Tutela e Resistência Indígena: Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado brasileiro. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Professor Doutor João Pacheco de Oliveira Filho Andrey Cordeiro Ferreira Fevereiro de 2007 PPGAS/MN-UFRJ Tutela e Resistência Indígena: Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado Brasileiro. Andrey Cordeiro Ferreira Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutor. Aprovada por: Prof: _________________________ (Orientador) João Pacheco de Oliveira Filho Prof: _________________________ Joanildo Albuquerque Burity Prof: _________________________ Sidnei Clemente Peres Profª: _________________________ Eliane Cantarino O´Dwyer Prof: _________________________ Moacir Gracindo Soares Palmeira Suplentes: Profª: _________________________ Adriana de Resende Barreto Vianna Prof: _________________________ Stephen Baynes Profª: _________________________ Maria Fátima Roberto Machado II Dedico este trabalho: Aos meus pais, Ilda e Jorge, por todo seu esforço, carinho, conselhos e ensino. À minha irmã Alba, que junto comigo superou tantas dificuldades e com quem pude aprender bastante. A Lucas Filipe, meu pequeno e amado sobrinho. Aos meus amigos e companheiros de jornada, os quais dão sentido a caminhada da vida. Aos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul pela resistência de ontem e hoje. III Agradecimentos Os agradecimentos aqui realizados remontam a minha trajetória pessoal e intelectual dentro do universo acadêmico. Esses agradecimentos são uma forma de resgatar uma dívida com diversas pessoas que me assistiram de diferentes maneiras ao longo de onze anos de vivencia nas ciências sociais nos cursos de graduação e pós- graduação, das quais sete dedicados especialmente à antropologia social, no Museu Nacional. Não poderia aqui deixar de mencionar os amigos e companheiros que sempre me orientaram informalmente nas discussões políticas e teóricas: Augusto da Cruz Rosa, Gil Felix, Maycon Almeida, Selmo Nascimento e Carlos Ricardo Pereira de Sant´anna. De uma maneira ou de outra, o trabalho aqui apresentado se tornou possível enquanto projeto acadêmico e ganhou forma teórica e política, pelas discussões e trabalhos que realizamos em conjunto em diferentes momentos. A leitura da tese torna isso evidente – pelo menos para mim. Tenho de mencionar também outros amigos e companheiros, como Aparecida Mercês, Rômulo Souza, Ana Luiza, que de diferentes formas auxiliaram em algum momento e de alguma maneira na realização das minhas atividades de pesquisa. A minha companheira Valena Ramos que deu uma contribuição fundamental para que eu pudesse superar certas dificuldades e levar a frente à conclusão da tese. Agradeço ao amigo Marcello Coutinho, com quem pude dialogar sobre temas diversos ao longo de muitos anos. Dos amigos e colegas do PPGAS/Museu Nacional, devo agradecer a algumas pessoas em especial, especialmente em razão do diálogo durante a tese de Doutorado e processo de Pesquisa. Fábio Mura e Alexandra, que me auxiliaram a corrigir certos rumos da pesquisa e com quem pude aprender bastante sobre antropologia e etnografia. Agradeço também a Carlos Augusto da Rocha Freire e José Gabriel, que sempre se dispuseram a dar conselhos e pistas de pesquisa e me ajudaram de diversas formas. Aos demais amigos e amigas, Nora, Mércia, Sandra, Francisco e Guilherme. Alguns professores tiveram uma particular importância na elaboração desse trabalho. Ao professor João Pacheco de Oliveira, sempre um interlocutor critico e ao mesmo tempo motivador, que deu todo o apoio e liberdade necessária para que o trabalho tomasse os rumos que tomou. Além de ser, é claro, uma referencia teórica importante para a discussão da antropologia política e da tutela. Agradecemos também aos professores Antonio Carlos de Souza Lima, que também nos deu importantes orientações ao longo dos cursos e na banca de mestrado, assim como a professora Eliane Cantarino. Ao professor Moacir Palmeira, que na comissão de tese, pelas suas observações rigorosas, auxiliou na determinação dos focos teóricos da pesquisa, e a professora Antonádia Borges, também integrante da comissão de tese, que contribuiu igualmente com sua leitura atenta e instigante. Agradeço também a todos os servidores do PPGAS-MN, da biblioteca e secretaria, e instituições financiadoras (CNPq e FAPERJ) que tornam possíveis os empreendimentos de pesquisa e estudo no cotidiano. Um agradecimento também ao corpo docente do PPGAS, com aulas sempre enriquecedoras. Na execução das atividades de pesquisa, contamos com diversos colaboradores. No Mato Grosso do Sul, agradecemos a ajuda do professor Antonio Brand, Na administração executiva regional da FUNAI, ao então administrador Wanderle y e os funcionários que nos atenderam. Também Gilberto Azanha do CTI que disponibilizou dados dessa instituição. No município de Anastácio, um agradecimento é necessário ao cacique Flávio, que nos tratou de forma muito acolhedora e nos apoio tanto, e também a sua toda família e parentes, com quem residi alguns dias durante nossa pesquisa. Em Lalima, ao Chefe de Posto Evair e Nioaque a Reginaldo Cabrocha, que nos atenderam de forma muito receptiva. No Passarinho, ao então cacique Wilson Jacobina. E nossos agradecimentos e considerações especiais vão para os nossos amigos da aldeia Cachoeirinha. Uma menção aqui vai para Argemiro Turíbio, Marlene Lipú, e seus filhos Argemiel, Diego, Jean, Vianey, Narliene, seus pais e mães, irmãos, enfim suas famílias. Deram todo o apoio ao nosso trabalho de pesquisa, abriram as portas de suas casas, mostrando uma profunda amizade, a IV qual tenho satisfação de ser devedor. Esse trabalho é dedicado também a eles. Outras pessoas importantes foram Sabino Albuquerque e Lourenço Muchacho, que tornaram também a pesquisa viável e sempre se dispuseram a nos ajudar naquilo que podiam. Firmo aqui também os meus sinceros agradecimentos. Assim como ao professor Anésio Pinto, Anilson Júlio (que nos auxiliou com a tradução de fitas e compreensão de certos termos no idioma), Amarildo Júlio, Quintino Pereira Mendes, os pastores Antonio Oliveira e Zacarias da Silva. Na aldeia Argola, agradeço a João Candelário e a família de Rufino Candelário, aos senhores Alcindo Faustino, Inácio Faustino e Adelino José. Com certeza, o resultado da pesquisa não teria sido o mesmo sem a convivência e o apoio deles. Na Lagoinha, agradeço ao então cacique Ramão Vieira, no Campão/Babaçu a Zacarias Rodrigues e as Famílias Roberto, Salvador e Balbino. No Morrinho, ao agora ex-cacique Isidoro Pinto. Enfim um agradecimento a todas as pessoas com quem conversei, entrevistei e convivi na aldeia e que fizeram do trabalho de campo um desafio e ao mesmo tempo uma experiência de vida marcante. V FERREIRA, Andrey Cordeiro Tutela e Resistência Indígena - Andrey Cordeiro Ferreira. Rio de Janeiro: UFRJ/MN-PPGAS, 2007. x, 413p. il. Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, MN-PPGAS. 1. Terena. 2. Política e Poder. 3. Tutela. 4. Resistência 5. Dominação. 6. Organizações Indígenas. 7. Mudança Social. Tese (Doutorado– UFRJ/MN-PPGAS). I. Título. VI Índice Introdução ...........................................................................................1 Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia: percepções da mudança social e luta política.............................................................................................. 16 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 – – – Resistência e Dominação: a análise das relações de poder. .........................................................................17 Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”. ...............................19 A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem. ......................................................................................24 A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura” .........................................29 A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social. ........................................................43 A antropologia política processualista e as ferramentas de análise.........................................................48 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. ..................................... 56 2.1 – A Emergência do “protagonismo étnico”. ............................................................................................................56 2.2 – Signos da Superioridade, Códigos do Domínio. ...................................................................................................62 2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses..........................................................67 2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica. ............................................................................................................72 2.5 – Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha. .................................................................75 2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos..........................................................................................................................83 2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006). .........................101 Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional: a acumulação colonial de poderes e capitais. ................................................108 3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775).................................................................109 3.2 – Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal. ...................................113 3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro............................................119 3.4 – A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro-revoltas indígenas (1904-1939)........................132 3.5 - “A Emancipação Indígena” – a luta pelo controle político de Bananal..................................................137 3.6 – Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969)...................................................................................................144 3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990).......................................................155 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e tradições de conhecimento aldeãs. .............................................................................................163 4.1 – Organização Social e Territorial de Cachoeirinha...........................................................................................164 4.2 – O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição.....................................................................175 4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais.......................................................................................................198 4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder. .......................................................230 Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização faccional: a organização política Terena. ............................................................................................236 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 – – – – - A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha. ............................................................................237 As Unidades Básicas da Organização Política Terena. ...................................................................................247 Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial. .................................................258 As facções e a política do óleo e da semente. .................................................................................................267 A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais..........................................270 A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.”............................................................................285 Capítulo 6 – A Co-gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e a resistência cotidiana. .........................................................................................304 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 6.6 – A formação das Associações Indígenas.................................................................................................................304 As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo...........................................317 As formas de resistência: a Luta contra o Cacique Geral.............................................................................348 As formas de resistência: Cisão na Argola ..........................................................................................................353 As formas de resistência: a ocupação da Fazenda Santa Vitória. .............................................................358 Co-Gestão Indígena e Poder Local: mudança e reprodução das relações de dominação.................368 Capítulo 7 -Paradoxos do protagonismo étnico.............................................375 7.1 - Os sentidos da conquista colonial: formação do Estado-Nacional e Transição Capitalista. ............376 7.2 - Etnocentrismo e sub-proletarização: os fundamentos da sobre-exploração. .......................................385 7.3- Os múltiplos usos e faces da tutela: colonialismo interno e imperialismo.............................................389 VII 7.4 - Os destinos do regime tutelar e da resistência indígena. ............................................................................396 Lista de Ilustrações Mapas Mapa Mapa Mapa Mapa Mapa Mapa 1 – Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul................................................................................................................88 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso........................................................................................................................117 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX..........................................................................................................................124 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006. ...................................................................................................................166 5– Vila Santa Cruz. .............................................................................................................................................................294 6 –Vila Cruzeiro. ...................................................................................................................................................................294 Figuras Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura 1234– 5– 67– Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal. ..........................................................118 Campo e Arenas de Cachoeirinha. .........................................................................................................................158 Esquema Genealógico de João Niceto Júlio.......................................................................................................286 Esquema Genealógico de Dionísio Antônio.........................................................................................................287 Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo. .......................................................................................288 Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio ........................................................................................................289 Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque. ................................................................................................298 Fotos Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração ............................................................................................................................176 Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004.........................................................................................................178 Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres.................................................................................................................................184 Foto 4- Grupo Xumono. .................................................................................................................................................................184 Foto 5- Dança do Bate-Pau..........................................................................................................................................................185 Foto 6- Dança do Bate-Pau..........................................................................................................................................................192 Foto 7- "100% Sukrekeono." .........................................................................................................................................................195 Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil. ............................................................................................................................197 Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor . .....................................................................................................204 Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. .....................................................................................................................212 Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena.............................................................................................222 Foto 12- Culto na Capela com o “Bate-Pau”.......................................................................................................................224 Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003..........................................................................................................................................227 Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate-Pau....................................319 Foto 15 - Público do Comício de Zeca.....................................................................................................................................320 Foto 16- Zeca discursa aos indígenas......................................................................................................................................321 VIII Lista de Quadros Quadro 1– Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas...............................................................................74 Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI .........................................................74 Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997) ..................................................................79 Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997)............................................................81 Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul...............................................................................................................85 Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande ....................................................................................................................................85 Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande. ..............................................................................86 Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região – 2001. .............................................................................90 Quadro 9- Economia do Centro-Oeste.......................................................................................................................................90 Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001. ............................................91 Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil..............................................................................................92 Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01.............................93 Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02 .................................................................93 Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 .......94 Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas). .........94 Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE – Censo 2000)............................................................95 Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996. ......................97 Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões. ..........................97 Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul ............................................................................................................98 Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos .........................................................................................99 Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996).................99 Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA......................100 Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores .....................103 Quadro 24 – Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos............................................104 Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862 ...........................................................................................131 Quadro 26 - População de Mato Grosso – 1872-1930. ........................................................................................................131 Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena – Século XX.....................................................133 Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso – SPI – 1910-1930........................................................135 Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo) ......................................................................146 Quadro 30- PI´s Terena – 1954 – As Diferentes localizações sociais dos Terena.....................................................148 Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas..........................................................................................................162 Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. ...........................................................................................242 Quadro 33 – Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. ............................................................242 Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha – 1850-2005...................................................................268 Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas)..............269 Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” – em HA cultivados...................................274 Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM)..........................................................................................................................................328 Quadro 38 – Mercado Temporário de Trabalho na Política Local..................................................................................333 Quadro 39 - Mão de Obra Empregada nos setores Fiscalizados pela Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho/SCJT – Governo/MS (1996).................................................................391 IX “Por certo eu sairei, quanto a mim satisfeito Deste mundo em que ao sonho a ação não é associada Possa eu usar da espada e morrer pela espada! Pedro negou Jesus e foi muito bem feito !” Charles Baudelaire, “Revolta – A Negação de São Pedro”, in Flores do Mal “Raça de Abel, só bebe e Come/Deus te sorri tão complacente Raça de Caim, sempre some/No lodo, miseravelmente Raça de Abel, teu sacrifício/Doce é ao nariz do Serafim Raça de Caim teu suplício/Será que jamais terá fim? Raça de Abel, tuas sementes/E teu gado produzirão Raça de Caim, sempre sentes/Uaivar-te a fome como um cão. (...) Raça de Abel, eis teu label/Do ferro o chuço é vencedor! Raça de Caim, sobe ao céu/E arremessa à terra o Senhor”. Charles Baudelaire, “Revolta – Abel e Caim”, in Flores do Mal X Introdução Os Objetos da Tese: regime tutelar, resistência indígena e mudança social. Este estudo analisa as relações de dominação e resistência política estabelecidas entre os índios Terena e o Estado-Nacional. Nosso enfoque principal é o estudo da mudança social nos processos e relações de poder no presente etnográfico, ou seja, nos primeiros anos do século XXI, na terra indígena Cachoeirinha, localizada no Mato Grosso do Sul. O estudo etnográfico e das fontes históricas acerca da sociedade Terena nos levou a perceber uma continua e forte política de resistência dos indígenas ao regime tutelar, talvez principal forma de dominação operante em relação aos índios. As formas de luta política e resistência indígena existentes remetem sempre (em termos simbólicos e práticos) a essa estrutura de dominação. A problemática desta oposição entre “tutela e resistência indígena” apareceu tanto pela análise de relações concretas quanto pelo discurso nativo. O discurso indígena aciona em algumas circunstancias a idéia de resistência, de capacidade política dos índios, em contraponto a “tutela” que se apresenta ainda enquanto regime político e jurídico dentro das aldeias. A resistência indígena assumiu diferentes formas – cotidianas e abertas – e hoje o que parece ser mais expressivo entre os Terena é o desenvolvimento da política de resistência cotidiana ao regime tutelar – ou a seus principais efeitos de poder. Os índios Terena hoje disputam o controle de recursos materiais e posições de poder, tentando afirmar a capacidade política indígena de controlar sua própria vida. Disputam também narrativas históricas e fazem a critica dos estigmas sobre o índio (representações românticas, imagem de preguiçoso e etc) e do conjunto de mecanismos concretos e simbólicos institucionalizados pelo regime tutelar. Para compreender o significado desses fenômenos políticos e culturais, e sua relação com a resistência e a dominação, é preciso compreender o conteúdo sociológico do regime tutelar. A construção do regime tutelar acompanhou o período de “acumulação primitiva” (que implicou no caso brasileiro, no etnocídio e na expropriação das populações indígenas), lançando as bases do Estado-Nacional e do capitalismo brasileiros. Por isso, a oposição entre tutela e resistência indígena se apresenta como problema empírico, que deve ser pensado em sua articulação com o problema teórico da mudança social (transição das sociedades sem estado para as sociedades estatais e das formas pré-capitalistas para as capitalistas), bem como da construção das relações de dominação política e exploração econômica. O regime tutelar é um dos principais produtos da política colonial e expressa um modelo de exploração capitalista de uma força de trabalho particular, a dos povos colonizados. Nesse sentido, a compreensão do regime tutelar exige a analise das engrenagens capitalistas e imperialistas de exploração/dominação, e uma compreensão dos sentidos do processo histórico de colonização e formação do capitalismo. O regime tutelar foi problematizado e teorizado na antropologia brasileira por autores como João Pacheco de Oliveira (1988), Antonio Carlos de Souza Lima (1995) e se concatena de maneira muito adequada com o objeto teórico postulado pela orientação genética e dinâmica da antropologia política, que abrange especialmente o problema da origem/formação do Estado e os processos de mudança/reprodução dos sistemas políticos, estatais e não-estatais (ver Balandier, 1969, Gluckman, 1974). Estas demandas teóricas exigiram uma reformulação de certas maneiras de conceber o problema do estudo sociológico e antropológico das relações interétnicas e da mudança social. Por isso a etnografia foi acompanhada pelo esforço de buscar quadros teóricos e políticos alternativos de análise sociológica. Justificativa: do contexto etnográfico a crítica teórica. O problema da tutela e da resistência indígena se colocou para nós a partir do próprio contexto etnográfico. Mas tivemos de passar por um revezamento contínuo entre a etnografia e reflexão teórica para conseguir realmente entender a sua importância para a compreensão da sociedade Terena. Em 2001, quando iniciamos nossa pesquisa junto aos Terena no Mato Grosso do Sul, setores da sociedade brasileira e a opinião pública internacional ainda estavam sob o impacto do que acontecera em Porto Seguro em abril de 2000, ocasião em que o chamado “movimento indígena” sofreu uma dura repressão policial e a imagem do índio Gildo Terena, de joelhos na estrada diante da tropa policial de choque, correu o mundo durante meses como uma espécie de síntese imagética das relações entre os índios e o Estado brasileiro 1 . A nossa intenção inicial, ainda sob uma formulação genérica, era estudar o “movimento indígena”, suas formas de ação e articulação no plano local. Quando chegamos a Cachoeirinha nos defrontamos com uma série de dificuldades para encaminhar a pesquisa na forma como tínhamos imaginado; pudemos logo perceber que os Terena 1 A exaltação do “índio e da teoria das três raças formadoras, todo o pesado investimento simbólico realizado pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, se combinou com o tratamento “policial” dispensado ao movimento indígena e aos índios, que foram impedidos de ira até o local das cerimônias oficiais, onde estariam os chefes de Estado brasileiro e português. 2 não apresentavam nenhum tipo de articulação orgânica com algo que se pudesse denominar “movimento indígena”; não existiam organizações e ações coletivas, assembléias (tais como tínhamos tido a oportunidade de acompanhar em Porto Seguro, nos protestos dos 500 anos). Apesar da UNI (União das Nações Indígenas) ter o índio Marcos Terena como um dos seus fundadores, em Cachoeirinha sempre ouvi comentários irônicos sobre ela, “de que não peitou nem organizou nada”. Ao contrário, quase todas as demandas passavam pela FUNAI, as organizações indígenas existentes eram associações voltadas para a produção agropecuária, e a vida dentro da comunidade era marcada por conflitos faccionais evidentes entre líderes indígenas que trabalhavam sempre em colaboração com algum comerciante ou fazendeiro, reproduzindo sob muitos aspectos a forma “clientelista” de dominação. Todas as ações dos índios pareciam voltadas para garantir a maior eficácia possível da sua facção na obtenção de recursos materiais e poder político. Isto entrava em franca contradição com aquela nossa intenção de estudar um movimento social organizado, com uma identidade e ações coletivas definidas, tendo um adversário igualmente definido: o Estado. Assim, a etnografia nos obrigou a abandonar certas teses e hipóteses, apesar de mantermos outras e os principais pressupostos teóricos. A etnografia serviu para demolir estas primeiras intenções e reconstruí- las num outro patamar de reflexão empírica e teórica. Entretanto foi preciso um esforço de superar certas representações acerca dos índios e o Estado Brasileiro. Perceber como por detrás do aparente equilíbrio e estabilidade na relação entre os Terena e agências estatais, passavam-se sutis mas constantes lutas políticas, tanto uma luta pelo poder quanto uma luta de discursos sobre a história e o “caráter” dos índios. O discurso histórico (administrativo, mas às vezes acadêmico) colocava os Terena sempre como uma espécie de coadjuvantes do SPI, como colaboradores periféricos da política pedagógica de civilização e assimilação dos índios; a sua utilização como “índios exemplos” em São Paulo junto aos Kaigang e em Mato Grosso do Sul junto aos Guaranis, além do seu envolvimento na política local e na política interna da FUNAI reforçavam esta imagem. Desta maneira, a imagem do “índio modelo” do discurso indigenista, parecia prevalecer em diversos planos (políticos e científicos). Mas na realidade isso não explica uma grande parte dos acontecimentos e ações dos Terena, tanto hoje como no passado. É interessante que um dos líderes Terena, o cacique Ramão Vieira com quem tivemos a oportunidade de conviver em Cachoeirinha, formulou uma reflexão que vai na direção da crítica dessa representação. Na nossa última ida a campo em março de 2006, estávamos numa conversa informal dentro de um acampamento organizado pelos índios numa fazenda que faz limites com Cachoeirinha (ver capítulo 6), e Ramão ao falar da batalha política e judicial que eles estavam 3 travando, disse: “Os estudiosos fala que o Terena é manso, mas no dia da reintegração de posse não tinha ninguém manso”. Tal formulação permite que coloquemos uma série de indagações. Primeiramente ela sinaliza a existência de representações que formam uma imagem dos Terena como “índios mansos” e “passivos”. Ao mesmo tempo mostra a insatisfação de certos atores indígenas com tal representação, uma contradição entre as representações engendradas pelo regime tutelar e os processos políticos locais, nos quais os indígenas aparecem como atores com estratégias e táticas diversificadas. Este tipo de contradição é que nos motivou a tomar como problemas/objetos a tutela, a resistência indígena e a mudança social. Por que a abordagem de tais problemas se justificaria? Os índios Terena foram, em certo contexto, alvo privilegiado de diversas pesquisas e textos etnográficos (FERREIRA, 2002). Podemos classificar a etnografia Terena em três conjuntos distintos, a partir de critérios teóricos e temporais: os estudos de aculturação (basicamente anos 1940), nos quais situam-se os clássicos de Herbert Baldus (1937), Kalervo Oberg (1949), Fernando Altenfelder Silva (1949), e os estudos de assimilação e contato interétnico de Roberto Cardoso de Oliveira (1960 e 1968); os estudos contemporâneos, com orientações teóricas distintas, como os de Edgar de Assis Carvalho (1979), Edson Soares Diniz (1978). Estes trabalhos, cada um com suas particularidades teóricometodológicas privilegiaram a temática da aculturação, mudança cultural e assimilação – categorias estritamente relacionadas entre si. Destas monografias, as que dão maior atenção à questão do comportamento político e ação indígena são as de Roberto Cardoso de Oliveira. O autor trata apenas um dos aspectos que aqui nos interessam, aquele relativo à inserção dos Terena nas instâncias políticas locais. Sua descrição foi restrita, seja pelo fato do papel desempenhado naquele momento pelos Terena se resumir (segundo Cardoso de Oliveira) ao de “eleitor”, seja em razão do rígido controle exercido pelo órgão tutelar (o SPI), que chegou em certos momentos a proibir os índios de exercerem mesmo este papel (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 117-120). Em monografias posteriores, como as de Edgar de Assis Carvalho (1979) e Fernanda Carvalho (1996), os autores não tomam como temas principais à ação política indígena. O trabalho de Edgar de Assis Carvalho tenta desenvolver uma leitura marxista da situação do contato interétnico, com ênfase nas relações econômicas. O de Fernanda Carvalho toma como objeto as práticas de cura e os sistemas de crenças relacionadas. Existem diferentes questões que nos foram suscitadas pela leitura da etnografia Terena e com as quais dialogamos criticamente ao longo desta tese. Em primeiro lugar, podemos dizer que quase todos os estudos a exceção do de Fernanda Carvalho, estão de uma maneira ou outra, preocupados com o problema da mudança; para Oberg e Altenfelder Silva, a mudança cultural; para Cardoso de Oliveira, a mudança social e identitária, para Diniz (1978) e Carvalho (1979) o 4 problema da mudança dos sistemas econômicos. O processo de mudança, entretanto sempre foi concebido como uma “mudança” provocada pelas relações interétnicas, na qual os índios Terena representavam um pólo determinado e não determinante. A ação e organização política indígena, “os pontos de vista dos nativos” quanto à mudança social e cultural não foram aspectos explorados. Tomemos um dos estudos de aculturação, o de Fernando Altenfelder Silva. Este autor examina os diversos aspectos da vida dos Terena, apresentando sempre primeiramente uma descrição do passado para depois analisar a situação atual: “Pretendemos examinar neste capítulo, a vida econômica dos Terena, no passado, e a presente situação na aldeia de Bananal, procurando evidenciar as mudanças ocorridas”. (Altenfelder Silva, op.cit, p.286). Depois passa a descrever a organização social, seguindo o mesmo percurso (descrição do passado, descrição do presente), apontando como mudanças mais flagrantes a substituição da família extensa pela elementar e o desaparecimento do sistema das metades e classes. Por exemplo, quando Altenfelder Silva analisou a organização política, assim como sua cultura e organização social, falou em termos de “desaparecimento e desorganização”. Segundo tal perspectiva, o “sistema político tradicional” teria sido substituído por formas exclusivamente nacional-estatais (centralizadas) de organização (Altenfelder Silva, 1949, p. 373). Nos anos 1960, aparecerão os estudos de Roberto Cardoso. Sua abordagem no livro “Urbanização e Tribalismo” indica que: ‘Os Terena viram desagregar-se seu sistema político paralelamente à ocupação de suas terras e à perda de sua autonomia; a situação de reserva constitui o resultado de seu reagrupamento (...) A rigor, a dimensão política dos Terena atuais não apresenta aquele caráter de sistema capaz de classificá-la, por exemplo, como fizeram Meyer Fortes e Evans Pritchard em relação a uma representativa amostra das sociedades africanas (...) . Comentam os mencionados autores que ´Aqueles que acham que se deve definir um Estado pela presença de instituições governamentais considerarão o primeiro grupo Estados primitivos e o segundo sociedades sem Estado. (...) Pode-se aceitar, mesmo à base de informações fragmentárias obtidas bibliograficamente ou pela pesquisa de campo, que o tradicional sistema político Terena estaria mais próximo do primeiro tipo do que do segundo”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, 103104) Esta visão de que a sociedade Terena “moderna” se apresentava em processo de transformação, se aplica também à identidade étnica: “No momento em que esta urbanização se soma à integração nas classes mais bem favorecidas, cujo nível de vida a elas inerente esteja bem acima do nível desfrutado por seus patrícios citadinos é que – ao que tudo indica -- terá lugar a destribalização e os indivíduos poderão ser finalmente assimilados” (Cardoso de Oliveira, 1968, p.196). Sua compreensão, é que a mobilidade social (integração nas “classes favorecidas”) levará a destribalização (liquidação da identidade étnica) e assimilação. 5 No final dos anos 1970 irão aparecer os estudos sobre os Terena de São Paulo. Edgar Assis Carvalho, partindo de uma concepção marxista, pretende formular uma análise das classes sociais. Num artigo intitulado “Pauperização e Indianidade” (Antropologia e Indigenismo, 1981) ele afirma que: “É fato notório que a realidade econômica do grupo indígena integrado encontra-se pautada por conjunto de atividades agrícolas de subsistência, no interior da reserva, e pelo exercício sazonal de relações assalariadas em fazendas”. (Carvalho, 1981, p. 7). E mais adiante: “... progressivamente, a dimensão étnica vai sendo subordinada a dimensão de classe que passa a ser a matriz fundamental para as práticas indígenas cada vez mais destituídas de homogeneidade cultural e lingüística”. (Carvalho, op.cit, p.8). Estas abordagens derivam da leitura global do contato interétnico: supondo que o contato entre os Terena e a Sociedade Nacional se processou a partir do século XIX, supõe-se uma inserção tardia na estrutura de classes capitalista, quando na realidade isso já acontecia desde o final da Guerra do Paraguai (como iremos demonstrar no capítulo 3). A “p roletarização” e o “acamponesamento” dos Terena é um dos pontos de partida, não de chegada, das relações interétnicas. Tomando um outro estudo, o de Edson Soares Diniz, que apesar de ter sido realizado nos anos 1970 em São Paulo, oscila entre a ênfase nas “relações interétnicas” e a reafirmação das teses dos estudos de aculturação: “As mudanças sócio -culturais, devido ao contato interétnico, são evidentes. Ao lado de sua própria língua, falam e entendem o português. Sua indumentária e seu modo de vida assemelham-se aos regionais pobres, embora para estes, haja a tendência do nível de vida ser mais elevado. Os sistemas de parentesco continuam, mas já existem confusões estruturais por identificação com o sistema brasileiro. Usam nomes cristãos e são batizados nos rituais da Igreja católica, religião a que dizem pertencer”. (Diniz, 1978, p.99). Diniz, desta maneira, se mantém ainda dentro dos referenciais estabelecidos dentro da antropologia e ciências sociais dos anos 1950/60, reafirmando tanto as imagens quanto o léxico dos estudos de aculturação e assimilação, como podemos confirmar pelas suas conclusões no livro. É na última frase do livro, com grande viés generalizador, que fica mais marcada esta imersão nos pressupostos teóricos da antropologia culturalista dos anos cinqüenta e sessenta: “Na atualidade, a imagem que as culturas indígenas nos oferecem é aquela de um condenado algemado e amordaçado, sem condição de reação e que, consciente ou inconscientemente, a cada passo mais se aproxima do patíbulo”. (Diniz, op.cit, p.102). Há um modo de abordagem da sociedade Terena, que analisa todas as suas dimensões em função da mudança provocada pelo “contato interétnico”. Assim, no plano político se supunha que a passagem das sociedades sem estado às sociedades estatais implicava na eliminação total da organização política indígena, supõe-se também que do ponto de vista econômico o destino dos 6 índios seria a absorção completa na estrutura de classes capitalista. Isto fica nítido nos trabalhos mencionados. Existe também um tipo de história nestes estudos que parte de uma estrutura dualista, opondo um “período tradicional” (que seria anterior ao contato interétnico) ao “período moderno” (caracterizado pelo estabelecimento das relações entre sociedade indígena e sociedade nacional). No período tradicional existiria um tipo de organização da economia (baseada na agricultura e caçacoleta), da cultura (baseada na cosmologia e formas mágico-religiosas) e da política (baseada na transmissão hereditária da chefia); o período moderno seria marcado pela tendência ao assalariamento, a integração numa “estrutura de classes”; na cultura, veríamos as transformações significativas, com a “substituição do sistema de crenças” pelas religiões católica e protestante; do ponto de vista político, a intervenção do Estado suplantaria por completo os chefes indígenas. A história dos Terena aparece como determinada de fora, e se apresenta como uma “queda” de uma idade de “ouro” para um presente de “aculturação/assimilação”, provocada pelo estabelecimento das “relações interétnicas” (Bruner, 1986). Cardoso de Oliveira afirma que: “A história dos Terena, ao menos em sua fase que podemos chamar moderna, é a história da ocupação brasileira no sul de Mato Grosso”. (Cardoso de Oliveira, 1968, p.40). E mais adiante: “E mais do que os kinikinau, os Layana e os Echoaladi, os Terena teriam sofrido de modo bem violento a conjunção com a sociedade nacional, a partir do momento em que foram envolvidos na luta contra os paraguaios. Até esse tempo, eles constituam um grupo relativamente isolado, como indicam algumas das principais crônicas de Taunay sobre o episódio da guerra com o Paraguai”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.40). A caracterização da história indígena, como indicada por Cardoso de Oliveira, está inter-relacionada com o processo de colonização, mas em seu trabalho a reflexão sobre o século XIX ocupa pouco espaço. Assis Carvalho dá destaque à análise histórica, ocupando dois capítulos de seu livro, num total de seis. O autor afirma: “No primeiro capítulo reunimos dados históricos significativos à compreensão do modo de vida Terena no Chaco, suas primeiras formas de contato com o colonizador e as várias compulsões a que foram submetidos”. (Carvalho, 1979, p. 20). Esta ênfase sobre o “modo de vida” e as “primeiras formas de contato” revelam uma certa fixação em marcar ainda a distintividade cultural do passado indígena com relação a seu presente. Desta maneira, apesar de uma maior atenção à história, ainda permanece uma pouca preocupação com a historicidade das sociedades indígenas, seu envolvimento efetivo nos processos reais e suas conseqüências na determinação dos destinos dos povos. A focalização da problemática da resistência indígena e do regime tutelar permitirá a reabilitação de uma dimensão que a etnografia Terena até o atual momento não tratou satisfatoriamente; a das formas da ação indígena. E o reconhecimento de que os índios são 7 efetivamente sujeitos da sua própria história, de que eles são pólos ativos dos processos de mudança social. A relação Estado/Índio é perpassada por uma rede de interações muito complexa, tanto do ponto de vista dos interesses envolvidos quanto das práticas e referenciais culturais. Compreender os pontos desta rede é fundamental para a compreensão das relações interétnicas. Por outro lado, não podemos pensar os povos indígenas como meros objetos de ações de agências externas, mas devemos os considerar como “sujeitos” de ações políticas que elaboram suas próprias estratégias no sentido de garantir seus interesses. Neste sentido, a partir do caso Terena, pretendemos ver como se dão os processos de resistência étnica diante das diversas formas de dominação que diferentes setores da sociedade brasileira e o Estado exercem sobre os povos indígenas. A análise da relação entre as formas de poder exercidas sobre as populações indígenas caminha assim lado a lado com a reflexão acerca das formas de resistência construídas pelos próprios grupos indígenas como estratégia de sobrevivência e fortalecimento. Mas também consideramos as formas de dominação operantes dentro dos próprios grupos indígenas. Uma história Terena é necessária e também uma compreensão da história dos pontos de vistas indígenas. O estudo do regime tutelar e da resistência indígena entre os Terena se justifica então por este conjunto de questões. É uma estratégia para chegar à compreensão dos processos de mudança e reprodução social, formulando outras análises para interpretação da economia, cultura e política do grupo. Também é uma forma de buscar uma história indígena que supere a dualidade tradicional/moderno e a visão de que o estabelecimento das relações entre sociedade indígena e sociedade nacional foi o ponto de partida da “desagregação das sociedades indígenas” (o que leva, como veremos, a reificação da idéia do Estado-Protetor que “salva” e substitui os índios, sua capacidade política e ação histórica). Assim, o estudo aqui apresentado está voltado tanto para temas da antropologia brasileira, quanto para temas de interesse político-teórico mais amplo, se é que faz sentido uma tal distinção. Método e Hipóteses de Pesquisa. Iremos aqui tecer algumas considerações com relação ao método, técnicas de pesquisa e as hipóteses que formulamos para o nosso trabalho. Nesse sentido tentaremos retratar o mais fielmente possível os caminhos que nos levaram a produção dos dados utilizados e hipóteses aqui apresentadas. Entendemos que o processo de pesquisa é sempre mediado por algumas teorias ou teses gerais que funcionam como pressupostos e orientam tanto o método quanto as técnicas de coleta de 8 informações empregadas no trabalho de campo 2 . Sendo assim, antes de tudo cabe explicitar alguns dos pressupostos teóricos a partir dos quais desenvolvemos nossa pesquisa. 1º) Partimos da suposição teórico-metodológica de que os grupos étnicos são formas de organização social e que a realidade é construída através da ação e interação de atores sociais (BARTH, 2000, Oliveira Filho, 1999). 2º) A etnografia realizada em pequenas “comunidades” locais não está em contradição com o estudo dos processos de larga escala, podendo, ao invés, possibilitar uma melhor compreensão de processos que operam em múltiplas escalas (ELIAS, 2000, Revel, 1998, Marcus, 1995). 3º) Esta articulação de diferentes escalas de produção e reprodução social, possibilitadas pela etnografia, impõe que “... uma compreensão das sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas da sua dimensão histórica”. (Oliveira Filho,1999,p.8). 4º) É indispensável pensar o conflito, a luta, a guerra, como uma dimensão central da construção das relações sociais, de maneira a compreender a sua real importância para a constituição da sociedade (Foucault, 1999; Gluckman, 1968). Tivemos sempre a preocupação de manter no desenvolvimento da pesquisa e no trabalho de produção textual da etnografia três movimentos: 1º) a articulação entre etnografia e história; 2º) a articulação dos contextos locais com os processos de larga escala e longa duração; 3º) a articulação entre mudança social e reprodução das relações de poder, tomando como foco os conflitos entre o Estado e grupos sociais subalternizados, como os índios e aqui vários autores inspiraram nossa análise (como Bakunin, Marx, Lenin, Foucault, Gluckman, Turner, Balandier). Podemos dizer que o método utilizado nesta pesquisa foi essencialmente etnográfico. Entretanto, em razão das múltiplas construções e des-construções da definição da etnografia, cabe apresentarmos uma definição explicativa. Entendemos a etnografia como um processo composto por três etapas: 1ª) experiência de interação; 2ª) a aplicação das técnicas de coleta de dados (como as descrições de morfologia e situações sociais, aplicação de questionário e entrevistas fechadas e abertas, as técnicas genealógicas e estatísticas etc); 3ª) a produção textual, que transcreve essa experiência visando submetê- la a critérios de controle e verificação cientificas, garantindo sua objetividade. O trabalho de campo se apresenta antes como uma sistematização acadêmica da etnografia, mas outras formas de etnografia (de viajantes, administradores, militares) se apresentam como gêneros específicos de etnografia, que têm de ser submetidos aos processos sociológicos de análise e controle, assim como as etnografias acadêmicas. A etnografia nas suas diferentes modalidades historicamente encontradas está associada fundamentalmente, mas não necessariamente, ao trabalho de campo, mas também a outras formas de experiência de interação. A etnografia, enquanto modo de conhecimento, está ancorada em dois 2 Malinowski explicita isso na sua introdução aos “Argonautas do Pacífico Sul”: “O pesquisador de campo baseia-se inteiramente na inspiração proporcionada pela teoria.” (Malinowski, 1979, p.45-46). 9 pilares: 1º a descrição detalhada do universo social e natural; 2º o holismo, quer dizer, a análise desta realidade especifica como uma totalidade na qual os significados derivam das relações concretas (Malinowski, idem, Ortner, 1995, Berreman, 1975). Esta consideração é fundamental, porque a perspectiva histórica adotada, exige que adotemos as descrições etnográficas como base da construção da história indígena. Por isso o uso de descrições de militares e viajantes, além de outras fontes, na construção desta perspectiva de uma etnografia histórica. O uso das etnografias de outros sujeitos é uma forma de dissociar a experiência etnográfica do empirismo e auto-referencia, pois não somente a própria “experiência pessoal no presente etnográfico” passa a ser considerada, mas também a experiência de outros sujeitos em outros momentos históricos. Neste sentido, a etnografia, enquanto modo de conhecimento, ganha também uma forma e um conteúdo histórico, no sentido que se torna possível usar as etnografias como fontes históricas. O nosso método de pesquisa então centrado na etnografia, passou também por outras etapas, a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental ou arquivística, e por fim a produção textual da tese. Lembramos que na realidade não foi um processo linear, mas sim descontinuo, com idas e vindas a campo, arquivos e a produção textual, e seguindo esse itinerário flexível é que chegamos onde estamos hoje. Explicitaremos a seguir as condições de realização de nossa pesquisa. No correr do nosso trabalho de campo nas áreas Terena de Mato Grosso do Sul, pudemos visitar três Postos Indígenas (PIN’s) no município de Miranda – PIN Cachoeirinha, PIN Pilad Rebuá, e PIN Lalima, o PIN Nioaque e duas terras indígenas, Aldeinha na cidade de Anastácio e a Aldeia Urbana Marçal de Souza na capital Campo Grande. A maior parte de nossa pesquisa foi realizada no município de Miranda, na terra indígena de Cachoeirinha. A cidade de Miranda fica à oeste de Campo Grande e distante 194 km desta capital, situada na meso-região do Pantana l, acessada pela estrada BR-262 (que liga Campo Grande à cidade de Corumbá, na fronteira com a Bolívia). A cidade tem 23 mil habitantes, sendo a população urbana de 12, 5 mil e a rural de 10, 5 mil, segundo os dados do IBGE. A população indígena Terena está entre 5 mil e 7 mil pessoas. Realizamos um primeiro contato com os Terena em fevereiro de 2001, quando tivemos a oportunidade de realizar uma viagem de 30 dias à região, permanecendo cerca de 3 dias em Cachoeirinha, visitando ainda as terras indígenas de Lalima, Pilad Rebuá e Aldeinha. Devido a dificuldades operacionais e limitações de recursos, não conseguimos ter acesso às demais terras indígenas Terena no estado. Em 2002 realizamos uma rápida etapa de pesquisa de 3 dias em Cachoeirinha em abril; em Outubro voltamos para mais uma etapa de pesquisa e ficamos cerca de 20 dias. Devido à aceitação e facilidade de negociação com as lideranças locais e comunidade, e questões suscitadas pelas primeiras viagens, resolvemos definir Cachoeirinha como local de no ssa 10 pesquisa. Em abril de 2003 voltamos e ficamos cerca de 40 dias em Cachoeirinha, saímos em maio para ir a Campo Grande e ir a outras aldeias (sendo que conseguimos visitar Brejão em Nioaque, e Aldeinha). Também ficamos cerca de 7 dias em Campo Grande. Em setembro de 2004 concentramos a maior parte de nossa pesquisa de campo (cerca de 60 dias), e neste período tivemos oportunidade de conhecer a aldeia de Jaguapirú e Bororo em Dourados. Em 2006 realizamos uma etapa de pesquisa de três semanas, entre março e abril. Totalizamos aproximadamente 170 dias de trabalho de campo ao longo de cinco anos de pesquisa, dos quais cerca de 110 foram passados exclusivamente na aldeia Cachoeirinha. Durante o período de campo em que permanecemos em Cachoeirinha, nos hospedamos no Posto da FUNAI, residindo ali com a família do então Chefe de Posto (sua esposa e filhos), o índio Terena Argemiro Turíbio. Depois ficamos hospedados em sua casa, que fica localizada próximo ao Posto da FUNAI. Neste sentido, a pesquisa foi construída a partir de uma relação específica com um grupo doméstico, o que abriu certas portas, mas também fechou outras portas. Especialmente porque este grupo doméstico cumpre um papel político importante dentro do contexto local. Conseguimos construir relações com outras pessoas, que atuaram como nossos informantes, servindo para contornar relativamente esta situação. É importante mencionar que quando iniciamos a primeira etapa de pesquisa realmente prolongada em Cachoeirinha, em 2003, existia um contexto em que as disputas faccionais estavam relativamente atenuadas em razão dos seminários e assembléias promovidos pelo CIMI. Nessas circunstâncias, conseguimos ter acesso direto ao conjunto de lideranças de diferentes facções, o que possibilitou a construção de formas de comunicação para além dos grupos domésticos com que residimos na Cachoeirinha, e ter acessos a pontos de vistas e expectativas que se demonstrariam conflitantes pouco tempo depois. Mas é claro que estávamos o tempo todo situados dentro de um grupo doméstico e de uma das vilas da aldeia, o que nos posicionava dentro de um universo de lutas faccionais determinado. É preciso observar também o contexto lingüístico da pesquisa. Nós realizamos a pesquisa fazendo uso do idioma português, e sempre que possível colhemos entrevistas e termos no idioma Terena para tradução. Os Terena são um povo que possui diferentes situações lingüísticas. Existem comunidades bilíngües e algumas comunidades que falam majoritariamente o português. No contexto da aldeia Cachoeirinha e Argola o domínio da língua Terena é generalizado na população, com um índice de 78,4% e 83,3% respectivamente, sendo Babaçu a que apresenta uma menor percentagem de falantes, 48% (Ladeira, 2001, p. 101). Mas de maneira geral, a população Terena domina muito bem o português, e grande parte da comunicação dentro da aldeia é feita pelo uso dos dois idiomas, até mesmo pela heterogeneidade de domínio da língua apontada acima. 11 Além da pesquisa de campo, realizamos também pesquisa nos arquivos do Museu Nacional, do Museu do Índio, da Biblioteca, do Arquivo Nacional e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro; nos arquivos da FUNAI em Mato Grosso do Sul, em bibliotecas municipais em Campo Grande, onde levantamos uma documentação importante sobre os índios Terena e os índios do Mato Grosso do Sul. Daí saiu uma massa heterogênea de relatórios, ofícios, cartas e fotos, que estão incorporados na nossa tese. Do processo de revezamento entre pesquisa bibliográfica, documental e a etnografia, surgiram algumas hipóteses, que estão diretamente relacionadas às questões apresentadas na justificativa desse trabalho. São quatro hipóteses que formulamos para nossa pesquisa: Primeira Hipótese: está em emergência entre os Terena o que poderíamos chamar de protagonismo étnico, fenômeno que indica uma mudança nas relações de poder entre índios e Estado, e se expressa na passagem das formas cotidianas de resistência para a resistência aberta. Tal constatação exige a critica dos estereótipos dos Terena como “índios- modelo” e a percepção de sua política de resistência à tutela. Os Terena desenvolveram formas cotidianas de resistência à relação e regime tutelar, desde que esse consolidou com a formação das Reservas do SPI, de maneira que as teses que afirmam a “vitimização”, a “incapacidade” e a “passividade” Terena não encontram sustentação empírica. Hoje essa resistência se desenvolveu e se apresenta sob a forma da emergência do protagonismo étnico. É correto afirmar que os Terena desenvolveram políticas de colaboração com as agências estatais (aceitando relativamente às mudanças sócio-culturais impostas e formas de exercício do poder). Paralelamente a esta colaboração, criaram ações contra certas bases do regime tutelar (especialmente no que tange aos elementos centrais da tutela, como a idéia de incapacidade indígena, as formas de substituição da ação indígena pela ação estatal). Logo, muitos dos atributos empregados para construir as representações do índio (como preguiçoso, incapaz, violento, inconstante) na realidade expressam a oscilação entre políticas de resistência e colaboração. A abordagem da história Terena existente na antropologia brasileira, considera normalmente que o “contato interétnico” teria sido o marco de um processo de mudança social global nas sociedades indígenas. No nosso entendimento a “mudança” não se deu em forma e ritmos homogêneos na economia, cultura e política indígenas, e não podemos pensar a história do grupo como uma “queda” de uma “época tradicional” para um presente de crise, sendo o marco de início dessa queda o estabelecimento das “relações interétnicas”. Segunda Hipótese: Os Terena e alguns outros grupos indígenas da região do Chaco/Pantanal foram forças de apoio essenciais à formação do Estado brasileiro, através da articulação dos modos de organização política “não-estatais” e “estatais” em uma formação social e histórica determinada. 12 Os índios Terena não constituíam um “grupo isolado” até o século XIX e nem possuíam uma “organização de tipo estatal”. Contrariamente ao que a literatura antropológica indica, acreditamos que os Terena participavam de um sistema social indígena específico (com inúmeros outros grupos étnicos e instituições coloniais) e sua organização era de tipo segmentar (ou seja, constituíam uma “sociedade sem estado”). Logo o pressuposto do “isolamento”, que sustenta todas formulações sobre os Terena, precisa ser submetido a uma critica histórica. Em conseqüência disso, a transição de uma “sociedade sem estado” para uma “sociedade estatal” não se apresentou como a substituição simples de um modo de organização política por outro, mas como choque, superposição e transformação de diferentes sistemas sociais em que o Estado conseguiu realizar a articulação de uma lógica centralizadora e uma lógica segmentar, manipulando essa combinação para seus objetivos. Terceira Hipótese: A centralização estatal imposta pelo regime tutelar teve como contrapartida dialética à descentralização faccional, ou seja, a absorção relativa da antiga lógica segmentar do sistema indígena dentro do Estado-Nacional (e como um fator fundamental para seu desenvolvimento local). A imposição aos Terena de uma “organização centralizada” pelo Estado-Nacional levou não a eliminação da organização segmentar, mas sim a sua transformação numa organização segmentarfaccional (Nicholas, 1966). O regime tutelar imposto pelo SPI pautava-se numa lógica de centralização política dentro das aldeias, mas na nossa visão essa centralização longe de eliminar ou suplantar a organização segmentar, fez com que ela se integrasse numa dinâmica faccional. Ou seja, contrariando as interpretações que viram no estabelecimento de uma estrutura de poder centralizada a eliminação das formas segmentares, nossa hipótese é que a centralização leva ao faccionalismo e este a centralização, e ao invés da organização segmentar ou descentralizada se opor e desaparecer com a incorporação dos grupos e territórios indígenas às unidades de um Sistema Político EstatalCapitalista, esta organização segmentar se torna um elemento fundamental para o funcionamento das instituições estatais e conseqüentemente para a reprodução das relações de dominação no nível local da política. Quarta Hipótese: O regime tutelar está passando por uma transformação específica, de uma tutela baseada na “gestão branca” (SPI) para uma tutela baseada na “co-gestão indígena” e essa tende a diluir o aumento do poder indígena expresso pela emergência do protagonismo étnico, através do aprofundamento das formas de dominação horizontal. Durante décadas se estabeleceu um modelo de “gestão indireta” dos territórios indígenas, uma gestão branca pautada na exclusão e subordinação dos índios. O regime tutelar hoje passa por processos de liberalização – de dentro para fora – e transformação – em conseqüência da pressão de fora para dentro, dos índios. E essas transformações têm apontado no sentido da construção da co13 gestão da instituição tutelar pelos índios. Mas essa co- gestão tem como principal efeito reproduzir e aprofundar o padrão histórico de fortalecimento das dominações horizontais induzido pelo Estado. A organização da nossa tese reflete em sua seqüência as preocupações e hipóteses apresentadas acima. A tese está dividida em 7 capítulos: ? o Capítulo 1 é dedicado à definição das linhas político-teóricas de abordagem dos problemas da resistência, dominação, tutela, origem e formação do Estado e mudança social ? o Capítulo 2, realiza a descrição etnográfica e caracterização da atual situação histórica vivenciada pelo grupo indígena, em que apontamos as relações econômicas, políticas e culturais, formas de mobilização política e projetos de futuro dos Terena. ? o Capitulo 3 é dedicado a análise da construção do campo de relações interétnicas no Mato Grosso do Sul e a formação do regime tutelar, bem como do processo histórico de territorialização dos Terena (com a identificação de diferentes situações históricas); ? o Capítulo 4, é dedicado à descrição da atual organização social e cultural do grupo, analisando como o grupo étnico se transformou e reproduziu através deste processo histórico, e como esta historia é parte integrante e estruturante da sua atual cultura, organização social e experiência política. ? o Capítulo 5 focaliza os conflitos faccionais e dramas de sucessão, mostrando como políticas de colaboração e resistência coexistem dentro do contexto das aldeias Terena, e como sua interação e revezamento levaram a mudanças no regime tutelar; ? o Capítulo 6 analisa como as mudanças nos esquemas locais de poder levam a dominações horizontais, de facões indígenas sobre outras, em alianças com o Estado e elites locais, e como tal política se articula com as formas cotidianas e abertas de resistência. ? o Capítulo 7 é dedicado a uma reflexão sobre o conjunto das questões, à guisa de conclusão, tentando apresentar uma sistematização teórica e etnográfica do problema da resistência e da tutela, da relação racismo, capitalismo e Estado-Nacional. A última consideração que gostaríamos de realizar diz respeito aos limites desse trabalho e da pesquisa que lhe deu origem. Entendemos que a nossa etnografia ainda se encontra relativamente inconclusa. É uma pesquisa que terá desdobramentos, sendo esta tese a formulação feita a partir de uma etapa de construção do acesso àquilo que Gerald Berreman (1975) chamou de “região interior” do grupo. Por outro lado, escolhemos um objeto teórico e empírico ajustado a atual etapa da pesquisa, de maneira que os dados produzidos e o tipo de acesso à construção social da realidade do grupo não ficassem aquém das exigências levantadas pela problemática. Procuramos estabelecer um 14 equilíbrio entre o grau de desenvolvimento da etnografia e da produção da análise sociológica. Movimentamos- nos sempre através da tensão entre a etnografia, história e formulação teórica. 15 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia: percepções da mudança social e luta política. “... três escolas do pensamento antropológico, originárias de diferentes tradições intelectuais, tornaram-se exemplares na atualização competente dos paradigmas racionalista, estruturalfuncionalista e culturalista, orientadores respectivamente da École francaise de sociologie, da Britsh School of Social Anthropology e da American Historical School of Anthropology (...) A categoria de ordem implementa a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o espaço ocupado por essas escolas. Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que ela não apenas orienta o discurso das diferentes escolas, a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria a bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta se no centro de sua problemática, largamente explicita em todos os índices ou sumários de quantos ensaios e monografias a antropologia conheceu em sua história” Roberto Cardoso de Oliveira, in Sobre o Pensamento Antropológico. O contexto da segunda metade do século XX foi marcante para a antropologia, já que um dilema – surgido com a ordem pós-colonial – se impôs. Alguns antropólogos colocaram em debate vários dos conceitos e discursos que ajudaram a definir as bases teóricas e institucionais da antropologia, e submeteram a exame critico as grandes correntes da disciplina (como o evolucionismo, o funcionalismo e o estruturalismo). O livro “Anthropology and the colonial encounter”, organizado por Talal Asad, é emblemático deste movimento auto-reflexivo. A plausibilidade do empreendimento antropológico, diz ele, que parecia auto-evidente nos anos 60, deixara de existir (Asad, 1973,p.10). Ao identificar as características principais do debate na antropologia do pós 2º Guerra Mundial, afirma que: “We must begin from the basic fact that the basic reality witch made pre-war social anthropology a feasible and effective enterprise was the power relationship between dominating (European) and dominated (non-european) cultures. We then need to ask ourselves how this relationship has affected the practical pre-conditions of social anthropology; the uses to which its knowledge was put; the theoretical treatment of particular topics; the mode of perceiving and objectifying alien societies; and the anthropologist’s claim of political neutrality”. (Asad, 1973, p.17). Assim delineia-se uma espécie de “programa” para a crítica da antropologia, que passa pela reflexão sobre as condições práticas de desenvolvimento da disciplina, os usos do conhecimento antropológico e por fim a análise das próprias bases epistemológicas. Este programa de (auto) crítica da disciplina passava fundamentalmente pela (re) articulação da política com as teorias e conhecimentos antropológicos. A reflexão crítica dentro da antropologia conduziria a revisão das relações entre conceitos e práticas de poder, ou seja, entre teoria e política. A crítica implicaria uma mudança dos métodos e da própria relação entre pesquisador e pesquisado, ou pelo menos se afirmaria tal necessidade. 16 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Logo, não se poderia processar uma crítica das relações entre antropologia e colonialismo sem uma profunda mudança dos pressupostos teóricos e das próprias técnicas de pesquisa. Assumindo as orientações acima, é necessário realizar uma crítica teórica e epistemológica que permita uma abordagem diferente dos problemas da mudança social, conflito, resistência e dominação. E ao falar de resistência tomamos em mãos fios que conduzem em diferentes direções. Uma dessas direções é a do debate relativamente contemporâneo dentro da antropologia, história e sociologia, sobre as “formas cotidianas de resistência”, aquelas formas localizadas, parciais e relativamente dispersas e fragmentárias. Outra dessas direções leva a um conjunto amplo e heterogêneo de pesquisas e monografias da antropologia política, especialmente africanista, realizadas nos anos 1930-1950, que refletem sobre os tipos de sistema político. Um terceiro fio nos leva ao século XIX, aos debates entre socialistas, anarquistas e comunistas, de um lado, e liberais e conservadores de outro, sobre a luta de classes, a história e o Estado. Iremos tomar aqui estes três fios condutores de reflexão teórica e política, porque no nosso entendimento, somente assim fechamos uma cadeia de questões necessárias à análise das formas de luta e dominação, das relações de poder. Iremos começar pela definição do conceito de “resistência”. 1.1 – Resistência e Dominação: a análise das relações de poder. Uma definição da noção de resistência não poderia deixar de fazer menção à edição The Journal of Peasant Studies, Volume 13, number 2, 1986, em que é publicado o texto de James Scott, “Everyday forms of Peasant Resistance”, e uma série de artigos sobre “formas cotidianas de resistência”. Uma análise desse volume e dos artigos aí contidos é fundamental na busca de definições teóricas. É preciso indicar que o volume é dedicado ao estudo do campesinato nos paises do Sudeste Asiático, que na década anterior havia sido abalado pela Guerra do Vietnã, pela luta armada no campo e pela descolonização. Em primeiro lugar devemos entender as bases que fundamentaram o surgimento dos estudos sobre resistência. Os estudos da “resistência cotidiana” surgiram a partir da insatisfação com o estudo das revoluções/insurreições de larga escala. Scott afirma que fora destes contextos, o campesinato não figurava nas pesquisas como ator histórico Assim, somente nos momentos explosivos, de “situações revolucionárias” é que o campesinato figura enquanto sujeito capaz politicamente. Por outro lado, o estudo daquilo que seria chamado formas cotidianas de resistência surge nos estudos da escravidão, em que as revoltas abertas eram raras (Scott, 1986, p.5). Desta maneira, a resistência cotidiana, aparece no bojo da preocupação do estudo da ação política do campesinato nos períodos que antecedem ou sucedem as situações revolucionárias e as explosões de revoltas. As formas cotidianas de resistência são “a prosaica mas constante a luta de 17 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia classes e requerem pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento, elas freqüentemente representam formas de auto-assistência, evitam qualquer confrontação simbólica com as autoridades ou as normas das elites” (Scott, op.cit, p.6) Temos assim uma primeira e geral definição do que consistem as formas cotidianas de resistência. A “resistência cotidiana” é uma forma de luta de classes, que exige pouca ou nenhuma coordenação, e que se viabiliza por uma série de “técnicas”: sabotagem, dissimulação, furto e etc. O autor sistematiza uma definição da resistência em geral, que a diferencia das formas cotidianas de resistência. “Lower class resistance among peasants is any act (s) by member (s) of the class that is (are) intended either to mitigate or to deny claims (e.g. rents, taxes, deference) made on that class by superordinate classes (e.g. landlords, the state, owners of machinery, moneylenders) or to advance its own claims (e.g work, land, charity, respect) vis-à-vis these superordinate) classes.” (Scott, op.cit, p. 22) Desta maneira, a resistência abrange qualquer ação de indivíduos ou grupos que se encontram numa mesma condição de classe, que vise barrar as demandas dos grupos ou classe dominante, ou realizar demandas que entrem em choque com aqueles grupos dominantes. É como Andrew Turton notou, que “o conteúdo do conceito expressa uma bidimensionalidade: ao mesmo tempo uma oposição bem sucedida, ou tentar opor com vários graus de sucesso. (...) Resistência, como conceito, compartilha com conceitos relacionados (insubordinação, protesto, oposição, luta, rebelião, revolução) um significado básico de negação”. (Turton, 1986, p. 38) A resistência, em sua essência é relacional supõe oposição a algo que lhe dá sentido. Como o autor formula; “As formas cotidianas de resistência são desse modo em larga medida respostas às formas cotidianas de opressão e dominação, e estas, também precisam ser examinadas”. (Turton, op.cit, p. 37) Por isso, ele afirma que “de um ponto de vista teórico e metodológico, as formas de resistência como tais tem menor interesse que uma análise da relação social particular e do contexto em que elas surgem ” (Turton, op.cit p.41). Na realidade, na definição de Scott, a grande tarefa é fazer a uma diferenciação entre duas grandes modalidades de resistência: a resistência e as formas cotidianas de resistência 3 . Enquanto o primeiro conceito se aplica aos movimentos sociais, as rebeliões e formas de luta política coletiva, 3 Scott identifica uma postura em alguns estudos sobre a escravidão, dos autores Genovese e Mullin, que tentam criar uma oposição entre a “resistência real” e as formas de ação praticadas pelos escravos, que não poderiam ser consideradas enquanto tais, como resistência, porque não visariam transformar o sistema de dominação. Desta maneira, o conceito resistência teria algumas características: a) seria organizada, sistemática e cooperativa; b) seria baseada na abnegação; c) teria conseqüências revolucionárias; d) incorporariam idéias ou intenções que negam as bases da dominação em si. Por oposição, as formas de ação dos escravos seriam a) individuais, localizadas e descoordenadas, b) baseadas no auto-interesse; c) não teriam efeitos revolucionários sobre o sistema de dominação; d) não faria a crítica deste sistema em si. (Scott, op.cit, p. 23-24). Scott faz a crítica desse pressupostos, mostrando que na realidade ações individuais e sem nenhuma coordenação poderia ter conseqüências revolucionárias, como o caso das “deserções durante a revolução russa”; a partir do mesmo exemplo, já que não existiu contradição entre o interesse individual do soldado em sobreviver e o efeito político revolucionário, o interesse em debilitar o Exército enquanto instituição repressiva. 18 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia que tradicionalmente prevalecem nos estudos, o segundo abrangia uma ampla variedade de fatos que estavam sendo teoricamente descartados. (Scott, op.cit, p.24). As “formas cotidianas de resistência” se apresentam normalmente como informais, individuais e anônimas, e frequentemente se expressam em certas técnicas (como o furto, a sabotagem, o boicote, a sabotagem, a agressão física, a dissimulação). O que permite afirmar a existência de formas cotidianas de resistência é a emergência de padrões de ação (Scott, op.cit, p.26) A resistência é formal, coletiva e pública e se expressa em técnicas como as ocupações de terras e manifestações em vias públicas. Mas é importante observar que são várias as combinações possíveis entre ações formais e informais, coletivas e individuais, públicas e anônimas, de maneira que é possível haver ação coletiva anônima e ação individual pública, por exemplo. (Scott, op.cit, p. p.28-29) O problema do contexto global e da conjuntura histórica especifica é fundamental para o estudo da resistência, já que esta é determinada tanto pelos níveis de repressão, quanto pelas condições econômico-sociais. A resistência, enquanto ação negativa de oposição, e afirmativa de reivindicação e realização de demandas, é caracterizada por um elemento geral: “O objetivo da resistência camponesa não é diretamente superar ou transformar um sistema de dominação porém ao contrário é sobreviver nele – hoje, esta semana, esta estação ...”