando pistas e detalhes em seus olhares, gestos, ações e palavras, observamos que, por várias vezes, as alunas faltavam à aula de 2ª feira de manhã, mas não deixavam de vir à Oficina, à tarde, principalmente, quando já tínhamos combinado que, naquele dia, iríamos trabalhar com argila. Por exemplo, Clara, no dia nove de Setembro de 2002, chegou bem animada à tarde e não tinha comparecido pela manhã, ainda trouxe um texto, por iniciativa própria, para enriquecer o trabalho do dia – FELICIDADE. Consideramos a pertinência do conteúdo trazido pela educanda, logo no início de nossos encontros. Ali deixava registrado o intenso desejo que acompanha a humanidade em todos os tempos - ser feliz. Este sentimento foi registrado em muitas das quatrocentas fotos, reveladoras de diferentes momentos dos trabalhos vivenciados. Olhos que brilhavam, frente ao desafio do novo, da descoberta, rostos que se iluminavam, todas as vezes que percebiam que seriam fotografados, além das formas diferenciadas e únicas com que se vestiam para os Encontros, demonstrando descontração, originalidade e criatividade, como sugerem os adereços em suas cabeças. 164 As suas formas originais de expressão, através das indumentárias, mostram que o cotidiano escolar não é um espaço somente do rotineiro e disciplinado, mas, um espaço, também, da “desordem”, dos gestos singulares, das possibilidades ilimitadas. Um espaço da resistência, da transgressão e da transformação, mesmo sabendo-se que o Instituto de Educação Ismael Coutinho- RJ tem uma prática rígida com relação ao uso correto do uniforme. 165 Ainda trazendo o tema – Felicidade - no Encontro do dia dezenove de maio de 2003, Priscila chegou dizendo: Que bom, pensei que não chegasse o dia de hoje! Kelly relatou: Sábado pedi a minha mãe para lavar o uniforme, pois, amanhã é 2ª feira e terei Oficina. Me confundi, estava querendo tanto vir à Oficina, que esqueci que ainda tinha o Domingo! Me sinto feliz aqui! Para esse dia tínhamos decidido, coletivamente, que levaria um bolo para comemorarmos os aniversários do período. Em função do bolo, atrasei-me e reclamaram pelos dez minutos, que roubei do Encontro. As imagens, a seguir contam sobre a diversidade de expressões com que os seus corpos foram capazes de criar. Também, as suas reflexões escritas atestam tal fato: 166 Eu me tornei uma pessoa mais sensível, não tanto quanto eu gostaria. Me sentia, nos encontros, leve como uma pluma. Sentia uma enorme sensação de bem estar. A professora nos mostrou que a arte existe dentro de nós e é só querer que ela se manifesta (Luara, Questionário). Na Oficina cada encontro nos faz soltar a nossa imaginação, criatividade e assim podemos ampliar nossos conhecimentos. Através das vivências, venho despertando mais a minha curiosidade. Saio satisfeito com a experiência que tive. Sinto prazer imenso de estar participando desta oficina, me sinto restaurado e aliviado. É super relaxante e gostoso. Nas vivências a música representou um elemento importante, no sentido de facilitar com que diferentes estados de ânimo, sentimentos e emoções pudessem fluir ou de fora para dentro, quando os sons provocavam movimentos corporais, capazes de levar a dança ou quando os educandos ficavam em silêncio, buscando desenvolver sua atenção plena ao saborear os sons emitidos pelos seus próprios corpos e pelas músicas. Há que se lembrar que a música representa uma forma muito antiga de comunicação e expressão. Através da música foi possível observar, durante as vivências, o conforto proporcionado por ela, facilitando uma comunicação significativa entre os educandos, o que foi expresso em seus questionários, ao sinalizarem que a música lhe trazia tranqüilidade e alegria. Dessa forma, a música, mesmo como fundo da ambiência, representou uma fonte lúdica e criativa, além de ter favorecido o contato de cada um com sua capacidade de concentração, a sua percepção auditiva, estimulando à participação individual e nas vivências grupais. As imagens a seguir retratam um trabalho de consciência corporal, que culminou com uma dança criativa, o qual seguiu algumas etapas. 167 Primeiramente, uma etapa de sensibilização, através da respiração, para que entrassem em contato com o seu corpo, permitindo-se expandi-lo para além do limite do próprio corpo. Depois, foram convidados a perceberem o ambiente físico da sala e a olharem nos olhos de cada participante. Passaram, em seguida, a andar de diferentes formas (rápido, lento, na ponta dos pés, sobre as bordas dos pés, sobre os calcanhares, sobre o dorso dos pés), além, de forma cansada, alegre, triste, esperançosa. Após, foi solicitado que sentissem os seus pés, no chão, andando, ao som do pandeiro, em diferentes ritmos (marcha, valsa). Dando continuidade a dinâmica, diferentes tipos de músicas foram ouvidas (valsa, xote, forró, samba, romântica), para que dançassem, individualmente ou em duplas, terminando em um forte abraço grupal. Depois, de olhos fechados, foram convidados a sentirem os sentimentos que as músicas lhe sugeriam (a ópera Carmem, de Verdi; do filme Titanic; Enya; Loreena Mc Kennitt). Para terminar esta vivência, colocamos uma música árabe e, juntamente com véus, filós, colares e óculos, nós sugerimos que se imaginassem dançando em um deserto árabe. 168 Verificamos que os educandos, quase todos, não quiseram expressar em palavras, em seu diário de bordo, as suas impressões e sentimentos. Acreditamos que palavras foram ditas e sentidas através da forte carga emocional que esta vivência proporcionou, afinal, os corpos falam. Mesmo assim, encontramos no diário de Luciana, sobre o relaxamento: Relaxar Ah! Como é bom! Esse é um ótimo momento dos nossos encontros... É quando nos desligamos e tudo, para entrar no lugar mais calmo que quisermos e imaginar, e, funciona! (16/09/02). E, Priscila: “A dança pode mostrar o que realmente existe de puro na alma” (Diário de bordo,16/09/02). Era a arte mexendo/ remexendo em suas entranhas, em suas formas singulares de ser, e de uma forma sensível e perceptível tomando parte significativa de suas vidas. 169 Era o espaço do cotidiano escolar que, apesar de profundamente disciplinador, passava a conviver com as táticas dos seus praticantes que, astutamente, encontravam meios diferenciados de se expressarem, como podemos verificar nas imagens a seguir. Soltando sonhos através de bolas de sabão. A arte possibilitando encontrar formas diferenciadas de se expressar. 170 Estas imagens nos revelam a possibilidade de um cotidiano menos fragmentado e rico em movimentos, cores, formas, gritos e coragens, que de alguma forma, estariam indo na contramão das constatações, feitas por estudiosos sobre o tema Juventude, como Melucci (1997), argumenta: Está agora claro que a maneira pela qual os adolescentes constroem sua experiência é mais e mais fragmentada. Adolescentes pertencem a uma pluralidade de redes e de grupos... O passo da mudança, a pluralidade das participações... contribuem todos para debilitar os pontos de referência sobre os quais a identidade era tradicionalmente construída. A possibilidade de definir uma biografia contínua torna-se cada vez mais incerta (Ibid., p.10). Não estaria a arte favorecendo a reversão do quadro descrito acima? 171 • Com as mãos nas tintas A proposta que defendemos de uso das linguagens expressivas em arte, capazes de estimular o auto-conhecimento, a criatividade e a solidariedade humana, direcionou-se em busca da abertura dos canais da emoção, dos canais do sensível, para que tais categorias fossem, em profundidade, vivenciadas. Para tanto, a linguagem das tintas se apresentou como uma aliada nessa trajetória, por ser um material essencialmente fluido capaz de proporcionar a manifestação de emoções. No entanto, essa característica líquida, pode trazer dificuldades no seu controle, provocando momentos de tensão e momentos de profunda gratificação, como foi possível perceber nas atividades realizadas com a tinta. Assim, as vivências com a Pintura Espontânea, objetivaram com que, através da pintura, imagem e emoção pudessem emergir, estabelecendo uma conexão com o mundo interior que está, de fato, vivo dentro de cada um, favorecendo o experimentar afetos e conhecendo-os melhor. O que se pretendeu com os resultados dos trabalhos plásticos que foram vivenciados, não foi a análise/avaliação de comportamentos, mas a possibilidade de se revelar, através das imagens, as potencialidades criadoras e a expressão de outras facetas da inteligência, existentes em cada ser humano, que o fazem elaborar situações de vida as mais diversas e adversas. Neste tipo de pintura, chamada espontânea, as partes desconhecidas emergem na consciência, dando forma ao mundo exterior, que, muitas vezes, apresenta-se confuso, favorecendo uma visão mais aberta, capaz de elaborar mudanças, ao reconhecer o seu poder pessoal, que, aliás, representa o que só ela/ele pode fazer. Dessa foram, trazemos uma vivência ocorrida no atelier de Lilyan, no trabalho de pintura no tecido. Depois da secagem do seu tecido, Maria se decepcionou com o resultado da sua pintura; achou que ela ficou muito escura e, arriscou a penetrar no desconhecido: 172 Meu pequeno monstro Antes achei que não faria, achei também que não ficaria legal. Depois vi que era apenas medo de lidar com as cores, com o novo, com o improviso sem volta. E, pensei: se a Vida é assim, porque meu tecido não pode ser. Percebi que ele é diferente, não muito comum, que vai ter ou/e tem as mesmas qualidades dos outros tecidos. Me envolver com ele (propomos uma dança com o seu tecido pintado) só me fez lembrar da frustração de não ter um tecido perfeito. Nada na vida é perfeito. Me fez lembrar, também, que sou humana e como todo humano sou imperfeita. Extravasei emoções. Tenho uma observação a respeito das cores. Gostaria que o preto saísse mais forte (21/06/04). Maria teve a possibilidade de se confrontar com a sua produção criativa, percebendo suas dificuldades e destrezas com naturalidade. Maria, conscientemente, começava a experimentar suas artes de “poetar”, na busca de uma canção da sua inteireza. Por que as tintas tão coloridas da sua pintura foram expressas como “o meu pequeno monstro” ? Como bem expressa Vygotsky (2001): A arte, deste modo, surge inicialmente como o mais forte instrumento na luta pela existência, e não se pode admitir nem a idéia de que o seu papel se reduza a comunicar sentimentos e que ela não implique nenhum poder sobre esse sentimento (p.310). 173 Nesta ótica, na qual a arte representa um instrumento na luta pela existência, incluímos as referências de Ostrower (1996): Para o ser humano, o equilíbrio interno não é um dado fixo. O equilíbrio é algo que a todo instante precisa ser reconquistado... No fluir da vida, nos sucessivos eventos externos e internos que nos mobilizam, cada momento de estabilidade é imediatamente questionado. Cada situação que se vive, cada ação física ou psíquica, cada emoção e cada pensamento desequilibra algum estado anterior. Introduz um fato novo, acrescenta uma medida de movimento. Desdobra algo, e nos desdobra em algo também. Obriga-nos a procurar outro momento ou novo plano de vivência e ação em que o acréscimo de movimento possa ser compensado e contrabalançado.... O equilíbrio não anula as forças diferentes... trata-se de conviver com essas forças...Na forma expressiva, os elementos complexos da experiência humana não se descaracterizam, eles se esclarecem a um nível mais significativo (p.99). Percebemos nas reflexões da autora, questões pontuais, também levantadas por Edgar Morin - a arte possibilitando um fazer complexo, ou seja, a vivência da complexidade, sendo esta, inerente a toda a ação humana. Uma vez que o ato criador é sempre um ato de integração e não de disjunção, adquire seu significado pleno, somente 174 quando entendido globalmente. O potencial de inteireza que o processo criativo poderá favorecer sugere a construção de uma maior consciência do ser humano, de identidades mais plenas, ou, como sustenta Morin, um maior compromisso com a reforma do pensamento. Enfim, é a tomada de consciência do educando de suas potencialidades, de seus pensamentos, sentimentos e sonhos. Entrelaçamos à tessitura, algumas falas, além das de Maria, sobre o processo de criação, com a utilização de tinta:“Pintar é libertar o medo ou o desconhecido da alma” (Priscila, 21/10/02). PINTAR é um momento em que podemos nos libertar de tudo e mergulhar nas cores, para expressar pensamentos, sentimentos, dores, tristezas, solidão, felicidade, enfim... (Luciana, 2002). Também Isabella deixou registrado o seu processo de criação ao pintar o seu tecido: Ao ver o tecido estirado, não soube o que fazer e pensei: e agora?!! Fui com o pensamento de colorir de preto, mas acabei mudando de idéia e aos poucos as cores apareceram e na minha escuridão, apareceu uma luz rosa inicialmente, após, amarela, azul, verde e laranja. Houve um intervalo, de um mês e onze dias para poder olhar e me envolver em meu tecido, mas, enfim, chegou e eu pude olhar e ficar feliz com o resultado, que para uma primeira vez, NOSSAAA!! Ficou lindo!! Na dança com o pano, fizemos um trabalho em conjunto, lindo. Dançamos em pé, no chão, deitada, com coreografias. As mulheres têm um ponto lindo, é o poder da sensualidade, nós fomos de nossas maneiras sensuais e atingimos um objetivo, nos descobrir sensualmente, esquecer um pouco as palavras, e, assim, como eu, usar o “OLHAR”!! 175 Enfim, fiquei hiper feliz com o resultado, desde o primeiro contato, até à dança, foi + q d + !! (Isabella, Diário de bordo, 21/06/04). No relato de Isabella, observamos os fundamentos de teorias sobre o trabalho com tecidos, panos, véus, materiais estes, que são capazes de despertar o contato mais íntimo de cada um consigo mesmo, pois, um tecido é o que nos envolve, estabelecendo uma sensação prazerosa com a própria pele. Tal experiência foi expressa pela educanda, através do seu poder feminino e da sua sensualidade o seu escrito demonstra o quanto de prazer esta vivência foi capaz de proporcionar-lhe. Também, foi possível verificar nas vivências com a pintura, o poder das cores possibilitando experimentar esteticamente as suas combinações, provocando surpresas com suas misturas, remoendo com o interior de cada um, como tão bem foi capaz de fazer Maria. Muitas vezes, a pintura as assustava, surgindo a busca ansiosa para que as formas transformassem medos, dores, solidão e felicidade. Com tintas, pincéis, lápis coloridos e papéis diversos, as categorias autoconhecimento e criatividade mais uma fez se entrelaçam a esta construção, trazendo respostas seguras às questões que inicialmente a pesquisa se fez: As experiências/ ambiências em arte são capazes de facilitar uma visão mais complexa e consciente dos jovens sobre si mesmos, tendo em vista o auto-conhecimento, como uma das aprendizagens fundamentais? Acrescentamos as palavras de Vygotsky, em Psicologia da arte (2001), quando sugere: É evidente que o efeito da arte é bem mais complexo e diverso, e seja qual for a definição que dela fizermos, nunca veremos que ela implica algo que difere da simples transmissão de sentimento... Devemos ver que a arte parte de determinados sentimentos vitais, mas realiza certa elaboração desses sentimentos... Pelo visto, a arte resolve e elabora aspirações extremamente complexas do organismo (2001, p.309). 176 No processo da pintura em tecido, Ayliane relatou o seu processo de criação: Eu não sabia como nem começar, mas comecei sentido o tecido, vendo que vibrações eu sentia com o seu contato. Me veio na cabeça mil coisas a fazer, foram tantas idéias, até dei uma olhada em uns livros sobre cultura egípcia, mas não saiu nada do que imaginava desenhar. No início eu pensei que fosse desenhar coisas abstratas, sem sentido, mas ao mesmo tempo fiquei com medo de não ficar bonita, por isso demorei tanto para começar a pintar. Comecei com coisas fáceis que eu soubesse mesmo desenhar, coisas que eu entendesse, então as flores foram surgindo, com cores vivas e fortes. (Diário de bordo, maio de 2003). Pelo sorriso de Ayliane percebe-se o prazer experimentado frente às suas potencialidades. Sobre o processo de criação de formas/imagens, Ostrower (1998, p.55), em A sensibilidade do intelecto, argumenta: 177 Toda criação na arte envolve um processo de transformação, processo essencialmente dinâmico, flexível e não-linear. Nunca um somatório. Para dar um exemplo concreto: ao iniciar a composição de uma imagem, o artista introduz algum elemento básico, digamos, algumas linhas (desenho). Imediatamente tais linhas se relacionam entre si, e também com o conjunto que formam, ou seja, com o contexto constituído por elas mesmas. Por sua vez, este contexto confere a cada uma das linhas componentes uma determinada função estrutural na composição e, simultaneamente, um significado correspondente. Mas as coisas vão se modificando. A cada nova linha, a cada cor, a cada pincelada que se acrescenta nessa composição, o contexto se altera (desenho)... Não se trata, portanto, de um processo quantitativo. Trata-se de um processo de qualificações mútuas e cambiantes, cujo final – quando? Como? – não é previsível. Observamos que este foi o processo vivenciado pelas jovens, durante o processo da pintura, como, teoricamente, a autora adverte. Confrontando tais reflexões, trazemos Ortega Y Gasset (2002) que sustenta: A lei das grandes variações pictóricas é de uma simplicidade inquietante. Primeiro pintam-se as coisas, depois, sensações; finalmente, idéias. Isto significa que a atenção do artista começou fixando-se na realidade externa; depois, no subjetivo, finalmente, no intrasubjetivo. Estas três estações são três pontos que se encontram em uma mesma linha (p.117). Voltando aos relatos escritos sobre a pintura, Ana Flávia descreveu: No dia 10 de maio fomos à casa de Lylian, uma estilista muito talentosa e muito carinhosa. No início fiquei meio preocupada porque sempre tive vontade de ter uma blusa pintada à mão, mas não tinha comprado o pano, mas a Lylian me deu um pano que ela tinha. Falando agora da experiência de ter pintado, foi uma sensação diferente, pois o fato de não poder errar é meio 178 preocupante, e se houver o erro a tentativa de reacertar é mais intensa, mas se for obtida com sucesso, a alegria é logo percebida. A minha intenção era a de misturar todas as cores possíveis, dando tonalidades diferentes e criando formas naturais que dessem uma boa sensação. Porém, acho que por ser a primeira vez que pintei, chegou uma hora, que fiquei perdida, pois, não sabia mais dar continuidade, até conseguir e por fim obtive um bom resultado. Ao reencontrar com o pano, foi muito legal, pois pude ter a satisfação de ter um trabalho meu. (ANA FLÁVIA, Diário de bordo, junho de 2003). É importante ressaltar que, em momento algum foi dito que não se poderia errar na pintura. Este fato demonstra a sua preocupação com os acertos. Há que se considerar que, por traz da questão do acerto, existe uma tendência, no ser humano, à busca do belo. Sobre esta questão, sempre expressamos que a noção de belo deveria refletir o momento de cada um, a expressão verdadeira do desejo próprio de criação. 179 É importante relembrar que o ideal clássico de beleza foi resultado do vínculo com a filosofia positivista, cuja ênfase recaía no objeto, enquanto expressão exata da realidade. Por outro lado, o belo para o ideal moderno voltava-se para a abstração e a representação expressiva da realidade. Nesta linha de raciocínio, a visão contemporânea sugere que o critério de beleza seja a capacidade que a forma criada tenha de comunicar-se. Percebemos que a interiorização de tal trajetória implica profundas reflexões e vivências, em busca dessa mudança de olhar. Voltando à atividade de pintura do tecido, o reencontro com o pano deu-se devido ao fato dos tecidos pintados terem ficado no atelier, para sua secagem. Pela possibilidade de criação que representou esta vivência, trazemos, ainda, algumas fotos que marcaram este processo. Beatriz em seu processo de criação. Depois, o reencontro sensível com o seu tecido pintado: 180 A alegria verificada durante a dança e na construção da mandala, com as suas criações, fez-nos constatar como é bom poder expressar, no espaço escolar, através de linguagens, que não as convencionais, pensamentos e emoções. 181 • Tecendo os fios da solidariedade, com histórias/contos. Verificamos nas imagens e relatos que coloriram o cotidiano da pesquisa, as considerações teóricas de Ostrower (1996), quando ressalta que a criatividade é a própria sensibilidade, pois o criativo no homem se dá no nível do sensível (p.17). 182 Pensando dialeticamente, a sensibilidade sempre dependerá de uma visão mais global do ser e da vida, assim como uma visão global dependerá de uma maior sensibilidade da pessoa. Tais reflexões nos sugerem que a super-especialização que ora vivemos, carece de qualificações criativas, além de excluir do viver o vivenciar. (Ibid.,p.39). Lançando-nos em busca de outras linguagens expressivas, os Contos surgiram, também, como instrumentos importantes para o auto-conhecimento, a criatividade e a solidariedade, quando a partir deles era possível realizarem encenações. As histórias tiveram um lugar especial na Oficina, pois, entendemos com Clarisse Pinkola Estés (1995): As histórias são bálsamos medicinais. Elas têm uma força! Não exigem que se faça nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo – basta que prestemos atenção. Elas suscitam interesse, tristeza, perguntas, anseios e compreensões... Se uma história é uma, então nós somos seu solo. O ato de ouvir uma história nos permite vivenciá-la como se nós mesmas fôssemos a heroína que cede diante das dificuldades ou que as supera no final. Se ouvimos uma história de uma pomba que afinal encontra seus filhotes, então, por algum tempo depois, algo fica se movendo por baixo do nosso próprio peito emplumado... Num sentido muito real, ficamos impregnados de conhecimento só por termos dado ouvido ao conto... As histórias conferem movimento à nossa vida interior, e isso tem importância especial nos casos em que a vida interior está assustada, presa ou encurralada. As histórias lubrificam as engrenagens, fazem correr a adrenalina, mostram-nos a saída e, apesar das dificuldades, abrem para nós portas amplas em paredes anteriormente fechadas, aberturas que nos levam á terra dos sonhos, que conduzem ao amor e ao aprendizado, que nos devolvem á nossa verdadeira vida...” (p.30-36). As ressonâncias destas palavras fizeram vibrar algumas vivências, quando pedimos que os participantes trouxessem a sua lembrança, um conto de fadas de sua infância, 183 expressando-o através de uma pintura.Também ouviram a história Vassilissa (tradução de KUJAWSKI, 1985), Longas Colheres (um conto sufi), O coração da Corali (GANEM,Eliane,1985), Tantos medos e outras coragens (MYRRAY, Roseana,1997), quando as expressaram através de encenações, desenhos, falas e escritos. Por meio da história Coração de Corali, Ana Flávia registrou em seu Diário de bordo: Parece que hoje eu decifrei o que às vezes tenho sentido, penso e nada descubro. Quando eu era da 3ª série ou da 4ª série ouvi esta mesma história, mas esses “buracos” que o texto menciona, naquela época, o seu significado não teve tanta importância, talvez porque a minha realidade era bem mais simples.Porém, hoje eu dependo de mim para ser feliz e entender o porque esses buracos aparecem e, até mesmo, porque existem, e mais ainda tenho que tampálos. Hoje, entendo esses buracos porque, muitas vezes, já os senti, por algumas frustrações. É sempre por causa delas que eles aparecem e são percebidos. Botei este catavento na pintura e as principais partes da minha vida, porque não é só uma coisa que me preocupa, depende do momento que estou, talvez isso aconteça por eu ser tão inconstante. (29/09/03). 184 Ana Flávia ao pintar sua imagem com uma moldura preta, disse ser metódica e organizada. O azul, disse significar a paz, o catavento, representando o movimento que precisa se permitir na vida. Seria o catavento a imagem/símbolo de sua inconstância? Ressaltamos que, a cor azul, escolhida como pano de fundo, à imagem do catavento, simboliza, de acordo com estudos sobre as cores, a função pensamento, também, expressa no elemento ar. A partir de tais reflexões podemos inferir como a arte, enquanto expressão de sentimentos está profundamente ligada à cognição, ou seja, razão e emoção são elementos inseparáveis do processo de existir humano. Em outra vivência, com colagem, expressou o seu desejo de voar. Vale ressaltar que as imagens criadas nas diferentes modalidades expressivas (pintura, colagem, argila e a consciência corporal), pela flexibilidade que as caracteriza, foram colaborando no rompimento de comportamentos rígidos, repetitivos e formais, que têm forjado o ser humano, cristalizando padrões de pensamento e condutas, não mais desejáveis no momento que nos abrimos a novos paradigmas. . 185 Ainda sobre a história - Coração de Corali - Beatriz escreveu: O buraco do coração está presente em mim e em ti. Percebo esse vazio contido, às vezes choro, mas no fim reflito e sinto que preciso preenchê-lo. Através da alegria, do amor, da esperança e, principalmente do gosto de viver. Essa escuridão existe, mas devemos tentar iluminar, compreender o que nos impede de acender a chama e de em cada dia crescer mais e mais. (Diário de bordo, 29/09/03). Em nosso entender as histórias ajudam a encontrar um significado na vida, através do auto-conhecimento, uma vez que estimulam a intuição, a imaginação, além de colaborar no sentido de estimular as funções psíquicas intelectuais e, muitas vezes, tornar claras as emoções, harmonizando ansiedades e aspirações, identificando dificuldades e sugerindo soluções simbólicas para os problemas que nos perturbam. Principalmente, os Contos de Fadas falam de nossas próprias experiências inevitáveis de abandono, de solidão, de exclusão, retratando os nossos medos, os nossos desejos de sermos amados, ou seja, nos instigam a pensar nas pressões internas que nos afligem, oferecendo exemplos de soluções temporárias e permanentes para os impasses prementes. Até mesmo a dualidade entre bem e mal nos contos, que se apresenta de forma onipresente, expressa um problema moral, requisitando uma forma criativa para resolvê-lo. Enfim, os contos falam com outra linguagem, uma linguagem simples, mas ao mesmo tempo difícil e profunda – a linguagem das imagens. Hoje dramatizamos a história, As longas colheres, foi muito divertido, talvez o meu humor não tivesse muito legal. Mas, apesar disso eu gostei, pois, de todos os encontros esse foi o que eu tive um contato maior com as meninas, nos falamos mais, rimos mais, e, como rimos. Todas nós estávamos fantasiadas e ficamos engraçadíssimas. Eu estava vestida de caipira na cidade. Eu gostei muito porque adoro peça e história. No fim, o 186 meu mau humor, ou melhor, no meio, o meu mau humor já tinha passado (AYLIANE, 07/07/03). Pudemos verificar que os escritos nos Diários de Bordo, por não serem avaliados e por não terem chavões, representaram a possibilidade de uma escrita pessoal, cheia de sentidos, vindo de uma fonte intuitiva e livre, sem censuras, refletindo sinceridade em sentimentos e emoções, sem a preocupação de agradar aquele que lê. Hoje tivemos uma surpresa, pois, fizemos uma dramatização. Foi super interessante, para nos conhecermos mais um pouco. Tivemos a lição de sempre ajudarmos os outros, que como qualquer outro ser, dependemos um dos outros para viver ‘em algumas ocasiões’. Eu, particularmente, adoro ser servida, já na hora de servir o outro, eu fico com um pé atrás, pois, posso me decepcionar. Mas todos nós devemos estar cientes que podemos sempre ajudar uns aos outros, e que nada forçado é prazeroso e bom. Lembrando que o que eu não quero para mim, não desejo para o outro (IZABELLA, 07/07/03). 187 As narrativas e as imagens mostraram como que, bordando contos, as jovens foram capazes de aquecer suas almas com alegria. 188 Na busca de indícios e pistas sobre as categorias auto-conhecimento e solidariedade, ainda, no Conto, As longas colheres, Beatriz relatou: A dramatização de hoje fez lembrar-me o quanto é importante se importar com o próximo. Embora eu sinta uma dificuldade com certas pessoas sei que devo amálas do jeito que são, mas certas atitudes que tomam me afastam delas. Tento ajudar, mas tão difícil é. O medo de suas ações me torna incapaz de lhe estender as mãos. Tento mudar, tento abraçar, mas a covardia inunda meu ser. Hoje sinto que devo vencer o medo e o orgulho e ajudar a se levantar. A lição que levo e levarei é: sozinha não prosseguirei, mas junto de ti caminharei.(Diário de bordo, 07/07/2003). A categoria solidariedade foi percebida, também, através das reflexões de Kelly, em seu Diário de bordo: O servir Quando ajudamos uns aos outros nos realizamos, melhor através de gestos, palavras, sentimentos, ou até mesmo de um olhar, pois, se estou sozinha posso tropeçar, cair no chão e me dificultar a me levantar. Mas, quando estou com alguém que posso confiar, não me levantam apenas, não me deixam cair. Porém, não há ninguém tão inútil que nunca tenha contribuído e que nunca precise de contribuição. Todos precisam de alguém, como eu preciso de você!(07/07/2003). Tal categoria pôde ser observada, não somente durante a construção de imagens plásticas, mas, também, nas expressões faciais, que marcaram vários momentos das vivências. É a arte abrindo espaço para dialogicidade, como atestam as fotos: 189 Na construção de um painel coletivo, a partir de rabiscos que se transformaram em formas – mãos que se encontram, no aprendizado da solidariedade. . Também, nas trocas de idéias durante a construção de um trabalho individual, 190 e, na solidariedade vivida durante o trabalho coletivo na Oficina de cerâmica.. Nas imagens construtoras da força da convivência, estimulando o encontro amoroso com o outro. 191 Trazemos algumas reflexões feitas pelos jovens participantes, nos questionários, que atestam esta vivência solidária: Tenho procurado compreender mais as atitudes e comportamento das pessoas, fico bem mais calma com as atividades que fazemos. Os trabalhos em grupo me mostraram que juntos produzimos mais e melhor. Em sala de aula era muito tímido, após a Oficina, estou mais comunicativo entre os meus colegas. Compreendi que nem sempre é possível realizar um bom trabalho sozinho. Tanto os trabalhos de grupo, quanto os individuais trazem grandes aprendizagens para a minha vida e muitas emoções a sentir e expressar. As reflexões durante as vivências foram úteis, pois, através delas é que pude rever e mudar alguns conceitos que possuo. (BEATRIZ). Antes fechada da e Oficina eu tinha medo era de muito demonstrar 192 alguns de meus que por essa razão amigos (MARIA). sentimentos. quase não Penso tinha Acrescentamos a categoria solidariedade às reflexões da teoria moriniana, como suporte para as análises feitas na pesquisa. Segundo o autor, a única forma de salvaguardar a liberdade humana é a possibilidade da vivência/ação do sentimento de comunidade e solidariedade. É a solidariedade que constitui uma sociedade complexa. Assim, um pensamento que une e não se fragmenta, prolonga-se para o plano da ética, da solidariedade e da política (2000). • Mãos revelando segredos Entendemos, juntamente com Ostrower (1996), que a criatividade representa um potencial inerente ao ser humano, sendo a realização desse potencial uma de suas necessidades e, na tentativa de que a criatividade, aliada à imaginação pudesse contribuir na construção de um processo educativo mais pleno, verificamos, através da elaboração de uma caixa para guardar os segredos, como os educandos seriam capazes de vivenciar criativamente tal dinâmica. Ao som da música, Segredos (Bia Bedran), mãos foram dobrando, buscando formas, pintando cores, entrando em contato com os seus segredos, imaginando objetos a serem cuidadosamente guardados na caixa, como Ayliane registrou: 193 Hoje nós fizemos a nossa caixa de segredos. Eu imaginei a minha, com a tampa feita com recorte de revistas, com bonecos, pessoas, comida, figuras diferentes, flores e brilho. No restante da caixa coloquei mais figuras e coloquei um papel transparente, uns sacos pequenos para guardar os meus outros segredos. Coloquei fotos e muitos bagulhos que eu não consegui identificar (AYLIANE, Diário de Bordo, 16/06/03). Kelly na construção de seus segredos Mãos também se puseram a poetar: Caixa de segredos Segredos íntimos Segredos doces Segredos angelicais Segredos e segredos Apenas mais um segredo Segredo que conto Ou não, Segredo alegre, Ou não, Enfim, São só Segredos! (PRISCILA, Diário de bordo, 16/06/2003). 194 Maria, por sua vez, com o seu estilo criativo, resolveu dar um nome a sua caixa: Caixa de Pandora. Assim como a caixa de pandora portava segredos e tesouros, você também carrega os seus. Mas ao invés de espalhar doenças e maldições pelo mundo, só guardará lembranças boas e levará a esperança para quem a abrir. Guardo em ti além dos meus milhares sentimentos, coisas especiais que por mais bobas que sejam, não consigo jogar fora. Por isso são tão especiais. São coisas minhas, meus segredos, um pedacinho do meu coração. (Diário de bordo,16/06/2003). Acrescento, a sua escrita, uma observação que encontrei em minhas anotações, sobre a vivência deste dia. Enquanto Maria construía sua caixa, verbalizou, para as colegas: Consegui dançar forró, no Sábado. Com este trabalho aqui estou me soltando mais. Sou muito dura (16/06/03). Estas intervenções, como tantas outras, que foram registradas, fez-nos verificar como as situações de criação possibilitavam abrir espaços internos e externos para o sensível, para a percepção de si mesmo e, conseqüentemente, para as mudanças desejadas por cada um. Eram as diferentes portas que, atenciosa e cuidadosamente, começavam a se abrir. A vivência de construção da caixa de segredos, fez-nos constatar, também, mais uma vez, com Vygotsky que a atividade de criação está em relação direta com a riqueza e a variedade de experiências acumuladas pelo homem, o que Ostrower complementa: 195 A criatividade se elabora em nossa capacidade de selecionar, relacionar e integrar os dados do mundo externo e interno, de transformá-los com o propósito de encaminhá-los para um sentido mais completo. Dentro de nossas possibilidades procuramos alcançar a forma mais ampla e mais precisa, a mais expressiva. Ao transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiências existenciais – processos de criação – que nos envolvem na globalidade, em nosso ser sensível, no ser pensante, no ser atuante. Formar é mesmo fazer. É experimentar. É lidar com alguma materialidade e, ao experimentá-la, é configurá-la. Sejam os meios sensoriais, abstratos ou teóricos, sempre é preciso fazer (1996, p.69). E, na possibilidade do fazer criativo, Priscila (Diário de Bordo) simbolizou os seus conflitos: O bicho de seis braços Um personagem cheio de braços. Algo que me impede de ser feliz. O bicho pequeno é a fé. É como se no conflito existisse algo pequeno que diz que tudo vai melhorar (7/04/2003). 196 As imagens, a seguir, traduziram formas/símbolos que povoam o imaginário feminino, representações mais profundas dos sonhos, dos desejos e da imaginação que as jovens contaram, enquanto autoras de suas produções. O desejo desta pesquisa era que cada um pudesse tornar-se autor de suas expressões e não um ator protagonista. É bom lembrar que a palavra autor, vem de auctor, aquele que aumenta (GASSET Y ORTEGA, 2005, p.55). • Mãe-Terra: testemunha da criatividade, auto-conhecimento e solidariedade dos(as) jovens Imagens amplificadoras30 dos sonhos das jovens, por viverem a experiência da maternidade. 30 Jung considera importante a técnica de amplificação dos símbolos. O dinamizador ao favorecer o contato do indivíduo com vários tipos de linguagens expressivas, está possibilitando que se amplifique e aprofunde a percepção sobre si mesmo, dilatando a consciência de cada um na conquista do SELF. 197 O interesse constatado pelos trabalhos com a argila, conjuntamente, com os estudos a respeito da função da argila31, demonstra que o homem fez suas primeiras representações com este material há 40.000 anos, antes de surgirem as pinturas nas cavernas. Esta pasta végetomineral tem preservado a memória artesã da humanidade. Nas vivências com a argila, sempre, inicialmente, fazíamos um trabalho corporal. Música de sons de tambores, para que pudessem sentir os pés firmes no chão, como se estivessem enraizados na terra. Após, de olhos fechados, cada um tinha a oportunidade de saborear o contato íntimo com a mãe-Terra, sentindo de forma cinestésica sua textura, sua maciez, sua dureza, sua temperatura. Era a possibilidade de emergir uma outra forma de conhecer, que não fosse puramente cognitiva, capaz de ampliar a consciência através do sensorial, remetendo-os a um tempo muito antigo e a um contato primordial. As necessidades mais variadas são vivenciadas pela flexibilidade e maleabilidade que a argila proporciona, pois, ela é mole, macia, sensual e faz sujeira, sendo atraente para qualquer idade. Além do mais, ativa os processos internos mais primários e viscerais, permitindo, aos educandos, sentirem-se unos, com o seu manuseio. Oaklander (1980) aponta que a argila aproxima as pessoas de seus sentimentos. Talvez por causa da sua fluidez, ocorre a união entre o meio e a pessoa que o usa. Freqüentemente ela aparece penetrar na armadura protetora, nas barreiras que criamos. Pessoas muito distanciadas 31 Para maior aprofundamento ver: ALLESSANDRINI, Cristina Dias. Oficina Criativa e psicopedagógica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996; OAKLANDER, Violet. Descobrindo crianças - a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980; GOUVEIA, Álvaro de Pinheiro. Sal da Terra: o uso do barro em psicoterapia. São Paulo: Summus,1989. 198 do contato com seus sentimentos e que continuamente bloqueiam sua expressão geralmente estão fora de contato com seus sentidos. A qualidade sensual da argila, muitas vezes, oferece a essas pessoas uma ponte entre seus sentidos e seus sentimentos (p.85). Neste sentido, ela pode ser profundamente gratificante, podendo-se viver “tudo”, metaforicamente, falando, apenas no contato, mexendo nela, pois, ela age como transformadora de um estado de desencontro para um estado de equilíbrio. O prazer no manusear o barro se encontrava estampado em seus rostos, no corpo todo que se comunica, mexendo-se, conversando, sorrindo, inquietando-se, quando a forma não correspondia ao nível da representação mental, pois, a argila tem o poder de mobilizar a tomada de decisão. Assim, aquele que esteja inseguro é capaz de superar este estado, ao sentir o controle da argila sendo transformada, que por sua vez, poderá ser desmanchada facilmente. Trabalhar com a argila não exige regras definidas para o seu uso, tampouco o certo ou errado, o belo ou o feio. Ainda com Oaklander (1980, p.86) o uso da argila fortalece a auto-estima permitindo experienciar um senso incomparável de si próprio, o que acrescentamos a possibilidade do auto-conhecimento. Observando o prazer na atividade, percebemos que a argila ali estava, integrando razão, sensação, sentimento, intuição, ou seja, funções psíquicas que vivenciadas, fortalecem a capacidade de fazer, de criar e ampliam a auto-estima, ao sentirem-se mais conscientes e inteiros. Assim, em alguns momentos da Oficina, foi possível registrar falas como: Hoje comecei o curso, trabalhei com argila e fiz relaxamento. Foi muito bom e relaxante, acalma a alma. No trabalho com argila fiz uma cesta. Sou uma cesta de frutos, represento a paz que a natureza nos traz. A natureza é adorável de se estar em contato. O cesto é a arte. (BEATRIZ, Diário, 2/6/03) 32 32 Foi interessante notar, que durante todo o período da Oficina, os participantes encontraram seus sentidos particulares para nomearem esses Encontros: Curso, Oficina, Arte-terapia, terapia. Não seriam as astúcias de Certeau? 