. (Scott, op.cit, p. 30) Mas é necessário pensar a resistência sempre em relação às estruturas de poder e dominação nas quais elas surgem. Para fazer isso adequadamente nós precisamos dar um relato das estruturas e processos de poder, e não apenas das formas institucionais, porém também seu exercício nas múltiplas situações e meios locais informais, o que Foucault denomina suas formas capilares, técnicas polimorfas de subjugação, ou seja, a microfísica do poder. Ao mesmo tempo nós "necessitaríamos relacionar as concentrações especificas de poder, sejam formalmente institucionalizadas ou não, ao Estado, ao bloco no poder, aos grupos dominantes e etc. Em outras palavras, não é possível um adequado estudo das formas de resistênc ia sem um anterior e simultâneo estudo das formas de dominação, não tendo sentido apreender as formas e estratégias de resistência apenas como “realidades em si”. (Turton, 1986, p. 39) 1.2 - Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”. Uma questão fundamental que surge nas reflexões sobre o estudo da resistência tal como delineada por Scott, é o problema da definição das fronteiras entre o que pode ser considerado ou não como resistência. Esta preocupação se expressa tanto pela consideração crítica em distinguir que o exercício de certas técnicas de luta política contra membros da classe “baixa” de uma 19 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia sociedade, que não podem ser considerados como “resistência”, quanto pela afirmação conclusiva de seu artigo: “One of the key questions that must be asked about any system of domination is the extent to which it succeeds in reducing subordinate classes to purely ´beggar thy neighbour´ strategies for survival. Certain combination of atomization, terror, repression, and pressing material needs can indeed achieve the ultimate dream of domination; to have the dominate exploited each other.” (Scott, op.cit, p. 30) Aquilo que Scott chama de “as armas do fraco” (a dissimulação, a desobediência, o furto, a sabotagem) podem ser empregadas contra diferentes sujeitos, tais “técnicas de luta” podem ser empregadas para a resistência e para a dominação (Scott e Turton falam que tais formas de resistência não são monopólio dos grupos dominados), ou seja, são técnicas gerais da luta política. Na definição da resistência, o fundamental é que tais técnicas são empregadas contra os grupos dominantes, e por isso é possível falar de uma resistência de classe. Na realidade existe uma terceira “variável prática” entre a resistência e a dominação: é a colaboração, que poderia ser considerada num nível geral como uma forma alternativa e antagônica a da luta de classes, uma forma que concilia e sintetiza interesses, gera mediações, multiplica contradições. Nas suas reflexões, Christine P.White, analisando o caso do Vietnã, mostra como os mesmos camponeses que opunham resistência aos colonialismos, podiam servir de mão-de-obra em empreendimentos coloniais (White, 1986,p.55). O artigo de White ainda chama a atenção para um fator fundamental: a dinâmica da luta política, a mudança na correlação de forças provocada pela própria “resistência”, faz com que a “colaboração” se torne uma demanda do Estado, do Governo ou das elites dominantes. Como no trecho abaixo: “If the peasant majority is held to play a major role in the making of history, then established rule, however oppressive and exploitative, depends in large measure, upon their collaboration or compliance with the system. Therefore we must add a inventory of everyday forms of peasant collaboration to bala nce our list of everyday forms of peasant resistance: both exist, both are important.” (White, 1986,op.cit, 55-56) A emergência e a ascensão das formas de resistência, faz com que sejam valorizadas simultaneamente as formas de “colaboração”. É preciso buscar uma definição conceitual do que estamos chamando de “colaboração de classe” e sua aplicabilidade a cada situação concreta. Podemos falar de colaboração de classe, como sendo: 1) Qualquer ação por membros de uma classe dominada que, visando evitar o confronto e a luta, cria uma convergência de objetivos e demandas com os membros da classe dominante (incluindo os aparelhos e instituições estatais de poder) e que tem como efeito o compartilhamento de interesses com estas classes superiores ou alguma de suas frações ou grupos 20 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia concretos. 2) Ou inversamente, qualquer ação de membros da classe dominante que siga a mesma mecânica. Desta maneira, a colaboração se coloca como uma forma de compartilhar interesses e expectativas, de criar identidades entre os grupos sociais dominados e aqueles que os dominam, seja através de idéias, seja através de empreendimentos comuns, seja pela delegação de tarefas ou formas de reciprocidade. Da mesma maneira que a resistência se define em relação à dominação, a colaboração só se define em relação à dominação e a resistência. As suas formas concretas são determinadas pela dinâmica dominação/resistência e sua correlação de forças. As “técnicas” que expressam esta colaboração podem ser múltiplas, incluindo as mesmas técnicas ge rais da luta política sinalizadas acima. Além disso, poderíamos seguindo uma mesma linha de raciocínio, distinguir entre a colaboração firmada entre chefes e lideres políticos, associações formais ou organizações coletivas (por meios de tratados, acordos formalmente estabelecidos) das formas cotidianas de colaboração (submissão voluntária, adesão às ordens, delação, oferta de trabalho, etc). A identificação da tríade dominação-resistência-colaboração, e a definição conceitual do que é resistência e o que é colaboração, exige que alcancemos uma definição igualmente precisa do conceito de dominação, pois somente assim estaremos alcançando um quadro mais amplo dos mecanismos e ferramentas necessários à análise das relações de poder. Neste sentido, a obra de Michel Foucault apresenta bases importantes. Alguns dos seus artigos refletem sobre as bases metodológicas e teóricas do estudo das relações de poder, especialmente “Soberania e Disciplina” e “Governamentalidade”. Aqui Foucault traça algumas orientações específicas para o estudo das relações de poder e da dominação. A sua preocupação principal é fugir a um “modelo jurídico” (que sublimava a dominação, ao criar a soberania, a legitimidade das relações de comando-obediência): “Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social..”. (Foucault, 2004, p. 100) Vemos aqui um procedimento teoricamente decisivo e controverso: a dominação deixa de ser um fato exclusivamente coletivo (de grupos em relação outros grupos), centralizado (de um centro de poder em relação aos múltiplos pontos da sociedade) e vertical (de grupos dominantes para os dominados). A definição de dominação de Foucault abrange as formas individualizadas e localizadas de dominação, descentralizadas e digamos horizontais (entre os “súditos”, ou seja, entre aqueles que estão numa mesma posição ou linha de classe). 21 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Tomando esta definição geral como ponto de partida, Foucault apresenta 5 precauções metodológicas para a análise das relações de poder: 1ª) captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento; 2ª) “não perguntar porque alguns querem dominar, o que procuram e qual é sua estratégia global, mas como funcionam as coisas ao nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos; 3ª) não tomar o poder como um fenômeno de dominação ma ciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está na s mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de transmissão. 4ª) “Deve-se fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global”. “Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder atuam nos níveis mais baixos; como estes procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo tempo, relativamente autônomas e infinitesimais”; 5ª) “Tudo isto significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas” (Foucault, 2004, p. 100-104). Estas 5 orientações têm um objetivo estratégico: evitar a influência do “pré-concebido” no estudo das relações de poder e dominação (que pode aparecer como a visão jurídico- formalista que sublima a dominação; ou ainda a análise que ele denomina descendente (que parte do centro do poder para as extremidades moleculares), como as formas que fazem derivar todas as formas de dominação locais de um centro ou dos interesses de uma classe dominante). Além deste objetivo, de evitar o pré-concebido, existe também um esforço em evitar a análise da dominação pelo discurso de quem domina, o que leva a Foucault a afirmar a centralidade das práticas locais/localizadas. Ou 22 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia seja, busca-se a critica da análise “idealista” da dominação, que parte das idéias (discursos, metas, representações) que as instituições que exercem a dominação produzem ou de teorias existentes. Entretanto, fica o risco de ao promover estes deslocamentos, criar uma visão “localista” e pulverizada dos processos de dominação e do ponto de vista metodológico, criar outras formas de pré-concebido. Uma forma de viés empirista, que só valorizaria as experiências em si; outra forma, de viés localista, que tentando fugir a determinação estrita do local pelo central, cria uma “autonomia” total dos campos específicos que não se verifica no plano dos objetos reais e concretos. Neste sentido, para evitar estas distorções metodológicas, é preciso fazer algumas ênfases específicas sobre as orientações propostas. Foucault não nega a existência de processos gerais de dominação. Na realidade a “análise ascendente do poder” – que procede “de baixo para cima”, obriga a remontar toda a estrutura, o contexto global da dominação, só que num sentido inverso. E além disso, as “formas locais de poder e dominação” (como verificadas nas instituições psiquiátricas, no controle da sexualidade e etc) podem ser “anexadas, colonizadas pelas formas gerais e globais” – apesar de não serem meramente derivadas ou deduzidas delas. Ou seja, não se trata de negar a relação entre as formas particulares e a estrutura geral de dominação, mas de especificar qual o tipo de relação que podem manter entre si – relações estas que variam no tempo e espaço. Uma outra dimensão está relacionada à interação entre o que estamos chamando de dominação vertical/dominações horizontais. A dominação vertical seria aquela exercida entre grupos e classes derivada de uma clivagem global; as dominações horizontais, múltiplas e polimorfas, que se engendram dentro da mesma linha ou condição de classe, nas relações interindividuais ou diádicas dentro de grupos e instituições localizadas. Neste sentido, podemos falar que a “circularidade do poder” e o “exercício em cadeia” do poder e da dominação – dominação central que se combina e exerce através de dominações locais – implicam na combinação das formas horizontais com as formas verticais de dominação. Assim temos um quadro complexo: quando afirmamos que todos estão em posição de “exercício do poder” não significa que todos estão em condições de exercício do mesmo tipo de poder (tanto em termos de tecnologias, quanto de intensidade e objeto de incidência), assim, existe uma estratificação da capacidade política, do poder. Duas possibilidades teóricas se abrem, e é preciso determiná- las porque elas ocuparão um importante lugar em nossa análise: a idéia dos “sem-poder” (powerless) deixa de ter substância; a idéia de circularidade do exercício do poder associada à noção de colaboração de classe e as formas cotidianas de colaboração, no sentido que os poderes (sejam os globais e gerais do Estado e da Burguesia, sejam os locais e específicos do médico do pedagogo) não são auto-suficientes; eles demandam uma cadeia de comando, formas de compartilhar decisões, criar consenso, enfim, 23 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia engendrar colaborações. São as dominações horizontais que existindo autonomamente – e exatamente por isso, por não exigirem qualquer plano global que as tornariam inviáveis – aumentam a eficácia da dominação vertical. A multiplicidade das formas de dominação horizontais não entra em contradição com a unidade da dominação vertical de uma classe sobre outra; na realidade é seu complemento. Podemos dissociar o conceito de dominação do conceito de poder; a relação de poder não se resume à dominação, mas sim a luta, ao confronto de forças. Em toda a cadeia de dominação e de relações de poder, não existe nenhuma posição completamente desprovida de poder; em termos gerais podemos dizer que o poder do “dominado” é o de resistir e revoltar-se; o poder do “dominador” é o de impor sua autoridade e/ou extrair colaboração. A relação de poder oscila assim entre resistência, dominação e colaboração, entre formas convenciona is e cotidianas ou moleculares/capilares das três, o que expressa a sua circularidade. Desta maneira, quando analisamos as relações de poder, estamos na realidade analisando a luta; a luta pelo poder, a luta por recursos materiais, a luta pelo saber, enfim, a luta. Resistência, dominação, e colaboração são variáveis dentro da luta, que se torna o eixo organizador em função do qual as três formas anteriores tem de ser compreendidas. Os estudos de resistência levantam um problema importante quando colocam a seguinte questão: a resistência se dá contra efeitos da dominação ou contra a dominação em si? Responder esta questão significa identificar os próprios limites dos efeitos da luta e da resistência: ela é capaz ou não de provocar a mudança social, ou se inscrevem dentro dos limites da reprodução social. Esta questão permite uma articulação com o problema da dominação exercida por “dominados sobre dominados”, e também à problemática levantada pela antropologia política africanista sobre a distinção entre mudanças na distribuição do poder dentro de um sistema e a mudança no próprio sistema de poder. Todas essas abordagens remetem a uma questão mais geral: qual é o papel do conflito e da luta, em sentido geral, e da luta de classes em particular, dentro das sociedades? Este tema levantado pelos estudos de resistência e que remete a um problema geral – da mudança e reprodução das estruturas de dominação e dos sistemas sociais - já tinha sido postulado então de uma outra maneira na antropologia e nas ciências sociais, de maneira que é possível fazer um dialogo entre as diferentes abordagens. É a essa tarefa que nos dedicaremos agora. 1.3 - A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem. A questão que poderíamos chamar de “mudança social” é um tema recorrente dentro da antropologia. Nos estudos de Lewis Morgan sobre a sociedade primitiva, a noção de “evolução” funciona como operador descritivo de um processo de mudança gradual e cumulativo, medido 24 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia especialmente pelo grau desenvolvimento técnico e econômico que se expressaria na organização social e política. Décadas depois, autores como Radcliffe-Brown, Gluckman, Evans-Pritchard abordariam uma problemática similar nos estudos de antropologia política dos grupos africanos. A antropologia política foi definida pelos antropólogos como uma “sub-disciplina da antropologia social” ou como “projeto temático- investigativo” (ver Balandier, 1969, e Vincent, 1997, Oliveira Filho, 1986). Um conjunto de estudos dedicados à política levantou uma série de questões teóricas, criaram conceitos, tipologias e estabeleceram um campo de referências teóricoepistemológicas. (Vincent, op.cit,p.428). No período inicial, o evolucionismo seria a principal teoria social a interpretar o fenômeno da política e da mudança. Os primeiros estudos sobre a “organização política” foram realizados entre os povos nativo-americanos pelo Etnhology Bureau of the Smithonian Institution em 1879. Herbert Spencer e Lewis Morgan forneceram a estrutura conceitual para estes estudos. Os estudos de Morgan fixariam as bases do estudo da organização política que seguiu em parte as idéias de Henry Maine. Estes estudos criariam uma distinção básica, que seria legada posteriormente para a antropologia política, entre sociedades baseadas no parentesco e sociedades baseadas no território (ver Oliveira Filho, 1988, Vincent, 1997, p. 428; Balandier, 1969, p.16-18, e Saffo, 1986 p.45). Desta maneira, as primeiras formulações sobre as instituições e relações políticas na antropologia estavam profundamente imbricadas nas categorias evolucionistas e sua estrutura cognitiva, na distinção primitivo/civilizado, que marcaria a especificidade do “objeto” e da própria disciplina. A terminologia evolucionista foi transformada e abandonada em favor de outras, pelas novas correntes teóricas (neo-evolucionista, estrutural- funcionalista, estruturalista). Tais como pelos norte-americanos o uso da tricotomia “sociedade igualitárias - hierarquizadas - estratificadas”, ou entre os franceses e ingleses pela terminologia “de sociedades primitivas (ou simples ou de pequena-escala) e avançadas ou complexas”. (Vincent, 1997, p 429). A grande ruptura teórica, a definição e a proposta de uma antropologia política se daria nos anos 1930, principalmente por meio dos estudos dos africanistas, da geração de antropólogos imediatamente posterior a Malinowski e Radcliffe-Brown. A obra de referência e fundação da antropologia política é “African Political Systems”, de E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes. Com ela é que surge a distinção dicotômica, agora entre sociedades com estado (states) e sociedades sem estado (stateless). Esta distinção seria adotada, empregada, questionada e complexificada ao longo do tempo (ver Saffo,1986). Deslocamentos teóricos viriam com os estudos de Edmund Leach “Sistemas Políticos da Alta Birmânia” e de Max Gluckman, que enfatizariam o conflito e a dinâmica de mudança social. Nos anos 1960, este impulso seria aprofundado pelos antropólogos da chamada “teoria da ação” e do processualismo” que dariam cada vez maior atenção ao estudo do 25 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia conflito e da competição política.(ver Balandier, 1969, Palmeira & Goldman, 1996 e Vincent, 1978). Desta maneira a antropologia política se constitui na tensão entre um impulso tipológicoclassificatório e uma abordagem dinâmica-conflitiva, em que a ênfase é dada ao estudo de processos políticos, conflitos e transformações. Temas/objetos como “a origem do Estado”, a “transição de sistemas políticos sem-estado para sistemas estatais”, ou de outro lado, mudança social, rebelião, clientelismo, faccionalismo, se colocam assim como domínios constitutivos da antropologia política nas suas diferentes fases (ver Vincent, op.cit). O estudo da organização política entre os povos colonizados se desenvolveu num primeiro momento dentro de uma teoria geral da mudança da sociedade (o evolucionismo). Mas quando esta problemática é retomada no African Political Systems (1940), ela tem um significado diferente. Em primeiro lugar, não se supõe mais a base técnica e produtiva como critério de avaliação principal da mudança nas sociedades. Em segundo lugar, a “teleologia” e teoria da história que tomava a noção de “evolução” (como acúmulo de progressos) como centro também desaparece. O texto de introdução dos “Sistemas Políticos Africanos” pode deixar transparecer uma visão relativamente equivocada do lugar da mudança social dentro daquelas pesquisas, como se ela não fosse considerada: “Several contributors have described the changes in the political systems they investigated which have taken place as a result of European conquest and rule. If we do not emphasize this side of the subject it is because all contributors are more interested in anthropological than in administrative problems.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.1) No desenvolvimento da introdução dois subitens marcam a preocupação com o problema da mudança social, o “X O Balanceamento de Forças no Sistema Político” e o “XII Diferenças nas Respostas ao Governo Europeu”. A questão colocada é que os Sistemas Políticos Africanos estão em “equilíbrio”, não em “estática” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.11-13). No texto de prefácio, de Radcliffe-Brown, vemos que há uma formulação teórica muito clara sobre a temática da mudança: “Social structure is not to be thought of as static, but as condition of equilibrium that only persists by being continually renewed, like the chemical-physiological homeostasis of a living organism. Events occur which disturb the equilibrium in some way, and a social reaction follows which tends to restore it.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii). Logo não se trata de supor que a mudança social é recusada enquanto problema, na realidade ela é definida e inserida numa malha de pressupostos teóricos bem determinados, da qual a principal característica é a tendência para a “ordem”, entendida como a eliminação ou resolução dos conflitos. A “mudança” atinge somente aspectos parciais (“mudam os reis, mas mantém-se a monarquia”) e ela garante a restauração da ordem. 26 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Existiria também um outro enquadramento da mudança; sua transcrição numa certa relação com as instituições do governo colonial: “In the societies of Group A, the paramount ruler is prohibited, by the constraint of the colonial government, from using the organized force at his command on his own responsibility. This has everywhere resulted in diminishing his authority and generally in increasing the power and independence of his subordinates. He no longer rules in his own right, but as the agent of the colonial government. (…) In the societies of the Group B, European rule has had the opposite effect. The colonial government cannot administer throughout aggregates of individuals composing political segments, but has to employ administrative agents. For this purpose it makes use of any persons who can be assimilated to the stereotyped notion of an African chief. (…) This tends to lead to the whole system of mutually balancing segments collapsing and a bureaucratic European system taken its place. An organization more like that of a centralized states come into being.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p. 15-16 O impacto do Governo e Administração Colonial levaria também ao problema da mudança social: só que o efeito seria o inverso à situação encontrada nos sistemas políticos antes da conquista: no caso das sociedades estatais existiria uma tendência à relativa fragmentação das unidades anteriormente centralizadas (pela violência imposta pelo colonizador e pelo acirramento das contradições internas); nas sociedades sem-estado existiria uma centralização imposta pelo colonialismo. Assim, a mudança social provocada pelo colonialismo levaria a transformação (e extinção) dos sistemas políticos africanos (aqui é posto o problema da passagem do chamado “Estado-Primitivo” ao “Estado Moderno”, e das Sociedades sem Estado as “Sociedades-Estatais”). Desta maneira chegamos ao cerne de uma concepção da mudança social: ou a mudança é apenas uma etapa na restauração da ordem e reprodução social ou ela é um estágio num processo inexorável de desaparecimento das sociedades colonizadas. Então podemos afirmar que a mudança social é provocada por dois tipos de conflito: nas sociedades estatais há um conflito entre “poder central” e “poderes regionais”, e nas sociedades sem-estado entre os diferentes “segmentos territoriais”, linhagens e clãs, que tendo interesses iguais, tendem para o conflito e a disputa. Dentro do conjunto das proposições levantadas pelos organizadores, o que se delineia é um modo de percepção/concepção, de “domesticação” da mudança social, organizado a partir de certos pontos cardinais que determinam simultaneamente o que é a mudança, seus tipos e seu lugar – o que expressa senão numa teoria, pelo menos uma concepção geral acerca da sociedade. Para entender como operam estes pontos de referência da analítica da mudança social, é preciso entender o conjunto da formulação sobre os sistemas políticos africanos. Assim, não se trata de afirmar que os estudos contidos no livro “Sistemas Políticos Africanos” carecem de uma visão da mudança e dinâmica, mas sim de fazer a crítica das bases cognitivas, epistemológicas da concepção de mudança ali engendrada. Na realidade é preciso perceber a sutil, mas profunda diferença entre as duas metáforas da “estática” e do “equilíbrio”; os 27 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia estudos fundadores da antropologia política não supunham que as sociedades não mudassem (ou seja, que fossem estáticas), mas eles só consideravam que as mudanças tendiam a uma restauração da ordem, o que supõe mudanças contínuas que seguiam sempre na mesma direção. O que é cognitivamente recusado é a noção de luta, conflito, desordem ou anarquia. Esta preocupação com a “ordem” se manifesta em diferentes momentos, tanto no texto de Fortes & Evans-Pritchard,quanto de Radcliffe-Brown. “In studying political organization, we have to deal with the maintenance or establishment of social order, within a territorial framework, by the organized exercise of coercive authority throughout the use, or the possibility of use, of the physical force. In well-organized states, the police and army are the instruments by which coercion is exercised. Within the state, the social order, whatever it may be, is maintained by punishment of these who offend against the laws and by the armed suppression of revolt.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii). No texto da introdução vemos também a preocupação com a noção de ordem: “Upon the regularity and order with wich this whole body of interwoven norms is maintained depends the stability and continuity of the structure of an African Society.” (Fortes & Evans-Pritchard, op.cit, p. 20). Desta maneira, os temas e problemas colocados irão se articular sempre com este núcleo gerador: crime, conflito, normas, remetem sempre a noção e uma concepção de “ordem”. A ordem é ao mesmo tempo o ponto de partida e de chegada, o valor máximo que organiza e o “objetivo” último da sociedade e da ciência. Estas são bases cognitivas que convergem com os múltiplos discursos da dominação. Foi com muita propriedade que Roberto Cardoso de Oliveira apontou em seu texto “A Categoria de (Des)ordem e a pós-modernidade da antropologia” o peso da categoria ordem, enquanto estrutura cognitiva, na sociologia e antropologia. Uma análise dos principais conceitos dessas disciplinas mostra como estão marcados pela noção de ordem. Se existia uma “teleologia da evolução” nos primeiros estudos da organização política, podemos dizer que existiu também uma “teleologia da ordem”. Evolução e Ordem foram as principais formas de codificação da mudança social. A preocupação contínua com a “restauração da ordem” e da soberania da lei se impôs e não há um limite claro entre a descrição desta tendência e a afirmação da necessidade dela. Encontrar a “ordem” passou a ser o objetivo da descrição analítica. Existe, digamos, a emergência e (convergência) de uma temática “positivista” nos estudos da antropologia política (não no sentido que eles derivem do positivismo enquanto proposta cientifica, mas no sentido que as afirmações teóricas principais colocam como centro o problema da restauração da ordem). Essa temática positivista da ordem foi incorporada à sociologia através das formulações de Durkheim, fundamentadas em Comte, e depois assimiladas em certo sentido tanto pela escola estruturalista quanto estrutural- funcionalista. Isto é conseqüência menos do “positivismo” enquanto doutrina do que das posições de classe, profissionais e institucionais dos 28 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia antropólogos (e do lugar da antropologia enquanto saber e disciplina) no mundo colonial (as bases materiais e posicionamentos de classe que engendraram o positivismo enquanto forma de crítica da “desordem” eram similares aos da antropologia; ambas procuravam falar ou falavam de dentro do Estado-Nacional). Esta teleologia da ordem (que leva a idéia de que o principal traço da sociedade era controlar o crime e o conflito) condena a luta de classes e o conflito a uma “condição patológica”, no sentido que a sociedade tende sempre a corrigi- lo. Obviamente, não é possível realizar uma análise das relações de poder nos termos definidos anteriormente sem uma profunda crítica (política e epistemológica) desta teleologia da ordem, que implica a recusa da luta de classes ou do conflito em geral (e das múltiplas formas que ele pode assumir) na análise cientifica. E como indicado por Roberto Cardoso, esta teleologia ou paradigma da ordem, perpassa tanto as temáticas quanto os próprios conceitos centrais da antropologia. Podemos falar que um exame crítico de dois dos principais conceitos da disciplina, sociedade e cultura, é necessário exatamente para compreender como a idéia de ordem determina suas definições, e como por outro lado, é preciso reformular o enquadramento teórico dos conceitos para inseri- los num outro paradigma. 1.4 – A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura” Para entender as posições teóricas assumidas nos estudos de antropologia política é preciso fazer um estudo genealógico dos próprios conceitos e temas estruturantes e geradores da antropologia enquanto saber científico. É impossível não falar, mesmo que rapidamente da história da antropologia e das diferentes teorias que se construíram a partir de diferentes objetos. Nesse sentido as próprias “formas científicas de classificação” dos saberes e disciplinas podem se constituir num ponto de partida: “...Meyer Fortes distinguiu duas tradições na antropologia sóciocultural: uma sociológica que ele associou com Maine, Morgan, MCLennan e seus descendentes estruturais funcionalistas; uma cultural que ele associou com Tyler, Frazer e a escola Boasiana”. (de Zengotita, 1984, p.10). Dessa maneira, os conceitos de “sociedade e cultura” foram fundamentais para agregar, mesmo a posteriori, um conjunto heterogêneo de teses, objetos e métodos oriundos de diferentes teorias (evolucionismo, difusionismo, estrutural- funcionalismo, estruturalismo e processualismo) e definir em termos mais amplos, identidades e linhas de descendência teóricas e metodológicas dentro da antropologia e das ciências sociais. De uma certa maneira, estas duas grandes “formas da antropologia” – social e cultural – se construíram relativamente por oposições pontuais e táticas, tanto numa ordem conceitual geral quanto na explicação de processos específicos. 29 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Os conceitos “sociedade e cultura” normalmente funcionavam por realizar a fusão de “palavras e coisas”, no sentido que tendiam a ser ao mesmo tempo conceitos do pensamento científico e realidades objetivas que eram tomadas como objetos de estudo. As críticas recíprocas dos conceitos de “cultura” e de “sociedade” na realidade acabam por provocar um efeito de deslocamento importante: desloca-se a atenção dos conjuntos teóricos mais amplos em que tais conceitos se enquadram e dos contextos de formação dessas categorias (ou pelo menos do significado que se consolidaria dentro das ciências sociais). E estes contextos explicitam alguns pontos de convergência importantes. É esta convergência epistemológica e política que pretendemos elucidar. Com relação ao conceito de sociedade, trata-se menos de determinar a sua origem que a gênese de seu sentido e de sua centralidade dentro de uma certa linha do pensamento cientifico. A explicação que passou a recorrer à noção de sociedade, fazia parte de um movimento de racionalização que procurava opor-se as explicações religiosas e biológicas, procurando assim razões sociais. Podemos indicar aqui o livro “A Sociedade Antiga” de Lewis Henry Morgan como uma matriz importante para essa reflexão4. O conceito de sociedade – e indissociavelmente ligado a ele, o de evolução (e/ou progresso)estrutura uma das linhas de construção da análise antropológica e sociológica. O conceito de evolução foi para a antropologia no século XIX um centro de gravidade sobre o qual tudo mais se apoiava, teoria e métodos de pesquisa. Sabe-se que este momento da segunda metade do século XIX é crucial para a definição da própria antropologia enquanto ciência (Stocking Jr, 1984 e 1991). Com uma análise do conteúdo de certos elementos do pensamento evolucionista de Morgan, poderemos delimitar alguns problemas importantes. No prefácio do primeiro volume do livro “A Sociedade Antiga”, o autor indica três categorias de fatos que marcariam o “desenvolvimento ou o progresso” das sociedades pelos três diferentes períodos étnicos (selvageria, barbárie e civilização): o Estado, a Família Monogâmica e a Propriedade. O seu livro inteiro descreve como as inovações tecnológicas e as instituições se desenvolvem paralelamente através dos diferentes períodos étnicos, sendo que: “A idéia de propriedade, finalmente, formou-se lentamente no espírito humano, mantendo-se embrionária e pouco desenvolvida durante períodos extremamente longos. Surgiu no período do estado selvagem, mas foi necessária toda a experiência adquirida durante certo período e no seguinte, o da barbárie, para que o germe desta idéia se desenvolvesse e o espírito humano estivesse apto a submeter-se a sua influencia e ao seu domínio. A sua predominância como sentimento marca o início da civilização”. (Morgan, op.cit,p. 16). 4 Sem esquecer também os estudos de Augusto Comte dos anos 1820 e Emile Durkheim dos anos 1890, que tomariam o “social e a sociedade” como eixo de estruturação de uma prática e teoria científica. Sobre o positivismo falaremos mais adiante. 30 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia A noção de evolução encerrava e sintetizava ao mesmo tempo uma espécie de auto- imagem positivada e um conjunto de atributos que afirmavam a superioridade de determinadas “sociedades” sobre outras (superioridade de conhecimento, tecnologia, organização). Logo, o conceito de sociedade aparece como parte de um processo histórico geral que tendia a diferenciar estas sociedades; também criava um esquema classificatório “hierarquizante” que subordinava todos os povos as formas superiores de civilização. É como arremata Kuper: “Primitive society was organic whole. It then split into two or more identical building blocks. (This idea went back to Spencer). The components units of society were exogamous, corporate descent groups. By 1880s it was generally agreed (despite Maine’s continued dissent) that these groups were ´matriarchal´, tracing descent in the female line. (...) These social forms, no longer extant, were preserved in the languages (especially in kinship terminologies), and in the ceremonies of contemporary ´primitive peoples´. It is striking how much agreement there soon was even on matters of detail. By the last decade of the nineteenth century, almost all the new specialists would have agreed with the following propositions. The most primitive societies were ordered on the basis of kinship relations Their kinship organization was based on descent groups There descents groups were exogamous and were related by a series of marriage exchanges Like extinct species, these primeval institutions were preserved in fossil form, ceremonies and kinship terminologies bearing witness to long-dead practices. Finally, with the development of the private property, the descent groups withered away and a territorial state emerged. This was the most revolutionary change in the history of humanity. It marked the transition from ancient to modern society. (Kuper, 1988, p.6-7). Logo, as idéias de Estado e Propriedade Privada, com destaque para esta última, seriam os indicadores principais da civilização entendida como evolução ou progresso das sociedades humanas 5 . Poderíamos citar ainda o exemplo de Henry Maine, “Ancient Law”, livro que trata da evolução noções de contrato, herança e propriedade na sociedade antiga, tomando por base o Império Romano, e que é situado também dentro da história da antropologia 6 . Na realidade, o conceito de “sociedade” tal como incorporado na análise evolucionista, se confunde com o de “sociedade civil”, ou seja, “sociedade burguesa”, que é erigida em modelo e última forma de sociedade (modelo a partir do qual as demais sociedades denominadas “primitivas” são concebidas e hierarquizadas). O nascimento da “sociedade civil”, indicado por Morgan como marco da “civilização” permite a formulação de um conceito de sociedade que em termos gerais tenta reproduzir positiva ou negativamente todos os traços da sociedade civil ou burguesa (positivamente no sentido de que estabelece como parâmetros certos traços e procura encontrá- los 5 As categorias evolução e progresso aparecem de forma eventual dentro do prefácio, mas designando sempre o movimento de ascensão de um estágio a outro dentro do esquema classificatório de Morgan. 6 Na história da antropologia de Eduard Evans-Pritchard, Maine e Morgan ocupam lugares destacados na formação da disciplina, junto com Eduard B.Tylor, James Frazer e Mclennan. Stocking Jr os inclui também dentro do grupo formador da antropologia, que iriam dar a dinâmica do desenvolvimento posterior da disciplina. 31 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia nas demais sociedades; negativamente, no sentido que as sociedades podem ser definidas pela ausência de tais traços). Basta ver que as noções civilization, civilité, formadas a partir do século XVIII, são derivativos modernos de conceitos da antiguidade, como civilitas (ver Elias, op.cit, p. 68). Essa etimologia encerra em si uma profunda importância para o ordenamento simbólico-social do mundo moderno. A “sociedade civil”, e a projeção nela de toda a superioridade do ocidente, encontra paralelos na função material e ideológica que ela cumpriu na antiguidade e também na Idade Média: “In the writings of the Cicero, Virgil, Livy, Polybus, Tacitus and Sallust – the authors, on whom most subsequent theoreticians of empire from Machiavelli to Adam Smith realist most heavily – the Roman Imperium constituted not merely a particular political order, but more significantly, a distinctive kind of society, whose identity was determined by what came to be broadly described as the civitas. (...) For the Anciens, both Greeks and Roman, cities were the only places where virtue could be practiced. They were, crucially, communities governed by the rule of law wich demanded adherence to a particular kind of life, that of the ´civil society´ (societas civilis), and which were closed identified with the physical location the citizens happened to inhabit. (…) (Pagden, 1995, p.17-18). Da noção de civitas, derivaria tanto “sociedade civil” quanto “civilização”. Categorias e discursos que como vimos acima estão mais relacionados do que normalmente se pensa. A noção da sociedade primitiva e do selvagem como integrando um “tempo e um espaço externo e inferior” ao da civilização se constrói sobre um acervo de conhecimentos históricos que opera numa longa duração temporal (ver Fabian, 1983). Se o selvagem não cumpriu sempre a mesma função e não foi sempre apreendido da mesma maneira, em todas as diferentes maneiras como ele aparecia e aparece no discurso ocidental, ocupa sempre a posição de inferioridade em relação a civitas (a sociedade civil). E o selvagem nunca fala, é sempre o personagem de um diálogo imaginário escrito pelos europeus: “A atitude da pessoa em relação ao homem simples na sua forma mais extrema, o selvagem – é em toda parte, na segunda metade do século XVIII, um símbolo de sua posição no debate interno, social. (Elias, op.cit, p. 55). O selvagem é um personagem que cristaliza em si todas as qualidades negativas que a civilização/sociedade civil recusa e supera; na luta permanente entre eles, a vitória pertence (ou tem de pertencer) aos valores da civilização (propriedade, estado, letramento, erudição, polidez, urbanidade). A idéia de sociedade civil (caracterizada pela existência da propriedade privada, do Estado e do individuo) foi uma invenção de filósofos liberais do século XVII, sendo tomada como verdade histórica por Morgan, Maine, Frazer, não sendo em nenhum momento questionada nas tradições francesa, inglesa ou alemã dos discursos sobre a cultura. É preciso considerar criticamente este acervo liberal das bases filosóficas da antropologia. Inclusive porque todos os grandes temas da antropologia do século XIX e também do início do século XX, correspondem fundamentalmente às 32 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia características atribuídas ao “estado de natureza” dos filósofos liberais e os valores exaltados nas noções de sociedade, cultura e civilização, aos atribuídos à “sociedade civil” 7 . A busca de uma crítica e de uma formulação cientifica para o conceito e o estudo da “sociedade” seria desenvolvida por Augusto Comte e depois pelo principal sistematizador da sua proposta, Emile Durkheim. É importante observar que tal como concebida por Comte e Durkheim a idéia de “sociedade” também se inscreve numa concepção geral de história na qual a idéia de “progresso” ocuparia um lugar central. É necessário mostrar como esta teleologia da ordem é transmitida dentro dos conceitos, temas e teses levantados por Comte através de Durkheim, e como esta mesma teleologia surge também dentro dos usos evolucionistas da idéia de sociedade. Os estudos de Augusto Comte compreendem obras diversas, como “Opúsculos de filosofia social: apreciação sumária do conjunto do passado moderno” (1820); “Prospectos dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade” (1822); “Considerações filosóficas sobre as idéias e os cientistas” (1825); “Considerações sobre o poder espiritual” (1825-26) e entre 18301854 as lições do Curso de Filosofia Positiva e o “Sistema de Política Positiva ou tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade”. Com relação ao pensamento de Comte, Raymond Aron observou: “Mas a sociologia que Comte quer criar não é a sociologia prudente, modesta, analítica de Montesquieu (...) Sua função é resolver a crise do mundo moderno, isto é, fornecer o sistema de idéias cientificas que presidirá a reorganização social” (Aron, 2002, p.92). Desta maneira, o pensamento sociológico surge com uma preocupação: a “crise”, provocada pela transformação de uma sociedade teológico- militar em uma sociedade científico-industrial. A idéia de uma “reorganização da sociedade” a partir da ciência faz parte da própria análise que considera que a ciência alçou o lugar central na sociedade moderna. Um elemento importante no pensamento de Comte, é a recusa da noção de guerra; de acordo com sua teoria geral do conhecimento e da evolução da sociedade, a emergência da sociedade científico- industrial tinha eliminado a importância da guerra. “A guerra tinha sido necessária para obrigar ao trabalho regular homens naturalmente anárquicos e preguiçosos, para criar Estados de grande extensão, para que surgisse a unidade do Império Romano, na qual se difundiu o cristianismo e do qual surgiu finalmente o positivismo. A guerra tinha desempenhado uma dupla função histórica: o aprendizado do trabalho e a formação dos grandes Estados”. (Aron, op.cit, p.106). 7 Parentesco, magia, religião e totemismo, seriam características contrastantes com aquelas atribuídas as sociedades européias: o Estado baseava-se no território, não no parentesco, como supostamente os sistemas políticos “primitivos”; as religiões primitivas contrastariam com o monoteísmo; o pensamento mágico se oporia ao pensamento racional científico. Por fim, a guerra das sociedades primitivas se oporia a paz e ao direito (enquanto conjunto de normas jurídicas derivadas do contrato social) da sociedade civil. 33 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Dois conceitos fundamentais no pensamento de Comte, e que se inscrevem na sua teoria geral, são os de dinâmica e estática. É como comenta Aron: “A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda a sociedade humana; a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fundamental, antes de alcançar o termo final do positivismo. (...) À dinâmica está subordinada a estática. É a partir da ordem de toda a sociedade humana que se pode compreender a história. A estática e a dinâmica levam aos termos de ordem e progresso (...) No ponto de partida, estática e dinâmica são simplesmente o estudo da coexistência e da sucessão. No ponto de chegada, são o estudo da ordem humana e social essencial, de suas transformações e de seu desenvolvimento” (Aron, 2002, p. 122) Não é que inexista a mudança no pensamento de Comte; na realidade a dinâmica e a estática estão conjugadas, de maneira que a alternância entre ambas expressa o progresso, que é caracterizado pela re-instauração da ordem. A mudança é assim subordinada a ordem, num esquema teórico- histórico, em que a guerra perde sua centralidade para a economia, e a religião para a ciência. Mas o que nos interessa aqui é a elevação da teleologia da ordem, presente no pensamento de Comte, a dimensão central do pensamento sociológico, através de Emile Durkheim, e que se difundiria em grande medida, através da antropologia social estrutural- funcionalista e estruturalista. Nas suas obras a “Divisão do Trabalho Social” (1893) “O Suicídio” (1897) e “As Formas Elementares da Vida Religiosa” (1912), os temas e teses principais apontam nessa direção, especialmente nas suas duas primeiras obras. No texto “Da Divisão do Trabalho Social”, ele afirma: “As paixões humanas só se detêm diante de um poder moral que respeitam. Se falta uma autoridade moral desse gênero, impera a lei do mais forte; latente ou agudo, há um estado de guerra crônico... (Durkheim, apud in Aron, 2002, p.457). Há então um problema, uma preocupação que perpassa o estudo da divisão do trabalho e da sociedade: “O que lhe interessa, acima de tudo, chegando ao ponto de obcecá-lo, é a crise da sociedade moderna, definida pela desintegração social e pela debilidade dos laços que prendem o individuo ao grupo”. (Aron. Op.cit, p.486). Em “O Suicídio”, Durkheim desenvolve sua interpretação sociológica do fenômeno. Mas é na tipologia e na tese que ele estabelece para explicar o suicídio que fica evidente sua concepção de sociedade centrada numa teleologia da ordem, das normas. Quando ele considera as oscilações verificadas nas taxas de suicídio, afirma: “É preciso portanto que nossa organização social se tenha modificado profundamente no curso deste século para ter determinado de tal modo a elevação da taxa de suicídio. Ora, é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja mórbida, pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez. Ela só 34 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e quase imperceptíveis e ainda sim as transformações possíveis são limitadas”. (Durkheim, apud in Aron, 2002 p.490) Vemos que o estudo da divisão do trabalho e do suicídio remetem ao problema da crise e da mudança, mas se erigem ao mesmo tempo, numa barreira ao estudo da mudança social, que aparece associada à crise e a patologia (expressa pela exacerbação das taxas de suicídio e crime, por exemplo). A mudança social, de uma sociedade teológico- militar para uma sociedade científicoindustrial, é marcada assim pela crise. Seria necessário o re-estabelecimento de uma autoridade moral que eliminasse as causas da patologia e re- instaurasse a ordem (as normas). A noção de “anomia” (ausência de normas, ou conflito entre normas que “governam” os indivíduos) seria assim o conceito que sintetiza ao mesmo tempo a descrição da crise e a sublimação da concepção da mudança social8. Essa concepção geral que estrutura o sentido e os usos do conceito de sociedade, estabelecese em torno do que estamos chamando de teleologia da ordem; uma visão que ao mesmo tempo toma como base idéias diferentes, como a de que a mudança é patológica, ou que a mudança está subordinada a estática e tende sempre a ordem; ou ainda que a mudança é pensada como uma evolução do simples para o complexo, processo avaliado através da tecnologia e organização social. Mas o que é fundamental, é que tanto na linha de pensamento que surge através de Comte, quanto naquela de Morgan, a mudança está subordinada a ordem. Existe uma outra característica fundamental desta teleologia da ordem: a sociedade civil burguesa é tomada como modelo, como ponto de referência histórico; suas formas de organização é que são denominadas complexas, suas características internas (organização político-territorial, tecnologia, padrão demográfico, economia e valores) é que são utilizadas como critérios de avaliação e hierarquização das sociedades. Quanto mais distante deste modelo, menor o “status” sociológico (simples, primitivo), quanto mais próximo dele, maior o status das sociedades (complexas, modernas). Na concepção evolucionista de Morgan, o Estado surge como uma transformação (por evolução das condições técnicas e demográficas) que obriga a organização social a passar do “parentesco ao território” como base do sistema político, enquanto que na linha de pensamento de Comte, existe uma recusa da noção de guerra, no sentido que ele entende que a sociedade estava realizando uma passagem de um estágio teológico-militar (o feudalismo) a um estágio científicoindustrial (o capitalismo ); a sua teoria geral da realidade prevê assim uma composição entre uma “dinâmica e uma estática social”, em que a ordem suplanta a mudança e possibilita o progresso; a guerra e o conflito são recusados no esquema geral, e logo a “luta” é não somente ignorada, mas 8 Em “A Divisão do Trabalho Social” Durkheim desenvolve uma teoria das sanções e do crime, e indica que as sanções são formas de re-estabelecer a ordem (uma reparação feita à consciência coletiva). (Aron, op.cit, p.468). 35 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia sistematicamente recusada; na concepção evolucionista o Estado aparece como uma aquisição da civilização; na positivista, como realização da idéia de “ordem” e meio de eliminação da guerra e do conflito. A combinação histórica entre as visões evo lucionista de Morgan e positivista de Durkheim produziriam um duplo efeito: a recusa do conflito em geral, da luta e da guerra e uma mistificação histórica acerca da origem do Estado, que nunca é colocado como um problema histórico concreto, levando-se assim a uma segunda negação da conquista e da dominação, da luta e da guerra. O conceito de cultura (que remete a noção de kultur alemã, por sua vez uma noção que se opunha ao conceito de civilisation) também leva marcas da ordem. Adam Kuper, no livro “Cultura – a visão dos antropólogos” empreende uma análise da gênese do conceito de cultura para explicar sua significação cientifica e seus usos sociais, e fazer sua crítica 9 . Nesse empreendimento, ele identifica três grandes discursos nacionais sobre a “cultura”: o germânico, o inglês e o francês, que se construíram através de oposições e composições, e profundamente vinculados aos contextos sociais: “Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinismo foi formulado com maior premência e intensidade que nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista da Alemanha, Ernest Haeckel, aduziu conclusões políticas da teoria darwinista que deixou o próprio Darwin bastante apreensivo. (...) O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf Virchow, maior patologista alemão, político proeminente de visões liberais e mentor da Sociedade de Antropologia de Berlim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto a uma conclusão teórica prematura. (...) O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se tornou o primeiro diretor do grande museu de etnologia de Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as culturas são híbridas. (...) Franz Boas, aluno de Virchow e Bastian, introduziu esta abordagem na antropologia americana. À medida que esta se desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início do século 20, ela era definida por uma luta épica entre Boas e sua escola e a tradição evolucionista, representada nos EUA pelos discípulos de Lewis Henry Morgan, cujas narrativas triunfalistas de progresso utilizavam as metáforas da teoria de Darwin”. (Kuper, 2002, p.3335). O conceito de cultura empregado por Boas na sua crítica do evolucionismo, de acordo com a história da antropologia traçada por Kuper, derivava da categoria Kultur, tal como desenvolvida 9 Depois de realizar uma ampla descrição do uso da categoria cultura em sociedades de capitalismo avançado e periférico, por empresas, intelectuais e grupos “subalternos” ele conclui: “Não é preciso dizer que cultura tem um significado bastante diferente para os pesquisadores de mercado em Londres, para um magnata Japonês, para os habitantes da Nova Guiné e para um religioso radical em Terá, sem falar em Samuel Hutington. Há entretanto, uma semelhança familiar entre os conceitos que eles têm em mente. Em seu sentido mais amplo, cultura é simplesmente uma forma de falar sobre identidades coletivas.” (Kuper, 2002, p. 24) e mais adiante: “A idéia de cultura podia realmente reforçar uma teoria racial da diferença. Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um discurso sobe identidades raciais enquanto aparentemente abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir raça e cultura, mas na linguagem popular cultura se referia a uma qualidade inata. A natureza de um grupo era evidente a olho nu, expressada igualmente pela cor da pele, pelas características faciais, pelas aptidões, pelo sotaque, pelos gestos e pelas preferências de alimentação.” (Kuper, 2002, p. 35-36). 36 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia pelos intelectuais alemães ao final do século XIX. Este conceito foi formado num processo de luta e crítica, de uma elite de intelectuais alemã, a francofilia e a noção francesa de civilisation, como nota Kuper: “A noção de Kultur desenvolveu-se em tensão com o conceito de uma civilização universal associada à França. O que os franceses consideravam civilização transnacional, na Alemanha se considerava fonte de perigo para as culturas locais. Na própria Alemanha, a ameaça era bastante imediata. A civilisation estabelecera-se nos centros de poder político, nas cortes francófonas e nas cortes francófilas alemães. Num marcado contraste com intelectuais franceses e ingleses, que se identificavam com as aspirações da classe dominante, os intelectuais alemães se definem em oposição aos príncipes e aristocratas”. (Kuper, 2002, p. 54). Dentro do contexto da Alemanha do século XIX, duas grandes vertentes estiveram envolvidas na produção do discurso sobre a Kultur: “Mais recentemente, WooddruffD.Smith aprimorou a genealogia de Ringerem Politics and Sciences of Culturen Germany, 1840-1920. Ele extrai uma linha de reflexão acadêmica liberal sobre cultura, uma Kulturwisenschaft distinta da Geistewissensschaften da tradição hermenêutica. Essa maneira de pensar se aproximava mais das idéias liberais francesas e inglesas; e Smith afirma que Herder e Humboldt eram mais solidários ao iluminismo do que pareciam. Os acadêmicos da tradição liberal abordavam a cultura com um espírito científico, buscando leis de desenvolvimento. (Kuper, 2002, p. 59). Dessa maneira, o conceito de “cultura” difundido na antropologia durante o século XX, deve ser remontado ao conflito de classe e nacional dentro e entre Alemanha e França, no qual as categorias kultur e Civilisation 10 , respectivamente, cumpririam um papel central: “Civilização descreve um processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente para a frente. O conceito alemão de kultur, no emprego corrente, implica uma relação diferente com o movimento. Reportam-se a produtos humanos que são semelhantes a ´flores do campo´, a obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito de kultur delimita. (...) Em contraste, o conceito alemão de kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e a identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disto o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma signif icação muito além da área lingüística alemã e da situação em que se originou o conceito”. (Elias, 1994, p. 24-25) Norbert Elias, analisando a formas de constituição e variação da noção de Kultur, indica também a função e vinculação concreta a grupos sociais: 10 É interessante notar que Kuper observa que essa oposição não seria absoluta: “Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retórica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas de guerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta,elas nunca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais franceses simpatizavam com o contra-iluminismo apenas porque ele saia em defesa da religião contra a insidiosa subversão da razão. Depois da Batalha de Sedan, em 1870 (vencida assim disseram pelos professores da Prússia), a idéia de uma cultura nacional francesa penetrou numa França humilhada ...” Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento iluminista que jamais submergiu completamente, embora algumas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis. Nietzsche condenava seus compatriotas por sua caótica Bildung, formação cultural, corrompida por empréstimos e moda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França, que por sua vez equiparava com a própria civilização. Ele optava pela civilização...”. (Kuper, op.cit, p. 28) 37 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia “Se a antítese é expressa por estes outros conceitos, uma coisa fica sempre clara: o contraste de características que mais tarde servem para patentear uma antítese nacional, surge aqui principalmente como manifestação de uma antítese social. Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos tais como ´profundeza´, ´superficialidade´, ´honestidade´ e ´falsidade´, ´polidez de fachada´ e ´autêntica virtude´, dos quais, dentre outras coisas, brota a antítese ente civilisation e kultur, descobrimos em uma fase particular do desenvolvimento alemão, a tensão entre intelligentsia de classe média e a aristocracia cortesã”. (Elias, op.cit, p. 46) A categoria “cultura”, assim como o conceito “evolução” se formou na fricção de teorias sociais (como o darwinismo) com ideologias políticas (como o liberalismo), como nos mostra a história da sóciogênese destes conceitos antropológicos. Alem disso, o próprio conceito de cultura (estamos assumindo aqui a genealogia traçada por Kuper, que remonta a Kultur), se define também pela afirmação de um conjunto de características que expressaria a imagem de superioridade de um determinado tipo de sociedade, assim como os conceitos de evolução e civilização; e assim como a noção de evolução implica idéias de ordem, coerência e harmonia que expressam uma individualidade superior 11 . Logo, uma grande parte da antropologia e das ciências sociais leva consigo esta marca sócio- genética: estabelecidas sobre conceitos/categorias do discurso social e político da burguesia européia, reproduzem grande parte de seu imaginário e discurso. A crítica do evolucionismo, movida por Boas e posteriormente pela antropologia cultural, se fundamenta assim numa categoria gerada por uma concepção política liberal conservadora. Se o conceito de kultur no momento de sua gênese serviu para expressar a “auto-imagem” da classe média alemã, “a essência de uma identidade”, o conceito de “cultura” – depurado apenas relativamente – serviria para o mesmo fim, sendo passível de uso generalizado por qualquer grupo social, mas sempre remetendo a idéia de uma identidade estável, essencial, o “ser” de uma entidade coletiva. Cientificamente, o conceito de cultura teria a vantagem de contrapor-se ao etnocentrismo, permitindo a valorização das sociedades colonizadas, que seriam colocadas num patamar de relativa igualdade com os europeus por terem uma cultura (concebida pelos mesmos parâmetros cognitivos). As posteriores definições do conceito de “cultura” seriam profundamente marcadas pelos contextos geradores, e também pela relação que os diferentes intelectuais mantinham com as tradições de seus predecessores, de maneira que 12 : 11 Como na definição de Baldus de cultura como “expressão harmônica do modo de ser, pensar e sentir de um povo”. As críticas do evolucionismo foram processadas a partir de diversas perspectivas, mas seria principalmente na virada do século XX que elas iriam se consolidar. Uma das principais e mais difundidas críticas foi a realizada por Franz Boas, gestada e desenvolvida nos EUA e depois assumida por diversos antropólogos. O conceito de cultura se tornaria, a partir de então, uma categoria chave para a antropologia, tanto do ponto de vista da explicação da sociedade (que seriam analisadas em termos de sua cultura) quanto para a auto-designação dos próprios antropólogos. Mesmo nas versões estruturalista e estrutural-funcionalis ta da antropologia a noção de cultura cumpriria um papel chave (como em LéviStrauss e Malinowski) 12 . 12 38 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia “Os argumentos modernos não recapitulam de forma precisa às controvérsias anteriores. Os contextos da época deixam sua marca. Cada geração moderniza o idioma do debate, via de regra, adaptando-o à terminologia cientifica do momento; evolucionismo do final do século 19, organicismo no início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas emprestadas da genética competem, hoje em dia, com o jargão da teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo que fossem expressos em termos modernos, os discursos sobre cultura não são inventados livremente: eles remontam a determinadas tradições intelectuais que persistiram por gerações disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo concepções da natureza humana e da história ..”. (Kuper, 2002, p. 31) Assim, o conceito de “cultura” foi definido em termos simbólicos e coletivos; apesar das diferenças de interpretação (entre o estruturalismo de Lévi-Strauss, que buscou o modelo da lingüística estrutural para definir a cultura enquanto sistema simbólico, ou o interpretativismo de Geertz, que reivindicou a teoria literária e a cultura como “texto”, o conteúdo da cultura e sua função eram similares - sistemas simbólicos que determinavam a vida e visão de mundo dos atores). Na realidade entre o discurso científico e o discurso social generalizado sobre a definição de cultura, existem pontos de convergência: a cultura representa as identidades, a cultura expressa simbolicamente o “ser” dos grupos sociais - no sentido que se contrapõe ao avanço e a mudança imposta pela “civilização” – tecnológica, industrial. Este é um conteúdo comum. O que tende a mudar é a forma como são consideradas as diferenças culturais, que no discurso científico tendem a ser percebidas por diferentes formas de “relativismo”. Mas mesmo nas criticas pós- modernas do conceito de cultura, se assume de forma mais ou menos implícita que “... as pessoas vivem num mundo de símbolos. Os atores são dirigidos e a história é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias”. (Kuper, 2002, p. 41). Ou seja, na base do conceito de cultura (ou em volta dele), estão uma série de pressupostos que apontam para os processos de significação (atribuição de sentido e construção de símbolos) como o operador central de explicação do mundo, e sua cristalização numa identidade estável e auto-reproduzida. Se o conceito de “cultura” se apresentou como “visão crítica” da explicação evolucionista e do determinismo biológico, ela também se desenvolveu relativamente em oposição à explicação “social” – no sentido que tirou do conceito de sociedade o papel de “chave analítica”. Deslocamento que implicava que a ênfase não estaria na forma como os seres humanos organizavam sua vida, mas sim nas representações e formas de pensamento. O paradigma da ordem é transcrito nos conceitos de sociedade e cultura, através de um modo de percepção da mudança social. Duas formas de domesticação idéia de mudança social se inscreve ram na antropologia e sociologia através de uma bifurcação conceitual. Enquanto a idéia da mudança social como etapa na restauração da ordem e reprodução social está associada ao conceito de sociedade, o conteúdo do conceito de cultura levou a atualização da idéia de que a mudança é 39 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia apenas um estágio num processo inexorável de o desaparecimento das “identidades originais e o ser” das sociedades. O conceito de “aculturação” expressa num certo sentido a fusão desta visão da mudança como destruição inexorável de uma identidade originária como a idéia de cultura. A sócio-gênese dos usos e sentidos antropológicos, das categorias “sociedade e cultura”, revela que essas categorias se formaram em momentos de luta política e foram construídas por intelectuais que tinham vinculações de classe, profissionais e políticas muito específicas. Muitos dos trabalhos fundadores da antropologia seriam realizados por juristas 13 que ao mesmo tempo em que estudavam o direito e a propriedade em suas origens, buscavam legitimar a propriedade privada, o Estado e formular uma teoria científica da superioridade das sociedades ocidentais ou “civilizadas” sobre as demais. A “crítica” ou as “críticas” formuladas pelos diferentes conjuntos de ação teórica (difusionistas, boasinaos, durkheimianos, estrutural- funcionalistas) não se estenderiam para estas questões. Ao contrário, ao aperfeiçoar os conceitos e definições, levantariam involuntariamente uma cortina de fumaça em torno deles. O conceito de cultura e a idéia de relativismo serviram para contrapor as formulações evolucionistas em relação a certos tópicos (como a explicação pela biologia, a idéia de origem única da humanidade); o conceito de sociedade serviu para elaborar igualmente uma crítica das explicações religiosas, psicológicas e biológicas do social. A “crítica” foi o meio central pelo qual o próprio pensamento cientifico (sociológico e antropológico) se desenvolveu. Entretanto é necessária uma “crítica da crítica”, no sentido de aprofundar a crítica política e epistemológica e alcançar uma outra forma de explicação da mudança social e das relações de poder. Visto que os estudos de antropologia política e os estudos sobre cultura (aculturação e mudança cultural) sempre tenderam ou a ver as sociedades e as identidades culturais como estáticas, ou quando estudavam a mudança, a concebiam como “anomias”, que levariam as sociedades e culturas ou a destruição e desaparecimento, ou a restauração da ordem anteriormente existente. Não podemos ignorar que os discursos e pressupostos da antropologia são profundamente condicionados por uma transmissão contínua de representações ideológicas de contextos históricos e nacionais a outros. Morgan, como um dos fundadores da antropologia norte-americana, deu as bases para formação do Bureau de Etnologia de Powell, onde seria formulado o conceito de aculturação, para designar as relações entre sociedades indígenas e o Estado-Nacional (ver Kessing Jr, 1986, p.19). A reformulação do conceito de aculturação (ou sua definição), por Linton, Redfield e Herskovits em 1936, no “Memorando sobre a Aculturação”, estabeleceria as bases para antropologia cultural boasiana do pós-II guerra, que apesar das rupturas, tinha certas continuidades com estudos evolucionistas, já que retomava conceitos e temáticas formuladas por eles. O evolucionismo, ou os estudos e discursos que depois seriam classificados sob tal rubrica, estava 13 Este é o caso de Henry Maine, que escreveu o livro “A Lei Antiga”. 40 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia profundamente imbricado nos valores e no imaginário burguês e nacionalista. As críticas do evolucionismo, direcionadas para a “noção de progresso e ao determinismo biológico” (ver Stocking Jr,1984), jamais questionaram este imaginário e suas bases epistemológicas. Sob a influência de categorias como sociedade e cultura e principalmente de um determinado o modo de cognição que lhes é subjacente, ficamos reféns de uma determinada ótica de interpretação da mudança e reprodução social e da própria sociedade. A noção de evolução é a interpretação da mudança como “progresso” do inferior para o superior. O conceito de cultura pode tender a visão da mudança como “degeneração” da diferença autêntica e “pura” para a “mistura”, até a eliminação total de um grupo por outro pela aproximação de idéias e valores. O conceito de cultura surge com uma marca: a da reação à mudança (no sentido da influência das idéias estrangeiras sobre uma nação e classe determinada); estes conceitos entraram na antropologia política encerrando em si a marca de uma concepção histórico-política. Num certo sentido, apesar das múltiplas oposições, divergências (quanto a métodos, objetos, modelos de referencias e teses explicativas) nas duas grandes tradições cientificas da antropologia – as organizadas a partir do conceito de cultura e aquelas a partir do conceito de sociedade, existe uma convergência, ou pelo menos uma cumplicidade, em torno de uma teleologia da ordem e de coordenadas de conhecimento burguesas, liberais e conservadoras, que levam a deslegitimarão da luta, da guerra e da mudança social (tanto de seu estatuto teórico quanto político). A dificuldade em torno do estudo da mudança social está associada, em parte, as bases cognitivas das ciências sociais, e também as bases materiais de organização da ciência dentro da sociedade capitalista. É preciso uma ruptura com esta teleologia para alcançar uma via para o adequado estudo da mudança social, das relações de poder e da luta de classes. A questão colocada é, como romper com essa teleologia da ordem? É um problema ao mesmo tempo político e epistemológico e só pode ser resolvido por meios igualmente políticos e epistemológicos. Roberto Cardoso, no texto mencionado “A categoria (des)ordem na antropologia” frisa com bastante propriedade que essa teleologia abrange quase todos os domínios da ciência: “O exame dos paradigmas sustentadores das “escolas” consolidadas nas primeiras décadas do século permitem caracterizá-los como paradigmas da ordem, uma vez que é sobre essa temática que os oficiantes dessa disciplina se debruçam. Poder-se-ia dizer que a categoria ordem está explícita nas diferentes “escolas”, enquanto noção devidamente tematizada em seus respectivos discursos. Senão vejamos: o paradigma racionalista, já em seus primeiros passos na École francaise, aplica-se tanto na questão da organização social (solidariedade mecânica e solidariedade orgânica) como na descoberta de formas elementares ordenadoras do pensamento primitivo, e, em seus últimos passos, no exercício radical da categoria, já no interior do moderno estruturalismo francês, como bem ilustra a conhecida máxima lévistraussinana de que “a pior ordem é melhor do que a desordem”; na questão equacionada em termos de estrutura-social e de função social, destaca-se o paradigma estrutural-funcionalista particularmente no que diz respeito à instituição do parentesco e aos grupos organizacionais tão extensamente estudados na Britsh School; enquanto o paradigma culturalista, subjacente a 41 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia American Historical School of Anthropology, conduz a indagação para os processos culturais e ao estabelecimento de padrões ou regularidades culturais. A categoria de ordem implementa a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o espaço ocupado por essas escolas. Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que ela não apenas orienta o discurso das diferentes ´escolas´, a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria a bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta -se no centro de sua problemática, largamente explicita em todos os índices ou sumários de quantos ensaios e monografias a antropologia conheceu em sua história”. (Cardoso de Oliveira,1997,p.92-93). Dessa maneira, não se trata de um movimento exterior ou paralelo, trata-se de fazer uma ruptura com a própria base cognitiva. Os principais efeitos dessa concepção centrada na ordem nas diversas correntes foi uma tendência a, senão completa exclusão, pelo menos domesticação e deslegitimarão da “subjetividade, do individuo e da história” (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.93). Roberto Cardoso apontou a necessidade de introduzir certos procedimentos associados a uma postura de dissidência, de “desordem”, no sentido da criação uma lógica de oposição aos princípios estabelecidos dentro da antropologia. Por exemplo, a história enquanto fator seria um marcador de “desordem”, no sentido que introduzido na “estrutura social” implicaria uma imprevisibilidade, eventualidade. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.95-96). Ele aponta que o “paradigma hermenêutico”, representado pelo movimento da chamada antropologia interpretativa ao mesmo tempo que criticava poderia corrigir os efeitos do paradigma da ordem, e assim incorporar algumas formulações dos chamados “pós- modernos”. Roberto Cardoso chega a dizer, acompanhando Feyerabend, que talvez “no limite seria necessário caminhar para um “anarquismo epistemológico” (Cardoso de Oliveira, op.cit,p. 99). Cabe registrar que a solução apresentada por Roberto Cardoso não implica uma ruptura com o paradigma da ordem, mas apenas uma “reforma” de seus quadros, apresentado-se como uma solução de “compromisso”. “Para concluir gostaria de voltar à questão da ordem e da desordem e de suas implicações com a matriz disciplinar da antropologia. Haveria alguma possibilidade do paradigma hermenêutico compor com os paradigmas da ordem o mesmo campo epistemológico de tensão indicado na matriz disciplinar, concorrendo assim para o enriquecimento da antropologia?” E ainda que: “e quem sabe aguardar a emergência de uma nova ordem, como uma progressiva domesticação da desordem (inaugurada pela introdução da intersubjetividade, da individualidade, da história) na disciplina..”. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.102). Alguns dos mais proeminentes do movimento pós- moderno, como Marcus e Fisher, admitem essa coexistência. O movimento proposto pelos pós- modernos, pela habilitação teórica da “história, da subjetividade e do individuo”, representa mais uma liberalização no paradigma da ordem do que sua rejeição. E de acordo com nossa análise, o ponto principal da teleologia da ordem, o que ele visa realmente expulsar não são esses domínios (expulsos mais por efeitos colaterais do que intenção direta). O que a teleologia e o paradigma da ordem visam expulsar é a idéia de mudança, 42 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia de conflito, luta e guerra, na realidade é uma espécie de “pacificação cognitiva” estruturada em torno de conceitos e teses (sobre o mundo e a natureza). E devemos lembrar também que a própria noção de “ordem” tem uma dupla transcrição, cognitiva e científica, social e política. A idéia de ordem está associada às estruturas de poder, a recusa da mudança nas formas de organização política. O que o positivismo fez, num certo sentido, mas também os teóricos da soberania como Hobbes (ver Foucault, 1999), foram recusar a idéia de guerra, de violência, de luta em nome da ordem, e ao associarem a “mudança” à luta, expulsaram ambas do domínio da ciência. A manutenção da ordem era a manutenção do “poder”, dos ciclos de relações, verdades e hierarquias engendradas por ele, e ao mesmo tempo, que lhes serviam de sustentáculos. A idéia de “anarquia” foi utilizada como “anátema” aos opositores da Monarquia e do Absolutismo, da Igreja, como Gracco Babeuf, que no seu Jornal comentava isso. Ou seja, a idéia de anarquia estava associada à contestação do poder, a inversão da hierarquia, a mudança social e por isso era transcrita no discurso dominante como “desordem”. Na realidade, se a solução pós- moderna, centrando-se numa problemática estritamente cognitiva representa suma solução de compromisso, de conciliação com o paradigma da ordem, a ruptura epistemológica só se torna possível pelo recurso ao pensamento revolucionário. Somente aí é possível estabelecer realmente um “anarquismo epistemológico” que se apresenta enquanto tal exatamente pelas suas origens sociais e políticas. 1.5 - A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social. O século XIX, marcado pela transição de uma sociedade “teológico- militar” a uma sociedade “científico- industrial”, testemunhou uma profunda guerra de filosofias políticas e sociologias. Foi um momento em que, dentro das frações da classe dominante, engendrou-se de forma cada vez mais intensa um discurso cientifico e da autoridade da ciência, em oposição à religião, que redundaria num cientificismo autoritário. Por outro lado, o desenvolvimento da luta de classes, produziria diferentes e contraditórios esforços de sistematizar uma “ciência da sociedade” que servisse também como instrumento de sua transformação revolucionária, como crítica da religião e das ciências produzidas a partir das próprias classes dominantes. O problema da origem da Sociedade e do Estado condicionou a definição teórica destes mesmos conceitos. É interessante observar que, nos debates fundadores da antropologia, a preocupação com a origem e a sociedade primitiva deram os contornos gerais da formulação de uma teoria geral da sociedade e sua evolução. Mas no momento em que apareceu o livro de Henry Maine, “A Lei Antiga”, não devemos perder de vista que o que estava em jogo não era um exercício especulativo, ao contrário; o livro fazia parte de uma guerra de sociologias, que disputavam no caso 43 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia a orientação administrativa a ser adotada pelo Governo Britânico na Índia Colonial. Maine desenvolveu uma teoria da sociedade que buscava apresentar uma explicação diferente da concepção individualista de Bentham, que postulava a reforma da administração colonial britânica na Índia. A teoria da família patriarcal como ponto de partida da evolução e não os indivíduos livres, tinha uma conotação essencialmente filosófico-política. Depois, a crítica feita por Mclennan e Morgan, deslocariam a problemática para a discussão da origem da sociedade em si, formulando a tese de que as famílias matriarcais seriam o ponto de partida da evolução e não a família patriarcal (Kuper, 1988). Desta maneira, o ponto de partida político delimitou o conjunto de alternativas do debate (individuo X família, origem patriarcal X matriarcal), mas o conjunto das alternativas e seus pressupostos não foram questionados. As linhas de pesquisa cientifica que confluiriam na formação da antropologia e da sociologia, começam entretanto, nos grandes debates políticos e filosóficos do século XIX. E estes debates não falavam normalmente de objetos específicos (do parentesco, do sistema político, da religião), mas sim de uma teoria geral da sociedade e da história, da qual se desprenderiam a posterior os objetos e debates específicos. Assim, diferentes discursos sobre a ciência surgem dirigidos a partir de diferentes posições sociais, convergindo no aspecto da crítica da religião, mas diferindo nas teses e explicações de problemas específicos, e também na concepção históricopolítico geral que sustentam. É necessário compreender a guerra das sociologias, que não é senão um enfrentamento de saberes histórico-políticos que tiveram destinos muito diferentes. É por meio da compreensão desta guerra de saberes, e pela apropriação de certas teses e teorias, de forma similar ao projeto genealógico, que iremos fixar marcos para o estudo da mudança social14 . Existem vários caminhos para uma crítica da “teleologia da ordem”, mas é impossível chegar a uma crítica efetiva senão levarmos em consideração o socialismo e o pensamento revolucionário enquanto fenômeno político e intelectual. Os saberes críticos da sociedade, dentro do campo socialista, ao mesmo tempo reivindicavam para si um duplo estatuto: o da cientificidade e o caráter de classe – em oposição a qualquer tipo de neutralidade. É neste acervo que iremos buscar as referências metodológicas. 14 Segundo Foucault, o projeto genealógico consistiria em um duplo movimento: a incorporação do saberes sujeitados no discurso científico, a crítica das relações de sujeição que marca a vida dos grupos estudados: “Por saberes sujeitados eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados; saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes a baixo do nível de conhecimento ou cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, mas paralelo e marginal em relação ao saber médico, o saber do delinqüente, etc. – esse saber que denominarei saber das pessoas (e que não é de maneira alguma um saber comum, um bom senso, mas, ao contrario um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) foi pelo reaparecimento destes saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica. (...) .o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais.” (Foucault, 1999, p. 12-13) 44 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Uma teoria é o que poderíamos chamar de materialismo sociológico de Mikhail Bakunin e que se propõe a tomar a própria mudança como elemento constitutivo da vida material, sendo a noção de ação e de forças agentes as principais. Existe um debate político central para Bakunin: é o problema do Estado e da Religião, que na realidade se confundem na sua formulação com a crítica da teoria do direito divino dos reis e da relação Estado-Igreja, e com a crítica da teoria contratualista, do liberalismo. A formulação de Bakunin se dá a partir da fusão de idéias proudhonianas com a absorção crítica de idéias positivistas, condensadas no que ele denomina de visão materialista. Nesta teoria geral da realidade ele irá distinguir um mundo natural do mundo social, dentro do conceito de natureza, que é sinônimo de universo material. É pela definição do conceito de natureza que podemos ver sua concepção materialista: “Podría decir que la naturaleza es la suma de todas las cosas realmente existentes. Pero eso me daría una idea completamente muerta de la naturaleza, que se presenta a nosotros, al contrario, toda movimiento y toda vida. Por lo demás, ¿qué es la suma de las cosas? Las cosas que son hoy no serán mañana; mañana se habrán no perdido, sino enteramente transformado. Me acercaré, pues, mucho más a la verdad diciendo que la naturaleza es la suma de las transformaciones reales de las cosas que se producen y que se producirán incesantemente en su seno; y para dar una idea un poco más determinada de lo que pueda ser esa suma o esa totalidad, que llamo la naturaleza, enunciaré, y creo poderla establecer como un axioma, la proposición siguiente: Todo lo que es, los seres que constituyen el conjunto indefinido del universo, todas las cosas existentes en el mundo, cualesquiera que sea por otra parte su naturaleza particular, tanto desde el punto de vista de la calidad como de la cantidad, las más diferentes y las más semejantes, grandes o pequeñas, cercanas o inmensamente alejadas, ejercen necesaria e inconscientemente, sea por vía inmediata y directa, sea por transmisión indirecta, una acción y una reacción perpetuas; y toda esa cantidad infinita de acciones y de reacciones particulares, al combinarse en un movimiento general y único, produce y constituye lo que llamamos vida, solidaridad y causalidad universal, la naturaleza”. (Bakunin, 2003, p.3) Essa visão materialista, que parte do conceito de natureza, na realidade se estende à interpretação e explicação da sociedade, uma vez que esta é entendida como uma extensão – particular e especifica – da própria natureza. “(5) Sigo el uso establecido, separando en cierto modo el mundo social del mundo natural. Es evidente que la sociedad humana, considerada en toda la extensión y en toda la amplitud de su desenvolvimiento histórico, es tan natural y está tan completamente subordinada a todas las leyes de la historia, como el mundo animal y vegetal, por ejemplo, de que es la última y la más alta expresión sobre la Tierra. (Bakunin, op.cit, p.10). Assim, o mundo social se apresenta sujeito a esta visão dinâmica: o mundo material é mundo da contínua e permanente mudança e transformação. O pressuposto filosófico-cientifico da mudança no mundo natural é o que dá fundamento para a crítica do teologismo e do liberalismo, de maneira 45 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia que ele formula uma teoria não apenas da relação mundo social-mundo natural, mas indivíduosociedade. “We are profoundly convinced that the entire life of men — their interests, tendencies, needs, illusions, even stupidities, as well as every bit of violence, injustice, and seemingly voluntary activity — merely represent the result of inevitable societal forces. People cannot reject the idea of mutual independence, nor can they deny the reciprocal influence and uniformity exhibiting the manifestations of external nature. In nature herself, this marvelous correlation and interdependence of phenomena certainly is not produced without struggle. On th e contrary, the harmony of the forces of nature appears only as the result of a continual struggle, which is the real condition of life and of movement. In nature, as in society, order without struggle is death”. (Bakunin, 2005) Esta preocupação em desenvolver uma teoria geral da realidade, que compreendesse o mundo social e natural, tinha como objetivo a contraposição aos pressupostos teológicos e liberais, dos republicanos, monarquistas e conservadores do século XIX. Nesse sentido, existe uma concepção muito específica sobre o lugar do conflito e da luta na sociedade e na história: “Olhem para a toda a história e convençam-se que em todas as épocas e em todos os países em que há desenvolvimento e exuberância da vida, do pensamento, da ação criadora e livre, houve divergência, luta intelectual e social, luta de partidos políticos e é precisamente por meio dessas lutas, e graças a elas, que as nações foram mais felizes e as mais fortes no sentido humano dessa palavra. (...) Qual foi a época mais fecunda da história romana? Foi a da luta da plebe contra o patriciado. E que é que fez a grandeza e a glória da Itália na Idade Média/ Certamente não foram nem o papado e nem o Império. Foram as liberdades municipais e a luta intestina das opiniões e dos partidos..”. (Bakunin, 1975, p. 164-165). “Reparem que os que pregam a paz à viva força, a imolação das convicções opostas às necessidades duma união aparente, e que lançam as suas maldições no que chama a guerra civil, são sempre moderados, reacionários, ou pelo menos homens a quem falta convicção, energia e fé. Uma boa guerra civil, bem franca, bem aberta, vale mil vezes mais do que uma paz corrompida. Aliás esta paz nunca é senão aparente; sob a sua égide enganosa, a guerra continua, mas impedida de se manifestar livremente..”. (Bakunin, op.cit, p.165). Neste sentido, o problema da definição conceitual da sociedade e da sua explicação ganha um contorno completamente diferente. A idéia de “ordem”, a visão “patológica” da mudança, não somente não está presente como é teoricamente combatida por outros pressupostos políticocognitivos. A mudança-transformação contínua faz parte do mundo natural e social; a “luta pela vida” que preside o mundo natural tem correspondência na luta política e de classes, no mundo social 15. 15 A idéia da luta pela vida, de Darwin é utilizada por Bakunin como tese de explicação da do mundo natural. Ver “Considerações Filosóficas”, p. 18. 46 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Na concepção anarquista-materialista de Bakunin, as categorias principais são as de ação, luta e combinação; a mudança no mundo social e natural está associada ao papel que a ação recíproca (as forças agentes e produtivas) desencadeiam pela sua combinação particular. A mudança e a transformação não têm uma direção pré-definida, mas são relativamente caóticas, indeterminadas; elas não se apresentam como um pré-concebido, mas como parte de funcionamento do mundo material. Essa discussão filosófico-política acerca da sociedade (sua origem, princípios, formas elementares de organização e funcionamento) relacionam-se diretamente a bases da teoria antropológica. Não somente a origem do Estado e da Sociedade; relação indivíduo x sociedade, constituíram problemas originários da teoria social e antropológica, possuindo marcas políticas fundamentais. A explicação evolucionista da sociedade (da origem social na família patriarcal/matriarcal que evoluiria até o Estado) se relaciona a uma crítica das teorias contratualistas liberais. Entretanto, a ruptura com o elemento individualista na explicação da origem da sociedade, não representou a ruptura com a teoria da soberania, com os valores burgueses e etc. Estes elementos permaneceram tanto nos conceitos quanto nas teses fundamentais da antropologia e das ciências, como vimos anteriormente. Neste sentido, não é possível buscar uma base neutra para a explicação da sociedade; todas as teses e teorias explicativas da sociedade têm necessariamente um conteúdo filosófico-político que não é possível ignorar sem pagar o preço da reificação das categorias e modos de cognição atrelados as formas de dominação hegemônicas em uma sociedade. Trata-se não dos conceitos em si, mas da seqüência, formas de organização, métodos de coleta e sistematização dos saberes e dos seus efeitos práticos (intencionais ou não) no mundo real. A diferença fundamental do pensamento socialista, pelo menos nos autores aqui mencionados, é a ruptura fundamental com a teleologia da ordem no sentido em que, os pressupostos da negação da guerra, do conflito e da luta de classes, e a visão patológica da mudança social não se encontram presentes. Neste sentido, as formas de explicação da sociedade não se amparam na “teoria da soberania” (ver Foucault, 1999), ou seja, não há o esforço de explicar a Origem da Sociedade, do Estado pelas formas contratualistas. Esta posição garante o estabelecimento de um efetivo anarquismo epistemológico, no sentido da interiorização da mudança social, do conflito, da ação e da transformação como determinantes do “ser” dos sujeitos e objetos do mundo real; a idéia da multi-causalidade ou da pluralidade das forças agentes, orientará nossa abordagem das relações de poder e também da mudança social. O conflito, a luta e a guerra como operadores centrais da organização social. Isto implica também uma ruptura com a teoria da soberania do poder. 47 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia Por fim, retomando a discussão entre as grandes teorias sociais, entre uma concepção geral de realidade centrada na “teologia da ordem” e uma concepção centrada numa visão da sociedade como um processo anárquico (mais ou menos ordenado/desordenado porque em permanente mudança), poderemos olhar para a etnografia e história das relações de poder entre os índios e o Estado brasileiro de outra maneira. Essa perspectiva permitirá que demonstremos ao longo desse trabalho a sociedade não é mais que um processo permanente de mudança social – mudança de grupos que exercem o poder e suas técnicas e relações com outros grupos, mudanças nas instituições existentes, mudança no sistema geral de relações entre classes dominantes, território e meios de produção e de poder. Nada autoriza, muito pelo contrário, a suposição que existe uma “ordem” original que as mudanças sociais quebram e que cabe a um arbitro externo e imparcial – o Estado – restaurar. Nada indica que a ordem seja o destino final da mudança – já que no que diz respeito às relações de poder, tanto a mudança social quanto a reprodução da dominação, dependem da luta, da guerra. 1.6 – A antropologia política processualista e as ferramentas de análise. A partir da crítica da perspectiva da teleologia da ordem, e da fixação de uma concepção crítica de análise da mudança social e das relações, podemos tentar definir e (quando for o caso redefinir) os conceitos principais que empregaremos ao longo desta tese como ferramenta de análise. Dentro da antropologia, estaremos calcados na orientação dinâmica (ver Balandier, 1969) e processualista (Palmeira & Goldman, 1996). Os primeiros conceitos dizem respeito a uma tipologia geral, entre os sistemas sociais que estão em mudança social e os sistemas repetitivos: “É possível sentir a atuação das poderosas tensões que formam a vida nacional:rei e Estado contra o povo e o povo contra o rei e o Estado; o rei aliado aos plebeus contra os seus rivais, os irmãos-principes; a reação entre o rei e sua mãe e entre o rei e suas rainhas; e a nação unida contra os inimigos externos, numa luta pela sobrevivência com a natureza. Essa cerimônia não é apenas uma demonstração maciça de união, mas também uma ênfase no conflito, uma afirmativa de rebelião e rivalidade contra o rei, com afirmações periódicas de união com o rei e de retirada de poder do rei. A estrutura política é santificada na pessoa do rei, por ser essa estrutura a fonte de prosperidade e força que protege a nação interna e externamente. O rei é associado a seus ancestrais, pois a estrutura política se mantém através das gerações, embora reis e súditos nasçam e morram. (...) mas já ficou claro que os Suazi acreditam que a representação dramática das relações sociais,em toda a ambivalência destas,consegue unidade e prosperidade”. (...) “A aceitação da ordem estabelecida como certa, benéfica e mesmo sagrada parece permitir excessos desenfreados, verdadeiros rituais de rebelião, pois a própria ordem age para manter a rebelião dentro de seus limites. (...) Todo sistema social é um campo de tensões, cheio de ambivalências, cooperações e lutas contrastantes. Isso é verdade tanto para sistemas sociais relativamente estacionários – que me apraz chamar repetitivos – como para sistemas que mudam e se desenvolvem. Num sistema repetitivo os conflitos são resolvidos não por alterações 48 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia na ordem dos postos, mas por substituição das pessoas que ocupam estes postos”. (Gluckman, 1974, p. 20-23). Os conceitos de sistema repetitivo e sistemas dinâmicos aplicam-se a realidades de grande escala (por exemplo, a comunidade branco-zulu na África do Sul), e são caracterizados por conflitos ou clivagens que marcam o desenvolvimento destes mesmos sistemas. A idéia da distinção entre sistemas repetitivos e dinâmicos permitirá a construção de uma tipologia dos processos de mudança social, já que a principal característica diferenciadora dos dois sistemas não é a existência ou inexistência de mudanças, mas sim o tipo e o grau de mudanças verificadas em cada um deles16 . Não estamos utilizando o conceito de sistema social como definido pela escola estruturalfuncionalista. Estamos entendendo sistema social como uma unidade aberta e flexível, mas que abrange realidades de larga escala, e no qual podem ser destacados campos e arenas. O conceito de “sistema social” – entendido enquanto conjunto de relações de interdependência - busca contraporse a visão de que poderiam existir “grupos isolados” ou “pares de grupos isolados” de outros, e marcar unidades sociais e territoriais globais mais amplas. Os conceitos de sistemas sociais repetitivos e dinâmicos permitem uma caracterização do tipo de mudança social encontradas em tais sistemas sociais. No nosso entendimento, quando se trata do estudo das relações de poder, da sua gênese, mudança e reprodução, não devemos esquecer que por maior que seja o caráter dinâmico das relações e processos, os grupos sociais concretos agem para manter e ampliar seu poder. As noções de campo e arena são fundamentais na análise e variações de escalas, entre o micro e o macro. Principalmente porque a antropologia esteve teoricamente ligada a propostas entendidas como micro-sociológicas, sendo importante a articulação destes contextos etnográficos com as sociedades nacional e global (ver Revel, 1998, Oliveira Filho, 1998). Os conceitos de “campo” e de “arena” serão aplicados para recortar conjuntos locais dentro destes sistemas sociais globais. Referidos e intercambiáveis num certo sentido com o conceito de situação, os conceitos de campo e arena tem suas especificidades. Usamos aqui os conceitos tal como formulados por Marc J. Swartz, no livro “Local Level Politics”. O autor emprega o conceito de campo para demarcar unidades de ação política, e a extensão espacial e temporal do processo político (Swartz, 1968, p.6). Logo, o conceito de campo se apresenta como uma ferramenta de focalização dos processos, que ao mesmo tempo realça o caráter aberto das relações sociais e políticas e reduz o escopo da análise aos sujeitos que estão in loco. 16 “Em geral, é difícil classificar um sistema social particular como sendo repetitivo ou em transformação. As mudanças concretas dentro de um padrão repetitivo podem acumular-se gradualmente para produzir mudanças no padrão. Num sistema em transformação, há inúmeras mudanças repetitivas e toda uma seção de um sistema em transformação pode parecer repetitiva.”(Gluckman, 1987, p. 310). 49 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia O “campo” seria assim definido: “Um campo é composto de atores diretamente envolvidos no processo estudado, Seu escopo social e territorial e áreas de comportamento mudam quando atores adicionais entram no processo ou participantes anteriores retiram-se e quando eles reúnem novos tipos de atividades e/ou abandonam velhas na sua interação”. (Swartz, 1968). O conceito de campo se apresenta também como tática de flexibilização analítica: “Campo é um conceito que permite continuidade e mudança nas relações entre os participantes na política e não tem a mesma qualidade rígida portada por termos mais comuns como sistema político e estrutura política” (Swartz, ibdem). A noção de “arena” aparece como conceito complementar ao “campo”. Swartz define assim o conceito de Arena: “A arena consistiria de indivíduos e grupos diretamente envolvidos com os que participam do campo mas não em si mesmos envolvidos no processo em questão. O conteúdo da arena incluiria os recursos, valores e regras dos componentes porém não estariam em uso no campo e os relacionamentos dos membros da arena a cada um e aos recursos seriam sua estrutura. O campo está incluído na arena e então os participantes do campo operam em no mínimo dois conjuntos de relacionamentos, a indivíduos e grupos e a recursos, regras e valores conectados com cada grupo”. (Swartz,op.cit, p.13). Dessa forma arena se apresenta como uma “ampliação do olhar sobre o campo”, abrangendo outras relações não manifestas nele. O processo político, ainda segundo Swartz, pode ser estudado de três maneiras: 1) considerando a organização interna do grupo; 2) a organização do campo; 3) as relações entre campo e arena. (Swartz,op.cit, p.38). Os conceitos de situação social (ver Max Gluckman, 1987) e situação histórica (ver Oliveira Filho,1988) serão duas ferramentas analíticas importantes. A noção de “situação social” é desenvolvida por Gluckman nas suas formulações a partir da etnografia Zulu. «A partir das situações sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular, pode-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc., daquela sociedade.» (Gluckman, 1988, p.228). “Denomino estes eventos de situações sociais, pois procuro analisá-los em suas relações com outras situações no sistema social da Zululândia. (..)Portanto, uma situação social é o comportamento em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões. (Gluckman, op.cit, p.228). Segundo Oliveira Filho, a noção de situação social em Gluckman: “O sentido mais conhecido, que o autor explicita em uma definição e materializa através de intensa discussão de um exemplo específico, é aquele que implica na sobreposição de três elementos: a) um conjunto limitado de atores sociais (indivíduos e grupos); b) ações e comportamentos sociais destes atores; c) um evento ou conjunto de 50 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia eventos, que referencia a situação social a um dado momento do tempo.”. (Oliveira F, 1988, p. 55). Logo, a noção de situação social fornece uma unidade agregada mínima para análise, diferente do fluxo contínuo e total de ações que constitui a própria realidade. Além disso, as situações sociais têm ainda uma função: explicitar e definir certos padrões nas relações sociais, ou dizendo de outra maneira, modos de ação-reação entre os grupos, que correspondem a dinâmicas estruturais, ou ao que Gluckman denomina “equilíbrios”. As “situações sociais” podem ser relacionadas a outras situações sociais, dentro do presente etnográfico, mas também a modos de distribuição do poder, a diferentes “equilíbrios” que expressam a diferentes temporalidades históricas. Neste sentido, a noção de “situação social” é uma chave para a análise de certas configurações sociológicas e históricas, já que permite ver tanto a organização dentro de uma sociedade quanto correlacioná- la a um padrão historicamente determinado. A noção de situação histórica, formulada por Oliveira Fº deriva teoricamente da noção situação social, e se apresenta como um desenvolvimento teórico desta perspectiva: “... uso aqui a expressão situação histórica, noção que não se refere a eventos isolados, mas a modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais. (...) O que assim se designa é o resultado de uma análise situacional, pressupondo portanto o manuseio de situações sociais (no primeiro sentido) e da noção de campo. Trata-se de uma construção do pesquisador, uma abstração com finalidades analíticas, compostas dos padrões de interdependência entre os atores sociais, e das fontes e canais institucionais de conflito”. (Oliveira Filho, op.cit, p.57). A noção de situação histórica se apresenta assim como uma forma de constituir um padrão de relações a partir da análise das ações concretas dos atores sociais. O “equilíbrio” indicado por Gluckman, corresponde aqui à noção de situação histórica. Outros conceitos construídos com base na idéia de “processo social”, são os formulados por Victor Turner, de dramas e empreendimentos sociais. Estes conceitos “são perpassados pela idéia de que a vida social humana é a produtora e o produto do tempo, que torna-se sua medida” (Turner, 1974,p.24). Estes conceitos se apresentam fundamentalmente como ferramentas adequadas à análise da dinâmica social, no seu caráter essencialmente transformativo: “Os funcionalistas da minha época na África tendiam a pensar a mudança como “cíclica” e “repetitiva” o tempo como o tempo estrutural, não o tempo livre. Como minha convicção sobre o caráter dinâmico das relações sociais eu vi o movimento tanto como a estrutura, a persistência tanto quanto a mudança. Eu vi as pessoas interagindo, e como os dias se sucediam, as conseqüências das suas interações. Eu então comecei a perceber uma forma no processo do tempo social. Esta forma era essencialmente dramática. Minha metáfora e modelo aqui foi uma forma estética humana, um produto 51 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia da cultura não da natureza. Uma forma cultural foi o modelo para um conceito científico” (Turner, 1974, 32). Enquanto “unidades processuais”, esses conceitos são definidos da seguinte maneira: “Os dramas e empreendimentos sociais– como também outros tipos de unidades processuais – representam seqüências de eventos sociais, que vistos retrospectivamente por um observador, podem se mostrar possuidores de uma estrutura. Tal estrutura temporal, diferente da estrutura atemporal (incluindo as estruturas conceptuais, cognitivas e sintáticas) está organizada primariamente através de relações no tempo em vez do espaço, embora, naturalmente, esquemas cognitivos sejam eles próprios o resultado de um processo mental e tenham qualidades processuais”. (Turner, op.cit, p. 34-35) Neste sentido, sendo os dramas e os empreendimentos sociais unidades processuais, é preciso indicar que se referem a tipos de processo social distintos, que recobrem diferentes situações. “Entre estas unidades processuais harmônicas estariam o que eu chamo de empreendimentos sociais primariamente econômicos em caráter, como quando um moderno grupo Africano decide edificar uma ponte, escola ou estrada, ou quando um grupo polinésio tradicional, como os Tikopia de Firth, decide preparar tumerico, uma planta da família do gengibre, para tintura ritual ou outros propósitos” (Turner, op.cit, p. 34). Assim, o empreendimento social (social enterprise) é caracterizado basicamente pelas relações de cooperação. O conceito de drama social, por sua vez, recobre uma realidade distinta: “Dramas sociais, então, são unidades de processo desarmônico ou a-harmônicos, surgindo em situações de conflito. Tipicamente eles tem quatro fases de ação pública, acessível a observação. Estas são”: 1) Ruptura das relações sociais de indivíduos e grupos dentro do mesmo “campo ou sistema social”; Tal ruptura é sinalizada pela ruptura de normas de convivência. 2) ascensão da crise, com a extensão da ruptura a outros domínios de relações sociais, de maneira coextensiva a outras clivagens existentes. 3) a das ações reparadoras, que visam conter a crise; é nesta fase que as técnicas pragmáticas e ação simbólica alcançam sua maior expressão; 4º) reintegração do grupo social ou legitimação do “cisma” – o que pode significar a secessão de uma unidade, família ou aldeia. (Turner, 1974, 3871). Neste sentido, o drama social, enquanto construto analítico, fica sempre em aberto, de maneira que podemos, retrospectivamente, relacionar acontecimentos e processos, aparentemente desconexos, num quadro, estrutura ou dinâmica, na qual se apresentam como seqüência ou desdobramento, no tempo e espaço, de outros acontecimentos e processos. Assim, a realidade etnográfica, descrita e analisada através dos “dramas e empreendimentos”, pode ser pensada como 52 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia uma seqüência contínua de transformações, de empreendimentos a dramas, de dramas a empreendimentos. As inversões podem ser processar, e o tempo cíclico ou repetitivo se transformar em tempo dinâmico. Pretendemos aplicar o método do estudo de casos desdobrados a etnografia terena. Este método consiste em: “Uma história de casos-desdobrados é a história de um grupo ou comunidade singular através de um considerável período de tempo, coletado como uma seqüência de unidades processuais de diferentes tipos, incluindo os dramas sociais e os empreendimentos sociais antes mencionados”. (Turner, op.cit, p.43) Cultura e Grupos Étnicos É importante aqui definirmos como estamos considerando o conceito de cultura. O conceito de cultura tem de se ajustar a esta situação especifica. Neste sentido Fredrik Barth afirma que: “o problema conceitual na discussão do pluralismo é, identificar e separar o que ocorre numa comunidade formada por uma pluralidade de linhas culturais, nenhuma das ênfases permite dizer o que faz parte de uma das culturas das pluralidade do que faz parte da outra. Todo habitante de uma comunidade plural precisa saber muito mais do que aquilo que faz parte de uma das culturas coexistentes (Barth, 1992). Ou seja, dentro de uma localidade marcada pela pluralidade, existem dificuldades específicas, e a principal delas, é delimitar com clareza, quando uma cultura termina e outra começa. Além disso, uma vez dada as relações sociais, os conhecimentos que compõem as ações simbólico-expressivas e garantem a comunicação e interação no contexto societário plural ou multi-cultural, tem de circular entre os diferentes grupos, de maneira que cada grupo concreto obrigatoriamente trabalha com diversas referências simbólicas. O conceito de cultura pode ainda ser qualificado como: “...tradições culturais, cada uma delas exibindo uma agregação empírica de certos elementos e formando conjuntos de características coexistentes que tendem a persistir ao longo do tempo, ainda que na vida das populações locais e regionais varias dessas correntes possam misturarse. (...) O principal critério é que cada tradição mostre um certo grau de coerência ao longo do tempo, e possa ser reconhecida nos vários contextos em que coexiste com outras em diferentes comunidades e regiões”. (Barth, 2000, p.123-124). Neste sentido, chega-se a uma primeira definição de cultura, entendida como “tradição”, no sentido que ela representa algo que as pessoas herdam, empregam, transformam, adicionam, e transmitem (Barth, 1992). “Tais conceitos deveriam servir para enfatizar propriedades tanto de separação quanto de interpretação, sugeridas talvez por correntes ou fluxos imaginários de um rio, que está de forma distinta, poderosa a transportar objetos e criar redemoinhos de água, no entanto somente relativo em sua distinção e efêmero em sua unidade” (Barth, ibdem). A cultura tem um 53 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia primeiro aspecto, que poderíamos chamar de processual, é mediada por ações (empregar, transmitir, interpretar). Logo, podemos dizer que, cada cultura ou tradição cultural, que opera enquanto fluxo ou corrente (no sentido da metáfora de Barth), pode ser identificada e distinta das outras dentro da situação de pluralismo pela sua capacidade de auto-reprodução através do tempo, e pelo conjunto de saberes/conhecimentos que articula. A análise das tradições culturais, parte do pressuposto que esta é um universo de discurso e, a partir disso deve-se; “(i) caracterizar seus padrões mais destacados; (ii) mostrar como ela se produz e reproduz, e como mantém suas fronteiras; (iii) ao fazê- lo, descobrir o que permite que haja coerência, deixando em aberto para ser solucionado de maneira empírica, como e em que grau seus conteúdos ideativos chegam a formar um sistema lógico fechado como tradição de conhecimento. Devemos também estudar os processos sociais pelos quais essas correntes se misturam, ocasionando pro vezes interferências, distorções e mesmo fusões”. (Barth, 2000, p.126-127). O conjunto de recomendações de Barth para o estudo da cultura pode ser sintetizado da seguinte maneira: “1. O significado é uma relação entre uma configuração ou signo e um observador, e não alguma coisa sacramentada em uma expressão cultural particular. Criar significado requer o ato de conferi-lo (...) Para descobrir significado no mundo dos outros (...) precisamos ligar um fragmento de cultura e um determinado ator, à constelação particular de experiências, orientações e conhecimentos desse ator.”. 2. Em relação à população, a cultura é distributiva, compartilhada por alguns e não por outros. (...) As estruturas mais significativas da cultura – ou seja, aquelas que mais conseqüências sistemáticas tem para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas sim em suas distribuição e padrões de não compartilhamento”. 3. “Os atores estão (sempre essencialmente) posicionados. Nenhum relato que pretenda apresentar a voz dos próprios atores tem validade privilegiada, pois qualquer modelo de relação, grupo ou instituição será necessariamente uma construção antropológica”. 4. Eventos são o resultado do jogo entre causalidade material e a interação social, e conseqüentemente sempre se distanciam das intenções dos atores individuais. Precisamos incorporar ao nosso modelo da produção da cultura uma visão dinâmica da experiência como resultado da interpretação de eventos por indivíduos, bem como uma visão dinâmica da criatividade como resultado da luta dos atores para vencer a resistência do mundo”. (Barth, op.cit, p.128-129). Essencialmente, uma outra característica da cultura, é que ela é distributiva, ou seja, o significado enquanto relação varia conforme variam as perspectiva e posições dos atores sociais. Não se pode então, descrever e compreender uma cultura sem considerar os seus modos de distribuição entre os grupos sociais concretos. Mas podemos adicionar ainda, uma outra definição para o conceito de cultura, que funcionará de maneira complementar as definições dadas acima. Nesta definição “...a cultura comunica: a interconexão complexa dos fatos culturais transmite, ela própria informação aqueles 54 Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia que participam desses fatos. Visto isso, minha proposição é sugerir um procedimento sistemático que o antropólogo observador participante possa utilizar para decodificar as mensagens contidas nas complexidades que ele observa”. (Leach, 1978, p. 8) Logo, o papel da cultura para Leach, é comunicar, é dizer algo, o que supõe necessariamente, três elementos: o emissor, a mensagem, e o receptor. E “A comunicação humana é alcançada através de ações expressivas que operam como sinais, signos e símbolos”. (Leach,1978,p.15). A comunicação realizada pela cultura se dá por meio de ações expressivas, ações que carregam significados e dizem algo para alguém. Esta posição é compatível com a posição de Barth17 . O que mais nos interessa na definição de Leach, é sua forma de conceituar a cultura enquanto um sistema simbólico, no sentido de um conjunto de signos/símbolos: “As letras do alfabeto romano são símbolos se usadas em equações matemáticas, mas quando usadas no contexto de uma transcrição verbal possuem valores fonéticos convencionais, aproximadamente fixados e tornam-se signos. Neste ultimo contexto, qualquer letra particular sozinha não têm significado, mas em combinação os subgrupos das vinte e seis letras-signos existentes podem representar centenas de milhares de diferentes palavras das mais diversas línguas”. (Leach, 1978, p.20). A cultura é composta de três elementos fundamentais: o símbolo e o signo (decomposto por sua vez em significado e significante). (Leach, op.cit, p.21). E o que é mais importante, “... o significado depende da transformação de uma modalidade em outra (metáfora/metonímia)...”, ou seja, o signo em símbolo e vice-versa. (Leach, op.cit,p.33). Quer dizer, se os signos expressam formas simbólicas pré-determinadas por culturas ou sistema simbólicos, o símbolo diz respeito à liberdade de associar estas formas à expressão a outras culturas e sistemas, e o significado só se constrói pela transação se símbolos/signos entre diferentes contextos culturais, de maneira que não podemos desconsiderar esta dimensão da troca e conversão para a constituição de cada cultura ou sistema simbólico. É com este sentido que entendemos o conceito de cultura, como sistema simbólico, ou seja, como conjunto articulado de expressões de sentimentos/idéias através de símbolos (Leach); como processo, especialmente no sentido da dialética ação-idéia-ação, ou seja, os símbolos e formas de expressão simbólica, se materializam em práticas específicas, e se transformam no tempo e no espaço; como distributiva, quer dizer, a cultura se distribui pelos diferentes segmentos componentes de uma sociedade, particularizando-se de acordo com as localizações específicas que as formas culturais assumirem na organização social (Barth). 17 Barth afirma que uma tradição cultural só ganha coerência na ação. (Barth, 2002). 55 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. “Nós, do povo Terena da Terra Indígena “Cachoeirinha”, localizada no município de Miranda-MS, cansados de esperar pelo término do processo de demarcação de nossa terra que há mais de 06 anos encontra -se em andamento pela FUNAI, sem nenhum encaminhamento concreto para sua conclusão, desrespeitando todos os prazos estipulados pelo Decreto 1.775/96 bem como a Constituição Federal, vimos pela presente, manifestar o seguinte: Que o povo Terena, no dia 28 de novembro de 2005 retomou uma parte de sua terra tradicional chamada “Acampamento Mãe Terra” onde incide a fazenda “Santa Vitória”, na expectativa de que o Governo Federal termine de uma vez por todas a demarcação definitiva de nossa terra”. Carta do povo Terena da terra indígena Cachoeirinha para autoridades, Dezembro/2005. Delinearemos neste capítulo as principais características da atual situação histórica, focalizando especialmente os processos de territorialização dirigidos pelo Estado e aqueles dirigidos pelos indígenas, pois esses processos materializam de forma objetiva a interação dialética entre política indígena e política indigenista, o desenvolvimento de formas de resistência e dominação. Iremos descrever tanto a estrutura da situação histórica, quanto à morfologia da sociedade Terena, suas formas de inserção na estrutura econômica e ocupacional regional. Como podemos ver pela epígrafe, este atual momento é marcado pelo desenvolvimento de conflitos fundiários, pela constituição de demandas de acesso ou ampliação das terras indígenas. A luta pela terra e os fatos sociais engendrados por ela, fazem parte de um certo padrão, que expressam mudanças no balanceamento de forças entre os índios e o Estado, que se materializa tanto em processos difusos e localizados quanto em formas políticas mais determinadas (mas sendo resultantes também de processos de transformação macro-estruturais, tanto político quanto econômicos). 2.1 – A Emergência do “protagonismo étnico”. Ao percorrermos as terras indígenas Terena, com suas inúmeras aldeias e postos, e nos relacionarmos com as pessoas que vivem nelas seu cotidiano, percebemos que elas ostentam um certo “orgulho”, expresso numa discursividade de afirmação da sua identidade de índios Terna. Essa discursividade manifesta-se na ostentação do fato de os seus “patrícios 18 ” estarem ocupando diversos espaços que no passado só estavam disponíveis aos “purutuye” (brancos), espaços profissionais, políticos ou administrativos. Os Terena freqüentemente comentam com satisfação o fato de os chefes (ou encarregados) dos Postos da FUNAI em suas terras serem índios da sua etnia, assim como muitos dos funcionários da Administração Executiva Regional da FUNAI. Ressaltam também a importância de uma parte 18 Um dos termos pelo qual usualmente um Terena designa outro (na forma singular) ou o conjunto do grupo (na forma plural). 56 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. significativa dos professores que lecionam nas escolas existentes nas aldeias, e em alguns casos ainda também os funcionários dos postos de saúde, serem índios Terena. Além disso, as Igrejas (evangélicas e católicas) que existem em grande número nos diversos territórios Terena, também são “dirigidas” por índios (presidentes, secretários, tesoureiros), nas organizações religiosas se manifesta também à “hegemonia” indígena. São inúmeras as “Associações” existentes, que buscam a captação de recursos externos - todas elas fundadas e geridas pelos próprios Terena. E a escolha do “cacique”, que foi em diversas ocasiões históricas imposta ou muito influenciada pelo órgão tutelar, hoje é um cargo eletivo e são as próprias aldeias Terena que definem através do voto os seus respectivos líderes. Não são poucos os que apontam a necessidade de os índios terem “representação política” nas câmaras municipais, no sentido de garantir seus interesses (note-se que vários Terena já se elegeram para cargos no âmbito legislativo municipal no estado do Mato Grosso do Sul). Acrescente-se que – e isso é possível de se perceber principalmente nas falas das lideranças Terena, como caciques, membros dos conselhos de aldeia e etc. - que a ocupação destes “espaços” têm um caráter relativamente intencional: eles dizem, por exemplo, que é importante ter escolas para preparar os índios para assumirem todas as tarefas possíveis que lhes dizem respeito (na educação, na saúde, no órgão indigenista), porque, segundo entendem, seria vantajoso para eles enquanto grupo. Ou seja, a realidade atual é explorada pelos Terena tanto a partir de projetos individuais quanto coletivos, seguindo estratégias próprias, o que afeta substancialmente as relações do grupo com os demais agentes (tanto no plano das representações culturais quanto dos efeitos de poder). Para exemplificar como os Terena empregam esse discurso afirmativo e como ele está relacionado a uma prática, podemos citar uma situação social registrada em nosso trabalho de campo. No dia 25/04/2003, ocorreu no PIN Cachoeirinha uma reunião entre representantes da Administração Regional da FUNAI de Campo Grande (todos índios Terena), lideranças indígenas locais e o Chefe do PIN Cachoeirinha (também um índio Terena de Cachoeirinha) para discutir o Programa Pantanal (um programa de desenvolvimento regional). Uma das pessoas presentes na reunião disse “dar “nota O” ao Programa Pantanal”. Um dos representantes da FUNAI falou que “deveriam colocar um patrício na coordenação”. Ele comentou que haviam indicado para a coordenação do programa um técnico, mas que, entretanto “é preciso ter compromisso com a causa19 ”. A FUNAI, assim disse seu representante, “irá encaminhar ao MPF pedido de substituição do coordenador “branco” por um “índio”. “É impossível um índio não ter sensibilidade à causa”, afirmou. As resoluções da reunião, que passariam a ser a posição oficial das aldeias de Cachoeirinha sobre o tema, indicaram: “considerando que os índios não foram 19 A idéia de “causa indigenista” integra o léxico utilizado pelos funcionários e administradores da FUNAI. 57 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. convidados a elaboração, e que não há por isso um ajuste entre as ações do programa e a realidade das aldeias, e que depois do fracasso da produção é o índio o estigmatizado como preguiçoso, propõe-se a nomeação de um índio para a coordenação do programa”. Está muito presente nessa situação social, a luta entre “afirmação identitária e estigamização do índio”, como a “luta simbólica” está associada a “luta pelo poder”. Outra situação social ilustrativa destas questões ocorreu durante a comemo ração do Dia do Índio em 19 de abril de 2003, poucos dias antes do fato acima mencionado. Enquanto estávamos na aldeia Cachoeirinha, na sede do PIN, foi possível ouvir a transmissão de um programa da rádio “FM Terena”, 20 do qual pudemos gravar alguns pronunciamentos. Era um programa comemorativo do Dia do Índio em que participaram convidados especiais, como o administrador regional da FUNAI de Campo Grande, na ocasião Márcio Justino Marcos, lideranças das aldeias de Miranda, e o futuro Administrador da FUNAI, Wanderley Dias Cardoso, índio Terena da aldeia Lalima. Wanderle y, em seu pronunciamento, afirmou: “Bom dia a todos, da aldeia Moreira e Passarinho e aos mirandenses em geral. É um prazer estar revendo companheiros aqui, de partido e lideranças indígenas, também conhecendo esta rádio tem como já foi dita...um instrumento da divulgação da cultura e da força que possui a nação Terena. Nós temos hoje uma data muito especial e eu enquanto historiador, educador, é emocionante falar desta data, porque foi uma luta histórica dos povos indígenas da América do Sul, que através de muita resistência estabeleceu que 19 de abril fosse chamado Dia do Índio.É um dia que para nós é especial. A história do nosso país ela revela um lado triste de tratamento que o sistema de governo, digamos assim, que foi implantado no nosso país, desde a monarquia, de colonização, de exploração, tentou dizimar as populações indígenas de todo o país. Mas nós após 503 anos de país constituído estamos aqui provando o nosso poder de resistência, nosso poder de organização, nosso poder de acreditar nos nossos sonhos. Então resistimos, estamos aqui com a rádio com uma potência dessa, outro dia eu estava lá no centro de Miranda e estava ouvindo um debate que acontecia aqui. Então isto é motivo de orgulho. E com certeza nós estamos num momento histórico em que tá aberto o diálogo, toda discussão concernente à questão indígena. Nós termos aqui uma nova forma de governar, está proposto isso no nosso estado, no nosso país. Então vai valor cada vez mais nossa organização, nossos movimentos. (Wanderley, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003). Outro pronunciamento que merece destaque foi o realizado por Carlos Jacobina (que disputaria, com Wanderley o cargo de administrador regional), irmão do cacique da aldeia Passarinho Wilson Jacobina, e membro do Conselho estadual de Política Indigenista, que falou: “Mas esse momento a gente tá falando dos nossos problemas, das nossas políticas, dos nossos movimentos, Faustino eu quero parabenizar você, parabenizar a direção da rádio, (...) Nós estamos no movimento indígena aqui no município de Miranda, bem como no estado, a gente enfrenta dentro do movimento divergência de nossas lideranças, de nossos patrícios. 20 Rádio Comunitária que tem sua sede funcional na aldeia de Moreira, a alguns quilômetros de Cachoeirinha, também município de Miranda. 58 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Só quero relembrar quando pessoas se colocaram contra a rádio (...) Qual a importância da radio FM Terena no município de Miranda, a importância da radio Fm Terena para nossa população indígena registrando a presença do administrador, do vice-prefeito, registrando a presença da presidente do partido, das lideranças indígenas, do Néder Vedovato presidente da Câmara dos Vereadores, a gente conversando com você ouvinte, morador aqui da aldeia, que vive o dia a dia daqui da aldeia, vive os problemas o quanto é importante essa radio. Eu quero fazer meu apelo da população indígena daqui da aldeia Moreira para que apóie a FM Terena, temos que apoiar, porque é através desse veiculo que nós levamos a comunicação, levamos a novidade, nós levamos a noticia, nós fazemos nossa proposta, nós fazemos nossas colocações sobre a política indigenista. Parabéns Faustino, parabéns aldeia Moreira, por ter a honra de ter uma rádio, a FM Terena, ter uma rádio que tem um momento da cultura indígena Terena, é o momento de nossas comunidades indígenas começar a refletir sobre nossas potencialidades, das nossas demandas, que são os nossos professores, que sãos as nossas organizações evangélicas, são as lideranças indígenas, os conselheiros tribais, as associações, movimentos indígenas, as rádios comunitárias que temos nas aldeias é o momento de nós refletirmos, dizermos não a exploração, e aonde a população indígena quer chegar. (...) (Carlos Jacobina, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003). O discurso de Wanderley fala do “poder de resistência, poder de organização” dos índios, dentro da história brasileira (e a categoria resistência aprece em diversos momentos na composição narrativa). O discurso de Jacobina fala de “potencialidades e demandas” ao citar um conjunto heterogêneo que inclui professores, organizações evangélicas, lideranças e rádios comunitárias. Os dois discursos considerados permitem indicar que dentro das aldeias Terena, existe um discurso, uma narrativa auto-afirmativa acerca da história indígena, que evoca a idéia de “resistência” e que expressa um posicionamento quanto ao “lugar que o índio” deve ocupar na sociedade. As identidades acionadas (historiador, educador) mostram também as posições políticas e as bases concretas, factuais, do discurso de afirmação identitária. Esse discurso e essa prática se expressam em fenômenos diversificados, difusos, que se apresentam como um campo de estudos e problemas etnográficos, teóricos e políticos. Acreditamos que destas evidências do discurso indígena (que dado seu contexto de enunciação, são fragmentos de ações políticas) são sintomas de um processo social- histórico de transformação das relações de poder entre índios, grupos sociais dominantes e o Estado-Nacional. O que está na base deste processo é a emergência do que podemos chamar de protagonismo étnico, num contraponto direto às bases simbólicas e políticas do regime tutelar instituído em 1910 com a criação do SPI e ratificado pelo Estatuto do Índio de 1973. Este protagonismo étnico recobre um conjunto heterogêneo de intervenções e ações políticas indígenas. Oliveira Filho apontou que os índios formularam diferentes práticas ou estratégias políticas frente ao regime tutelar que lhes foi imposto: 59 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. “Frente à estrutura tutelar, os indígenas se encontram diante de três alternativas concretas. A primeira, que para simplificar definiremos como índios funcionários, é que os índios entrem no jogo das relações clientelistas estabelecidas com os indigenistas, encontrando ai canais de acesso ao uso de recursos coletivos e a acumulação de bens materiais e prestigio. A segunda que chamaremos de assembléias indígenas, se refere à mobilização por terra e assistência. A terceira que chamaremos de organização indígena, busca criar mecanismos modernos de gestão territorial e desenvolvimento. Há também outras alternativas – que envolvem na sua maioria formas de mobilidade individual e familiar ..”. (Oliveira Filho, 2006, p. 137) Dessa maneira, estamos considerando diferentes possibilidades de intervenção política indígena, mas em todas elas o regime tutelar é não somente o contexto geral, mas o próprio alvo direto dessa intervenção. Além disso, os dados globais mostram que esse fenômeno verificado entre os Terena é generalizado nas sociedades indígenas, e que as três formas de intervenção política têm efeitos agregados muito importantes. Hoje a FUNAI afirma possuir 1300 funcionários indígenas, num universo de cerca de 3000, ou seja, mais de 40%. Com relação às assembléias indígenas, suas proposta eram encaminhadas através de uma sucessão de encontros e reuniões realizados em escalas diversas, recobrindo desde as aldeias até pólos regionais e das capitais, sendo iniciadas em 1974 em Mato Grosso. Tais assembléias até o final da década de 1970 chegaram a 15; entre 1980 e 1984 foram realizados 42 encontros desse tipo (Oliveira Filho, 2006, p.137-138). Com relação às organizações indígenas, houve também um processo importante. “Em 1991 já eram 48, em 1996 somavam 109 e em 1999 alcançaram as 290. Desse total, 195, ou seja, mais de 2/3, estavam situadas na Amazônia, refletindo a prioridade brindada a essa região nos financiamentos internacionais”. (Oliveira Filho, 2006, p. 145) O conceito de protagonismo étnico visa apreender esses processos difusos de mudança nas relações e cadeias de poder (mudança que significa que as diferentes posições dentro de instituições, comunidades, espaços de produção, estão tendo sua função e significado redefinidas). Isso quer dizer que um símbolo, um posto administrativo ou profissão passam a ter importância estratégica dentro dos esquemas e relações de poder, podendo representar maior acesso ao controle de recursos ou expressar simbolicamente um aumento de status de certos sujeitos (ou a destruição de certas representações, legitimadoras das formas de dominação). O protagonismo étnico, em termos sociológicos, é a afirmação da capacidade política indígena, do seu caráter de sujeito e de sua capacidade de “governo”, o que exige três elementos básicos: 1) a constituição de centros de ação política, formais ou informais; 2) a formação de idéias ou discursos comuns que delimitam fronteiras de oposição política e se opõem à certas idéias da estrutura de dominação; 3) o aumento do poder dos grupos submetidos a essa estrutura. Essas características se aplicam à realidade dos Terena enquanto grupo étnico. 60 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Mas é importante perceber que na realid ade sob o protagonismo étnico, se encontram estratégias não somente diferentes, mas contraditórias21 . Poderíamos agrupar em duas grandes vias de ação política, que se relacionam de forma diferentes com a estrutura de dominação, ou seja, a política indigenis ta e o regime tutelar. O discurso de “Marcos Terena” deixa muito claro o delineamento de uma dessas vias: “Temos a plataforma de uma Secretaria Especial de Direitos Indígenas e um índio na presidência da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Esse trabalho o governo já sinalizou que é possível, mas temos que construir isso de acordo com as possibilidades. Chegou o momento do índio não só requerer direitos, mas responsabilidade, co-participação.” Esse discurso foi pronunciado numa Conferência Regional em Brasília realizada com o apoio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e da Organização das Nações Unidas. O tema do evento são os avanços e desafios do “Plano de Ação Contra o Racismo”. Cerca de 400 representantes de 35 países participaram do encontro, que avaliou os compromissos firmados no encontro de Durban (África do Sul) em 2001. Poderíamos denominar essa via, apontada por Marcos Terena como a “via da co-gestão indígena”, ou seja, que visa estabelecer mecanismos que possibilitem aos índios se tornarem co-gestores das instituições políticoadministrativas do regime tutelar. Isso tem uma série de efeitos de poder e significados sociológicos. Num certo sentido, esta via da co-gestão é sustentada por grande parte das lideranças e população Terena, se apresentando como um projeto político compartilhado por diferentes facções e comunidades locais. Mas essa via não esgota as alternativas, até porque as variações no campo e nas arenas das relações interétnicas (como o conflito fundiário) possibilitam a introdução de novas estratégias de intervenção política (como as ocupações de terra), que modificam os processos locais. Uma outra via, é a da “resistência aberta”, e que se opõem de forma local e concreta, aos principais efeitos e mecanismos de poder do regime tutelar, pautada num enfrentamento político contínuo. Mas a resistência se coloca – como no documento citado na epigrafe – como forma de pressão sobre o Governo, pelo menos no seu momento inicial. Essa via se esboça hoje, e assim como a via da co-gestão, é um desdobramento das formas cotidianas de resistência dentro das aldeias Terena, compondo assim um quadro de alternativas complexas e contraditórias. 21 “Deixando de lado os impactos sobre a opinião publica e com relação ao reordenamento da política oficial, os resultados desse processo foram relativamente limitados sobre a forma de organização política das aldeias e sobre o controle dos territórios étnicos. Os mediadores indígenas que tinham uma fonte de poder externa a aldeia e de fora dos mecanismos de controle da coletividade que pretendiam representar, se tornaram progressivamente frágeis frente ao poder de Estado e as acometidas dos setores poderosos da sociedade. Apenas especialistas na função de intermediação para fora, muitas das lideranças indígenas terminaram por ser capturadas nos anos seguintes pela estrutura tutelar, transformando-se em braceros, em chefes de posto, em professores bilíngües, monitores de saúde ou ate administradores regionais e assessores (em Brasília).” (Oliveira Filho, 2006, p. 143) 61 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. A existência e o significado da emergência deste protagonismo étnico, e as contradições inerentes a esse processo, só podem ser compreendidas pela caracterização da estrutura de dominação na qual este protagonismo emergiu, e mediante o entendimento dos efeitos dialéticos da interação de ambas as vias. Por isso é impossível compreender a emergência desse protagonismo étnico sem compreender o que é o regime tutelar. É essa tarefa que nos dedicaremos agora. 2.2 – Signos da Superioridade, Códigos do Domínio. Em 1911 o tenente Alípio Bandeira pronunciou um discurso na sessão de instalação da Inspetoria do SPI no Amazonas. Este discurso seria publicado com alguns outros documentos (Memorial com um projeto de lei em que se define a situação jurídica do índio brasileiro, O Decreto nº 5484 de 27 de Junho de 1928 que regula a situação jurídica dos índios nascidos no território nacional , Regulamento do serviço de Proteção aos Índios e Localisação de Trabalhadores Nacionaes) num livro intitulado “Coletânea Indígena”, editado pela tipografia do Jornal do Comércio em 1929. Este conjunto de docume ntos serve para analisarmos as bases simbólico-culturais e teóricas da política de assistência e proteção aplicada pelo Estado aos índios, política esta que criou a relação e regime tutelar (tal como ela existiu no século XX). O texto do discurso de Alípio Bandeira começa da seguinte maneira: “A voz estrangulada de doze gerações de martyres brada contra nos através de quatrocentos annos de extermínio. Voz de infortúnio e desespero (...) e fala como uma trompa apocalyptica do sacrifício de alguns milhões de índios, que, em vez de termos chamado ao convívio da civilização, imolamos barbaramente aos ditames da nossa ganância, da nossa fereza até- força é dizel-o – da nossa covardia. Voz de maldição e de praga, ella penetra a nossa consciência, e, sob a forma viperina de remorsos, recorda-nos os processos tenebrosos que empregamos na conquista da costa pelo colono..”. ” (Bandeira, 1929, p.4) A narrativa adotada traça uma leitura histórica do processo de conquista colonial, expressando uma espécie de “consciência culpada do branco” acerca de sua relação com os povos indígenas; é um discurso de denúncia e ao mesmo tempo, uma confissão, como se as palavras enunciadas por Alípio Bandeira, expressassem a “voz” da sociedade branca diante de um tribunal, sendo o acusado e o acusador os mesmos sujeitos. A análise da história indígena ressalta que no passado o “extermínio ou o etnocídio” se impuseram como formas dominantes de relação entre brancos e índios; ao mesmo tempo esta analise lançava um alerta, sobre a possibilidade de reedição deste etnocídio. É também realizada uma apologia dos índios, da “resistência” que eles ofereceram a este processo: “Elles resistiram: nós os intrigamos uns com os outros, para enfraquece-los. Resistiram ainda: nós os fomos surpreender em outros pontos. Elles recuaram diante da superioridade da força e 62 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. se embrenharam pelas florestas remotas; nós os procuramos ai mesmo e, ainda pelo processo da investida traiçoeira, destruímos impunemente o ultimo refúgio dos desgraçados”. Nesse hediondo quadro de desolação e morte, não sei eu o que mais deva impressionar a alma do patriota; si a resistência épica dos míseros habitantes das selvas, entregues aos seus insignificantes recursos, reduzidos aos mais elementares meios de defesa, divididos, ludibriados, desprotegidos, si a ignobil constância na perseguição, apesar da fraqueza da victima e, portanto, da cobardia do feito”. (Bandeira, op.cit,p.6). O ponto de partida da análise histórica de Bandeira é a constatação da luta de morte entre os índios e a sociedade nacional, de maneira que a “resistência indígena” se opunha ao “extermínio branco”. A resistência indígena é celebrada pelos militares positivistas fundadores do SPI. Mas é fundamental observar que a resistência, tal como concebida pelos militares, está inserida em uma série de teses e signos que dão um significado bem preciso a ela; na realidade a resistência indígena está associada a uma “idade de ouro” das sociedades indígenas que o próprio extermínio e conquista colonial liquidou. A resistência pertence a esta idade de ouro que desapareceu em face do avanço da conquista e colonização do território. Existe no discurso dos militares uma visão que poderíamos chamar de romântica e passadista, acerca da resistência indígena; romântica no sent ido que essa resistência é objeto de veneração, mas considerada ineficaz, impotente; passadista pois ela está associada necessariamente a um passado perdido. A narrativa histórica positivista leva a “vitimização dos índios”, entendendo a vitimização como a junção estrutural entre a denúncia do genocídio e a afirmação sub-reptícia da incapacidade indígena. Esta narrativa histórica visa fornecer o contexto básico para a tomada de um posicionamento político; mas ela prepara o terreno também a enunciação de teses, digamos, acerca da natureza e do caráter do índio. E assim é que se delineiam as bases simbólico-culturais da tutela.Vemos isso através do discurso: “O português que no século XVI aportou as plagas do Brazil, encontrou nesta parte da América povos de assimilação facílima, a julgar pelo testemunho dos antigos navegadores e viajantes. Eram sóbrios, confiantes, dóceis e ingênuos e, como tal, amigos da festa e da alegria. Estavam esses povos na infância da humanidade e, portanto, participavam assim dos vícios e virtudes inherentes a essa situação. Sendo como creanças que a educação amolda e modela à vontade e feição do educador, uma sábia e humanitária política tel-os-ia aproveitado tanto para o desbravamento da terra como para o concurso intellectual e moral que era licito esperar delles”. (Bandeira, op.cit,p.8) O índio aparece como um tipo de sujeito coletivo suscetível de assimilação, de caráter “dócil e ingênuo”. Mas o mais importante, o índio aparece como uma “criança simbólica”, ocupando um estágio infantil na escala de evolução da humanidade. É a educação, uma relação pedagógica na qual a sociedade nacional ocupa o papel de “professor” e as sociedades indígenas de “alunos”. 63 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. “Sabe-se que não é a inntelligencia o característico predominante na raça amarella, a que pertence o aborigenme brasileiro. Seu princvipal principal atributto é a actividade, coimo a intelligencia o é do branco e sentimento do negro, conforme a melhor apreciação philosofica. O índio não é, pois, um typo que se distingua pela capacidade intellectual; d´ahi, porem, a consideral-o estúpido vai tão grande erro como iria em suppor o branco malvado por não ser o sentimento o seu apanagio” (Bandeira, op.cit,p.14-15). Esta tipologia de “raças” indica ao mesmo tempo uma diferenciação de aptidões e capacidades. O índio é considerado como pouco propenso às atividades intelectuais e apto as “atividades” (ao trabalho). O índio é considerado como possuidor de baixa capacidade intelectual. Na realidade, toda a análise histórica de Alípio Bandeira prepara suas considerações sobre a situação do índio no início do século XX. Ele afirma: “Pouco differe a situação actual do indígena brazileiro da em que elle se encontrou nos tempos coloniaes.(...) “Esta precaríssima situação, inverso de todos os princípios de justiça e humanidade, é uma resultante do desprezo em que os poderes publicos deixaram o mais genuíno elemento da população nacional”. ” (Bandeira, op.cit,p.20- 21) E aqui se coloca a conclusão principal: a situação de opressão vivenciada pelos índios era decorrente da não intervenção do Estado – enquanto mediador – nas relações entre a sociedade nacional e sociedades indígenas. Esta situação de omissão dos poderes de Estado diante da questão indígena somente teria sido resolvida pela criação do SPI em 1910, que cumpriria a missão de “proteção e assistência” aos povos indígenas. O papel do SPI era o de retirar o índio da situação de degradação e colocá- lo dentro da civilização. É esta tarefa que Alípio Bandeira entende ser definidora do SPI. Ao falar sobre o regulamento do SPI, ele diz: “Mas o que realmente preoccupa o espírito do regulamento é a proteção em todos os sentidos ao índio brazileiro, já fornecendo-lhe gratuitamente tudo o que precise desde o alimento até a ferramenta de trabalho..”. (Bandeira, op.cit, p.24) Ao mesmo tempo em que se define uma obrigação do Estado para com os Índios, estabelecesse-se um plano de utilização para os mesmos: “E depois não seria mais nobiliante que os filhos da terra fossem os desbravadores do seu solo, os cultivadores da gleba, os guardas da fronteira?” (Bandeira, op.cit, p.26). A formação do “índio-trabalhador e o índio-soldado” aparece como meta e razão de ser da política de Estado, coroando toda a análise histórica e a caracterização da natureza do índio realizadas por Bandeira. No outro documento componente da mesma publicação, temos um “Memorial acerca da antiga e moderna legislação indígena com um projeto de lei apresentado ao tenente Coronel Candido Mariano da Silva Rondon” por Alípio Bandeira e Manoel da Costa Tavares Miranda”. Este memorial se apresenta como fundamentação histórica e teórica a proposta de regulamentação da situação jurídica dos índios, como os autores declaram: “Dando unidade e 64 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. corpo as idéias predominantes deste memorial, no intuito de reduzil-as a um instrumento legal de proteção aos índios, organizamos o projeto de lei que vae appenso e que, com a devida vênia, apresentamos”. (Bandeira & Miranda, 1929, p.70-71). Este documento apresenta uma análise da “legislação indígena” desde o século XVI até o século XX, criando uma polarização entre os defensores da escravização e extermínio dos índios, e aqueles da proteção e liberdade.Também tenta mostrar como a legislação era contraditória, oscilando sempre entre estes extremos. Algumas formulações acerca do caráter do índio são adicionadas. Exatamente porque se visava formular uma proposta de regime político e jurídico para a administração dos índios. Vejamos: “Ora, sucede que ao índio, ao menos enquanto não se modificar sufficientemente a sua situação – o que só é possível pelo convívio social - não é razoável que si outorguem certos direitos e menos ainda que se imponham outras tantas obrigações. Estas e aquelles seriam innumeras vezes, por falta de capacidade do sujeito, inteiramente descabidos. Deve, pois, haver não apenas restricção de regalias, mas também, e especialmente, diminuição de responsabilidade. Evidentemente o índio que comete, por exemplo, um assassinato, não pode ser passível das mesmas penas que se applicam em taes casos ao civilisado (...) “Ainda quando sejam eles equiparados a menores, muito é de considerar a grande differença que existe entre um menor creado e educado no seio da sociedade civilizada, conhecedor dos hábitos e noções correntes no meio em que vive, e um habitante das selvas que, sobre desconhecer estes habitos e noções, é ainda movido e dominado por costumes radicalmente diversos”. (Bandeira & Miranda, op.cit, p. 63) A analogia índio/criança tinha uma limitação objetiva: uma criança não indígena sempre seria mais apta a viver e interagir na sociedade nacional que o índio. Desta maneira, o índio é pensado como silvícola (em oposição ao civilizado), diferente culturalmente, e esta diferença e distancia é o que o impede de ser sujeito de direitos e deveres, ou seja, politicamente capaz. Os discursos de Bandeira e Miranda, que na realidade expressavam o discurso do SPI, articulam por meio de uma narrativa histórica diversos signos/representações, que visam dar significado tanto a categoria índio (e os grupos sociais que ela recobre) quanto a política de Estado estruturada em torno dela (ao mesmo tempo justificando e apontando seus meios e objetivos). Podemos falar de um conjunto de signos acionados pelo discurso dos militares do SPI, que traduzem sempre uma relação de desigualdade de capacidade e de poder, composta por pares de oposição que estruturam a idéia de tutela: a oposição “adulto/criança” (que se funda numa analogia com os ciclos biológicos); a oposição “civilizado/primitivo” ou selvagem (tipos de sociedade, nível social, técnico e cultural); a oposição “capaz/incapaz” e (no sentido político, mas também, intelectual e biossocial, já que a incapacidade está associada ao “caráter fisiológico” e ao “tipo de sociedade” do índio). Este conjunto de signos remete sempre a desigualdade, mas não através do mesmo conteúdo simbólico, e podemos dizer que são signos porque fazem parte de um conjunto, 65 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. dentro de uma estrutura narrativa acerca da história indígena e dão sustentação as idéias de assistência e proteção do Estado. Os índios são considerados como crianças, como estando na “infância da humanidade”, mas estão aquém das crianças civilizadas; desta maneira a distinção entre “civilizado e primitivo”, define uma fronteira ainda mais acentuada, e diz que infantilidade não é suficiente para traduzir a condição do índio em face da sociedade nacional; por outro lado, a oposição “capaz e incapaz”, é a conclusão política e societária das duas oposições anteriores. O índio pode ser considerado como criança porque é primitivo/selvagem, mas sendo primitivo está aquém das próprias crianças civilizadas, e sendo assim rebaixado duplamente, ele é duplamente incapaz, no sentido de que está fora da civilização e quando se aproxima desta é colocado numa condição de infantilidade. Este raciocínio foi fielmente traduzido na regulamentação jurídica do regime tutelar, através da categorização dos índios. As representações acerca da superioridade/inferioridade, infantilidade/adultidade, capacidade/incapacidade, estão associadas ao mesmo tempo a uma interpretação da história formulada dentro dos aparelhos de Estado e por agentes sociais como os militares, vinculados organicamente a este mesmo Estado. É pelo fato do índio ser concebido/percebido a partir destes signos, que se coloca a idéia de proteção e assistência como centrais. Sendo o índio incapaz, ele precisa de um protetor, de alguém que o represente e atue como provedor. A idéia de “proteção” é associada ao “controle”, sendo a tutela a forma concreta pela qual se estabelecem as formas de proteção e controle do Estado sobre os índios. O papel político, a ação e pensamento indígenas são obliterados, colocados como meramente determinados pela sociedade nacional e pelo EstadoProtetor. No fim, o Estado aparece como o verdadeiro e único sujeito da história indígena, já que – sendo o índio incapaz, este somente existe graças ao Estado. Assim a relação e o regime tutelar, aparecem como único meio possível de impedir o extermínio final e definitivo dos índios. O índio não existe sem a tutela. É interessante observar que esta tese (a de que ausência de proteção do Estado é o fator determinante para a história indígena) acaba sendo compartilhada por muitos estudos sobre os Terena, como por exemplos os clássicos de Kalervo Oberg, Fernando Altenfelder e Roberto Cardoso. Partindo de teorias da “aculturação e assimilação”, normalmente fazem afirmações que indicam que a sobrevivência dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado, só foi possível pela intervenção do Estado através do SPI (OBERG, 1948, p.291 e OBERG, 1949, p.35). Correntes da antropologia e do pensamento cientifico acabavam reificando, dessa maneira, o discurso indigenista ou estatal. 66 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. 2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses. De acordo com as definições tradicionais: “A tutela em direito civil, designa o instituto que, juntamente com o pátrio poder e a curatela, integra o sistema legal de proteção aos incapazes. Pode ser conceituada como o ‘encargo conferido a alguém para que dirija a pessoa e administre os bens do menor que não incide no pátrio poder do pai ou da mãe”. (Dicionário de Ciências Sociais, FGV). Enquanto dispositivo jurídico, se apresenta fundamentalmente como uma intervenção na relação familiar, para regular o patrimônio ou propriedade, transmitidos através do direito de herança, em situações em que a criança se encontra órfã ou similares (ou seja, sem o controle da família). O tutor se apresenta como um substituto da “família”, e também como um substituto/representante da criança em atos civis. Desta maneira, a tutela se apresenta como uma intervenção transitória e em caráter excepcional, regulamentada pelo Estado, no direito de propriedade e na liberdade individual (ir e vir, decidir, expressar), dentro da relação família- indivíduo. Mas o regime tutelar nesta forma se baseia no pressuposto de que a situação de tutelado é “transitória”, é um intervalo de tempo em que o individuo – a criança – cresce e adquire a capacidade exigida para exercer seu direito de propriedade e seus direitos civis. Ela estaria então, objetivamente limitada, pelo ciclo biológico do individuo, de maneira que escapa ao tutor, determinar até quando o tutelado ficaria nesta condição. A tutela é uma categoria jurídico-política que foi aplicada as relações interétnicas, mas não sendo originaria e exclusiva deste universo. A situação dos índios no Brasil é determinada pela relação tutelar, em que o Estado impõe uma dinâmica aos grupos étnicos, e um regime jurídico tutelar que regula esta mesma relação. Devemos perceber entretanto a construção histórica desta relação, e suas transformações e o significado político destas últimas. A tutela é um tipo concreto de relação constituída entre o Estado brasileiro e os povos indígenas através de um processo histórico de longo prazo. A forma estabelecida em 1910 representava uma mudança em comparação à tutela orfanológica, que vigorou desde 1831. Esta relação foi o produto da conquista colonial, e sofreu transformações importantes ao longo da história, especialmente nas transições do regime colonial para o Império, e do Império para a República. Para entendê- la é preciso compreender suas metamorfoses. Podemos dizer que o regime tutelar passou por três diferentes momentos históricos. O momento de sua gênese corresponde ao período final do regime colonial no Brasil, em que surge a tutela orfanológica que era um dispositivo que visava garantir a disponibilização de força de trabalho indígena, aplicando-se aos índios que se encontravam deslocados de seus respectivos grupos. O segundo momento corresponde à extensão da tutela orfanológica aos índios em geral, por 67 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. lei imperial de 1831, que associa também os direitos territoriais, à relação tutelar. O terceiro momento corresponde à transição da tutela orfanológica para a tutela do SPI, por decreto, em 1928, em que a tutela seria exercida agora por uma instituição de Estado especializada. Manuela Carneiro da Cunha indica que: “É no entanto na transição da escravidão indígena para o trabalho assalariado que, no bojo das reformas pombalinas implementadas a partir da década de 50 do século XVIII, podemos localizar, com maior precisão, a gênese do conceito de tutela orfanológica”. (Carneiro da Cunha, 1988, p. 104). A principal providencia tomada pelo Governo Colonial para impedir uma evasão dos índios libertos, citadinos ou a serviço dos moradores no interior da capitania foi colocá-los sob o regimento dos órfãos”. (Carneiro da Cunha, op.cit, p.107). Desta maneira, a tutela, na sua gênese e na primeira forma que assume, está relacionada primeiramente, as necessidades econômicas da Coroa Portuguesa: visava garantir a estabilidade da oferta de mão de obra indígena (...) Na verdade o juiz de órfão foi usado em todo o século XIX para tutelar toda a mão de obra potencialmente rebelde: ficavam sob sua jurisdição não apenas os índios, mas os escravos alforriados e os africanos livres”. (Carneiro da Cunha, 1988, p.110). A relação tutelar surge ainda sob regime Colonial, como um dispositivo de dominação, que incidia simultaneamente sobre a política e sobre a economia; não era um dispositivo exclusivamente aplicado aos indígenas, mas, aos negros africanos, ou seja, incidia sobre os grupos etnicamente diferenciados, visando estabelecer sobre eles o controle e a disciplina que garant isse sua participação enquanto mão de obra na economia colonial. A relação tutelar é marcada por um impulso simultaneamente preservacionista e dominador. Ela tem como ponto de partida a desigualdade social e econômica gerada pela guerra de conquista colonial. Esta relação, em ultima instância, consagra esta desigualdade e lhe dá um formato jurídico-político historicamente especifico, distinto daquelas formas anteriores, existentes durante os séculos XVI-XVIII. A relação tutelar, desta maneira, coloca-se como forma histórica de institucionalização da desigualdade entre grupos étnicos e outros grupos sociais, dentro do contexto de formação do Estado-Nacional. O regime tutelar pode ser definido como um conjunto de dispositivos políticoadministrativos (calcados em signos/símbolos difusos) destinados a governamentalização 22 dos índios. A governamentalização, tem dois objetivos: criar uma racionalidade na exploração dos povos colonizados, aproveitando os índios enquanto população, transformando-os em mão-de-obra para extrair- lhe o sobre-trabalho. Ao mesmo tempo é uma forma de dominação que pautando-se não 22 “Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas: 1 - o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.” (Foucault, 2004, p. 174). 68 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. na lógica da sobrerania, mas na da gestão ou governo (ver Foucault, 2004) em que a preocupação central é deslocada da arte de manter o poder para arte de governar, porque o poder deixa de ter grandes ameaças internas ou externas. A introdução da “economia” ao nível do governo geral do Estado estabeleceria o principio do controle, da vigilância, da “gerencia” dos bens e indivíduos (como o pai de família faz dentro da sua casa). Implica um deslocamento da preocupação com o território para a preocupação com os “homens e as coisas”, entendidas como as riquezas, os recursos naturais (Foucault, ibdem). Ao mesmo tempo, cria-se uma “razão de estado” que não se legitima somente pela vontade interna de manter o poder, mas pela eficácia ou “boa gestão” dos governados, o que significa a idéia de identificação, ou internalização da própria dominação, no sentido que a população não é mais somente alvo de políticas de conquista, mas de gestão, e que o governo visa garantir o melhor para ela (do ponto de vista da razão de governo, mas ainda assim se forma uma outra forma de legitimação do poder). O “príncipe” (o governante) não está mais em relação de exterioridade, mas sim de identificação, com a população. O regime tutelar foi instaurado a partir da ação dos sertanistas e militares positivistas no início do século XX e tem as características que indicam a governamentalização do Estado brasileiro. Sua arquitetura jurídico-norma tiva é estabelecida a partir de dois dispositivos principais, o Decreto Nº 9214 – 15/12/1911, o “Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais” e o Decreto nº 5484 de 27/06/1928, tal como aprovado por Washington Luiz, então presidente da República. Este decreto foi baseado numa proposta de instrumento legal elaborada por Alípio Bandeira e Manoel T. Miranda, em 21/04/1911. Ou seja, o processo de codificação jurídica foi lento e somente se deu a posteriori da implantação do SPI enquanto instituição tutelar. A criação do regime tutelar se deu pela ação política das redes de poder (compostas por militares positivistas, engenheiros e outros) integrantes ou não dos quadros do SPI. O decreto de 1928, concebido dentro do SPI: “Em outros termos, propunha-se a incapacidade dos nativos relativamente ao grau de civilização, que deveria ser aferido pelo SPILTN, a tutela cessando à medida em que se transformassem em trabalhadores nacionais como tantos outros. A idéia estava pronta em 1911, antes da apresentação da emenda de Munis Freire ao Senado (publicada pelo DCN em 5 de dezembro de 1912), o texto definitivo do código civil nada mais fazendo do que consagrar o proposto pelo SPILTN”. (Lima, 1995, p. 207). O regime tutelar fo i sendo materializado em lei ao longo 15 anos, até a aprovação do decreto pelo Senado em 1928. Esse regime esteve diretamente relacionado aos interesses do órgão que o concebeu e trabalhou pela sua estruturação política. Uma preocupação central seria a da nacionalização dos índios, de maneira que: “As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço estariam claramente estabelecidas no regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de 69 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. 