199 Hoje foi um pouco corrido, mas consegui chegar, tocando firmemente na terra comecei a pensar. O que fazer? O que criar? Já sei, um vaso de flores com beiradas parecendo bordadas. Com riscos parecendo chuviscos. Será que está chorando? Será que precisa de flores para alegrar ou espalhar encantos no ar, abrir o coração para amar? Espalhar uma melodia e se inspirar n’uma poesia, ser feliz, viver sorrindo e se divertindo, preencher o coração, mergulhar nessa emoção, saber, poder, pensar, falar, sentir, sorrir, cantar, pular. Pular de alegria e sonhar com você! (KELLY, Diário de Bordo, 02/06/03). Percebemos que o expressar uma imagem e dar-lhe uma voz foi possibilitando com que cada um aprendesse a descobrir o que já existia em si, como se fosse inventando a si mesmo, descobrindo caminhos ainda não experimentados. Além disso, entraram em contato com sensações e texturas que ajudaram a libertar tensões. Lembramos que a flexibilidade da argila permitiu que se sentissem mais autoconfiantes, fazendo e desfazendo a matéria.. Hoje eu fiz um trabalho muito simples. Talvez o mais simples de todo o grupo, foi uma cesta de argila que por fora tinha o meu nome e o nome de Alex. Dentro alguns objetos feitos também de argila. Esta cesta está tão vazia quanto meu coração. Eu estou gostando dele, mas não sei se devo demonstrar e isso me faz sentir vazia. (ANA FLÁVIA, Diário de Bordo, 02/06/03). Ainda tivemos algumas falas importantes. Maria, neste dia, deixou registrado: Estou há doze anos nesta escola, minha primeira e única escola, e nunca tinha trabalhado com argila! Em um dos encontros dedicados ao trabalho com argila, Izabella chegou atrasada, pois estava na aula de adaptação. Falou que, mesmo atrasada, não queria perder a atividade. Ao observar o seu processo de construção, presenciei Izabella dizer que não sabia fazer nada com 200 a argila. Sugeri, então, que só fosse tocando a mãe -Terra sem compromisso de ter que dar uma forma. Assim, além da flor no pote, foi capaz de fazer uma cesta com ovos, e ainda narrou: Fiz uma flor em um pote. Me sinto presa como esta flor. (IZABELLA, 02/06/03). Estas narrativas nos revelam, no contato com a argila, o quanto foram capazes de tocar amorosamente dentro de si e deixar vir à tona suas crianças, seus sonhos juvenis, pinceladas de seus amores e temores. Junto a Read (2001) indagamos: Por que o ser humano se desafia em exteriorizar suas percepções ou sensações? Por que não se satisfaz com uma representação meramente introspectiva ou imaginativa do objeto ou da sensação?(p.182). Frente a tais questões e fruto das observações feitas durante a pesquisa, verificamos que expressão também é comunicação, ou pelo menos, uma tentativa de comunicação, que implica a intenção de influenciar outras pessoas, o que vem a caracterizá-la, dessa forma, como sendo uma atividade social. Visto por esta ótica, uma expressão não considera apenas o indivíduo no seu processo de existência, mas a relação do indivíduo com o grupo, ou seja, um ser humano que se constrói historicamente no coletivo. 201 Tendo em vista o cuidado da pesquisa com o social, enquanto espaço vivencial e potencializador de práticas de solidariedade, que, na atualidade, tornam-se urgentes, e na tentativa de construção de um contexto escolar mais humanizador e cooperativo, as imagens, a seguir, mostram uma atividade coletiva, com doze placas de três quilos de argila cada, cuja avaliação através da observação, análise das fotos e da filmagem revelam a profundidade de um trabalho conjunto que, na sua realização, exigiu que os corpos se expressassem, somandose a diálogos, a tomadas de decisões, à conciliação de interesses, à brincadeiras e à seriedade, além da alegria de manusearem o material compartilhado. 202 Depois do relaxamento e de várias experimentações, quando solicitamos que percebessem, sensoriamente, a textura e a temperatura da argila, observassem os dedos que são mais ágeis, os sentimentos que brotavam do próprio contato com a terra. Assim, o grupo foi se dividindo, um grupo de um lado e, o segundo, foi se agrupando no lado oposto. Primeiramente, fizeram um sapo, que aos poucos foi se transformando em um urso de frente e de costas. Após muitos diálogos e manuseio da argila, a parte detrás do urso se tornou a frente de um macaco. As participantes se lambuzaram, tocaram-se e brincaram muito. Pedimos que trocassem de posições, para que experienciassem outros lados do material, assim, o macaco recebeu uma gravata borboleta e uma banana nas mãos e o urso, um pote de mel, que se transformou em uma flor em sua mão. Em nossa observação, percebemos que a proposta de trabalhar a argila através de um bloco grande e único favoreceu com que as participantes operassem cognitivamente através da síntese para que depois, chegassem à análise das partes. Foi interessante, perceber como ocorreu a decisão coletiva e definitiva, em relação à modelagem do macaco e do urso, que aconteceu de maneira tão natural e com tanta sutileza, como se as mãos, substituindo as vozes, conversassem amorosamente entre elas. Também, observamos que o grupo que se decidiu pela construção do macaco, representava o grupo mais extrovertido, mais falante e alegre, enquanto o grupo que elaborou o urso, além de terem trabalhado mais silenciosamente, representavam as jovens mais introvertidas, observadoras, aquelas que penetravam mais profundamente nas vivências. Na conclusão da atividade, falaram: Dois animais, machos. Todo mundo tem dois lados, tudo na vida tem dois lados. Eles têm em comum a vida na selva e a cor. O urso está apaixonado, com uma flor na mão. Ao saírem em direção ao corredor, quando foram lavar as mãos, observamos muita descontração, brincadeira, cada uma tentando sujar a outra, além de muitos risos. No Encontro seguinte, demos continuidade à atividade. A banana tinha caído das mãos do macaco, mas decidiram que não iriam refazer e, então, fiamos nossos diálogos sobre a vivência. Muitos fios foram tecidos com uma polifonia de vozes que se tonalizaram em 203 pensamentos, sentimentos, emoções que foram expressos, na alegria que sentiram ao construírem a escultura. Hoje fizemos a pintura do urso e do macaco, cada um pintou de um jeito, a escultura ficou com várias cores, ficou bem colorida. É bom trabalhar assim, todo mundo junto no mesmo trabalho. A união, o compartilhar do material, no final o ursocaco ficou bem colorido. (AYLIANE, Diário de bordo, 29/09/2003). Aproveitamos este relato de Ayliane, para trazer uma de suas reflexões expressas em um dos questionários de auto-avaliação: No início dos encontros me sentia um pouco fechada, quando estava aqui achava que aqui não era o meu lugar, mas quando eu saía me sentia bem por ter vindo e sempre queria voltar. Depois, nos encontros comecei a me sentir um pouco mais confiante, mais animada para encarar a semana, mais feliz de bem com a vida. Também pude expressar em diversos trabalhos um pouco de mim, o que nem sempre eu deixo transparecer. (AYLIANE, dez/2003) É possível verificar o quanto os encontros passaram a ter um sentido para Ayliane, levando-a a perceber o valor do auto-conhecimento, do trabalho de grupo, como foi demonstrado em seu registro: É bom trabalhar assim, todo mundo junto no mesmo trabalho. A experiência que temos tido como educadora nos faz perceber que muitas dificuldades profissionais de relacionamento poderiam ser minimizadas se fossem estimuladas atividades plásticas grupais com o objetivo de favorecer o compartilhar de materiais, o sentir a proximidade do corpo do outro, o buscar decisões criativas juntos para o mesmo fim. Como coordenadora pedagógica, função exercida durante quinze anos, nos âmbitos da rede pública municipal e privada, defendemos a construção de tais espaços entre professores, 204 pois, entendemos que, muitas vezes, as dificuldades nas trocas de idéias durante a elaboração de um planejamento didático, por exemplo, poderiam ser previamente vivenciadas e exploradas através de mãos, de corpos que tivessem a oportunidade de criarem juntos trabalhos em arte. Quantas dificuldades afetivas poderiam ser trabalhadas no espaço prazeroso das artes! Sem perder o fio da meada, com relação ao trabalho de construção do ursocaco, no dizer de Ayliane, outros fios foram sintetizando, enlaçando-se, entrelaçando, agora na fala de Ana Flávia (Diário de Bordo, 01/09/03): O nosso urso e o nosso macaco representam o poder da fraternidade. Fizemos um MACURSO, dois machos, é o lado da amizade. Um animal de dupla face. Cumplicidade. O macaco é espontâneo, brincalhão e o urso é retraído. Ás vezes, me sinto um pouco urso, precisando de carinho, de dengo e atenção. Gostei de ver minhas mãos trabalhando. No início, não acreditei que fosse dar, certo. Foi um trabalho de grupo. Sobre o urso, acho que é preciso de confiança para chegar até ele. A esta escultura, trouxeram outros fios, novos pontos, pontos cheios, que embelezaram ainda mais a nossa trama, quando suas mãos, em casa, esculpiram sua vivência, buscando nela, ainda mais, mergulhar. Hoje foi um dia especial, trabalhei em grupo. Todos juntos para um único fim. Fizemos um macaco e um urso. O macaco é o rei da travessura e da inteligência, da agilidade e da esperteza. O urso é comilão, fofo que só ele. Mas, cuidado para não chegar muito perto! Ele pode atacar! Macaco e urso numa grande jornada. O macaco leva o alimento, o urso, uma flor para a sua amada. Mel para adoçar e trazer alegria. Macaco e urso numa grande sintonia. Um guardando as costas do 205 outro, numa grande e harmônica cumplicidade. Guardo em meu peito essa moeda, o animal de dupla face – URSOCACO. (MARIA DA CONCEIÇÃO, Diário de Bordo, 01/09/03) Envolvidas às pistas oferecidas pela Maria, lemos no seu Diário de Bordo, na folha logo a seguir a esta, no mesmo dia desta vivência, quando deixou suas narrativas registradas, às 21horas e 05 minutos: Ajudá-me oh! Magnânimo, pois só tu tens a chave da libertação de minh’alma. Liberta-me com a sua paz. Saio dos céus ou do estremecido mundo de minha mente para mergulhar no inferno da solidão, ou o inferno mais conhecido como a família, que é o que não tenho. Se pudesse me dissolveria em gotas de orvalho e iria pra bem longe, como as terras do Sertão, que certamente precisariam de mim, ou criaria asas e subiria aos céus só pra ver a beleza da lua e seu brilho misterioso. Sei que não posso. Só sou uma mortal, adolescente, inexperiente cheia de confusões e falsas conclusões. É só pressionar e pronto!Não paro de relatar através de letras, palavras e rimas. Sou adolescente, não indolor. Tome cuidado sou como um cão. Posso ser carinhosa e fiel, leal, talvez, mas não pisem no meu rabo. Posso morder vocês. Assinado: Maria da Conceição Figueira. Desabafo de uma adolescente consciente! Ainda com o olhar atento às escrituras de Maria, naquela mesma noite teve um sonho e o escreveu no seu Diário de Bordo: Sonhei que estava no curso (é assim que ela se refere aos Encontros na Oficina) e que o chão estava todo molhado, todos estavam calçados menos eu. Então a professora Cristina queria me emprestar o calçado dela, foi então que olhei para um canto da sala e vi vários sapatos. Aí eu disse a ela que eles davam no meu pé, calcei um deles e acordei. 206 Não temos a pretensão de fazer uma análise psicanalítica sobre os escritos da Maria, no entanto, é importante registrar como ela tem se apropriado das vivências, ampliando a sua capacidade de investir em si mesma, através do seu auto-conhecimento, o entendimento da ausência da família em sua vida, a necessidade de mostrar aos poucos quem ela é, além da possibilidade de crescer com o próprio grupo. Trazendo outros fios já tecidos por Maria, é relevante lembrar que no segundo encontro escolheu como imagem para apresentar-se ao grupo, Madona amamentando, e expressou que não foi amamentada pela mãe, sendo criada pela tia. Sobre o seu sonho, gostaria de esclarecer que um dos aspectos que conversamos, logo no início dos Encontros, foi sobre a necessidade de que, todas às vezes que tivessem um sonho, o registrasse, porque entendemos que os sonhos representam verdadeiros jornais do inconsciente, que a escola não tem valorizado, visto que o paradigma racional desconsideraos, por não poderem ser medidos e por não serem passíveis de controle, sem terem valor especulativo. Dessa forma, há que se considerar o tempo que a criança e o jovem passam na instituição escolar sendo que, quase sempre, o rico material dos sonhos não tem sido valorizado. Sobre o sonho da Maria, indagamos: que conhecimentos ela tem construído em relação a si mesma (pés descalços), ao espaço das vivências (chão molhado), a relação comigo (eu querendo emprestar-lhe o meu calçado) e a relação com o grupo de companheiras (os vários pés de sapatos, no canto)? Assim, Maria encontrou uma criativa solução para a questão trazida no sonho, que foi a possibilidade de encontrar a sua própria “saída” (o sapato que desse em seus pés). Consideramos que o mais importante foi o aprendizado que ela tem se permitido fazer, a coragem em expressá-lo, ampliando a sua abertura para o mundo. 207 É bom lembrar que o em sua fala sobre o trabalho coletivo com a argila ela registrou: “É um animal de dupla face. É a cumplicidade”. O processo criativo que orientou esta pesquisa caminhou em direção a uma abordagem reflexiva do processo pessoal de criação, valorizando a historicidade dos educandos, na busca da abordagem histórico-social, no dizer de Vygotsky. O grupo não estaria tendo um papel importante em sua construção pessoal, considerando-se cada elemento do grupo, ou seja, a influência da coletividade no processo de cada um? Recordamo-nos das palavras de Karla, também no segundo encontro, quando escolheu a imagem de Turner, sobre o mar e relacionou-a ao medo e sobre as pessoas que usam máscaras. Maria não teria se apropriado da idéia da dupla face, com Karla? Entendemos com a Teoria da Complexidade, já sustentada anteriormente, que tudo está ligado a tudo, que uns influenciam os outros, até mesmo quando não se deseje, uma vez que, formamos uma grande teia, a Teia da Vida. Além disso, ao vivenciarem juntos, momentos de criação, mãos aprendem a se dar, comungando sensibilidades, ampliando a sincronicidade nos campos simbólicos na busca da relação do nós. Complementamos com outros escritos: No trabalho saiu um urso e um macaco, meio a meio. Tudo começou com as orelhas e o rosto de um sapo, depois um panda e finalmente um urso e um macaco. O macaco tinha uma banana na mão, defendendo a sua masculinidade. O macaco se parece comigo pela sua astúcia, ingenuidade e alegria. O urso também é macho e muito apaixonado e a forma com que resolveu demonstrar o seu amor é levando uma flor para a sua namorada. Quando falo em urso me lembro do abraço de urso, eu adoro dar abraços e também recebê-los. Hoje foi hilário! O nome (que deu para a escultura) seria TCHARAM. Não sei porque, mas o que veio a mente foi esse. (AYLIANE, Diário de Bordo, 01/09/03). 208 No trabalho de hoje fizemos uma escultura de argila, de um lado saiu um macaco e do outro lado um urso. Para mim a lição mais forte que foi ver que o trabalho em grupo realmente pode dar certo, se ambos estiverem de coração aberto e boa vontade, para que tudo dê certo. Foi muito legal! (ANA FLÁVIA, Diário de Bordo, 01/09/03). Urso = carência, atenção, carinho Macaco = alegria, espontaneidade, diversão. Duas pessoas que se ligam dentro de mim. (PRISCILA, Diário de Bordo, 01/09/03). No calor do Encontro, tentando arrematar esta vivência, buscamos entrelaçar novos fios a este tecido, através de Chevalier e Gheerbrant (1999), no Dicionário de Símbolos. Assim, encontramos o significado dos símbolos macaco e urso. O sentimento de surpresa nos contagiou, ao ampliar coletivamente, a nossa capacidade de leitura da escultura. O macaco é muito conhecido por sua agilidade, seu dom de imitação, sua comicidade... Na Roda da Existência tibetana, onde simboliza a consciência, no sentido pejorativo da palavra; pois, a consciência, do mundo sensível, pula de galho em galho... A atitude do macaco, na arte do Extremo Oriente, é muitas vezes de sabedoria e desprendimento... Entre os astecas e os maias, o simbolismo do macaco é, de certo modo, apoliniano. As pessoas nascidas sob o signo do macaco são peritas nas artes; cantores; oradores; escritores; escultores; ou são habilidosas, com talento para o artesanato; ferreiros; oleiros (p. 574). 209 Sobre o símbolo do urso: O urso é, no mundo céltico, o emblema ou o símbolo da classe guerreira.... Há, até na Gália, uma deusa Artio que, simbolicamente, marca ainda mais o caráter feminino da classe guerreira... No norte do Japão pensam que o urso é uma divindade das montanhas, suprema entre todas as outras. A festa do urso tem lugar em dezembro entre eles... Ao contrário, o urso é na China um símbolo masculino, anunciador do nascimento dos meninos, expressão do yang... Na Sibéria e no Alaska é associado à Lua, porque desaparece com o inverno e reaparece na primavera... Na Europa, o sopro misterioso do urso emana das cavernas. É, pois, uma expressão da obscuridade, das trevas; na alquimia corresponde ao negror do primeiro estado da matéria (p. 924). A ambiência que foi criada para a realização da Oficina, foi capaz de favorecer as participantes para que pudessem acessar conteúdos internos e vivenciar suas polaridades conscientes e inconscientes, masculino e feminino, interiorização e exteriorização, integrando tais polaridades, conscientemente, expressando-as de forma descontraída, alegre e amorosa. O símbolo criado pelos educandos, o macaco-urso representou para nós pesquisadora, um marco nessa tessitura, pois, expressou - a tentativa de viver uma possível inteireza – um dos objetivos a que nos propomos. Além disso, entendemos com Vygotsky, que uma ação pedagógica que faça frente aos modelos tradicionais de ensino e aprendizagem deverá enfatizar uma abordagem projetiva que mobilize processos internos de desenvolvimento, objetivando a realização do que se apresenta como potencialidade. O que o autor russo sustenta: Por mais individual que pareça, toda criação encerra sempre em si um coeficiente social. Nesse sentido não existem inventos individuais no sentido estrito da palavra, em todos eles permanece sempre alguma colaboração anônima (2003, p.38). 210 As reflexões confirmam o quanto o processo de criação humana tem sido marcado pelo contexto histórico-social, uma vez que toda criação se alimenta de necessidades, de interesses e das experiências dos indivíduos em seu ambiente social. Nessa ótica, esta vivência representou, um verdadeiro encontro consigo mesmo e com o outro, e retomando as palavras de Larrosa (2002), uma experiência é o que nos toca, é algo singular que produz diferença, pluralidade e que não pode ser reduzida, pois é uma abertura para o desconhecido. Também favoreceu o resgate da subjetividade humana em sua inteireza possível, devolvendo a capacidade de encantar-se, de maravilhar-se consigo mesmo e com o seu companheiro de travessia, devido á abertura presente para a diferença, a pluralidade, enfim, para uma parceria solidária. Nossas participantes sentiram-se profundamente recompensadas com sua obra de arte. Esta escultura, pelo seu tamanho e por sua força devido ao envolvimento do grupo, representou uma culminância das nossas artes de fazer e, acredito com Rilke, apud De Bachelard (1988, p.253-254): “As obras de Arte nascem sempre de quem afrontou o perigo, de quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que nenhum ser humano pode ultrapassar. Quanto mais longe a levamos, mais nossa, mais pessoal, mais única se torna uma vida.” Na tentativa de fazer uma amplificação dos dois símbolos, ainda sobre a escultura, provocando a imaginação, em um encontro seguinte, sugerimos que escolhessem uma “palavra poderosa” que sintetizasse o trabalho. Assim, pedimos que escrevessem sua palavra com o dedo no ar, dando-lhe uma cor, um sabor e um cheiro. Depois, recortaram uma folha de papel, em forma de um balão de encher, pintaram na cor escolhida e escreveram nele, a “palavra poderosa”. 