1936 (...) O regulamento marcava-se pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o fim de incorporá-los à Nação (art1º)”. (Lima, 1992, p. 165). De uma certa maneira estes dois documentos legais é que instituem per si o regime tutelar, impondo uma forma de “gestão indireta e branca” aos grupos indígenas. A arquitetura interna do regime tutelar tal como descrito acima, instituída durante as atividades do SPI, se pauta pela prescrição especifica de um conjunto de poderes (baseados na oposição primitivo/civilizado, superior/inferior, criança/adulto). O regime tutelar se estende a múltiplas dimensões da vida dos grupos étnicos, de forma molecular; da regulação de atos individuais relativos à troca, documentação, e etc, até a gestão dos bens. O principal poder instituído pelo regime, é da substituição da ação e vontade do tutelado pelo tutor, ou seja, pelo Estado. Em todos os domínios seria garantida a gestão indireta dos bens e decisões dos índios. De outro lado, a exclusão da possibilidade de acesso dos índios ao serviço público, fez com que essa gestão indireta assumisse a feição de uma “gestão branca”, ou seja, os índios seriam geridos, administrados por “brancos” que teriam a autoridade de decidir quase tudo em seu nome frente ao Estado e Sociedade Nacional. A linha de dominação política cristalizou uma clivagem “étnica” dando- lhe outro significado. Outro poder, é o da investidura da identidade étnica. O art. 42 deixa claro que quem atesta quem é índio e em qual categoria se enquadra é o inspetor do SPI, ou seja, o Estado. Era um poder ao mesmo tempo de submeter ao controle e proteção do regime tutelar ou excluir de ambos. Entretanto cabe indicar aqui uma duplicidade de regulação, já que os índios que vivessem em “promiscuidade” com civilizados poderiam ser submetidos a um regime diferente dos demais índios, ou seja, à regelações externas ao regime tutelar. É o caso das exceções previstas no tocante as penas e crimes e mesmo aos bens. A princípio, essa duplicidade seria expressa pela localização dos índios (aqueles que viviam fora das povoações indígena s e em centros agrícolas ou em outras comunidades rurais ou urbanas). Fica nítido como a idéia de “isolamento” (inexistência de contatos ou contatos eventuais), é a idéia base do próprio esquema de classificação do regime tutelar, e como as relações (contatos permanentes) são vistas sob um prisma ambíguo, no sentido que ao mesmo tempo indicam a aquisição de “capacidade pelo índio” e sua descaracterização enquanto índios. Observemos que o termo “promíscuo” indica mistura caótica ou desordenada, e ainda tem a conotação “de pessoa que se entrega sexualmente com facilidade” – idéias pejorativas. Essa arquitetura institucional perduraria até o início da década de 1970, quando da promulgação do Estatuto do Índio. O Estatuto do Índio produziu alguma mudança no regime tutelar? Na verdade o Estatuto do Índio apresenta um conjunto de medidas que expressam uma tendência a uma “liberalização” do regime tutelar, no sentido que é aberta a participação “indígena” 70 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. na gestão da política indigenista e contrariando em certa medida, as representações ideológicas acerca da incapacidade do índio. Mas devemos observar que essa liberalização não muda os poderes básicos que caracterizam o regime tutelar. O poder de gestão dos bens e a propriedade das terras indígenas continuam sob controle Estatal. O artigo 20 em seu §2º permite a “remoção permanente ou temporária de grupos indígenas para outras áreas”. O “poder de substituição” da ação e vontade indígena também permanece, na gestão das terras indígenas e outras instâncias societárias. Além disso, as bases simbólicas do regime tutelar permanecem as mesmas do SPI, apesar da substituição de categorias, conceitos e metáforas. Ainda permanece a equivalência entre “emancipação e integração”, o que reconduz a uma dinâmica cíclica: os índios só são índios sob o regime tutelar, e se são emancipados deixam de ser índios. Assim, o poder de investidura identitária é ainda resguardado ao Estado. No computo geral, o regime tutelar mantém suas bases fundamentais. Mas as mudanças ocorridas teriam efeitos importantes. O Estatuto do Índio traz algumas alterações importantíssimas: 1) a abertura do serviço público aos índios e o incentivo a sua especialização indigenista; 2) uma relativa abertura a participação dos índios na administração dos “bens e renda indígena”, assegurando entretanto a exploração do solo aos índios e do subsolo a regulação estatal; 3) definição formal de índios e comunidades indígenas, de maneira que não é mais um Inspetor que define quem é integrado ou não, mas sim o próprio Estatuto; 4) a introdução de uma orientação formal para os “contratos coletivos de trabalho”. Nos princípios e definições do Estatuto do Índio se inscrevem os marcos gerais da política indigenista, ou seja, uma certa forma de regulação e gestão dos grupos indígenas, vinculando a principio as idéias de “preservação e integração”. Ou seja, a tensão existente no SPI irá perpassar também o novo enquadramento jurídico e a nova forma do regime tutelar. Isso fica visível pela contrariedade entre a caracterização dos índios: primeiro se define que as “comunidades indígenas” são aquelas não integradas (Art.3,II), apesar de que se reconhece que os índios integrados podem preservar características culturais (Art. 4, III). Porém em outros momentos se assegura a participação dos índios nos quadros de funcionários da FUNAI (art.16 § 3), mas somente de “índios integrados”. Nesse sentido existe uma contradição evidente: enquanto que as comunidades indígenas são definidas pela sua “não integração”, o que dá margem para o entendimento de que a integração implica o desaparecimento das comunidades indígenas, fala-se em outros momentos de “índios integrados”. Esta tensão é uma outra continuidade em relação ao SPI. Assim, o “regime tutelar” sofre uma primeira liberalização, o exclusivismo da gestão branca é relativamente atenuado (ou abre-se espaço pra isso). Nos anos 1980, a Constituição Federal no artigo 232 irá afetar um importante dispositivo do regime tutelar, uma vez que reconhece plena 71 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. capacidade civil aos índios. Entendemos que esse fato não elimina o regime tutelar, ao contrário, cria uma relativa contradição com o Estatuto do Índio em vigor, e mesmo assim uma contradição relativa. Poderíamos falar de uma segunda liberalização do regime tutelar, e também de uma hibridação das normas tutelares a partir 1988, no sentido que existe o regime tutelar enquanto política indigenista e ao mesmo tempo com o reconhecimento da capacidade civil dos índios pela constituição que possibilitou certas ações jurídicas dos índios. Essa hibridação pode sugerir o “enfraquecimento” do regime tutelar, uma crise, mas não é exatamente isso que acontece, mas sim uma mudança institucional. 2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica. A análise da estrutura geral do regime tutelar feita acima, somente, precisa ser contemplada com as características principais de sua aplicação ao longo da história e os efeitos sociais concretos que ele produziu sobre as sociedades indígenas. Nesse sentido, estamos considerando aqui o regime tutelar como o produto de um conjunto articulado de ideologias e prática políticas, que podem ser rotuladas por indigenismo e política indigenista: “Assim, pode-se considerar indigenismo o conjunto de idéias (e ideais, aquelas elevadas à qualidade de metas a serem atingidas em termos práticos) relativas à inserção de povos indígenas em sociedades subsumidas a Estados Nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento das populações, operados em, em especial, segundo uma definição do que seja índio. A expressão política indigenista designaria as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas”. (Lima, 1995, p.14-15) Dessa maneira, a política indigenista compreende todas as técnicas utilizadas dentro das diferentes situações, para gerir os territórios e a mão de obra indígena, como as técnicas de atração e pacificação, as técnicas de substituição e representação política do índio, as formas de repressão como a “polícia indígena”, a pedagogia da nacionalização e etc (ver Lima, 1995, Oliveira Filho, 1988). O regime tutelar seria assim a estabilização de uma determinada forma de gestão, com regras e pressupostos determinados, formas de distribuição da autoridade e da força, na qual o órgão tutor seria o depositário dos dispositivos legais e legítimos de controle das sociedades indígenas. A política indigenista 23 operou através de diferentes técnicas e táticas de poder, e o regime tutelar foi uma demanda de confirmação do exercício do poder através dessas técnicas. 23 O indigenismo é um tipo de “saber de estado” que se originou no contexto mexicano, migrando para o Brasil onde foi reapropriado e transformado. Nesse sentido, é preciso observar que o indigenismo se combinou com outras saberes de 72 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Podemos dizer que o regime tutelar e a política indigenista tiveram dois objetivos e efeitos estratégicos (ver Decreto 1928, Títulos II e V; Estatuto do Índio Titulo II, cap. 4 e Titulo III): 1º) o regime tutelar impôs padrões de territorialização aos povos indígenas; 2º) o regime tutelar produziu uma inserção determinada dos índios na estrutura de classes. Dessa maneira é impossível pensar o regime tutelar sem pensar os processos de territorialização e inserção especifica na estrutura de classes imposta aos povos colonizados. Quando falamos de territorialização, devemos entender que: “Não se trata unicamente de enfocar as sociedades indígenas como coletivivades inseridas em uma escala regional mais ampla, senão de explorar o fato da definição de um território como uma chave analítica privilegiada para a compreensão dos modos de sociabilidade que apresentam. A abordagem em termos de um processo de territorialização permite descrever e inter-relacionar os re-ordenamentos ocorridos nos múltiplos níveis – na morfologia social, nos papeis políticos, nas tradições culturais e na construção de identidades. O processo de territorialização não compreende unicamente as razões de Estado, mais também expressam os conceitos indígenas sobre tempo, pessoa e natureza do mundo” (Oliveira Filho, 2006, p. 132) Logo, os processos de “territorialização” constituem uma dimensão central que articula política, identidade, cultura e economia. O regime tutelar e a política indigenista em geral tiveram como uma das características principais o desencadeamento de processos de territorialização. A construção de “povoações indígenas”, “centros agrícolas”, “parques” e “reservas”, são a expressão desses processos de territorialização dirigidos pelo Estado. As migrações voluntárias e criações de aldeias são formas de territorialização dirigidas pelos próprios grupos indígenas. Paralelamente aos processos de territorialização, se desenvolveu o projeto de inserção dos índios dentro da estrutura de classes da sociedade capitalista, em uma posição subalterna. Tanto o regulamento de 1928, quanto o estatuto do índio tinham medidas práticas nesse sentido: “O estatuto do Índio enfatiza de forma bastante nítida a via camponesa como modo privilegiado de integração das populações indígenas na sociedade brasileira”. (Oliveira Filho, 1998, p.19) e ainda: “É preciso deixar bem clara a singularidade desse campesinato indígena face a outros tipos de campesinato. Além do controle coletivo sobre o meio básico de produção, há que ser destacado que tal campesinato é, por diversos meios, colocado como sendo diretamente subordinado ao Estado”. (Oliveira Filho, op.cit, p.20). Os índios seriam “camponeses” e “trabalhadores manuais”, de acordo com o projeto político delineado pelo regime tutelar e pela política indigenista. Seria essa sua modalidade de inserção na estrutura de classes. Esta política foi não somente uma orientação geral, mas moldou de forma estado, como o sertanismo, e que o termo, em sentido estrito, só foi introduzido no Brasil nos anos 1940/50. (Lima, 2006). 73 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. concreta as interações sociais entre índios e sociedade nacional. Ou seja, o regime tutelar era ao mesmo tempo uma forma de territorialização e de estratificação (no sentido de atribuição de lugar na estrutura de classes). Trata-se de observar os efeitos sociais do regime tutelar, de como e em que medida sua política produziu e impôs dinâmicas societárias concretas aos povos indígenas. E veremos que na realidade essa política é determinante para as sociedades indígenas no Brasil. Tomemos como eixo os processos de territorialização dirigidos pelo Estado através do órgão e da política indigenista. O quadro abaixo fornece dados importantes: Quadro 1– Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas. Elaborado a partir de dados do ISA e do “Indigenismo e Territorialização”. SPI FUNAI 1910-1967 1968-1982 1990-2000 298, 595 mil hectares 11.966.043 mil hectares 63.389.692 mil hectares O processo de demarcação de terras indígenas teve seu padrão profundamente alterado, sendo que a partir de meados dos anos 1970 até hoje, verificou-se uma demarcação de terras indígenas com maiores extensões territoriais do que todas aquelas ocorridas na primeira metade do século XX. As áreas demarcadas pelo SPI em media tinha 5 mil hectares enquanto que as da FUNAI 181 mil hectares. (Oliveira Filho, op.cit, p.33). Dessa forma, do ponto de vista histórico, o “regime tutelar”, apesar de ter como meta a formação de um “campesinato indígena”, em razão do padrão de territorialização, produziu mais uma camada de assalariados rurais, de “semi-proletários e semi-camponeses” (Oliveira Filho, 1998, p. 34). Não somente o padrão de intervenção do SPI e da FUNAI tiveram efeitos diferentes, ao longo da história, como tiveram também variações regionais associadas ou não as primeiras. Vejamos o quadro abaixo: Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI Delegacias UF 1º 2º 3º AM PA-AP BA-SE-ALPB-PE PR-SC MT MA GO-MT AC-RO-AMMT MS RR-AM 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º Terras Indígenas Terras Indígenas Terras Identificadas Identificadas mas não Demarcadas (1000 hectares) demarcadas (%) (%) 8.518 100 10.018,4 77,0 23 122,3 89,9 10,1 84,6 2.741,6 1.835,8 577,2 5.566,4 68 88,0 81,4 52,5 100 32,0 11,9 18,5 47,4 526,9 5.297,9 94,1 84,3 5,8 15,6 74 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. 11º 12º 13º AJABAG MG-ES-BA SP-PR RS MG (MT) 83,6 29,6 50,6 1.198,4 20,0 0,6 - 79,9 99,3 100 100 Das 16 regiões consideradas como de colonização antiga, 10 têm índices próximos ou superiores a 80% de terras demarcadas. Das 6 regiões em que tal fato não ocorre, a região em que o índice terras indígenas demarcado é menor, é exatamente no Mato Grosso do Sul, apesar do volume total de terras ser reduzido quando comparado com outras regiões, e devemos levar em consideração que a população do Mato Grosso do Sul é a segunda maior do país. Ou seja, mesmo sendo uma região de colonização antiga, o Mato Grosso do Sul não apresenta índices de demarcação significativos. Os efeitos da política indigenista e do regime tutelar não são homogêneos, mas são relativamente constantes dentro dos seus objetivos gerais. A interpretação dos dados levou Oliveira Filho as seguintes conclusões: “As delegacias regionais da FUNAI em que estão registradas as maiores proporções de terras demarcadas encontram-se nas áreas de colonização mais antiga, nas quais as frentes pioneiras já passaram, atomizando as posses indígenas e incorporando a região à economia nacional. (...) “Por ora basta reter a hipótese de uma correlação entre avanço das frentes pioneiras (e conseqüentemente incorporação dessa região à economia de mercado) e efetividade no processo de demarcação das terras indígenas”. (Oliveira Filho, 1998, p. 29) Isso significa que as frentes de expansão econômica condicionam a política indigenista e aos processos de territorialização indígena, e também a imposição de um padrão de inserção na estrutura de classes. O padrão do SPI implicou na semi-proletarização de muitos grupos indígenas, mantendo assim o caráter semi-colonial das relações índios- Estado, sendo o lugar dos índios na sociedade o de camponeses pobres e assalariados rurais. Os dados acima permitem ver uma certa especificidade da política indigenista no Mato Grosso do Sul, de como na realidade a territorialização dirigida pelo Estado-Nacional naquela região seguiu certos padrões e particularidades locais. Delinearemos agora como a morfologia da sociedade Terena foi moldada por esses processos de territorialização dirigidos pelo Estado, e apreender as singularidades da região do Mato Grosso do Sul. 2.5 – Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha. A configuração da organização territorial das aldeias Terena e sua composição demográfica no município de Miranda, podem ser caracterizadas pelos seguintes dados. Os dados da FUNAI 75 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. para 1999 apontam a existência de 4.000 pessoas em Cachoeirinha, 1.800 pessoas para Pilad Rebuá (que compreende as aldeias de Passarinho e Moreira) e 1.500 pessoas para Lalima, o que representaria um total de 7.300 indígenas no município. Os dados da FUNASA apontam para 2003, um número inferior a este: para Cachoeirinha, os dados apontam 2.683 pessoas; Pilad Rebuá 1.696 pessoas, Lalima 1.252 pessoas, o que representaria um total de 5.635 indígenas. Podemos considerar o intervalo que vai dos 5.000 aos 7.000 habitantes indígenas como margem de variação plausível do universo demográfico considerado. As aldeias de Passarinho e Moreira ficam a 6 km da cidade, se apresentando como “bairros” periféricos de uma região de transição entre as zonas urbana e rural do município. A aldeia de Lalima fica a 45 km da cidade, em meio a fazendas, assim como a aldeia de Cachoeirinha (ou mais especificamente, a Sede do Posto da FUNAI) que fica a 13 km da zona urbana e do núcleo comercial e administrativo da cidade24 . Descreveremos a morfologia da sociedade Terena a partir de eventos específicos que revelam as articulações entre contextos locais e globais, e entre os processos sociais contemporâneos e de longa duração. Uma situação social auxiliará na descrição e análise da morfologia da sociedade Terena dentro da atual situação histórica. Durante uma de nossas visitas à terra indígena Cachoeirinha em outubro de 2002, como fizemos desde a primeira vez, ao chegarmos, nos dirigimos ao PIN da FUNAI, onde ficaríamos hospedados. Ao chegarmos ao local, fizemos contato com o então chefe do posto da FUNAI, Argemiro Turíbio. Tomamos conhecimento da mudança do Cacique Geral. Sabino Albuquerque, cacique anterior, havia sido derrotado nas eleições realizadas em maio daquele ano, dando lugar a Lourenço Muchacho. Nesta tarde haveria também uma reunião das lideranças. Por isso estavam no local, o então Cacique Geral, Lourenço Muchacho e outras lideranças locais da Cachoeirinha, como o presidente do Conselho Tribal, pastor Zacarias da Silva. Percebemos pelo lado de fora dois veículos da FUNAI (da administração regional) estacionados no local. Pouco depois um veículo com placa do município de Sidrolândia trazendo três homens, estacionou em frente ao PIN. Estes homens eram representantes de uma Usina de produção de Açúcar e Álcool, e seriam responsáveis pelo recrutamento de trabalhadores. Os homens entraram e ficaram reunidos com o Chefe do Posto. Conversamos com Jesulino de Souza, encarregado da Usina Santa Olinda, do Grupo Empresarial José Pessoa, que opera no município de Sidrolândia. Estavam em Cachoeirinha além dele, um médico e uma representante do departamento de pessoal, para contratar duas turmas de 45 homens, que ficariam fora da reserva 70 dias, trabalhando nas Usinas. O Grupo José Pessoa é proprietário ainda da Usina Debrasa no município de Bataguaçu, Abenalco (no estado de São 24 Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena/DSEI, Pólo Base de Miranda. 76 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Paulo), Sanagro (Minas Gerais e Sergipe) e ainda uma outra no Rio de Janeiro. Segundo Jesulino, que trabalha neste ramo há 17 anos, a maior parte da mão obra empregada no Mato Grosso do Sul pelas Usinas do Grupo José Pessoa é indígena, recrutada principalmente em Cachoeirinha, Pilad Rebuá, Taunay e Buriti. A Usina trabalha com uma média de 15 grupos de 45 homens. Segundo ele a Usina também emprega brancos, que trabalham o ano inteiro, somente os índios ficam por contratos temporários.O Plantio de cana é feito o ano inteiro, mas a safra somente a partir de maio. A produção é destinada a exportação. O procedimento para o recrutamento, relatado por Jesulino e por nós observado, é o seguinte: o responsável da Usina (o “gato”) procura os “cabeçantes” (agenciadores indígenas de grupos de trabalhadores), que por sua vez seriam indicados pelo Cacique e pelo chefe do PI. Os representantes da Usina fazem então exame médico e recolhem os nomes (pudemos vê-los levando as carteiras de trabalho dos indígenas indicados). Eles esperavam o retorno do Cacique Geral, que é quem assinaria o contrato. Pudemos ouvir um dos representantes da Usina afirmando que o Cacique receberia sua parte depois. As turmas sairiam para o trabalho no dia 08/10/2002 e os cabeçantes responsáveis por elas seriam Jorge Vitor e Sebastião Vitor. Um pequeno incidente ainda aconteceu, entre um homem Terena, que ao que parece insistia em entrar no PIN para ser colocado na lista dos indicados para o trabalho e o Cacique Lourenço, que o retirou do local com empurrões e esbravejando bastante. Logo após os representantes da Usina se retiraram, e o procedimento para a contratação de trabalhadores, foi encerrado. A Organização da Política, Economia e Cultura. Esta situação social nos permite traçar um quadro morfológico, tanto da sociedade Terena como um todo, quanto do quadro das suas relações de interdependência com outros grupos e instituições sociais. Este quadro de inter-relações irá abrir espaço para uma caracterização mais precisa da atua l situação histórica, e para a reflexão crítica sobre ela. Em primeiro lugar, podemos utilizar a situação acima descrita, para fazer uma descrição das formas de organização política entre os Terena. As terras ocupadas pelos Terena são divididas em aldeias, Cachoeirinha, por exemplo, é subdivida em cindo aldeias. Cada uma destas aldeias tem um cacique próprio. Entretanto, o Cacique da Sede, é o Cacique Geral, e têm um poder político maior que os demais. Este poder está associado fundamentalmente à situação social descrita acima, que tem uma profunda importância na sociedade Terena como veremos ao longo deste trabalho. É o poder de regular e mediar a contratação de trabalhadores. As aldeias Terena possuem “Conselhos Tribais”, que variam em 77 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. número de membros de caso a caso, indicado pelo Cacique, escolhido normalmente em eleições. Este sistema é utilizado em praticamente todas as aldeias Terena. Para compreender o funcionamento desta organização política indígena, é fundamental compreender também a relação dos índios com as instituições estatais. Na situação social acima descrita, vemos que a o Chefe de Posto da FUNAI, era um índio Terena. Era ele, juntamente com o Cacique, que regulava as relações econômicas com os representantes das Usinas, assim como os outros representantes da FUNAI, que estavam no local. Assim, o funcionamento da organização política entre os Terena é caracterizado por esta inter-relação com as instituições de Estado. Além desta importância local, o que é mais importante indicar, é o poder que os Terena enquanto grupo étnico tem sobre o funcionamento da máquina da FUNAI no Mato Grosso do Sul. Pelo menos desde meados dos anos 1980, o administrador da regional de Campo Grande da FUNAI é um índio Terena. E mais importante que isto, os administradores da FUNAI são indicados pelos Terena, ou mais especificamente pelos Caciques Terena de todas as aldeias do estado, que se reúnem com certa regularidade, para tratar de assuntos relativos a FUNAI e outras questões que afetam a vida deste grupo. Mesmo quando o Chefe do PI não é um índio Terena, já existe uma relação de controle político que os Terena exercem sobre a administração regional da FUNAI em Campo Grande, através de pressões variadas (que podem ir desde as contínuas visitas e solicitações de reuniões, passando por abaixo assinados e denúncias públicas, até a ocupação do prédio da administração regional). É por sua vez a Administração Regional da FUNAI que detém o poder de reconhecer e legitimar as lideranças indígenas locais, ou seja, os Caciques, que negociam com ela a aplicação de recursos (materiais e simbólicos). A organização política entre os Terena, em termos gerais, funciona sobre estas bases. No plano local o Cacique e o Conselho Tribal, o Chefe de Posto, regulam conjuntamente, as relações políticas e parte das relações econômicas; no plano regional, o Conjunto dos Caciques Terena e FUNAI/ AR Campo Grande, regulam a vida dentro dos grupos locais (compreendendo fundamentalmente as aldeias e terras indígenas). É importante sinalizar também, que no plano local, dentro de cada aldeia, esta organização política se sobrepõe às formas de organização social especificas do grupo, e estamos entendo aqui tanto as relações de parentesco, quanto às organizações formais religiosas e associativas existentes. Em Cachoeirinha, nos referimos a Igreja Católica, da qual o Cacique Lourenço foi uma liderança e na qual a família Turíbio também tem peso importante. Existem ainda outras Igrejas evangélicas, mas em sua grande maioria, estas igrejas se formaram a partir de processos de fissão dos membros da Igreja Católica. Referimos- nos também as “associações”, organizações indígenas fundadas com o objetivo de obter recursos e organizar o trabalho e produção entre os índios. 78 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Argemiro Turíbio, Chefe do PI na situação descrita acima, foi presidente de uma das associações criadas em Cachoeirinha. Com relação à organização da economia, é fundamental observar que os Terena são uma sociedade composta majoritariamente por camponeses pobres e semi-proletários. Mas a situação social que descrevemos ilustra bem que a condição camponesa dos índios se inter-relaciona com uma pluralidade de situações na estrutura econômico-ocupacional. O que a situação social acima descrita permite revelar, é que a sociedade Terena se estrutura economicamente em função das suas inter-relações no contexto regional. A observação etnográfica e dados de uma pesquisa realizada pelo CTI permitem delinear um conjunto de ocupações pelas quais a população indígena se distribui. Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997) Principais ocupações SEDE Morrinho Babaçu Lagoinha declaradas pelo dono da casa. Lavourista 141 26 30 15 Feirante 30 10 7 Professor (a) 2 1 2 Missionário/pastor 2 1 Tratorista 2 Campeiro 1 Marreteira 1 Motorista 2 Eletricista 1 Operador 1 Ceramista 1 Cabeçante 1 1 func. Funai 1 Manut. Maquinas 1 Segurança 1 Merendeira 1 Horticultor 1 Aposentado 96 13 14 Total 188 53 54 15 Total de cada segmento 212 47 5 3 2 1 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 123 506 Vemos pelos dados acima que daqueles indivíduos identificados como “donos da casa” em Cachoeirinha, considerando as cinco aldeias existentes, o segmento majoritário é o de lavouristas (212), seguidos pelos aposentados (123) e feirantes (47) num total de 506 pessoas ocupadas, sendo que somente dentro das aldeias são encontradas 18 ocupações distintas, incluindo ofícios rurais e urbanos. Devemos levar em consideração que a pesquisa do CTI somente considera “os donos da casa”, desta maneira não incluem ainda os ofícios dos dependentes do dono, o que ampliaria possivelmente o número de ceramistas, lavouristas e professores, por exemplo. Além disso, outras categorias como marreteiros e empregadas domésticas não estão presentes na tabela. Caberia destacar algumas ocupações: 79 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. ? os assalariados rurais e operários agrícolas, que trabalham em Fazendas e Usinas de Cana de Açúcar no Estado; ? os “marreteiros”, homens que trabalham negociando produtos nas cidades. ? as ocupações ligadas ao setor de serviços que, compreendem um conjunto de heterogêneo de funções, dentre os quais encontramos efetivamente dentro das áreas indígenas: a) funcionários públicos federais, especialmente o Chefe de Posto da FUNAI e os demais funcionários do posto e agentes da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde); funcionários públicos estaduais e municipais, especialmente os professores indígenas e demais funcionários das escolas (como merendeiras); b) empregadas domésticas nas cidades e fazendas da região, ocupação essencialmente feminina. Este conjunto heterogêneo de ocupações é produto e produtora da constante mobilidade social e espacial dos índios Terena no estado do Mato Grosso do Sul. Também permite dizer que apesar da diversificação ocupacional, 9 das 18 ocupações se relacionam diretamente as atividades agropecuárias (como feirantes, tratorista, campeiro) o que mostra que existe uma tendência à reprodução do modo de vida tradicional, aquilo que os Terena identificam como “kixovoku” ou “maneira de ser” (no qual estão incluídos o trabalho na roça, por exemplo). Os lavouristas, as ceramistas e os aposentados pela previdência rural constituem assim as mais importantes “ocupações” dentro da aldeia, e tratoristas, mecânicos, cabeçantes são ocupações que se subordinam às atividades agropecuárias, complementando as necessidades técnicas da produção e comercialização. As demais ocupações são basicamente ligadas à Saúde e Educação, e aparecem também como uma forma de integração dos índios não somente na estrutura econômica, mas também política, do Estado (FUNAI, FUNASA e Prefeituras). Desta forma, existem indígenas ocupados em atividades agrícolas (setor primário), agroindustriais (setor secundário 25 ) e terciário (comércio, serviços e administração pública). A condição camponesa dos Terena assim é apenas o ponto de partida e ao mesmo tempo o ponto de convergência de uma pluralidade de atividades econômico-ocupacionais, que ao invés de abalar esta condição camponesa, a reforça num grande sentido. Em Cachoeirinha, a maior parte dos grupos domésticos está dedicado aos trabalhos na lavoura, e também com um mesmo grau de importância, ao trabalho temporário nas Usinas e Fazendas do estado. Podemos falar que a sociedade Terena se organiza também em “fluxos” (ver 25 Note-se que registramos apenas um indígena que afirmou trabalhar na parte de processamento industrial de uma Usina, o então recém eleito vice-cacique de Cachoeirinha no ano de 2002. 80 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Vincent,1988), já que há uma circulação estrutural de pessoas para algumas cidades e regiões economicamente importantes. Existe um fluxo de trabalhadores para as Usinas nas diversas regiões do estado; existe também um fluxo de trabalhadoras (feirantes) para as Cidades, especialmente Campo Grande, onde existe uma feira indígena. Estamos falando aqui de uma sociedade organizada em fluxos, porque esta relação de circulação de pessoas e bens é parte da vida dos Terena enquanto grupo étnico. A produção realizada pelos grupos domésticos no âmbito da aldeia é destinada em grande parte à comercialização, seja no município de Miranda, seja em Campo Grande. Existem instituições e redes de relações (a Feira, a Associação das Feirantes Indígenas de Campo Grande), que regulam estas mesmas relações. A vida dos grupos domésticos dentro das aldeias também é profundamente marcada pelas relações de trabalho, de maneira que grande parte dos homens acima de 16 anos de idade insere-se no mundo das relações de trabalho, seja nas Usinas, seja nas Fazendas e ainda em outras ocupações. Mas o trabalho nas Usinas se destaca como uma das principais formas de interação econômica, tendo um grande impacto sobre a vida do grupo. Existem ainda as outras ocupações dentro das aldeias, aquelas vinculadas ao serviço público, especialmente nas áreas de educação e saúde. Estas ocupações estão associadas a um nível de escolarização maior, e são muito valorizadas pelos Terena. Mas estão disponíveis ainda a uma parcela comparativamente menor de pessoas que as ocupações ligadas à produção agrícola e ao trabalho manual. Além disso, quase todos os Terena se revezam em atividades na lavoura e suas ocupações enquanto professores ou funcionários públicos. Existem ainda as questões ecológicas, que influenciam grandemente a dinâmica da produção e da economia. O período entre agosto e outubro é o período de seca, enquanto entre novembro e março, é um período de chuvas. O período da safra, geralmente se dá entre abril e julho. É claro que isto é basicamente relativo às lavouras de arroz, feijão,mandioca e leguminosas. A lavoura da canade-açúcar, segue uma outra dinâmica, de maneira que é possível para muitos índios trabalharem nas suas lavouras e nas Usinas de açúcar, sem haver uma contradição entre as duas atividades. O quadro abaixo serve para indicar as formas de dispersão e migração dos Terena no contexto do Mato Grosso do Sul e mesmo outros estados. Municípios Campo Grande Corumbá Aquidauana Miranda Vanuíre/SP São Paulo Rio Verde Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997) Sede Morrinho Babaçu Lagoinha 61 4 1 2 1 1 2 7 4 4 81 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Anastácio Cuiabá Bonito Brasília Araçatuba N/D TOTAL 2 2 1 1 2 13 93 (desses 38 contribuem com a manutenção da família na aldeia) 11 (desses 3 contribuem com a família na aldeia) 13 13 4 121 A grande maioria dos egressos das aldeias de Cachoeirinha é da Sede (93), sendo que seu principal destino é a capital sul mato-grossense Campo Grande.; Corumbá (11) é o segundo lugar a concentrar o maior numero de “filhos” de índios Terena. Cerca de 1/3 dos migrantes, contribuem economicamente para a manutenção da família na aldeia, o que mostra que existe uma manutenção das obrigações sociais e vinculação dos grupos domésticos em diversos tipos de situação (aldeia e cidade). Estes fluxos são compostos também pelos grupos de “visitantes”, aqueles que morando definitivamente ou há muito tempo nas cidades vão a aldeia regularmente visitar parentes ou participar de festas e rituais religiosos. Desta maneira, não podemos falar de uma morfologia da sociedade Terena sem levar em consideração os “fluxos e os fixos”, que constroem as redes sociais articulando diferentes territórios. Como já foi observado pela etnografia Terena em outros momentos (ver Cardoso de Oliveira), as reservas indígenas são antes de qualquer outra coisa, uma “reserva de mão de obra”, que é disponibilizada hoje para as Usinas de Açúcar no Mato Grosso do Sul (lembremos que como disse um de seus funcionários, a maior parte da mão de obra é indígena). Com relação à organização da cultura, podemos dizer que algumas considerações sobre a biografia dos atores individuais envolvidos na situação social mencionada, também nos permitirão traçar as características gerais da organização da cultura entre os Terena. Argemiro e Lourenço são ambos membros de grupos domésticos que tem uma intervenção importante nas atividades culturais dentro de Cachoeirinha. Além disso, enquanto Chefe de Posto e Cacique respectivamente, também jogam um papel decisivo nos rituais. Argemiro, por exemplo, é de uma família que teve um dos mais importantes “curandores” de Cachoeirinha, pelo menos dos últimos 40 anos. O próprio Argemiro já havia nos revelado ter tido iniciação nas práticas xamanísticas, com Mário Lemes, um parente seu (koixomuneti conhecido na aldeia, e falecido no ano de 2002). Lourenço seria filho de um “curandor”. As atividades xamanísticas têm ainda uma grande importância em Cachoeirinha. Elas se encontram articuladas com as diferentes formas que o cristianismo assume dentro das aldeias, seja através de relações de oposição, seja de composição. O xamanismo se encontra profundamente articulado com o catolicismo, de maneira que os grupos domésticos aos quais pertencem os curandores, normalmente se dedicam à administração da Igreja Católica e a promoção de uma série 82 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. de ritos cristãos. Os principais ritos promovidos pelos católicos são as “festas de santo”, que variam de acordo com as aldeias, e mesmo, com os grupos domésticos, mas a maior parte do ano, as atividades das aldeias Terena são marcadas pela realização de rituais. As igrejas evangélicas se caracterizam por uma dinâmica própria, mas os membros delas se relacionam de maneiras muito diferentes com xamanismo e com o catolicismo, podendo ocorrer desde a oposição total, até formas de participação nos ritos e festas. Existe ainda, uma outra ordem de atividades simbólico-culturais, e que tem uma grande importância para a identidade Terena, tal como definida no atual contexto histórico. É o “Dia do Índio”, ritual em que são realizadas diversas atividades, mas da qual a principal é a “Dança do BatePau” (Hiokixoti-kipahe, cuja tradução literal seria “Estar Vestido de Ema”). O Dia do Índio é celebrado em todas as aldeias Terena, e na maior parte delas, quando se pergunta sobre algo importante para o grupo, os Terena indicam o Dia do Índio. E neste ritual, de caráter fundamentalmente político, podemos ver que as figura do Cacique e do Chefe do Posto se colocam como centrais, articulando toda uma serie de representações e artefatos simbólicos que dizem respeito a reprodução das identidades nacional e étnica. No mesmo mês, tradicionalmente se realiza também o oheokoti, ritual xamanistico realizado na “semana santa”. Quer dizer, existe um complexo de rituais, que articulam diferentes representações simbólicas, e que marcam a vida dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado. Estas formas simbólicas estão materializadas em ritos e mitos específicos do grupo, que dão significado para a sua experiência histórica e dão algumas explicações também sobre o ordenamento social. A organização da cultura entre os Terena se relaciona muito explicitamente com sua economia e política, e é o produto da experiência histórica do grupo, tanto das relações de dominação, quando das estratégias de resistência adotadas pelos indígenas. O que aqui chamamos de sociedade Terena se compõe dos territórios indígenas, dos grupos domésticos e indivíduos concretos que se reproduzem socialmente neles, e as redes e fluxos sociais que estes constroem para além de seus próprios territórios. As considerações realizadas acima, sobre a organização da política, economia e cultura, são válidas em termos gerais, para o conjunto das comunidades- locais Terena. É claro que existem variações (de grau de importância econômica e demográfica, de práticas culturais em cada comunidade- local), mas estes traços são à base dos processos de socialização da maior parte dos índios Terena. A análise detalhada da organização da cultura, da economia e da política entre os Terena, será realizada em outros capítulos. Agora cabe ampliar a escala do local para o global e considerar estes traços de morfologia social, no contexto regional e nacional de que fazem parte. 2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos. 83 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Os processos de territorialização e o modelo de inserção na estrutura de classes impostos pelo regime tutelar, moldaram a sociedade Terena. Iremos agora ver como isso se deu, tanto no contexto local como regional. Essa análise regional exige dois movimentos analíticos distintos:1º) uma caracterização mais precisa dos territórios e grupos étnicos, de sua composição social, para que tenhamos uma base de comparação entre Cachoeirinha e outros territórios indígenas e compreender seu papel na sociedade regional; 2º) uma caracterização mais precisa da situação econômica e política do estado do Mato Grosso do Sul e da cidade de Miranda, espaços sociais das arenas e campo das relações interétnicas desta etnografia. Os Terena se encontram localizados em três estados do Brasil: Mato Grosso do Sul (com nove terras reservadas), São Paulo (localizados nos Postos da FUNAI de Araribá e Icatú), e no Mato Grosso (no município de Rondonópolis).Segundo os dados do censo 2000 do IBGE, a população total do estado do Mato Grosso do Sul é de 2.078.070 milhões de pessoas, sendo a população urbana de 1 746.893 e a rural de 331.177 e a população indígena de 53 mil pessoas 26 . Levando em consideração somente os dados do IBGE, os povos indígenas representariam mais de 15% da população rural do estado. A FUNAI no Mato Grosso do Sul, responsável pela administração da política indigenista, é composta por duas Administrações Executivas Regionais (AER) - Campo Grande e Amambaí, e por um Núcleo de Apoio em Dourados. A FUNAI/AER-Campo Grande tem sob sua jurisdição a população Terena, Ofaié-Xavante, Guató, Kadiwéu, Atikum e Quiniquinau. A FUNAI/AERAmambaí tem 5 PIN’s, com população Guarani Kaiowá e Nhandevá. O núc leo de Dourados tem 3 PIN’s com população majoritariamente Guarani Kaiowá (há cerca de 1.000 Terenas no PIN Dourados). Abaixo segue um quadro com as características demográficas dos povos indígenas, número de terras e em quantos municípios eles se encontram. São encontradas 6 etnias indígenas reconhecidas pela FUNAI (Guarani; Guató; Terena; Kadiweú; Ofaié-Xavante; Atikum). Existem ainda povos não reconhecidos pela FUNAI, como os kamba, ou dados como extintos, como os Quiniquináu residentes em áreas Kadiwéu e Terena. A população indígena se encontra distribuída em 74 dos 77 municípios do Estado, nas diferentes regiões econômicas e ecológicas, sendo que esta presença pode corresponder à existência de reservas e terras indígenas ou, na maioria das vezes, a de indivíduos e pequenos grupos domésticos residentes. 26 Os critérios de classificação do censo empregam cinco alternativas de designação: Branca, que indicou - 1 135 811, Negra 71 139, Amarela - 16. 263, Parda – 788.797, Indígena - 53 900, Não declarado - 12 162. Independentemente das críticas que se possa realizar a metodologia e aos critérios de classificação, é importante indicar que o censo retrata a diversidade étnico-racial ao mesmo tempo que permite colocar algumas questões teóricas, como o problema da mestiçagem e do branqueamento, tão discutido na sociologia e antropologia brasileira. Existem divergências a respeito do total da população indígena no Brasil. As estimativas do ISA, do CIMI e da FUNAI divergem das do IBGE para o conjunto do país, mas se aproximam no que diz respeito ao Mato Grosso do Sul. 84 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul 27 Etnias População Terras Municípios Guató 382 1 1 Kadiwéu Ofaié-Xavante Terena Guarani Atikum, Quiniquinau, Kamba 1.592 58 17.741 25.741 Sem informações 1 1 12 10 0 2 1 8 17 4 Os Terena estão entre as sociedades indígenas de maior escala demográfica no Brasil. No estado do Mato Grosso do Sul, os Terena são a segunda maior população, depois da Guarani. Existem três categorias de classificação para as áreas indígenas: 1) Terra Indígena; 2) Posto Indígena; 3) Aldeia. A categoria Terra Indígena é usada para identificar um território ocupado por índios seja regularizado juridicamente ou não. O PIN indica a existência de uma unidade administrativa básica da FUNAI, ficando sediado dentro de uma terra indígena. A aldeia é uma unidade criada pelo grupo indígena e reconhecida ou não pela FUNAI. Dessa maneira uma mesma Terra Indígena pode ter ou não um PIN e ter ou não várias aldeias. Abaixo apresentamos um quadro da distribuição do povo Terena no Mato Grosso do Sul. As categorias usadas são aquelas empregadas pela FUNAI em seus documentos administrativos e também pelo grupo: Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande Terra Indígena Água Limpa Aldeias PIN Rochedo Aldeinha Buriti Buritizinho Cachoeirinha Lalima Pilad Rebuá Limão Verde Município Buriti Córrego do Meio Água Azul Tereré Sede Argola Babaçu Morrinho Lagoinha29 Lalima Moreira Passarinho Limão Verde Córrego Seco 28 Anastácio Buriti Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia Sidrolândia 30 Cachoeirinha Miranda Lalima Miranda Pilad Rebuá Miranda 31 Limão Verde Aquidauana 27 Esta tabela foi construída com dados do livro “Aconteceu Povos Indígena – 1996/2000”, do ISA. Aldeinha é um dos casos em que há um funcionário da FUNAI designado e atuante como chefe de Posto, mas o mesmo não se encontra regularizado. 29 Lagoinha não consta no documento da FUNAI, possivelmente foi uma área recentemente. 30 No documento da FUNAI o espaço do PIN Cachoeirinha está em branco. 28 85 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Taunay/Ipegue Bananal Morrinho Água Branca Jaraguá Imbirussú Colônia Nova Ipegue Brejão Taboquinha Nioaque Taunay Ipegue Aquidauana 32 Nioaque O quadro permite ver a existência de 10 Terras Indígenas Terena, totalizando 25 aldeias. No Mato Grosso do Sul existe ainda população Terena em terra indígena Kadiwéu no Município de Porto Murtinho (PIN São João33 ), no Município de Dourados (PIN Dourados) em terra Guarani e no Município de Campo Grande (Aldeia Urbana Marçal de Souza 34 ). Em Campo Grande há também população Terena distribuída por diversos bairros da cidade, como Guanandi e Bandeirantes. Obtivemos acesso a dois censos realizados pela FUNAI nas áreas indígenas, um correspondente ao ano de 1995 e outro ao ano de 1999, o que nos permite ter uma idéia aproximada da evolução demográfica. Apresentamos no quadro abaixo os dados correspondentes: Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande. 1995 1999 Área Indígena Município População Área Indígena Município População Buriti Sidrolândia/D ois Irmãos do Buriti 1.578 Buriti Sidrolândia/ Dois Irmãos do Buriti 2.400 Cachoeirinha Miranda 2.312 Cachoeirinha Miranda 4.000 Lalima Miranda 1.007 Lalima Miranda 1.500 Pilad Rebuá Miranda 1.391 Pilad Rebuá Miranda 1.800 Taunay Aquidauana 2.708 Taunay Aquidauana 3.060 Ipegue Aquidauana 1.364 Ipegue Aquidauana 1.250 Limão Verde Aquidauana 1.456 Limão Verde Aquidauana 1.100 Aldeinha Anastácio 209 Aldeinha Anastácio 236 São João Porto Murtinho 48835 São João Porto Murtinho 55136 Tereré Sidrolândia 284 Tereré Sidrolândia 320 31 O caso de Limão Verde é similar ao de Aldeinha, como a área passou por muito tempo sem regularização. No documento da FUNAI o espaço está em branco, mas existe PIN em Nioaque. 33 Os documentos da FUNAI apresentam informações contraditórias. O PIN São João aparece também como sedeado no município de Bonito. 34 Terra que era segundo informações existentes, de propriedade da FUNAI, sendo ocupada pelos Terena em 1995. 35 Consta como população exclusivamente Terena. 36 Neste censo constam três populações: Terena, Kadiwéu e Quiniquinau 32 86 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Nioaque Nioaque 953 Nioaque Nioaque 1.183 Água Limpa (Faz. Bálsamo) Rochedo 38 Água Limpa (Faz. Bálsamo) Rochedo 46 Total de Áreas com Presença Terena 12 Total de Municípios 8 Total de População Terena 13.788 Total de Áreas com presença Terena 12 Total de Municípios 8 Total de População Terena 17.746 A população Terena sob a jurisdição da FUNAI/AER Campo Grande cresceu 20% segundo os dados do censo de 1999. Isso em um período de 4 anos, e os Terena representam um total de 92% da população total da AER. Segundo os dados da FUNAI, o município de Miranda, com as TIN’s Cachoreirinha, Pilad Rebuá e Lalima é o que tem o maior volume de população Terena aldeada, são 7.300 habitantes (41% do total de população Terena no MS). Aquidauana vem logo em seguida com 5.410 (30% do total) habitantes. Estas duas cidades concentram dessa maneira mais de 70% da população Terena Aldeada no estado do Mato Grosso do Sul. O município de Miranda, local de desenvolvimento da pesquisa, pode ser considerado o principal núcleo do ponto de vista da concentração populacional. Também foi nas aldeias de Miranda que a população Terena cresceu mais nos anos corridos entre 1995 e 1999 (aproximadamente 2.500 habitantes a mais enquanto que em Aquidauana a população sofreu um decréscimo de 128 pessoas). Além da população denominada “aldeada”(fixada em aldeias), existe também a população indígena nas cidades. Em Anastácio são 600 Terena morando em bairros e ruas próximas à aldeia, segundo informações dos próprios moradores do local. O censo indígena de Campo Grande37 identificou 918 famílias que compreendem o total de 3.836 pessoas, destas 733 famílias (80%) são da etnia Terena, estando 129 residindo na aldeia urbana Marçal de Souza. E os próprios organizadores do censo admitem que a pesquisa deixou de documentar uma parte expressiva de indígenas residentes na cidade devido a diversos fatores 38 . É importante registrar o profundo contraste em que se encontra o Mato Grosso do Sul; estado com grande diversidade étnica, com duas das maiores populações indígenas do país, e com pouca disponibilidade de terras para os mesmos. De certa forma, como quase que a totalidade das terras indígenas se encontra na Amazônia Legal, é quase que inevitável que nas demais regiões do país o conflito pela terra seja um dos elementos que marcam a vida dos povos indígenas. 352 – Água Limpa Legenda das Terras Indígenas Terena (Figura 1) 5 – Aldeinha 60 – Buriti 572 – Buritizinho 63 - Cachoeirinha 186 – Lalima 191 – Limão Verde 305 – Taunay/Ipegue 219 – Nioaque 242 – Pilad Rebuá 37 Censo Indígena de Campo Grande- 1999. Arquidiocese de Campo Grande. Pastoral do Índio. CIMI. Prefeitura Municipal. UCDB. 38 Ibdem p. 7. 87 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Mapa 1 – Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul. Fonte: Aconteceu Povos Indígenas 2000. Além disso, os indígenas, e em especial os Terena, tem procurado em numero cada vez maior se deslocarem para Campo Grande, principal cidade do estado. Mas esta tendência à concentração em centro urbano não atinge somente a população indígena, já que o crescimento das cidades se deve também a fluxos migratórios do campo, e não somente a um crescimento vegetativo. Neste sentido, os Terena acompanham também as tendências e dinâmicas societárias 88 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. mais amplas. O papel dos grupos indígenas na região ficará completamente claro através de uma caracterização precisa da economia e sociedade regional. Considerando os dados demográficos de um ponto de vista histórico, podemos constatar que as sociedades indígenas estão num novo momento, em que as taxas de declínio que alimentavam as teses do desaparecimento indígena se atenuaram ou mesmo se reverteram. Em 1957, eram 143 etnias no Brasil, em 2000 no número era 206 grupos; a população total que estaria entre 68 mil e 99 mil em 1957, em 2000 já seria de 270 mil (dados do ISA). 325 mil (FUNAI) e 740 (IBGE); o número de sociedades com população superiores a 2 mil pessoas em 1957 era de 6, e hoje já de 50 (ver Oliveira Filho, 2006). Logo, não se pode pensar as sociedades indígenas como compostas de pequenas “microsociedades”. O caso do Mato Grosso do Sul exige ainda mais a ruptura com esse modelo sociológico. Economia e Sociedade Regional Uma compreensão do papel econômico jogado pelo estado de Mato Grosso do Sul na divisão territorial do trabalho no país, e por outro lado às diferenças intra-regionais, são fundamentais para o entendimento dos efeitos do tipo de inserção dos índios na estrutura de classes, porque esses fatores cond icionam as formas de individualização e particularização dos processos políticos. Esta configuração das relações econômicas, propiciada por condições ecológicas e reforçadas pelas ações políticas e processos históricos, é à base da diferenciação cultural e política vividas pelos povos indígenas. O Estado do Mato Grosso do Sul foi instalado em 1º de janeiro de 1979, tendo sido desmembrado de Mato Grosso por lei complementar de 11 de outubro de 1977. Ele tem como limites, ao norte, Mato Grosso; a nordeste, Goiás e Minas Gerais; a leste São Paulo; a sudeste Paraná; ao sul e a sudoeste, a República do Paraguai; e a oeste, a República da Bolívia. Seu clima é tropical, e em sua área territorial de 358 158,7 km2 destacam-se as vegetações de cerrado e o Pantanal. Na planície pantaneira, dada a alternância entre os períodos de cheias e secas, a vegetação é bastante diversificada, havendo espécies típicas de florestas, cerrados e campos 39 . O estado do Mato Grosso do Sul, e a região Centro-Oeste como um todo, não estão entre as áreas economicamente mais importantes do Brasil quando consideramos os dados macroeconômicos agregados. Desta maneira, existe uma hierarquia territorial, tanto do ponto de vista da concentração quanto da produção de riqueza (na indústria, comércio/serviços e agropecuária) na economia brasileira. Vejamos o quadro abaixo que fornece alguns elementos para reflexão: 39 Com relação aos dados referentes à urbanização, cabem ponderações relativas à metodologia de classificação empregada pelo IBGE, já que ela parte de um critério exclusivamente de densidade demográfica, desconsiderando as atividades econômico-sociais na definição do espaço urbano. 89 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Brasil Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas). PIB a preços Pessoal Ocupado nas unidades locais correntes, 2001 (R$ Indústria Serviços Agropecuária. milhão) 1.198.736 4.801.611 24.461.604 429.028 Norte 57.026 247. 150 3.834.601 15.116 13.223.859 Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul 157.302 86.288 684.730 213.389 978. 773 381.803 4.419.808 1.839. 448 1.386.544 2.059.847,00 12.986.540 4.194.072 96.734 40.708 196.688 79.782 48.332.163 11.885.458 73.501.405 25.442.941 País e Regiões População Total 172.385.826 Vemos pela tabela acima que a região centro-oeste é apenas a quarta em importância econômica, quando consideramos o PIB como indicador principal, estando muito distante dos principais núcleos de concentração da riqueza e força de trabalho. Dentro da região Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso do Sul ocupa também uma posição secundária. Vejamos o quadro abaixo: Quadro 9- Economia do Centro-Oeste. UF PIB em milhões (2001) Goiás Distrito Federal Mato Grosso do Sul Mato Grosso 25.048 33.051 14.453 13.736 População Total 5.114.055 2.101.818 2.111.512 2.558.073 Pessoal Ocupado Industria 175.893 58.179 60.050 87.681 Serviços 668.884 823.851 277.680 289.951 Agropecuária 11.906 2.996 10.786 14.747 total 856.683 885.026 348.308 392.379 Os dados sobre a economia da região indicam que o estado do Mato Grosso do Sul tem o menor PIB do centro-oeste. Sua principal área de concentração de atividades e força de trabalho assalariada é o setor de serviços, seguido pela indústria. As atividades agropecuárias estão ocupando a última colocação em termos de concentração de força de trabalho. Mas é preciso fazer algumas ponderações. Apesar destes dados sugerirem uma pouca relevância do Mato Grosso do Sul, devemos indicar alguns fatores que contrapõem esta afirmação. Em primeiro lugar, o PIB per capta de Mato Grosso do Sul é maior que o de Goiás e de Mato Grosso, sendo inferior somente ao do Distrito Federal Isto expressa a relação entre capacidade econômica e população (que no Mato Grosso do Sul é inferior a dos demais estados, ver Contas Regionais, IBGE). Em segundo lugar, o estado que se destaca na região é Goiás que tem um maior nível de industrialização e tem um maior PIB, sendo que o Distrito Federal fica nos limites do território deste estado. Brasília, devido a ser Capital Federal, também tem seu PIB pressionado para cima em razão das atividades da administração pública. O Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul têm economias parecidas, com faixas de PIB e pessoal ocupado em cada setor da economia, similares. Em terceiro lugar, é importante também saber analisar o desempenho setorial da economia, 90 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. considerando o papel da agropecuária dentro “agro-negócio40 ”, e deste último no conjunto da economia do país, para poder melhor compreender a dinâmica societária nos contextos regiona l e local. No Brasil, no ano de 2002, o PIB do ramo da agricultura foi de R$ 72,72 bilhões. O da agropecuária foi de R$ 125,79 bilhões. O PIB total do agro-negócio no mesmo ano foi R$ 424,32 bilhões. Assim, a Agricultura e a Pecuária somadas foram respons áveis por R$ 198, 51 bilhões do PIB do agronegócio de 2002, ou seja, mais de 40% 41 . Podemos concluir afirmando que a agricultura e a pecuária gozam hoje de uma importante posição econômica, fato que vem se verificando desde os anos 1980, confirmou-se nos 1990 42 e que parece que irá se manter como traço fundamental da vida do país nas décadas iniciais do século XXI. Desta consideração se pode concluir tanto que a agropecuária está hoje entre as atividades que mais concentram e fazem circular capital no Brasil, quanto que a própria economia do país nas últimas duas décadas se define por estas atividades e sua articulação íntima com a indústria de transformação, na cadeia mais ampla do agro- negócio. O desempenho das grandes regiões e dos estados com relação a este setor da economia não é homogêneo. Vejamos o quadro abaixo: Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001. Unidade da Federação Participação (%) 1) São Paulo 26, 1 %. 2) Rio Grande do Sul 13, 7 %. 3) Paraná 9, 5 %. 4) Minas Gerais 8, 4 %. 5) Santa Catarina 6, 3 %. 6) Bahia 5, 4 %. 7) Mato Grosso do Sul 4, 4%. As informações acima nos permitem afirmar que o Mato Grosso do Sul não tem uma grande importância econômica quando consideramos a economia de maneira agregada, mas ao considerarmos a economia setorialmente, vemos uma realidade diferente. O Mato Grosso do Sul no 40 “A cadeia de “Agro-negócios” compreende setores relacionados ao processamento de produtos agropecuários e à fabricação de produtos utilizados nas atividades correlatas, como por exemplo fertilizantes e defensivos agrícolas e rações e medicamentos para animais.” Relatório do Work-Shop I, Agronegócios. FIESP, 2004. 41 PIB agrícola crescerá 8% no ano, diz CNA. Gazeta Mercantil - Nacional - 19/12/2003 , in www.cna. “A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estima que o Produto Interno Bruto (PIB) global do agronegócio brasileiro fechará este ano em R$ 458,83 bilhões, com crescimento de 8% em relação aos R$ 424,32 bilhões registrados no ano passado. O PIB agrícola deverá representar algo em torno de 38% de toda a produção de bens e serviços do País em 2003, que deverá ficar estagnada no mesmo patamar de R$ 1,2 trilhão registrado no ano passado”. 42 “O agronegócio responde por 32% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro (cerca de US$ 250 bilhões ano), 38% da pauta de exportações (cerca de US$ 20 bilhões/ano) e mais de 40% da população economicamente ativa).” O que está em jogo na OMC. Folha de São Paulo, 26/10/1999, p. 1. As exportações brasileiras estão assim profundamente vinculadas ao setor primário. 91 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. ano de 2001 ocupava a sétima posição entre os estados com maior participação no valor da produção agropecuária. Dentro da região Centro-Oeste (que tem 12% do PIB da agropecuária), o Mato Grosso do Sul é o estado que tem a maior participação, seguido por Goiás (4,3%), Mato Grosso (3,5%) e Brasília (0,2%). Isto significa que o Mato Grosso do Sul tem 1/3 do valor da economia agropecuária do centro-oeste, setor que ocupa posição estratégica na economia brasileira. Na indústria de transformação, que tem grupos de atividades que também integram a cadeia do agro- negócio, o Centro-Oeste tem apenas 2,5% do PIB nacional. O Mato Grosso do Sul tem 0, 5%, Mato Grosso 0, 5%, Goiás 1,2%, e Brasília 0,2%. Como havíamos dito, a diferença de PIB entre Distrito Federal e Goiás se explicam em grande parte pela presença da administração pública e extensão do setor de serviços. A agropecuária também agrego u em média mais valor ao PIB Nacional que a média do conjunto da economia. No período que vai de 1998-2001 (tomando como base o ano de 1985 = 100), por exemplo, temos o seguinte quadro: em 1998 o PIB do conjunto da economia apresentou crescimento de 138,1% enquanto que agropecuária de 143,2%; no ano de 2001 a diferença aumentou; o conjunto do PIB cresceu 149,3% em relação ao ano base, enquanto que o PIB da agropecuária chegou a 170, 5% 43 . O valor adicionado bruto ao PIB pelo Mato Grosso do Sul foi de R$ 12. 302 (milhões). E ainda: “Vimos que a principais lavouras do Mato Grosso do Sul são as do algodão, do arroz, da cana-de-açúcar, do feijão, da mandioca, do trigo, do milho e da soja – com forte predomínio, mais recentemente, das duas últimas”. (IBGE, 1996, p.35) A industria da canade-açúcar tem sido uma das mais importantes do Mato Grosso do Sul nos últimos 20 anos. A cana-de-açúcar é um importante setor no que diz respeito a pauta de exportações nacional. O Mato Grosso do Sul é um dos estados que tem uma participação nas exportações desse produto. O quadro abaixo mostra a produção de açúcar dos principais estados produtores do Brasil: Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil UF SP AL PR PE MG MT GO MS PB RJ 94/95 149.112.904 20.067.353 15.531.183 16.477.943 9.485.374 4.907.255 5.833.635 3.769.730 3.239.910 5.479.990 95/96 151.717.203 19.706.078 18.461.963 17.076.508 8.986.524 6.739.310 6.329.500 4.674.560 3.584.115 5.227.817 96/97 170.424.122 23.542.254 22.258.512 20.157.163 9.906.236 8 .084.832 8.215.687 5.404.641 4 .742.596 5.437.211 97/98 181.511.031 23.698.079 24.874.691 16.970.789 11.971.312 9.788.430 8.192.963 5.916.046 5.329.824 4.926.275 98/99 199.521.253 17.345.105 24.224.519 15.588.250 13.483.617 10.306.270 8.536.430 6.589.965 3.888.104 5.191.421 99/00 194.234.474 19.315.230 24.351.048 13.320.164 13.599.488 10.110.766 7.162.805 7.410.240 3.418.496 4.953.176 00/01 148.226.228 21.618.069 19.320.856 13.138.516 10.634.653 8.669.533 7.207.646 6.520.923 3.423.640 3.934.844 01/02 176.574.250 23.124.558 23.075.623 14.351.050 12.206.260 10.673.433 8.782.275 7.743.914 4.001.051 3.072.603 Fonte: Informação UNICA. De outro lado, não podemos perder de vista, que a cana integra historicamente cadeias mercantis internacionais, sendo um dos principais produtos da agro-exportação. São 54 países de 43 IBGE, Contas Regionais, 2003. 92 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. destino das exportações brasileiras das usinas de cana e álcool listados nas nossas fontes, sendo o primeiro do ranking nos anos de 2004/2005, a Rússia, constando ainda diversos paises africanos e do Oriente Médio como Emirados Árabes Unidos. Nigéria, Egito, Marrocos. Abaixo alguns dados sobre as exportações brasileiras: Fonte: Informação UNICA - Ano 6 - Nº 51 - Janeiro/Fevereiro de 2003 Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 Mês Exportação Total - 2001 Brasil US $ FOB Açúcar US$ FOB Janeiro 4.537.905.000 229.618.827 Participação (%) do Açúcar nas Exportações Brasil 5,06 Fevereiro 4.083.023.000 74.282.170 1,82 3.658.349.034 127.931.406 3,50 Março Abril 5.167.500.000 4.729.698.000 116.041.631 71.822.001 2,25 1,52 4.260.412.206 4.641.399.729 63.761.2 74 52.996.253 1,50 1,14 Maio 5.367.054.000 78.503.793 1,46 4.441.379.547 90.329.025 2,03 Junho 5.041.980.000 163.264.621 3,24 4.078.559.856 186.919.084 4,58 Julho 4.964.485.000 239.760.286 4,83 6.223.3 34.278 229.823.044 3,69 Agosto 5.727.436.000 287.345.097 5,02 5.751.020.402 219.061.211 3,81 Setembro 4.754.965.000 292.192.709 6,15 6.491.806.837 329.861.646 5,08 Outubro 5.002.529.000 291.304.947 5,82 6.474.407.905 268.940.680 4,15 Novembro 4.500.260 .000 281.727.815 6,26 5.126.951.442 183.602.649 3,58 Dezembro 4.345.808.000 151.867.191 3,49 5.242.335.956 192.100.759 3,66 58.222.643.000 2.277.731.088 3,91 60.361.785.967 2.093.636.374 3,47 Total Exportação Total - 2002 Brasil US$ FOB Açúcar US$ FOB 3.971.828.775 148.309.343 Participação (%) do Açúcar nas Exportações Brasil 3,73 Os produtos derivados da cana-de-açúcar ocupam uma posição importante na pauta de exportações brasileiras. No período 2001/2002, a participação nas exportações sempre esteve acima de 3% do total das exportações, se equiparando a outros produtos industrializados. A cadeia mercantil que vincula a produção do açúcar aos mercados internacionais e as formas de organização das unidades produtivas e comunidades rurais é assim determinante para a compreensão da atual situação histórica. Abaixo estão as principais Usinas de Mato Grosso do Sul, num, ranking de 217 posições:. Fonte: Informação UNICA - Ano 5 - Nº 46 - Março/Abril de 2002 Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02 ORD. 62 71 72 89 94 109 145 158 Unidades Produtoras Coopernavi (MS) Debrasa (MS) Passa Tempo (MS) Santa Olinda (MS) Sonora Estância (MS) Maracaju (MS) Sta. Helena - Nova Andradina (MS) Novagro (MS) Cana Moída (ton.) Açúcar (sacas - 50kg) Álcool Total (m3) 1.283.565 1.225.065 1.200.438 1.030.006 991.689 865.283 617.540 530.328 1.786.380 --1.936.260 735.200 741.100 1.358.360 ----- 46.700 96.222 24.385 52.359 58.433 24.882 52.231 41.309 É possível perceber que as Usinas de Mato Grosso do Sul estão ocupando posições intermediárias em termos de produção e lucro. As principais unidades são do estado de São Paulo. A Usina Santa Olinda, que surgiu na situação social descrita acima, na safra 2001/2002 era a 4º em termos de produtividade no Mato Grosso do Sul, e octogésima nona em termos nacionais. 93 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 Estado Espírito Santo Goiás Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Paraná Rio de Janeiro São Paulo Total Centro Sul Cana-de-açúcar Toneladas % 2.554.166 1,23 7.207.646 3,48 8.669.533 4,19 6.520.923 3,15 10.634.653 19.320.856 3.934.844 148.226.228 207.068.849 Açúcar Toneladas 45.474 397.440 369.530 23.635 5,14 9,33 1,90 71,58 100,00 619.544 989.139 307.698 9.671.388 12.631.848 % 0,36 3,15 2,93 1,83 4,90 7,83 2,44 76,58 100,00 Álcool Toneladas 150.663 318.431 464.357 314.777 485.063 799.364 92.596 6.439.113 9.064.364 % 1,66 3,51 5,12 3,47 5,35 8,82 1,02 71,04 100,00 Fonte: Informação UNICA. Apesar de estar situado no que poderíamos chamar de “base” da hierarquia da divisão territorial do trabalho no país, localizado numa região economicamente secundária, em relação ao Sul-Sudeste, o Mato do Grosso do Sul ocupa nas últimas décadas posição chave em certos grupos de atividade econômica (como soja e cana de açúcar), que por sua vez são estratégicos do ponto de vista da política de exportações e comércio exterior do país. Uma vez situada à posição do Mato Grosso do Sul na economia nacional, podemos avançar na identificação dos principais traços da economia dentro do próprio estado, de maneira a determinar como a economia e sociedade regional afetam as relações interétnicas. Estrutura Ocupacional e Estrutura Fundiária A estrutura ocupacional no Mato Grosso do Sul apresenta concentração na área de serviços, com pouca participação das ocupações industriais no volume total de pessoal ocupado e baixos índices de emprego na agropecuária, apesar de existir grande quantidade de população rural, e de grande participação deste grupo de atividades na economia do estado. A tabela abaixo mostra a produção econômica e o pessoal ocupado no estado, dados desagregados por setor e grupo de atividade econômica. Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas). Grupos de Atividade sócio-Econômica. Valor adicionado Bruto 2001 (R$ mil) Agropecuária Industria R$ 3.137.010 Extrativa R$ 36.906 Pessoal Ocupado nas Numero de Unidades Legais Unidades legais. 10.848 1.679 910 161 94 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Transformação R$ 1.439.334 41.077 4.327 2.356 137 R$ 1.242.302 15.707 1.460 Comércio R$ 1.156.388 91.064 32.184 Alojamento e Alimentação R$ 295.248. 10.439 2.903 Eletricidade, água e gás. Construção Transportes e armazenagem e Comunicações 14.198 R$ 565.942 Intermediação financeira Serviços R$ 221.436. Atividades imobiliárias e serviço e prestados a empresas. Administração Pública. 2.619 R$ 418.268 5.532 795 R$ 873.442 25.570 5.471 94.275 346 Saúde 10.446 1.130 Educação – 10.635 1.157 15.251 5.064 R$ 2.152.850 Saúde e educação R$ 405.996 Outros serviços coletivos R$ 307.550 Serviços domésticos R$ 98.046 Estes dados quando contrastados permitem uma visualização mais precisa da economia regional e de seu impacto sobre a sociedade. Em primeiro lugar, quando consideramos os grupos de atividades de forma desagregada, vemos que agropecuária tem o maior produto econômico, sendo seguido pela administração publica, indústria de transformação e construção civil, e comércio, que tem mais de 1 bilhão de reais em produto. Isto significa que o caráter da sociedade no Mato Grosso do Sul, é especialmente agrário, mas com uma tendência a “terciarização” da economia. Poderíamos indicar a organização e situação da economia tem impactos óbvios sobre o perfil da sociedade. A composição social e demográfica das unidades político-administrativas na região permite determinar algumas características essenciais. Vejamos o quadro abaixo: Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE – Censo 2000) Classes de tamanho Número População residente Taxa Razão da população dos de de de Total Urbana Rural municípios municípios crescimento dependência (habitantes) 1991/2000 Mato Grosso do Sul 77 2 078 001 1 747 106 330 895 1,7 55,4 95 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Até 5 000 8 33 481 18 513 14 968 (-) 1,1 59,6 De 5 001 até 10 000 20 146 935 86 251 60 684 0,9 61,8 De 10 001 até 20 000 28 394 532 278 040 116 492 1,3 58,5 De 20 001 até 50 000 16 438 807 344 264 94 543 1,4 57,6 De 50 001 até 100 000 3 235 676 214 196 21 480 1,4 59,3 De 100 001 até 500 000 1 164 949 149 928 15 021 2,2 53,8 Mais de 500 000 1 663 621 655 914 7 707 2,6 49,9 O estado do Mato Grosso do Sul possui 77 municípios, sendo que apenas duas cidades têm dimensão para serem considerados como médias ou grandes pelos atuais padrões de urbanização, que são Dourados e Campo Grande. Cerca de 35% das cidades têm no máximo 10.000 habitantes e outros 35% delas tem no máximo 20.000. Somente 16% das cidades têm mais de 20.000 habitantes. 70% dos municípios concentram apenas de 27% do total da população do estado (574.948 pessoas), enquanto que as duas maiores cidades concentram cerca de 40% . Esta tendência acompanha a dinâmica da urbanização brasileira como um todo, que é a da concentração populacional da população nas cidades de maior porte (que centralizam as atividades econômicas e infra-estrutura). Os dados do censo demográfico apontam assim um estado altamente “urbano” do ponto de vista social. Mas isto não corresponde plenamente à realidade. O censo agropecuário do IBGE de 1996 indica 200.000 mil pessoas ocupadas em estabelecimentos agropecuários, o que significa mais de 50% do total de pessoal ocupado nas unidades legais (que é de 348 mil). Logo, o numero de pessoas ocupadas nas zonas rurais em atividades agrícolas é muito próxima daquelas ocupada no setor de serviços, e muito superior àquela ocupada na indústria. Neste sentido é preciso analisar a economia e a sociedade do Mato Grosso do Sul a partir de um outro ângulo, já que como vimos, a análise de dados agregados pode produzir alguns equívocos sérios. Os dados utilizados acima, provenientes do cadastro central de empresas só consideram o pessoal ocupado nas unidades locais legais e não os estabelecimentos rurais. Os dados do censo, partindo de critérios demográficos, classificam a população urbana e rural por vias questionáveis. Logo, grande parte de pessoas que são ocupadas, mas não nos estabelecimentos legais, não foi considerada. Para corrigir as distorções usaremos os dados do Censo Agropecuário (IBGE-1996), que faz uma análise mais fina do setor agropecuário, permitindo assim uma visualização mais precisa da economia e sociedade regional. Vejamos o quadro abaixo, sobre a estrutura fundiária do Mato Grosso do Sul. 96 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996. Valor da Produção 44 Número de Estabelecimento s Pessoal Ocupado 49.423 202.709 Menos de 10 há 9.170 De 10 a 99 há Total de Hectares (em mil reais) Animal Vegetal 30.942.772 1.462.458 719.361 24.694 39.681 22.108 15.676 17.753 56.012 637.163 100.465 64.422 De 100 a 999 há 15.423 59.035 5.992.676 403.125 274.303 De 1000 a 9.999 há 6.493 48.949 16.677.386 778.337 248.375 Mais de 10.000 ha 409 13.516 7.595.866 156.738 114.187 Total Grupos de Área Vemos pelos dados que existe uma considerável concentração fundiária. Os estabelecimentos com menos de 100 hectares representam 54,7% do total, mas ocupam apenas 2,2% das terras disponíveis. Os estabelecimentos com mais de 1000 hectares, em contrapartida, representam 14% dos estabelecimentos, mas ocupam 78, 4% das terras. A concentração de terras acompanha a concentração de riquezas. Cerca de 65% do valor adicionado na produção animal e mais de 50% da produção vegetal, estão concentrados no grupo de mais de 1000 hectares. Ou seja, a concentração de terras expressa também a geração e concentração de renda. Existe também uma profunda diferença intra-regional. Cada zona econômica e ecológica tem um desempenho e um perfil social diferenciado. A estrutura fundiária e produtiva também. O IBGE emprega a distinção em 4 Meso-regiões para classificar diferenças intra-regionais do estado: Sudoeste do Mato Grosso do Sul; (em que se encontra a população Guarani-Kaiowá e Terena); o Pantanal sul- mato- grossense (com população Terena e Kadiweú); o Leste de Mato Grosso do Sul; Centro Norte de mato Grosso do Sul (Terena, Guarani, Kadiwéu). Na região do Pantanal, que compreende os Municípios de Miranda, Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti e Anastácio, estão as principais terras e reservas indígenas Terena. As terras indígenas Guarani se encontram principalmente na região sudoeste. Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões. IBGE. Censo Agropecuário 1995-1996. Mesoregiões Valor da Produção Pessoal Ocupado (em mil reais) Animal Vegetal Numero de estabeleci mentos Responsáveis e membros não remunerados Emprega dos permanen Emprega dos Temporár Outros Total 44 O número de informantes sobre os valores varia. Os informantes sobre a produção animal foram em numero de 47.676 e vegetal de 30.754. 97 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. das famílias tes ios CentroNorte do Mato Grosso do Sul 277.440 152.670 8.779 16.656 14.518 4.206 1.201 36.581 Leste de Mato Grosso do Sul 501.930 173.518 11.780 20.405 22.541 4.938 892 48.776 Pantanal 143.227 12.234 4.801 10.529 8.280 1.370 539.761 380.938 24.063 57.465 26.237 9.984 525 20.704 Sul-matogrossense Sudoeste do Mato Grosso do Sul 2.872 96.558 202.709 A região do Pantanal, em que estão concentradas as Terras Indígenas Terena, é a que concentra menor número de estabelecimentos, e menor número de empregos permanentes e temporários. As micro-regiões Sudoeste e Leste são as que concentram maior parte do valor da produção agropecuária. Por outro lado, as duas maiores cidades, Campo Grande e Dourados, com grande peso político econômico tem, em contrapartida, uma população Terena extensa. Os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, com seus modos específicos de utilização da terra, se encontram nos grupos com menos de 10 hectares, o que significa que eles estão entre os segmentos que menos conseguem agregar valor a sua produção agrícola. Vejamos os dados abaixo: Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul Povo Hectares. População Hectare per capta Aldeias Município Água Limpa Terena 0 46 Aldeinha Terena 4 236 0,01 Buriti Terena 2090 2.400 0,87 Anastácio Dois Irmãos do Buriti/Sidrolandia Buritizinho Terena 10 0,03 Sidrolândia Cachoeirinha Terena 2644 320 4.000 0,66 Miranda 3000 1.500 2 Miranda 208 1.800 0,11 Miranda 1,4 Aquidauana Lalima Terena Pilad Rebuá Terena Rochedo Taunay/Ipegue Terena 6461 4.310 Nioaque Terena 3029 1.183 2,56 Nioaque Limão Verde Terena 4886 1.100 4, 4 Aquidauana Elaborado a partir dos dados do ISA. Poderíamos dizer que o crescimento demográfico das populações indígenas, combinado com as características e tendências econômicas e sociais regionais e nacionais, estão levando a uma redução drástica da média de terras disponíveis a reprodução econômica e cultural dos Terena (estando muito abaixo da média histórica do SPI, de 8 hectares). Este é um dos fatores a produzir 98 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. um fluxo continuo de migração dos Terena para as principais cidades do estado.O fato das TIN Terena estarem na região do Pantanal criam ainda uma dificuldade muito especifica: é a região que tem menor oferta de trabalho e emprego nas atividades agropecuárias, tem menor produção no setor, dentre todas as micro-regiões do estado. A redução proporcional das terras indígenas faz que a atividade econômica de subsistência exercida no próprio local de moradia (as aldeias) seja virtualmente inacessível para a totalidade da população existente. Além disso, mesmo aqueles que estão ocupados nesta atividade econômica dificilmente conseguem tirar sua subsistência exclusivamente dela, já que a atividade de produção em áreas de menos de 10 ha tem uma renda média muito baixa.Vejamos o quadro abaixo, com valores válidos para o conjunto do Mato Grosso do Sul: Área HÁ Menos de 1 1 a menos de 2 2 a menos de 5 5 a menos de 10 Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos Mato Grosso do Sul - Censo Agropecuário IBGE - 1996 Estabelecimentos informantes. Valor Total da Produção 476 R$ 2.525,00 1269 R$ 3.211,00 4004 R$ 13.903,00 3185 R$ 18.144,00 Renda Média Anual R$ 1.500,50 R$ 2.240,00 R$ 1.870,25 R$ 1.870,25 Uma grande parte do povo Terena dispõe de pouca terra (menos de 1 hectare) para plantio, o que os coloca numa posição econômica de pauperidade. A renda média obtida é muito baixa (sendo inferior ao salário mínimo atual em todas as faixas de tamanho de estabelecimento). É neste contexto econômico-social, em que se situam as etnias indígenas do Mato Grosso Sul, e dentre eles, os Terena. Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996). Grupos de Área Pessoal Ocupado Valor Produção Vegetal Menos de 10 hectares Produção Animal 1.138 734 782 De 10 a 99 hectares 432 262 785 De 100 a 999 hectares 486 488 2.478 De 1000 a 9.999 hectares 508 1.273 7.546 Mais de 10.000 hectares 536 1.930 10.147 Com relação à cidade de Miranda, onde fica localizada a aldeia Cachoeirinha, os dos do IBGE indica, que o seguinte: Responsáveis e Membros da Família – 1733 pessoas; Empregados Permanentes – 1145 pessoas; Empregados Temporários – 166. Destes empregados permanentes, 840 estão vinculados a estabelecimentos com mais de 500 há de terra. Ou seja, à concentração do trabalho assalariado agrícola se dá também nos latifúndios da região. Cachoeirinha fica localizada num dos municípios em que a desigualdade social é mais acentuada no Mato Grosso do Sul, existindo um grande número de pobres e população com baixa renda. 99 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA 1991 2000 20% mais pobres 2,7 0,8 40% mais pobres 8,4 4,0 60% mais pobres 17,3 10,1 80% mais pobres 32,1 21,4 20% mais ricos 67,9 78,7 A renda per capita média do município cresceu 87,88%, passando de R$ 132,10 em 1991 para R$ 248,19 Em 2000. A pobreza (medida pela proporção de pessoas com renda domiciliar per capita inferior a R$ 75,50, equivalente à metade do salário mínimo vigente em agosto de 2000) diminuiu 13,84%, passando de 60,6% em 1991 para 52,2% em 2000. A desigualdade cresceu: o Índice de Gini passou de 0,63 em 1991 para 0,80 em 2000. “Em relação aos outros municípios do Brasil, Miranda apresenta uma situação intermediária: ocupa a 2526ª posição, sendo que 2525 municípios (45,9%) estão em situação melhor e 2981 municípios (54,1%) estão em situação pior ou igual. Em relação aos outros municípios do Estado, Miranda apresenta uma situação intermediária: ocupa a 51ª posição, sendo que 50 municípios (64,9%) estão em situação melhor e 26 municípios (35,1%) estão em situação pior ou igual”. (Atlas do Desenvolvimento Humano). Os indicadores utilizados são o nível de escolarização, acesso a saúde, expectativa de vida e renda. Poderíamos tirar algumas conclusões acerca da economia e sociedade regional. Podemos dizer que se trata de uma economia fundamentalmente centrada na agropecuária, já que a maior parte da produção de valores deriva deste grupo de atividades, concentrando também grande parte da população economicamente ocupada. A maior parte da população do estado se concentra em dois centros econômicos, Campo Grande e Dourados (40% da população), e 25% da população se encontra em cidades pequenas, com menos de 20.000 habitantes. É um estado que segue a tendência geral da estrutura fundiária brasileira, com grande concentração de terras. Do ponto de vista demográfico, é um estado com uma grande quantidade de municípios pequenos, que concentram proporcionalmente, a menor parcela da população regional, e de poucas cidades grandes. Do ponto de vista intra-regional, temos uma hierarquia de espaços econômicos, sendo que as micro-regiões Sul e Sudeste são aquelas com maior concentração de riquezas e produção econômica. A posição social dos índios deriva em grande parte de sua localização territorial no quadro geral da economia e sociedade regional. No caso de Cachoeirinha, a diversificação ocupacional encontrada expressa tendências encontradas na sociedade regional: a centralidade das atividades agropecuárias com uma certa diversificação concentrada principalmente na área de serviços, acompanhando a terciarização da econo mia (o que dá um outro sentido para a liberalização do 100 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. regime tutelar, que permitiu a incorporação de índios, significou uma abertura de outra frente econômica); o assalariamento em ocupações ligadas à agropecuária; as unidades produtivas de pequeno porte (menos de 10 hectares). Também as tendências à constituição de fluxos e redes sociais para Campo Grande e Cuiabá são compreensíveis em razão da importância econômica destas duas cidades; os fluxos de trabalhadores para as Usinas de Açúcar são explicados pela pouca importância econômica da micro-região do Pantanal, que se apresenta basicamente como região de latifúndios agropecuários, com pouco pessoal ocupado em empregos permanentes e temporários (20.704, cerca de 10% do total do estado, enquanto que a região sudoeste concentra 96.558 pessoas ocupadas, quase 50%). A ausência da oferta de empregos, combinada com impossibilidade fixação de todos os filhos nas terras da aldeia (e também as estratégias indígenas de diversificação ocupacional) ajuda a entender o porquê da formação dos fluxos e sua importância para a reprodução da sociedade Terena enquanto um tipo de campesinato étnico. O modelo de territorialização e inserção dos índios na estrutura de classes, imposto pelo SPI e preservado pela FUNAI, teve como efeito direto no caso do Mato Grosso do Sul, que os Terena fossem colocados nas posições e ocupações inferiores, onde a desigualdade econômico-social é mais marcante. As especificidades intra-regionais (ecológicas, históricas e econômicas) acentuam ainda mais esse fenômeno no caso dos Terena e da aldeia Cachoeirinha. O regime tutelar e a política indigenista reproduziram e agravaram a tendência a subordinação política e econômica dos povos indígenas. Ter em mente estes dados é algo fundamental para compreender as relações interétnicas e também, as estratégias e organização social indígena Terena, pois elas estão profundamente vinculadas a tendências sociais e econômicas acima analisadas. Ao mesmo tempo não se pode colocar de forma contraditória e excludente a reflexão sobre as relações interétnicas e de classe, já que elas se encontram imbricadas. Precisamos redimensionar a questão indígena como uma questão de classe, no sentido que envolve conflitos em torno da propriedade privada, interesses de Estado e taxas de acumulação de capital e renda. A resistência indígena nesse sentido, exatamente por ser uma forma de luta contra o regime tutelar, se torna uma forma particular de luta de classes. 2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006). Pudemos ver pelas informações acima, que a política indigenista e o regime tutelar produziram efeitos muito concretos sobre os Terena: eles foram colocados na condição de camponeses pobres, proletários rurais e trabalhadores urbanos; isso significou também a formação das reservas dentro de padrões do SPI (com até 5 mil hectares em média). Só que em razão do crescimento demográfico e processos sociais dos últimos 20 anos, o tamanho médio das terras 101 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Terena decresceu de 8 hectares per capta para menos de 1/5 hectare per capta. É dentro dessas condições materiais, objetivas, que devemos analisar a emergência do protagonismo étnico e buscar seus significados. O padrão de territorialização e o modo de inserção na estrutura de classe, fez dos Terena um grupo subalterno, tanto do ponto de vista global, quanto local. Num certo sentido, existe no caso do Mato Grosso do Sul uma tendência ao rebaixamento dos padrões de territorialização estabelecidos pelo SPI, e que ficam muito distantes dos padrões da FUNAI. Mas se de um lado, os processos de territorialização dirigidos pelo Estado podem ser tomados como base para definição das formas de intervenção do regime tutelar, as formas de territorialização dirigidas pelos índios podem ser tomadas como formas de resistência às bases simbólicas e políticas desse mesmo regime. E é nesse sentido que iremos considerar as técnicas de resistência empregadas pelos índios dentro dos conflitos fundiários, que expressam o esforço indígena no sentido de criar outras formas de territorialização (ou questionar os padrões estabelecidos pelo Estado), como ponto de partida para a análise da interação entre resistência e tutela. E ao tomar esses processos de territorialização desencadeados pelos indígenas, podemos perceber como formas de resistência aberta tomam cada vez mais espaço entre os índios de Mato Grosso do Sul em geral, e entre os Terena em particular. Os dados do Mato Grosso do Sul são muito significativos com relação a isso. O número de terras ocupadas pelos índios e em disputa com os proprietários rurais é muito expressivo, como podemos ver pelo quadro abaixo: 102 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores Invasão 01/11/1985 24/08/1998 21/12/1998 18/01/1999 28/04/1999 28/08/1999 18/09/1999 18/09/1999 07/10/1999 28/10/1999 16/11/1999 03/01/2000 31/01/2000 04/04/2000 17/04/2000 17/04/2000 25/04/2000 21/06/2000 21/06/2000 23/01/2001 29/06/2001 31/08/2001 28/08/2002 12/01/2003 15/01/2003 22/02/2003 22/02/2003 22/02/2003 22/02/2003 06/03/2003 26/06/2003 18/08/2003 25/08/2003 Famílias 8 100 80 50 300 30 100 100 50 40 2 30 40 150 70 100 300 30 30 30 20 14 50 30 30 50 50 50 60 60 50 30 30 Imóvel São Miguel Arcanjo Paraná Fronteira Pito Aceso Brasília do Sul * São Sebastião Santa Maria Água Colorada El Shadai* El Shadai** Retiro Vinte Ipuitã * São Miguel Ipuitã ** Flórida Estância Alegre Furna da Estrela Recanto Chácara São Francisco Iporã Lote 6 qd. 21 Vitória em Cristo Brasília do Sul ** Brasília do Sul ** São Sebastião Recanto do Sabiá N. Sra. Aparecida Buriti Santo Antônio Furna da Estrela N. Sra. Aparecida Bom Jesus Município Juti Ponta Porã Antônio João Ponta Porã Juti Sete Quedas Paranhos Paranhos Ponta Porã* Ponta Porã** Laguna Caarapã Caarapó * Amambai Caarapó ** Sidrolândia Sidrolândia Dois Irmãos do Buriti Ponta Porã Ponta Porã Naviraí Paranhos Dourados Itaporã Juti Juti Dois Irmãos do Buriti Dois Irmãos do Buriti Dois Irmãos do Buriti Dois Irmãos do Buriti Sidrolândia Dois Irmãos do Buriti Dois Irmãos do Buriti Sidrolândia Área/ha 925,00 400,00 1.400,00 608,00 9.345,00 2.300,00 200,00 200,00 303,00 303,00 40.000,00 4.330,00 152,46 4.330,00 370,00 370,00 3.900,00 500,00 30,00 276,60 184,00 15,00 908,00 9.345,00 9.345,00 300,00 300,00 300,00 425,00 56,00 3.900,00 1.300,00 1.200,00 Proprietário Miguel Subtil de Oliveira Hani Taleb Dácio Queiroz Silva Amilcar Lima Jacintho Honório S. Neto * Agro Zoller Ltda Safranor Lopes Roberto Faraco Ubirajara Mello* Ubirajara Mello** Cia. Ag. Past. Campanário José Roberto Teixeira Vicente J. de A. Maciel José Roberto Teixeira** Jean Franco Rossi Valéria A. Barbosa França Haroldo Ferreira Côrrea Eneida Fuchs Olímpio Cabreira Itrio dos S. Maciel Maxionilio Machado Dias Valdeir Ferreira Leonel Associação dos Produtores de Montese Jacintho Honório S. Neto ** Jacintho Honório S. Neto ** Jorgina Correa Moura Justina Correa Ribeiro Cristina Correa Waldemar Marques Rosa Moacir Franco Haroldo Ferreira Côrrea Acelino Roberto Ferreira José Barbosa Coutinho (Espólio) Apoio Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Saída ---------------------19/01/1999 16/10/2001 24/12/1999 20/09/1999 -------08/10/1999 28/10/1999 18/11/1999 05/01/2000 01/02/2000 08/04/2000 --------------20/11/2003 --------------24/01/2001 --------------03/09/2002 13/01/2003 --------------------------------------------------------31/08/20 03 Origem/Famílias Jarará Município e Proximidades Município e Proximidades Aldeias Próximas Caarapó/Guarani/Caiuás Índios da Região Tacuru Aldeia Paraguassú -Tacuru Aldeia Jaguapire-Tacuru Município e Proximidades Município e Proximidades Município e Proximidades Índios Aldeia de Caarapó Índios Aldeia Limão Verde Índios Aldeia de Caarapó Índios da Aldeia Buriti Índios da Aldeia Buriti Índios Aldeias Sidrolândia Índios da região Índios da região Índios Aldeia Teikuê Aldeia Corã Índios da Aldeia Panambizinho Caiuá/caarapó/guarani Caarapó/Caiuás/Guarani Caiuá/Caarapó/Guaraní Aldeia Burit i Aldeia Buriti Aldeia Buriti Aldeia Buriti Aldeia Córrego do meio Aldeia Água Azul Aldeia Corrego do Meio Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha 25/08/2003 25/08/2003 25/08/2003 22/12/2003 28/12/2003 03/01/2004 03/01/2004 03/01/2004 04/01/2004 05/01/2004 05/01/2004 06/01/2004 06/01/2004 06/01/2004 06/01/2004 06/01/2004 07/01/2004 30 30 30 1000 300 15 300 15 15 100 100 15 15 15 100 100 15 Querência São José 3R Buriti São Jorge Paloma Guaçuri Brasil 2 São Marcos Guaporema São José Chaparral Sítio Zé Lago São Sebastião São Miguel Remanso Guaçú São Pedro Estância Varago Sidrolândia Sidrolândia Sidrolândia Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã Japorã 300,00 300,00 300,00 2.000,00 457,38 314,60 314,60 169,40 135,52 532,40 605,00 35,09 7,00 252,00 2.633,00 677,60 121,00 Lourdes Bacha Rachid Bacha Ricardo Bacha Pedro Fernandes Neto Jeadir Silvestre de Carli Edson Alves Alberi Pereira de Lima Cícero Eugênio Márcio Paulo Polzin José Maria Varago Luiz Carlos Tormena José Joaquim Nascimento Sebastião Pereira Benedito Machado Flávio Telles de Menezes Joel Rodrigues José Maria Varago Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Índios Indios Índios Índios Indios Indíos Índios Índios Índios Índios 31/08/2003 31/08/2003 31/08/2003 --------------24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 24/02/2004 -------24/02/2004 24/02/2004 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha Aldeia Corrego do Meio e Lagoinh a Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto L indo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto Lindo Aldeia Porto LIndo Aldeia Porto LIndo Aldeia Porto Lindo 103 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. Pelos dados acima, podemos ver que entre 1998 e 2004 ocorrem 49 ocupações de terras (apenas 1 foi realizada em 1985), 4359 famílias envolvidas, 44 propriedades ocupadas, das quais 29 foram despejadas e cerca de 21 permanecem nas áreas em conflitos. Das propriedades ocupadas no quadro acima, 11 o foram pelos índios Terena das aldeias de Buriti e Sidrolândia (25% do total), e a demais 75% pelos índios Guaranis. Deve somar-se a este numero a ocupação realizada em 2005 pelos índios Terena de Cachoeirinha. O envolvimento dos Terena nas ocupações de terras é significativo, apesar de não ser majoritário. Ou seja, estamos falando de um novo processo de territorialização, dirigido pelos índios, com origem nas suas próprias demandas, materiais e simbólicas. As ocupações de terra não são fatos isolados, mas um processo sistemático de luta política, que se aprofundou a partir do ano de 1998. O número de famílias envolvidas (mais de 4 mil) indica um envolvimento expressivo do conjunto da população indígena, que poderia alcançar até de 20 mil pessoas (ou cerca de 50% da população indígena oficial do estado). Quadro 24 – Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos 45 2000 Reféns feitos Propriedades Ocupadas em “Retomadas de Bloqueio de Pelos Índios Terras” Rodovias Ocupação de Prédios Públicos 2 (funcionários da FUNAI) 1 (FUNAI) 3 (Sidrolândia) 2001 2002 1 (repórter) 2003 8 (4 policiais 1 motorista, 3 proprietários rurais) 6 (BR-163, Rondonópolis, MT). 11 (entre Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti) foram invadidas onze propriedades somando cerca de 10 mil hectares de terras. São elas: Santa Clara, Lindóia, Cambará, Buriti, Bom Jesus, Querência São José, Três R, Quitandinha, Vassoura, São Sebastião, Águas Claras. 1 (FUNAI) 2004 2005 1 (produtor 1 (Fazenda Santa Vitória em Miranda) rural) 2006 2 (funcionários da FUNASA) 1 (Delegacia de Polícia Civil Miranda). 2 (BR-163, Jaguari-MS) 1 (FUNASA – Pólo Base Sidrolândia). O processo concreto de territorialização dirigido pelos indígenas acaba expressando a resistência aos padrões de territorialização impostos pelo regime tutelar e também as condições econômico-sociais que derivam dele, ao mesmo tempo depende da combinação de algumas técnicas 45 Elaborados a partir de notícias de jornal e do “Aconteceu Povos Indígenas”; Folha de São Paulo 07/11/2006 104 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. de luta política, que expressam a oposição aos efeitos do regime tutelar. Nesse sentido, as ocupações representam a superposição conflituosa de formas de regulação de diferentes grupos sociais (indígenas e produtores rurais) sobre certos territórios e recursos naturais. O quadro 24 mostra um levantamento das técnicas de resistência e dos conflitos concretos envolvendo as ações de índios Terena em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, que se relaciona diretamente a esta oposição ao modelo de territorialização do SPI/FUNAI: Vemos que os processos de ocupação são realizados de forma a combinar-se com outras técnicas de luta política. Podemos dizer que o uso freqüente dessas técnicas permite que as agrupemos em quatro grandes categorias: 1) ocupação de terras; 2) seqüestros (ou tomada de reféns); 3) bloqueios de estradas e rodovias; 4) ocupações de prédios públicos. Essas diferentes técnicas podem ser combinadas como vimos no quadro acima, de maneira que os índios seqüestram carros e pessoas para realizar uma ocupação ou na seqüência de uma. A existência de “retomadas de terras” no Mato Grosso do Sul e entre os índios Terena expressa por si só uma mudança qualitativa nas relações de poder e na correlação local de forças entre os índios e o Estado. As ações coletivas, públicas, organizadas em torno de um discurso afirmativo, indicam o desenvolvimento da capacidade política indígena que se articula inclusive com outros processos sociais difusos (como a escolarização, mobilidade social e espacial e etc). Podemos falar que a retomada de terras é uma das técnicas da resistência política camponesa e que o seu emprego indica que os grupos sociais construíram condições materiais, organizativas e ideológicas, para sua utilização. A partir do momento em que grupos sociais empregam a retomada de terras, configura-se um conflito político em que os indígenas desenvolvem uma política de resistência a (e simbolicamente de inversão) uma situação de desigualdade gerada pela dominação estabelecida. A retomada de terras expressa esse desenvolvimento da capacidade política indígena através do conflito político que desencadeia novas formas de territorialização. A utilização dessas técnicas de resistência pelos índios mostra que certas condições políticas amadureceram a ponto de permitir a passagem de formas cotidianas de resistência para a resistência aberta. E esse é um componente fundamental desse protagonismo indígena, calcado numa mudança da co-relação de forças entre índios, Estado e grupos sociais dominantes. A mudança na co-relação ou balanceamento de forças, na distribuição dos poderes na atual situação histórica, se dá pela quebra do “monopólio” (nunca plenamente alcançado) de representação do índio e o poder de substituição da ação indígena pelos agentes de Estado. O objetivo das ocupações é a revisão dos limites das terras no sentido de sua ampliação, e a demarcação das terras identificadas como indígenas. Nesse sentido ela afeta diretamente duas das principais bases da política indigenista e do regime tutelar: o padrão de territorialização e o modo de inserção na estrutura de classes (já que o aume nto das terras e recursos permite uma alteração da 105 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. posição na estrutura de classes). Assim, as técnicas de resistência empregadas se dirigem aos efeitos dessas bases, procuram modificá- las. Iremos denominar aqui a atual situação histórica como “situação de retomada”, para indicar esses processos de territorialização e mudança nas relações de poder. A semântica desta expressão visa caracterizar os padrões de relações entre os indígenas, o Estado e outros atores sociais, chamando a atenção para as transformações processadas no conteúdo e na forma do regime tutelar. É uma categoria etnográfica carregada de significado político e simbólico. Primeiramente, devemos indicar que quando usamos a categoria “retomada”, estamos empregando uma categoria utilizada em larga medida pelos próprios indígenas e suas organizações, e também por outros atores que se articulam politicamente com os indígenas (como o CIMI). A categoria “retomada” é utilizada para designar a ação de entrada ou ocupação dos índios nas terras que eles reivindicam como tradicionais. Neste sentido é uma categoria que surge do conflito fundiário e político e também de processos de territorialização. Em Cachoeirinha, por exemplo, entrevistamos um dos caciques que organizaram e participaram de uma ‘retomada de terras” (a ocupação de uma fazenda limítrofe à Cachoeirinha). “Quando nós tava fazendo reunião aldeia por aldeia, nós tava preparando para fazer essa retomada, Lagoinha, Babaçu e Argola, quem decidiu mesmo para fazer esse retomada foi esse três aldeia. Então até hoje tá esses três aldeias junto, três caciques junto, apesar que dois caciques, eu e Ramão, Lindomar é um líder que lidera as pessoa que veio da Argola. Não esperou cacique de lá, cacique de Argola por enquanto tá indeciso”. (Cacique Zacarias Rodrigues, Março 2006). A categoria retomada é emblemática da atual situação histórica (situação esta que se configurou a partir da década de 1990 do século XX) e permite a caracterização de seus traços sociológicos fundamentais. Fazendo uma consideração geral sobre o conjunto de processos que identificamos entre os Terena, podemos dizer que tanto a estratégia dos índios funcionários, quanto das assembléias e organizações indígenas são empregadas de forma alternada ou combinada. Na realidade, a via da co-gestão indígena já se consolidou regionalmente no Mato Grosso do Sul, com o controle da regional Campo Grande FUNAI pelos Terena. A este projeto disseminado entre lideranças e facções indígenas, está se contrapondo um outro, caracterizado pelas retomadas de terras. Mas não devemos opor a via da “co- gestão” a via da “resistência”, pois apesar delas tenderem a se neutralizar mutuamente, elas derivam de processos similares, que são as formas cotidianas de resistência ao regime tutelar dentro das aldeias e comunidades locais. Logo, a atual situação histórica, permite que formulemos uma série de problemas. Como seria possível a eclosão de tais conflitos políticos e tais processos de territorialização e mobilização política se os índios Terena fossem apenas pólos determinados na relação com a sociedade 106 Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. nacional? Como seria possível a existência de retomadas se eles fossem apenas “índios mansos”, colaboradores periféricos das agências tutelares e indigenistas? Essa resistência verificada na atual situação histórica que expressa em termos concretos a emergência do protagonismo étnico poderia ser precedida de um vazio total de conflitos e um completo silêncio de ações dos indígenas? Ou os conflitos entre os Terena e o Estado se desenvolveram de forma sub-reptícia, sob a égide de uma aparente “pax” imposta pelo regime tutelar? A nossa hipótese vai nessa direção e é isso que demonstraremos ao longo dos próximos capítulos. Pretendemos demonstrar como na realidade a via da co-gestão indígena na realidade aponta para a reprodução das relações de dominação (particularmente, o regime tutelar) e como ela pode ser entendida como uma forma histórica de atualização de uma política de colaboração dos índios com os poderes de Estado. Essa colaboração exige o aprofundamento das formas de dominação horizontal, viabilizada pela lógica de centralização estatal e descentralização faccional, e pela reificação da intervenção do Estado nos conflitos internos. Esse faccionalismo por outro lado tende a enfraquecer as ações coletivas e a própria base do poder indígena. Por outro lado pretendemos mostrar o fenômeno de emergência do protagonismo étnico é marcado por contradições que lhe dá um caráter relativamente imprevisível e indeterminado, tendo vários desdobramentos possíveis, tanto o aprofundamento na co-gestão e colaboração, quanto da resistência indígena. É essa a nossa tarefa. Mas para isso, é preciso ver como a política indigenista, desenvolvida a partir de um momento histórico determinado, consagrou padrões de territorialização das sociedades indígenas. E ainda como esses padrões de territorialização foram instrumentos de construção do Estado-Nacional e da economia capitalista, e ao mesmo tempo, como essas formas coloniais implicaram na inserção dos índios Terena – muito precocemente – dentro de uma estrutura de classes capitalista. A sociedade Terena, tal como existe hoje, é produto dessa dialética histórica, desse balanceamento de forças continuo entres grupos indígenas, forças coloniais, classes e agencias estatais. É necessário fazer uma etnografia histórica das relações de poder entres índios e o Estado, da dialética entre política indigenista e política indígena e as múltiplas formas de localização e temporalização associadas a elas, no sentido que buscaremos uma descrição detalhada, local e concreta, dessas interações e oposições. É o que faremos ao determinar os “tempos e espaços indígenas” na formação do Estado-Nacional. 107 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional: a acumulação colonial de poderes e capitais. “Estes casamentos também servem de obstáculo para um aldeamento constante; porque muitos são contrahidos em outras diversas e distantes tribus, casando-se muitas vezes os de Albuquerque e Miranda uns com os outros, e com os Cadiuéos, e ainda em outras toldarias vizinha dos hespanhoes, das quaes vem igualmente homens e mulheres ligar com primeiros semelhantes allianças, que ordinariamente são de pouca dura; e como os maridos, sempre se mudam para a morada da mulher, praticando o mesmo os chamados captiveiros, tanto por semelhante motivo como por seguirem, e só por affecto, a seus senhores, resulta d´esta vaga pratica um inconstante circulo de mudanças que em nenhuma parte fixa o centro de sua residência. (...) Como este capitulo sobre a estabilidade d´estes Indios é talvez o mais fundamental para desvanecer a esperança de se aldearem elles de tal forma que sejam úteis á mineração, agricultura e população portugeza, eu devo ser mais extenso em relatar alguns fatos constantes e recentes”. Ricardo Freire de Almeida Serra, Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e Guanás, 1803 Neste capítulo iremos realizar um estudo da formação histórica do campo e arenas das relações interétnicas no Mato Grosso do Sul, reconstruindo os processos pelos quais o regime tutelar se constituiu e se transformou, até assumir a forma com que hoje se apresenta. É uma história das relações de poder entre os povos indígenas, o Estado-Nacional brasileiro e outros atores sociais, que visa apreender a gênese das relações de dominação, seus fundamentos (internos e externos, político-econômicos e simbólicos) e sua dinâmica funcional. Iremos descrever aqui as situações históricas pelas quais os Terena passaram desde o século XVI. Isto significa identificar as diferentes formas de balanceamento e equilíbrio de forças entre índios, forças coloniais e Estado e os diferentes processos de territorialização que os Terena vivenciaram. O objetivo é compreender como a inserção dos Terena numa estrutura de classes e seus processos de territorialização, foram construídos historicamente, percebendo também a especificidade étnica e social dos povos que faziam parte do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. As duas citações da epígrafe servem para dar o norte da nossa discussão. Em primeiro lugar, a constatação de um modo de vida indígena marcado por uma profunda alteridade, uma relação específica com territórios, recursos naturais e grupos sociais, marcados por uma intensa mobilidade, que leva a constantes “mudanças sociais”; de outro a constatação de que essa alteridade de modos de vida era impeditiva para um projeto colonial que já se delineava com clareza: a necessidade de fixação dos índios em territórios para a exploração da sua mão de obra, seja em atividades de 108 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. mineração, seja na agricultura. Os tempos e espaços indígenas correspondem assim a diferentes balanceamentos de poder e modos de vida. 3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775). A etnografia Terena, ao considerar a história do grupo, menciona sua presença no “Chaco”. Kalervo Oberg, por exemplo, afirma que “...grupos de Terena continuaram a chegar do Chaco até a Guerra do Paraguai” (Oberg, 1948, p. 4). Neste sentido, ao descrever a história e a cultura tradicional Terena, este autor começa a descrever a sua vida no “Chaco” (Oberg, op.cit, p. 6). Altenfelder Silva, ao considerar a problemática da mudança cultural, diz que a principal foi “o deslocamento dos Terena do Chaco para o Brasil”. Esta mudança de ambiente teria tornado inoperante muitos dos elementos da antiga cultura Terena. Afirma que a antiga cultura Terena não permitia resolver os problemas causados pela mudança de ambiente, e a população brasileira oferecia aos Terena novas formas culturais (ALTENFELDER SILVA, 1949, p.374). Este autor também dedica uma parte de seu trabalho a considerar a cultura tradicional Terena associada sempre a sua “presença no Chaco”. Roberto Cardoso de Oliveira considera: “A rigor, as primeiras referências que temos sobre os Terena são devida a Sanchez Labrador (....) Eram, até esse tempo, dos grupos Guaná, o mais isolado. Segundo Azara (...) os Terena estariam representados por dois bandos, um ainda vivendo no Chaco, próximo aos Kinikináu, outro a leste do rio Paraguai, sob o paralelo 21º, sobre uma cadeia de pequenas montanhas que denominavam Echatyá” (....) Todavia não podemos saber qual desses grupos teria recebido o missionário ou se, na época a que se referiam os informantes Terena, ainda estariam no Chaco – o que parece ser o mais provável”. (Cardoso de Oliveira, 1976,p. 58). Existe um consenso na história dos Terena, em se indicar a sua presença no Chaco. Ao Chaco estaria associada à vigência da “cultura tradicional”. O estabelecimento de relações interétnicas se daria através do deslocamento migratório dos Terena do “Chaco para o território brasileiro”, e com isto começaria a “aculturação indígena”. Vejamos que a memória indígena confirma essa localização territorial. O “Chaco” aparece como “Exiwa” e marca os relatos de muitos índios quando falam da história das famílias ou do grupo como um todo. Nesse sentido, podemos falar de uma situação do Chaco e cabe interpretá- la. A nossa hipótese é que no Chaco, os Terena não constituíam um grupo isolado, com uma existência paralela a outros grupos isolados, mas faziam parte de um sistema social indígena, que só pode ser compreendido a luz das relações entre os diversos povos indígenas e em interação com as unidades locais do sistema mundial – o colonialismo espanhol e português. E segundo esta hipótese 109 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. não houve uma migração do Chaco para o “Brasil, e esta migração não seria conseqüentemente o marco zero das “relações interétnicas” e da aculturação e assimilação. Na realidade, foi graças a articulação do sistema indígena com o sistema estatal, através de múltiplas formas de colaboração, que tornou-se possível o empreendimento colonial e a formação do Estado-Nacional brasileiro. Os territórios hoje ocupados pelos indígenas do Mato Grosso do Sul são apenas fragmentos de um território indígena muito mais amplo, que foi desintegrado em meio ao processo de conquista colonial e formação dos Estados Nacionais sul-americanos. A região em que se encontram hoje as reservas Terena faziam parte de um território indígena e de um sistema social específico. Para falar desta história, é preciso falar da história da colonização. Pois é em meio ao processo de colonização e guerra de conquista que foram produzidos, progressivamente, os saberes sobre os povos indígenas do “Chaco”. Com relação ao território do que hoje é conhecido como Pantanal: “A imensa planície inundável situada no interior da América do Sul, hoje denominada Pantanal, foi transformada em terras pertencentes à coroa espanhola, pelo tratado de Tordesilhas no final do Século XV. (...) Desde então, a área inundável da bacia alto-paraguaia passou a ser reconhecida como a fabulosa Laguna de los Xarayes. (...) Em meados do século XVIII, a mesma região passou ser o Pantanal. A denominação foi dada pelos portugueses Del Brasil, os monçoeiros. Estes seguindo as bandeiras paulistas,avançaram além dos limites fixados e 1494 em Tordesilhas e, no início dos anos setecentos, fizeram daquela águas seu caminho às terras conquistadas”. (Costa, 1999, p. 17-19). Podemos dizer que este território foi um território de posse “indefinida” até o século XVIII, e que as diferentes classificações (Pantanal, Laguna de Xarayes) e representações cartográficas acerca dele, comprovam isso. Todo o território do hoje estado do Mato Grosso do Sul era no século XVI, território da Coroa Espanhola, de acordo com o que foi acertado pelo Tratado de Tordesilhas (1494) e território indígena de acordo com os fatos. A produção da categoria e da realidade políticoterritorial “Pantanal” seria realizada pela luta entre Impérios e pela disputa com as sociedades indígenas. Esta informação é importante porque da mesma maneira que o que hoje é território brasileiro, no século XVI era território indígena, o que hoje se considera o Chaco não corresponde ao que era o Chaco no século XVI-XVIII. Na verdade, a definição do território do Chaco, assim como das fronteiras dos Impérios Português e Espanhol, era extremamente fluída. Veremos que esta fluidez é o produto dos processos de luta político- militar, entre impérios e povos indígenas, ao longo de três séculos, a partir de 1540. O Mapa número 2 expressa sob forma gráfica toda a dinâmica territorial do período. O topônimo Chaco (do Qêchua, “Chacu”) indicava inicialmente a província de Tucúman, passando a designar posteriormente todo o território a leste dela, numa extensão de 700 mil quilômetros, abrangendo territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil (Carvalho, 1992, p. 457). A região do Chaco era caracterizada pela existência de uma grande diversidade étnico- 110 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. cultural, sendo sub-dividida em “áreas culturais”: a do Alto, Médio e Baixo Paraguai. O alto Paraguai ou Chaco Boreal se estenderia do Porto de Candelária até o rio Jauru, abrangendo atualmente a região de Corumbá até Cuiabá (ver Susnik, 1978, p.9). Quer dizer, o que hoje se denomina “Pantanal”, incluindo o pantanal sul mato-grossense, estava integrado no “Chaco Boreal.”, não constituindo um território distinto dele. Esta região, que mesmo hoje é em algumas partes incógnitas, foi, contudo, uma das primeiras áreas a serem conquistadas. (Metraux, 146, p.199): “A história do Chaco no século XVI não pode ser separada daquela da conquista do Rio Plata. Assunção foi fundada em 1536 somente como uma conveniente base para a exploração do Chaco. Os principais eventos que marcaram aquele período foram: a trágica expedição de Juan de Ayolas, 1537-1539, que atravessou o Chaco até as terras dos Chané, porém no seu retorno foi massacrado próximo a La Candelária pelos indios Paiaguás; a expedição de 26 dias de Domingo Martinez de Irala a partir de São Sebastião, 8 léguas sul de La Candelaria oriental, 1540; a expedição de Alvar Nunes Cabeza de Vaca contra os Mbayá Guaicuru em 1542; a expedição de reconhecimento Domingo Martinez de Irala em 1542 a Puerto de los Reyes...» (Metraux, 146, p.200). O processo de colonização da bacia do alto-Paraguai, do Chaco Boreal ou Pantanal, nas suas primeiras fases, não seguiu um plano de ocupação e povoação, pois era visto como um território de passagem, uma rota para os Andes e Peru, onde se buscava a exploração do ouro. Foi assim que os espanhóis a concebiam, e um projeto de ocupação e povoamento, só foi realizado pelos portugueses no final do século XVIII (Costa, op.cit, p. 32, Metraux, op.cit, p. 199). Logo, desde muito cedo os povos indígenas daquela região se defrontaram com as forças coloniais, primeiramente espanholas, depois, portuguesas. A primeira incursão colonial nesta região foi realizada pelo português Aleixo Garcia em 152046 , que adentrou o “Gran Chaco”, num primeiro esforço de alcançar as fronteiras das riquezas Incas 47 . Em 1526 Sebastian Caboto, a serviço da Coroa Espanhola, organiza uma outra expedição que adentra a região pelo rio Paraguai. Depois, a partir de 1534, uma expedição comandada pelo espanhol Pedro de Mendonza, declarado adelantado (titulo dado aos Governadores dos territórios espanhóis) volta a explorar a região. A partir de 1543, o processo de conquista colonial da região, se consolidaria. O segundo adelantado, Alvar Nunez Cabeza de Vaca, impulsionaria a expansão colonial espanhola. Assunção era a base de onde partiam as expedições através do rio Paraguai 46 Aleixo Garcia era um naufrago sobrevivente de uma expedição comandada por Juan Diaz de Solís, que em 1515 navegou no rio Paraná-Guaçu. 47 É interessante notar que Costa afirma que segundo o historiador paraguaio Manuel Dominguez, as terras que seriam denominadas Chaco, eram inicialmente conhecidas apenas como “terras dos Mabayaes”. (ver Costa, op.cit, p. 34, nota 5). 111 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. acima. Em 1580 seria fundada Santiago de Xerez48 , na região de Itatins, onde depois seriam estabelecidas as missões jesuítas, no ano de 1632, (Costa, op.cit, p. 41-43). As referências de que se dispõem acerca dos Terena, os indicam como um “subgrupo” dos Guaná, que ocupavam a região do “Chaco Paraguaio” (Cardoso de Oliveira, 1976) Segundo Metraux, os grupos de língua e cultura Aruak, estariam divididos em dois ramos. Os “Chané”, autodesignação usada pelos grupos existentes ao longo do Andes e Guaná, aqueles grupos que ocupavam a região da Bacia do Paraguai. Entretanto, é preciso notar que segundo registros de Sanchez Labrador, no Paraguai os Guanás se auto-denominavam Chanás, e a origem do etnônimo Guaná seria uma denominação atribuída pelos conquistadores espanhóis aos índios “Chané” daquela região (ver Cardoso de Oliveira, op.cit, p.24).Guaná poderia ser ainda a forma pela qual os Mbayá-Guaicurú chamariam os Chanés (Susnik, 1978). Os grupos Aruak, denominados Guaná/Chané estariam ainda subdivididos em quatro sub-grupos: Terena, Layana, Quiniquinau e Exoaladi. (ver Cardoso de Oliveira, 1976, p.26). As primeiras referências aos Guaná/Chané, são do século XVI. Elas são feitas por Ulrico Schmidl, um soldado alemão que integrou as expedições espanholas, e Alvar Nunez Cabeza de Vaca, governador do Paraguai entre 1542-1546. Os relatos destes são utilizados por Cardoso de Oliveira para construir sua análise histórica sobre os Terena. É interessante observar que ambos (Cabeza de Vaca e Schmidl) participaram de expedições nos anos de 1543-45. Estas expedições alcançaram a região do alto-Parguai, sendo aí encontrados os índios Chanés 49 . Ou seja, os índios Terena, se localizavam no século XVI, no território do Chaco; mas este território não está fora das fronteiras territoriais da região que hoje eles ocupam. Na verdade, as fronteiras deste território eram relativamente móveis, já que, como veremos, estava integrado num tipo de sistema social que exigia isso. O início da Conquista Colonial espanhola com a formação da povoação de Assunção e do Vice-Reino do Paraguai transformaria profundamente as relações entre os povos indígenas daquela região da América do Sul. Em primeiro lugar, devemos dizer que se implantam novos conjuntos de forças e atores sociais: as povoações, os fortes e portos, que instituíram novas bases de comércio e relações políticas. Este novo conjunto de atores e instituições estabeleceu novas relações sociais; a ideologia mercantilista da acumulação de ouro-prata crio u um circuito de exploração da mão de 48 Esta cidade ficaria localizada as margens do rio Mbotetei (atual rio Aquidauana), que teria sido abandonada anos depois. De acordo com a história regional, outra Santiago de Jerez teria existido, na região de Camapuã, fundada em 1593 (ver Campestrini & Guimarães, 2002, p. 15). . 49 “Estavam certamente no que hoje se chama Pantanal do rio Negro, nas cercanias da cidade de Corumbá. (...) Ao falar sobres os indígenas habitantes de Los Reyes, Cabeza de Vaca cria uma imagem que, por mutações, dará a este lugar uma mítica representação de porta de riquezas. Os Sacocies e Chaneses, já anteriormente relatados por Irala...” (Costa, op.cit, p. 102-103). Cabeza de Vaca teria passado inclusive no foz do rio Miranda e Domingos Martinez de Irala, que assumiria o Governo de Assunção depois dele, explorou os rios Iguatemi e Paraná, e no norte de Corumbá, fundou em 1538 o Porto dos Reis (Campestrini & Guimarães, op.cit, p. 14-15). 112 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. obra indígena, seja nas povoações, seja nas expedições militares. Algumas parcelas dos índios foram incorporadas como “trabalhadores-soldados” em empreendimentos coloniais. (Susnik, op.cit, p. 80) A cidade de Assunção no Paraguai, os fortes e portos estabelecidos criaram uma nova dinâmica nas relações entre as sociedades indígenas. Os Guaicurus, puderam ampliar seus ataques contra os espanhóis e demais povos indígenas. As cidades e povoações coloniais converteram-se em espaço de “saque e troca”; os Taquiyiquis, Mbayá e outros grupos como os Paiaguás atacavam as cidades para conseguir ferro, aço, cavalos e gado, que eram utilizados para aperfeiçoar suas atividades de caçadores-coletores-guerreiros ou canoeiros- guerreiros, aumentando seu poder, ou então atacavam outros grupos indígenas para buscar cativos, que seriam utilizados como trabalhadores a seu serviço ou negociados nas cidades e povoações coloniais 50. Logo, duas relações básicas se estabeleceram entre grupos indígenas e colonizadores: a relação de troca-guerra e a relação de troca-aliança. Cada grupo poderia alternar estes tipos de relação, situacionalmente. Vale a pena frisar, que o sistema social vigente dentro desta situação histórica, já era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias espanholas e portuguesas da América. As bases de funcionamento de suas relações de poder, organização social e dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial, através das agências dos colonialismos português e espanhol, de maneira que é impossível compreender a dinâmica do sistema social indígena sem compreender suas relações com os diferentes colonialismos existentes. 3.2 – Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal. Para entender a dinâmica da Conquista Colonial e Resistência Indígena no sul de Mato Grosso, é preciso compreender que um conjunto de forças sociais entrou em choque a partir do século XVI: o colonialismo espanhol, que estabelecido na região de Assunção no Paraguai, pretendia avançar ao norte, passando pelo sul de Mato Grosso; o colonialismo português, que partia especialmente de São Paulo no sentido Oeste, para Mato Grosso; e os povos indígenas, que ocupavam a região desde o período pré-colonial e que disputavam o controle dos mesmos territórios. Uma rápida cronologia do desenvolvimento dos colonialismos no alto-Paraguai aponta o seguinte: Em 1538 é formada a Colônia de Maracajú, a leste do rio Paraná,por Irala; depois no 50 Os Taquiyiquis entravam nas aldeias cario-guarani da outra orla do aproveitando-se de seus cultivos, dos lugares de boa caça e pesca, provendos-e de adolescentes para exigir abundantes resgates e obtendo também alguns scalps para adquirir o direito ‘ao penado’ do guerreiro de prestigio ou vingar a vitimação antropofágica de algum dos seus.” (Susnik, op.cit, p. 80) 113 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. período 1542-1543, o Porto de São Fernando (possivelmente a atual Corumbá) e o Porto dos Reis, ao norte deste, igualmente fundados por Irala. Em 1580 forma-se Santiago de Jerez, nas margens do Rio Aquidauana. No século XVII, a partir de 1630, formam-se reduções jesuítas conhecidas como Província do Itatim. Ficavam limitadas ao norte pelo Rio Miranda, ao sul pelo Rio Apa, a leste pela Serra de Maracaju e a oeste pelo Rio Paraguai. (Campestrini e Guimarães, op.cit, p. 84). Ainda no século XVII, começam as incursões portuguesas além das linhas de fronteira traçadas pelo Tratado de Tordesilhas, entrando na região do alto-Parguai. A partir de 1628, o bandeirante Antonio Raposo Tavares atacaria as missões jesuítas do Guairá e o Itatim, em busca de escravos indígenas que pudessem ser comercializados no litoral brasileiro. Desta maneira, “... no final do século XVI, o território hoje sul-mato-grossense (vale do Iguatemi, Pantanal, a será de Maracajú e Vacaria) era todo conhecido, principalmente pelos espanhóis; e no século seguinte, foi percorrido por numerosas bandeiras em direção ao norte, ao Paraguai e ao Peru”. (Campestrini & Guimarães, 2002, p. 15-17). No século XVIII, se consolida a expansão portuguesa através das monções, que partiam do litoral, de São Paulo, em direção ao centro-oeste51 . A descoberta de ouro em 1718 por Pascoal Moreira Cabral, é que desencadearia o processo. Em 8 de abril de 1719 surgiu o “arraial da Forquilha, núcleo de povoamento minerador que daria origem a cidade de Cuiabá. Em 1719 surge a fazenda de Camapuã, primeiro núcleo português na região do atual Mato Grosso do Sul. Em 1727, é fundada a Vila Real de Bom Jesus do Cuiabá, iniciando-se então a colonização da região do Mato Grosso, especialmente a região norte. Configurada estava uma disputa imperial entre Portugal e Espanha, pelo controle efetivo dos territórios do alto Paraguai, ou do Chaco Boreal. A busca de ouro marcaria a expansão colonial portuguesa nesta região (ver Campestrini & Guimarães, op.cit, p. 19-23). O Tratado de Tordesilhas seria revogado em 1750, dando lugar ao Tratado de Madrid, que estabeleceu uma comissão mista para demarcar as fronteiras, que realizaria seu trabalho nos anos seguintes. Mas a questão só seria efetivamente resolvida, em 1801, com o Tratado de Badajoz, que estabeleceu que os territórios da bacia do alto Paraguai seriam da Coroa Portuguesa e do ViceReino do Brasil. (Costa, op.cit, p.58). Entre os séculos XVI e XVIII, então existem duas fases da colonização na região do Chaco Boreal: a primeira, realizada por espanhóis; a segunda, pelos bandeirantes e monçoeiros portugueses. Ambos entram na região do alto-Paraguai, denominada pelos primeiros de “Lagoa ou Mar de Xaraés” e pelos segundos de “Pantanaes”. Para compreender as formas de resistência e dominação estabelecidas, é preciso compreender as características do sistema social indígena do Chaco/Pantanal, que é como 51 O termo “monções” designa as expedições que desciam e subiam rios das capitanias de SP e MT, nos sécs. XVIII e XIX, pondo-as em comunicação. 114 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. denominaremos o conjunto de relações entre grupos indígenas e forças coloniais estabelecidos entre os séculos XV e XVIII. As relações entre os Mbayá-Guaicurú e os Guaná/Chané foram caracterizadas pela etnologia brasileira como de “simbiose” (ver Baldus e Cardoso de Oliveira, 1976). Esta relação remeteria ao período pré-colonial, mas teria sido mantida no inicio da colonização espanhola (esta é uma hipótese, ver Cardoso de Oliveira, op.cit). Entretanto a idéia de simbiose, assim como a de isolamento, sugere uma imagem equivocada, pois desconsidera o conjunto das relações de interdependência entre os diferentes grupos indígenas e as forças coloniais, considerando a relação somente entre “dois grupos indígenas”. Da demarcação de fronteiras acertada em 1750, sairia o relato de Félix Azara, um dos membros da comissão responsável por estudar e demarcar os limites dos Impérios espanhol e português. Segundo as informações de Azara: “A época da chegada dos espanhóis, os Guanás iam, como atualmente, se reunir em bandos aos Mbayás, para lhes obedecer, servi-los e cultivar suas terras, sem nenhum salário. Daí o motivo dos Mbayás os chamarem sempre de escravos seus. É verdade que a escravidão é bem doce, porque o Guaná se submete voluntariamente e renuncia quando lhe agrada. Mais ainda, seus senhores lhes dão bem poucas ordens, não empregam jamais um tom imperativo, nem obrigatório, e tudo dividem com os Guanás, mesmo os prazeres carnais. (Azara, apud in Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 31-32). Percebemos acima a principal característica, que seria depois apontada tanto nos relatos de militares, governadores, missionários que atuaram na região: a relação de aliança Guaicurú-Guaná. É preciso descrever o funcionamento desta relação, pois através dela poderemos compreender a dinâmica do sistema social do Chaco/Pantanal, e conseqüentemente, a situação histórica aqui considerada, e também os fatores condicionantes do processo histórico posterior (de formação do regime tutelar). A relação de dominação e aliança Mbayá-Guaicurú com os Guaná/Chané, formou- se sobre as demandas político-culturais indígenas e em meio ao processo de transformação das relações sociais no Chaco por conta do processo de colonização. Esta aliança permitiu, no plano da organização social e econômica (assim como adoção do complexo “cavalo-aço” no plano da estratégia militar e dos modos de ação guerreira) o estabelecimento da supremacia Mbayá-Guaicurú naquela região. No final do século XVIII, o padre Sanchez Labrador, que atuou numa Missão na região do Chaco/Pantanal faria outro registro da relação Guaicuru-Guaná. Com relação à forma pela qual se realizava a aliança, temos o relato de Sanchez Labrador: “Aconteceu que os caciques Eyiguayeuis que se casaram com as mulheres Nyololas, cacicas ou capitãs, tinham por seus os vassalos de suas esposas; desde então os reconhecem como tais. (...) Por isso, os capitães Eyiguayeuis, somente eles tem criados: a plebe Guaicuru não adquiriu direito sobre aquelas gentes. Daí é que os Nyololas apelidam os caciques Guaycurus e seus parentes de nossos capitães; mas ao resto da nação e os que não se acham aparentados com caciques chamam de nossos irmãos. (...) À véspera da partida dos Mbyas, lhes presenteiam 115 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. seus criados algum grão para a viagem; um bolo, de Nibadana, com que se pintam de vermelho, e alguma manta de algodão, seja branca ou listrada de varias cores, que com gosto tecem os Chanás. Aos Mbayas plebeus não lhes fazem semelhantes presentes...”. (Sanchez Labrador, apud in Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 32). Logo, as relações entre os Mbayás-Guaicurús e Guanás eram efetivadas a partir de uma categoria social especifica, a dos chefes. Apesar disto ter efeitos sobre as relações de todo o grupo, mostra uma estratificação social interna a este sistema, de maneira que como se afirma, os Guaicuru enquanto grupo, estavam acima dos Guanás, mas era através dos chefes e suas parentelas principalmente, que tal sistema se articulava. E se é correto afirmar a existência de uma aliança Mbayá-Guaicurú/Guaná é certo dizer também que ela se articulava pela “cúpula” da hierarquia social, de camadas de chefes para camadas de chefes. O sistema social autóctone vigente no “Chaco/Pantanal” era caracterizado pela guerra e pela dominação exercida por grupos indígenas uns sobre os outros, e eles se valiam das relações entre si e com as agências coloniais para fortalecerem suas posições dominantes. A supremacia Guaicuru gerou uma contradição ou clivage m entre os povos indígena. Ao mesmo tempo em que a guerra e a divisão do trabalho dinamizava o sistema social do Chaco nestes séculos, fazia com que os Mbayá-Guaicurú estivessem parcialmente numa relação de oposição de interesses a certos setores das sociedades indígenas. Além disso, este sistema criou uma contradição/clivagem secundária que se tornaria no decorrer do processo, a clivagem central e favoreceria a sua ruína: a contradição do sistema indígena com o sistema estatal nascente. Este sistema social fez dos Mbayás um poderoso grupo indígena, que obstruiu o avanço do colonialismo espanhol e português. Até o final do século XVIII (principalmente entre 1775-1799) os espaços indígenas, eram espaços de autonomia; mas esta autonomia sucumbiria, em parte pelo poder colonial, mas também pelas contradições internas a este próprio sistema 52 . O período de 1775-1790 marcaria início do declínio desse sistema social indígena. Até aquele momento, todas as mudanças verificadas pela presença dos colonialismos eram de tipo repetitivo, ou seja, não alteravam a estrutura de poder e de classes, nem a relação grupos sociais/território/recursos naturais. 52 Devemos lembrar que no sistema social do Chaco neste momento, a supremacia Guaicuru se estabelecia não somente através das alianças, mas principalmente pela guerra e pela força. Mesmo os Guanás não eram poupados em certas ocasiões, dos ataques realizados pelos Guaicurus, e outros grupos indígenas, por sua vez, também moviam ataques contra os Guanás e entre si. Quando o colonialismo espanhol e português avança na região, já existiam assim contradições econômicas e políticas entre os diferentes grupos indígenas. Sem entender isso, é impossível compreender as bases da ação colonial na pacificação da região. 116 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Mapa 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso. Fonte: Arquivo Nacional. Serviço do Estado Maior . 117 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Figura 1- Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal. Oquilidi (Chefes Guaicurus) Naati/Unati (Chefes Guanás) Niololas (“designação dos Comuns” dos Guaná) Cativos (segmentos de capturados a outros grupos, como Guaranis, Guatós e Xamacocos) Grupos Indígenas Componentes 1) Mbayá-Guaicurus (sub-grupos Ejueus, Cadieus e outros ; 2) Payaguás; 3) Guanás (sub-grupos Terena, Quiniquinau e outros); 4) Guaxis; 5) Guatós; 6) Xamacocos; 7) Guaranis. O sistema social do Chaco/Pantanal era composto assim pela inter-relação entre diferentes grupos sociais, meio natural e material e forças coloniais. Pelo menos 7 grandes grupos indígenas e cerca de mais dez subgrupos participavam desse sistema, que incluía em seu funcionamento as forças coloniais. Em termos demográficos, é possível indicar que esse sistema, já na fase final de existência, era composto por algumas dezenas de milhares de pessoas. Estratos ou Classes. O esquema de estratificação acima mostra as relações de poder entre os grupos indígenas: a “soberba ou etnocentrismo” dos Guaicurus estava relacionada a sua posição dominante. Abaixo, os demais grupos eram considerados pelos chefes guaicurus como “cativos” e deviam prestar trabalho, como caso dos Guanás. Mas dentro da estrutura de estratificação existia também o lugar para cativos dentro dos grupos sociais, que seriam aqueles “capturados” pelos Guaicurus ou Guanás e submetidos e incorporados na comunidade doméstica local. As relações eram tensas e complexas entre chefes e cativos. O cativo representava assim duas ordens de estratificação: em relação ao conjunto dos grupos, opondo os Guaicurus aos demais; e dentro dos grupos, marcando o status familiar e individual. 118 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. 3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro. O sistema social indígena pôde ser mais bem descrito e analisado por nós a partir do século XVIII e XIX, quando fontes mais sistemáticas são produzidas. É interessante observar que no que tange as fontes portuguesas, elas começam a se tornar mais sistemáticas no século XVIII: relatórios administrativos, crônicas, cartas, estudos. Conforme avançava a conquista colonial, estabelecem-se empreendimentos cognitivos: “Existe ai um encadeamento terrível em que compreender leva a tomar, e tomar a destruir”, ou seja, o conhecimento da alteridade era pré-condição para a expansão colonial (Todorov, 2003, p. 183). A nossa etnografia é marcada por esse processo; as fontes históricas que utilizamos expressam essa tensão entre “conhecer, tomar e destruir”. Paradoxalmente, no momento em que os colonialismos se lançam na ofensiva de destruição desse sistema indígena é que são produzidas maiores informações sobre ele. Grande parte dos relatos é deixada por militares que cumpriam funções na Guarda da Fronteira ou realizavam estudos cartográficos e científicos. Alguns documentos importantes são o “Parecer Sobre o Aldeamento dos índios Uaicurus e Guanás, com a descripção dos seus usos, , religião, estabilidade e costumes” (publicada na Revista do IHGB, volume 7, 1845) e “Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e Guanás”, estudos escritos pelo militar Ricardo de Almeida Serra, que comandou as forças militares portuguesas na fronteira com o Paraguai e realizou estudos astronômicos e deixou essas etnografias sobre os índios (Revista do IHGB, volume 13, 1850). Estes dois documentos fornecem descrições dos grupos indígenas, das suas relações com as agências dos colonialismos espanhol e português na região. Outros documentos igualmente relevantes são o “Resumo das Explorações feitas pelo Engenheiro Luiz D´Laincourt desde o Registro de Camapuã até a Cidade de Cuyabá”, 1824 (Revista do IHGB, vol 20, 1857) e “Reflexões sobre o Systema de defesa que adoptar na Fronteira do Paraguay em Consequência da Revolta e dos Insultos Praticados Ultimamente pela Nação dos Indios Guaicurus ou Cavalleiros”, 1826 (Revista do IHGB, vol 20, 1857). O avanço dos colonialismos narrado acima conduz a um “cerco e aniquilamento” do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. Esse processo atravessa duas situações históricas: a de diretoria (aproximadamente entre 1790-1860) e a de “cativeiro” (aproximadamente 1870-1900). São essas duas situações históricas que analisaremos agora, momento em que se deram importantes mudanças sociais. Os últimos anos do século XVIII marcam o início do processo da fragmentação do território e do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. Fazendas de Gado, fortes e povoados, representam a multiplicação das forças coloniais. Neste momento, o acirramento das lutas imperiais fez com que a Coroa Portuguesa tivesse uma política de ocupação sistemática da região do Chaco/Pantanal, 119 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. depois que as monções deram início aos empreendimentos mineradores e abriram espaço para as fazendas e povoados portugueses. Este é o processo inicial de construção do Estado Colonial Português naquela região, ou seja, de estatização dos territórios indígenas, e da sua subordinação a um novo esquema de distribuição do poder. Alguns dos principais indicadores desta hostilidade foram às anulações dos tratados delimitadores de fronteiras: o Tratado de Madrid foi anulado em 1761; e em 1767 e 1777 foram feitos novos tratados (Mendonça, 1982, p.23). O Mato Grosso foi até 1748 um território integrado na Capitania de São Paulo. Neste ano, foi indicado seu Primeiro Governador, Antonio Rolim de Moura, que assumiu o cargo em janeiro de 1751, permanecendo nele até 1764. É neste período que se acirram a tensões entre Portugal e Espanha, por conta de suas disputas na América. Como quarto Governador da capitania de Mato Grosso, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres assumiu o cargo com a missão recebida da Coroa Portuguesa de assegurar os territórios “até o Rio Paraguai” (ver Campestrini & Guimarães, op.cit,p.34). A partir de então acelera-se a construção do Estado Colonial português: na região sul do território, em 1767 funda-se um presídio no Iguatemi; em 1775 é fundado o Forte de Coimbra; em 1778, Vila Maria do Paraguai (hoje Cárceres); em 1778 a Povoação do Albuquerque (aonde está localizada a atual Corumbá). Ou seja, na segunda metade do século, inicia-se uma ocupação efetiva da região do “Alto-Paraguai”. Este processo se consolidaria no governo de João de Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres, irmão de Luis Albuquerque. Um fato de fundamental importância para o processo da expansão colonial na região é o “Tratado de Paz e Amizade”, assinado pelos MbayáGuaicurús com a Coroa Portuguesa em 1791, na cidade de Vila Bela. Este tratado irá possibilitar a criação dos fortes e povoações em território indígena, de maneira que muitos grupos- locais irão se estabelecer nas imediações das unidades militares e vilas, como anos antes o acordo com os Mbayá-Guaicurú havia sido fundamental para derrotar os Paiaguás, e viabilizar o processo de colonização mineradora portuguesa entre Cuiabá e São Paulo. Em 1797 é criado o Presídio de “Miranda”. Este foi criado por sugestão de João Leme do Prado, enviado por ordem do presidente da Província de Mato Grosso, durante o governo de Caetano Pinto de Miranda. Junto ao presídio forma-se a “Vila Mondego” (esta Vila teria sido construída sobre as ruínas grupos da antiga cidade “Santiago de Xerez”). Começa a se definir um novo processo de territorialização dos indígenas. Neste momento, a autonomia dos povos indígenas seria transformada em problema de Estado. O contexto de disputa imperial favorecia relativamente os indígenas. A consolidação do poder português e a formação do Estado Colonial exigia a liquidação da autonomia e do sistema social indígena. Vejamos o relato do governador da Província de Mato Grosso: 120 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. “A maior difficuldade que eu encontro, é a do local em que vivem entre portuguezes e hespanhoés, que, a profia pretendem atrahil-os para a sua amizade, e elles manejando estas contrárias pretenções com bastante sagacidade, por este meio, alcançam o que querem de uns e de outros, sem trabalho nem sujeição. Aplaine a nossa corte esta dificuldade, de sorte que elles só fiquem dependentes de nós, e logo, Vmce experimentará uma grande mudança, assim como mais abatido o seu orgulho, ou soberba, a qual em parte procede do modo como presentemente são tratados, e outra parte da posse e uso de seus cavallos”. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803, Carta ao Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra. As palavras do então Governador da Província de Mato Grosso, sugerem que no início do século XIX os índios sabiam manipular também as contradições coloniais. Fica claro o reconhecimento da capacidade política indígena. Mas a supremacia Guaicuru estava já ameaçada, e com ela, todo o sistema social autóctone. O objetivo do Estado Colonial era criar condições para que os índios “ficassem dependentes” somente do Estado Colonial do Brasil. Delineava-se um projeto claro de dominação e subjugação dos povos indígenas naquela região. Entre 1801-180353 , Ricardo Franco de Almeida Serra, tenente-coronel responsável pelo presídio de Miranda, encaminhou um “Parecer sobre o aldeamento dos índios uiacurus e guanás, com a descrição dos seus usos, religião, estabilidade e costumes”. Este documento contém uma detalhada descrição dos diferentes grupos indígenas existentes naquela região, e das formas pelas quais eles se inter-relacionavam com os militares ali fixados. As palavras do tenente-coronel indicam bem como a “alteridade” étnico-cultural, se apresentava como um problema político: “O seu systema político, e aferro a seus dados costumes e abusos, a sua vida errante e libidinosa, as suas poucas leis arbitrarias, ou simples e mutuas convenções, mas regras fixas com que se regulam entre si tranquilamente por uma tendência natural e herdada da tradição; o horror que têm para o trabalho, que consideram só próprio de escravos e incompatível com sua innata soberba, suppondo-se pela primeira e dominante nação de índios; contando todas as outras por suas cativeiras, não se julgando inferiores aos mesmos hespenhoes e portuguezes, gabando-se diariamente de que, apezar de sermos muito bravos, nos souberam amansar; esta ridícula altivez e negação ao trabalho, lhes faz desprezar as fadigas da agricultura, que com effeito nao precisam para viverem longos annos, robustos e fartos, achando no rio Paraguay, e nos seus amplíssimos campos a sua sempre provida dispensa. (...) tudo em fim accumula uma confusão de idéias contradictorias, que, parecendo entre si diametralmente opostas, constituem o systema, a moral e conservação de todo o corpo dos uaicurus, formidável as mais nações indígenas do amplissimo Paraguay, e ainda muitas vezes ao mesmo portuguezes e hespanhoes, sobre os quais por dois séculos commetteram repetidas atrocidades, e quase sempre impunemente. Por tanto Illm e Exm.Sr, não deixando de tocar em alguns factos constantes que as verificam, passarei a expor, não quanto me parece necessário para se aldearem estes índios; de tal forma que sejam úteis a agricultura e a mineração, mas sim as dificuldades, que acho a um estabelecimento fixo e constante, do qual se possam tirar as utilidades que se esperam, e as quaes só o tempo poderá facilitar quando, pela nossa mais longa comunicação, se adoçarem os seus costumes e parte dos estranhos princípios com que se governam, se acaso isso ser posa”. (Almeida Serra, op.cit), 53 É importante mencionar o ataque espanhol descrito por Mendonça ao forte de Miranda. Ou seja, a zona de fronteira era uma zona de guerra. 121 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Este relato é revelador de que, no final do século XVIII, quando se inicia a colonização portuguesa do Chaco/Pantanal, o sistema social autóctone então existente, do qual os Guaicurus eram o grupo dominante, se apresentava como obstáculo a expansão colonial. O relato do militar responsável pelo presídio de Miranda, ao analisar “o sistema político”, destaca a importância e os padrões de comportamento dos Guaicurus (baseadas nas atividades de caça-coleta e guerra), tanto com relação aos demais povos indígenas quanto europeus, aos quais teriam “amansado”. Ele indica também que nos dois séculos anteriores, os Mbayá-Guaicurú souberam construir e manter esta sua supremacia em relação aos demais grupos indígenas e colonos espanhóis e portugueses. Aqui podemos ver alguns traços característicos da organização social e cultura MbayáGuaicurú, que afetavam todo o sistema social do Chaco. Dois elementos são importantes: 1º) primeiro, a prática do infanticídio, com a qual se combinava uma política de assimilação de outros grupos indígenas, de maneira que fazia dos Mbayá-Guaicurú, um grupo especialmente misturado, e por efeito, também dos Guaná e Chamacoco, mesmo que esta hibridação se aplicasse a comunidades- locais, e não aos Guaná e Chamacoco como um todo; 2º) a “independência e rivalidade” política interna, que era pautada numa lógica de fissão e fusão situacional dos subgrupos e grupos indígenas. Segundo o relatório aqui mencionado: “Os uaicurus se dividem em differentes tribus, e cada uma com diverso nome. A primeira é dos uatade-os, composta por vários capitães, entre os quaes o capitão Paulo é olhado como chefe, em poucas circunstancias. Formam a segunda tribu com o mome de ejué-os também vários capitães, dos quaes é julgada como principal D. Catharina, por ser filha do Capitão Guaná (...) A terceira tribu é dos cadiue-os novamente fugidos das vizinhanças de Bourbon para se estabelecerem na mesma morada das duas primeiras; ella constta de 680 pessoas, como fica dito, doze capitães e outras tantas donas”. (Almeida Serra, op.cit) Pelas informações acima, tudo indica que os Mbayá-Guaicurú possuíam múltiplas lideranças locais (os Kadiwéus possuíam doze, uma média 1 para cada 56 pessoas), e que o reconhecimento de uma liderança centralizada era algo eventual. Indica também as relações de parentesco-aliança entre os Mbayá-Guaicurú/Guaná-Chané, de maneira que uma das “Chefes” de sub-grupo Mbayá era descendente de Guaná. Estas informações etnográficas confirmam as elaborações feitas pela etnologia brasileira acerca da relação Guaicuru-Guaná, mas permite maiores detalhamentos. Esta descrição permite ver também que, além da multiplicidade de lideranças políticas, existia um padrão de territorialização que expressava a cultura e economia indígena; primeiramente, as unidades de residência podiam se distanciar entre 19 km (1 légua = 6.600 m) e 42km, ou ainda mais; se tomarmos o padrão Kadiwéu (um chefe para cada 56 pessoas, e calcularmos que este seria o padrão de territorialização, somente este sub-grupo ocuparia uma faixa territorial de 252km desde a serra de Albuquerque). Além disso, a cultura e economia de caçadores-coletores-guerreiros, fazia 122 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. com que os Mbayá-Guaicurú fizessem uma constante circulação dos dois lados do Rio Paraguai54. O Sistema Social do Chaco possuía um tipo de sistema político sem-estado, com uma organização segmentar, baseada em múltiplas lideranças políticas que se centralizavam situacionalmente, e durante um período de tempo determinado Com relação aos Guaná, o relatório indica algumas informações importantes. Podemos dizer que existe uma caracterização desta sociedade como segue: “Os 600 guanás que existiam há quatro annos, tem augmentado o seu numero com alguns filhos e xamicocos comprados. Esta nação é certamente a que promettia um aldeamento constante; ella tem moradia fixa nas fertillissimas terras e matos das escarpadas serras de Albuquerque, e perto do morro d´este nome e da margem do Paraguay, lugar a que geralmente índios e portuguezes chamam Albuquerque, dando simplesmente o nome de povoação á que com elle se caracterisa. Os Guanás vivem dentro de grandes casas, que formam de entrelaçados troncos e ramos”. Notemos que, uma vez instalados os fortes, os novos atores sociais, novas relações se estabeleceram; uma nova categoria social, também se definiu: os “portugueses”, que eram neste primeiro momento, fundamentalmente, militares. As relações comerciais forneceram novas possibilidades de aliança política. E as contradições internas do sistema indígena do Chaco, seriam tão importantes para sua transformação e para a viabilização da conquista colonial quanto à força militar e político-administrativa do colonialismo português. 54 Se considerarmos este padrão, e multiplicarmos por 3 (teríamos 2040 pessoas, um número próximo, ligeiramente superior ao do total da população Guaicuru dependente de Coimbra. Teríamos então um padrão de ocupação territorial, somente pelos sub-grupos e parentelas de chefes dos Guaicuru, que alcançaria 750 km de território. 123 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Mapa 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX. Os traços fundamentais deste sistema permaneceram operando durante o início do século XIX, quando foi aplicada uma política de “cerco colonial”, e perduraria até a primeira metade do século, quando fatores nacionais e internacionais alterariam a dinâmica política do país 55 . Mas a política do “cerco colonial” expressava a primeira fase da formação de um novo sistema social: o Estado-Nacional (e a incorporação dos territórios do Chaco/Pantanal a este sistema 56 ). 55 Temos aqui as Guerras Napoleônicas, que iriam acirrar a disputa entre Portugal (apoiada pela Inglaterra) e Espanha (apoiada pela França), e que ocasionaria, depois de 1800, a transformação do Brasil em “Império”, e depois a transformação da economia colonial-escravista em economia capitalista. 56 Ao mesmo tempo em que se intensificam as relações sociais, começa a se dar um movimento de produção de saberes sobre os índios, realizados pelo aparelho administrativo do Estado Colonial. Os saberes sobre s índios são uma variável 124 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. É interessante notar que, neste momento, o cerco não realizou plenamente o domínio do Estado sobre os povos indígenas; mas lançou certas bases para isso. A política de cerco, seria sucedida por uma política de “aniquilamento” da autonomia, território e alteridade indígenas. Ela já estava enunciada no inicio da colonização, inclusive com um delineamento de uma perspectiva tutelar: “Se eu pudesse regular as cousas ao meu arbítrio talvez que preferisse o antigo methodo de dar os índios novamente reduzidos por administração, acautelando vigilantissimamente os abusos, vigiando sobre o modo porque eram tratados, e reduzindo-os a um estado semelhante ao d´aquelles, que pela sua tenra idade não são capazes de se governaram, a si mesmos, os quaes no reino servem ate certos annos pelo comer e vestir, e ao depois por uma soldada proporcionada por seu trabalho. E se as circumstancias não permittissem adoptar este methodo,como não seria possível adoptar-se com os uaicurus e goanás, n´este caso não fariam as novas povoações só de índios, porém uma boa parte seria composta de familias pobres, laboriosas e bem morigeradas, as quaes transmitiriam seus costumes para os índios, vindo todos com o andar do tempo, a ficar confundidos. Para directores e curas d´estas povoações, escolheria homens proporcionados para uma tal empreza, animados de um verdadeiro zelo pelo serviço de Deus e do Estado, e que sem terem a ambição jesuítica, tivessem a mesma arte e industria, com que elles ordinário ganhavam o coração d´esta gente.”.(Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803, Carta ao Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra) A constatação da fragilidade relativa do colonialismo português na região da fronteira, obrigou a delimitação de uma estratégia específica de abordagem e relacionamento com os povos indígenas. O Império Português necessitava contar com a colaboração dos índios, evitando a guerra e resistência destes. Nesse sentido, a relação estabelecida teve de tolerar em certa medida a alteridade étnico cultural e tentar se aproveitar dela como fosse possível. Esse modo de relação durou cerca de um século, até a Guerra do Paraguai. Mas quais os fatores que obrigaram os Mbayá-Guaicurus, que tinham resistido durante cerca de dois séculos aos colonialismos espanhol e português, a combinar formas de resistência e colaboração? Alguns acontecimentos são fundamentais: em 1791 os portugueses firmaram um “Tratado de Paz e Amizade” com os índios Guaicurus. Esse tratado, segundo as fontes da época, era uma necessidade tanto colonial quanto indígena. Em 1796 eles se fixaram nas proximidades de Albuquerque e depois em 1797 Miranda. Esse deslocamento se fez em razão da ofensiva militar que espanhóis estavam lançado contra os Guaicurus. O marco desse processo de declínio do poder dos Guaicurus se localiza no ano de 1775: “Até o anno de 1775 tinham os Uaicurus, cojunctamente com os Payguás, com que então viviam em estreita aliança , e a quem devem a iintelligencia da navegação, um extenso pais devoluto, que ocupavam; o rio Paraná limitava por Oriente; ambas as margens do Paraguay dependente da relação dos diversos atores com os mesmos grupos indígenas. Por isso, a partir do século XIX, vários relatos sobre os índios serão produzidos. 125 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. por Occidente; pelo lao do Sul as immediações da cidade e governo hespanhol da Assumpção, e pro Norte até perto do registo do Jaurú e de Villa Maria. Neste vasto terreno os Uaicurus sempre de vida errante praticaram as suas repetidas incursões e estragos, não só contra os mais índios., mas sobre os mais débeis e avançados estabelecimentos da das respectivas fronteiras portugueza e hespanhola, auxiliados sempre pelos seus amigos Paraguayos”. (Almeida Serra, RIHGB, 1850, p. 381). Dessa maneira, as afirmações que havíamos apresentado para sus tentar a tese da existência de um Sistema Social indígena do Chaco/Pantanal, são aqui confirmadas e sintetizadas na idéia de um “País Guaicuru”. As bases de funcionamento de suas relações de poder, organização social e dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial. Esse sistema era composto por mais de 7 grupos indígenas, inúmeros subgrupos, um amplo território e um tipo de estratificação social determinada (ver Figura 1). O sistema social indígena vigente dentro da situação histórica do Chaco era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias espanholas e portuguesas da América. Não sugerimos com isso que todos os grupos indígenas mantivessem relações diretas com os europeus, ou relações do mesmo tipo e regularidade; mas os dados acima citados revelam que o sistema social do qual os grupos faziam parte já era determinado por relações diretas e indiretas com o sistema mundial e o colonialismo. Ou seja, mesmo que as unidades do sistema (os povos indígenas) não estivessem em relação direta com o colonialismo, o sistema de que faziam parte estava. Se coube aos espanhóis a estratégia que destruiu a aliança Mbayá-Guaicuru/Paiguá a base militar do sistema social indígena, coube aos portugueses a estratégia que destruiria as bases econômicas e sociais, pela destruição da aliança Mbayá-Guaicuru/Guaná. Mas é no documento intitulado “Reflexões sobre o Systema de Defesa” que vemos mais claramente se delinear uma política deliberada de “destruir” a base econômico-política da aliança Guaná-Guaicurú, e de exploração das contradições e rivalidades entre os próprios grupos indígenas. Podemos dizer que este processo na realidade se inicia com a própria aliança entre Portugueses e Guaicurus: “Tratam-se com melhor fé e urbanidade os Índios Guanas das diversas tribus e aldeas, e os Guaxis, que tiverem permanecido no nosso partido, mimoseando-se os seus principaes chefes, e louvando-se a sua Constancia e fidelidade à amizade, e bom agasalho, que nos devem; desafiando-se por este modo, a emulação nos Índios que se tiverem voltado contra nós, abraçando o Partido dos Guaicurus. Comprem-se mantimentos por todas as ald eas, introduzindo-se no pagamento algum gênero de luxo, para que os índios se acostumem a gostar d´elle; o que nos trará as vantagens seguintes; provimentos necessários para as guarnições, conduzirem-se os índios a praticarem plantações mais avultadas, vendo prompto o lucro de seu trabalho, e arreigarem-se nos sítios de sua habitação. Procure-se persuadir por todos os modos e maneiras aos Guanás das aldeas abandonadas, que devem tornar a ellas, e á nossa amizade, fazendo-se lhes lembrar-se do que já sofreram da má 126 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. fé e orglho dos Guaicurus, e do motivo por que não se devem fiar nelles, e cahir na nossa indignação. Busquem-se meios de fazer chegar ao conhecimento dos capitães Guaicurus, que o ressentimento do governo da província é somente contra o principal delles (...) Desta sorte, semeando a divisão entre aquelles chefes, obteremos o meio mais seguro de chegar as fins que melhor convem as nossas circunstancias”. (D´Alincourt, op.cit,. p363 ). Assim, as relações dos colonialismos (espanhol e português) com os Guaicurus e demais índios oscilavam rapidamente da guerra a tratados de aliança política e comercial. A guerra de resistência e revolta poderia ser movida pelos Guaicurus contra os espanhóis com o apoio dos portugueses ou contra os portugueses com o apoio dos espanhóis. Entretanto, a partir dá década de 1820, a política do Estado Imperial brasileiro começa a investir nos aldeamentos e no incentivo a oposição Guaná X Guaicuru. Os tratados e a “política de colaboração” que sucedia a “política de guerra resistência indígena” - e que estava diretamente ligada a ela, já que esta colaboração era mais importante pelos antecedentes históricos da resistência Guaicuru e pela disputa com o colonialismo espanhol – é que viabilizou a criação das condições para o domínio português na região. Podemos falar de uma pluralidade de formas de dominação, colaboração e resistência, que podiam se combinar ou se alternar no tempo e no espaço. Não era somente uma oposição “dominação/resistência” que se colocava, mas sim uma complexa triangulação entre diferentes possibilidades de aliança, guerra e repressão. E foi graças a política de “colaboração indígena” adotada pelos portugueses que sua dominação e a formação do Estado-Nacional se tornou possível. É importante lembrar que os Guaicurus sabiam também manipular a colaboração de portugueses e espanhóis, e que esta sua política foi eficaz nas primeiras fases da colonização; entretanto, foram as contradições internas nas suas relações de dominação com outros povos indígenas, que exploradas pelos portugueses, fizeram pender a balança em favor do colonialismo português. Os índios são definitivamente inseridos numa nova estrutura de poder e de classes, que se misturam e confundem em certos níveis. Os Guaicurus e a camada dos “Chefes Indígenas” é tratada com honras de Estado, e colocada num mesmo patamar que os “senhores” ou nobreza da sociedade colonial57 . Mas esse tratamento é um recurso tático, já que o projeto colonial visava colocar os índios como mão-de-obra dos empreendimentos agrícolas. Cabe aqui introduzir um parêntese sobre as principais técnicas de luta política empregadas por índios, militares e colonos nos séculos XVIII-XIX. O processo descrito acima mostra exatamente a emergência de novo padrão de balanceamento de forças, que leva a destruição do sistema do Chaco/Pantanal e fragmentação do seu território. Uma análise etnográfica do sistema revela exatamente que certas características que depois seriam atribuídas ao “caráter” ou “natureza” 57 “Se vão a Cuiabá, ou a Villa Bella, aonde são honradissimos ao lado e mesa dos Ex. Sr. S generaes, e assaz prendados, sempre quando voltam se lastimam de que quanto receberam foi improporcional aos seus altos merecimentos e qualidades”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378). 