211 O nosso desejo era que essas palavras, após, escritas, pudessem, simbolicamente, serem soltas em seus balões e voar, buscando levar as palavras para outras terras/ corações, que as pudessem habitar. Nestas narrativas é possível verificar a presença das categorias auto-conhecimento e criatividade. • Um encontro amoroso consigo mesmo: vivendo seus Sonhos A vivência que designamos – A Viagem - teve como objetivo sensibilizar-se para entender que a Vida pode ser uma grande viagem de realizações e sonhos, e, que, para aproveitarmos o máximo de nós mesmos e da Vida, é necessário aprender a nos conhecer e a solidarizarmos com o Outro. Esta ambiência exigiu uma preparação e elaboração cuidadosa, na organização e construção de materiais e na seleção de textos.33 33 Esta vivência, A Viagem, foi, primeiramente, tecida de forma bastante amorosa com dois parceiros nas artes de fazer, Maria Alice Silva Baptista (educadora) e Darci Cardoso (comunicólogo). Em nossa condição de arteiros, criamos a vivência com o objetivo de dinamizar treinamentos com educadores no Rio de Janeiro, em Xerém e Niterói, nos anos de 2001, 2002 e 2003. 212 Antes de entrar na sala, havia um guichê coma a inscrição - A Vida é uma viagem, leve seus sonhos - quando os participantes escolhiam o desenho de um barco: lancha, navios Viking e Titanic, barco a remo, pedalinho, bote, jangada, canoa ou bóia. A sala foi preparada como se fosse um grande mar dos sonhos, azul, com faixas compridas de pano penduradas, simulando mastros, com figuras e pensamentos de personagens/ missionários que lutaram pela realização dos seus sonhos, como: Betinho, Gandhi, Martin Luther King, Charles Chaplin, Madre Teresa de Calcutá, John Lennon, Cecília Meireles e Clarice Lispector. 213 Nesta sensibilização, além das imagens e frases, incluiu-se a melodia das músicas de Vangelis, da trilha sonora do Filme: 1492 - A conquista do paraíso (SCOTT, 1999, USA), e, para completar o mergulho nos sentidos, os educandos saborearam sonhos doces, enfeitados com pensamentos dos personagens: “A vida é um sonho, torne-o realidade.” (Mde Teresa de Calcutá) “Não sois máquinas! Pessoas é que sois” (Charles Chaplin) “Eu tenho ainda um sonho...” (Martin Luther King) “Realize o seu próprio sonho. Eu não posso acordar você. Você é quem pode se acordar”. (John Lennon) “Pus meu sonho num navio e o navio em cima do mar...”(Canção – Cecília Meireles) “Eu só existo no diálogo”. (Clarice Lispector) “A solidariedade a gente não agradece, se alegra.” (Betinho). Após esta sensibilização, assistiram a primeira parte do filme: “1492, a conquista do paraíso”, para que, em seguida, realizassem uma dança criativa, convidando o seu corpo a plantar os seus sonhos, ao som de Vangelis. Há que ressaltar, que os trabalhos realizados em círculo facilitam com que contradições, caso existam, sejam vividas e superadas, com a potência nelas contidas. Início e fim terminam em um círculo e o seu centro é como se fosse o “colo do mundo”. Posteriormente, foi realizada uma pintura coletiva sobre os seus sonhos e, finalizamos, novamente, com um trabalho corporal, tendo como música de fundo, a de Maria Betânia – Sonho impossível. 214 No Diário de bordo de Ayliane encontramos: O sonho Quando nós chegamos tinha guichê com vários tipos de barcos: de lazer, de turismo, de transporte, de esportes radicais. Nós escolhemos o nosso para viajar. Nossa!! Quando entramos na sala tinha vários textos pendurados em tecidos finos, presos no teto e textos colocados nas paredes. Ah!, não podia esquecer do sonho que estava uma delícia Tinha uma mesa com sonhos doces. Escolhi um de chocolate. Em cada sonho tinha uma mensagem e a minha foi: “Ninguém morando nas ruas, educação para todos, favelas urbanizadas e esporte servindo como integração social”. Sonhos de Betinho. Acredito que esse seja o sonho não só de Betinho, mas também de todos nós brasileiros. Quem não gostaria de não ver mais mendigos nas ruas nem crianças trabalhando ao invés de estarem na escola. E, sobre as favelas, gostaria de não mais chamar assim, poderiam ter uma condição de vida, moradia melhor, mais digna, esporte para crianças e adultos interagirem na sociedade. Já ia esquecendo de mostrar meu barco. Eu acho que escolhi este barco por que tenho uma vontade grande de navegar num bote, numa cachoeira ou numa corredeira bem agitada. Um dia eu realizo o meu sonho, não sei quando, mas eu chego lá. (Diário de bordo, 14/07/03). 215 Ayliane, em sua sensibilidade, foi capaz de vivenciar uma experiência, na qual os seus sentidos (tato, paladar, audição, visão) permitiram com que emoção e reflexão caminhassem juntas. É o fazer sensível aliado ao racional, é a arte como instrumento importante para o desenvolvimento do indivíduo e da coletividade. Assim, imagens e falas se enlaçaram dando forma aos seus sonhos. Débora pintou suas mãos e disse: “Eu sinto, eu realizo. Liberdade”. Maria pintou estrelas, flor e um coração e disse: “Vida! Ou tenho-te, ou me tens. Amizade, sinto saudades das amigas da infância. Sonho ser feliz. Sonho, alimento da alma”. No diário de bordo, também, Maria trouxe mais alguns fios da sua meada: A vida é uma viagem na qual adoro fazer expedições por lugares inusitados. Há pouco viajei para o meu ser e lá encontrei caminhos onde a minha mente buscava pelos longos corredores, respostas para minhas perguntas. Com um barco Viking explorei um enorme oceano que é o meu pensar. Perigos e revoltas encontrei, mas tudo se dissolveu no azul dos belos dizeres a balançar a minha frente (MARIA, 14/07/03). Com este quadro/ pintura é possível perceber a presença da categoria auto conhecimento, da imaginação que o barco viking foi capaz de provocar, ampliando a sua escrita criativa. Maria, a cada encontro, ia experimentando o poetar, deixando as suas mãos bordar formas e novas palavras. Kelly pintou flores e acrescentou: “A vida é feita de sonhos. Basta ter fé, esperança, paciência e acreditar. Tudo aqui hoje foi muito bom. Aqui me sinto à vontade, na sala de aula não”. 216 Beatriz pintou um barco, céu e mar. “meus sentimentos foram bons, pude pensar em meus sonhos, nos meus sonhos impossíveis, soltar de asa delta. Gosto de perigos”. Beatriz, no seu diário de bordo, teceu: “Não sois máquinas! Pessoas é que sois!” (Charles Chaplin). Se entregue ao sonho, lute, sobreviva, pois o maior passo para a realização do seu interior é concretizar o sonho que flui em ti. Obstáculos virão, mas, lembrais que humanos sois, e viva para ser feliz! (BEATRIZ). Izabella pintou uma flor grande amarela e, também, grande nuvem azul, e falou: “Quero ter liberdade de viver a vida. Esta nuvem grande vai levar desejos, objetivos e amor. Vivo além da vida, pois, vivo além do mar. Meus sentimentos: deixe a onda te levar...” Ainda falou: “Estou nas nuvens, estou amando!”. Ayliane desenhou árvores e bonecas e disse: “me senti muito relaxada... Fiquei pensando muito em alguém... Meus sonhos distantes que irei realizar... Andar em uma floresta. Entrar em uma floresta, ser perseguida por um animal perigoso: um urso ou um leão. Quero correr riscos!”. 217 Mais uma vez, “caçamos”, nas falas e nos escritos, a juventude que pulsa, cheia de amores e a ânsia da busca do novo, do inusitado, do aventurar-se frente aos desafios da vida. Débora pintou um mar escuro e um barco. “O meu barco vai me levar para algum lugar que não sei... Me senti em paz no mar...”. Esta vivência, pela forma de sensibilização nos fez perceber um profundo mergulho interior em cada participante, quando foi possível observar a seriedade revelada em seus rostos e corpos. Assim, pela complexidade vivenciada, não foi fácil capturar os seus resultados, tanto nos diálogos, nos escritos ou mesmo nas imagens produzidas. Acredito que dentre as categorias analisadas, a sensibilidade e o auto-conhecimento foram os fios da meada, tecidos neste Encontro. Foi possível perceber como o sentimento estético se fazia presente em cada linha traçada, em cada cor escolhida, em cada imagem que se desdobrava, e nas palavras ditas ou escritas. Iluminando nossa análise, Read, ao revisitar os escritos de Platão assim se refere sobre o filósofo: Ele afirmou, como os modernos psicólogos, que toda a graça do movimento e a harmonia da vida – a própria disposição moral da alma – são determinadas pelo sentimento estético: pelo reconhecimento do ritmo e da harmonia. As mesmas qualidades, afirmou ele. ‘entram em grande parte na pintura e todas as outras artes, na tecelagem e no bordado, na arquitetura e em toda a manufatura de utensílios em geral; e ainda na constituição de todos os corpos e plantas existentes’ ”(READ, 2001, p.67). Ainda dialogando com Platão, a partir de Read, este afirma que, para Platão, uma educação estética é a única educação a trazer graça para o corpo e nobreza para a mente, e que devemos tornar a arte como base da educação, pois, para o filósofo a arte é o único instrumento capaz de penetrar nos recessos da alma (p.316). 218 Aliás, não foi este também o objetivo da vivência – A Viagem? • Com os fios que vêm d´alma Com o objetivo de aprofundar a categoria criatividade, sugerimos que as educandas, de olhos fechados, traçassem linhas em uma folha de papel, sem a preocupação de dar uma forma específica. Em seguida, deveriam olhar atentamente ao traçado e, criativamente, ir buscando formas, destacando-as e dialogando com elas. Assim, imagens nasceram de traços que, inicialmente, pareciam nada sugerir. 219 Estas imagens capturadas pelo olhar sensível de Carla (12/05/03), a partir de dos seus rabiscos de olhos fechados, sugeriram-lhe a seguinte escrita: A bruxa Meméia gostava de apavorar os corações apaixonados, com os seus feitiços em forma de raios que ficavam na montanha perto do mar, ao ver o pôr do sol. Eu acho que existe um pontinho de bruxinha dentro de mim, pois tenho pequenos sinais de clarividência no decorrer dos meus dias. Ex: sonhar com a morte do meu pai e no dia seguinte acontecer a infelicidade. Izabella, em sua criação, expressou: 220 Asas à imaginação! Meu desenho não saiu um desenho realmente, mas, sim formas. Se nós olharmos bem identificamos um E.T. correndo! E o de baixo é um golfinho pulando! O E.T. eu me identifico porque vários “ficantes” meus pareciam uns marcianos! O golfinho porque eu gosto! (Izabella,12/05/03). Por sua vez, Adriana registrou: Este helicóptero faz parte dos meus sonhos de viajar um dia para outro país. Pretendo ir para os E.U.A ou para a França, fazer alguns cursos de aperfeiçoamento (Adriana, 12/05/03). 221 As imagens e os relatos imaginativos dos educandos, sugerem –nos recuperar Ostrower (1996), ao referir-se ao processo criativo: Quando se configura algo e se o define, surgem novas alternativas. Essa visão nos permite entender que o processo de criar incorpora um princípio dialético. É um processo contínuo que se regenera por si mesmo e onde o ampliar e o delimitar representam aspectos concomitantes, aspectos que se encontram em oposição e tensa unificação. A cada etapa, o delimitar participa do ampliar (p.26). Ao enlaçarem-se nas linhas de suas imagens construídas, inicialmente, com os olhos fechados, possibilitando romper com o controle, com a rigidez e dilatando a visão interior, as educandas iluminaram suas vivências com formas oriundas dos seus inconscientes. São luzes ampliando o seu processo de consciência, através do auto-conhecimento. Ainda, em direção a este mote, acrescento as palavras de Ostrower (1998), ao referirse ao acaso, questão, também, sustentada pelo paradigma da complexidade, de Edgar Morin (2000): Na elaboração de uma imagem, os acasos representam uma fonte inesgotável de sugestões, e possíveis formas. Antes de serem concretizadas, as possibilidades ficam em aberto. Mas não inteiramente em aberto. Pois, as sugestões terão que corresponder a certas expectativas latentes na pessoa – como uma espécie de chave abrindo uma determinada fechadura. Só então os acasos poderão se tornar verdadeiras opções, e o artista terá a liberdade de escolher. Porém, esta liberdade tampouco é irrestrita. Também ela se apresenta dentro de certas delimitações, que remetem às mesmas expectativas da pessoa. Ou, mais precisamente, remetem a certas predisposições seletivas e ao leque de potencialidades existentes na pessoa (p.67). 222 E, relembramos Vygotsky sobre a importância de se estimular as experiências dos educandos na ampliação de suas potencialidades. Vale retomar Geertz (2001), em sua abordagem antropológica interpretativa, ao enfatizar o valor da arte enquanto um processo cultural e local. A capacidade do ser humano expressar-se criativamente, permite iluminar o sentido que as coisas têm para a vida a seu redor, incluindo, dessa forma uma visão do coletivo. Nas vivências com as diferentes linguagens criadoras, os jovens puderam ser capazes de expressar suas maneiras de estar no mundo, de forma singular, própria e visceralmente local, cabendo a nós educadores, a sensibilidade em perceber em cada gesto, em cada traço, em cada palavra dita ou não dita, as marcas e o pulsar de vidas, como bem ilustra Geertz (2001), ao referir-se às gravuras, às esculturas e às linhas que marcam objetos e corpos dos ioruba. Tais reflexões, sublinhadas pelo autor, apontam que são inseparáveis os meios através do qual a arte se expressa e os sentimentos pela vida (Ibid., p.150). Enfim, pela ótica de Geertz, ao auscultarmos as expressões artísticas dos jovens, através dos símbolos que forem cuidadosamente criados por eles, símbolos que transmitem significados e, significados que surgem graças ao uso que fazem deles, estaremos buscando o lugar que a arte tem em suas vidas. • Brincando e criando com a sua criança interior Um outro fio veio tingir de forma alegre a nossa urdidura, despertando a curiosidade, a imaginação, a criatividade, a conexão com a sua “alma”, ou seja, a sua potencialidade, componentes importantes para uma formação de professores, comprometida com fazeres/saberes menos fragmentados, criativos e significativos. Assim, planejamos a vivência 223 da Praça34, em cujo espaço esteve presente, a Pastelaria Sorriso, o Restaurante Meu Recado, o Salão de Beleza (manicure) e o Ouve-flor (comunicação com o Além-Mar). Na entrada do corredor, espalhamos contornos do corpo humano com colagem de corações, contendo imagens as mais diversas, para serem escolhidas. 34 Esta vivência que chamamos A Praça, assim como A Viagem, foi planejada, conjuntamente, com Maria Alice Silva Baptista e Darci Cardoso, com o objetivo de treinamento com professores. 224 Esta imagem do coração com fechaduras, Maria tirou-a do desenho do corpo humano que estava na parede e colou-a no seu Diário de bordo. Após, apresentamos um Caldeirão de Nomes, com palavras, figuras de frutas e legumes, que foram acrescentados aos seus nomes e sobrenomes, quando mexendo e remexendo o caldeirão pudessem fazer os seus crachás com as palavras que surgissem. Alguns crachás foram construídos, permitindo brincar com as próprias identidades: Os educandos foram convidados a brincar na Praça, estimuladas pelas músicas de Bia Bedran35, principalmente, a música, Quintal, quando nos instiga a “renascer a criança, moleque levado, saci-pererê, que quer andar solto no mato, mas vive trancado dentro de você”. Ao entrar no clima de uma Praça, estimulamos para que experimentassem todos os seus ambientes, ou seja, transformassem as palavras em brinquedos: servir-se de palavras no Restaurante Meu Recado, criando um texto; escolher um tipo de pastel na Pastelaria Sorriso e escrever o seu recheio; escolher as cores para as suas unhas, na Manicure, de acordo com os sentimentos respectivos; além de mergulhar no Ouve-flor, imaginando uma mensagem ouvida de além-mar. Muita alegria foi observada, muita curiosidade e imaginação brotaram da terra de cada um, na medida que ela era afofada. 35 Bia Bedran, musicista niteroiense que há anos se dedica a compor e fazer músicas para o público infantil .A música Quintal foi composta em 1987. Entre seus CDs temos: A caixinha de música, Brinquedos Cantados, O melhor de Bia Bedran. Para melhores informações: www. biabedran.com.br 225 Assim registraram: Pastel da Ousadia Infinitas doses de auto-confiança Uma pitada de cautela Muito tesão pela vida Felicidade à gosto Fé, Paz e Amor (Priscila, 2003) Pastel de Espera Ingrediente: 2kg de paciência uma xícara de sonho duas colheres (sopa) de silêncio um litro de amor cinco colheres (sopa) de amizade um kg de atenção (Izabella, 18/08/03). Na vivência da Ouve-flor, Izabella, registrou: “ Será que estou certa do que ouvi?!... O que ouvi foi a palavra ACORDAR! Realmente, eu estou precisando acordar e tomar uma DECISÃO! Será que estou certa em dormir, não vou mais chorar, vou abrir os olhos para o mundo e acordar! Foi uma fantástica aventura andar por dois dias nesta Praça. Foi uma satisfação fazer tudo isso. Fiquei super feliz e tenho certeza que a minha participação foi enorme” (Diário de Bordo, 18/08/03). 226 Maria escreveu sua mensagem de Ouve-flor: A mensagem que é um amor. Falei com Marte, Saturno talvez. O que ouvi foi: Oi, tudo bem? Houve interferência, mas não interrompeu a mensagem que grita muito. Me fez perceber que ainda há gosto em Viver (Diário de Bordo, 25/08/03). Uma mensagem do coração foi ouvida por Kelly: É preciso ter fé, esperança e acreditar, para que todos os seus sonhos possam se realizar! Ana Flávia foi capaz de sensibilizar-se e refletir através do som imaginado: Ao ouvir o som do mar e sentir o perfume que o acompanha pude analisar que estou no caminho certo e que, a cada dia, posso contar como um ponto a mais para a minha vitória completa. Aposte nos seus sonhos! (ANA FLÁVIA, Diário de Bordo, ago/2003). 227 Aproveitando este relato, salientamos que os escritos nos diários de bordo, logo após as vivências, favoreceram a percepção da atmosfera da atividade, mesmo que a linguagem escrita, muitas vezes, sofresse limitações, percebendo-se, nesses escritos, as marcas das emoções vividas. Pensamos ser oportuno explicitar que as vivências com as linguagens expressivas, como as que foram realizadas, permitiram-nos verificar a dimensão da capacidade criativa de cada um, aliada à possibilidade de reflexão permanente. Constatamos que o fazer arte não se reduzia apenas ao sensível, mas também ao racional e a um fazer que se materializava, através de recursos práticos. Valemo-nos das reflexões de Vygotsky, em a sua teoria histórico-social, que amplia a visão sobre a prática da vivência com a arte, ao demonstrar o seu valor no desenvolvimento do indivíduo. A arte, ao transformar sentimentos e pensamentos, transcende o individual generalizando-se e tornando-se social. Retornando às atividades desenvolvidas na Praça, Beatriz, na Pastelaria Sorriso construiu: Entre todos os recheios, sentimentos, escolhi o amor, para me conduzir na fritura do sabor. Pastel do Amor Uma xícara de respeito Mil colheres de sopa de atenção Duzentos litros de carinho Quinhentos gramas de alegria. Uma pitada de paixão. Modo de Fazer Leve ao fogo derretido o sonho, junto do companheirismo e um desejo de viver. Apimente com idealismo e uma vontade de crescer. E, para finalizar salpique tudo de bom. (BEATRIZ, Diário de Bordo,18/8/2003). 