127 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. do índio fazem parte de um repertório de técnicas de luta política empregadas como táticas de dominação ou resistência. O “Parecer” de Ricardo Almeida Serra e alguns outros documentos servem para delinearmos esse conjunto de técnicas e táticas. Poderíamos indicar aqui, por exemplo, um dos elementos que compõem o Parecer: “virtude e caráter”, em que se apresentam os elementos da “instabilidade” dos índios Guaicurus: entre os fatores estão a “dissimulação” e a facilidade com que trocavam à aliança dos “portugueses pela dos espanhóis” e vice- versa; essa dissimulação se dava pelo uso de mentiras ou subterfúgios como não dizer nunca a direção correta de uma viagem ou mesmo não revelar o objetivo de alguma atividade realizada. Além disso, a “fuga”, depois desses índios serem recrutados como militares ou trabalhadores e conviverem dentro dos fortes e presídios portugueses. “.. Ficando aqui o capitão Guaná, detestando a retirada dos dois e a vacillante inconstância dos mais Cadiue-os que ficavam, afirmando-me que se alguns delles se ausentavam, que os emabraçasse (...) Enfim este solapado bárbaro que nem de noite nem de dia me deixava, e prometia ir convidar os seus parentes, pedindo todos os dias alguma coisa, ainda em 10 do presente mês de janeiro me pediu varias bagatellas e um porco e dando-lhe tudo e os mais trastes que guardava no meu quartel, tudo levou essa noite ocultamente d´elle para o seu rancho, e embarcando de madrugada a titulo que ia à pesca do jacaré, fugiu e se ausentou tao ingrato como infiel, levando em sua companhia outro monstro de ingratidão no Guaná Luiz Manoel (...) que todos estimávamos muito, ambos elles em uma canoa fugiram sem mais motivo que sua inconstância natural, levando-me ainda a roupa que acharam à mão no meu quartel, aonde viviam e entravam como em sua casa”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378). A fuga dos Guanás expressa o tipo de estratégia e relação dos índios: buscavam manter o acessos a bens e recursos materiais, freqüentemente a informações sobre os militares para venderem aos adversários, sem entretanto se submeter ao regime de trabalho e a fixação que se queria a eles impor. Podemos falar que depois de 1800, as técnicas de luta política indígena passaram a assumir formas de resistência cotidiana, em que procuravam sobreviver num contexto em que um novo poder se instituiu. O relato de Ricardo Almeida Serra fala também de uma reunião com os capitães Guaicurus em que se sugeriu que se casassem com os portugueses, fixassem moradia e plantassem, e eles indagaram quantos escravos os portugueses enviariam para trabalhar na lavoura, pois eles não eram cativos. Ou ainda, da situação em que fazendo parte de uma campanha militar dos portugueses contra um forte espanhol, os Guaicurus “desertaram”, sendo acusados de “covardia”. Poderíamos falar aqui de outras situações, mas os exemplos acima são suficientes. Existia um conjunto diversificado de “Técnicas Indígenas” das quais destacamos as seguintes: 1) Dissimulação; 2) Fuga; 3) Recusa ao Trabalho; 4) Sabotagem; 5) Deserção; 6) Correrias (assaltos aos campos inimigos). Na realidade, as correrias passaram a ser cada vez menos freqüentes e as formas cotidianas de resistência passaram a predominar. Nós podemos falar de formas cotidianas de resistência porque os índios a empregavam freqüentemente para se recusar a servir aos objetivos coloniais (a submissão desses ao trabalho, a agricultura, padrões de casamento, habitação e etc) 128 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Mas observemos que na realidade, essas técnicas de luta política podiam ser utilizadas para diferentes finalidades. Por exemplo, os registros coloniais falam das “correrias” que índios Guanás de Miranda faziam contra os Caiuás, Guaxis e Chamacoco, para fazer cativos e vendê- los para as fazendas ou trabalharem em suas plantações 58 . Por outro lado, existiam também “Técnicas Coloniais”, voltadas para o controle e gestão dos índios: 1) tratados; 2) empreendimentos agrícolas e de mineração; 3) trocas e brindes; 4) recrutamento militar e/ou profissional; 5) aprisionamento; 6) bandeiras; 7) trabalhos forçados. Essas técnicas foram aplicadas ao longo do século XIX, através de três gêneros distintos de relação entre os grupos indígenas e os colonialismos português e espanhol. As relações de aliança/colaboração; as relações de guerra/resistência e guerra/repressão, cada qual ilustrada por diferentes gêneros de discurso político-jurídico e maquinário político-administrativo. De um lado, existiam as ações guerreiras retratadas no léxico imperial regional como “Correrias” – indicando as ações violentas dos índios contra as agências coloniais (fazendas, unidades militares e os próprios colonos); de outro lado existiam as “Bandeiras” –assumiam o caráter de expedições punitivas contra os índios, movidas tanto pelo Estado quanto pela sociedade colonos pobres e fazendeiros, as vezes com o apoio do Estado, as vezes sem este apoio, e as vezes com o apoio de certos grupos indígenas (ver Vasconcelos, 1999); “Tratados ”, que foram uma forma importante de estabelecer relações de aliança/colaboração política entre os povos indígenas e as instituições/agências colonial-estatais, como as unidades militares e administrativas, e também, estabelecer relações comerciais e econômicas que garantissem a exploração dos territórios; a política de “aldeamento, catequese e civilização”. Os “empreendimentos agrícolas” –o incentivo a produção indígena e sua compra ou comercialização nos povoados era uma forma de consolidar formas de colaboração que afastavam os índios das antigas relações com outros povos. Também o recrutamento para o exército e ofícios era uma técnica, baseada no principio da colaboração entre dominantes e dominados. As técnicas de colaboração não excluíam as técnicas repressivas; ao contrário, ou as legitimava ou complementava, no plano dos efeitos. Neste sentido, podemos afirmar que para realizar uma análise correta da dinâmica dominação/resistência, temos de levar consideração às contradições internas no sistema social indígena, as diferentes estratégias que cada unidade de ação política indígena (conjuntos de ação segmentares) poderiam estabelecer, indo desde as “correrias” aos “tratados” ou inserção em “empreendimentos coloniais” (como bandeiras, obras, ofícios), e por outro lado também as políticas das agencias coloniais, que iam dos “tratados” até as “bandeiras”, “prisões”, “trabalho forçado” e 58 “N´isto entrou o presente anno de 1849. A 2 de janeiro continuei a viagem, e a 3 encontrei dois índios um de nação Layana e outros Terena, que vinham de fazer uma correria nas matas do Iguatemi, nas margens do Paraná. O fim d´estas correrias é captivar outros, que sugeitam ou vendem, como antigamente se praticava com os infelizes índios...” (Francisco Lopes, RIHGB, 1850, p.315). 129 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. etc. Cada uma destas variáveis dependia de uma combinação contextual complexa de interesses, condições materiais, balanceamento de forças político- militares e referências culturais, que no longo prazo possibilitaram a consolidação dos interesses do colonialismo português e depois do Império do Brasil, graças à intervenção política no sentido de destruir as bases do sistema social indígena então existente no sul de Mato Grosso. Essa dinâmica expressa a coexistência e articulação de dois sistemas políticos, o indígena e o estatal- nacional. Sem as alianças políticas com os povos indígenas, sem a colaboração destes (que não era contraditória em sentido imediato com as políticas da resistência), a consolidação do colonialismo seria impossível. São nas contradições do sistema social indígena que residem algumas das principais causas da vitória do colonialismo português, as causas que possibilitaram a formação do Estado-Nacional brasileiro naqueles territórios. Da Guerra do Paraguai ao Cativeiro Uma segunda fase do que estamos denominando “situação de diretoria” se configura entre 1850 e 1880. Nesta fase se desenvolvem os desdobramentos inevitáveis do “cerco” iniciado na primeira metade do século; quais seja, o aniquilamento do sistema social indígena do Chaco/Pantanal, a fragmentação de seu território, a subordinação dos grupos étnicos indígenas e a consolidação do Estado-Nacional na sua forma colonial-escravista, integrado na economia mundial capitalista. A promulgação do regulamento das missões e a formação de aldeamentos marcam todo o período que vai de 1800 até 1850. Na verdade, no período entre os anos 1800-1850, o que se dá, é um processo progressivo de construção do Estado; estabeleceriam-se as freguesias (povoados), vilas, municípios e comarcas, ou seja, unidades territoriais, populacionais, jurídicas e políticas. A criação desta estrutura administrativa implicava tanto na formação de novas categorias sociais (funcionários, juizes, militares, fazendeiros) – quanto à produção de uma nova geografia, com a edificação de prédios públicos e a infra-estrutura (vias de comunicação, portos e etc). É interessante notar que, no ano de 1858 é criada a repartição de terras públicas, (decreto 2092 de 30/01/1858), em obediência a Lei de Terras de 1850, que começa a funcionar a partir do ano seguinte. Isto significa que um processo de medição de terras e definição de propriedades, ou seja, de controle fundiário, estava sendo estabelecido. No mesmo ano, o presidente da Província afirma: “Em Miranda muito conviria fazer hum aldeamento regular disso encarreguei ao Commandante das Armas. Porem ter elle encontrado embaraços, para os quaes muito concorre a falta de hum sacerdote que exlusivamente se preste attrahir os índios de hum modo benévolo e insinuante”. (Relatório da Província de Mato Grosso, 1859, p.36). Quer dizer, o avanço dos 130 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. aldeamentos se dá paralelamente ao dos mecanismos de controle da terra. No ano seguinte seria iniciada a construção da aldeia de Miranda. Na década transcorrida, a composição social e demográfica da província se altera em traços significativos. E isto afetará profundamente a dinâmica social e marcará o processo histórico posterior. Vejamos os dados abaixo: Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862 Condição Livres 30.486 Escravos Indígenas Total 7.052 10.000 a 15.000 52.538 Com a Guerra do Paraguai (1864-1869), a questão de terras “interna” dará lugar à questão “externa”. O processo de catequese e civilização, que combinava uma estratégia econômica com outra simbólico-cultural, seria interrompido pelo advento da Guerra. Ainda mais porque, a rota da ocupação paraguaia do território sul da província de Mato Grosso, fez com que as freguesias de Miranda e Corumbá/Albuquerque fossem levadas ao centro dos principais eventos da guerra. A Guerra do Paraguai deve ser vista como um momento de interrupção temporária de certos processos; a descontinuidade não foi absoluta. Logo após a guerra, os processos antes verificados, foram retomados. É com o pós-guerra que teria início a configuração de uma nova situação histórica. A política de catequese e civilização, como vimos, ainda não tinha se consolidado. Mas ela começava a se estruturar, a Guerra a interrompeu; os principais pontos dos aldeamentos foram destruídos. Entretanto, no pós- guerra, certos processos sociais – não exatamente novos – se intensificaram. O primeiro foi o da colonização e povoamento da província; o segundo foi à expansão econômica, ao mesmo tempo efeito e causa da colonização. Vejamos os quadros abaixo com a evolução da composição demográfica da Província do Mato Grosso no pós- guerra: 1872 60.417 Quadro 26 - População de Mato Grosso – 1872-1930. 1890 1900 1920 92.827 118.025 246.612 1930 349.857 Nos vinte anos que se seguem a Guerra do Paraguai, a população total do Mato Grosso cresce cerca de 130% se comparada com o ano de 1850. Nestes números não é considerada a população indígena. Neste processo de crescimento demográfico, se insere a política de incentivo a imigração de europeus “Desse modo, o fim da guerra do Paraguai em 1870 marcou o início de uma 131 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. fase de ampla abertura da economia de Mato Grosso ao exterior via comércio e navegação pelo rio Paraguai”. (Borges, 2001, p.31)59. A principal característica dessa situação histórica é o “cativeiro” dos Terena, ou seja, sua subordinação a esquemas de escravidão e trabalho forçado nas fazendas do Mato Grosso logo após a Guerra do Paraguai. Para usar a imagem de Karl Polany, a construção de um Mercado Autoregulável (através de uma política de Estado e do colonialismo interno) fez com que todos os demais domínios da vida social se subordinassem a ele. Este Mercado regional, constituído já sob uma lógica monopolista nos seus principais ramos (agro-exportadores), levaria também a uma grande concentração fundiária 60 . Assim, a “política indigenista” no Mato Grosso neste contexto, por imposição da lógica da econo mia capitalista, não poderia ser senão a política do capitalismo monopolista aplicada à resolução da “questão indígena” (contradição entre os interesses dos povos indígenas e da burguesia rural e do capital monopolista nascentes). Nos primeiros momentos do pós-guerra do Paraguai, apesar das relações políticas dos Terena com o Estado não terem se alterado, as condições gerais e as relações econômicas começam a se transformar, principalmente por conta da transformação da relação homem-terra-recursos ambientais, que a formação do mercado capitalista produziria. No período do pós-guerra, dois períodos distintos se sucedem; o primeiro vai de 1870 a 1890; o segundo de 1891 a 1904. No primeiro, temos ainda a tentativa de implementação de uma política de catequese e civilização, por parte do Estado, através da Diretoria de Índios, e choques entre índios e fazendeiros, pelo controle de terras e recursos ambientais na região do Pantanal e em todo o Mato Grosso. O segundo momento é quando a política global de Estado na região do Pantanal vai praticamente suprimir a política de catequese, vigorando o choque frontal entre índios, fazendeiros e colonos, do que resulta a expropriação quase total das terras indígenas e um verdadeiro etnocídio. 3.4 – A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro -revoltas indígenas (1904-1939) O processo de constituição das reservas indígenas Terena marca o início de uma nova situação histórica: a da subordinação dos Terena a um novo tipo de regime tutelar, vinculado diretamente ao Estado e separado das relações com os outros povos e territórios do antigo sistema do Chaco/Pantanal. A destruição das relações de interdependência e fragmentação dos territórios é o principal efeito das situações de diretoria e cativeiro. 59 O Governo Imperial deu alguns incentivos ao comércio na região; 1) reabertura da alfândega em Corumbá; 2) isenção de impostos para as mercadorias que circulassem naquele Porto. Assim, estabeleceu-se as bases para uma retomada econômico, através da abertura comercial. 60 Segundo Borges, em 1920, os estabelecimentos com menos de 100 hectares em termos de Brasil, correspondiam a 70% do total de estabelecimentos. No Mato Grosso, estes estabelecimentos de 100 hectares, correspondiam a apenas 20% do total. Em termos absolutos, eram 1525 unidades com extensões superiores a 2000 hectares, o que representava cerca de 45% do total de estabelecimentos. 132 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. A formação das Reservas Indígenas vai parcialmente de encontro aos interesses e reivindicações dos índios, de maneira que as demarcações não são o resultado apenas de ação normativa do Estado, mas também da ação política dos índios Terena que buscaram na Comissão de Linhas Telegráficas aliados dentro do aparelho de Estado, para garantir pelo menos algumas parcelas dos seus antigos territórios (Vargas, 2003). É por isso que no período entre 1904-1905 são realizadas as demarcações de duas das principais aldeias Terena, Cachoeirinha e Ipegue, pela intervenção direta da a Comissão de Linhas Telegráficas, que promove a negociação com fazendeiros e faz as reuniões demarcatórias (Vargas,op.cit,p.83). Devemos lembrar que desde 1892, se tinha iniciado em Mato Grosso, um processo geral de regulamentação das “posses”, no qual as terras indígenas tiveram um tratamento apenas secundário. O quadro abaixo permite uma visualização do processo de formação das Reservas Indígenas: Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena – Século XX61 Reserva Indígenas. Área em Hectares Data do Decreto Cachoeirinha Bananal-Ipegue Lalima Francisco Horta Capitão Vitorino (Brejão) Moreira-Passarinho Buriti Limão Verde 2.260 6.337 3600 3.600 2.800 171 2.000 2.500 1904 1904 1905 1917 1922 1925 1928 (?) Três aldeias têm suas áreas demarcadas até 1905, e as demais, depois do ano de 1917. O que significa que as primeiras foram reservadas pela Comissão de Linhas Telegráficas, e as demais, pela ação do SPILTN. No início do século XX, algumas transformações importantes se processaram dentro do aparelho de Estado, e repercutirão também no âmbito da política indigenista. A principal delas é a formação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais criado por lei de 1906, mas implantado em 1910. A partir daí, entre 1905 e 1940, irá ocorrer progressivamente, um processo de estatização dos territórios, cultura e organização social Terena, processo este que se dá simultaneamente e subsidiariamente ao processo mais amplo de transformação do EstadoNacional. Com relação aos índios de Mato Grosso, é o momento em que o processo de pacificação dos índios do norte do estado (Bororo, Parecis), e que os índios do sul, começam a se defrontar mais diretamente com um novo tipo de ação do Estado, a do órgão tutelar, recentemente formado. É o momento 61 também de consolidação da economia agro-exportadora, de maneira que Elaborado a partir de Roberto Cardoso de Oliveira, 1968. 133 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. progressivamente se instalam os PI (Postos Indígenas), IR´s (Inspetorias Regionais), submetidas a estrutura político-administrativa do SPI, por sua vez integrado no MAIC (Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio). A partir de então, se define claramente um novo conjunto de grupos e instituições que irão interagir diretamente com os índios. As novas relações de interdependência transformarão tanto a cultura quanto a organização social dos grupos indígenas, especialmente dos Terena. A primeira unidade de ação política do SPI, fixada junto aos Terena, é o PI de Bananal, que é instituído no ano de 1915, ou seja, cinco anos depois da criação do SPI, apesar de neste mesmo ano, já se indicar a existência das aldeias de Cachoeirinha e Passarinho em Miranda e Bananal e Ipegue em Aquidauana. É somente no ano de 1920, que se estabelecerá um Posto Indígena em Cachoeirinha. A quantidade de PI´s irá aumentar e se reduzir até 1937, mostrando ao mesmo tempo a expansão do SPI e as dificuldades iniciais em dar um caráter estável a suas ações e estrutura. No relatório da Inspetoria Regional nº06, do ano de 1917, temos o seguinte relato sobre PI Bananal: “A população india do aldeiamento é composta de 722 almas que vivem da pequena lavoura, da creação de aves suínos e um pouco de bovinos. É uma população ordeira e sedentária que já produz grande parte dos cereaes que se consomem em Miranda e Aquidauana, e que uma vez concentrada nos aldeiamentos do Bananal, Ipegue e Cachoeirinha, convenientemente auxiliada, fará rápido desenvolvimento. (...) Este ano é pensamento desta Inspetoria dar organização definitiva ao Posto construindo casa para o Serviço e, com a pequena verba de que dispõe, auxiliar os índios quanto for possível para evitar-lhes as explorações de que são vítimas pelos açambarcadores e pombeiros da região. Augmentar-lhe as roças e methodicar-lhes os serviços. Além dos índios terenas, habitantes citadas, vivem muitos outros grupos da mesma tribu disseminados pelos sertões e pelas fazendas dos municípios de Aquidauana, Miranda, Coxim e Nioac, que torna-se de urgente necessidade serem reunidos em aldeiamentos afim de evitar-selhes a escravização muito comum em Matto Grosso”. (Relatório IR-5, 1915, MI, microfilme 329, ft. 1093-1094). O posto indígena de Bananal funcionou provisoriamente numa escola do estado, sendo construída sua sede própria apenas depois de 1915. As demais aldeias Terena, apesar de já serem conhecidas do serviço, não entraram imediatamente na sua órbita de ação. A IR-6 começou a estruturar sua ação pelo Sul de Mato Grosso. Isto significa que, mais uma vez, as diversas comunidades- locais Terena foram as primeiras a se defrontar com uma intervenção sistemática do Estado-Nacional, agora através do SPI. Outros grupos indígenas teriam este contato direto com o SPI anos mais tarde. Cabe indicar os traços fundamentais desta situação histórica que começou a se constituir. 134 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Os relatos da Inspetoria Regional nº 06 permitem traçar algumas das características principais deste momento da ação do SPI. Vejamos as orientações do Inspetor do SPI, acerca das ações do encarregado de posto. “... cumpria ao citado funccionario, convenientemente auxiliado, methodizar-lhe o trabalho de modo que da terra houvessem a subsistência sem humilhações, e, regularizar-lhes as relações no comércio local, evitando, desse modo, as actuaes explorações a que estão expostos. Além desses deveres, grande sem duvida, mas perfeitamente practicos e possíveis, cumpria ao mesmo funccionario, sem pertubar os costumes das tribus, alias já muito corrompidos pelos maus contatos, procurar que pelo trabalho, pelos costumes, pelos bons actos, aquelles infelizes elevem-se nos conceitos dos civilizados d´aquella região. (...) Depois com o tempo, viriam as escolas, as oficinas, a grande e inteligente industria e o mais que convém a civilização. Mas como no serviço aqui, por falta de recursos, tem falhado as melhores tentativas, também esta se não falhou de todo, não teve a execução prática que seria de desejar. (...) (Relatório da IR-6, 1914, José Bezerra Cavalcanti, Museu do Índio – Mic 379, ft -1072-73). Desta maneira, a ação do SPI junto aos Terena, era pautada desde o início por uma especificidade: não era um grupo em estado de guerra, logo, não cabia uma política de “atração e pacificação”; na verdade se tratava de um grupo que já tinha um longo tempo de interação e aliança com o Estado e com grupos sociais estabelecidos na região. O quadro abaixo permite visualizar a evolução da ação do SPI, no que tange a fixação de população e sua administração, gestão da mão-de-obra e produção das terras indígenas, geração de instituições ideológico-culturais para ação junto aos povos indígenas. Aldeias Bananal Cachoeirinha Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso – SPI – 1910-193062 1915 1919 1920 1922 1923 1924 1925 1929 População 722 657 756 800 1130 1260 1314 1531 Produção 33 HA 150 alq 1500 cabeças de gado 200 cavalos 90 HÁ 1430 cabeças de gado 227 cavalos 1000 cabeças de gado 300 cavalos 435 HA 2050 cabeças de gado 220 cavalos 430 HA 2300 cabeças de gado 243 cavalos 2132 cabeças de gado 260 cavalos 2138 cabeças de gado 410 cavalos Escolas 1 2 2 2 2 134 alunos 326 2 2 2 380 432 473 174 HA 345 cabeças de gado 75 cavalos 218 HA 385 cabeças de gado 85 cavalos 379 cabeças de gado 130 cavalos 471 cabeças de gado 123 cavalos População 228 Produção 200 cabeças de gado 20 cavalos 300 223 cabeças de gado 18 cavalos 330 cabeças de gado 100 cavalos 62 Consideramos aqui somente Bananal e Cachoeirinha porque foram as aldeias indígenas mencionadas nos relatórios desde a década de 1910, com mais freqüência. 135 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Escola e Alunos 1 ( 63 ) 1 1 44 alunos 1 1 40 alunos Os dados permitem ver que a instabilidade da ação do SPI nos primeiros anos de década de 1910 foi superada nos anos 1920. O Posto de Bananal conheceu um progressivo crescimento populacional, e também da produção da sua lavoura e criação a partir dos anos 1920. A existência de 2 escolas (uma estadual, depois assumida pelo SPI e outra de uma missão protestante americana), levou a um processo crescente de escolarização dos Terena. A instalação de engenhos para beneficiamento da mandioca e cana de açúcar, produção de farinha e rapadura, se deu a partir do ano de 1922 64. Em cachoeirinha a instalação do Posto e da Escola são mais tardias (em 1922), mas a partir de então começa a se verificar um crescimento lento, mas constante, da população, da produção e do número de estudantes65. A ação do SPI seguiu rigorosamente as intenções declaradas em 1914, através do estabelecimento de uma lógica de proteção pautada em pelo menos três eixos distintos: 1) um eixo econômico, através do financiamento de ferramentas e insumos para as reservas indígenas, de maneira que esta pudessem aumentar sua produção na lavoura, e também o controle e gestão da força de trabalho indígena; 2) um eixo ideológico-cultural, pautado na construção de “escolas” e no trabalho pedagógico de “ensinar” os índios a cultura nacional e a “civilização”; 3) um eixo político, de administração das terras indígenas pelo Encarregado do Posto, que ao mesmo tempo assumiria as tarefas econômicas e ideológico-culturais, e de regulação da vida indígena. Se configuram os atores e relações de um novo campo de relações interétnicas. Este campo era composto pelo SPI e seus postos e povoações indígenas; pelas então reservas “indígenas” e as diferentes comunidades- locais indígenas (Cachoeirinha, Bananal, Passarinho, Lalima, Brejão e outras). Os índios Terena estavam neste momento em alta conta com os encarregados e inspetores do SPI, seguindo assim uma linha histórica (já que também os presidentes de província os consideravam como índios “mansos e civilizados”). Desta maneira em 1922 o relatório da IR-6 menciona: “ os terenos são os índios mais adiantados que conheço...(...) “Tenho esperança fazer dos terenos, colonisadores e mestres de creação em outros postos onde devemos invial-a”. (Filme 379 fl 1491). A intenção de utilizar os índios Terena na implementação das políticas das instituições estatais também havia ocorrido no Império, com a política de “catequese e civilização”. 63 E enviado um professor que atuaria como representante do SPI. Ver Relatório da IR-6, 1922 (Filme 379 fl 1491). 65 A casa da escola foi construída em 1922, e é interessante observar o que diz o relatório do SPI a este respeito: “Esta casa de iniciativa toda indígena estava apenas começada, pois somente haviam feito os índios sua armação medindo 301/1X8 m.” (Filme 379 ft 1349-50) 64 136 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Mas se de um lado podemos dizer que os Terena absorviam com facilidade a nova relação “econômica” com o SPI, materializada principalmente na política de doação de ferramentas/sementes, o mesmo não acontece com a intervenção política do SPI e seu controle molecular da vida dos índios (através das tentativas de regulação do “consumo do álcool” e da proliferação de missões religiosas dentro das aldeias, por exemplo). Também se verificam problemas sérios no que tange ao esforço do SPI de impor uma administração centralizada através do Encarregado do Posto e de um único Capitão. Assim, o regime tutelar, no seu elemento historicamente novo (em relação a situação histórica anterior), qual seja, o do controle político direto pelo Estado, seria recusada pelos Terena. Em Bananal se daria um processo de resistência efetiva a construção do regime tutelar, e especialmente a imposição de uma determinada estrutura política centralizadora. A resistência a imposição do regime tutelar se deu especialmente em meados dos anos 1920, e podemos classificá- la como a primeira tentativa de “emancipação” indígena, só que feita pelos próprios índios. 3.5 - “A Emancipação Indígena” – a luta pelo controle político de Bananal A história da resistência indígena Terena contra o regime tutelar começa com a construção das reservas. Esta resistência à ação estatal se manifesta no maior aldeamento Terena, no qual o SPI depositava as maiores esperanças de progresso do processo de “civilização” dos índios. No ano de 1927 Roberto Vieira dos Santos Werneck, superintendente dos PI´s do sul de Mato Grosso, dá o seguinte informe em seu relatório: “Com o ensaio feito por essa Inspetoria da administração interna do Bananal passa a ser feita pelos índios, ficou o professor Joaquim Fausto Prado accumulando a escola do Ipegue, pois cessou sua acção administrativa do Posto. (...) O Bananal passou a ser administrada internamente por uma junta de 3 membros desde 22 de agosto. Havendo graves queixas dos índios contra o capitão Marcolino Lili e da polícia por ele organizada, essa inspetoria resolveu reorganizar a polícia que passou a ter em seu seio índios filiados ao Capitão Manoel Pedro e Marcolino Lili e não somente a este último como era”. (Filme 341, fl 1128-29) As lutas internas em Bananal levaram a estabelecimento de um padrão de organização política distinto daquele normalmente adotado pelo SPI. Ao invés de um único “capitão” ser reconhecido oficialmente para cada aldeia indígena, foram reconhecidos “três indígenas” como “administradores” da aldeia. Dois “capitães” e um índio indicado pelo SPI. Esta administração indígena deveria substituir a administração do SPI, que até então era responsável politicamente, pela gestão política da aldeia do Bananal. Em 1918, um relatório da IR-6 nota o seguinte: 137 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. “Mantém ali a inspetoria um encarregado com a diária de dois mil reis. Como estes índios já se acham quase emancipados esse funcionário tem o encargo de zelar pela ordem e diminuir os conflitos que surgem diariamente com os civilisados e fazendeiros visinhos. Os anexos a este relatório mostram a gravidade dos conflitos ali sucedidos tendo sido necessária para manter a ordem uma verdadeira operação militar levada a effeito pelo inspetor em data de 19 de julho do corrente anno com a força publica do estado cedida para esse fim pelo Inspetor Federal dr. Camillo Soares. Prova-se portanto necessário a conservação nessa aldeia do encarregado”. (Filme 380, ft 1542). Nota-se aqui que a representação social, que circulava no SPI acerca dos índios Terena, de que estes índios seriam mais “civilizados”, mais “capazes” para o trabalho, levou também a considerá- los como próximos da “emancipação”, ou seja, da retirada de suas aldeias da estrutura político-administrativa do SPI. Vejamos pelo documento abaixo que conflito estava em causa naquele momento: Exmo Sr. Presidente do Estado de Mato-Grosso. Levo ao vosso conhecimento que o inspetor do Serviço de Proteção aos Índios e localização dos trabalhadores Nacionaes Snr. Adriano Metello, no dia 31 do mês passado na povoação do Bananal, próximo a estação Visconde de Taunay da EFI a Corumbá, sede do 4º Disctricto municipal, sede de uma escola publica primaria mixta creada desde 1911, sede d´uma sessão eleitoral e residência de índios da tribu Terena, já civilisados, a titulo de proteção fez armar 15 homens da referida tribu e mandou debaixo de chuva despejar na rua as mercadorias existentes na casa de negócios dos cidadãos syrios Nicolau Falcão, Aurd Mustafá, Gened Hoder e Nagib Atukis porque vendiam também aguardente (...) Não contente em tamanha violência requisitou hoje ao delegado de policia providencias para que fizesse sair da mencionada povoação os cidadãos Honório Coutinho, Jose Basan, Jose Teixeira, Jose de Souza Coelho, Manoel Correa, Bernardino Macedo e o índio emancipado Adolpho Massi. Devo salientar que este índio de 30 anos de idade é não só civilisado, mas instruído, eleitor, ahi nascido, criado e morador e todos os outros ahi moram há annos entregues a vida laboriosa e afamiliados aos ditos índios (...) O que parecer querer o referido inspetor é retirar desse povoado os cidadãos que não sejam indios afim de ficarem sós, evitando assim o desaparecimento natural, lógico útil e desejado da tribu pela civilisação, como já aconteceu neste municipio com a tribu dos Layanas e Quiniquinaus. Relevas que assignale ainda o facto muito significativo de terem os próprios índios enviado ao delegado de policia uma representação contra essas violências praticadas pelo inspetor Metello, representação por 60 nomes delles. (Representação do Intendente Municipal de Aquidauana-1918, Filme 380, Anexo ao Relatório da IR-6). O trecho acima mostra o padrão de ação do SPI, que depois seria consolidado: constituição de uma “polícia indígena” para; controle do acesso aos territórios indígenas; fixação de critérios de “indianidade”, que permitiriam a exclusão – como no caso acima citado – de sujeitos considerados como “´não índios” pelo SPI, das aldeias. Em 1919 ainda se mencionam conflitos em Bananal: “De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e civilizados que os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as mesmas quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase sempre é o autor, de todas as queixas que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento pelo Sr. Inspetor, como um individuo perigoso”. (filme 379; ft 1198). 138 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. A problemática da “emancipação” dos Terena seria colocada de maneira mais efetiva, no ano de 1922, sendo assim relatada: “Os protestantes (índios) distinguem-se dos outros índios especialmente por não beberem, mas ao que dizem, são um tanto pedantes, julgando-se superiores o que invita os outros. Nada disso eu percebi por mim mesmo. Informou o sr. Roberto Werneck houverem-lhe dito que o missionário aconselha ao Capitão Marcolino Lili, chefe de mais prestigio e protesta nte, a propor ao Governo a emancipação do Posto e retirada dos funcionários do serviço, que no dizer dele, nada tem feito pelos terenos. Poucos dias depois de empossado recebi, transmitida pelo sr. Lindolpho Azevedo, uma carta do índio do Bananal, denunciando faltas contra a moralidade do Posto cometidas pelo encarregado Manoel de Oliveira Cravo ” (Relatório da IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379 fl. 1439) Os relatórios da IR-6 nos anos 1920, indicam uma série de conflitos políticos em Bananal, atribuindo-o a ação da “União Missionária Sul-americana”, que atuava nesta aldeia. Os conflitos se dariam dentro da aldeia de Bananal, pela divisão entre “protestantes e católicos”, e entre o SPI e a União Missionária. Isto levando inclusive a migração de famílias de Bananal para Cachoeirinha (Relatório da IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379) Os atritos do SPI com a União Missionária se iniciariam em 1919. No relatório referente a este ano, Silveira Lobo escreve um item denominado “questão religiosa”: “Entre estes índios encontrei uma forte propaganda feita por pastores da igreja anglicana afim de induzil-os a se converterem ao protestantismo. Em meus relatórios precedentes tive o ensejo de vos expor claramente a situação e demonstrar as razões pelas quais esta administração acreditava necessário prohibir fosse continuada esta propaganda que estava dividindo os índios em dois grupos. Igualmente vos fiz sciente das diversas providencias, editaes, intimações etc, tomadas para evitar a continuação de taes fatos. Tendo esta Inspectoria expedido ordens severas para impedir que entrassem no território sob sua fiscalização missionários de tal propaganda promoveram estes uma collecta entre os índios seus adeptos afim de seguirem para essa capital Federal e ahi se entenderem com essa Directoria”. (Filem 379, fl. 1346-47). Em anexo a estes relatórios estão documentos e comunicados trocados entre a IR/SPI e a União Missionária. O caso é levado até a Direção do SPI no Rio de Janeiro, que autoriza o trabalho da Missão dentro da aldeia de Bananal, permitindo a construção de templo, escola e hospital (anexo 11, 14/03/1922). Assim, existia um conflito de interesses entre a Inspetoria Regional e União Missionária Sul-americana, pelo controle político da aldeia de Bananal. Seria a tentativa de “emancipação indígena” uma mera estratégia de manipulação dos índios por parte da Missão? Mesmo que tenha havido tal manipulação, como sugerem os documentos do SPI, a ação dos índios não pode ser explicada somente por ela. Em primeiro luga r, na substituição do encarregado de posto, acima mencionada, a petição encaminhada pelos índios, é assinada por “católicos e protestantes”, o que significa que não existiam somente índios da órbita de influência União Missionária envolvidos na derrubada do encarregado. Além disso, o índio relacionado com a União Missionária era Marcolino Lili, e foi 139 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. contra o controle político exclusivo deste, questionado por outro Capitão, que é aplicada a fórmula de uma junta composta de três membros, um indicado pelo Capitão Marcolino Lili, outro por Manoel Pedro, e outro pelo SPI 66 . Some-se a isto o fato de o SPI ter firmado um acordo de “convivência pacifica” com a União Missionária, pelo menos é isto que sugere o relatório de 1923: “Já não existe contenda religiosa, vivendo a administração do Posto e missão protestante que ali opera na melhor harmonia, a primeira cuidando de tudo e todos e a segunda cuidando da propagação e instrução doutrinária entre os que livremente a querem ouvir”. (Relatório da IR-6, Filme 379 fl 1467). Ainda no ano de 1927, a IR entraria em choque com o Capitão Marcolino Lili. Nesta ocasião ficariam explícitos os motivos. O que a documentação revela é que existia um problema que tocava a região nevrálgica do regime tutelar: a administração do patrimônio indígena, especialmente, das terras da aldeia. Seria o controle político deste patrimônio e de todos os meios empregados para sua gestão e exploração (“polícia”, “engenhos”, “arrendamentos”) que seriam disputados pelos diferentes “capitães”, e também, pelo próprio SPI, através do Encarregado de Posto. Uma série de documentos da IR-6 de 1927 permite analisar o processo de emancipação indígena como parte de uma primeira etapa do processo de revolta contra a tutela. Vejamos o que o relatório da IR-6 de 1927 informa: “O Posto do Bananal é uma verdadeira povoação indígena em vésperas de ser emancipada, pelo adiantamento a que já attingio. A falta de cooperação por parte do governo do Estado, nos obriga a adiar muitas providencias indispensáveis para isso; mas, vamos alli mantendo, uma ingerência cada vez menor, hoje reduzida ao ensino da primeiras lettras, aos cuidados médicos e auxílios referentes a construções de casa, instrumentos de lavouras, machinas de beneficiamento, repdroductores para melhorias de rebanhos, açudes para água, cercas de arame e matança de formiga. A administração propriamente dita passou, como sabeis, a ser exercida por uma junta de três índios, governando sucessivamente, cada um durante um mez. Essa providencia de que vínhamos cogitando desde algum tempo, foi precipitada pelo constante antagonismo dos índios protestantes encabeçados pelo de nome Marcolino Lili, com os auxiliares nomeados pela Inspetoria para dirigirem o Posto”. (Relatório da IR-6, 1927, Estigarribia, Filme 341, fl 1011). O relatório deixa bem claro que, apesar da questão religiosa, existia uma oposição indígena a “administração” imposta pelo SPI nos territórios indígenas. A solução encontrada pelo SPI foi, em agosto de 1927, instituir uma “Junta Indígena” para substituir a administração, mais especificamente, o Encarregado do Posto, Junta esta composta por três nomes, indicados um pelo SPI (Manoel Vitorino), um por um capitão identificado como “protestante” (Paulo Lili Marques) e outro por um capitão identificado como “católico” (Umbelino Candido). É importante notar que o capitão Marcolino Lili foi a princípio indicado pelo próprio SPI, por conta da sua filiação religiosa protestante, que incentivava um ethos “ascético”, especialmente 66 O referido relatório menciona a solicitação de força policial para retirada dos Missionários do Bananal. 140 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. no que tange ao não consumo de bebida alcoólica, o que facilitava o controle e manutenção da ordem dentro das aldeias. Marcolino Lili foi consagrado capitão da aldeia de Bananal. Entretanto, pouco tempo depois, algumas queixas começaram a ser realizadas por setores da comunidade, denominadas pelo SPI de “católicos”, que acusavam de agressões e uso indevido do patrimônio da comunidade. Isto levou o SPI a tentar destituir o capitão Lili, que logo desencadeou a oposição ativa de sua facção política. Em agosto de 1927, o SPI deu início à “emancipação” dos Terena de Bananal por que não conseguia fazer com que o encarregado de posto exercesse suas funções. No mesmo ano de 1927, o auxiliar da IR, Roberto Vieira dos Santos Werneck, apresentou um relatório sobre os postos do sul do estado, em que constavam alguns anexos, dentre eles um documento endereçado aos três índios membros da junta do Bananal, composto por 26 itens, que discriminavam detalhadamente a função da Junta Indígena e o processo de “emancipação” da povoação do Bananal. O documento é assim formulado: “Tendo em consideração o adiantamento a que já attingiu a povoação do Bananal e a necessidade de estender as actividades e recursos de que dispõe esta Inspetoria a índios mais atrasados julgamos chegada a ocasião de tentar a sua emancipação, isto é, a administração pelos seus próprios habitantes, que será opportunamente proposta. A titulo de experiência e preparo organisamos esta junta, procedendo a 22 do corrente, como sabeis, e de acordo com o edital ahi affixado, a vossa escolha para constitui-la. Será um governo para uso interno, que administrará sob as vistas da Inspetoria, tendo como principal objectivo a manutenção da ordem dentro da povoação e o encaminhamento dos serviços de interesse geral. Vae enumerado a seguir o que julgamos essencial para o cumprimento de sua missão: 1º - Evitar e cohibir desordens e desrespeito a moral, uzando para isso, quando necessário, a polícia agora constituída; 2º Impedir que qualquer pessoa, índia ou não, seja perseguida ou enxovalhada por motivo de crença religiosa ou modo de pensar qualquer. Dada a divergência religiosa que há dentro do Bananal, a junta deve ter muito em vista que o Governo não dá preferência a ninguém pela religião que professa (...) 3º Garantir aos índios a liberdade de matricular seus filhos nas escolas que preferirem, desde que taes escolas estejam de accordo com as leis brasileiras; 4º Garantir o direito de locomoção as pessoas não criminosas e a permanência, o respeito e o uso da palavra, dentro das terras da povoação, aos sacerdotes e crentes de quaesquer religiões que a visitem, os quaes não poderão. 5º Não impedir os folguedos e festas religiosas ou não, que os índios ou grupos de índios queiram fazer, desde que não conduzam a desordens ou imoralidades; 6º no caso de crimes (assassinatos, roubos, attentados violentos ao pudor), mandar effectuar a prisão do criminoso, o arrolamento das testemunhas (...) 7º Impedir que um índio ou grupo de índios uze, em seu proveito exclusivo, qualquer das propriedades coleticvas existentes na povoação. A) nenhum índio ou grupo de índios poderá arrendar ou dar pastos para animaes particulares. B) nenhum índio ou grupo de índios poderá vender lenha tirada nas mattas ou pedras de suas terras e etc. (...) 10º Ter muito em vista que na Povoação do Bananal só os índios e o Governo podem possuir immoveis ou sementes de qualquer natureza. 11º Procurar resolver pacificamente toda as questões existentes entre índios e entre esses e as pessoas não índias, apellando para a Inspectoria nos casos mais difficeis. 12ºO uso da polícia na repressão de qualquer caso irregular deverá ser feito moderadamente, evitando toda violência e brutalidade. 13º Essa polícia se comporá de 12 homens escolhidos, uniformizados e armados pela Inspetoria e terá a missão de policiar a povoação (...). 141 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. 14º A polícia cumprirá ordens exclusivamente da Junta, por intermédio de um de seus membros, os quaes sucessivamente e por um mez exercerão sua chefia imediata (...) (Antonio Martins Viana Estigarribia N200/13, IR-6, 1927 Filme 347, filme 1172). Vemos que o poder da Junta Indígena era constituído por três elementos fundamentais; 1º) a investidura estatal, já que os poderes da Junta eram concedidos pelo SPI, e dependiam de sua estrutura administrativa para serem exercidos; 2º) a polícia, ou o monopólio da violência dentro dos limites do território da “povoação indígena”; 3º) a conciliação de interesses entre diferentes “caciques” ou facções políticas que disputavam o controle e uso dos recursos econômicos de Banana l. O controle da “propriedade indígena” (incluindo ai todos os bens materiais, como engenhos e etc, e os recursos naturais da reserva) sempre foi uma questão fundamental, mesmo numa área territorial relativamente “pequena”, como o caso das reservas indígenas do Sul de Mato Grosso. A questão religiosa estava associada à questão política, do controle da polícia indígena, de maneira que expressava uma clivagem política existente dentro da aldeia. Assim, a emancipação indígena, da qual se tratou nos anos 1920, tocava o centro mesmo do regime tutelar, dos poderes que esta relação envolve e implica,e dos discursos e representações simbólico-culturais que produz e nas quais se ampara. Era pelos índios Terena serem considerados pelo SPI como estando em avançado estágio de “civilização” (o que supunha uma identificação destes com a cultura nacional/ocidental), que se propôs a emancipação. Mas não somente por isso. Na realidade o fundamental foi a luta e resistência política desencadeada pelos indígenas pelo controle dos territórios indígenas. O processo de emancipação indígena foi sempre todo conduzido pelo SPI. A “Junta Indígena”, que deveria substituir a administração do SPI, estava subordinada ainda a Inspetoria Regional, de maneira que fazia parte de um esquema estatal. Assim, a experiência da emancipação dos Terena não deve ser vista romanticamente como um projeto de “liberação indígena” (como seria concebido décadas depois, pelas organizações e movimento indígena), mas sim como uma reação do Estado as micro-revoltas desencadeadas pelos índios contra sua intervenção nos territórios e organização social indígena. Mas a experiência da emancipação indígena ocasionava uma mudança importante numa esfera “micro-política”, pois provocava a luta concorrencial entre diferentes facções indígenas pelo controle e uso monopólico da “propriedade coletiva” da aldeia. Isto fica explícito nos itens que compõem o documento, já que seria uma das funções da Junta evitar que tal fato ocorresse. E esta é uma mudança fundamental. Outro fato importante é que existe uma dimensão cultural- ideológica implícita neste processo, que é o da legitimação e o da criação de fundamentos internos (ao grupo indígena) para as relações de dominação. Isto se consolidaria depois com o processo histórico, e é o que pretendemos analisar. 142 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Apesar da profunda vinculação da Junta Indígena ao SPI, esta não esteve em operação por muito tempo. Não conseguimos localizar os relatórios do SPI dos anos 1928, 1930-1934, e os de 1929 não menciona nada sobre a experiência da Junta Indígena. No relatório da IR-6 de 1935, num tópico referente a aldeia Bananal, lemos o seguinte: “Infelizmente, tive de registrar, em agosto do anno findo, uma facto bastante desagradável para esta Inspetoria, no que muito concorreu a grande incompatibilidade existente entre o encarregado e a população indígena. Por intermédio daquelle, recebi um apello do prefeito de Aquidauana, snr Manonel Alves de Arruda, e do juiz de paz da povoação de Taunay, snr Manoel de Andrade, para permitir que o gado pertencente a esse povoado se servisse da água existente em grande abundancia na Bahia situada dentro dos campos do posto, enquanto perdurasse a grande seca que assolava a região. (...) considerando que a permissão equivalia a um ato de humanidade, cujos effeitos so poderiam redundar em sympathias para o índio; e, finalmente, considerando a abundancia d´agua, conforme declaração do próprio encarregado, na Bahia em questão, e que portanto, não se justificaria uma negativa, dei meu consentimento. Nunca supuz, no entanto, que dessa minha autorização, baseada unicamente na informação do encarregado, adviessem graves distúrbios. No momento em que construíam o corredor, afim de dar acesso ao gado à Bahia, os índios Marcolino Lilli e José Francisco, alcunha Japonez, a frente de um grupo de índios armados, impediram com ameaças violentas o prosseguimento de dita construção. Esse acontecimento deu causa a que o encarregado, sem mais preâmbulos, requeresse ao comandante do 16 B.C., com sede na cidade de Aquidauana, à delegacia de polícia o desarmamento do grupo amotinado com a prisão dos cabeças. A presença de uma força armada fez com que muitos índios se despersassem, indo a maior parte para Aquidauana, para cuja cadeia seguiram também presos Marcolino Lili e Japonez. Imediatamente me transportei para essa localidade, fazendo com que os índios regressassem tranqüilos para suas casas e providenciando a remoção de Marcolino Lili e Japonez, da cadeia publica para o Posto de Cachoeirinha, até segunda ordem. Com a retirada definitiva de Jayme Machado do lugar de encarregado de Bananal, autorizei a volta desses índios para seus pagos. “ (Relatório IR-6, Filme 380, fl 1674). Ou seja, até meados dos anos 1930, o capitão Marcolino Lili, ainda mantinha uma política resistência à ação do SPI. Note-se que o conflito acima mencionado é um conflito armado; em conseqüência dos “distúrbios” provocados pelo evento, o exército e a polícia intervieram na povoação indígena. Poderíamos concebê- lo como um desdobramento do processo de resistência iniciado ainda nos anos 1920, talvez mesmo como seu corolário. Neste evento, o conflito está organizado em torno de dois elementos: 1) oposição liderança indígena X encarregado do SPI; 2) controle da propriedade indígena (o acesso ao território indígena e recursos ambientais existentes dentro dele). Exatamente os mesmos fatores existentes nos primeiros atritos entre lideres Terena e agentes do SPI. Este acontecimento, entretanto, é marcado por uma maior gravidade, já que resulta num processo de revolta armada dos índios contra o SPI e o regime tutelar.O desdobramento é a repressão armada do Exercito e Polícia, acionada pelo SPI, contra os indígenas Terena liderados por Marcolino Lili. A série de conflitos/situações sociais verificadas entre 1927-1935, que começa com a proclamação de uma Junta Indígena para Emancipação da Povoação de Bananal, e termina com a intervenção do Exército e a prisão de lideranças indígenas da mesma povoação, deve ser entendida 143 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. como um processo de revolta/resistência dos índios Terena ao estabelecimento do regime tutelar. Esta revolta assumiria diferentes formas, e não cessaria nos anos seguintes, mesmo depois do arquivamento da idéia de “emancipação”. Na verdade, esta política de resistência a relação tutelar, seria dotada de diferentes formas em quase todas as reservas indígenas Terena, sendo o caso de Bananal, um caso importante e elucidativo da dinâmica societária que estava em processo de constituição. Esta série de conflitos se devem a verdade à combinação de alguns fatores: 1) a formação das “reservas ou povoações indígenas”, unidades administrativas do SPI, a constituição de um novo sentido para o regime tutelar; 2) a transformação da relação grupo étnico/território e das condições materiais de existência e reprodução social destes; 3) a organização social e revolta/resistência indígena aos novos esquemas de distribuição de poder que estava m se estabelecendo. Desta maneira, a experiência de “emancipação indígena”, levada a cabo pelo SPI no Posto de Bananal a partir de 1927, deve ser entendida como o produto da combinação das transformações materiais da vida nas reservas indígenas, do esquema de distribuição de poder vigente no campo das relações interétnicas e da resistência indígena contra este esquema, sendo que a resistência indígena contra o regime tutelar, neste contexto, teve uma função preponderante em relação aos demais fatores. Assim, no início dos anos 1940, quando o SPI se consolidaria enquanto instituição estatal em todo o território nacional, os PI´s do sul do Mato Grosso e a IR-6, haviam promovido e suplantado as tentativas de “emancipação indígena”, garantindo assim a consolidação da tutela. 3.6 – Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969). A partir do momento que a IR-6 conseguiu sufocar a micro-revolta indígena contra o regime tutelar em Bananal, a ação do SPI junto aos Terena e estabeleceu dentro dos parâmetros do “indigenismo real”. Isto significa que os Postos Indígenas continuaram a ser administrados pelos encarregados, através da polícia indígena e dos “capitães” indicados por ele. Ao final dos anos 1930, a mudança na conjuntura política nacional repercutiria na política indigenista, de maneira que a própria localização institucional do SPI se transformaria, saindo este órgão do MAIC, e passando sucessivamente para o Ministério do Trabalho (1930-1934) e depois para o Ministério da Guerra (1934-1939). Esta mudança se deu dentro dos processos de transformação do Estado e do Mercado Capitalistas, que passavam naquele momento por um duplo processo: o de centralização política no plano político, e de passagem do capitalismo monopolista ao capitalismo monopolista de Estado, no 144 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. plano econômico, em meio a processos de Guerra Civil desencadeadas por lutas intra e interclasses67: “Com a cria ção do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, pelo decreto nº 19433, de 26 de novembro, responsável pela relação entre capital e trabalho - frente às necessidades que os tumultuados anos 20 imporiam, no sentido de se produzir legislação e serviços capazes de coibir as movimentações operárias e controlar a entrada de mão de obra estrangeira, notadamente ao crescimento do movimento operário internacional- seriam a ele transferidas todas as atribuições relativas a indústria, comércio e imigracão-colonizacão até então alocados no MAIC”.(Lima, 1992, p. 164). Seria nesta conjuntura que as tarefas de edificação de uma “identidade nacional” seriam postas com maior relevo, sendo o indigenismo concebido como um instrumento para tal política. Desta maneira, a ação do SPI no período entre 1934-1939 (quando estava integrado no Ministério da Guerra) foi marcada pela idéia de nacionalização 68 , e entre 1939-1955 (quando retornou para o Ministério da Agricultura), pela de preservação e aculturação paulatina, não excludente com a primeira: “As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço estariam claramente estabelecidas no regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de 1936 (...) O regulamento marcavase pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o fim e incorporá-los à Nação (art1º)”. (Lima, 1992, p. 165) “O discurso da nacionalização continua, porém assente sobre a idéia de grupos indígenas situados em estágios distintos da evolução humana, já que o decreto 5484, de 27/06/1928, responsável por uma categorização relativa ao grau de contato, cerne de ação protecionista, era ainda vigente. (...) Por exemplo, falando dos dois tipos de postos indígenas com os quais deveria contar o SPI à época, prevê para os Postos de Atração, Vigilância e Pacificação a tarefa de lidar com povos “imbeles, desarmados e na infância social, de modo a despertar-lhe o desejo de compartilhar conosco o progresso que atingimos. (...) O segundo tipo de posto, os de Assistência, Nacionalização e Educação, destinar-se-ia de acordo com o Regulamento, a uma ou mais tribos em relações pacificas e já sedentárias e capazes de se adaptarem à criação e à lavoura e a outras ocupações normais”. (Lima, 1992, p. 166) A nacionalização era concebida como um processo pedagógico de educação e trabalho e educação (técnica) para o trabalho. A partir da década de 1940, o organograma do SPI seria reestruturado para dar conta das duas tarefas; seria incentivada a retomada da idéia do “índio como guardião das fronteiras”. O curto período de permanência do SPI no Ministério da Guerra não eliminaria a retomada desta estratégia, que continuaria a orientar a ação do SPI dentro do Ministério da Agricultura e a política indigenista, durante o Estado Novo e depois de sua queda. Assim, os 67 Nos referimos aqui as 3 Guerras Civis do período: 1) a “Revolução de 1930”, que depois o presidente Arthur Bernardes; 2) A revolução Constitucionalista de 1932; 3) a Insurreição Comunista de 1935. Todos estes acontecimentos influenciaram no processo de reestruturação do Estado, tanto do ponto de vista ideológico-político, quanto administrativo. Estes fatos teriam repercussão na política indigenista, afetando diretamente os Terena, como veremos. 68 Um dos importantes acontecimentos, que afetam especificamente os índios de Mato Grosso, é a “Marcha para Oeste”. Este foi um movimento do colonialismo interno e expansão da fronteira agrícola para a região norte do Mato Grosso. Enquanto isso significou um maior investimento econômico na região norte,implicou uma maior estruturação do SPI no sul, que se caracterizou pelo esforço de consolidar as reservas indígenas como reserva demão-de-obra e intensificar os processos de transformação das tecnologias produtivas e referenciais culturais -simbólicos dos indígenas. 145 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Postos Indígenas e Inspetorias foram estruturados para atuar de acordo com estas duas orientações gerais. Esta estrutura só sofreria propostas de alteração em 1960 69 . Vejamos como era a distribuição dos PI´s no sul de Mato Grosso: Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo) PIF PIN PIC PIA Postos de Fronteira Postos de Assistência, Postos de Criação Postos de Alfabetização e Educação e Tratamento Nacionalização. Vanuire (Tupã/SP) Posto Curt Nimuendajú Nabileque Ipegue (Ivaí/SP) (Ponta Porá/MT) (Aquidauana/MT) Fransisco Horta Posto Icatú (Penápolis/SP) Capitão Vitorino (Dourados/MT) (Nioaque/MT) José Bonifácio Posto Taunay Lalima (Ponta Porá/MT) (Aquidauana/MT) (Mianda/MT) Benjamin Constant Buriti São João do Aquidavão (União/MT) (Aquidauana/MT) (Miranda /MT) Presidente Alves de Cachoeirinha Barros (Miranda/MT) (Miranda/MT) Os dados permitem ver que as tarefas da política indigenista no sul de Mato Grosso eram diferentes do Norte, já que na IR-6 (Norte de Mato Grosso), eram 6 os PI´s de “atração” (num total de 11), enquanto que no sul não existia nenhum destes, e cinco postos de “nacionalização”,dos quais a maioria eram de índios Terena. Isto significa que neste período, o regime tutelar e a política indigenista foram veículos do processo de nacionalização, de construção e imposição de uma identidade nacional aos povos indígenas. É preciso observar que devido a própria idéia estruturante do regime tutelar, os povos indígenas se diferenciavam em categorias: para o SPI existiam diferentes categorias de povos em diferentes situações de contato interétnico e grau de civilização, o que significava que o regime tutelar não incidia e se materializava da mesma maneira para todos os povos indígenas. Para alguns povos indígenas, a política seria de “atração”, para outros seria de “nacionalização”. Isto significava que simultaneamente ao impulso de preservar e garantir uma “aculturação paulatina”, se tentava acelerar o processo de incorporação dos índios à Nação, como trabalhadores rurais. O regime tutelar para os Terena deste período, assumiu uma função fundamentalmente cultural-ideológica, através da política de resgate da “cultura tradicional” aplicada pelo SPI nos anos 1940-1950. A tutela se confundiu com a pedagogia da nacionalização, e os conteúdos político e econômicos desta (subordinação e centralização das lideranças indígenas ao encarregado de posto) complementavam o processo. Assim, entre as décadas de 1940 e 1950, as aldeias Terena (ou parte delas) estavam vivenciando um momento especial; o Estado-Nacional, através do SPI, aplicava uma política que ao mesmo tempo incentiva a mudança e a preservação da cultura e identidade indígena. Seria nesta 69 De acordo comum plano de acordo de reorganização do SPI (ver Lima, 1995). 146 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. situação histórica que os etnólogos da Escola de Sociologia e Política e do SPI encontrariam os índios do Sul de Mato Grosso, em especial os Terena. As monografias clássicas sobre o grupo são produzidos neste ambiente intelectual e institucional. O antropólogo Altenfelder Silva registra assim a ação do SPI junto aos Terena de Bananal70 : “Por iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios foi restabelecida a “festa dos padres”, o Oheokoti, celebrada agora no dia 19 de abril, Dia do Índio, juntamente com outras cerimônias cívicas brasílico-indígenas, tais como o hasteamento do Pavilhão Brasileiro, ao som do Hino Nacional entoado pelos índios, e a realização de danças Terena, agora reavivadas. (Altenfelder Silva, 1949, p. 359). O Posto Indígena, a Escola, juntamente com as Missões Religiosas, seriam assim os pilares do processo de nacionalização (sinônimo de aculturação e assimilação, indicando o destino destes últimos) dos índios – concebido pelo SPI como a mudança de sua cultura, de seu modo de trabalho e vida. Estas três instituições realizavam e materializavam toda a política e objetivos almejados pelo Estado-Nacional; transformação global das sociedades indígenas em trabalhadores nacionais, em brasileiros. Elas combinavam as funções político-econômicas (o Posto e o Encarregado, que “encarnavam” diretamente perante os índios o regime tutelar), e também cultural- ideológicas (a Escola e a Missão, que reproduziriam saberes/códigos culturais específicos), tal como as narrativas acerca da nacionalidade e a cosmologia cristã. O Posto, a Escola e a Missão não somente portavam e reproduziam as idéias e representações culturais- ideológicas fundantes do regime tutelar, (tais como a distinção “índio selvagem”índio manso”, ou índio aculturado, numa linguagem atualizada pelas narrativas sociológico-etnográficas), mas operacionalizavam e davam materialidade para esta mesma relação, assim como seus conteúdos específicos, marcados por formas de dominação, e rebaixamento dos índios perante os poderes de Estado, assim como de seus status na sociedade. Estas instituições são, por assim dizer, a própria relação tutelar tal como ela se manifestava perante os índios Terena. Paralelamente a este processo de nacionalização, se deram outras transformações, decorrentes da própria situação histórica e condição de classe dos índios Terena. Isto quer dizer que a situação histórica de reserva, para os índios, seria marcada por algumas contradições que desencadeariam processos sociais. A pesquisas realizadas por Roberto Cardoso de Oliveira nos anos 1950 iriam se deparar com tal situação, e cha mar a atenção para as contradições e processos que se chocavam diretamente com a expectativa do SPI de concentrar toda a população indígena dentro de reservas economicamente auto-sustentáveis e relativamente fechadas à “sociedade nacional”. Neste período as pesquisas antropológicas realizadas por universidades e pela seção de estudos do SPI, indicariam com clareza como os Terena se destacavam como parte de um 70 Éinteressante ver que apesar de tais ritos serem sistematicamente registrados desde os anos 1920, fala-se aqui em “reavivamento”. 147 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. campesinato pobre71 , tendo em razão de sua situação de classe, de desenvolver novas estratégias enquanto grupo étnico. Assim, a migração para o trabalho (labor migration), principalmente para a cidade de Campo Grande, principal núcleo econômico do sul de Mato Grosso (depois da construção das estradas de ferro, especialmente a Noroestes do Brasil), ou a “urbanização” dos índios deve ser vista como conseqüência da situação histórica de reserva, que redefiniu a relação grupo étnico/território, mas também da própria organização social e estratégia indígena, já que muitas das famílias que saiam das aldeias, alegavam ter feito isso em razão dos conflitos político-religiosos (Cardoso de Oliveira, 1968,p.129). O caráter camponês, ou de campesinato étnico dos Terena, implicava necessariamente uma articulação orgânica campo-cidade, e se o processo de industrialização e urbanização brasileiras naquele período já começavam a afetar o conjunto do campesinato, não poderia deixar de afetar também o próprio campesinato étnico. Assim, apesar de em meados dos anos 1950 uma parte significativa da população Terena se encontrar aldeada, um número significativo se encontrava ainda em localizadas em fazendas e outro em cidades – ou os núcleos urbanos de maior importância econômica – sendo que já existiam grupos domésticos de segunda geração, o que prova que a migração era relativamente antiga. O quadro abaixo permite ver a situação global dos Terena em meados dos anos 1950: Quadro 30- PI´s Terena – 1954 – As Diferentes localizações sociais dos Terena. População População População nas Cidades Nos PI´s em Fazendas (grupos familiares) Cachoeirinha 834 Do Negrão 4 Piqui 3 Campo 88 Grande Bananal 1060 Conceição 2 Anhuma 2 Aquidauana 330 Ipegue72 Lalima 256 Alvorada 3 Vargem 6 Alegre Capitão 202 Taboca 6 Bonito 15 Vitorino Moreira 130 Ambrosio 3 Chácara do 1 Salim Passarinho 109 Mongolinho 1 Chácara do 1 Frutuoso Buriti 483 S Pedro 1 Granja Chico 1 Antonio Limão Verde 246 Total (indivíduos) 3320 Leonel Correia 2 Leblon 7 36473 418 Elaborado a partir dos dados de Roberto Cardoso de Oliveira, 1976. 71 Cardoso de Oliveira relembra que nos anos 1970 “ ...os Terena sempre puderam ser referidos como “índios camponeses” na medida em que eu conseguia recuperar minha etnografia como fonte de dados para meus alunos que fossem ilustrativos da condição camponesa no Brasil indígena.” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 94) 72 Estes dados são estimativas criadas por Cardoso de Oliveira, a partir dos dados de Altenfelder Silva, ou seja, não se baseiam em dados diretos. 73 Estimativa obtida pela multiplicação do total de famílias pelo numero de membros médio encontrado por RCO entre os Terena no período. 148 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. A localização social-geográfica dos Terena neste período mostra que um número pouco superior a 20% da população aldeada vivia fora das reservas indígenas do SPI, ou seja, do controle direto exercido pelo SPI. Um contingente que não deixa de ser expressivo. Note-se que apesar disso, encontravam-se ainda redes sociais que articulavam os grupos domésticos através de processos de interação e comunicação, baseados em relação de parentesco e vizinhança74. A diferenciação da localização dos grupos domésticos Terena (reserva-fazenda-cidade), implicava também uma diferença de situação econômico-ocupacional: existiam assim dentro das reservas, o camponês; o camponês-proletário rural (que reveza as atividades de subsistência com o trabalho assalariado); dentro das fazendas, o índios seriam o proletário rural (vaqueiro, capataz) ou camponês sem- terra (agregado); nas cidades, diversas ocupações, desde o funcionalismo publico até inúmeros ofícios manuais (ver Cardoso de Oliveira, 1968). Assim o regime tutelar, constituído e estabilizado na situação de reserva, foi abalado por duas outras forças societárias: 1) as contradições engendradas pela situação econômico-social da reserva (migração para o trabalho, conflitos político-religiosos); 2) as estratégias e política de resistência dos próprios grupos indígenas (oposição local ao SPI, apropriação de saberes e recursos materiais simbólicos para uso do grupo). O diário de campo da pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira, então etnógrafo da seção de estudos do SPI oferece uma visão interessante sobre a construção do regime tutelar, de sua dimensão molecular e extensiva. É sobre sua etnografia que elaboraremos um quadro do regime tutelar na situação de reserva, de suas características de operação e contradições que levaram a seu processo de crise e transformação. As nove reservas indígenas Terena existentes em meados dos anos 1950, diferentemente das comunidades- locais de fazendas e cidades, tinham uma estrutura: o Encarregado de Posto, representante local do SPI.era responsável pela administração política da aldeia, para a qual indicava um Capitão e organizava uma polícia, que ficava sob as ordens de ambos. O Encarregado do Posto possuía um poder amplo, pois em sua mão se concentrava a gestão do patrimônio indígena (moinhos,ferramentas e a terra), determinando amplamente a forma da produção; também o poder político, já que ele a mando da Inspetoria Regional, indicava o Capitão e a Polícia das aldeias, assim como concedia “salvos-condutos” para entrada e saída de índios da reserva, e regulava por outro lado a entrada de não- índios. Com relação a extensão do poder do Encarregado de Posto (que obviamente se sustentava sobre o poder da IR do SPI), e sobre o próprio contexto da política indigenista que marcava o regime tutelar (Estado/Indios Terena), Cardoso de Oliveira tece algumas observações fundamentais, de sua ação enquanto funcionário do SPI: 74 Cardoso de Oliveira observa isso com relação aos procedimentos adotados para sua pes quisa, quando conseguiu localizar quase todos os índios em fazendas e cidades através de índios que moravam nas aldeias (Cardoso de Oliveira, 1968). 149 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. “Recordo-me que cabia a nós (a Darcy e a mim) dar a autorização para a entrada de missionários nas áreas indígenas. O dossiê de cada missão era analisado, ouvia-se o encarregado de posto e só então os missionários eram nominalmente autorizados (ou não) a exercer a catequese. Naquele tempo não se ouvia as lideranças tribais. O índio não era considerado um interlocutor: os indigenistas (dentre eles os antropólogos) falavam pelo índio. Esse era o horizonte ideológico do indigenismo, não somente brasileiro, mas também latinoamericano”. (Margem: Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115). Aqui temos um elemento fundamental da caracterização do regime tutelar na situação histórica de reserva: a tutela era marcada por uma forte exclusão, por uma lógica “substituísta”; o indigenista, representante do poder e das instituições do Estado-Nacional, por uma metaforização política se tornava representante do índio; agia e falava em nome dele. O ato da substituição do índio pelo indigenista era a essência da própria relação tutelar (já que a idéia de tutela supunha a incapacidade do índio em se representar). Assim, a estrutura institucional do SPI se pautava nesta relação ao mesmo tempo de exclusão, substituição e rebaixamento do índio. Isto é o regime tutelar. Este poder se exercia assim quase sempre pela exclusão. Desta maneira, no ano de 1955, Cardoso de Oliveira registra uma decisão do SPI que exemplifica bem esses procedimentos de exclusão: “Nestas eleições Tomásio foi um dos poucos índios a repudiar a ordem da IR-5 de não votar no pleito de 3 de outubro que, segundo a inspetoria, era em obediência a uma outra da diretoria do Rio de Janeiro. Contou-me Tomásio que enquanto os seus patrícios, entre decepcionados e revoltados, devolviam o titulo de leitor aos funcionários do SPI, ele e seu amigo Simão recusaram-se a fazê-lo. Ficaram com seus títulos e votaram. Bem. Isso me pareceu uma demonstração de que algo estava mudando (...) Seria uma visão moderna do Terena, voltada para o exercício de uma autonomia mínima que a política indigenista vigente procurava cercear?.(...) Procurei aprofundar-me sobre essa recente história das eleições a partir de Cachoeirinha. Segundo Tomásio três partidos políticos procuraram a aldeia para angariar eleitores: a UDN, o PSD e o PTB. Esses partidos atuaram com intensidade variável no proselitismo político junto aos índios. (...) A UDN prometeu conduzir por meio de automóvel a família do encarregado até Miranda e, para os índios, ofereceu um caminhão como meio de transporte; o mesmo caminhão que trouxe o seu candidato, Nelson Ferreira Candido, por duas vezes, a Cachoeirinha para persuadir o encarregado e os índios – esses por intermédio do Capitão Timóteo – a votar no candidato do partido. (...) (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115). Este exemplo é importante por duas razões:1) mostra claramente como a política do regime tutelar, era uma política proibitória, de exclusão. O SPI dizia o que o índio poderia ou não fazer, como no caso, se ele poderia ou não votar; 2) mostra também o esforço dos Terena de tentarem burlar esta imposição, estabelecendo relações com outros atores sociais – no caso partidos e lideranças políticas. Este é um processo que seria muito característico da posterior critica indígena do regime tutelar. O regime tutelar se configura na prática por mecanismos que possibilitam, através de procedimentos político-administrativos, a substituição do índio; o controle de suas ações. Mas além disso, significa também uma codificação precisa, que transforma a alteridade étnico-cultural em 150 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. subalternidade político-social, muitas vezes com conotações racialistas. O regime tutelar, mesmo frente aos índios com maior status dentro das comunidades locais, se apresentava, além do mais, como forma de rebaixamento dos índios. É isto que Roberto Cardoso percebe, ao testemunhar a relação entre Encarregado de Posto e o Capitão na aldeia Capitão Vitorino, no município de Nioaque: “E nesse sentido não posso deixar de fazer um comentário sobre o relacionamento que observei entre Enoch e o capitão Francisco Vitorino da Silva; apesar de ser amigável, não deixa de ser autoritário, próprio de um empregador com seu empregado. É certo que Vitorino é praticamente um capataz do SPI (ainda que esteja há anos a espera de sua nomeação...)mas ,ao mesmo tempo, não deixa de ser um capitão dos Terena da reserva; e é por isso que me surpreendo quando ouço as ordens de Enoch; “arrume meu cavalo”...”vá lá a Nioaque me comprar isso ou aquilo”....”arme minha rede na varanda”..e por aí vai... E não é só por sua posição virtual na hierarquia de funcionários do SPI. É também pelo fato de ser índio..”. (Cardoso de Oliveira, 2002, p.105) Esta é uma observação fundamental; associado aos poderes do Encarregado – um funcionário subalterno na hierarquia do SPI, mas com status superior ao do “Capitão Indígena” - de gestão dos bens, de controle político, se encontrava fundamentalmente esta codificação molecular das relações de poder, um dito relativamente não-dito, de que em qualquer circunstância, mesmo um líder indígena está colocado sob o comando do funcionário subalterno do SPI. Esta relação diádica, de pessoa-pessoa, poderia ser vista como uma metáfora dos papéis do “índio e do branco”, da própria relação Estado/Índio. O Capitão Terena era assim visto e tratado pelo Encarregado do SPI como um empregado. A analogia utilizada por Cardoso de Oliveira (capitão/encarregado com empregador/empregado) ilustra bem o conteúdo prático e concreto do regime tutelar, tal como constituído e consolidado na situação histórica de reserva. A dominação política estatal constituída através do regime tutelar, e exercida pelo SPI por meio do complexo Encarregado/Posto/Inspetoria/Diretoria, manteve como dimensão fundamental a gestão do patrimônio e a administração da renda indígena dentro do contexto das reservas, o que recebeu grande ênfase no período 1950-1960 (Lima, 1995). Vimos que nos anos 1920 a administração da terra e bens indígenas era uma questão estratégica, estando na base dos conflitos e revolta indígena de Bananal. Cardoso de Oliveira observou com propriedade nas diversas reservas indígena, que o papel econômico do Posto Indígena tinha muito pouco a ver com a economia comunitária indígena, de maneira que: “Nas aldeias em que o SPI está localizado, a impressão que se tem é de que muito pouco se cuida da economia comunitária, i.é,dos próprios índios, preterindo-a favor do que chamaremos de economia do posto. (...) A verdade é que existe uma preocupação muito grande sobre a produção do Posto, i.é, daquela decorrente do trabalho financiado pelo SPI, seja no que se refere as roças, ao tratamento do gado ou a extração de madeira ou casca de angico. Este trabalho é normalmente realizado pelos próprios índios, especialmente pagos para isso (...) Explicam os Encarregados que essa produção é revertida em melhoramentos para o Posto e para a Aldeia (...) Poucas são as famílias que se beneficiam da produção do Posto, seja 151 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. recebendo sementes em quantidades apreciáveis, seja contando com reprodutores de boa raça para melhorar seu lote de reses. (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 95). Poderíamos pensar aqui que a “economia do posto” se configura como uma esfera econômica (ver Barth), que tangencia a esfera da economia comunitária indígena, mas que não se confundia com ela, tendo objetivos e lógica relativamente próprias: uma lógica produtivista voltada para o atendimentos dos interesses das instituições de Estado e/ou seus funcionários em cada ocasião. Esta dimensão econômica da ação do SPI é fundamental pra compreender o regime tutelar, a política indigenista e apolítica indígena em seu conjunto. O regime tutelar desta maneira era composta por três elementos fundamentais: 1) o substituísmo autoritário (o índio pelo indigenista); 2) o controle proibitório, quer dizer, a tutela, exercida pelo SPI, era para o índio fundamentalmente um “não poder” (não ser autorizado a fazer); 3) o rebaixamento do índio, frente a categoria e status genérica de “branco ou civilizado”, especialmente aos representantes do Estado-Nacional. Estes elementos, combinados ainda com as tarefas de gestão política e econômica exercidas pelo SPI, fazem do regime tutelar para os Terena nesta situação histórica, uma relação especialmente marcada pela desigualdade. Nas outras situações históricas, a tutela orfanológica não tinha chegado afetar significativamente nem sua economia, nem sua política (primeira fase da situação de diretório, entre 1800-1850); antes disso, no Chaco, por mais que fossem tensas as relações Guaicurú-Guaná, estes últimos mantinham, sua autonomia política; depois, já em meados do século XIX , mesmo perdendo suas terras e capacidade econômica, os Terena conseguiram manter uma organização política relativamente autônoma. Agora, na situação histórica de reserva, pela primeira vez os Terena enquanto grupo, e seus lideres (os naati) enquanto segmento, se encontravam numa relação em que sua organização política sofria uma intervenção direta e sistemática de atores/instituições externos ao grupo. Mas esta situação não se estabilizaria desta maneira. Como vimos, desde os anos 1920, micro-revoltas movidas pelos Terena foram desencadeadas; a de Bananal, estudada por nós, chegou a precipitar uma experiência de “emancipação indígena”, que se encerrou com uma revolta armada em 1934 e com a repressão do exército. Nos anos 1950/60, tal situação de oposição e critica subreptícias ao SPI e relação tutelar continuavam, mesmo que não se estabelecesse uma revolta aberta. Durante uma festa de santo, realizada em Cachoeirinha em 1955, Roberto Cardoso acompanhado do então capitão Timóteo e do Encarregado Lulu, registrou o seguinte acontecimento: “Enquanto escrevo estas linhas ouço de Lulu (encarregado) um comentário sobre o discurso que o capitão Timóteo fez na abertura dos festejos da Santa, ocasião em que não deixou de me apresentar mais uma vez a comunidade. Enquanto discursava, alguém dentre os presentes teria falado em voz baixa, mas não tão baixa para que duas irmãs do capitão não deixassem de ouvir, que os Terena não precisavam nem do encarregado, nem do doutor. Sabedor disso, logo após o ocorrido, o capitão ficou indignado e quis punir o autor dessas impertinentes palavras que, afinal, iam contra sua própria autoridade. A intermediação de Lulu, porém, foi 152 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. providencial em convencer o capitão a não recorrer a polícia indígena para punir o pobre infrator”. (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 81) Este registro etnográfico mostra que, também de forma molecular, através da manipulação de fofoca e discursos, se construía entre os Terena formas cotidianas de resistência ao regime tutelar. Assim como antes havíamos visto a insatisfação com as decisões do SPI no que tangem a participação dos índios na política municipal. Numa festa/ritual, em que o capitão e membros de sua rede de parentesco estavam presentes, manifestam-se oposições e hostilidade aos representantes do SPI. O então capitão tenta utilizar os mecanismos disponibilizados pela própria estrutura institucional: a polícia ind ígena. A repressão direta só não se realiza, em razão da intervenção do Encarregado. A mecânica presente, de acionamento dos índios para a defesa do regime tutelar e seus representantes, encenada nesta situação social, dá indícios importantes dos fundamentos internos pelos quais a dominação do Estado se constitui, e sem os qua is dificilmente conseguiria operar satisfatoriamente 75. Observando os desdobramentos históricos podemos perceber que uma crise de gestão política das reservas Terena se instala no final dos anos 1950, de maneira que a figura do capitão passa a ser ao mesmo tempo questionada, e o posto de Capitão disputado, de maneira que as indicações dos Encarregados muitas vezes não eram aceitas pelas comunidades-locais das diferentes aldeias e reservas indígenas. Roberto Cardoso de Oliveira, enquanto etnógrafo e funcionário do SPI, visitou todas a reservas indígenas Terena do sul de Mato Grosso, e dá um relato revelador: “O esvaziamento da autoridade tribal,como fato corrente em todas as Reservas Terena, teria de deslocar a tônica política (...) A nova conjuntura, desmoralizando a chefia tribal, facultava ao Encarregado inclusive não reconhecê-lo, como soem ser atualmente as situações de Cachoeirinha, Francisco Horta, Lalima e caminhando para isso, Buriti. A primeira não tem capitão, mas a luta pelo poder está acesa, envolvendo algumas das personalidades indígenas mais influentes da comunidade (...) Em Francisco Horta, Reserva Multi-tribal, os Kayowa -Guarani e os Terena possuíam até 1958, aproximadamente, um capitão para cada comunidade tribal (...) Nesse ano, devido a dificuldades administrativas internas, Encarregado do Posto decidiu fosse eleito apenas um capitão. Realizada a eleição, a vitória de um (infelizmente não conseguimos saber qual o vencedor, informados que fomos desses fato quando estávamos em Buriti) teria naturalmente de levar a um desequilíbrio na política interna da Reserva (...) O Candidato e ex-capitão perdedor foi ao que parece, amparado pela opinião publica citadina, cujo jornal empreendeu uma campanha contra o Encarregado do Posto,levando-o a licenciar-se até as coisas se acertarem (...) Na prática , Francisco Horta ficou sem Capitão, porquanto o seu Encarregado, pressionado pela campanha, acabou por não reconhecer o resultado da eleição. Entretanto esses acontecimentos não iriam servir de exemplo ao mencionado Encarregado de Buriti, que tencionava fazer igual eleição em sua Reserva, explicando que assim o desejava porque três capitães eram demais para uma população tão reduzida. (...) Tramava-se em 1958, a liquidação dessa chefia tríplice, com a centralização da autoridade numa só pessoa (ao que parece, no Capitão Figueiredo, do núcleo mais antigo) capaz de ser melhor manipulada pelo 75 A polícia indígena era um dispositivo fundamental da ação do SPI. Roberto Cardoso tem um relatório criticando este uso da policia indígena, e recomendando sua extinção. 153 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. verdadeiro poder na Reserva,o Encarregado de Posto”. (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110112). Os dados do autor citado acima indicam que no final dos anos 1950, sistematicamente se verificavam conflitos políticos dentro das Reservas Terena, no que tange a escolha das lideranças políticas indígenas. Ao mesmo tempo existia a política do SPI de impor os líderes e uma resistência das comunidades indígenas em aceitar tal indicação; ou ainda, mediante a existência de uma pluralidade de lideranças indígenas, o esforço do SPI se dava no sentido de centralizar o poder em uma única liderança. Assim, em quase todas as reservas existia um problema político fundamental; como escolher as lideranças indígenas e fazer tal escolha ser aceita pelas comunidades- locais? As “eleições” para cacique surgem assim como uma fórmula encontrada pelo SPI para dar legitimidade ao poder de indicação do Chefe de Posto. Logo, o regime tutelar passava por uma crise do exercício da autoridade política no plano local, passava por mais uma crise, decorrente do choque da política de centralização estatista do SPI e controle com a cultura/organização social indígena e seus interesses políticos. Antes da adoção deste sistema eleitoral foi estabelecido um outro sistema: o do conselho tribal, composto pelos homens mais idosos. Este sistema foi adotado antes das eleições, também como forma de legitimar as indicações de capitães pelo SPI. As informações de Cardoso de Oliveira remetem aproximadamente aos meados dos anos 1920, acerca de Cachoeirinha, quando da sucessão do “Capitão Vitorino”: “Nessa intervenção, o SPI parece haver tentado interpretar o processo sucessório tendo por base informações fragmentárias e discutíveis sobre a cultura tribal. Criou-se assim o Conselho de Aldeia, composto pelos anciões e seus mais antigos moradores, incumbido de escolher ou eleger o sucessor do Capitão Vitorino. (...) Contudo, não é sempre que esse conselho subsiste, depois de criado. Em Cachoeirinha – como nas demais aldeias Terena onde ele chegou a ser instituído –sua duração foi fugaz. Com a morte do capitão Timóteo, ocorrida em 1958, a comunidade de Cachoeirinha não conseguiu chegar a um acordo sobre a sucessão. Os remanescentes do Conselho que haviam elegido o falecido Timóteo para Capitão (seis indivíduos, dos dez que o compunham)não foram sequer convidados pelo Encarregado do Posto para reunidos deliberarem sobre a sucessão. Em 1960 iríamos assim, encontrar a comunidade em plena crise da autoridade tribal; e pudemos surpreender, então, uma luta surda em seu interior, voltada para reinstaurar, ao menos simbolicamente, o poder tribal. (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110-112). Assim, ao final da década de 1920 em Cachoeirinha teria se implantado o “Conselho”, composto pelos homens mais velhos das aldeias (experiência estendida a outras reservas e aplicada em outros grupos indígenas), ao mesmo tempo em que em Bananal, se teria tentado a “emancipação indígena”. O Capitão indicado pelo Conselho teria sido o Timóteo (que pelos nossos cálculos, ficou no cargo cerca de 30 anos, até 1958). Mas com a morte deste, teria se instaurado uma luta política dentro de Cachoeirinha. O que é fundamental a apreender é que a função de “capitão” era marcada por uma instabilidade, gerada pelos conflitos políticos internos na aldeia e pela relação com o SPI; mas 154 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. também função de Encarregado de Posto dependia em grande parte da estabilidade do capitão, o que faz com que existisse uma relação de inter-dependência entre Encarregado-Capitão na distribuição do poder local dentro das reservas. Existia uma instabilidade recíproca nas relações e posições do Encarregado-Capitão. O caso da aldeia Bananal é exemplar da dificuldade em se impor a centralização política. O processo de construção e consolidação do regime tutelar, dentro da “situação histórica de reserva”, foi marcado pelo esforço do SPI em impor uma organização política centralizada e unitária (com um único capitão para cada reserva), se valendo para isso primeiramente do “Conselho” e depois das “Eleições”; ambos os sistemas passando por fases de aceitação e oposição dos índios Terena. Mas nos anos 1950/60, todas as reservas indígenas encontravam conflitos e lutas pelo controle do poder e da função de capitão. O período que se segue, entre 1950 e 1969, foi marcado por uma dupla crise do regime tutelar: 1) uma “crise local”, motivada mais uma vez por uma política de resistência cotidiana desencadeadas pelos Terena, que provocariam uma alteração na forma pela qual o SPI impunha a liderança centralizada em cada comunidade- local ou reserva indígena e nos processos concretos de escolha dos capitães; 2) uma “crise global” do indigenismo brasileiro que se sobreporia anterior, iniciada com as denúncias (de corrupção, genocídio contra o SPI), e que culminaram com a extinção do órgão em 1967 e a implantação da FUNAI em 1969. Notemos que, antes da crise global do indigenismo e do regime tutelar e seu questionamento por diferentes setores da sociedade, já haviam oposições locais, desencadeadas de forma descentralizada e não planejada, mas freqüentes, dos índios Terena a esta relação. Podemos indicar aqui que no processo de constituição das reservas, a tentativa “emancipação indígena” em Bananal, é o produto das formas cotidianas de resistência implementadas pelos Terena e que culminaram inclusive em formas de resistência aberta (como a revolta armada). As diferentes técnicas de resistência, como recusa e boicote ao trabalho, desobediência, fofocas usadas como contra- informação, eram utilizadas como formas de oposição ao regime tutelar. 3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990). A partir dos anos 1970, certas mudanças sociais de caráter geral provocariam rearranjos importantes no campo e nas arenas das relações interétnicas do Mato Grosso do Sul, e conseqüentemente em Cachoeirinha. No plano internacional, no final dos anos 1960, denúncias de etnocídio contra os governos latino-americanos começaram a ser publicizadas. A principio, as pressões vinham de setores da sociedade civil e do campo acadêmico. Desse movimento inicial 155 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. resultou a realização em janeiro de 1971, de um simpósio, da qual foi produzida a carta conhecida como “Declaração de Barbados”. O documento aponta a necessidade do pleno reconhecimento da capacidade política indígena e faz uma denúncia da ação dos governos e das missões religiosas (Batalla, 1979, p.10). Esse e outros movimentos levaram a redefinição de políticas das Igrejas Católica e Protestantes bem como de outros atores sociais. Paralelamente a esse processo, entre 1971 e 1977 o número e a variedade das organizações indígenas ou étnicas cresceu consideravelmente na América Latina, exemplos são o Conselho Nacional de Povos Indígena dos México e o CRIC (Conselho Regional Indígena de Cauca) da Colômbia. Nas pautas e estratégias de luta estavam presentes questões como a recuperação de terras, reconhecimento dos direitos indígenas, defesa da história, língua e costumes indígenas (Batalla, 1979, p.24 e Morales, 1979, p. 46). No Brasil um processo similar se desenvolve, a partir da critica a política indigenista do Estado brasileiro que alguns efeitos importantes como a formação do Conselho Indigenista Missionário/CIMI (1972) e a redefinição da ação missionária católica frente aos povos indígenas, que levaria a posterior política de realização de assembléias indígenas como forma de mobilização; a criação de organizações não governamentais e grupos de apoio diversos (como as Comissões PróÍndio). A conseqüência desses processos é que surgiria e se ampliaria também uma critica política do regime tutelar da parte de diversos atores sociais, levando a entrada no campo e nas arenas interétnicas de novas possibilidades de relações políticas, de novos objetos de conflito e novas formas de discurso e ação simbólica. Nesse sentido, algumas alterações importantes se passam no período de 20 anos entre 1970 e 1990, que condicionariam em parte o desenvolvimento do protagonismo étnico, e a consolidação de um novo padrão no campo de relações interétnicas. É preciso levar em consideração também o contexto brasileiro de luta contra a ditadura militar que desembocou no processo de democratização da sociedade brasileira, a formação dos movimentos sociais e do movimento sindical no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. A redemocratização levaria a transformações importantes dentro do aparelho de Estado e também entre os atores sociais. Na realidade, a construção do ativismo político indígena e o fenômeno do protagonismo étnico se desenvolvem em relação a essa dinâmica política nos demais atores e emergência de movimentos sociais, que se combinam também com mudanças nos aparelhos de Estado Essas mudanças, associadas às transformações localizadas nas sociedades indígenas (demografia, territorialização), fortaleceriam as oposições ao regime tutelar, internas e externas as sociedades indígenas. O processo de redemocratização da sociedade brasileira, levaria por sua vez a mudanças institucionais nos aparelhos do Estado-Nacional. As diretrizes da política indigenista, e a 156 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. ação dos novos atores sociais (ONG`s, CIMI, Comissões, Movimentos Sociais) tomariam o debate acerca dos direitos indígenas, especialmente os territoriais, como centrais, já que o problema da defesa das sociedades indígenas caminhava passo a passo com a defesa dos seus territórios. Assim os processos de territorialização em reservas e a situação histórica associada a ela, passou a ser caracterizado por uma permanente luta pela efetividade das demarcações em curso naquele momento (1970/80) e pela revisão das antigas demarcações (feitas pelo SPI) de acordo com as necessidades dos índios e suas reivindicações. Logo, além da antiga ação estatal e missionária, multiplicaram as organizações civis atuantes juntos aos indígenas. Também outros organismos estatais, como o Ministério Público depois da promulgação da constituição de 1988, que passou a intervir diretamente nas relações entre índios e sociedade. O problema da demarcação de terras foi reativado ou readquiriu sua visibilidade, na seqüência de uma política de colonialismo interno e expansão da fronteira Agrícola em direção a Amazônia nos anos 1970. As condições sociais e políticas modificaram-se profundamente nesse período, de maneira que aquelas características da situação de reserva foram alteradas apesar do padrão de territorialização de ser mantido. A política de oposição ao regime tutelar ganhou cada vez mais força dentro e fora das sociedades indígenas, e nesse sentido nesse momento histórico (1970-1990), configuram-se novas relações no campo e arenas interétnicas. Entram novos atores em interação estratégica com os índios, complexificando as relações econômicas e políticas, e também os discursos simbólicos que mediavam essas relações. Mais uma vez diferentes atores sociais e institucionais entram em cena, possibilitando os processos de territorialização do final da década de 1990 no Mato Grosso do Sul (analisados no capitulo 2). A atual configuração do campo e das arenas de relações de Cachoeirinha é o produto desse processo histórico, bem como os conflitos e questões colocadas. Como vimos o campo é constituído por um conjunto de atores inter-relacionados por conflitos, decorrentes da disputa política por recursos de poder, materiais e simbólicos, e também por diferentes relações de cooperação e conflito. A partir dos anos 1980 então a nova configuração do campo de atores sociais e institucionais, levaria a entrada em cena de três novos conjuntos de atores sociais: 1) as organizações indígenas; 2) as organizações da sociedade (no caso do Mato Grosso do Sul, especialmente do CIMI e do CTI); 3) o Ministério Público. A figura abaixo apresenta uma representação do campo e arenas de relações de Cachoeirinha no período 2001-2006. 157 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Indígenas de Miranda e suas organizações Organizações Sociais (especialmente o CTI e o CIMI) Missões/Igrejas (Católicas e Protestantes) Grupos Sociais Locais (produtores rurais, comerciantes., trabalhadores rurais, sindicato rural e etc) Instituições estatais (PI/FUNAI, Prefeitura. Câmara de Vereadores etc) A.E.R/FUNAI, Assembléia Legislativa Estadual, Governo Estadual e demais instituições estatais Demais Comunidades Locais Terena e outras Etnias Indígenas (Guarani, Kadiweu, etc) Ministério Público Federal Produtores Rurais do estado, comerciantes e suas organizações como (a FAMASUL) Figura 2- Campo e Arenas de Cachoeirinha. Para além do conjunto de atores, que estão em relação direta com os Terena de Cachoeirinha, existem outros atores que mantém relações indiretas com este campo social, seja através de relações com alguns dos atores que integram o campo, seja por terem interesses ligados aos elementos que são objetos de competição e conflito dentro dele. O campo (pelo menos entre 2001/2006, período da nossa pesquisa) era composto pelas comunidades indígenas de Miranda e suas organizações; pelas organizações sociais, como o CIMI e o CTI (Centro de Trabalho Indigenista), que tem uma atuação importante junto aos índios; pelo PI da FUNAI e demais instituições estatais locais (Prefeitura, Câmara de Vereadores e etc), pelas Missões/Igrejas e pelo conjunto da população e grupos sociais locais (produtores rurais, comerciantes). 158 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. As arenas são compostas pela FUNAI (suas administrações executivas regionais), Assembléia Legislativa e Governo Estadual e outras instituições estatais, com destaque para o Ministério Público Federal; pelas demais comunidades indígenas Terena e de outras etnias e suas organizações; pelo conjunto dos produtores rurais do estado e suas organizações sindicais. Estes atores, organizações sociais, instituições estatais, grupos indígenas, possuem estrutura e formas de ação bem diversificada, já que na verdade operam em diferentes níveis. Estes atores, não envolvidos necessariamente nos conflitos do campo das relações interétnicas, estão relacionados a ele indiretamente, podendo apoiar certos grupos sociais e conjuntos de ação local, ou mesmo desenvolver uma intervenção situacional. As comunidades- locais Terena têm cada uma sua história particular. Existe um fluxo de interação entre as diversas comunidades, possibilitado tanto pelas relações étnicas e de parentesco, já que muitos Terena se mudam de uma área para outra, quanto pelas atividades econômicas e políticas da FUNAI quanto por atividades culturais. Os fóruns e organizações indígenas regionais também possibilitam uma articulação entre as diversas etnias, incentivadas também por organizações como CIMI. As etnias indígenas nas diversas regiões do estado, totalizando uma população de cerca de 50.000 pessoas, constituem sempre um virtual circuito de interação, mantendo conexões e comunicação com os conflitos locais. As Administrações Executivas da FUNAI são a base regional de execução da política indigenista de Estado, sendo integradas na estrutura federal do órgão. A FAMASUL como outras, é uma organização de classe do empresariado; é a federação regional dos sindicatos patronais, integrada na estrutura da CNA (Confederação Nacional da Agricultura). O Conselho Indigenista Missionário-MS é uma organização eclesiástica, subordinada ao CIMI/Nacional, que tem sua sede em Brasília, que por sua vez está ligada a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O CTI é uma organização não governamental criada por antropólogos e indigenistas em 1979, e que atua em diversas regiões do Brasil junto a diferentes povos indígenas. Além destas agências, que operam fundamentalmente no campo das relações interétnicas, existem ainda aquelas que atuam no plano do conflito fundiário em geral, como as organizações dos trabalhadores rurais e seus sindicatos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão federal, a Assembléia Legislativa do estado, e através dela os diversos partidos políticos existentes. O Ministério Público Federal se apresenta como organismo integrante do aparelho da União. Vemos assim que as agências que compõem a arena indicam a verticalização dos processos políticos; a distância hierárquica interna aos organismos (por exemplo, da Administração Regional da FUNAI para a sua Presidência em Brasília) corresponde a uma distância espaço-temporal do local concreto do conflito, revelando assim a articulação do nível local da política com a dinâmica 159 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. geral do país. A maior parte destas agências, no entanto, mantém somente relações indiretas com os atores componentes do campo das relações interétnicas. A noção de arena nos ajuda assim a ver a diferenciação interna das instituições e organizações políticas, determinando as diferentes instâncias que operam em cada caso, mas sem perder de vista a totalidade e a hierarquia na qual estas instâncias organizativas se integram. Existe uma dinâmica campo/arenas que é fundamental para o estudo tanto das relações interétnicas. As relações existentes dentro do campo não operam por si só, pois os próprios atores –inclusive os indígenas - são vinculados aos atores com ação trans- local que compõem as arenas, correspondendo a escalas de articulação regional e nacional. A intervenção dos atores que integram a arena de forma mais direta no campo depende de eventos e acontecimentos específicos. Mas os acontecimentos do campo se desenvolvem sempre em função da dinâmica campo-arena, sendo por isso necessário estar atento às escalas local, regional e nacional. Dentro deste campo e arenas existem alguns fatores estruturantes das relações de competição, cooperação e conflito entre os grupos étnicos e demais segmentos componentes do campo: 1º) recursos materiais, como dinheiro, postos de trabalho, e financiamentos, existentes no Mercado; 2º) posições políticas no aparelho de Estado (no legislativo e executivo) e cargos na administração pública (secretarias e organismos públicos); 3º) recursos públicos, como orçamento do Município, da FUNAI e investimentos do Governo Estadual; 4º) terras e recursos ambientais. As mudanças processadas na dinâmica campo-arena, também levou no final da década de 1990 ao agravamento do conflito fundiário indígena no Mato Grosso do Sul. Anteriormente, a negociação e os conflitos se davam prioritariamente por recursos materiais e espaços de representação política. Mas de 1998 em diante, o movimento de ocupação de terras desencadeado pelos Guaranis afetaria as demais comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul. No caso de Cachoeirinha, a realização dos trabalhos do GT da FUNAI responsável pelos estudos de revisão de terras em 1999-2001, são o marco do aprofundamento da importância de tal questão dentro daquela comunidade indígena. Assim, as questões que perpassam as relações e conflitos inerentes ao campo/arenas, remetem diretamente ao processo de colonização do sul de Mato Grosso e sua especificidade. O padrão de territorialização estabelecido pelo SPI e mantido pela FUNAI, a história indígena local, são fatores que perpassam as atuais relações e sem as quais não é possível compreender plenamente a atual situação histórica. As situações históricas descritas aqui permitiram a visualização do processo de transformação do balanceamento de forças entre índios, Estado e grupos sociais. A análise da cultura e organização social indígena é fundamental para compreender os processos verificados no campo. Os próximos capítulos serão dedicados à descrição do funcionamento da dinâmica campoarena na atual situação histórica, dos grupos domésticos e sua forma de organização, assim como suas estratégias de reprodução social e resistência contra as relações de dominação impostas pelos 160 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. Estados e outros grupos sociais, são fundamentais. Inicialmente faremos uma descrição das formas de organização social dentro da aldeia, bem como das tradições culturais ou de conhecimento, para depois analisar os processos políticos. 161 Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional. 1543-1775 Situação do Chaco 1776-1849 Situação de Diretoria – O Cerco 1850-1870 Situação de Diretoria – O Aniquilamento 1880-1904 Situação de “Cativeiro” 1905-1990 Situação de Reserva 1990-2006 Situação de “Retomada” Mudanças Sociais e Situações Históricas da Sociedade Terena. Existência de um território “livre” Redução do território indígena pela ocupação colonial através de fortes e presídios. Dissolução da aliança PaiaguáGuaicuru. Articulação e Absorção de unidades sociais indígenas (territórios e grupos) dentro do regime colonial Mudanças Estruturais somam-se às mudanças cíclicas e institucionais (os índios são encapsulados pelo Estado-Nacional). Guerra do Paraguai. Início da fragmentação território indígena e subordinação econômica através das fazendas. Extinção das aldeias e expropriação dos territórios indígenas pelas fazendas. Criação das Reservas Federais e reorganização das aldeias em parcelas dos antigos territórios. Criação de “acampamentos” Indígenas em fazendas, eclosão de conflitos fundiários. Desarticulçação relativa da aliança Guaicuru-Gauná. Consolidação das Aldeias controladas pelo Estado. Manutenção de autonomia política relativa pelos grupos indígenas dentro das aldeias. Aniquilamento das relações e autonomia política indígena. Os índios perdem o “status” de guardiões da fronteira em razão do fim das hostilidades com o Paraguai. Intervenção direta do SPI/FUNAI na organização política indígena através dos caciques e chefes de posto. Luta e oposição dos índios a estrutura centralizada da FUNAI no nível local e reprodução da sua autoridade no nível regional e nacional. Relações de Produção Indígenas (baseado na caçacoleta e relações de troca-guerra) articulado com as forças coloniais. Co-existência e articulação do modo de produção ameríndio com o modo de produção colonialescravista. Índios são empregados nos empreendimentos militares, comerciais e agrícolas. Co-existência e articulação das relações de produção indígenas com o modo de produção colonialescravista. Índios são empregados nos empreendimentos militares, comerciais e agrícolas Instauração de regime de repressão da força de trabalho com a escravidão indígena nas fazendas por meio de regime de barracão. Formação de reservas de mãode-obra barata para atendimento da demanda regional. Inserção dos índios na economia rural e urbana. Aumento dos fluxos migratórios para cidade e retorno de migrantes de outras gerações para as aldeias. Forças Coloniais ocupando a periferia do Sistema Indígena Forças Coloniais tornam-se centrais no Sistema Indígena Estabelecimento de a uma autoridade estatal controlando indiretamente os índios através dos chefes indígenas. Formação do Capital Monopolista e da Plantation Agroexportadora. Consolidação definitiva e fechamento da “fronteira” no sul de Mato Grosso. Ocupação e povoamento. Desenvolvimento de novas Plantations Agroexportadoras (especialmente soja) Hegemonia Mbayá-Guaicurú sobre os povos indígenas e sobre os europeus. Os Terena ocupam uma posição intermediária no Sistema Indígena. Declínio da Hegemonia político-militar Mbayá-Guaicurú e disputa de hegemonia entre portugueses e espanhóis. Acirramento da disputa pelo hegemonia e controle territorial da região entres brasileiros e paraguaios. Eliminação da ameaça externa e consolidação do Estado brasileiro em Mato Grosso. Estabelecimento de relações fragmentadas dos grupos locais Terena com o SPI/FUNAI. Novas alianças políticas entre os Terena e outras comunidades indígenas, além de movimentos sociais e ONG´S. Existência de um Sistema Social Indígena, baseado numa organização segmentar ou acéfala Mudanças Sociais de Tipo Cíclico ou Institucional. Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas. 162 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e tradições de conhecimento aldeãs. “... encontramos um Terena Evangélico vindo da aldeia União, também conhecida no local por Aldeinha. Ia para Miranda e estava apenas passando por Moreira. Conversamos rapidamente e ele contou que havia feito um curso de evangelho em Minas Gerais, durante três anos! Deduzi que era mais do que um simples ´crente´, mas alguém preparado para se tornar um pastor.Para alimentar um bom dialogo, disse-lhe que com toda sinceridade o que pensava sobre a divisão deles entre católicos e protestantes. Que eles, os Terena, não eram responsáveis por isso, mas a própria civilização, que os fez esquecer a religião indígena. Olhou-me um pouco perplexo como a perguntar se eu estaria falando sério... Percebi que ele estava irremediavelmente enredado no mundo dos crentes e religião talvez fosse um termo não muito apropriado para se referir a entidades tais como ´koixomuneti´, Hoipihapati (espíritos), ou aos gêmeos míticos Yurikoyuvakai e Taipuyukê. Estaria havendo entre nós um semantical gap? Muito provavelmente ...” Roberto Cardoso de Oliveira in Os Diários e suas Margens Os índios Terena foram inseridos pelo trabalho dos intelectuais produtores da literatura etnográfica e sociológica da primeira metade do século XX num esquema teórico determinado que os colocava sempre em processo de “aculturação/assimilação”, de “perda” (identitária, organizativa). Esta marca seria transformada pelos intercâmbios verificados entre o campo intelectual e a política indigenista, numa linguagem social pela qual os Terena seriam concebidos e percebidos, forma de desqualificação e estigmatização destes índios – que por serem imaginados como em “processo de aculturação e assimilação”, em certos casos passaram a ter sua própria condição indígena negada ou rebaixada em face da imagem do “índio” da consciência romântica 76 . Isto, de forma sub-reptícia, permanece até hoje 77 . Nunca é demais ressaltar o quanto a problemática da afirmação (ou negação) da identidade indígena, tem efeitos políticos importantes, principalmente no sentido da exclusão de grupos e indivíduos do acesso a direitos, sociais e territoriais 78 . 76 É o tipo de consciência que se estrutura em torno de estereótipos sobre o índio, normalmente “bom, criança grande”, associada a uma postura paternalista, que identifica o índio em termos culturais e tecnológicos com o passado colonial, de maneira que é este passado invocado sempre com a função de distanciar o índio do “presente sociológico”. 77 No estudo de Maria Elisa Ladeira, fica nítida a preocupação em contrapor este imaginário que cerca os índios Terena: “Esta epígrafe se justifica pela inversão do senso comum que aponta os Terena, via de regra, como um dos grupos indígenas mais “aculturados” do país, sendo freqüente a citação de que eles não são mais falantes da língua Terena.” (Ladeira, 2001, p.1) 78 A FUNAI em 1978 e 1981 levantou a problemática da necessidade da “emancipação indígena”, e para isso começou a tentar desenvolver “critérios de indianidade: “O presidente da FUNAI vem manifestando há longos meses uma inquietação persistente de saber afinal quem é e quem não é índio (...) Como a modificação anunciada permite resolver por decreto ´quem é e quem não é´, dando a FUNAI a iniciativa (...) trata-se, isto sim, segundo tudo indica, da tentativa de eliminar índios incômodos ...” (ver Cunha, 1986, p.109-110). Este artifício, pensado para ser empregado em larga escala pela FUNAI, foi empregado nos anos 1920 em Bananal pela IR-5, quando se levantava a suspeição sobre a “indianidade” de um índio Terena: “De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e civilizados que os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as mesmas quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase sempre é o autor, de todas as queixas que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento pelo Sr. Inspetor, como um individuo perigoso.” (filme 379; ft 1198). 163 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku O estudo da sociedade Terena, na etnografia brasileira clássica, então, foi marcada por dois posicionamentos: um tipo de antropologia cultural, preocupada em determinar e reconstruir a cultura e da sociedade Terena no passado colonial (nesta categoria se encontram os estudos de Kalervo Oberg e Altenfelder Silva); os outros estudos (de Roberto Cardoso de Oliveira) se enquadram num tipo antropologia social, em que a ênfase é dada não mais na cultura tradicional (apesar desta ser também abordada), mas nas relações entre a “sociedade indígena” e a “sociedade nacional”. Assim, temos duas abordagens com direções distintas mas com um traço comum, que é o de tratar a “cultura Terena”, tal como configurada na “situação histórica de reserva”, de maneira extremamente periférica79 . Estes estudos levam as marcas da teleologia da ordem, no sentido que vêem a mudança social e cultural como um distúrbio, contornado somente pela intervenção do Estado. Neste sentido, mesmo quando descritas as idéias e práticas culturais (ritos, mitos e festas indígenas) não se analisou o significado disso em termos de processo social, nem se correlacionou à cultura e organização social com a situação histórica e o sistema social global, de maneira que não temos a análise da ação simbólica dos Terena em relação a sua situação política e social dentro do Estado-Nacional. Para preencher as lacunas existentes nesse plano, dedicaremos esse capítulo à descrição e análise das tradições culturais/de conhecimento e organização social Terena, tal como se apresentam nos dias de hoje. O principal objetivo é mostrar as condições internas de funcionamento da sociedade Terena, e como sua organização oferece condições singulares para as formas de “ação/reação” entre a política indígena e a política indigenista e para a dinâmica dominação/resistência. 4.1 – Organização Social e Territorial de Cachoeirinha. Ao chegarmos na Terra Indígena de Cachoeirinha, pela entrada principal, podemos ver as roças que se distribuem dos dois lados da estrada de terra, que conduz até a Sede (ou Mbokooti), um dos cinco setores ou aldeias (forma pela qual a população local os denomina) que constituem a terra indígena de Cachoeirinha. Os demais setores são Argola (ou Argulla), Capão/Babaçu, Morrinho (Murrinho), e Lagoinha (ou Lauana). Os setores têm dimensão muito variada e ficam localizados em diferentes pontos da reserva. A Sede conta, segundo os dados da FUNASA, com 1.347 habitantes e 263 casas; Babaçu com 517 79 Roberto Cardoso lembrando criticamente os seus trabalho sobre os Terena, indicou o seu procedimento teórico: “E o conceito de cultura, minado na época pela hegemonia das teorias da aculturação, contra as quais alguns de nós nos rebelávamos, não deixava muito espaço para uma reflexão crítica que incluísse esse mesmo sociologismo. Para mim, a perspectiva aberta pela antropologia social, de origem britânica, a seu modo também reducionista, fornecia as bases para escapar as armadilhas da perspectiva culturalista.(...) Vejo com muita clareza que ao abandonar o conceito de cultura para não reproduzir o culturalismo então vigente na antropologia que se fazia no Brasil, cai em uma outra armadilha!” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 123) 164 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku pessoas e 88 casas, Morrinho com 243 pessoas e 49 casas e Argola com 500 pessoas e 110 casas, Lagoinha com 22 casas. Dentro do setor Sede ou Mbokooti, se destacam a primeira vista a composição e o padrão de ocupação territorial. As casas se distribuem nos diversos setores em torno do centro da aldeia, onde ficam as edificações das instituições sociais, como igrejas e escolas. A Sede é cortada por uma longa rua de terra, chamada “vila ou avenida principal ”. Nesta avenida principal ficam localizados a Capela de Santa Cruz, a Escola Coronel Nicolau Horta Barbosa, a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, a Sede do Posto Indígena da FUNAI, uma quadra de esportes e um campo de futebol, um Armazém que serve para estocagem da produção da lavoura, o Centro Comunitário e ao final da avenida a sede da AITECA (uma das muitas associações indígenas existentes em Cachoeirinha, mas a única que tem uma sede específica para suas atividades). Existem quatro ruas paralelas e quatro perpendiculares que se entrecruzam e terminam de configurar a organização territorial local. Observando o mapa nº 4 podemos ver como o território é sub-dividido em quadras, cada quadra sendo entrecortada pelos arruamentos da aldeia e como cada sub-divisão territorial é composta por uma série de pequenos aglomerados de unidades residenciais, indicado por cada “quadrado” no mapa. Estas diversas divisões compreendem conj untos residenciais que são chamados pelos moradores de “vilas” (Vila Serradinho, Vila Cruzeiro, Vila América, Vila Principal, Vila Santa Cruz, Vila Rio Branco, Vila Nova Zelândia, Vila Nova80 , Vila Terra Vermelha, Vila União São João ou RDE -Recanto dos Eva ngélicos-, Vila Sol Nascente). No mapa as vilas são representadas pelos círculos e números em vermelho. O mesmo padrão se encontra nas demais aldeias, apesar de não existirem “vilas” no sentido que existem na Sede. Nas aldeias Argola, Babaçu e Morrinho, as unidades residenciais se concentram num ponto (a área central) e raramente existem unidades residenciais isoladas, quase sempre são formados conjuntos de três, quatro ou cinco casas, e os conjuntos fixados muitos próximos uns dos outros. 80 Uma estrada, na saída de Vila Nova leva ate o Distrito Rural de Agachi. 165 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Mapa 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006. 166 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Autor: Quintino Pereira Mendes, morador da Cachoeirinha. 1 – Posto Indígena Cachoeirinha 2 – Escola Municipal – Pólo Indígena Coronel Nicolau Horta Barbosa 3 – Quadra Esportiva 4- Posto de Saúde 5- Escola Manuel José Caetano Pinto 6 –Igreja Católica Nossa Senhora do Perpetuo Socorro 7 – Sede da AITECA 8 – Igreja Evangélica Missão Indígena Uniedas 9 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus Madureira 10 – Santa Cruz 11 – Depósito de Cereais 12 – Estádio Capitão Timóteo 13 – Estádio Alcides Elias 14 – Bomba d´água 15 – Estádio Vila Nova 16 – Sede da AMITECA 17 – Caixa d´água 18 - Caixa D´água 19 – Igreja Assembléia de Deus Emanoel 20 – Igreja Luterana 21 – Igreja Fonte de Água Viva 22 – Açude Água Salgada 23 - Açude Água Doce 24 – Estrada para o Setor/Aldeia Morrinho 25 – Estrada da São João para a Agrosul 26 – Estrada que vai para a roça da AITECA 27 – Estrada que vai para Setor/Aldeia Argola 28 – Estrada que vai para Setor/Aldeia Lagoinha 29 – Centro Comunitário/OCA 30 – Estrada que vai para a Cidade de Miranda 31 – Pé de Mangas 32 – Estrada para o Cemitério 33 – Bebedor de Cavalo Limite das Vilas 1 – Vila Serradinho 2- Vila Cruzeiro 3- Vila Nova 4 – Vila Santa Cruz 5 - Vila União São João 6- Vila Rio Branco 7 – Vila América 8 – Amigos da Avenida 9 – Vila Nova Esperança 10 – Vila Nova Cachoeirinha 167 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Os Terena distinguem algumas unidades sociais e territoriais básicas, a Ovokuti (casa) ou Vovoku “nossa casa, lugar onde moramos”, no sentido que um indivíduo se refere à casa da sua família nuclear, e que no mapa são representados pelos pequenos círculos. “Noneovokuti”, que é mencionado por Oberg como sendo “as praças centrais”, pode ser traduzido como “frente da casa”, sendo empregado com o sentido de “rua” pelos Terena. A outra unidade básica desta morfologia social é Ipuxovoku, que é traduzido também por “comunidade”, conjunto de casas, ou Vipuxovoku, “lugar onde moramos (no sentido de grupo de casas), “nossa comunidade ou aldeia”. O termo Ipuxovoku designa assim a idéia de “aldeia” ou “comunidade”, em termos gerais, e é usado um por índio para referir-se a uma outra aldeia especifica, que não a sua; o termo Vipuxovoku designa uma relação de pertencimento, a idéia da “nossa aldeia”, “lugar onde moramos”. Ou seja, dentro das terras indígenas Terena existem diversas “Ipuxovoku”, e estas correspondem às “aldeias”. As “Vilas” correspondem a uma terceira unidade desta morfologia, e são muito enfatizadas pelos Terena; elas são compostas por grupos de parentesco inter-relacionados, às vezes duas, três ou mais famílias extensas que agregam outros indivíduos ou famílias. Não identificamos um termo especifico para “vila” no idioma Terena/Aruak (as palavras encontradas para designá- la geralmente tinham o sentido de “pedaço”, “parte”, por exemplo Ihaxákoku mas não são conceitos convencionais, apenas associações realizadas mediante alguma indagação). Entretanto, segundo algumas pessoas com quem conversamos, o termo Ipuxovoku ou Vipuxovoku poderia ser aplicado também aos espaços dos grupos domésticos ou das vilas, quer dizer, Vipuxovoku seria aplicado para qualquer grupo de casas, no sentido de uma comunidade residencial e parentesco. Uma última e importante unidade desta morfologia é a “roça” ou “kavané”, as áreas de pla ntio dos Terena e que constituem uma parte muito importante da sua identidade. Podemos considerar estas “vilas” como denominações locais indígenas para aquilo que a antropologia brasileira denominou de “grupos vicinais”, considerados aqui especialmente como produtos da ação de um líder que consegue manter junto a ele, através da influência política e prestigio, sua parentela (ver Oliveira Filho, 1977, p. 145-146). As aldeias Terena internamente são compostas e divididas por esses grupos vicinais, que em certos momentos, assume essa expressão territorial de vilas ou bairros e se apresentam como importantes conjuntos de ação política, delimitando fronteiras internas e conexões externas. Esses grupos vicinais (padrão que as demais aldeias de Cachoeirinha como Argola, Babaçu, Morrinho e Lagoinha também seguem) operam e regulam quase todas as dimensões da vida do grupo, e se relacionam ao que parece, sempre a linhas de descendência de tipo segmentar, ou seja, remetem a um antepassado comum, normalmente um naati, um cacique ou líder importante, descendência em torno da qual tais grupos vicinais estruturam suas identidades e regras de pertencimento. As terras indígenas ou reservas são 168 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku constituídas assim por redes de “grupos vicinais” que remetem a linhas de descendência de naatis determinados. O território “aldeão” é composto por diversas vilas, que agrupam por sua vez diversas ovokuti, e que correspondem aos espaços de diferentes grupos domésticos, que se estruturam em função de suas atividades nas kavané. Estas unidades territoriais e de parentesco é que caracterizam a dinâmica social e política da vida do grupo. Existe também um fluxo constante de famílias que se mudam para outras aldeias ou cidades e pessoas que vem de fora para fixar residência em Cachoeirinha. As casas são construídas com diferentes tipos de técnica, e muitas vezes combinam padrões diversos (alvenaria, sapê). As casas possuem extensões (normalmente pequenas coberturas com palha que são usadas para receber visitas, fazer rodas para tomar tereré, realizar festas), pequenos banheiros que ficam localizados a certa distancia da casa. É incomum receber as visitas na parte interna. O espaço das visitas é externo. Dentro das casas circulam sempre os moradores e seus parentes mais próximos ou coresidentes. É comum a parte externa das casas serem ocupadas por árvores (usualmente frutíferas), debaixo das quais se colocam bancos de madeira. A roupa é lavada na parte externa da casa, algumas possuem maquinas de lavar, e existe abastecimento de água encanada na área. Dentro da área, também existem residências que usam seus espaços para determinados tipos de atividade econômica. Existem pelo menos duas “bicicletarias” (oficinas para bicicletas) na Vila América (uma delas pertence ao então cacique Lourenço Muchacho). Existem também alguns "bares" e mercearias (os chamados “bolichos”) dentro da área, que reúnem jovens, adolescentes e também adultos que os freqüentam para beber, jogar sinuca e conversar. Além da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, existe a Capela de Santa Cruz, integrantes de um complexo ritual local que mobiliza parcela expressiva da comunidade indígena por ocasião das Festas de Santo. O Posto da FUNAI e a Escola representam, dentro do contexto local, espaços de mobilidade social e espaços de poder, implicando formas de estatização do território e também da identidade e cultura indígena. Esta morfologia do espaço aldeão é um bom ponto de partida para a compreensão da dinâmica das relações interétnicas. O Posto, a Escola e as Igrejas representam cada uma a sua maneira, alternativas concretas de interação social-simbólica, assim como os diferentes grupos domésticos e grupos vicinais. São estas instituições que integram o circuito concreto através do qual diferentes tradições culturais operam. No centro da aldeia de Cachoeirinha, em torno do Posto da FUNAI, da Escola e da Igreja Católica, residem alguns grupos domésticos. É preciso notar que a presença destes grupos domésticos não é fortuita: muitos deles pertencem às redes familiares de naati ou caciques, e estão fixadas em torno deste núcleo principal por um processo históricopolítico determinado. 169 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Além dos espaços dos grupos domésticos e das instituições estatais e religiosas, existem também os espaços de uso comunitário, coletivo, como a mata, campos de futebol e centros comunitários, e os espaços de trabalho e produção, as roças. Há diferenças na estruturação e experiência deste espaço de produção.I sto porque a distribuição das roças pelo território de Cachoeirinha como um todo é irregular. A Sede, por exemplo, que possui o maior numero de casas, não tem em seus limites áreas apropriadas para lavoura. Assim, a Sede se constitui num espaço residencial e administrativo, e seus moradores trabalham nas áreas de roça localizadas a alguns quilômetros dali. Existem diversas áreas de roça, que tem também suas próprias denominações: Chacrinha, Capão, Quarenta, Agrosul, AITECA e outras que não pude identificar os nomes. Chacrinha, Agrosul e AITECA são nomes de associações, que dão nomes também as áreas de roçado. Os moradores da Sede e também da Argola, desta maneira moram longe de suas roças, enquanto que os moradores de Babaçu, Morrinho e Lagoinha, moram próxima delas, muitas vezes as roças ficando ao lado das casas. Isto significa que existem diferentes tipos de territorialização dos grupos domésticos dentro da terra indígena Cachoeirinha. Sobre isso falaremos mais à frente. Para compreender o processo de construção do território de Cachoeirinha, é necessário observar a forma de organização social do grupo étnico, como dimensão integrada numa rede complexa de relações políticas, simbólicas e econômicas. A seguir, trataremos de abordar a temática da construção social do território a partir de três diferentes ângulos: o da organização social, o da cultura e da política-economia. Família, Parentesco e Grupos Domésticos. Pelos dados que levantamos (por entrevistas, questionários e genealogias), somados aqueles advindos por meio de observação direta ou fontes informais, pudemos identificar que existem alguns princípios que regem a territorialização dos grupos domésticos e unidades residenciais, assim como para as redes familiares que constituem as relações comunitárias. Segundo algumas etnografias (Cardoso de Oliveira, 1968, Ladeira, 2001) os Terena seguem uma preferência matrilocal nos matrimônios. Pelos dados que levantamos, esta preferência é parcialmente confirmada, tanto pelo discurso (eles comentam do costume dos homens irem residir com os sogros) quanto pela prática dos Terena (o fa to disso acontecer em boa parte dos casos). Claro que a dinâmica territorial não se reduz ou imobiliza nesta preferência, mas ela é um dos fatores a operar na organização social do grupo. Além desta preferência matrilocal, existe também uma regra patrilateral de transmissão de descendência e também de direitos sobre o território e sobre a identidade. É fácil identificar esta regra patrilateral, por exemplo, pela transmissão dos sobrenomes: na grande maioria dos casos, os filhos herdam o sobrenome do Pai e não da mãe. Isto reflete em parte a forma pela qual os Terena concebem a descendência e a identidade étnica; os 170 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku filhos de mãe Terena e Pai “Não Índio” (purutuye), tende- se a não reconhecê- los como índios (do ponto de vista formal). Conversando com Elias Antonio, morador da Vila América, um senhor de 73 anos, ele explicou o que é “xumono” e o “sukrekeono”, dizendo: “Era nação, era brincadeira, eu sou xumono, minha esposa é sukrekeono, é outro tipo. Quando a gente casa o meu contaram que eu sou xumono, o vô do meu esposa contaram que era sukrekeono. No dia do casamento é que eles falaram. Não pode casar xumono, xumono, é o contrário. Meus filhos é xumono, meu sangue, sangue da minha esposa não tem, nessa criança”.(Outubro/2004). Esta frase indica de forma precisa que pela idéia de concepção e descendência Terena, o “sangue” da esposa não está presente no filho, somente o “sangue” do pai. Desta maneira, a descendência e identidade familiar é transmitida patrilateralmente, e também as características de “personalidade e ritual”, como a identidade “xumono”, indicada por Elias. É interessante notar que Valdecir Antonio, seu filho, que dança o bate-pau, ocupa um lugar na “coluna vermelha”, que representa o xumono, marcando a operatividade desta distinção. Podemos ainda adicionar outros elementos para demonstrar esta forma de construção das relações sociais. Iremos analisar aqui a composição de uma das vilas existentes em Cachoeirinha, para indicar estas tendências na atual situação histórica. Consideramos a atual “Vila Cruzeiro” que compreende um conjunto de residências de famílias inter-relacionadas por parentesco, como as famílias Pedro, Antonio, Turíbio e Júlio. Matrilocal 12 (ou 40%) Patrilocal 5 (ou 19%) Neo-local 0 Outros 13 (ou 41%) (João Niceto Júlio e Leda Pedro, Ademar Turíbio, Temiz Arruda; Rosa, Cecílio e Bernardino, Luiz Antonio, Simão da Silva, Tomás Balbino, Mariza Candelário, Tereza Salvador, Ielmiro). Nas 30 casas existentes na Vila Cruzeiro, como o quadro acima revela, em pelo menos 40% dos casos os locais de residência após o primeiro casamento foram na casa dos sogros dos homens, o que confirma esta preferência matrilocal. Os 19% de casos de patrilocalidade, compreendem os filhos de Lino de Oliveira Metelo (Alírio, Alinor, sendo que a esposa do primeiro é da aldeia Bananal) e de um de seus netos Elcio de Oliveira, que moram em lotes que pertenciam ao Lino (sendo que o sogro do Élcio de Oliveira reside na casa vizinha à sua). 171 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Se analisarmos as diferentes famílias residentes no local, veremos que a transmissão da descendência segue a orientação patrilinear. Iremos analisar aqui algumas genealogias para ilustrar esta forma de transmissão da descendência e identidade familiar. Iremos considerar o caso da família de Alírio de Oliveira Metelo, considerando as três gerações que abrange, perpassando cerca de um século de história indígena. Seu pai é Lino de Oliveira Metelo e sua mãe é Benedita Rodrigues; seus irmãos são Marcos de Oliveira Metelo, Adão de Oliveira Metelo, Alinor de Oliveira Metelo, Ariano de Oliveira Metelo, Arino de Oliveira Metelo, Ari de Oliveira Metelo e sua irmã (por parte de mãe é Agripina Júlio, filha de Benedita Rodrigues, num primeiro casamento, com Ciriaco Júlio), seus filhos são Ginaldo de Oliveira Metelo, Evandir de Oliveira Metelo, Renaldo de Oliveira Metelo, Wanda. de Oliveira Metelo, Regina de Oliveira Metelo, Creuza de Oliveira Metelo, Cleide de Oliveira Metelo, Cleonice de Oliveira Metelo. Na primeira geração ascendente de ego, o sobrenome transmitido é o “Oliveira Metelo”, que é passado para os filhos de Lino, um grupo de siblings; a meia irmã de Alírio, Agripina Júlio, herdou o sobrenome de seu pai (Ciriaco Júlio), a geração descendente de ego, seus filhos e também sobrinhos herdaram o sobrenome Oliveira. Este padrão se reproduz nos demais casos; uma das sobrinhas de Alírio (Silvia Regina Oliveira) que se casou com Élcio Albuquerque teve filhos e estes herdaram o sobrenome Albuquerque e não Oliveira. Os filhos de Agripina Júlio, casada com Gilberto Turíbio, herdam o sobrenome Turíbio: Argemiro Turíbio, Ademir Turíbio, Milton Turíbio (falecido), Ademar Turíbio, Adirce Turíbio, Maria Helenice Turíbio, Maria Darcy Turíbio. Argemiro Turíbio é casado com Marlene Lipú Gonçalves, e seus filhos chama-se Vianey Gonçalves Lipú Turíbio; Argemiel Gonçalves Lipú Turíbio; Narliene Gonçalves Lipú Turíbio; Jean Gonçalves Lipú Turíbio e Diego Gonçalves Lipú Turíbio. Os pais de Marlene são Lúcio Gonçalves e Aracy Lipú, e é interessante observar que seu avô paterno é Batista Gonçalves, um índio Kadiwéu; na transmissão dos nomes e descendência os o dois nomes permaneceram, constituindo assim o sobrenome “Lipú Gonvalves”. O que parece estar em jogo neste caso é o problema da transmissão da identidade Terena e da legitimidade o pertencimento ao grupo. A incorporação dos dois sobrenomes pode ser uma maneira de manter a linha de transmissão da identidade Terena, criando assim uma forma bilateral de transmissão da descendência familiar. É interessante notar que segundo algumas informações que levantamos, a família Lipú seria uma das mais antigas de Cachoeirinha 81 . Uma situação similar encontra-se na família de Alírio de Oliveira Metelo, já que seu avô paterno João Metelo, era Laiano. O seu pai, Lino, herdou os sobrenomes paterno (Metelo) e ma terno (Oliveira). Assim, a transmissão 81 Segundo Adolfo Pedro, um ancião morador de Babaçu, ex-caacique daquele setor, dentre as “oito primeiras” famílias moradoras da Cachoeirinha (no imediato pós-guerra do Paraguai, estariam a família de Kiriú (seria antepassado da família Lipú). 172 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku patrilateral dos sobrenomes pode se combinar com formas bilaterais em certas situações, e ao que parece, a ascendência étnica externa (Layana, Kadiwéu) do pai é uma destas situações. Existe também uma regra de residência, que os Terena chamam de “Lei do Índio82 ”, pela qual um homem Terena que casa com uma mulher não índia pode trazê- la para residir na aldeia, enquanto que uma mulher Terena, se casar com um homem não índio, tem de ir morar fora da aldeia. É importante notar que existem casos que contrariam esta regra, e os Terena muitas vezes falam desta “Lei do Índio” quase sempre como uma alusão ao passado. Sabemos que existem casos de casamentos interétnicos, mas o número destes que tomamos conhecimento é reduzido em relação ao número de residentes na área. Identificamos por exemplo, na Sede, apenas uma mulher não indígena residente, de nome Lola, esposa de um funcionário da escola. Na Argola tomamos conhecimento de três casamentos interétnicos, entre mulheres Terena e homens não Terena, e conversamos com um purutuye, nascido em Minas Gerais, que sendo casado com uma índia, mora em Cachoeirinha, e que trabalha fazendo “marreta” (pequeno comércio de produtos das lavouras e outros gêneros na cidade e vilas próximas de aldeia e dentro dela). O fato é que o número de matrimônios interétnicos é reduzido e o acesso à identidade e ao território indígena, termina por se fazer de forma muito controlada pelo grupo como um todo Além desta dimensão, de acesso ao direito de residênc ia dentro da aldeia, esta regra patrilateral também regula a transmissão dos direitos de exploração da terra, de uso desta para o trabalho agrícola. A terra explorada por um homem, é transmitida e repartida entre seus filhos homens, enquanto que as filhas mulheres não teriam este direito 83 . O grupo doméstico Terena desta maneira se constituiria na seguinte dinâmica: o matrimônio tende a gerar duas forças contraditórias, dentro da aldeia, nas relações internas, sobre o grupo doméstico : 1) a dispersão dos filhos homens, que vão residir nas casas de seus sogros, passando a trabalhar com eles; 2) a concentração das filhas e genros, que são incorporados no grupo doméstico. Desta maneira, a residência de um indivíduo homem pode variar muito durante sua vida, enqua nto mantém uma propensão a manutenção de uma relação estável com sua roça, com sua terra de trabalho. As mulheres por sua vez, tendem a manter uma relação mais estável com a unidade residencial, com a casa em que residiam seus pais. Assim, os filhos de um casal Terena mantêm uma relação diferenciada com sua descendência e identidade familiar. Estes padrões mudam para os segundos casamentos, que não podem ser desconsiderados dentro da aldeia, e também quando consideramos as alianças matrimoniais realizadas com grupos familiares (ver Ladeira, 2001). 82 Essa era uma norma informal imposta pelo SPI dentro das reservas indígenas. O que também tem de ser relativizado, porque ao entrevistarmos o índio Lindomar Ferreira, presidente do Conselho da Aldeia Argola, ele informou que sua mãe adquiriu o direito de ter uma terra para residência e roçado, por ter sido esta terra de seu pai. É importante lembrar que o Posto Indígena também interfere nestes assuntos. 83 173 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Os grupos domésticos, como já afirmamos, se estruturam de formas diferentes dentro da terra de Cachoeirinha; enquanto a Sede e também na Argola os grupos domésticos ocupam áreas descontínuas em relação às roças, ficando distante às vezes um ou dois quilômetros das mesmas, no Morrinho, na Lagoinha e no Babaçu, os grupos domésticos ocupam normalmente áreas contínuas em relação as roças, ou ficam muito mais próximas do que nos outros casos citados. O grupo doméstico básico pelo que observamos é composto por uma família extensa. Em Cachoeirinha existem alguns agrupamentos de casas, às vezes duas, três ou mais, muito próximas uma das outras. Em cada casa normalmente mora uma família nuclear, mas nas outras casas moram os avós, pais e/ou filhos desta mesma família. Estes grupos domésticos se constituem como uma unidade de produção/consumo e também de socialização. Isto porque o trabalho nas roças é feito normalmente no âmbito da família nuclear, os filhos homens casados trabalham na sua própria roça, mas normalmente em uma parcela da terra cedida ou pertencente a seu pai; eventualmente trocam trabalho,compartilham sementes e óleo, parte da sua produção ou alimentos adquiridos por outra maneira (caça, pesca, compra); as filhas casadas, tendem a fixar residência junto ao seu pai, e desta maneira o genro passa a ajudar o sogro nos trabalhos da roça 84 (ver para isso, Cardoso de Oliveira, 1968). Além desta dimensão econômica, existe também uma dimensão simbólica, que dá ao grupo doméstico uma importante função de socialização já que atividades religiosas (sejam xamanísticas, sejam cristãs), são realizadas também no espaço destas unidades residenciais. Sobre esta dimensão, falaremos mais à frente. Esta organização interna do grupo étnico, com base em regras específicas, fornece um contexto primário e indispensável para a dinâmica das relações interétnicas. Isto porque as relações com as instituições estatais e religiosas se dão com base nesta organização social, combinando-se e dando novos formatos e funções concretas para estas relações. As “associações” e igrejas existentes dentro de Cachoeirinha funcionam normalmente em terrenos de residência de grupos domésticos, de maneira que se encontram diretamente associados a eles. Mais à frente, falaremos deste aspecto. São estes grupos domésticos que constituem também as bases primárias de mobilização política, que se articulam de forma extremamente complexa por processos de fissão e fusão facciosa, intervenção de forças estatais e econô micas. Num certo sentido, um primeiro olhar sobre a aldeia, pode deixar a impressão de que as comunidades- locais são extremamente “homogeneizadas” pelas tradições culturais ocidentais e que a vida da aldeia gira quase que exclusivamente em torno da divisão entre “católicos e protestantes”, como já foi sugerido pela literatura científica. Por isso é fundamental analisar com cuidado as tradições culturais existentes e o significado de certas práticas, inclusive para compreender o processo político e as relações interétnicas. Para visualizarmos a forma de articulação entre as 84 O “Pagamento da Noiva”, em que se indica este padrão de relações sociais. 174 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku diferentes tradições culturais e sua relação com a organização social indígena, tomaremos como ponto de partida a descrição e análise de um dos rituais praticados dentro da aldeia. Em todas as aldeias indígenas Terena que conhecemos, o Dia do índio é indicado como um importante evento na vida do grupo. E na realidade acaba sendo uma situação chave, que permite que elucidemos algumas relações sociais e padrões culturais. Permite também a compreensão da “história- memória” que este grupo construiu, e como sua cultura e sociedade se reproduz, sob formas de oposição e composição às instituições estatais e tutelares, tanto do ponto de vista simbólico quanto político. 4.2 – O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição. A palavra “Mohikená” é traduzida por brincadeira no idioma Terena. E quando os índios Terena falam sobre “brincadeiras” eles agrupam numa mesma categoria, uma série de atividades, como rituais mágico-religiosos, danças e festas. Assim, fala-se da brincadeira do “bate-pau”, do “oheokoti” e da “dança do cavalinho”. Também os “bailes” de música regional são todos enquadrados na idéia de ‘brincadeiras”. Ou seja, a brincadeira designa uma forma de percepção flexível dos fatos culturais. “Brincadeira” designa o ato de brincar, uma interação que visa compartilhar laços de solidariedade de forma lúdica. E essa metáfora da brincadeira pode nos auxiliar a compreender como são articuladas diferentes tradições culturais, e colocados em ação e comunicação diferentes símbolos. Poderíamos falar que esta caracterização das atividades rituais (sagradas e profanas) remonta a própria cosmologia do grupo, já que segundo o mito de origem, o índio “Yurikoiuvakai” tinha como característica ser “brincalhão”, de forma que segundo uma de suas versões, ele é dividido ao meio, para dar origem a seu irmão. Além disso, as duas metades ou nações que aparecem nas práticas rituais Terena, “gente brava e gente mansa”, são caracterizadas por disputas rituais marcadas pelas “brincadeiras”, pelo “chiste”. Iremos descrever aqui as situações sociais por nós vivenciadas na aldeia indígena Cachoeirinha no ano de 2004, durante a “semana do índio”. Normalmente a semana do índio começa sete dias antes do dia 19 de abril, “dia do índio”, e nela se realizam rituais políticos e rituais de caráter e mágico-religioso, além de atividades diversas, organizadas principalmente em torno do Posto Indígena e das Escolas. Os professores e alunos indígenas se dão a execução de tarefas, trabalhos sobre a história indígena são realizados com as turmas e a comunidade, e seus diferentes grupos domésticos se mobilizam para realizar o Dia do Índio. Nos dias que antecedem a festa, podemos ver nas casas as famílias preparando as ve stimentas dos filhos para participarem da “dança 175 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku do bate-pau”, as mulheres preparando artesanato para a venda e os homens dedicados a preparação do churrasco comunitário. Iremos descrever agora esta situação social. Dia 19-04-2004, segunda-feira, às 5:30 h da manhã, uma banda composta de 3 rapazes e quatro moças, faziam a “alvorada’, tocando marchas em tambores e se deslocando pela vila principal de Cachoeirinha. As 6:30 h aproximadamente, um carro de som divulgava uma mensagem gravada pela própria prefe ita Beth Almeida, revezando-a com a música “parabéns para você.”A comunidade já estava começando a se mobilizar para as atividades do dia do índio, que se iniciariam logo depois. O dia amanheceu nublado, mas sem chuva. Às 7h já era possível ver os dançarinos do Bate-Pau fazendo os seus preparativos (vestindo as “fantasias”, fazendo pinturas no corpo) em baixo de uma grande árvore, localizada num lote da família Timóteo. Os alunos já se concentravam na escola, tomando o café por volta das 7:30h. As mulheres realizam seus preparativos no centro comunitário. Os membros do bate-pau (pude ver a distância, pois me encontrava neste momento em frente ao posto indígena), saíram realizando alguns passos da dança, deram uma volta pela Vila América, e depois se concentram ao final da Vila Principal, formando duas longas filas. A banda ou “fanfarra” ficou posicionada logo à frente deles. As mulheres então saíram em direção aos homens. Três meninas seguravam uma faixa à frente das duas equipes do bate-pau, com a frase “A mobilização dos Povos Indígenas não é caso de polícia, mas é caso de consciência”. As mulheres, depois de se juntarem a eles, ficaram ao final das longas filas. Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração 176 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Eram fundamentalmente os professores indígenas que coordenavam todo o processo. Encontramos o professor Anésio, o professor Amarildo Julio, além de Cirilo Pinto, vice-cacique e também coordenador da Dança do Bate-Pau. Estavam reunidos ali homens, mulheres, crianças e a banda à frente de todos. As mulheres seguravam uma faixa da AMITECA (Associação das Mulheres Indígenas Terena de Cachoeirinha), e cartazes em papel verde com a inscrição “Sukrekeono” e em vermelho “Xumono”, que correspondiam cada uma as “equipes” de dança, posicionados em filas separadas 85 . Os índios saíram em passeata com a banda à frente tocando os tambores. Durante o trajeto muitas brincadeiras eram realizadas, os indígenas, principalmente as mulheres ficavam trocando provocações que resultavam sempre em gargalhadas e sorrisos de todos que estavam próximos. Os professores ao lado das filas, auxiliavam e coordenavam. Isto se deu ao longo de todo o trajeto, realizado através da longa avenida denominada Vila Principal, até a Escola Nicolau Horta Barbosa 86 . A composição chegou em frente à quadra poliesportiva, ao lado da Escola Nicolau Horta Barbosa, local de realização da cerimônia do Dia do Índio. As faixas ficaram a frente dos grupos de homens e mulheres. A banda ficou posicionada na lateral das equipes. Algumas faixas estavam fixadas entre as vigas de sustentação. Uma faixa tinha a inscrição, “O Vereador Dr.Pedro Toledo 85 Neste ano é que ficou mais explicita a associação do bate-pau as categorias xumono/sukrekeono. Foi a festa com maior participação comunitária que as de 2002/2003 e maior ação da escola. 86 Nicolau Horta Barbosa é um a das figuras históricas do SPI, assim como Candido Mariano da Silva Rondon. As “Escolas” nas aldeias Terena quase sempre levam o nome desses personagens históricos, especialmente de militares; em Bananal, a escola Pólo leva o nome de Rondon, e entre outras aldeiqas de outros generais e militares. 177 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Filho saúda o Dia do Índio”. Outras faixas estavam fixadas nas cercas da escola e também na grade de proteção da quadra. Numa destas faixas estava escrito “Quem luta por uma causa não tem tempo de pensar em si, mas por seu povo. Marçal de Souza.” Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004. Passou-se a realização da abertura oficial da cerimônia do Dia do Índio (com os alunos tocando instrumentos, bumbo, surdo e pandeiros), coordenada pelo professor Amarildo Julio. AMARILDO JULIO: “...representando a cultura. Preservando a cultura (trecho em idioma ...) alunos (trecho em idioma ...). (...) nós queremos dar o início as nossas festividades neste dia 19 de abril de 2004. E queríamos antes de cantar hino nacional (trecho em idioma ...) já contamos com a presença da excelentíssima prefeita Beth Paula de Almeida. (trecho em idioma...) Roberto, agradecemos a ele pela presença, e as demais autoridades presentes aqui de manhã. Queremos convidar a excelentíssima prefeita, dona Beth, para hastear bandeira do município, pode subir no palanque, também queremos convidar o chefe de posto da FUNAI senhor Argemiro Turíbio, para hastear a bandeira da Funai e também queremos convidar o cacique Lourenço para a bandeira do estado e também o professor Genésio (trecho em idioma ...) bandeira nacional. (trecho em idioma ...). A cerimônia começou com o hasteamento da bandeira e a entoação simultânea do hino nacional. A prefeita Beth Almeida hasteou a bandeira do município; Argemiro Turíbio, o chefe do posto, a Bandeira da FUNAI.o cacique Lourenço Muchacho a bandeira do Mato Grosso do Sul e o professor Genésio, diretor interino da escola, a bandeira do Brasil. Depois de realizado o hasteamento da bandeira e entoamento do hino, a professora Lurdes conduziu os alunos na interpretação da Canção do Índio. Primeiramente cantado no idioma Terena e em seguida cantado em português. Terminada a interpretação, teve início o que os próprios índios chamam de “palestras das autoridades”. 178 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku O professor Celinho Belisário subiu ao palanque, muito aplaudido pelos alunos e pelos os demais presentes. Existiam alguns visitantes, e também um índio pelo menos, Genival Muchacho, com filmadora registrando o evento. Neste momento, alguns jovens indígenas erguem uma faixa com o seguinte texto: “Queremos educação de qualidade, não politicagem na educação”, bem em frente ao palanque em que estavam as autoridades. Celinho Primeiramente cumprimento a todos vocês que são meus patrícios. A excelentíssima prefeita bom dia e as demais autoridades. Neste dia eu gostaria de fazer um pequeno preleção a respeito do chamado vida do índio; para nós hoje o que fica é o começo de uma nova história em maneiras muito antagônicos as questão dos direitos do índio, porque eu queria fazer essa pequena questão principalmente nós que somos pessoas que lidam com educação indígena aqui na nossa comunidade . Eu quero me apresentar para quem não me conhece ainda eu trabalho aqui na escola pólo coronel Nicolau Horta Barbosa, eu sou professor de Miranda, eu sou também acadêmico da UEMS onde eu estudo com os demais patrícios. Eu creio que falta hoje falar da vida dos patrícios que começou a ser contada no século XV de 1500 para cá onde a partir dali nós começamos a ser em palavras mais martirizada ... nós começamos a ser manipulado, ou seja a partir do momento que o Brasil foi invadido pelos europeus, naquele dia perdemos a nossa vida, perdemos o nosso modo de viver, perdemos muitos coisas, perdemos as nossas terras, perdemos os nossos costumes, perdemos muitas tribos, porque segundo a historia na chegada dos portugueses em 1500 nós éramos entre 6 milhões a 10 milhões de indígenas se comparamos com o dia de hoje somos apenas em torno de 280, 300 mil índios. Se comparamos a quantidade que éramos em 1500 e nos dias de hoje faz com que nós professores e alunos também , que a gente faça uma reflexão sobre a convivência que agente tem, nessa sociedade em que agente está inserido neste século XX. A nossa sobrevivência, a nossa existência para o futuro depende muito da nossa iniciativa, da nossa luta, dia de amanhã depende muito de nós, nós os indígenas, os próprios moradores de cada comunidade, que somos as pessoas que vivem do dia a dia, em cada comunidade que está inseridos neste território nacional chamado Brasil. Hoje a gente dá pra falar, hoje as nossas escolas já começa a caminhar, apenas tá começando a caminhar com suas próprias pernas, que começou a ser concretizada de 1988 para cá com a formulação da LDB de 1993, 94 e 1996 que passou de 1999 para cá com a criação das escolas indígenas em território nacional. E em 1999 e 2000 nós professores daqui de Miranda começamos a participar do curso oferecido pela UEMS na gestão passada só que nós não conseguimos concluir naquela época, porque o político na época o adversário de vocês não fez com que a gente concluísse tanto é que no inicio da gestão da prefeita em 2000, 2001, no dia 2 de janeiro, no primeiro dia de gestão da prefeita sentamos com a secretaria Maria Célia em Miranda para gente conversar que tínhamos esse projeto na UEMS e hoje, hoje o sonho tá concretizado porque conseguimos um convenio com a prefeitura de Miranda para continuar esse curso que a gente tá concluindo neste momento. E esse contrapartida a gente cita que a prefeitura exerce na questão do professor, porque a lei fala claramente que a partir do momento que a escola indígena tão em funcionamento o professor indígena tem ter condição, pro professor se aperfeiçoar, e hoje eu digo com toda certeza que nós já começou esse trabalho com o executivo. Mas falta coisas, mas falta coisas ainda ser concretizado. Porque podemos dizer na frente da excelentíssima prefeita que hoje a Cachoeirinha e os demais setores atravessa um novo contexto para discutir sua política interna já deixou de ser responsabilidade do cacique, hoje os professores e os demais representantes locais estão se reunindo para a gente discutir essa questão, e hoje nós estamos passando por uma luta que aqui é chamado de a luta política. Hoje é (...) com a secretaria essa luta que a gente tem na questão da escola indígena. Porque nós tem preocupação o que pode acontecer amanhã. Então esse ano eu quero falar daqui da comunidade de Cachoeirinha demais comunidades um momento para gente parar para refletir, como é que a gente tá vivenciando hoje porque acredito eu que a partir do momento que a gente falar, manifestar, a partir do momento que a gente ter a nossa representatividade no município de Miranda teremos assim possibilidade de tocarmos esse trabalho para frente, ..., hoje na comunidade de cachoeirinha nos demais setores 179 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku a gente pensa já em eleger um vereador cremos que é uma coisa assim que pode ser concretizado, há essas dificuldades que agente atravessa, mas acredito eu que nós estaremos trabalhando em cima isso para que a gente possa chegar a esse objetivo que diz respeito a nosso interesse. E outro mais que eu queria expressar com questão da educação escolar Indígena. Hoje nós temos alunos, em torno de 600 a 800 alunos, o trabalho do governo municipal hoje é batalhar para que seja construída mais escolas, ou seja, seja construída uma escola indígena aqui na unidade de Cachoeirinha. Porque hoje no momento a gente tem apenas salas de aula e as demais são emprestadas. A gente não pode falar que nós temos salas de aula porque são salas emprestadas e a gente não sabe o que pode acontecer amanhã.. E hoje aqui na comunidade de Cachoeirinha já começamos a trabalhar com ensino médio primeiro e segundo ano sabemos que são sala emprestada. Mas fica bem claro que a partir do momento que a escola indígena ta aqui na cachoeirinha porque não abranger o ensino médio?. E futuramente porque não uma universidade estadual ou talvez federal para atender os indígenas? São fatos assim que (...) Pensar o que pode acontecer amanhã.(...) Qual o acordo que agente pode fazer hoje para que amanhã (...) para nossa comunidade principalmente para as graves. São coisas assim que deixa agente motivado enfim para fazer algo (...) .E as minhas poucas palavras seria isso, seria isso. Eu quero que Deus dê um pouco de motivação. Eu queria fazer pequena leitura aqui nesta questão. “Caros amigos patrícios eu peço muita atenção. Porque a historia que se aprende a partir de 1500 que diz que foi nesse ano quando na verdade antes da chegada dos europeus no século XV aqui já existia o chamado ser indígena. E hoje continua..Porque que continua hoje? (...)Sempre estamos lutando, batalhando.A gente continua resistindo. Muito obrigado. (aplausos). Depois da palestra do professor Celinho, sobe para falar o chefe de posto Argemiro Turíbio, também aplaudido. Argemiro - . Unati, nesta manhã de hoje 19 de abril quero saudar a prefeita municipal professora Beth Almeida, agente está muito contente pela sua presença participando junto conosco dessa festividade .Este dia de hoje ,meus parentes, esse dia é todo especial para nós porque hoje essa história da nossa comunidade indígena no Brasil desde 1500. E esse povo sofrido vem buscando conquista dos seus direitos. Em 1988 quando a comunidade indígena do Brasil fez um movimento pela garantia dos seus direitos na constituição. Os nossos direitos não foi conquistado por acaso mas é resultado de uma luta de uma união dos povos, dos nossos irmãos, (trecho em idioma) os Pataxó, os Gaviões, os Xucuramaes, todas essas nações a tribo Terena, fizemos um grande movimento lá em Brasília. Esse direito que agente tem (...) é pela força da união do povo indígena do Brasil. Não é porque deputado o senador quis colocar no papel para que nós pudéssemos ter esse direito, como foi falado aqui. O povo indígena lutou, acampou, pressionou o deputado, senador que fazem as leis para que nos fossem reconhecido. E temos essa liberdade, para que nosso direito, nossa vivência seja respeitado. Nós enfrentamos muitas coisas ainda, e o papel da FUNAI, desde a época do SPI de 1910, extinguiu-se o SPI e criou-se a FUNAI em 1967, a FUNAI continua acompanhando o desenvolvimento da comunidade indígena. (trecho em idioma). Porque nós continuamos sofrendo ainda. Talvez os Terena nós não sofremos tanto. Mas os nossos irmãos Caiuá-Guarani que estão lutando pelos seus direitos, lutando pelas suas terras, às vezes não são compreendidos, pelas terras que eles perderam. (trecho em idioma). Também hoje nós estamos passando nesta fase. (trecho em idioma) Às vezes as pessoas não tem consciência, não consegue entender a nossa vivencia, a nossa tradição, o nosso costume (trecho em idioma) e nós estamos partindo para resgatá -los (trecho em idioma) nós estamos caminhando, eu quero ressaltar para vocês esses dias eu fiquei muito, muito contente e muito esperançoso, porque eu vi nos jornais que fala de um índio Terena que está caminhando em busca de seus conhecimentos na defesa da causa indígena. Nosso irmão Rogério da Silva que começou desde pequenininho aqui nessa terra, ele está caminhando (trecho em idioma). Eu fico com esse orgulho tão grande de ver esse patrício hoje e amanhã estará sendo homenageado na ALEMS em Campo Grande, por isso que eu fico muito 180 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku emocionado (trecho em idioma) É isso que nós queremos. Nós temos os professores que estão recebendo o apoio do executivo municipal, vamos aproveitar. E o indígena no caso do Rogério, (trecho em idioma), recebendo essa homenagem quase concluindo o doutorado. (trecho em idioma). É isso que nós queremos. (trecho em idioma) Queremos nossa escola, queremos outra escola porque nós somos deficientes, nós precisamos disso. (aplausos) Precisamos porque nós temos que aprender cada vez mais. Porque nós te mos que caminhar. Precisamos de médico, precisamos de enfermeira, hoje nós não temos. Temos vários órgãos que os índios precisa avançar, precisa ocupar os espaço. Só falta as oportunidades (trecho em idioma). Também quero homenagear, falar em nome do Rogério, está aqui a copia do noticiário que está saindo em nosso estado. Um dia ele será alguém na comunidade, e a comunidade estará de braços abertos para recebê-lo na defesa de nossos direitos. (trecho em idioma). Este dia Terena, (trecho em idioma) com apoio de alguns aliado dentro do executivo que estão preocupado em nos ajudar. No caso da prefeita Beth está preocupada com a gente. Está nos permitindo ocupar os espaços. Ela quer ver o crescimento da comunidade. (trecho em idioma). Por outro lado ainda fica um pouco triste, porque a gente ainda assiste cenas (trecho em idioma), também quero lembrar (trecho em idioma) o que aconteceu com nosso irmão lá em Brasília, (trecho em idioma), o Galdino Pataxó, queimado. Como se fosse um animal. Como fizeram com Marco Veron, assassinado, como fizeram com Marçal de Souza, hoje tá na historia do povo Guarani. Como fizeram também com Chicão Pataxó quando ele estava lutando, gritando em nome de seu povo. E hoje nós temos essa fita gravada pela sua luta, parece que ele já adivinhava pela sua luta, pela sua batalha, que um dia ele teria que partir pela sua declaração, avisando seu povo. Nós estamos caminhando, a liderança caminha junto com os professores, junto com as nossas crianças. Nós temos um grande sonho ainda. (trecho em idioma).Caminha conosco porque nós queremos consciência, queremos respeito em nossa comunidade. E nós temos que voltar eleger nosso representante esse ano para ocupar a câmara de vereadores porque nós já tivemos e nós perdemos, temos que conquistar novamente (trecho em idioma), vamos conquistar novamente. (trecho em idioma). Mais uma vez quero agradecer a colaboração da prefeita Beth Almeida,(...) que a gente agradece como parceiro da gente, comunidade, ta sempre consciente daquilo que ela tá podendo fazer em nossa comunidade . Muito obrigado. (Aplausos e fogos). Em seguida, sob ao palanque para discursar, o cacique Lourenço Muchacho. Muito aplaudido antes de começar a falar. Ele toma a palavra, sempre usando da expressão gestual, movimentando as mãos no ar. Durante sua fala, foi aplaudido em vários momentos. Lourenço – (trecho em idioma). Bom primeiro lugar eu quero agradecer a excelentíssima Prefeita por sua presença na comunidade, o Paulinho Silvio, o Henrique, os demais presentes, o Roberto, muito obrigado por visitar nossa comunidade. Primeiro lugar eu queria complementar o que chefe de posto acabou de citar. (trecho em idioma). Mas a esperança que nós vamos ter que ter, a exigência que nós temos que ter, para buscar o que é nosso, o que é direito, nós temos direito como povo indígena. Hoje eu fico feliz por saber que hoje alguns de nossos parentes hoje estão trazendo faixa mobilizando que ele disse “nós queremos educação de qualidade”, nós queremos educação de qualidade para os nossos filhos e nosso futuro. Buscar também o que é direito, porque hoje temos, no mundo de globalização que nós estamos vivendo, é um grande desafio, é uma ameaça para esse povo sofrido, e eu enquanto cacique daqui da aldeia Cachoeirinha, eu não vou encurvar para ninguém não, porque eu vou buscar o direito do meu povo, esse eu vou buscar (aplausos) nós vamos buscar, pela educação, pela política, com grande respeito, com grande luta, porque nós temos grande preocupação, como representante desse povo. Eu quero repassar para os senhores o que um advogado, um grande advogado do Ministério em Brasília ele disse para mim porque eu estava fazendo discursos contra senadores, contra deputado federal, contra ministro da justiça. Ele disse cacique ‘você tem que pensar três coisas cacique, pense na sua família, pensa na sua comunidade e pense em você mesmo’.