228 Na Manicure, Ana Beatriz pintou o texto: “ Fui na Manicure escolhi os sentimentos que fluem dentro de mim”. * Alegria * Decisão * Esperança * Energia “No Ouve-flor, o ouvir e o cheirar que nos faz bem. Ouço o som do mar, ao tentar escutar a palavra que me quer levar. Escuto as ondas levando meu corpo pra lá e pra cá; Há poucos dias saudade senti de ti, quis te ver, levar os problemas pra além do horizonte. Não fui te ver e acho que o que ouvi foi você a me chamar: Venha compartilhar comigo as lágrimas que te fazem sentir cheiro de canela e a paz penetrou em mim. Os sentimentos se misturam e me pus a pensar, viver e amar. É o que me move a existir. A canela faz me sentir o interior, transpassando em mim, um bem que me faz amar e ser feliz (BEATRIZ, Diário de Bordo, 22/8/2003)”. 229 Na vivência da Praça, no Restaurante Meu Recado, Maria, ao servir-se de palavras recortadas, construiu seu alimento literário: Perdido no tempo. Morto de verdadeira falta de você, por clássicas 24 horas, sem redes de poluição, na linha de drama da solidão (Diário de Bordo, 18/08/03). Ao transforma a palavra em brinquedo (“palavra-brinquedo”), ao saborear imagens/textos, a imaginação brotava como água pura, em nascente de rio. Vygotsky, neste ponto, pode ser, novamente, um fértil interlocutor em nossas artes de fazer/tecer. A Psicologia chama imaginação ou fantasia a esta atividade criadora do cérebro humano, baseada na combinação, dando a estas palavras, imaginação e fantasia, um sentido distinto ao que cientificamente lhes corresponde. Em sua acepção vulgar somente entende-se por imaginação ou fantasia o irreal, o que não se ajusta à realidade e, por tanto, carece de valor prático. Mas, afinal de contas, a imaginação, como a base de toda atividade criadora, manifesta-se por igual em todos os aspectos da vida cultural possibilitando a criação artística, científica e técnica... Tudo é produto da imaginação e da criação humana, baseado na imaginação (VYGOTSKY, 2003 a, p.9-10). O autor, ainda complementa que para melhor compreensão do mecanismo psicológico da imaginação e da atividade criadora com ela relacionada, convém explicar o vínculo existente entre fantasia e realidade na conduta humana. Adverte que considera errôneo o critério vulgar que traça uma fronteira impenetrável entre fantasia e realidade, sendo falso contrapô-las entre si, uma vez que entende a imaginação não um divertimento caprichoso do cérebro, mas como uma função vitalmente necessária (2003 a, p.15). 230 No caso da vivência do Ouve-flor, a experiência de Beatriz foi capaz de envolver o cheiro da essência de canela, que foi convidada a sentir, ou seja, um dado da realidade, com a sua imaginação, ao dialogar com ondas, amores, corpo, lágrimas com cheiro de canela. No dizer de Vygotsky foi a experiência com o real que instigou com que a imaginação pudesse fluir. Acrescentamos com suas contribuições: A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que se erige o edifício da fantasia. Quanto mais rica for a experiência humana, tanto maior será o material de que dispõe a imaginação (Ibid.,p. 17). A respeito desta questão, podemos concluir, pedagogicamente, com Vygotsky sobre a necessidade de ampliar a experiência da criança, do jovem, se queremos proporcionar-lhes uma base suficientemente sólida para sua atividade criadora. Assim, sentimentos se manifestam, tanto interna, quanto externamente, em imagens/impressões/idéias, sabendo-se que as imagens da fantasia servem como linguagem interna para nossos sentimentos, como foi possível verificar nas produções criativas vivenciadas na Oficina, o que Vygotsky acrescenta: “Todas as formas da representação criadora encerram em si elementos afetivos.” (Ibid., p.23). Ou, melhor dizendo, sentimentos e pensamentos movem a criação humana (Ibid., p.25). Com os estudos de Vygotsky, constatamos como a função imaginativa constitui um processo bastante complexo, composta de aspectos que o integram. Dessa forma, toda atividade imaginativa tem sempre larga história atrás de si. “O que chamamos de criação representa um catastrófico parto conseqüente de uma gestação” (Ibid., p.31). No início do processo, encontramos sempre a percepção externa e interna que serve de base a nossa experiência. Os primeiros pontos de apoio que se encontra para a criação é o que se vê e o que se olha, acumulando materiais que são usados para construir a fantasia. 231 Sustentados por estes aportes teóricos, foi possível perceber, nas vivências, que cada convite que os participantes recebiam para ver, para tocar, para sentir, para experimentar os materiais e o meio ambiente, para elaborar suas trocas com os companheiros, o processo criativo ia nascendo, em um fluir que somava percepções internas e externas, mesmo que para alguns representasse momentos de insegurança. Tais momentos eram sempre recompensados pelo prazer de criar algo, que para ele/ela representava o não experienciado anteriormente. Assim, nas Oficinas saboreava-se uma nova forma de expressar-se, uma nova linguagem, talvez desconhecida na escola. Era o brincar com os sentidos, dando nova forma às palavras, deixando nascer/ acordar novas possibilidades de significação para as palavras, para si mesmo, para o mundo, talvez, ainda não experimentadas antes. O brincar na Praça foi um convite para des-construir a linguagem arbitrária imposta, permitindo-se poetizar, transformando palavras em brinquedos. A cada vivência ficava o sabor de que era possível, cada um e o grupo, usar as próprias palavras, talvez suas linguagens primeiras, deixando fluir uma linguagem, muitas vezes, considerada subvertida para o espaço escolar comprometido com tantas verdades! Esta oficina, como a da Viagem, foram lugares da poesia. O poetar de jovens que moveram sonhos e imaginação, aquecendo palavras, cores, afetos e gestos, na tentativa de reinventar a própria Vida. Ainda Vygotsky (2001), ao citar Freud, acrescenta:“O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca36.Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade”. (p.84). Neste ponto, dialogamos com Faundez e Freire (1985, p.52): 36 Sobre o brincar, Vygotsky se refere aos estudos de Freud, quando este declara: “Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério, a sua brincadeira e nela despende muita emoção. A antítese da brincadeira não é o que é sério, mas o que é real”.(VYGOTSKY, 2001, p.84). 232 Quanto ganharia o conhecimento humano, as ciências humanas e a própria sociedade se a criatividade encontrasse um espaço livre para se manifestar. Dizer a palavra verdadeira é transformar o mundo. Assim, remexidas e instigadas pelo processo de criação, enlaçamo-nos em seus questionários buscando alguns relatos: - Na Oficina aprendi a perceber a minha inflexibilidade. - Estou tentando e conseguindo ser uma pessoa um pouco mais flexível. Tento ver os dois lados das coisas que acontecem comigo e no mundo. - Na Oficina vivemos momentos variados, não tem um específico. Tudo que ocorre na Oficina nos toca de certo modo. É muito bom vivenciar todos os momentos.Os momentos que passei aqui dentro foram maravilhosos! - Eu adoro a Oficina. Faz a gente ficar mais sensível. Se a gente está com um problemão, antes de ir para a Oficina, quando a gente sai, ele vira um probleminha. A Oficina é super legal. - Através desta Oficina tenho oportunidade de refletir sobre minha vida pessoal e profissional e traçar novas metas de aprimoramento do conhecimento. • Abrindo outras portas Outros temas também fiaram nossos encontros, como a discussão que foi feita, no dia seguinte às eleições de 2002, quando trouxeram este conteúdo para o encontro e pensamos juntos sobre a questão da Cidadania. Patrícia estava revoltada, pois, questões financeiras a levaram a trabalhar para a candidata à governadora do Rio de Janeiro em 2003, Rosinha, e, registrou: Não gosto da Rosinha. Adriana e Ana Paula estavam desesperançadas, pois, nada muda. Clara argumentou que se tem que dar chance para o PT e, Josiane, não se interessava por política. Lembramos de Geertz (1978, p.189), nos seus estudos antropológicos a respeito da ideologia, como um sistema cultural, ao referir-se aos gabaritos formais e culturais que nos movem e nos organizam. Segundo o autor, os padrões culturais, sejam, religiosos, filosóficos, estéticos, científicos ou ideológicos, são “programas”que nos engessam, condicionando-nos a 233 determinadas formas padronizadas de pensamentos e ações, em uma construção de modelos simbólicos. Entendemos que romper com essas estruturas cognitivas e expressivas exige reflexões e tomadas de decisões que permitam acima de tudo o diálogo. Assim, o diálogo, como uma forma criativa de aprendizagem, teve um lugar especial nas vivências. Com ele fomos tecendo os encontros, com esperanças, medos, dúvidas, mas, com a certeza que, naquele espaço, era possível dizer o que pensavam, sentiam e sonhavam, pois, lembramos de Paulo Freire (1987) a nos dizer: “Somente na comunicação tem sentido a vida humana”, o que acrescentamos: a arte abre portas e janelas para que aconteça o diálogo. Os temas medo, corpo, sexualidade também foram trazidos e expressos, como relata uma participante, em seu questionário: “Percebo que a conversa é muito importante e conversamos muito aqui dentro, sobre todos os assuntos”. Após a leitura da história de Roseana Murray (1997), Tantos medos e outras coragens, os educandos expressaram sentimentos, em seus desenhos, e suas falas fiaram: Medo pode ser paixão, medo de amar ou medo de errar. Pode ser covardia ou coragem demais. Medo pode ser o contrário, uma reação oposta do que se espera. Pode ser apenas a resposta certa na hora exata (MARIA, Diário de Bordo, 10/11/03). 234 O medo nos traz dor e paciência. A coragem nos traz luz e segurança. A coragem nos ajuda a suprir os nossos medos, porém, os dois juntos não são inimigos, um precisa do outro, não há como se separarem. Se não fosse assim iríamos expor desnecessariamente a nossa coragem. (KELLY, 10/11/2003). Interessante perceber o entendimento de Kelly, quanto à necessidade de rompimento com o dualismo que, até hoje, marca o pensamento humano. A história contada favoreceu o pensar divergente, a capacidade de refletir sobre as suas polaridades e a compreensão que é necessário transpassá-las. Esta não representa a própria vivência da complexidade? Juliana enriqueceu esta vivência com uma imagem que se cruzou com suas sensíveis palavras: Eu tenho medo de ficar sozinha no mundo. Assim: tenho medo de que meus pais e meus irmãos morram e eu tenha que passar por todo esse sofrimento e o pior de tudo, sem eles. O medo de não ter o amor do pai e da mãe. Também tenho medo de não encontrar uma pessoa a quem eu possa amar, construir uma família, ou, então, de dar o meu amor a uma pessoa que não o merece, ou seja, medo de não encontrar o meu amor (JULIANA). 235 Lembrando Vygotsky (2003), a produção artística influi em nosso mundo interior, em nossas idéias e em nossos sentimentos, pois, sentimento e pensamento movem a criação humana (p.25). Estas imagens, tanto plásticas quanto verbais e escritas, que ao longo do processo de criação, os jovens foram, corajosamente, construindo, são as mediações defendidas por Vygotsky (2001,2003), que ocorrem através da objetivação da linguagem pela matéria, ou seja, a matéria objetivando a linguagem. Também representam a possibilidade da linguagem reconstruir internamente os Processos Psicológicos Superiores (PPS). Segundo o autor, é a arte como forma de expressão da linguagem, como instrumento de transformação, a serviço do desenvolvimento dos PPS. Nas vivências, as imagens criadas em suas formas descongeladas, representaram maneiras de sobrevivência frente aos códigos anônimos, forjados pela contemporaneidade, vistos como simulacros de credibilidade. Ali foram fiadas suas verdades, mesmo que provisórias, foram tecidos seus saberes, seus sentimentos, suas intuições, passando a ver aquilo que, muitas vezes, os olhos ainda não tinham ousado ver. Era o encontro amoroso com uma materialidade que nascia para dar forma, e dando forma, dava sentido, ressignificando a si mesmo, o Outro, o mundo em seu entorno. Nestas Oficinas, as imagens criadas se somavam à oralidade, quando instigávamos a que dialogassem com elas, dando-lhes Vida, Nome, Sabor, e, como nos lembra Bakhtin (1992), “antes da pessoa existe a voz”, uma voz que tem cor, nuances, acentos, e, que, anda tão silenciada. Se as vozes não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos, no dizer de Certeau (2001, p.222), os quais reaparecem de forma travestida, dominada, ou melhor, domesticada, este não deveria ser o momento de se dar voz aos educandos? Uma voz emancipadora /significativa /criativa? As oficinas representaram uma tentativa para que a palavra pudesse circular e respirar,” Uma cidade respira quando nela existem lugares de palavra” (CERTEAU,1998, p.338). 236 Nos momentos em que os educandos se encontravam criando, fosse pintando, tecendo, ou, esculpindo, poetizando, a oralidade ia, cuidadosamente, fiando esta tessitura, como num vai e vem da agulha no tecido, no pincel que fareja as cores, nas mãos operosas que acariciam a argila e magicamente a transforma. A comunicação ali se encontrava, como uma “cozinha de gestos e de palavras, de idéias e de informações, com suas receitas e sutilidades” (Ibid., p.339). Trazendo novamente Paulo Freire (1987), em sua Pedagogia do Oprimido, o autor sustenta que a palavra é mediada pela ação/reflexão, pois, entende que não é no silêncio que o homem se faz, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão, colocando-se o diálogo como uma exigência existencial, como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Quando nos deixamos penetrar uns pelos outros, as nossas palavras tornam-se ação. O intercâmbio do objeto com o sujeito acontece dentro de outra lógica, tentando romper com o dualismo, ao abrir espaço à interlocução, ao diálogo como mediadores no processo de criação. Com Paulo Freire e Faundez solidificou-se a questão da diferença. É justamente a diferença que nos permite dialogar (FAUNDEZ, 1985, p.116). Sabemos que os educandos trazem experiências distintas e que é preciso vivê-las distintamente. E, como são distintas as experiências, uns podem ensinar aos outros, e, uns podem aprender com os outros. Nós só aprendemos se aceitamos que o diferente está no Outro. O diálogo só existe quando aceitamos que o Outro é diferente e pode nos dizer algo que não conhecemos (Ibid., p.36). Assim, pensa-se na pluralidade, sem perder as identidades, reforçando-se a diferença, pois, o cotidiano exige que se façam rupturas com o binário eu-outro, sujeito-objeto, professor-educando, dominado-dominador, dia-noite, sol-lua, feminino-masculino. Nas conversas que tecemos, quase ao pé do ouvido, que saltam em nossas artes de fazer, trazemos Taylor (2003), que na trilha freireana, sublinha: 237 Nossa compreensão do mundo, nossa maneira de estar no mundo, não é condicionada simplesmente por nossos saberes científicos. A ciência nos ajuda a compreender os fatos, as coisas, os objetos que nos cercam. Mas ela só contribui parcialmente para a nossa compreensão de nós mesmos e dos outros enquanto Sujeitos-atores e autores da nossa vida. O saber dialogar, pelo qual consigo compreendê-los, não é uma simples aquisição científica e sim um saber relacional. O ‘sabercompreender-você’ não pode ser reduzido a um saber científico porque, atrás da roupagem de nossos conhecimentos, mesmo daqueles que pretendem ser factuais, há um cenário que estrutura o significado da nossa vida e que ultrapassa os limites da ciência disciplinar”. (p.63-64) Que saberes reveladores/desveladores do conhecimento do eu, vão sendo construídos ao se estar em contato com o Outro? Seriam os saberes lunares, defendidos por Taylor (2003), que na contramão do paradigma hegemônico propõe que se apreenda a si, ao outro e o mundo com o coração? É o diálogo enfatizado por Freire, cujos ingredientes são o Amor, a Humildade, a Fé, a Confiança, a Esperança e o pensamento verdadeiramente crítico (1987, p.79-83). Nas Oficinas buscou-se que saberes/conceitos fossem transformados em vivências, através das diferentes linguagens expressivas, articulando os saberes lunares e saberes solares, aos quais se refere Taylor. O processo de criação instiga o rompimento com a visão binária que, milenarmente, nos afeta/aflige, indo em direção a uma articulação entre estes dois saberes, conjugando a objetividade, o verificável, o conceitual, o masculino (guardião do saber) com os aspectos referentes à subjetividade humana, à imaginação, à intuição, à criatividade, ao feminino, funções/características psíquicas do ser humano, que, por um longo tempo foram e, ainda são, banidas/excluídas do cotidiano, chegando, até mesmo, no passado, a serem queimadas nas fogueiras da “santa” inquisição. Trabalhar com a arte em uma proposta educativa preocupada com o coletivo é trazer o sensível, o afeto, o cuidado, a emoção, o prazer e a amorosidade por si mesmo e pelo Outro, indo, muitas vezes, além do que os olhos vêem, além das palavras, favorecendo com que o 238 educando seja tudo o que nasceu para ser. Completando com as palavras de Freire (1987), “O respeito à autonomia e a dignidade de cada um é um imperativo ético e não favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. Assim, os sujeitos criadores-falantes das Oficinas foram estimulados a criar, a pensar sobre suas criações, a falar e a narrar suas próprias histórias de vidas. Linhares (2003), perseguindo a saga freireana, comenta: Entendendo o pensar e o pronunciar-se como ações a integrar-se nos movimentos da vida, estimulou os oprimidos a narrar a vida, como uma forma de neles penetrar para inter (vir), compartilhadamente, Paulo Freire vitalizou memórias épicas, políticas, culturais que foram oxigenadas, para abrir espaços a novos enredos e novos lugares, onde os lugares, onde os oprimidos, em vez de devedores, pudessem se tornam credores da vida, da sociedade e da história da qual precisavam e precisam se apropriar” (p.154). Aqui encontramos, também, uma aproximação com Certeau (2001), sobre a importância do ato de falar, ao buscar dar voz às imagens criadas. Privilegia-se o ato de falar: este opera no campo de um sistema lingüístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação, ou uma reapropriação, da língua por locutores; instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato com o outro (interlocutor) numa rede de lugares de relações (p.40). Na Oficina, quase sempre, trabalhando em círculo, nossa rede se construiu, surgindo a conversação, pois, como Certeau (1998) acrescenta: 239 A oralidade está em toda parte, porque a conversação se insinua em todo lugar; ela organiza a família e a rua, o trabalho na empresa e a pesquisa nos laboratórios. Oceanos de comunicação que se infiltram por toda a parte e sempre determinantes, mesmo onde o produto final da atividade apaga todo o traço desta relação com a oralidade (p.337). Dar voz, dar a palavra, enquanto ato/operação, pressupôs uma escuta sensível nossa, enquanto pesquisadora, pois, tudo aquilo que fala, rumoreja, passa, aflora, vem ao nosso encontro, modificando, muitas vezes a nossa escritura, nos confundindo, nos fazendo tomar novas trilhas e muitas saídas possíveis. A arte, em suas diferentes formas de expressão, por não ser linear, desconstruiu muitas lógicas, abrindo caminhos para o inusitado, para a construção de linguagens instituintes, por serem transformadoras do si e do mundo ao seu redor. Na Oficina mergulhamos nas imagens, verdadeiros textos, que despertaram narrativas, somando-se a palavras grávidas de sentidos, abrindo-se a interações. Palavras que ninguém podia dizer sozinho, roubando a palavra do Outro, mas, na ambiência/relação criada, foram se fiando os diálogos, enquanto se encontravam, sentados no chão, na roda criativa, seus corpos, traduzindo o desejo de uma escuta amorosa e cuidadosa, que, muitas vezes, se atropelava pela ansiedade do uso da palavra, mas, que, sempre, permitia o direito de todos falarem. Entendemos que a imagem tem um sentido de memória, ou seja, desperta lembranças. Um texto pode ficar ultrapassado em sua escritura, enquanto a imagem, devido à possibilidade de diálogo com o outro, garante o seu lugar no contexto, extrapolando o próprio texto e se enraizando. Trazemos, mais uma vez, os fios poéticos de Manoel de Barros (2003): Imagens são palavras que nos faltaram. Poesia é a ocupação da palavra pela imagem. 240 • Mãos plasmando máscaras Com o propósito de instigar o olhar dos participantes da Oficina, levamos algumas imagens de máscaras verificando o interesse em uma atividade expressiva com este tema. Assim, refletimos sobre o texto a seguir: OFICINA DESPERTANDO O SER AS MÁSCARAS DESMASCARAM As máscaras aparecem na História da humanidade desde as épocas mais remotas. É presumível que o homem primitivo usasse a máscara e a dança em um ritual mágico, como um elemento catalizador de forças misteriosas. Na visão da Psicologia, desde pequeninos aprendemos a nos moldar às expectativas dos pais, dos professores e da sociedade. Jung37, em seu livro - O Homem Criativo - ressalta que por uma série de razões adaptativas, por necessidade de segurança e de afeto, vamos selecionando qualidades e traços, que consideramos desejáveis e mais adequados. É muito comum vermos pessoas que se comportam de um jeito em casa e de outro no trabalho, na escola ou com amigos. São duas personas. Há aqueles que apresentam muitas máscaras, até por falta de uma. A persona ideal é flexível, permitindo adequação a diferentes situações sociais. 37 JUNG, Carl. O Homem Criativo. São Paulo: FTD, s/d. 241 A persona costuma estar presente em declarações do tipo: “Quem manda aqui sou eu”, “Eu sou durão”, “Sou inteligente”, “Sou bonita”, “Ninguém gosta de mim porque sou pobre”, “Sou um azarento”,”Ninguém me ama”. A persona pode encobrir nossa verdadeira natureza e esconder as características que não costumam ser aceitas e que tendemos a rejeitar. Dessa forma, afirma Buchbinder38: “o trabalho com máscaras desmacara. A máscara, como instrumento de conhecimento profundo, pode revelar e realçar aspectos da pessoa e da cultura que permaneciam escondidos à espera de poder se expressar e se integrar à vida para enriquecê-la”. Junto aos educandos, completamos a reflexão sobre o texto, pontuando que as máscaras representam roupagens que servem como função adaptativa. O ser humano, ao sujeitar-se às convenções sociais, adota determinadas máscaras para representar sua subjetividade. Envolvidos por estas idéias, realizamos o trabalho criativo, tendo como objetivo que cada participante pudesse, a partir de uma sensibilização, construir, plasticamente, através de uma máscara,“a persona”que desejasse potencializar na sua vida.Escolheram pares, e cada um modelou o rosto do seu parceiro em gesso. Os resultados deste trabalho foram verificados, através das imagens e dos relatos: 38 BUCHBINDER, Mário. A poética do desmascaramento: os caminhos da cura. São Paulo: Agora, s/d. 242 Tive um grande prazer em fazer a máscara da minha amiga. Senti uma alegria, mas ao mesmo tempo uma imensa responsabilidade. Na hora que ela fez em mim, fiquei inquieta e receosa, mas logo tentei me acalmar. Depois de pronta senti uma sensação fantástica de alegria. Falando francamente, a pintura da máscara foi o que mexeu no fundo da minha alma. Não consigo descrever fielmente, mas suspeito que a pintura tem uma relação muito grande comigo.(BEATRIZ, 09/12/04). Fazer a máscara em Izabella foi muito bom, pois me deixou relaxada, além de ter sido engraçado, deu até para brincar de mímica com ela, pois não dava para ela fazer nada. Depois eu não fiquei animada para que ela fizesse em mim. Não sei explicar porque.(AYLIANE, 09/12/04). A máscara foi o trabalho mais difícil para mim, até hoje, pois exigiu muito do meu auto-controle e calma. Me senti mal, podendo apenas mexer meus olhos. É uma sensação muito estranha. (PRISCILA, 09/12/04). Os relatos capturados expressaram o processo de construção das máscaras e não o significado das máscaras para cada um. 243 Não há dúvida de que este tipo de trabalho exige concentração, atenção e tempo para a sua criação, o que não foi possível, uma vez que tivemos que interromper as atividades, pela falta de tempo das educandas para participar da oficina, pois, estavam em provas finais. Duas delas apenas modelaram as suas máscaras e não as pintaram. Verificamos, assim, que o fator tempo não permitiu que houvesse um aprofundamento da experiência, uma vez que esta exigia um olhar sensível sobre o processo de existir de cada um. Dessa forma, verificamos que, em parte, não foi possível atingir os objetivos a que nos propomos. • Ampliando nossos olhares em direção a outros tempos/espaços Dando continuidade aos registros de análise da pesquisa, trazemos a avaliação das visitas que foram realizadas ao Museu de Arte Contemporânea – Niterói, ao atelier de Cerâmica da artista Keiko e ao Centro Cultural do Banco do Brasil. . Centro Cultural do Banco do Brasil – Rio de Janeiro 244 Museu de Arte Contemporânea – Niterói – RJ Foi a primeira vez que eu fui ao MAC. Ao chegarmos lá, conhecemos Maria, a responsável pelo trabalho educativo do Museu. Ela nos contou um pouco da história do museu, nos fez perceber detalhes super legais e quando entramos no museu fizemos um trabalho com as obras de arte. Pegamos uma folha e desenhamos as obras que mais nos chamou atenção. Depois, inventamos uma história. A que meu grupo imaginou tinha dragão, asa de borboleta, onça e porta de geladeira. O dragão representa os problemas que, muitas vezes eu prefiro não ver, não acreditar. A asa de borboleta, porque eu gosto de me sentir livre. (AYLIANE, Diário de bordo, 06/11/03). E, assim, o seu grupo criou: 245 246 Na Oficina de Keiko, também, foram capazes de produzir novos escritos: A chegada na casa da Keiko foi super-legal, pois, me diverti muito, conheci belas artes feitas com cerâmica. Achei muito interessante o vaso que escolhi para saber mais sobre ele, e, logo quis fazer um também, porém, não consegui. Mas com as minhas mãos na massa comecei a modelar, fiz enfeites decorativos, pingentes, móbilis, etc. Foi muito legal, e quem sabe um dia eu consiga fazer um vaso. (KELLY, Diário de bordo). Fomos à casa da Keiko, trabalhar com argila. A recepção foi ótima, eu nunca tinha ido a um atelier antes. Quase esqueci de contar sobre a tartaruguinha que escolhi, assim que chegamos. Era para escolher dentre várias peças, a que nos identificássemos, e eu escolhi a tartaruga. Acho que é porque quando estou triste eu me fecho e também sou bem devagar. Hoje foi show de bola! (AYLIANE, Diário de bordo, 07/11/03). A partir desse contato, construíram peças em cerâmica, que foram queimadas no forno. Esse fato possibilitou uma oportunidade única – participaram, com suas peças, da exposição em homenagem aos quinze anos de trabalhos da artista. 247 Cartaz da exposição Peças de cerâmica das jovens na exposição. 248 • Criando Assemblage39 Esta vivência foi realizada com o objetivo de que cada um construísse uma caixapresente, como uma – assemblage - para dar de presente a um dos amigos da Oficina. O propósito desta vivência era romper com a idéia compulsiva de consumo, que a nossa sociedade capitalista nos impõe em comprar, objetos/presentes/saúde, levando a nos mover, constantemente, na impossibilidade de atingirmos alguma satisfação. E, sobre esta questão, tomamos emprestado as palavras de Bauman (2001): O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo... é a atividade de comprar. Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e não só as lojas ou supermercados... Vamos às compras na rua, no trabalho e no lazer, acordados ou em sonhos. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuímos à nossa atividade, é como ir às compras (p.87). Diante do que sofremos, diariamente, tão bem ilustrado pelo autor, decidimos fazer um sorteio, como se fosse um “amigo oculto”, e, cada educando, deveria fazer o seu presente, construindo uma assemblage com imagens, objetos que identificassem a sua amiga. A confecção foi iniciada em seus lares e terminada em dois encontros na oficina. Como participante do grupo, também sorteei um nome; foi profundamente revelador a assemblage, com que a nossa amiga oculta Ayliane, cuidadosa e criativamente, nos presenteou. 39 As assemblages são elaboradas como objeto-símbolos que, de certa forma, abrigam-se dentro de caixas. São como objetos vivos que procuram representar a realidade construída por uma figuração que, às vezes, chega à irrealidade do surrealismo. Peças e objetos soltos e idênticos se relacionam e constituem uma das marcas de sua linguagem, representadas numa série de peças reagrupadas nas mais diversificadas posições, sem perder o rumo da própria obra. Para maior esclarecimento procurar em: www.portalartes - coisas da arte.htm 249 A sua assemblage representou uma casa de bruxa, com cortinas de pano-xadrez, teias de aranha feitas de papel e presas no teto, gnomos, caveira, caldeirão, incenso, escada para o segundo andar. Avaliamos a originalidade do tema escolhido por ela, que com muita criatividade e um olhar sensível foi capaz de expressar os mínimos detalhes em sua obra. 250 Há que se destacar a auto-avaliação que ela fez dos encontros com a arte: Nos encontros me sentia um pouco mais confiante, mais animada para encarar a semana, mais feliz de bem com a vida. Também pude expressar em diversos trabalhos um pouco de mim que nem sempre eu deixo transparecer (AYLIANE). Vale também inferir sobre a identificação feita por ela, ao ver-me no papel de bruxa, de maga. Estaria ela relacionando o processo que, juntas construímos, como um processo alquímico e de transformações, que tão bem as feiticeiras sabem fazer? Não tem a arte este papel transformador? Valho-me das reflexões de Fischer (1976) ao advertir que o artista é o supremo feiticeiro (p.57). Na conversa que tivemos, ela apenas verbalizou que sabia que eu gostava de bruxinhas. Não estaria ela, também, identificando-se como uma bruxinha? O seu processo de criatividade nos sugeriu a vivência da própria complexidade da vida que, hoje, se materializa na dialética existencial, quando tentamos unir as nossas polaridades, rompendo com a linearidade imposta pela racionalidade, pelo discurso e pela prática dominante que separaram razão e emoção, o bem do mal, o certo do errado, o feio do belo, o isto ou aquilo. A produção criativa da educanda nos fez verificar que a arte, prioritariamente, tem compromisso com o sensível, com a possibilidade de ousarmos, de rompermos com o que foi instituído como verdade, nos permitindo vivenciar, de forma sincera, o que temos de mais precioso - nossas infinitas potencialidades. 251 Quanto ganharia o cotidiano escolar se, como educadores, ao invés de perseguir os erros dos educandos, sinalizando o que não sabem, dedicássemos nosso tempo/espaço incentivando-os na vivência de suas reais potencialidades!... Por que, nós educadores, deixamo-nos contaminar, pelo engessamento de Propostas Curriculares e dos Parâmetros Curriculares, impedindo-nos, muitas vezes, de nos lançarmos em vôos mais desafiadores? • Tecendo, coletivamente, a teia da vida. Na tentativa de que as teorias sobre a arte e sobre a criatividade pudessem, legitimamente, influenciar a nossa prática escolar, na qual nos encontrávamos inseridas, trazemos mais uma das vivências que ocorreu em 2004, no período de Abril a Outubro. Dedicamos esses Encontros para que as mãos pudessem, mais profundamente, entrar em contato com o seu feminino, através de um tecer coletivo de uma Tapeçaria, além da pintura em tecido. Talvez tivéssemos sido intuídas pela energia que envolvia o grupo, pois, naquele momento, éramos somente mulheres. João, o único jovem de nossa pesquisa, só pode participar na 1ª etapa do projeto. Lembramos que a palavra Tecido, significa trama com textura; que se pode tecer. Simbolicamente, significa Véus (do latim, velu), aquilo que serve para ocultar alguma coisa ou fato. Assim, no embalo da poesia de Marina Colasanti – A Moça Tecelã, criamos uma ambiência para que os educandos pudessem saborear o contato silencioso com lãs coloridas, e, juntos, decidissem tecer suas idéias e sonhos sobre: Aonde mora o amor? 252 Suas mãos operosas tocaram, acariciaram as lãs, e, um pouco ainda indecisas, pelo estranhamento, ao contato com o material, escolheram, cada uma do seu jeito, iniciar a tecelagem. Ora uma cor, ora outra, com a linha na agulha, iam buscando preencher os espaços abertos da talagarça. Imagens começaram a surgir: casas, sol, lua, árvores, potes, paisagens, em uma riqueza de cores que, no vai-e-vem da linha na agulha, iam dando forma, iam dando sentido. Dialogamos com Lacerda (2001), na sua instigante leitura: Manual de Tapeçaria: 253 Desenhar pode ser uma forma de prever? Lançar no papel os desejos, as utopias, pode apressá-los em sua realização? Ou os desenhos são exercícios de olhos e corações, acalentando-se em porvir que se estrela no sonho?(p.161). Junto às mãos tecelãs, palavras também iam sendo bordadas, narrativas iam nascendo, como os fios que se entrelaçam, reafirmando que o melhor das vivências/experiências é instigá-las à relação, pois, a palavra costura os homens e as mulheres na Terra. No dizer de Cereja40, “o homem é uma ilha cercada de linguagens por todos os lados”. Assim, como um fio puxando outro, uma idéia puxando outra, uma conversa que puxa outra conversa, bordando com suas falas cada vez mais autenticidade, mais cores, em uma pluralidade de vozes, marcadas pela diversidade que as unem. Ali se encontra o registro, ainda inacabado de muitas memórias de infância, suas crenças, seus sonhos, que vão alimentando as linguagens. Também, surgem seus medos, medo de não namorar, de não saber namorar, de não saber ser professora, de não estar conseguindo atender às expectativas da Igreja, nas aulas de catequese na qual ela colabora, e, também o medo de não ter alimentação em casa! Aliás, esta conversa foi recorrente, em vários momentos. Assim, fomos descobrindo as relações dinâmicas, fortes, vivas, entre palavra e ação, entre palavra-ação-reflexão (FREIRE, 1985, p.49). Fui observando e registrando imagens que se costuravam com as palavras. Izabella ao tecer um coração, desmanchou-o várias vezes. Em uma de suas tentativas de recomeço verbalizou: “Muita coisa em minha vida precisa ser desfeita e com coragem”. Como a tapeçaria foi uma construção coletiva, suas vozes se cruzavam, tonalizavamse de sentimentos, de opiniões sobre o trabalho do outro, muitas vezes, provocando discussões. 40 CEREJA, Willian Roberto, COCHAR, Thereza. Português: linguagens. São Paulo: Atual, 1994. 254 No momento em que Izabella disse sobre a coragem que precisava ter para desfazer coisas em sua vida, Ayliane provocou-a: _”Não vejo coragem na sua voz, e nem em seu rosto. Você está com cara de desânimo, de moleza”. Tais intervenções provocavam, algumas vezes, conflitos que eram superados pela própria dinâmica dos encontros, uma vez que a proposta do trabalho em grupo, sempre buscava a soma criativa das diferenças de cada um, o que pôde ser verificado no relato de Maria, em seu Diário de bordo: É bom trabalhar em grupo, tecer, mexer com a imaginação. A gente voa que nem passarinho, quando borda com o coração! Pena que se prolongou o período da tecelagem, mas mesmo assim não deixou de ser boa, a viagem! A situação vivenciada durante a construção da tapeçaria, através do diálogo ocorrido, nos fez, mais uma vez, constatar que o criar, além de ter permitido desbloqueios da inibição à produção, também favoreceu a liberdade afetiva e emocional, demonstrada no diálogo. Trazemos, também, para avaliação das vivências na Oficina, alguns relatos capturados nos questionários que ressaltam, que junto a trocas conflituosas, que, aliás, sempre eram bemvindas, a vivência da solidariedade foi uma marca presente nos encontros: Aprendi a ter paciência com opiniões contrárias a minha. Com as atividades na Oficina aprendi que a amizade é um dos bens mais preciosos que podemos adquirir e guardar. Os momentos que estivemos juntos terão um lugarzinho reservado no coração. Aprendi a respeitar o outro, a ouvir o que cada um tinha para falar, a perceber a sinceridade nos momentos dos relatos. Eu tive uma decepção amorosa e o pessoal do grupo me ajudou bastante. Pode aprender com o grupo, que se pode mudar de idéias, de corpo, a forma de pensar e agir, o gosto musical, estilo. Aprendi que o que não muda é amizade 255 que conquistamos no grupo, mesmo que fiquemos muito tempo sem nos ver. Na Oficina aprendi a ser mais serena, simples, ouvinte, carinhosa, amiga, a ver a vida com outros olhos. Cada uma das colegas são 1000. Gostei muito de conviver com elas. Ainda bem que essa Oficina cruzou nossos caminhos! (Questionários – 2003 e 2004, sem identificações). As avaliações das educandas representam fios/nós que foram costurando os encontros e tecendo a nossa tapeçaria, como Ayliane registrou, em seu Diário de bordo (18/10/04): Através do fio dei asas à imaginação. Fui a lugares que nunca estive antes, lugares que sonho estar um dia – uma casa de madeira de frente para um mar, onde eu possa ver o por do sol e curtir a natureza. Ana Flávia mergulhou no seu propósito de auto-conhecimento: Na tapeçaria que fizemos em grupo teci um lindo coração rosa com uma flor azul dentro. Para mim, a flor está representando a “vida” e, o coração, as coisas boas com que a vida é feita. Depois, fiz meu nome “Ana Flávia”, que foi para me representar na tapeçaria, porque sempre que eu escrevo meu nome é como se eu me visse em um espelho, reconhecendo todas as minhas características, as boas e ruins (18/10/04). Para finalizar nossa tapeçaria, teci uma carinha sorrindo e para deixar bem claro que participei dessa arte- tecelagem, deixei escrito o meu nome, KELLY(18/10/04). Assim, a tapeçaria foi se fiando, marcando histórias e identidades, em um tempo/espaço bem próprios. O tempo, durante o processo, foi se esgarçando, tornando-se mais comprido e lento, permitindo ser vivenciado em outro ritmo, talvez desconhecido, mas pessoal e, também, coletivo, em trocas e cumplicidades. Um tempo que se faz bordado em outro compasso, 256 diferindo do tempo produtivo/capitalista, imposto pela mídia em grande velocidade, que teima em conspirar para que não se entre em contato consigo mesmo, por sua superficialidade, impedindo com que o fluxo dos sentidos vividos, individual e coletivamente, fossem saboreados e refeitos, provocando a busca de trilhas que ressignificassem e ampliassem necessidades, potencializassem sonhos, produzindo desejos que pudessem favorecer suas intervenções no mundo. Muitas vezes as mãos decidiam parar, às vezes cansadas, admiravam, roçando o seu bordado e, algumas, mais ansiosas, des-teciam, como a moça tecelã, arriscando outras formas /cores, desejando diferentes movimentos, que, únicos, se abriam para novas imagens, reencontros consigo mesmo, cheios de surpresas. No entanto, as mãos não paravam de tecer e de bordar palavras, em um tempo que não era o mesmo lá de fora. Lá dentro, um tempo inteiro, não fragmentado, que não separava linhas, que dava nós, mas que também os desfazia, desfazendo os próprios nós internos e externos que surgiam na convivência falante com o Outro, pois suas vozes se entrelaçavam como os fios, dialogavam e se completavam, se aconselhavam, mas, também, ousavam divergir porque foram solidárias. Palavras que inventam a Vida. Palavras que abrem cadeados, portas trancadas de Si. Palavras, águas azuis, que dormem profundas, no fundo de cada um. 257 A metáfora da própria vida, que é feita de laços e interações, foi simbolizada com a construção da tapeçaria, quando ao praticarem o tecer junto, verificamos a vivência da nãofragmentação, o juntar fios, entrelaçando-os, transformando-os em formas, refazendo os fragmentos internos e os externos e, deixando nascer algo novo, inesperado, pleno, porque feito no coletivo, na experiência do compartilhar, no calor na solidariedade. Assim, constatamos que o processo criativo não simplifica nem reduz, mas amplia os sentidos, o olhar e as possibilidades, pois, estar conectado com a arte é estar conectado com o pensamento complexo. É a arte possibilitando uma experiência existencial profunda e, por isso mesma, intensamente sentida por sujeitos que, apesar dos poucos estímulos que têm recebido dos espaços educativos, ousam experimentar, criar com os seus corpos, com suas luzes interiores e com alma, a possibilidade de transgredir, de fazer suas ultrapassagens, afinal, somos um povo que, culturalmente, transforma em Vida, cada ar que respira. Um povo que é capaz de olhar no olho do outro, não apenas para assaltar ou matar, como a mídia tenta, a todos os instantes, nos fazer ver, mas um povo que se expressa de forma alegre e colorida e sob este sol ardente e luminoso, sabe, curiosamente, usar as suas principais 258 funções psíquicas41: o sentimento e a sensação extrovertidos, no dizer de Jung (1990). Estas características representam “o nosso código de barra”, a coragem de um povo que, criativa e solidariamente, sabe transformar a sua dor em flor. • Os laços multicoloridos das avaliações Ao trazermos os laços capazes de arrematar este cenário, avaliamos algumas dificuldades que tivemos com relação à pesquisa, no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho. Primeiramente, pretendíamos que a pesquisa tivesse tido continuidade durante o ano de 2005, mas, não foi possível devido à falta de sala disponível42, além do impedimento dos educandos para participarem, uma vez que estariam cursando o último ano do curso pedagógico. Como não conseguimos com que os professores de prática de ensino articulassem, na carga horária dos educandos, o trabalho da Oficina, seria inviável para eles disporem deste horário. Este fato foi enfrentado, durante todo o ano de 2004, com as constantes ausências dos jovens em nossos encontros. Além de tais dificuldades, um outro fator que interferiu na parceria que desejávamos ter realizado junto à escola foi a mudança no processo de escolha de diretores, na rede estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 2002. Dessa forma, a pesquisa aconteceu em um período de transição de uma política de eleição de diretores para uma política de nomeação dos mesmos, o que gerou alguns empecilhos para a continuidade da atuação de profissionais e para encaminhamentos de projetos da escola. Não estamos com esta análise desmerecendo o trabalho das duas gestões que atuaram e atuam nesse período, mas, sinalizamos o quanto a ação pedagógica tem sido prejudicada com 41 Fiz um Curso: A Arte na abordagem Transdiciplinar, pela UNIPAZ - RJ, em Nov/2004, quando, Érica Brandt, apresentou a cultura de diferentes povos, à luz da Psicologia Análitca (Jung), a partir dos Tipos Psicológicos: pensamento, sentimento, sensação, intuição. 42 A sala de aula que utilizamos durante os dois anos e meio de atividades da Oficina, já estava designada para ser o local do acervo da memória do IEPIC. Aos poucos fomos convivendo com móveis e objetos que foram sendo adquiridos, até que na Semana da Normalista, em Outubro de 2004, solicitaram que tirássemos todo o nosso material, pois o Museu do IEPIC seria, em breve, inaugurado. 259 os embates de políticas públicas, muitas vezes não comprometidas com as reais necessidades dos espaços escolares, de seus profissionais e dos educandos, que lá passam grande parte de suas vidas. Acreditamos que muitas histórias, talvez, fossem contadas, muitas tintas/ fios poderiam ter colorido mais a nossa tessitura, além de avaliações de profissionais da escola, que teriam sido somadas às nossas, mas, apesar de não termos atingido em sua totalidade às expectativas do resultado da pesquisa, quanto a um maior envolvimento da escola com o projeto, constatamos que, o processo vivenciado pelos jovens foi profundamente significativo, como sugerem ainda estas avaliações: Nas oficinas aprendi a pensar antes de falar. Em sala de aula era muito tímido, após a Oficina estou mais comunicativo entre os meus colegas. É muito bom expressar nossos sentimentos. Tanto os trabalhos de grupo, quanto os individuais trazem grandes aprendizagens para a minha vida e muitas emoções a sentir e expressar. As reflexões durante as vivências foram úteis, pois, através delas é que pude rever e mudar alguns conceitos que possuo (BEATRIZ). Tomei mais coragem de expressar o que eu sentia. Nos encontros me sentia bem como se eu estivesse me libertando de algum sentimento (JOSIANE). Passei a me valorizar mais. A Oficina me ajudou na criatividade, na perda da inibição e uma melhor dicção, pois eu era muito travada, tinha medo de falar e expor minha opinião (PRISCILA). Eu acho que a mudança é um processo natural da vida, e durante esse ano tive muitas mudanças, muitos processos. Não digo que a Oficina foi a causadora dessas mudanças, mas digo que a Oficina me ajudou a aceitar e a encarar de uma forma melhor essas mudanças (ANA FLÁVIA). 260 As avaliações demonstraram como o trabalho criativo com as artes despertou, o autoconhecimento, ou seja, a aprendizagem de si mesmo, o que ficou evidenciado pela motivação por novas buscas e transformações pessoal, pelo desenvolvimento de potencialidades, de autenticidades, de espontaneidades, de auto-estima. Ainda, buscamos indícios, e encontramos nas falas das educandas: “A Oficina foi uma grande oportunidade de aprender a ser, aprender a fazer e a viver com” e,“ A Oficina me ajudou, agora, a tentar dar o máximo de mim em tudo que faço”. Sobre o aproveitamento das vivências, em seus estágios como professoras, sinalizaram: Apliquei um trabalho no estágio sobre auto-estima, que tirei a idéia daqui. (ANA FLÁVIA) Durante o estágio, quando dei a minha aula me senti mais tranqüila, agora ouço mais as pessoas, tenho mais paciência, procuro relaxar antes de momentos de tensão para poder me concentrar. Aprendi a ter mais calma e a me tranqüilizar em meio aquele caos que é o estágio. Durante o estágio utilizei com os alunos uns cinco minutos o relaxamento, porque os alunos vieram muito agitados da recreação, em seguida iniciei a aula. Os encontros me ajudaram a valorizar a criatividade dos alunos durante o estágio (LUARA). Vale ressaltar, também, o registro de Ana Paula: As pinturas sem destino, com sentimento são ótimas, eu me sinto muito bem, me ajudam a esquecer os problemas, a me sentir em paz e rodeada de pessoas que ao contar suas experiências, trazem auto-estima para mim. 261 Sobre o sentir-se bem na pintura espontânea, a ponto de ajudar a esquecer os problemas, verificamos que, a maioria das avaliações trouxe esta questão, significando, dessa forma, um aspecto importante para análise. Primeiramente, poderia se inferir que o esquecimento dos problemas, durante o trabalho com as atividades expressivas, levaria ao distanciamento dos conflitos. No entanto, os anos de observação, durante atividades com a arte, aliados às teorias estudadas, permitemnos constatar que o relaxamento favorece um encontro consigo mesmo, a “suspensão” de conflitos, uma vez que, com uma mente e um corpo relaxados é possível se dar espaço para que a criatividade se expanda. Aliás, sabemos que nós temos tido a prática de, muitas vezes, ficarmos presos, mentalmente, remoendo nossos problemas, como se tal atitude ajudasse a resolvê-los. Abrir espaços no corpo e na mente poderá ser a garantia para as saídas alternativas que precisamos. Sendo assim, o objetivo das atividades com arte indica a possibilidade com que a mente mais centrada, dê espaço para o processo criativo, a ampliação da consciência de si mesmo, do outro e do mundo em seu entorno. Tal questão foi possível constatar com as autoavaliações de Priscila: Me sinto bem na Oficina, relaxada, leve. Pronta para enfrentar novos desafios, e de Maria: A Oficina abre caminhos para novas idéias e para maior reflexão dos fatos. Mas, entendemos que esse processo é dialético, não sendo relaxado e nem sem conflitos, como muitas vezes parecia. O que podemos perceber nos relatos a seguir: No início dos encontros eu me sentia um pouco tensa, com medo, insegura, porque não gostava de me expressar (KELLY). No início me sentia um pouco perdida por ter dificuldade de me abrir e conversar sobre mim, mas agora está tudo muito bom (ANA FLÁVIA). Por outro lado, Maria, sobre esta questão, assim se expressou: 262 Nos encontros eu ficava super à vontade e com liberdade de falar, pensar, agir e me expressar. O ambiente propiciava essa circunstância e as pessoas da Oficina também (MARIA). Recorremos, para completar nossas reflexões, à pertinente avaliação de Patrícia, sobre o seu processo de criação e conscientização: Antes dos encontros era maníaca-depressiva, com laudo de psiquiatra. Depois com a ajuda dos colegas e da professora nas Oficinas pude “libertar-me” de todo esse quadro psicológico. A auto-avaliação trazida pela jovem merece uma reflexão especial. As atividades de criação podem colaborar na melhoria de quadros patológicos, como foi demonstrado, por exemplo, nos estudos de Carl Jung, e, no Brasil pelos trabalhos pioneiros de Nise da Silveira. A proposta da Oficina não teve o objetivo de se comprometer com a melhoria de quadros psicológicos, uma vez que orientamos o trabalho com a arte, enquanto um instrumento educativo. Entretanto, pelos estudos e práticas que temos com a Arteterapia, na visão da Psicologia Analítica, entendemos que, se a educanda, ao se auto-avaliar, percebe-se “liberta” de características emocionais perturbadoras, esta percepção, fruto das vivências por ela usufruídas, representam um passo decisivo, para que possa fazer a superação de seus próprios limites. Verificamos que o espaço da Oficina foi capaz de favorecer tais superações, como, também, ilustra Luara: A Oficina é um cantinho que nos faz sentir bem e devemos preservá-lo. 263 Dessa forma, tentando tingir com cores que iluminassem este processo criativo vivido durante dois anos e meio, pelas vinte jovens e um jovem, elas/ele deixaram uma frase, inspirados pelas vivências na Oficina: A mudança é o processo natural da vida. A vida é uma música. A paciência pode cultivar uma amizade. A solidariedade deve ser nossa melhor amiga. Manter a tranqüilidade e o amor ao próximo é essencial em nossas vidas. A paciência, a criatividade e a união são as chaves para a porta do sucesso. Aproveite e seja sempre assim, um mar disposto a aprender e viver, a errar e amar, corrigir e ser feliz. Uma grande oportunidade de aprender a ser, aprender a fazer e a viver com. Viva e sinta, transmita vida e inspire felicidade. Estas representam frases vividas por todos que, corajosamente, aceitaram abrir as várias portas, para o que foram instigados. Assim, conectados a esta última frase, que nos lembra sobre o viver e o sentir, ficamos com Toquinho e Vinícius, pois, o futuro espera pela gente! E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar Sem pedir licença muda a nossa vida Nessa estrada, não nos cabe conhecer ou ver o que virá O fim dela ninguém sabe ao certo onde vai dar Vamos todos juntos numa passarela de uma aquarela Que um dia enfim descolorirá. 264 Luciana (2003) cavucando o cesto com panos, fitas, lãs e linhas. Será que ainda tem algo aqui dentro, que me ajude a INVENTAR? Tentamos arrematar, se for possível, com o bordado de fios do poeta sul mato-grossense - Manoel de Barros (1995): Arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. 265 8ª CENA: CORES E FIOS NA TRAMA CRIATIVA DA VIDA: POR UMA CONCLUSÃO PROVISÓRIA O homem haverá de conquistar seu futuro com ajuda de sua imaginação criadora; orientar o amanhã, com uma conduta baseada no futuro e partindo desse futuro, é função básica da imaginação e, por tanto, o princípio educativo do trabalho pedagógico consistirá em dirigir a conduta do educando na linha de prepará-lo para o porvir, já que o desenvolvimento e o exercício de sua imaginação é uma das principais forças no processo de sucesso deste fim. A formação de uma personalidade criadora projetada em direção ao amanhã se prepara pela imaginação criadora encarnada no presente (VYGOTSKY, 2003, p.108). Escrever é como tecer e como pintar cenas poeticamente. Escolhemos os fios, urdimos os fios. Decidimos as cores, as tintas, os pincéis. Enlaçamos, puxamos, damos nós, cortamos, ou misturamos as tintas na paleta e damos as primeiras pinceladas. Apreciamos, continuamos a fazer/desfazer, até que chega a hora de parar. Nossa tessitura/pintura estaria pronta? Parece que sempre falta algo, e a sensação que nos envolve é a que prevíamos ao iniciar esta trajetória, que, talvez, as teorias não dessem conta da riqueza e da profundidade vivida durante estes dois anos e meio de pesquisa de campo. Na tentativa de seguir uma lógica complexa, não podemos, ao arrematar a nossa trama/urdidura sobre os cenários de “arteducação”, cair na sedução por uma conclusão, 266 mesmo provisória, que reduza a um princípio unitário o valor da arte, enquanto um instrumento educativo. A arte, e o seu conseqüente processo de criação, carrega em si uma diversidade que torna impossível enquadrá-la em molduras limitadoras. Esta pesquisa buscou unir suportes teóricos e científicos a vivências criativas em múltiplas linguagens expressivas, capazes de potencializar a criatividade de jovens. Nosso esforço foi religar algo que se perdeu ao longo dos séculos – sensibilidade/emoção (matérias primas da arte e da criatividade) à racionalidade. Assim, tentamos com a pesquisa trazer a luz da sensibilidade à ciência, em suas teorias sobre a Educação e a Arte. Nós nos impusemos este desafio na tentativa de superação desse momento histórico que tem se caracterizado: • pela necessidade de rompimento com a concepção limitadora do ser humano e do conhecimento que tem privilegiado e centralizado a razão em detrimento das outras funções psíquicas; • pela modernidade fluida (BAUMAN, 2002) que tem induzido crianças, jovens e adultos a destruição de suas identidades, uma vez que, em nome de maior produtividade e competitividade, o indivíduo tem sido capaz de reduzir-se, de desmantelar-se, de fragmentar-se; • pela sociedade do descarte, do “espetáculo” que tem imposto uma satisfação mínima ao compulsivamente, indivíduo, o indivíduo enquanto tem “consumidor/cliente”.Assim, vivenciado estratégias, que, propositalmente, o desconectam de si mesmo, incitando-o a uma busca insaciável/excitante pelo supérfluo e pela diversão. • pela urgência do ter que tem destruído a capacidade de viver e de esperar; • pelo ritmo de dominar técnicas que tem afastado o indivíduo da consciência do por quê fazê-las; • pelos rituais que foram reprimidos, pela ditadura de signos vazios de identidade e pela busca por respostas imediatas, que não oferecem espaços para reflexões; • pelos espaços de privacidade que se reduzem, e pelas máquinas que controlam o indivíduo dia após dia (Sorria, você está sendo filmado!); 267 • pela sociedade da globalização baseada em uma racionalidade técnica, competitiva, individualista e coercitiva que tem imposto limites à autonomia e emancipação do ser humano, no processo de constituição da sua subjetividade, por não incluir um conteúdo dialógico, auto-reflexivo e crítico, mascarando o caráter histórico e humano da vida social, e, transformando o homem em um ser passivo dotado de uma linguagem domesticadora, destituída de criatividade e desarticulada de um processo de produção de sentidos. • pela existência de um ser humano que se vê entregue a si mesmo, em total abandono; • pelo desafio que representa o ser humano, na atualidade, o qual deverá ser a grande invenção desse século XXI. Tal quadro, somado as outras questões suscitadas nessa tese, tem deixado a todos nós educadores profundamente indignados, uma vez que a crise social que tem suas bases no econômico vem atingindo sobremaneira a escola pública. A despeito de tal realidade, a pesquisa apontou para uma epistemologia emergente alicerçada em uma metodologia criativa, construtivista e transdisciplinar43 (MORIN), que viesse favorecer experiências em arte, de forma mais global e intergrupal. A possibilidade dos jovens se perceberem sujeitos orgânicos no processo de construção do conhecimento, através do uso de diversas linguagens, como mediadoras da constituição do sujeito (VYGOTSKY, 1988, 2001), representou um dos objetivos da pesquisa, que consideramos tenha sido atingido. Indo na contramão de suportes teóricos sobre Juventude que ainda apontam uma essência juvenil, caracterizada por utopias, pela ausência da capacidade de reflexão, além de falta de empenho de transformação pessoal e social, os dados coletados na pesquisa sugeriram que se trabalharmos em direção ao potencial juvenil, negando-se trilhar os caminhos de suas limitações, poderemos estar dando um salto significativo em busca de propostas pedagógicas que ressignifiquem o ser e o fazer juvenis no espaço escolar. 43 Morin (1999) sugere que o problema atual não consiste no “fazer transdisciplinar”, mas “que transdisciplinar é preciso fazer”, pois o saber existe para ser refletido, meditado, discutido, criticado e não para ser amarzenado em bancos informacionais e computado por instâncias anônimas e superiores aos indivíduos ( p.38). 268 Dessa forma, o nosso olhar durante a pesquisa ateve-se ao jovem enquanto potencialidade, com a possibilidade de sua inserção consciente e criativa na sociedade, e não percebidos no que lhes faltava, ou, enquanto um problema social que precisasse ser enfrentado, como, ainda, as políticas públicas se pautam, no dizer de Carrano (2003), Melucci (1997) e Peralva (1997). Fomos em busca de jovens em uma situação real, enquanto seres concretos possuidores de conhecimentos, de desejos, de sonhos, de amores e de dores, tendo como preocupação, em cada experiência com a arte, como foram elaborando suas situações de vida pessoal e escolar, seus problemas, seus conflitos e suas formas criativas/expressivas de sobrevivência, como Fischer (1976) aponta, sobre o valor da arte, enquanto um instrumento mágico, como uma arma da coletividade. A arte elevando o homem da fragmentação a um estado de ser total e íntegro (p.57). O espaço potencial que designamos – Oficina: despertando o Ser – materializou-se como um espaço de fortalecimento e ampliação de conhecimentos já existentes, instigando com que novos conhecimentos fossem descobertos e, buscando transgredir conteúdos disciplinares, instituídos nos currículos escolares, tecendo saberes que se moveram na complexidade do contexto escolar. Quantas vezes, as escolhas de tintas, pincéis, suportes diversos, além do toque na argila, o vestir-se com fantasias, misturavam-se à complexidade de uma polifonia de vozes que fiavam/confiavam diálogos sobre a vida e a morte, sobre preconceitos e política, ou sobre estratégias para conquistar amores. Nesses momentos, também traziam os fios das memórias das histórias de família que tonalizaram/tingiram essa trama de saberes e sabores, comprovando a teoria que a criatividade é um fazer que se faz na coletividade e que o futuro aponta em direção de personalidades que se construam criativamente, como sustenta Vygotsky (2003), na epígrafe desta 8ª Cena. Dessa forma, a Oficina de criatividade foi sendo tecida enquanto um território “sagrado” de criação, de celebração, do feminino e de reencantamento de si mesmo, do outro e da vida, ao permitir com que cada um pudesse criar suas próprias possibilidades de fazer e de ser, recuperando o prazer de aprender e a autonomia no exercício do pensamento e do 269 sentimento, favorecendo a confiança, a segurança, a clareza dos próprios limites, permitindo com que cada um percebesse o estar se re-criando de forma consciente e prazerosa. Retomando Mendes (1972), a arte é o fazer que se confunde com o ser, o fazer que é criação, criação do próprio ser. Ao referir-se ao espaço de criação, como um espaço de vivência da polaridade feminina no humano, a pesquisa se propôs, em sua essência, fecundar o feminino no cotidiano escolar que, apesar da maciça presença das mulheres, na função educacional, as instituições ainda encontram-se profundamente marcadas pelos ditames e pelo controle patriarcal, que têm sido tão característicos de sociedades como a nossa. Há que se ressaltar que a força do feminino está gravada na história da arte da humanidade, desde quando mãos femininas tocaram o barro e o transformaram em imagens simbólicas, também, ao afofar a terra inventando a agricultura, ou quando se apropriaram do processo amoroso do fiar, criando objetos, imagens, mas, principalmente, criando muitas histórias, histórias de vida, que ainda pulsam dentro de cada um de nós... Com estas preocupações, as ambiências trouxeram luz ao ato de criação, em sua função estética, poética e social, construindo-se como antídoto das práticas pedagógicas em arte, muitas vezes, limitadoras e silenciadas, que são fruto de concepções a-críticas e ahistóricas do mundo e do ser humano. Com a vivência da criatividade/sensibilidade, o universo da subjetividade – espaço de liberdade e encontro, de cada um com o seu eu mais profundo – favoreceu o acesso dos jovens às suas motivações, suas percepções e formas primeiras de expressão, dilatando a conexão de cada um consigo mesmo e com o social, possibilitando a vivência da complexidade. Através das falas, dos trabalhos corporais e das imagens plásticas foi possível verificar como cada participante acalentou a possibilidade de perceber a sua inteireza possível. Verificamos, também, como as vivências favoreceram o resgate de valores essenciais aos jovens, como o respeito e o cuidado com o outro, muitas vezes observado nos encontros, tanto nas expressões corporais quanto nos diálogos. 270 Além disso, à medida que os jovens foram capazes de apreciar o seu desenvolvimento durante o processo de criação, aprendendo a lidar, a vivenciar e a incorporar os resultados de suas sensações, foram se conscientizando de conteúdos psíquicos ainda não percebidos, capacitando-se, internamente, a valorizarem a sua estima, ao demonstrarem estar de bem consigo mesmo, e nascendo, conseqüentemente, o sentimento de solidariedade e de inclusão em seu meio. Entendendo a arte enquanto linguagem, em uma visão interacionista: sujeito – mundo – outro, recorremos a Vygotsky verificando que o potencial de criatividade dos educandos foi capaz de aflorar a partir do contato com o companheiro de atividades, e, que a internalização, possibilitada pela linguagem, ampliou a tomada de consciência de cada um sobre si mesmo. Com Vygotsky apreendemos que o processo de formação e desenvolvimento da consciência humana, como forma de refletir a realidade, está vinculado às atividades do homem, com suas inter-relações sociais e com a linguagem. Assim, os conhecimentos são objetivados na linguagem, sendo esta, condição necessária à formação da consciência. Podemos inferir, que nesta ótica, a consciência, assim como a personalidade humana, é uma construção social e histórica, não é algo inato, mas fruto do desenvolvimento cultural. Com essa pesquisa, constatamos que quanto mais estímulos de linguagens os jovens vivenciaram, mais condições para tomada e ampliação de consciência foram possíveis cada um atingir. Assim, a pesquisa possibilitou com que o uso criativo e libertador da linguagem, fosse organizando a realidade, a ação e o comportamento dos educandos, uma vez que tal abordagem buscou o sensível e reflexivo de cada jovem sobre o seu processo de criação, e, por basear-se em uma visão sócio-histórica, quanto às linguagens expressivas e quanto às formas de fazer a arte, valorizou, acima de tudo, a historicidade dos educandos, através do potencial de cada um, espaço esse, onde reside o sensível, o criativo, a inteireza que leva à consciência plena. Dessa forma, a pesquisa enfatizou que potencialidades específicas, para a formação de educadores, fossem estimuladas: a criatividade, o auto-conhecimento, a postura investigativa 271 no fazer, a autonomia no pensar, no dizer, no agir, além da solidariedade, que ao ser vivenciada, contribuiu para um projeto de escola e de sociedade mais humanizada, que acene para novos paradigmas de inclusão e de uma verdadeira sociabilidade, comprometida com a emancipação do homem pela compreensão da sua complexidade, pois, entendemos com Morin (2002, p.18): A única maneira de salvaguardar a liberdade é que liberdade é que haja o sentimento vivido de comunidade e solidariedade, no interior de cada membro, e é isso que dá uma realidade de existência a uma sociedade complexa. Portanto, a solidariedade é constituinte desta sociedade. O pensamento que une o modo de conhecimento se prolonga para o plano da ética, da solidariedade e da política. Há uma ética da complexidade que é uma ética de compreensão. As reflexões que estamos fiando, no momento de arremate dessa tessitura, vão se encaminhando em busca de algumas sínteses abertas, que permitam que muitas perguntas ainda sejam feitas, sobre a arte na educação. Assim, como cada fio foi se entrelaçando e trazendo mais consistência a esse tecido/pintura, fomos inferindo que a proposta pedagógica de vivências em arte, foi alicerçada, sobretudo, na educação em valores humanos, através: • da inclusão do sujeito, com todo o seu potencial criador; • da proposta da formação complexa de educadores, em busca de uma nova racionalidade, que inclua sentimentos e emoções, pois o pensamento complexo é um pensamento que pratica o abraço e se prolonga na ética da solidariedade (MORIN); • da arte como instrumento educativo e expressão mais forte da originalidade do ser humano; • da criação de ambiências capazes de instigar a criatividade dos jovens, em propostas tanto individuais quanto coletivas; • da aprendizagem significativa de si mesmo (auto-conhecimento), como princípio fundamental para o paradigma da complexidade; 272 • das vivências nas múltiplas linguagens expressivas, abrindo portas ao diálogo, este como mediador na construção da solidariedade; • do sentir e do afeto como bases para uma educação de valores humanos. A tentativa de sustentar a pesquisa nos alicerces da ética humana surgiu pela própria dinâmica em que se apresenta o cotidiano escolar, atravessado por fluidez, por contradições, mas, que a despeito de sua fragmentação, sua rotina e sua mesmice, foi capaz de abrir portas e janelas ao encantamento da arte, do lúdico e da poesia, pois, verificamos que com a arte, o cotidiano escolar pulsou mais fortemente, como a própria vida. Neste ponto, não poderíamos deixar de trazer os fios coloridos de Freinet, pois, acreditamos que suas idéias estiveram presentes durante toda esta trama. Assim, compartilhamos do seu sonho de educação: É provável que nos digam que não temos de formar sonhadores, mas homens práticos, capazes desde cedo de cavar a terra ou fixar uma cavilha; mas sabemos também que temos mais necessidade ainda de homens que saibam esquecer à beira do caminho da vida, a maçã que tinham nas mãos, para partirem como pesquisadores desinteressados em busca do ideal. Tenha cuidado para não desperdiçar, na criança, os bens inestimáveis cujo esplendor nunca mais conhecerá (FREINET, 1988, p.20-21). Para que não continuemos a desperdiçar as potencialidades dos educandos, sentimos que o chão de nossas escolas precisa ser fecundado com arte e com utopias e, que nesse espaço, privilegiado de descobertas, cada criança, cada jovem e cada adulto aprenda a ter fé em si mesmo e, corajosa, criativa e coletivamente, tome da PALAVRA e diga: Tenho palavras em mim buscando canal, Estão roucas e duras, Comprimidas há tanto tempo, Perderam o sentido, Apenas querem explodir. (Carlos Drummond de Andrade) 273 Foi assim que Izabella deixou explodir seus sonhos por um ano mais feliz. Fiéis a nossa função de educadora “arteira”, e voltados para uma abordagem integral da arte, nossas palavras finais, sobre Cenários da Educação através da arte, bordando linguagens criativas na formação de educadores (as), não poderiam deixar de ser para as nossas crianças, nossos jovens, enfim, para a nossa escola, que necessita criar espaços, nos quais os educandos vivam as potencialidades do seu ser e, de posse de suas próprias conquistas e confiantes em suas múltiplas possibilidades de criar, possam ter a coragem de se expressarem e, como crisálidas, passarem pela grande metamorfose, que a vida os convida – encontrar no vôo da criatividade a sua própria força. 274 9ª CENA: LIMPANDO A PALETA PARA NOVAS E COLORIDAS CRIAÇÕES... Romper as portas trancadas por mim, E assim minhas mãos saberão dos meus pés. E assim renascer, e assim renascer. Gilberto Gil A você que compartilhou desta tessitura, buscando compreender as minhas laçadas... A você que entrelaçou as minhas palavras nas suas, unindo os fios do seu silêncio no abraço/laço entre texto e leitor... A você que juntamente comigo foi capaz de desvendar algumas “verdades”sobre a “arteducação”, convido-o (a), neste momento, a não trancar os seus sentidos para um repouso e, sim, tomar da palavra, da tinta e das cores... É hora de entrar em cena, pois, enfim, é a sua vez de criar... 275 REFERÊNCIAS ABRAMO, Helena Wendel. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação. Número especial. Rio de Janeiro: ANPED, Maio/ Jun/ Jul/ Ago, n.5, Set/ Out/ Nov/ Dez, n.6,1997. ALMEIDA, Célia Maria de Castro. Concepções e práticas artísticas na escola. In: FERREIRA, Sueli (Org.). O ensino as artes: construindo caminhos. São Paulo: Papirus, 2001. ALVES, Nilda & GARCIA, Regina Leite (Orgs.). O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. ARAÚJO, Marcelo da Silva. Vitrines de concreto na cidade: juventude e grafite em São Gonçalo. 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Elas foram sendo construídas a partir da relação que fomos estabelecendo com o grupo, sentindo suas necessidades, seus interesses. A discussão política que travamos no dia 07 de outubro de 2002, por exemplo, foi fruto dos resultados das eleições, quando tivemos a oportunidade de abrir espaço para debatermos sobre cidadania. 2ª Etapa Período: 07 de abril44 a 08 de dezembro de 2003 Dia/ Hora: 2ª feiras – 13h às 16h Total de encontros: 33 Número de participantes: até julho – 15 agosto a dezembro – 9 Objetivos das vivências: Além dos traçados na 1ª etapa, tivemos: ¾ dialogar sobre sexualidade; ¾ expressar, através da pintura, o poema de Drummond – O homem, as viagens; ¾ expressar-se, corporalmente, através de uma música com som de tambores; ¾ vivenciar, através da construção de uma caixa, os seus segredos; ¾ dramatizar, em grupo, o conto sufi: As longas colheres; ¾ participar da vivência - A viagem; ¾ expressar, plasticamente, através da ambiência criada, A viagem, os seus sonhos; ¾ participar, brincando, durante a vivência – A praça; ¾ expressar-se através da escrita criativa; ¾ brincar com a sua imaginação; ¾ construir, coletivamente, uma escultura com a argila; ¾ sintetizar, através da criação de balões de papéis, a vivência da argila; ¾ dramatizar, em grupo, situações imaginadas; ¾ refletir sobre os temas morte e vida; ¾ expressar, plasticamente, a história: O coração de Corali; 44 Só foi possível o reinício no mês de abril, pois a escola estava em greve de seus profissionais. 288 ¾ escrever, em seu diário de bordo, os seus sentimentos sobre a história; ¾ participar, coletivamente, em círculo, de um trabalho corporal que expresse os movimentos do coração; ¾ fazer uma colagem sobre a história: Vermelhinho; ¾ expressar, através da escrita, os seus sonhos de conhecer o mundo; ¾ compartilhar, no grupo, os seus sonhos; ¾ pintar, coletivamente, a escultura; ¾ participar da vivência sobre os seus medos e suas coragens, a partir da história: Tantos medos e outras coragens; ¾ expressar, plasticamente, os seus medos; ¾ escrever sobre os seus medos; ¾ participar da visita ao MAC, em Niterói; ¾ participar, em grupo, da proposta pedagógica oferecida pelo museu, relativa à exposição, através da imaginação e criatividade; ¾ participar da visita a uma Oficina de cerâmica; ¾ construir objetos de cerâmica, durante a visita à Oficina; ¾ pintar as peças feitas de cerâmica; ¾ participar, com suas peças de cerâmica, da exposição da ceramista; ¾ participar da exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil – África; ¾ responder ao questionário de auto-avaliação da Oficina de Criação; ¾ expressar, através da pintura e da colagem em panos, os seus desejos para 2004. Observação: O número de participantes diminuiu este ano, pois os vinte educandos da 1ª etapa, ao passarem para o 3º ano do curso pedagógico, não tiveram disponibilidade de horário, devido às aulas práticas do estágio. 289 3ª Etapa Período: 5 de abril a 9 de dezembro de 2004 Dia/Hora: 2ª feiras: 13h às 16h Total de Encontros: 25 Número de participantes: 8 Observação: No ano de 2004, os oito participantes se encontravam no 3º ano do curso pedagógico, e, por já estarem participando da Oficina, desde 2003, não consideramos conveniente ao andamento da pesquisa, a entrada de novos jovens. Objetivos: ¾ construir, plasticamente, uma mandala, representando etapas de sua vida; ¾ refletir sobre o que é ser professora?; ¾ participar da visita a uma Oficina de pintura em tecido; ¾ experienciar a pintura no tecido; ¾ escrever sobre a experiência de pintar no tecido; ¾ visualizar fotos tiradas durante as vivências; ¾ dialogar sobre os momentos vividos na Oficina, através das fotos; ¾ dançar com os seu tecido pintado; ¾ fazer uma mandala coletiva com os tecidos pintados; ¾ participar do relaxamento, para a leitura da história: A moça tecelã; ¾ participar da vivência de encontro com fios e lãs; ¾ tecer, coletivamente, a tapeçaria; ¾ participar das comemorações dos aniversários; ¾ escrever, criativamente, sobre a tapeçaria; ¾ refletir sobre o texto: As máscaras desmascaram; ¾ modelar uma máscara no colega; ¾ pintar a persona, que mais lhe agrada em si mesmo; ¾ escrever sobre a sua máscara; Observação: A vivência de criação da tapeçaria aconteceu durante dez encontros. 290 ANEXO 3 – QUESTIONÁRIOS QUESTINÁRIOS DE AUTO-AVALIAÇÃO DA OFICINA “DESPERTANDO O SER” Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho Oficina “Despertando o Ser” “Dinamizadora: Profa: Maria Cristina dos Santos Peixoto Caro(a) aluno(a) A Oficina “Despertando o Ser” permitiu com que nos encontrássemos durante 15 encontros, de Agosto à Dezembro de 2002, e, teve como objetivo despertar a sua sensibilidade, o seu auto-conhecimento, a sua criatividade e a possibilidade de aprender a conviver de forma mais solidária com os seus amigos, em sua formação enquanto educador(a). Por isso, gostaria que você se auto-avaliasse escrevendo como os nossos Encontros foram capazes de exercer uma maior percepção de si mesmo(a). Nesse sentido, convido-o(a) a dar uma espiada dentro de você, respondendo, amorosamente, as questões a seguir: !ª) Percebeu alguma mudança em você, desde o início dos encontros até o momento presente? Exemplifique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 291 2ªComo você se sentia nos encontros? Exemplifique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 3ª)Algumas situações vivenciadas lhe trouxeram dúvidas/ conflitos? Exemplifique: ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 4ª)O que você menos gostou em nossos Encontros? (dinâmica, material). Por quê ? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 5ªO que mais você gostou em nossos Encontros? (dinâmica, material). Por quê? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 292 6ª)Como foi a sua relação com a dinamizadora? Explique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 7ª)Como foi a sua relação com os companheiros (as) durante os encontros? Explique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 8ª) Relacione por ordem de preferência ( 1 a 11) as atividades mais apreciadas por você: ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ) argila ) pintura com guache ) pintura com lápis de cor ou de cera ) colagem ) elaboração da capa do Diário de Bordo ) relaxamentos ) trabalhos corporais ) dramatização/ encenação ) trabalho com tecido ) dança ) conto de fadas 9ª) Você teve em algum momento um sentimento de cuidado com o espaço onde realizamos os Encontros? Quando e como? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 293 10ª)As reflexões ocorridas durante as vivências foram úteis em outras situações na escola e/ou fora dela? Explique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 11ª) De que forma a Oficina influenciou em sua atuação nos estágios? Explique. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 12ª) Dentre as expectativas dos Encontros, coloque + ou – nos aspectos vivenciados por você: abcdefghijklmno- ( ) criatividade ( ) valorização pessoal ( ) sensibilidade ( ) curiosidade ( ) solidariedade durante as atividades na Oficina ( ) relaxamento corporal ( ) alegria ( ) tristeza ( ) reflexão ( ) iniciativa ( ) equilíbrio emocional ( ) cooperação em sala de aula ( ) atenção com as coisas e pessoas ( ) auto-conhecimento ( ) aceitação de seus limites Justifique os itens que foram menos vivenciados. 294 Quais foram as dificuldades encontradas por você, para freqüentar os nossos encontros? ____________________________________________________________ ____________________________________________________ 14ª) Caso não esteja participando, este ano, de nossos Encontros, justifique os seus motivos. ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 15ª) Sintetize, em uma frase, o que representou a Oficina “Despertando o Ser”, para sua formação enquanto educador (a)? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho 295 Oficina “Despertando o Ser” “Dinamizadora: Profa: Maria Cristina dos Santos Peixoto Caro(a) professor(a) Desde o ano de 2002 estamos desenvolvendo a Oficina Despertando o Ser, com alguns dos nossos educandos, do Curso de Formação de Professores no IEPIC. Esta Oficina faz parte da Pesquisa que desenvolvo no Doutorado em Educação, na UFF, e tem como objetivo possibilitar com que os futuros (as) educadores(as), entrando em contato com a Arte, no processo de criação, através de suas diferentes atividades expressivas, possam desenvolver sua criatividade, curiosidade, imaginação, auto-conhecimento e solidariedade, favorecendo uma formação mais consciente sobre si mesmo e sobre o mundo em seu entorno. Nesse sentido, como você trabalha na área da Prática de Ensino, um espaço tão significativo para a formação de nossos educandos, preciso que responda, dentro das suas possibilidades, às questões a seguir, direcionando sua atenção para alguns aspectos/categorias, como: criatividade, imaginação, sensibilidade, auto-conhecimento e solidariedade. 1º) Há quanto tempo trabalha na Prática de Ensino? ________________________________________________________ 2ºComo os educandos chegam ao momento da Prática de Ensino, em relação às categorias levantadas? O que eles trazem e o que lhes faltam? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ 296 Com relação aos educandos que participaram da Oficina no ano de 2002, gostaria que avaliasse cada um deles, de acordo com as categorias destacadas: ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________