(...) Se você se tiver a oportunidade você pensa em si. Vocês sabem o que significam essa palavra? É uma ameaça, ameaça de um grande estudioso. Me ameaça com essa palavra. Mas eu não tenho medo.Porque nós vamos derramar esse sangue em busca de nossos direitos.(aplausos) Nós não 181 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku queremos tirar nada de ninguém. Só queremos que nossos direitos seja devolvido para nós. Povo de aldeia Cachoeirinha, senhores visitantes. Eu vou fazer um desabafo novamente. Porque eu não seguro, porque o que meu povo sofre, o problema do meu povo também é meu problema, a dificuldade do meu povo, é a minha maior dificuldade, se meu povo morrer eu tenho que morrer por ele também. Porque hoje esse povo, eu gosto desse povo, eu amo esse povo por isso que hoje e daqui para frente (trecho em idioma). Hoje me sinto nessa oportunidade, nessa grande mobilização que nós fizemos (trecho em idioma) um diretor da FUNASA dizia, foi negociar com grandes advogados, ele disse no jornal. Eu cheguei na frente da FUNASA eu disse para funcionário acessa para mim Internet, eu quero resposta. Na mesma hora saiu. Foi escrito ‘Um Diretor da FUNASA negocia com Polícia Federal para que povo indígena que está acampado no prédio da FUNASA que seja retirado imediatamente’. Ele disse isso, veja bem como esse povo nos massacra, veja vem como esta entidade nos massacra. Eu disse para ele quando chegou o momento da gente discutir, eu disse senhor diretor, doutor Ricardo Rocha, a mobilização desse povo não é caso de policia é caso de consciência, senhor doutor (aplausos e gritos do público), é caso de consciência, eu falei para ele, senhor doutor Ricardo Rocha o senhor tem que lembrar, tem que respeitar por que todo o pão que está na sua mesa que o senhor tá comendo é em nome desse povo indígena. Porque todas as entidades, todos os órgãos é feito para o branco porque o índios não tem vez , (...) Nós temos que buscar, temos que ter espaço para poder construir algo para esse povo. Eu sempre cobrei isso. (trecho em idioma), ALEMS em Campo Grande quando nós fizemos reunião. E por outro lado (trecho em idioma) Senhores guerreiros, vocês têm coragem, senhoras guerreira vocês têm coragem. (trecho em idioma) Eu sei que vocês vão lutar por mim. Porque nós estamos ameaçado, com líder ameaçado. Porque?Já recebi várias ligações anônimas no meu celular, quatro ligação anônima, uma ameaça, ameaça de quem? Dos políticos porque a gente está brigando, buscando o que é nosso, a gente não quer entrar com a violência , a gente tem respeito, e ao mesmo tempo nós temos essa coragem de buscar o que é nosso. 4 ligações anônimas. Ele disse o seguinte, primeiro, você tem que tomar cuidado. Toma cuidado. (trecho em idioma) Se acontecer alguma coisa eu creio que vocês vão levantar e vocês vão a luta. (trecho em idioma), seja forte, seja corajoso. Queremos educação de qualidade e não politicagem na educação. Quem escreveu isso foi esses guerreiros, não é palavra de cacique. Mas é palavra é pedido de um povo. (trecho em idioma) Quero agradecer os professores mais uma vez, quero agradecer de todo o coração de a gente buscar essa parceria juntamente com o presidente da associação AITECA, com a presidente da associação AMITECA, hoje nós estamos unidos. (trecho em idioma). (Aplausos). Depois a palavra foi passada para a prefeita Beth Almeida. Beth Almeida – Excelentíssimo cacique, Excelentíssimo chefe de posto dessa área, demais autoridades presentes, lideranças, associação das mulheres indígenas, muito bom dia, senhores guerreiros, bom dia, crianças. Meus amigos, minhas amigas, primeiramente eu quero transmitir um recado antes que eu me esqueça no decorrer das minhas palavras. Estava entrando na área e recebi um telefonema do nosso governador que não pode se fazer presente.mas pedindo que eu enviasse um abraço ao cacique e as demais lideranças de todas áreas indígenas porque hoje ele está indo para Corumbá para fazer a assinatura do início dos trabalhos do trem do pantanal que beneficia muito a nossa área. Mas recebam do nosso governador o abraço carinhoso que ele envia a todos vocês. Primeiramente eu tenho de dar parabéns a todos, não pelo dia do índio, não por vocês estarem comemorando o Dia do Índio, mas por vocês estarem comemorando a união, a organização e as muitas vitórias conquistadas por vocês. Eu fiquei orgulhosa quando cheguei aqui e vi essa faixa “A mobilização dos povos indígenas não e caso de policia, mas sim caso de consciência”. Como disse o nosso cacique, conversando lá no gabinete, porque no dia do índio eu não espero que vocês venham até mim, nesses 4 anos eu chamei as lideranças para nós decidirmos como nós íamos fazer, e nesse dia ele me contava a historia que ele passou aqui dizendo desse caso de policia, e que ele muito inteligentemente colocou que o povo indígena não era caso de policia, mas caso de consciência. Falei cacique, isto tem que estar registrado numa faixa, por 182 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku que isso o povo indígena não pode perder de vista. Porque as lutas de vocês, é um caso consciência, de união de vocês e consciência do branco. A outra faixa ‘Queremos educação de qualidade não politicagem na educação’.(aplausos) Isso daí e de sentir muito orgulhosa porque eu vi que o trabalho desenvolvido nestes três anos resultou nesta consciência. Porque hoje vocês escolhem os diretores indígenas. Hoje a APROTEM faz a lotação dos professores. E Hoje falta às salas de aula, é porque está no orçamento de 2004 uma sala, uma escola com oito salas de aula, para que vocês tenham um atendimento digno da forma que vocês merecem. Lembrem bem desta faixa, pensem nela. Para que realmente a politicagem nunca mais volte para educação como era antigamente Porque hoje vocês têm liberdade, hoje vocês tem o direito na educação, hoje vocês escolhem os seus dirigentes, vocês escolhem os livros didáticos, vocês escolhem a matéria que vocês vão lecionar. Agora a escola sim, a escola é uma coisa que está realmente incomodando a todos nós, mas já está colocado no orçamento e vocês terão essa escola digna que vocês querem. Mas não deixem mesmo nunca mais a politicagem voltar para a educação, da mesma forma que o cacique Lourenço não tem deixado ingerir aqui na área, ele não tem deixado de lutar pelas causas indígenas. Juntamente com o Argemiro o chefe de posto. Queremos colocar representantes na câmara municipal. Tenham consciência que vocês precisam de um representante lá no legislativo. Quero deixar aqui um grande abraço, deixar meus parabéns a cada um de vocês. (...) Que Deus abençoe a todos vocês. Depois de sua fala encerraram-se as palestras, mas foi concedido um tempo ao professor Genésio Farias falar em nome da Escola: Genésio Farias – E m nome da escola como diretor interino eu quero agradecer a excelentíssima prefeita Beth Almeida as demais autoridades que estão aqui conosco neste momento.. A nossa ... é a Escola indígena que nós temos hoje em 2002, está caminhando, a escola tem um ensino e diferenciado, de qualidade, intercultural. nós tamos vendo o resultado da nossa escola, fruto da organização (...) é um caminhar, nós tamos caminhando para organizar, tem muitas coisas... grandes avanços já foram conseguidos disso. O qual tem agora a associação de pais e mestres eu queria falar também um pouco desta associação, que o objetivo da associação de pais e mestres é ajudar o processo de aprendizado da escola Pólo. Este ano vai fazer um grande trabalho, o trabalho dessa associação de Pais e Mestres (...) evento do qual coordenador Amarildo Julio, a dona Lola, o Cirilo, que foi formado para coordenar este evento. Então nós podemos dizer que esta organização tem conseguido o objetivo da escola indígena, porque a escola indígena é gestão democrática, ela é participativa aonde a escola é aberta para a comunidade e nesta abertura nós estamos conseguindo nesse ano, com a liderança, com os caciques, com os pais, os valo res da comunidade, valores culturais. Porque isto aconteceu? Devido esta organização da escola. É essa a escola indígena. Eu creio que daqui para frente nós vamos caminhar. Porque a comunidade agora ensina as crianças, eles estão aprendendo, vendo estas manifestação...As mulheres, as meninas, os homens. Então esta é a escola indígena. Queria agradecer muita pela participação dos guerreiros, das mulheres, das crianças. Esta é nossa escola, esta é a escola indígena, administrada pela própria comunidade. É uma escola que vai caminhar, daqui para frente, junto com as lideranças. Aonde vai ser construído o projeto de futuro dessa comunidade, Nós ouvimos na fala das lideranças, da prefeita, isso é o projeto nosso de futuro. Nós vamos conseguir, nós vamos caminhar. Que Deus abençoe a todos. Em seguida, por volta das 9h da manhã, teve início a apresentação cultural. Depois AMARILDO JULIO convida a todos para formar um círculo, o que é feito. Ao se iniciar as danças indígenas, havia um grande círculo de pessoas, e os participantes do evento estavam em cerca de 400 ou 500 pessoas. O professor Anésio Pinto, neste momento, começa a animar a festa, com 183 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku microfone na mão, fica fazendo brincadeiras com o público. Uma de suas firmações foi “nós estamos resgatando nossa cultura87 ”. Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres. Inicia-se então a dança das mulheres, chamada Siputrena. Duas filas são formadas, uma composta pelas mulheres com vestimentas verdes (Sukrekeono) e outra formada pelas que vestiam as vestimentas vermelhas (xumono), uma de frente para outra. O público, pelo menos grande parte dele estava de posse de bandeirinhas verdes e vermelhas, compondo duas ‘torcidas” diferentes. Estas bandeirinhas eram feitas com papel crepom e material escolar. Durante a execução dos passos, as mulheres trocavam muitas provocações em seu idioma, o que fazia com que o público risse bastante. Por volta das 9:30 h o céu ficou nublado e começou a chover. Mesmo assim ninguém foi embora e a festa não foi interrompida. A Siputrena seguiu os seguintes passos: as mulheres agitavam os lenços, na parte diagonal inferior do lado direito, e depois da diagonal inferior esquerda, avançando primeiramente em conjunto a fila de dançarinas, e depois recuando, fazendo o mesmo movimento. No meio da dança os professores procuravam explicar o significado do que estava sendo feito. Falaram que Xumono é gente mansa e calma e Sukrekeono é gente brava 88 . Ao final da dança Siputrena, a chuva se intensifica e o público e os dançarinos se concentram todos na quadra de futebol. Muitos fogos de artifício eram detonados a todo o momento. Foto 4- Grupo Xumono. 87 Anésio disse – “Mostrar para nosso torcida(Xumonó), vamos torcer, não é divisão, é apenas o resgate da nossa identidade”. 88 Éexatamente o significado inverso do que foi registrado na literatura. Esta inversão foi questionada por Elias Antonio, falando que os professores e responsáveis da escola fizeram errado a festa. 184 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Começa então a dança do bate-pau. Reproduz-se a mesma divisão entre xumono e sukrekeono. Os “guerreiros” da dança, assim como as “guerreiras” tinham seu corpo pintado. Os instrumentos musicais, a flauta e o tambor, eram tocados pelo mais velhos, como Elias Antonio. Os guerreiros usavam pintura preta feita com Genipabu, e pintura colorida de verde, vermelho e às vezes outras cores, com tinta escolar. Os homens tinham às vezes frases escritas em seu chapéu ou mesmo pintadas no corpo, tais como “Deus é Fiel”, “100 % Terena”. Continuam as brincadeiras de provocação na quadra. As mulheres que tinham acabado de dançar ficavam dando voltas em torno da quadra, brincando e caçoando uma das outras. Simulam brigas.Os professores não indígenas do local também tomam parte na brincadeira. Depois de realizado os primeiros passos da dança do bate-pau, ela é interrompida para o batismo, que o Cirilo Pinto diz ser “a introdução aos valores do homem”. O batismo consiste na formação de duas filas, com os jovens a serem batizados posicionados a frente, que ouvem os dizeres do cacique da dança e do organizador, e depois os outros guerreiros o “batizam” com pipoca, doces e balas, despejadas sobre ele. O sukrekeono têm mais um guerreiro, diz alguém. O público se agita, grita, assobia e aplaude muito e a dança é retomada. Foto 5- Dança do Bate-Pau. 185 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Os bastões do bate-pau são trocados por pequenas réplicas de arco e flecha. Duas filas paralelas se formam, caminham para frente e para trás, depois começam a “atirar” as flechas, que amarradas com barbante quando batem no arco fazem um estalo, que compõe o conjunto da coreografia. Fazem este movimento repetidas vezes, caminhando para frente atirando a flecha na diagonal inferior direita e depois na diagonal inferior esquerda e para trás, repetindo esta seqüência. Depois as filas foram formadas em círculo, caminhando em sentido contrário, e os guerreiros provocavam as torcidas rivais quando passavam em frente delas. O público ovaciona seus respectivos “times”. Algumas mulheres tomam o microfone para provocar as rivais (jovens e senhoras). Chovia muito intensamente e ventava também, mas o grande publico se mantinha concentrado na quadra poliesportiva que parecia pequena dada a quantidade de pessoas que abrigava. A dança do bate-pau entra em outro passo. Os bastões são retomados pelos guerreiros. Duas filas, agora uma de frente para outra, os bastões são cruzados um por cima do outro, cada um segurando em uma extremidade, e começam a bater os bastões, movendo-se em passos laterais curtos para direita e para a esquerda. Depois os bastões são cruzados em cima, formado um tipo de corredor e, em duplas, os guerreiros passam por dentro dele. Ao terminar este passo, passa-se a fase final da dança, quando os participantes formam um círculo, os bastões são cruzados, e um guerreiro é erguido, e este solta um grito. O primeiro guerreiro erguido, um jovem dos sukrekeono, tinha na mão uma bandeira do Brasil. Descruzam os bastões, formam novamente as filas e voltam abater os bastões. Vão depois para o lado contrário da quadra e levantam um jovem xumono, que portava um lenço vermelho na mão. Cirilo, coordenador da dança, fala enquanto a dança é retomada. 186 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Novamente formam um círculo e cruzam os bastões, desta vez levantam uma jovem mulher, Darlene, com um lenço verde na mão. Desfazem o círculo e voltam ao passo de bater os bastões. Vão para o lado contrário, forma o círculo e levantam desta outra jovem, Marta Tânia, filha do vicecacique Cirilo, com lenço vermelho, desfazem o círculo e voltam ao bate-pau. Em seguida, os homens e mulheres param e ouvem Cirilo falar. As brincadeiras continuam, com provocações de lado a lado. Homens e mulheres então se misturam e dançam juntos, os homens pegando os lenços das mulheres e acenam com eles em. Neste momento o microfone servia as lideranças, que faziam comentários sobre a festa, a importância da cultura e as “brincadeiras”. O público havia se dividido em dois blocos, xumono e sukrekeono, e trocavam provocações e brincadeiras. Algumas senhoras bem idosas pegam o microfone e começam a cantar com voz rouca e trêmula, músicas no idioma Terena, que alguns afirmaram ser “hinos” do xumono e sukrekeono 89 . Pelo menos três senhoras falaram e cantaram a frente, muito aplaudidas pelos indígenas. Ao final, o público se concentrou para ver a votação de quem havia ganhado a disputa da festa. O chefe do posto, Argemiro, Genésio, Cirilo e outros coordenavam esta parte final. Até o antropólogo foi intimado a votar, e o deu o voto de desempate. Neste momento o sukrekeono comemorou bastante. Às 11:20, aproximadamente, a festa se encerrou. Ao meio dia o churrasco foi servido, no centro comunitário, longas filas se formaram, algumas pessoas comiam ali mesmo no local, outras levavam a carne para casa. As 14h um baile começou na quadra de esportes, reunindo poucas pessoas. Apenas alguns jovens e crianças dançavam ou observavam. A chuva continuou intermitentemente durante todo o dia. No campo, atrás da Igreja de Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, eram realizados os torneios de futebol do dia do índio, o que durou até o fim do dia. Durante a noite, o baile continuava. Assim se encerra o dia e a semana do índio. 4.3 – Eventos, Significados: produção e reprodução de uma mito-história. Iremos tratar aqui o Dia do Índio como uma situação social, como um conjunto de ritos que encenam mitos, que servem como espaço para a enunciação de discursos políticos de lideranças indígenas e grupos políticos regionais. Neste sentido, cabe fazer aqui algumas considerações com relação à definição de rito e mito por nós, adotada. Podemos dizer que, fundamentalmente consideramos a conversibilidade do rito e do mito, que “O mito, (...) é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos são um só e a mesma coisa. (...) o mito encarado como uma afirmação em palavras diz a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmação em ação. Indagar sobre o conteúdo da crença que não está contido no conteúdo do ritual é um 89 Não conseguimos explorar mais detalhadamente tal informação, nem vimos na litaratura menção a existência de tais cantos, sendo assim uma lacuna a preencher. 187 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku contra-senso”. (Leach, 1995, p. 76). O mito é uma tradução do significado do rito para o discurso, e o rito é a transposição para o plano da ação, do significado contido no mito. Desta maneira, mito e rito pela articulação de signos/símbolos, tem uma mesma função expressiva/comunicativa. Entendemos que o conjunto rito (ação simbólico-expressiva) e mito (tipo de narrativa/discurso sobre o passado), possui ainda outras dimensões, e especialmente “O ritual serve para expressar o status do individuo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporariamente. (Leach, op.cit, p.74) e “Em suma, portanto, minha opinião aqui é que a ação ritual e crença devem ser entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem social.(...) o ritual torna explicita a estrutura social”. (Leach, op.cit, p.77-78). Assim, analisaremos o Dia do Índio, enquanto um ritual porque sua finalidade principal é de caráter simbólico-cultural. Mas através desta ação simbólico-cultural, expressa-se o status dos grupos sociais e muitas relações políticas entre estes as instituições de Estado. Poderíamos dizer que, o ritual expressa a estrutura da “situação histórica”, o status dos grupos dentro desta, e ainda, as formas pelas quais os grupos sociais atribuem significado a sua experiência, passada, presente e futura 90 . Uma história do Dia do Índio se faz necessária. É uma data oficial do Estado Brasileiro, instituído por decreto presidencial no ano de 1943: “Decreto -Lei Nº 5.540 – de 02 de Junho, Considera Dia do Índio a data de 19 de Abril. O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e tendo em vista que o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano reunido no México, em 1940, propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril para o Dia do Índio, decreta:Art. 1º É considerado –Dia do Índio – a data 19 de abril“ (CNPI, 1946, p.1). O decreto foi assinado por Getúlio Vargas, Apolônio Sales e Osvaldo Aranha. A proposição desta data como Dia do Índio foi realizada em um encontro indigenista inter-americano. Poderíamos dizer que o Dia do Índio surgiu de um processo de internacionalização das ideologias e atividades indigenistas no Sistema Mundial. A data de 19 de abril é, coincidentemente, no momento em que é criada o “Dia do Exército” e também o Dia do Aniversário de Getúlio Vargas. Nos anos 1940, a realização de grandes rituais estatais, estava na ordem do dia, como parte de um processo de imposição/construção de uma identidade nacional (ver Gomes, 1994)91 . O ritual do Dia do Índio não foi inventado pelos próprios indígenas; ele procede de campos sociais (nacionais e internacionais) outrora inacessíveis a eles, mas nos quais se tomavam decisões que interferiam diretamente nas realidades das aldeias. O Dia do Índio foi utilizado pelo EstadoNacional, como ferramenta localizada da sua auto-construção. O projeto de “nacionalização do 90 Podemos ainda lembrar que Leach desvincula o sentido do conjunto mito/rito do elemento mágico-religioso, de maneira que o ritual expressa relações sociológicas (Leach, op.cit, p. 76). . 91 O livro “A Invenção do Trabalhismo” , especialmente o capitulo V, “O Redescobrimento do Brasil”, indica de maneira clara os processos ideológico-culturais na construção do Estado e o papel dos grandes rituais estatais. 188 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku índio” (tal como concebido dentro do SPI e analisada no capítulo 3) se utilizou esta data para implementar um ritual que encenasse o mito de origem da nação, de maneira que o indigenismo foi também parte da política global nacional-desenvolvimentista utilizada pelo Estado Novo, para construir uma identidade nacional. Em que consiste o ritual do Dia do Índio, do ponto de vista da ação simbólica, ou melhor, político-simbólica, dos agentes representantes do Estado, através do SPI/FUNAI? Para compreender o conteúdo de tal rito, é preciso descrever e analisar sua estrutura. Poderíamos falar que o Dia do Índio se divide em duas partes inter-dependentes, em que diversos símbolos/signos são acionados dentro de fluxos de narrativa/discurso. A primeira parte: consiste na reunião de índios em torno da área central da aldeia (ou seja, próximo ao Posto Indígena) e na apresentação dos indivíduos/representantes dos poderes do Estado-Nacional: o Chefe de Posto, o diretor da Escola, o Cacique e eventualmente outras autoridades. Estas ficam posicionadas num pequeno “palanque”, pouco acima do solo. A própria categoria “autoridades”, usada pelos índios para se referir aos palestrantes (os que tomam a palavra, que tem o poder do discurso neste ritual), designa com bastante propriedade o status diferencial destes. Neste momento, os representantes do Posto, da Escola e o Cacique, cumprem os procedimentos básicos da ritualização da identidade nacional: fazem o hasteamento das bandeiras (das unidades administrativas estatais: município, estado e nação) e entoam o hino nacional; além disso, entoam também a “canção do índio”, que enuncia um tipo de discurso que segue os parâmetros de um tipo de consciência que poderíamos chamar de romântico-nacionalista92 . A segunda parte: é feita a abertura do discurso para os índios (sejam estes estudantes ou outros), que adicionam seu discurso a este contexto; depois, os índios acrescentam o seu próprio ritual, através das danças ou da manifestação de sua “cultura” (categoria hoje utilizada pelos próprios índios para designar os ritos como a dança do bate-pau). Então, entram em ação os índios, que através do seu rito, constroem um circuito de discurso que funciona de forma paralela ao discurso estatal, se entrecruzando com ele, entretanto, em diversos aspectos, como poderemos ver adiante. Logo, no centro do processo de ritualização do Dia do Índio, está a expressão do status dos representantes dos poderes do Estado-Nacional e a apologia da identidade nacional, de outro, está a enunciação do mito de origem deste mesmo Estado, que através do discurso, legitima e corrobora aquele status. A função pedagógica e reguladora da tutela, e de seus agentes locais concretos, fica manifesta. Agrega-se a estes elementos, um espaço que é previsto para a intervenção indígena, através da expressão de sua “cultura”, que é assim “valorizada” dentro do ritual, mostrando o status do “índio”, enquanto conceito genérico aplicado a realidade local Terena; a manifestação da “cultura” seria assim o espaço específico reservado para os índios dentro deste ritual, como forma 92 Usamos aqui no sentido da fusão da imagem do “índio como bom selvagem” pelo discurso nacionalista, que passa a invocar o índio como brasileiro pretérito. 189 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku de indicar a “sobrevivência” da “tradição indígena”, específica e distinta da própria cultura nacional, com a qual “contribui”. Faremos aqui a análise da “Canção do Índio”, tratada aqui enquanto uma versão do mito de origem do Estado-Nacional. Esta se insere dentro de um conjunto de símbolos/signos que são o resultado do processo de produção simbólico-cultural. Vejamos a estrutura deste mito: Canção do Índio Versão Cantada em 2004 Nós somos os índios bravos De tribos velhas De nossa terra Quando for para defendê-la Com nosso ardor que o peito encerra Lutaremos destemidos A liberdade tão retumbante Do nosso Brasil amado Idolatrado, por ti gigante O índio luta sem temor Na paz trabalha com amor Lembrando a nossa historia Guardaremos a memória Somos ín dios de valor E o berço onde eu nasci Pois dizemos com orgulho Somos índios do Brasil E neste posto grande gentil No coração está o Brasil Bravos índios Brasileiros Grandes guerreiros honraram a história Cunhambebe Potiguara Araribóia na Guanabara Para não sermos escravos, heróis batavos Venceu Potí, Com sua gente valorosa Lutando orgulhosa – Brasil – por ti!” Podemos perceber claramente aqui uma formulação discursiva baseada num conjunto de idéias/signos, que se articulam: a primeira é idéia é a da valorização da categoria “Índio”, e conseqüentemente, dos grupos sociais assim categorizados. O Índio, enquanto conceito/signo aparece sob forma positivada: a segunda idéia, meio pelo qual se justifica tal valorização, é a idéia de “imemorialidade” dos índios (“tribus velhas de nossa terra”, o acionar constante da “história”); a terceira idéia é da associação índio/nação, derivada das primeiras. Desta maneira surge a expressão “índio brasileiro”, aquele valorizado pela nação, e que valoriza e luta por esta mesma nação (“com 190 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku sua gente valorosa, lutando orgulhosa –Brasil – por ti!”). Desta maneira, existe uma associação fundamental, entre índio e nação. Esta foi uma associação criada deliberadamente em diversos momentos do debate acerca da identidade nacional, inc lusive dentro do SPI, o discurso que colocava o índio como“cidadão da nação” anterior à mesma. A quarta idéia resume assim o “valor” do índio brasileiro. O índio brasileiro é o “guardião da nação” (“quando for para defendê-la”), e é nesta condição que é resumido o seu papel frente à nação. O valor do índio para a nação, não deixa de ser um valor-de-uso, no sentido com que a economia política clássica empregou o termo. A idéia a que é associada o conceito/signo “índio brasileiro” é a do soldado-aliado (em tempos de guerra, tanto que os índios citados são índios que lutaram com os portugueses como Araribóia). De certa maneira, o que este mito irá narrar, de forma resumida e unilateral, é a história das relações interétnicas, ou a forma como o Estado concebeu e instrumentalizou, para sua política, os diferentes grupos indígenas. Estas idéias/signos inseridas dentro do mito de origem do Estado-Nacional brasileiro, sendo apenas uma variação e forma especifica de contá- lo para os povos indígenas. Na versão cantada pelos índios de Cachoeirinha, pouco se altera, mas a estrutura interna de signos se mantém, tal como acima indicado. Vendo o “dia do índio” em seu conjunto, enquanto ritual estatal, e a mitologia que aciona, acerca da história e origem dos povos indígenas, expresso na “canção do índio”, devemos chamar atenção que esta estrutura está integrada na primeira parte; na segunda parte é dramatizado um rito indígena, através da “dança do bate-pau”. Devemos analisar este rito para poder compreender todos os significados expressos pelo ritual em seu conjunto. Isto porque, certos signos serão selecionados do contexto da ideologia nacionalista implícita na política indigenista que gerou o ritual do dia do índio, sendo inseridos e re-significados enquanto símbolos dentro do contexto da cultura local Terena. E este processo de transformação de signos em símbolos indígenas, materializa um contradiscurso indígena, que destoa em aspectos importantes, do discurso da mitologia do EstadoNacional. Hiokixoti-Kipahê Hiokixoti-Kipahê, é uma das designações em língua indígena para a “dança do bate-pau”. Esta expressão é traduzida como “Dança da Ema”, (Kipahê = Ema 93 ). O rito da “dança do batepau” ou a “dança da ema”, consiste na execução de uma série de “peças” ou passos, executadas por duas colunas de homens, uma delas designada Hononoiti, termo que designa verde ou azul, ou também pelo termo Sukrekeono e a outra Harara-Íiti, vermelho ou Xumono. Cada uma das “danças” ou etapas representa um significado dentro da lógica do rito. O número de homens em 93 Segundo Fernanda Carvalho (1996), a expressão seria traduzida como “aquele que vestem saias de pena de ema”. 191 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku cada coluna pode variar, mas no ano de 2004, na situação acima descrita, existiam 32, 16 em cada coluna. A dança reúne homens, jovens e crianças (que podem se juntar ao grupo a partir dos 8 anos de idade). A dança do dia do índio normalmente é executada pelos homens e jovens (em outras ocasiões podem ser formadas equipes somente de crianças). Cada uma das colunas tem um “cacique” da dança, que coordena os passos. Os caciques da dança neste ano eram Leocádio Antônio (Verde) Florêncio Muchacho (Vermelho). Veremos que na verdade estes caciques não somente desempenham funções na execução do Hiokixoti-Kipahê, mas guardam a tarefa de reproduzir os mitos/ritos do grupo e uma parte importante da cultura indígena local, acumulando muitas vezes este papel, com outros, como o de curador ou rezador. Foto 6- Dança do Bate-Pau. O Hiokixoti-Kipahê pode ser dividido em três grandes etapas: 1º O início da dança do batepau, que consiste numa aproximação lenta das duas coluna s que se dispõem paralelamente, realizado sob o toque do tambor e flauta, fazendo meia volta: outros passos são realizados, com os membros de cada coluna realizando um toque com o bastão no solo e outro toque no bastão do companheiro da coluna contrária. 2º depois dos primeiros passos, é realizado o “batismo” dos jovens que estão se iniciando na dança do bate pau. 3º depois da paralisação para o batismo, a dança do bate-pau é retomada, sendo realizados os passos finais. Na ultima etapa da dança, os bastões são abandonados, sendo substituídos por lenços que são acenados, e neste momento as mulheres e crianças se juntam ao grupo. 192 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Estas três etapas da dança têm significados específicos. Para indicar quais são estes significados, iremos citar aqui algumas informações colhidas em entrevista. As informações usadas abaixo foram fornecidas por Laurindo da Silva, morador da aldeia Argola, e um dos “condutores” do bate-pau naquela aldeia (ele toca o tambor da dança). Ele é um “za´a” 94 (pai de família, homem de idade ou mais velho): “ A historia dos mais antigos se originou durante a guerra do Paraguai. Depois da guerra do Paraguai começaram a dançar essa dança, depois conseguimos esse pequeno pedaço de terra. Depois do final das brigas dos povos mais antigos que surgiu a dança. Até os dias atuais agente não, nunca vai esquecer. E dos povos mais antigos que descobriu com a vovó e o vovô. (...) Antigamente, mas os meus avós e meus pais faleceram, acabaram somente nós três irmãos que ficou, que está vivo. Foi assim que os povos mais antigos relataram essa brincadeira. A Miranda se fosse tomada não teria onde agente fazer as compras. Durante as conquistas os povos foram de novo para as brigas, pois os Paraguaios já estavam tomando, conquistando Miranda... As pessoas que residiam na cidade são todos paraguaios. Durante a noite os povos foram atacar com flechas. Naquele tempo nossa arma era madeira da árvore onde eles atiravam, foi assim que os povos antigos falavam ou relatavam... Depois que os povos conquistaram Miranda, ai surgiu essa brincadeira, senão fosse o povo a cidade não existia. (Laurindo da Silva, Outubro/2004). Ou seja, o relato indica que a dança (ou brincadeira, termo pelo qual os Terena designam uma série de atividades, incluindo danças e outros), teria surgido após a Guerra do Paraguai. Dois fatos importantes estão profundamente associados: a Guerra do Paraguai, o direito aos territórios ocupados pelos Terena. A participação dos Terena na Guerra do Paraguai, e sua importância na vitória militar na região, teria dado ou confirmado, segundo os índios, o direito dos Terena a terra que ocupavam e que depois perderam. A dança do bate-pau teria surgido neste contexto, pelas informações que são reproduzidas no âmbito da famílias extensas (o fato de serem os “avós” a narrarem e reproduzirem a memória da guerra, indica este circuito). Isto nós podemos ver abaixo de maneira mais nítida: “Naquele tempo os povos era comandados por Kali Sini. Foi ele que comandava as pessoas dentro da mata. Ele foi longe, conseguia ver as coisas que o restante dos companheiros não conseguia enxergar. Esse Kali Sini era Pajé. Ele era grande Pajé (hanaiti koexomuneti). Observa os inimigos de longe e via os inimigos depois se retiravam, ficava mudando de lugar, para lugar onde eles conseguiam acabar com os inimigos. Por isso que existiu e ganhou os povos esses pedaços de terra aqui, na Cachoeirinha.por isso que existiu essa Aldeia (Ipoxuvoku Xane). Por isso que o povo ficou revoltado tentando recuperar as terras que os povos ganharam naqueles tempos. Onde nossa área está ficando pequena, cada vez menor. Nós estamos brigando um pelo outro para que pudesse plantar, por isso que surgiu a dança do bate -pau. Na dança do bate-pau o vermelho tem o exemplo de sangue. A cor verde existe no meio por causa dos purutuye. Pois eles estavam ganhando comemorando sua vitória. Foi por isso que tem essa cor verde e amarelo...a cor preta simboliza as pinturas dos povos antigos quando morre alguns parentes esse seria o significado da cor preta no meio do vestimento. (Laurindo da Silva, Outubro/2004). 94 É o termo equivalente a “Pai” na terminologia de parentesco Terena. Essa terminologia foi levantada por Oberg (1949) e Cardoso de Oliveira (1968), e os confirmados pelo nosso levantamento em Cachoeirinha. 193 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Vemos nitidamente no discurso de Laurindo a associação entre participação dos índios na Guerra-Direito a Terra- Dança do Bate-Pau. Neste sentido, segundo a narrativa de Laurindo, os significados do bate pau, são o seguinte: “Se aproximando do inimigo. Depois que começa a dança, eles começam a bater com os paus e começam a brigar com seus inimigos. Quanto a peça dessa dança,são em sete peças. O início seria quando eles aproxima do inimigo.Outra peça dessa dança é quando um se encosta o pedaço dessa bambu um pelo outro que significa a acordar o inimigo. Outra peça é quando eles brigavam aqui e também eles davam paulada na cabeça do inimigo... Outra quando eles começa a brigar trocando porrada como diz os povos antigos. Outra quando eles começa a dar outra paulada na costa do inimigo, um tipo sinal da cruz. (kioxo´ihoti kuruhu vemouke) significa cruz no nosso idioma. Aí vem a flecha mais conhecida como Xekiye onde eles começam a atacar o inimigo. Procurando como matar, por isso que existe, relembrando como aconteceu o ataque, matando por isso que existe uma arma conhecido como “bodoke” pelos indígenas. Arma para matar. Quando eles começam a subir significa homenageia o Kali Sini. Ele subiu para poder observar o que está longe, por isso que ele subiu. Quando eles se aproximavam do inimigo ele pareciam está andando a costa, parecia que eles estavam se retirando. Assim que nossos patrícios e nossos anciãos contam essa história (yenoxapa voxunoêkene). Depois os inimigos buscaram outro caminho para alcançarem eles. Ai não conseguiram encontrar ou achar onde os inimigos perderam ele.Pois eles sabiam ou são esperto pois o pajé estava com eles.Pois ele era grande pajé. Laurindo da Silva, Outubro/2004). A versão de Laurindo na sua estrutura fundamental, é a versão mais conhecida e difundida entre os Terena: o Hiokixoti-Kipahê é um dança que ritualiza a participação dos Terena na Guerra do Paraguai. Cada coluna representa as partes em Guerra, e ao mesmo tempo, a participação Terena nesta Guerra. A última peça da dança (o acenar dos lenços representa o retorno para casa e o reencontro dos índios com as famílias, por isso a participação das mulheres e crianças), pelo que nos contaram diversos moradores de Cachoeirinha. Assim, segundo as narrativas entre os Terena, existe uma simbologia específica inerente à dança do bate-pau, e também uma narrativa que ela encena. Esta narrativa é sobre a participação dos Terena na Guerra do Paraguai, sobre o valor do índio, sua relação com a terra e sua importância na história. É interessante notar que esta narrativa é similar à reproduzida em outra terra indígena Terena do Mato Grosso do Sul, o posto de Bananal,. Nos anos 1940: “Afirmam os Terena que um koixomuneti, durante uma de suas invocações xamanísticas, caiu em transe e em sonhos visitou uma floresta na qual assistiu ao hiokixoti-kipahe; ao acordar, recordando-se do que sonhara, ensinou a dança aos Terena que desde então passaram a executá-la”. (Altenfelder Silva, 1949, p. 367). Informações similares sobre a origem mística foram recolhidas por Carvalho “Os Terena dizem que elas lhes foi revelada pelos espíritos da floresta, através do sonho de um xamã, e foi dançada pela primeira vez para celebrar o fim da guerra do Paraguai”. (Carvalho, 1996, p. 48). Existem pontos fundamentais de articulação entre o rito indígena, que encena um mito sobre a participação indígena na guerra do Paraguai, e o próprio “mito de origem do Estado-Nacional” (baseado na narrativa das três raças formadoras). Na verdade, a própria simbologia nacionalista é 194 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku retirada de seu contexto original e resignificada dentro do espaço local das comunidades indígenas Terena de acordo com suas próprias demandas identitárias e políticas. Vejamos a imagem abaixo, e o que pode informar sobre tal contexto: Foto 7- "100% Sukrekeono." A imagem é uma foto registrada no dia do índio de 2004. Ao centro estão os membros do “sukrekeono”, uma das colunas Hiokixoti-Kipahê. Ao centro o jovem Jean, filho do chefe do posto, segurando uma bandeira com a inscrição “100% sukrekeono”95 , e ao lado dele outro jovem, segura a bandeira do Brasil. À direita na imagem, agachado vestido com a camisa social está o vicecacique Cirilo Pinto. Esta fotografia foi registrada na quadra poliesportiva de Cachoeirinha. Podemos dizer que a imagem expressa o tipo associação de signos nacionais, transformados em símbolos indígenas, e também de signos da cultura Terena de outras situações históricas, convertidos em símbolos dentro de uma outra situação. As categorias “xumono” e “sukrekeono” que segundo a literatura etnográfica estariam associadas no passado à divisão da sociedade Terena em metades endogâmicas, e fundamentalmente a um ritual o Moótó em que os índios se dividiam em metades para executar uma luta ritual (ver Cardoso de Oliveira, 1976). Na verdade, e veremos isto abaixo, o uso das categorias “xumono/sukrekeono”96 hoje está relacionada a afirmação identitária, dentro de uma dinâmica própria da situação histórica de reserva, em que a idéia de 95 Éimportante notar que boa parte da juventude Terena usa camisas com a expressão “100% Terena (que remonta a ideologia nacionalista do “100% americana”, depois utilizada pelos movimentos de ação afirmativa como 100% negro”), e que indicam o processo de construção de uma auto-imagem positivada. 96 Os termos são usados pelos Terena para descrever, pelo que presenciamos, traços de “personalidade”. 195 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku “preservação da cultura indígena” sempre conviveu com elementos difusos da teoria da “aculturação”. Desta maneira veremos que os Terena falam sempre da afirmação da sua cultura e identidade, em certos momentos, e em outros, afirmam que esta cultura estaria “perdida” ou “acabada”. A interação dos índios com a política indigenista se faz na base da apropriação e reprodução de fragmentos dos discursos políticos e científicos, e sem considerá-los, é impossível compreender o significado de certas práticas e discursos indígenas. A bandeira do “Brasil” também não é um elemento secundário. Como vimos anteriormente, Cachoeirinha foi durante os anos 1940/1980 um PI de “nacionalização”, e a ideologia nacionalista, o esforço de transformação dos índ ios em “brasileiros” fazia parte da política aplicada pelo Estado, localmente, através do SPI. A reativação “da cultura tradicional” em torno do Dia do Índio, registrada por alguns antropólogos (Altenfelder Silva, Cardoso de Oliveira) não pode ser considerada como um elemento periférico. Na verdade era parte de uma estratégia do Estado para criar as bases internas da legitimação das relações de dominação, na qual a categoria “Nação” se apresentaria como o centro articulador da lealdade indígena para com o Estado Capitalista. Podemos dizer que esta estratégia no caso dos Terena teve uma eficácia relativa. Isto porque os índios Terena se valeram de certas idéias/signo componentes desta política simbólica do EstadoNacional– que foi fundamental para a construção do regime tutelar tal como hoje existente - para criar um espaço próprio de afirmação simbólico-cultural (através da ativação de uma memória indígena, de uma versão indígena para a Guerra do Paraguai e para a construção da Nação, na qual os Terena aparecem como protagonistas fundamentais) e política (em conseqüência desta narrativa acerca da historia indígena, estes aparecem como sujeitos capazes politicamente, determinantes e não somente determinados, como portadores de direitos, hoje interpretados fundamentalmente como o direito a terra pela qual teriam lutado 97 ). Assim, a bandeira do Brasil e a simbologia que ela carrega, marca todo o rito do bate-pau. Por exemplo, Inácio Faustino, morador da aldeia Argola, presidente da AITRE (Associação Indígena Terena Reviver), que segundo outros moradores da aldeia é aprendiz de koixomuneti, e além disso genro de um “ex-cacique do bate-pau” da Sede, falou que todas as cores usadas na dança têm um significado. Na pintura corporal usada pelos índios, o vermelho representaria o “sangue” dos mortos na guerra, e o preto o luto da comunidade indígena. O “verde e o amarelo”, o “azul e o branco” empregados pelos sukrekeono ou hononoiti, representariam o “verde, a mata, o azul o céu, o amarelo as riquezas e o branco as estrelas”. Segundo Inácio Faustino, estas informações lhe foram passadas por Leocádio Antonio, “cacique da dança do bate-pau” na Sede e (segundo nos informou o 97 É interessante observar que desde 2003, depois que o GT da FUNAI fez o trabalho de identificação das terras indígenas de Cachoeirinha, a temática da terra, do território tradicional, tornou-se muito presente em todos os aspectos da vida do grupo, de maneira que isto se reflete de maneira especifica, na articulação e interpretação contextual que se faz do bate-pau, apesar de que este mesmo discurso, ser empregado pelas lideranças indígenas desde os anos 1950. 196 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku cacique Lourenço Muchacho), também koixomuneti. A simbologia da dança do bate-pau, desta versão de Inácio, que é a reprodução da versão de Leocádio, indicaria uma associação de símbolos componentes do rito indígena com a simbologia da própria nação (já que o verde, o amarelo, o azul e o branco são invenções do nacionalismo, em que o Brasil é representado de forma naturalista). Não acreditamos ser útil e necessário fazer generalizações quanto a isto. O fato de uma rede de parentesco e alguns dos homens envolvidos no rito e na reprodução dos conhecimentos associados a ele já torna o fato importante. Até porque a bandeira do Brasil é um importante o símbolo usado em diversos momentos do rito, como em um dos mais importantes, ilustrado pela imagem abaixo. A imagem mostra uma das “peças” de encerramento do bate-pau, em que os homens são erguidos, em que se dá um viva “ao chefe” (ver Carvalho, 1996). Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil. Fundamentalmente, podemos dizer que um elemento central da cultura Terena na situação histórica atual, é a transformação de signos retirados da cultura produzida pelo Estado-Nacional em símbolos do grupo étnico. Num diálogo realizado em 2002, com um grupo de jovens indígenas, algumas informações sobre suas estratégias pessoais e visão de mundo foram colhidas. Um destes jovens era Lauzequino Elias Muchacho. Na conversa, discutindo a temática da cultura indígena, vemos o seguinte: Ha muito tempo que você dança? Desde criança, desde a infância. Hoje você dançou? “Eu dancei. A gente não pode acabar nossa cultura. (...) 197 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku O que você sente? Eu sinto orgulho de ser índio. É a cultura nossa que o índio não pode negar, não pode acabar aquilo lá. (Cachoeirinha, Abril/2002). Ou seja, um discurso auto-afirmativo está associado diretamente aos rituais indígenas, tal como hoje são encontrados. Estes signos da nacionalização dos índios foram concebidos para servir como mecanismo de controle político e ideológico dos grupos indígenas. De certa maneira, se acreditava que a “nacionalização” implicava a disciplinarização dos grupos étnicos, e a eliminação de conflitos entre índios e o Estado ou grupos sociais regionais. A tutela (que se pauta na afirmação da incapacidade indígena) se valeu deste sistema simbólico-cultural para construir um lugar de subalternidade para os povos indígenas, enquanto que o discurso ind igenista, através de uma narrativa românticonacionalista, fazia a apologia do índio pelos critérios acima indicados, ao mesmo tempo em que exercia o seu controle político e a gestão de sua mão-de-obra. Mas este conjunto de signos seriam utilizados pelos Terena como símbolos para expressar sua própria narrativa e criar sua interpretação alternativa para a experiência histórica, principalmente para legitimar e traduzir em discurso a política de resistência cotidiana ao regime tutelar. Os Terena interiorizaram a idéia de preservação cultural e identitária (e também da perda, contra a qual se deveria opor a preservação), de valorização do “índio”, contida em parte do discurso e política indigenista, e o inseriram dentro de seus próprios mitos/ritos, para servir como legitimação cultural para sua estratégia política de “co-gestão”, de expandir seus espaços de influência sobre as instituições estatais e outros espaços de poder. O “rebaixamento” imposto pela tutela, foi transformado numa narrativa mito- histórica auto-afirmativa. 4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais. Tendo em vista os dados oriundos de nosso trabalho de campo, pretendemos aqui traçar algumas linhas de interpretação teórica do material etnográfico disponível. Em primeiro lugar iremos definir o que chamamos aqui de “complexo ritual” como um conjunto de ritos procedentes de diferentes tradições culturais (indígenas e nacionais) que são inter-relacionados e possuem especial importância nas relações comunitárias étnicas dentro das aldeias Terena em Cachoeirinha 1) Festas de Santo; 2) Oheokoti (ou pajelança); 3) Dia do Índio; 4) Cultos Evangélicos. O Dia do Índio, assim, não é um evento isolado, mas faz parte de um circuito regular de rituais, que guardam várias articulações. O Oheokoti é realizado também na semana da do índio, e apesar de ser indicado que isto se deve a uma intervenção do SPI, na realidade (ver Oberg, 1949, Cardoso de Oliveira, 1976) o Oheokoti era tradicionalmente realizado no mês de abril. 198 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Podemos distinguir aqui duas tradições culturais, no sentido que representam diferentes interpretações da experiência indígena local, o xamanismo católico e o protestantismo indígena, expressando ambas formas locais de combinação entre uma tradição e cosmologia indígena Guaná/Terena e uma tradição religiosa ocidental . Realizaremos agora uma descrição da estrutura interna e das formas das práticas de cada uma destas tradições culturais dentro de Cachoeirinha, bem como sua história e seu conteúdo simbólico. O Xamanismo Uma tradição cultural existente em Cachoeirinha é o xamanismo. O correto é falar de um «xamanismo católico» porque as formas de reprodução dos ritos e mitos xamânicos estão associadas a ritos católicos e a organização social desta tradição cultural. Separar o catolicis mo enquanto sub-tradição cristã do xamanismo seria um movimento enganoso e superficial, como poderemos ver pela descrição etnográfica. Muitos dos atuais e antigos “dirigentes” das Igrejas Católicas, responsáveis pelas festas de santo e atividades cristãs diversas, são aprendizes de koixomuneti ou benzedores, ou de famílias que pertencem a elas. Na Igreja Católica da Sede, o a atual dirigente Nilo Pereira é conhecido como benzedor, Lourenço Muchacho foi dirigente da Igreja e é filho de um curandor, assim como Agripina Júlio, que durante muitos anos foi dirigente da Igreja Católica sendo neta de um dos mais conhecidos curandores de Cachoeirinha, o Xuri (Antonio Júlio). Na aldeia Argola, o mesmo acontece. Aldo da Silva, é dirigente da Igreja Nossa Senhora Aparecida, é sobrinho de Quintino Pereira da Silva koixomuneti (irmão de Laurindo da Silva, nosso informante sobre a dança do batepau). Um antigo dirigente desta mesma Igreja, João Felipe, é conhecido como koixomuneti, e um de seus filhos, Felipe Neto, é dirigente da Igreja Católica da Lagoinha e aprendiz de “benzedor”, segundo nos disse. Assim, o controle dos rituais cristão dentro da Igreja católica, é exercido também por indivíduos ou redes familiares que estão inseridos diretamente na tradição cultural do xamanismo Algumas categorias são fundamentais para compreender o universo do xamanismo Terena. A primeira delas é “koixomuneti”. Esta categoria às vezes é traduzida como “curandor” ou “pajé” (no passado era comum a designação de “padre”), e designa a pessoa que realiza curas e tem poderes mágico-religiosos. Em Cachoeirinha é muito comum que, ao perguntarmos para as pessoas sobre os pajé ou koixomuneti, elas respondam que estes estão se acabando, que não tem “mais nenhum” na área. Foi isto que ocorreu na nossa primeira visita em fevereiro de 2001, quando perguntamos ao chefe do Posto da FUNAI, Argemiro Turíbio, sobre este tema e ao cacique, Sabino Albuquerque. Naquela ocasião, conhecemos quem seria o “último” koixomuneti de Cachoeirinha, 199 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Mário Lemes, que na época que conversamos se mostrou completamente refratário em relação ao pesquisador, o “purutuye”, de maneira que não nos falou absolutamente nada (numa situação de total distanciamento do pesquisador para com o contexto local, momento da primeira visita). As únicas informações que tivemos a respeito dele vieram do Terena, Antônio Lemes, seu parente que trabalhava como nosso assistente. Na nossa segunda visita, em abril- maio de 2003, Mário Lemes havia falecido há pouco. Conversando com algumas outras pessoas, fiquei sabendo da existência de mais um ou dois indivíduos que seriam Koixomuneti. Durante uma conversa informal com Antonio Lemes e Argemiro Turíbio realizada no Posto Indígena, perguntamos sobre este tema, e eles me responderam: “ah, mais o pessoal que tem hoje não é mais como antigamente, que levantava até defunto. Estes já acabaram”. Vejamos um outro trecho da entrevista que realizamos com Laurindo da Silva, que pode ilustrar isso: “Tem outro tipo de brincadeira que os povos tiveram além da dança do bate-pau conhecida como Oheokoti. Rodava, mexia purunga, praticava pajelança que os indígenas praticavam e estudavam durante a semana santa. Era lindo antigamente, o praticante se pintava e a mesma coisa que a dança do bate-pau. Eles pintava também durante ao amanhecer da semana santa. Hoje em dia já está se desaparecendo. Presenciei, observei e assisti. Também existe uma outra dança chamada Ikatakoti Kaino) onde também está se acabando quase ninguém faz. Também é lindo todos que dançavam também são enfeitados. Se chamava dança do cavalinho, não existe mais nós perdemos ela. Enquanto que a pajelança ainda existe. Aos poucos podemos falar que ainda existe, enquanto que a dança do cavalinho aos poucos está sumindo ou desaparecendo.” Num certo sentido, isto reflete uma postura muito comum dos Terena com relação a esta questão. É comum que os índios narrem alguma experiência relacionada a cura pelos koixomuneti, ou que já teriam presenciado o “oheokoti”, mas isso não impede que quase sempre falam desse assunto em termos de “desaparecimento dos pajés”, que estes estão “acabando”. Existe também uma relativa política do segredo, em torno das práticas mágico-religiosas dos curadores, manejada de acordo com as circunstâncias não se falando tão explicitamente disso para qualquer um. No último período de pesquisa de campo (2004), pudemos identificar um conjunto de pessoas que seriam ou “Koixomuneti/curandores” ou “benzedores/rezadores”, e que indicam, ao contrário deste pretenso desaparecimento de práticas mágico-religiosas, uma ampla difusão delas entre os Terena. Dentre os “curandores”, existe uma diferença e uma hierarquia de saberes e poderes mágicos/religiosos. Segundo o cacique Lourenço Muchacho, filho de um curador, o trabalho xamanistico funciona da seguinte forma: “Mas só que meu pai não é um curandor forte não, chacoalha purunga só para cantar mesmo. Tem alguns purungueiros que chama os espírito dos purungueiro antigo, falecido. E essas pessoas hoje é diferente. Agora os purungueiro forte mesmo já faleceram. Tem o Guilherme 200 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Antonio, o Quintino da Silva, o Afonso Pinto, Halita Polidório, Nilo Pereira, Margarida Gonçalves. Meu pai falava para mim, tudo que eu tenho eu não vou poder repassar para você. Ai eu fico perguntando. Porque. O que eu tenho você não sabe. Se eu puder repassar para você, tudo vai depender do seu comportamento. Se você tiver um bom comportamento eu vou repassar para você, se você não tiver eu não posso. A gente já começa a ver essa dificuldade é que eu não sei o que é esse bom comportamento, só ele que vai saber. Se eu chegar lá e ficar conversando, agora eu não sei o que é esse tipo de bom comportamento que eles fala. O que meu pai tem agora é desde o inicio, do pai dele, da mãe dele. Então antigamente essas família era forte. (...) Segundo ele só ele que vê. Agente não consegue ver, não consegue entender isso.” O “Koixomuneti” aciona os espíritos dos mortos, que ele invoca para colocá- lo sob possessão; tem conhecimentos sobre plantas e ervas medicinais e sabe também controlar os animais e seus espíritos, tanto que os atrai durante suas atividades rituais. Os Benzedores utilizam-se principalmente de imagens de santo, do penacho e orações para curar e também sabe administrar “remédios do mato”. A distinção entre “purungueiros fortes” e os demais, como feita por Lourenço é extremamente difícil de estabelecer, porque a própria aquisição de conhecimentos pode fazer com que estes mudem de status. Por exemplo, em conversa com Marlene Lipú esta afirmou que existem curandores que são procurados (como o Hilário Júlio, Arlindo Júlio e Afonso Pinto), e outros que dançam e cantam mas não são procurados para realizarem cura (como o Antonio Muchacho). O curandor, segundo os Terena, tem um conjunto de poderes, de cura, de morte, poderes visionários (ele pode ver através do tempo e do espaço) e o poder de se transformar em outros animais (urubu, onça, cobra e etc). Este poder é obtido através da relação que o curador estabelece com um “guia”, ou seja, para designar uma entidade sobrenatural que auxilia o xamã nas suas atividades de cura 98 , mas que por outro lado exige a realização de trabalhos (mágico-religiosos).. O curador usa alguns objetos mágico-religiosos: 1) “Kipahê’ ou Penacho, 2) “Itaaká” ou purunga (palavra de origem Quíchua designa um vaso de barro, mas entre os Terena indica o chocalho de cabaça), tão importante que os curadores são chamados também de “purungueiros”. A purunga é que serve como espaço de materialização da relação do “guia” com o “curandor”; o espírito entra na “purunga”, fala para o curador o que ele quer saber, mostra o que ele quer ver; 3) imagens de santos católicos. A relação do curador com seus pacientes, assim como do curador com o seu “guia”, é uma relação de troca, simbólica e material. O paciente tem de levar alguns objetos para a consulta (que é sempre realizada a noite), como velas e cigarros; tem de dar dinheiro para o curador; e por fim, tem de dar festas para o santo ou participar delas como forma de “pagar” pelas curas recebidas. O circuito das práticas mágico-religiosas se estrutura em torno do grupo doméstico, onde reside o curador e/ou o benzedor. Ai ele recebe seus “pacientes”, promove os ritos de cura, “benze” pessoas e animais. São nas unidades residenciais dos grupos domésticos também que são realizadas 98 Guia e Encosto são palavras empregadas respectivamente na umbanda e espiritismo ; a primeira designa uma entidade que através da possessão orienta um médium; a segundo espíritos bons ou maus que prejudicam ou protegem os vivos. 201 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku as “festas de santo”, promovidas pelos curandores ou famílias. É importante destacar também que os curandores atuam em grupo, de acordo com as formas de organização social e política. O Oheokoti é um ritual que reúne diversos curandores dentro da aldeia. Só que a articulação destes não é aleatória, mas segue e reforça do ponto de vista cultural, as clivagens políticas baseadas no parentesco e residência. Por exemplo, o Oheokoti realizado na antiga vila Cruzeiro, era promovido por um grupo especifico de curandores do qual faziam parte Lino de Oliveira Metelo, grande pajé e o principal articulador político e ritual; Afonso Pinto, morador da Vila Cruzeiro, Guilherme Antônio, morador da Vila Cruzeiro, Gilberto Turíbio, morador da vila Cruzeiro e Quintino da Silva, morador do Babaçu. Os 4 primeiros estavam integrados em redes de parentesco e ação política que estudaremos adiante. O ritual ou a brincadeira do Oheokoti não pode ser compreendida isoladamente, seja porque se assenta na organização social e política, seja porque sua dinâmica interna o exige. E a sua não realização, por exemplo, numa vila como a Cruzeiro em Cachoeirinha pode se dar em razão da morte “do cabeça” do ritual, que ao mesmo tempo desestrutura a atividade e pode desmotivar seus parceiros (como Afonso Pinto comentou, que depois da morte do Lino e como ele, o Guilherme e o Gilberto estão velhos, não realizam mais o Oheokoti). As práticas religiosas se estruturam fundamentalmente em torno das famílias extensas, que participam das redes rituais e mágico-religiosas. Podemos citar por exemplo, um caso bem concreto, o da família do Cacique da Sede Lourenço Muchacho. Ele reside num conjunto residencial, em que moram seus pais, seus irmãos e os filhos de seus irmãos. O seu pai Antonio Muchacho, é um curandor como vimos acima e tem um espaço reservado para seus trabalhos na sua casa. É o caso também de Afonso Pinto, outro curador, e que também reside num conjunto de unidades residenciais de uma família extensa (onde moram ele, dois de seus filhos e seus netos). Ele possui também um espaço em sua casa (um cômodo) em que recebe seus pacientes, e que visitamos uma vez, ocasião em que pudemos conversar sobre este tema. Nós pudemos acompanhar as atividades de “benzedor” de Afonso Pinto, em sua casa. Mas antes de descrevê- la é interessante ver a narrativa de como ele adquiriu seus conhecimentos para se tornar um curandor/benzedor. “nada me ensinou. deus que deu para mim. quando eu morava aqui no Morrinho ai nos estava sentado tomando cerveja cedo 8 horas assim. Aí apareceu a dona trazendo a criança que não tava mais viva tá querendo morrer, nós tava sentado tomando mate, chimarrão, aí apareceu a dona com a criança no braço. Aí nós perguntemos onde é que ela ia, ai ela falou, aqui mesmo. Ué, fazer o que, quem que falou pra senhora que sabe fazer trabalho? Não, cê podia fazer pra mim? De que jeito que faz livrar as crianças de doença ... (trecho não compreendido?).Ai fiquei pensando, meu pai disse que não dá. Que jeito que eu vou fazer trabalho com essas crianças? Não dá? Não procura outro? Não. Aí pensei. cê sabe rezar. Então tá. Ai fiquei rezando para ele, ai o pessoal já benzeu tudo as crianças que já tá morto. Acendeu vela em roda em cima da mesa. Ai a criança levantou e chamou a mãe dele e ai apagou as velas to dinha, ai eu benzi e lembrar o nome de Deus se 202 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku podia me ajudar a livrar as crianças na vida. E eu não sei nada mas eu posso rezar. Ai levantou. Deu remédio, foi melhorando.Ai depois chegou outro. Nós conseguimos isso ai (...). ninguém me deu. deus que me deu aquilo. eu tava rezando só, tinha algumas crianças que ensinar para ele, mas pra frente e não aprendeu. Eu trabalho em conjunto com o velho aqui o Guilherme. Me chamou para ajudar a fazer trabalho. Pajé que agente fala. Então é isso que a gente faz. Apesar de que ... para benzer o corpo, tirar maldade, chega aqui em casa. Agora a gente que não agüenta mais andar me chama mas tem que me levar com o carro pra lá. Já fui pra... Morrinho, Argola, Campo Grande... aquele para chegar espírito na purunguinha. quando chega tempo de semana santa. Fizemos lá na casa do Guilherme. Cê sabe que nós comecemos 5 horas da tarde na casa do Guilherme ai nós paremos, porque ficamos com medo por que gurizada daqui um monte bêbado. (...) (Afonso Pinto. Abril/2003). Nesta narrativa de como Afonso Pinto teria se tornado curandor, vemos que ele próprio realiza uma descrição: a mãe levando uma criança quase morta para que ele rezasse e a benzesse; a referência a utilização das velas, que sinalizam (quando se apagam, a transição da morte novamente para a vida); também a descrição do “trabalho em conjunto” com o Guilherme Antonio, e a menção a “semana santa”, ocasião em que fizeram descer espírito na “purunguinha”. Quer dizer, ele enquanto “rezador” também atua nos trabalhos de “pajelança”, do Oheokoti. O penacho que Afonso Pinto possui, inclusive, foi um presente dado por Lino de Oliveira Metelo. Estes “benzedores” são freqüentemente procurados dentro de Cachoeirinha. Para ilustrar isso, podemos citar uma situação vivenciada em março de 2006. Estávamos na casa de Argemiro Turíbio conversando, no meio de nossa conversa um homem chegou e falou com Argemiro no idioma Terena. Logo Depois ele interrompeu a conversa, dizendo que teria que levar uma mulher num “curandor”. Perguntei qua l e ele disse, Afonso Pinto (depois saberia que a mulher era sua prima). Foi então buscá- la de carro. Depois de seu retorno perguntei o que havia ocorrido, e ele afirmou que era “encosto”, mas que a mulher já estava melhor que o “curandor” havia receitado algumas ervas para ela. Durante uma noite, pudemos acompanhar os trabalhos de Afonso Pinto em sua casa. Às 17h aproximadamente fomos ver o trabalho de Afonso Pinto, realizado numa sala de sua casa com um pequeno altar, Com a imagem de São Sebastião, com velas acesas em volta dela e um Penacho sobre a mesa. Em trinta minutos menos vimos pelo menos 6 pessoas serem atendidas, a maioria mulheres com crianças de colo e um adolescente. Afonso as recebia e as colocava em frente ao altar; rezava em português em tom acelerado, passando o penacho sobre o corpo que era girado (ficava de lado, de costas e de frente para Afonso Pinto). Todo o processo de benzeção demorava certa de 5 minutos. 203 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor . A seqüência do tratamento do rezador, a realização de orações e a benção dada no corpo do paciente com o “penacho” são procedimentos sistemáticos desta forma de cura, como vemos pela própria explicação de Afonso Pinto: “Então, só abençoar, aí nos tiremos nome aí é abençoado. Tá certo melhorou bem aí procuramos remédio com azeite e raizinho do mato para sarar, ai tem que falar qual é o sentimento na vida dele. Ai nós procura raizinho do mato para curar com ele. (...) Abençoa primeiro depois procura remédio. Sem saber eu não posso dá remédio a toa. (...) Tem que fazer oração primeiro para ele para procurar qual o sentimento e qual a raiz do mato. Nós tá começando de fazer trabalho, por isso que cada pessoa tem que ter o penacho E eu fui fazer encontro, fazer trabalho para lá de ...Cuiabá. (Afonso Pinto. Abril/2003). Quer dizer, a “oração” é uma forma de comunicação, uma forma de buscar a orientação para a intervenção do curandor, que irá escolher qual a “raiz do mato” será adequada ao tratamento de cada paciente. Foi esta seqüência de fatos verificadas nos casos citados acima (tanto da prima de Argemiro quanto no das pessoas que pude ver serem benzidas por Afonso Pinto). 204 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku A transmissão do conhecimento dos “benzedores” se dá por mecanismos similares aos dos curandores em geral. Perguntamos para o Afonso: Como o senhor ensina para outros? «Tem de descubrir, tem de vontade pra saber se gostava do trabalho ai tem de fazer parte no corpo dele, nós ensina. Ficar com nós saber como agente faz é muito trabalho. Xavante não é como nos, é outro raça (...) agente ensina outro como se trabalha não pode, tira todo o santo de quem faz o trabalho, mas se tem praticamente já ai tem que ensinar. Podemos ver que na realidade, assim como o “pajé” tem a habilidade da possessão e passa por um processo de “aprendizado” (ver Cardoso de Oliveira, 2002), o benzedor também passa por um processo similar e também tem uma relação sobrenatural, já que é preciso identificar se o candidato tem já o “santo” e aí um benzedor faz “parte no corpo dele”. Logo, a distinção entre um benzedor e um curandor (e as categorias se misturam, os benzedores são chamados de curandores, pajés e purungueiros em certas circunstâncias), indicando a fluidez destas distinções, apesar da persistência de uma forma especifica de intervenção e cura, que se vale das imagens e da oração, seguindo um ritual distinto daquele realizado pelos koixomuneti. As informações colhidas com um filho de um curandor que “chacoalha a purunga” (como os Terena dizem), Amarildo Júlio, dirigente da UNIEDAS e genro de Anésio Pinto podem esclarecer bastante a diferença do ritual realizado pelos curandores daquele dos benzedores. “Koipihapati, seria uma pessoa que morreu e voltou para assustar a pessoas. (...) A pessoa morreu e o espírito volta na aldeia e começa a se apresentar para uma pessoa. Na forma de uma pessoa. Meu irmão já morreu faz tempo. Mas se um dia ele aparecer na minha frente, seria um koipihapati. O curandor mexe com koipihapati, mas esse ai é outro assunto. Koipihapati seria um espírito de Diabo. Por exemplo, meu pai é curandor, um pajé. Ele invoca espírito de uma cobra. Quando uma criança vai na casa dele pra benzer ele começa a chacoalhar, concentrar, daqui a pouco começa a mudar a língua dele. Porque é espírito de cobra, koipihapati. Mas hoje ele não mexe mais com isso, porque ele não tem mais força. Porque para mexer tem que ter energia, saúde bem forte. Ai o meu pai começa a usar o seu aparelho de Chocalho. Vai lá três vezes, começa hoje, amanhã e no outro dia. Ai quando a criança não fica curado durante esses três dias, ai o trabalho tem que ser feito de madrugada. Ai só chacoalha esse coisa dele. Ai usa pinga para molhar assim na cabeça. Meu pai aprendeu com outro curandor que chama Xuri, só que eu não sei essa história. (...) Pode morrer, o médico não, se levar pro médico não vai achar que tipo de doença ele ta passando, só os pajé que pode ver”. (Amarildo Júlio, Março/2006). No trabalho do pajé que chacoalha a purunga, este invoca seu koipihapati – no caso acima “a cobra” – e é sob possessão que o pajé realiza as curas de seus pacientes. O xamã cuida das doenças provocadas pelos koipihapati, que os médicos não tem poder para tratar. Este procedimento é 205 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku similar ao descrito por Cardoso de Oliveira, quando o antropólogo se submeteu a uma sessão de cura com o xamã Gonçalo Roberto nos anos 1950. A descrição que Anésio Pinto realiza das atividades de seu pai, indicando de forma bem nítida a combinação de símbolos cristãos com signos indígenas: “É gozado por causa que os pajé ele tem muito respeito em Deus, apesar de que ele tem os guia dele. É um tipo de Santo que eles invocam. (...) Porque às vezes tem a guia dele como koipihapati, as vezes tem o santo aquele invoca dentro da casa, como São Sebastião. Dizem que é guia, e tem esse koipihapati. (...) Tanto como Deus, tanto como Santo, depois ai veio as guia. Ai eu ouvia ele dizer, que o Deus dele mesmo era Itukooviti, mas apesar de Itukooviti, tinha o santo dele que ficava dentro da casa. Mas quando ele começa a fazer trabalho ele invoca o guia dele, koipihapati. Acho que deve ser espírito das pessoas que ajudaram, deve ser parente dele, aquele mais amado. Por exemplo minha irmã mesmo quando faz trabalho, meu pai mesmo incorpora nela. (...) Ela faz aqui na casa dela. Ela, sua irmã, aprendeu com quem? Aprendeu com meu pai, antes de meu pai morrer passou tudo pra ela, ele queria que eu pegasse, mas eu acho que eu não tinha aquela dom de receber isso aí, apesar que eu sou favor, sou a favor, por que eu nasci num berço que praticava essa pajelança desde lá do Ipegue, isso daí é uma cultura que não deve acabar. Eu falo pra minha irmã, se quiser continuar, continua, só que eu não vou mais lá quando ela faz trabalho, a Igreja proíbe, a gente de se misturar. (..) Em mês de janeiro ela festa, reza, baile.... Aí a pessoa vai lá, faz promessa, Festa de Santo que tá dentro da casa dela. (...) É uma espécie de promessa, ou de vitória, eu sei que meu pai sempre fazia festa aqui no mês de janeiro, oferecia reza para o santo, depois dançava... Os promesseiros dava as coisas..”. (Anésio Pinto,Março/2006). Assim, o guia pode ser um koipihapati (espírito de um parente falecido, como um pai) ou de um animal (como uma cobra), ou ainda um “Santo Católico”. A Festa do Santo, reúne o festeiro que muitas vezes é um xamã e os “promesseiros”, que são aqueles que estão buscando curas ou agradecendo por elas. A transmissão dos conhecimentos se faz também dentro da linha familiar, para os filhos do curandor que podem assumir os trabalhos de seu pai ou mãe. Os “Koipihapati”: a cosmologia Terena e a “comunidade dos vivos e dos mortos”. Uma outra categoria é fundamental para compreender a dinâmica social e simbólico-cultural dentro das aldeias Terena é koipihapati. O termo é às vezes substituído pela palavra da língua portuguesa “encosto”, como havia sido no caso da prima de Argemiro citado acima. Sem entender a crença nos koipihapati, e que na realidade faz parte de uma cosmovisão Terena, é impossível entender o real significado do complexo ritual, já que as Festas de Santo se relacionam diretamente aos espíritos, e que mesmo os benzedores tem de saber cuidar de doenças provocadas por encosto ou koipihapati. 206 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku A crença nos koipihapati é fundamental, já que estes têm um poder próprio que incide sobre o corpo e a saúde, explicando certos deslocamentos, a existência de redes sociais aldeia/metrópole, conflitos internos e atividades (como festas de santo, rezas e cultos). Iremos relatar as informações obtidas sobre a morte de um índio Terena, que teria falecido em razão do koipihapati: Fale sobre a morte de Leocádio Antonio? Segundo grande curandeiro falecido, ele sempre falava, porque antigamente os índios mais antigo, ele falava, ele conversava com os filhos, na boca de noite você não pode andar. De madrugada, 5 horas você não pode andar. Então as pessoas respeitava aquilo lá. Então porque que o curandeiro antigamente falava isso segundo ele tem curandeiro que mexe lá com pessoas morto e traz para poder ajudar ele no trabalho, tem o que sabe chamar e mandar embora, tem o que chama e não sabe mandar embora. O que se torna esse espírito, esses mau espírito que a gente fala. Quando um curandeiro não gosta daquilo, ele vai buscar o pessoal que morreu muito tempo, esse espírito dessa pessoa, entra no corpo daquela pessoa, e começa a se sentir mau, doente, se chama encosto Isso mata mais rápido, se não tiver tratamento e senão tiver também curandor que sabe mexer com isso, para poder tirar do corpo do próprio paciente dele. Então tem espírito bom e espírito mau, segundo informa eles que mau espírito mata. O encosto que a gente fala é isso aí. Tem que ser tirado por próprio outro curandeiro, pra poder se livrar de tudo. O que gera isso? Quando pega gente isso ai, cresce barriga, dor de cabeça, vômito, às vezes dá febre, ou então as vezes pessoa parece doido, corre... então dá tudo isso. Porque a gente já sabe como é que é. Quando o patrício morre, o pessoal fica em volta. Junta o povão. O corpo nunca é abandoado, até que saia de dentro da casa da família, ai que o povo deixa o corpo. Então as pessoas que tem prática, já sabe como é que é, quando as pessoas morre de doença o corpo é de outra forma, mas quando morre por outras coisa parece que aquele pessoal levou uma porrada, fica tudo inchado, então doença mata o corpo não acontece nada, mas quando é mau espírito começa a ficar muita coisa.(...) Segundo informação que eu recebi da família, foi mais pela noite, ele tinha sonho, mas sabe como é que o pessoal de idade, fala...ah... para ele não é problema. O importante é morrer, segundo eles. Aí, foi para apanhar lenha, a esposa dele mandou apanhar lenha mais ou menos cinco hora da tarde, Aí na ida pra lá ele já tava sentindo que pra ele não tava bem. Que alguma coisa pode acontecer. Porque ele também foi curandeiro. Ele é curandeiro também. Ele chacoalha a purunga.Ele sabia o que ia acontecer lá. Porque quando ele chegou lá, segundo ele, sentiu que ... no corpo, alguém teve alguém chamando ele, alguém bateu nele lá mas não via alguém. Então voltou para casa, ai noite tava tudo tranqüilo, só sentia dor de cabeça aquela coisa, e quando amanheceu, faleceu. Só dormiu na casa dele uma noite e no outro dia faleceu. Porque se tivesse tratamento na hora poderia se salvar ainda, mas passou mais de 24 horas não tem mais jeito. Porque eu acho que o que ele recebeu foi muito forte, se fosse mais uma coisa leve poderia até agüentar, eu acho que ele chegou de ver assim de perto... segundo curandeiro fala quando a gente vê espírito de perto, morre na hora, mas quando é longe... agente guenta, fala isso. Porque aparece mesmo, aparece assim na visão da pessoa. (Lourenço Muchacho, 2004). Os sintomas das doenças e da morte provocadas por “koipihapati ou encosto” são distintos dos de uma morte natural. Dor de cabeça, inchaço, deformação do corpo pós-morte, tais sintomas e a doença só pode ser tratado pelo trabalho de um “curandeiro”, já que tais doenças são causadas pelo seu trabalho, direto ou indireto. O caso acima relata isso. E a morte de Leocádio se deu, segundo a versão acima, pelo fato dele não ter tido o “tratamento” adequado, ou seja, o auxílio de outro curandeiro. 207 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Os espíritos circulam ou aparecem na aldeia nos horários em que os curandores estão trabalhando. O encontro dos vivos com estes espíritos faz com que eles sofram de “encosto”. Logo, o tempo entre o crepúsculo e a alvorada (de 5 da tarde a 5 da manhã) é o tempo em que os espíritos têm maior liberdade e poder de ação sobre a comunidade indígena. As prescrições para as crianças e as pessoas em geral não andarem nesse horário se dá em razão disso. Note-se que no caso de Leocádio, ele foi “pegar lenha” exatamente neste horário. Marlene Lipú, esposa de Argemiro, relatou-nos em março de 2006, um pouco da sua visão experiência pessoal relativa a este tema. É interessante notar que ela gosta de freqüentar, com alguns de seus filhos e irmãos, a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Quando perguntei de koipihapati ela falou que esta palavra indica o “espírito dos mortos”, e que filho mais novo, Diego, de 10 anos, quando era menor tinha muito medo deles. Quando morria uma pessoa na aldeia, ele evitava sair de casa a noite para não encontrar o koipihapati; ela comentou que todo mundo na aldeia acredita nisso (que especialmente seu marido Argemiro “acredita muito nisso”), e que quando a pessoa fica doente, ao invés de ir ao médico procura “curandor” pensando que é encosto. Ela falou que “não acredita, mas tem medo”. Falou também que seu tio Sabino Lipú teve um derrame. Ele demorou para procurar auxilio médico porque acreditava ser “encosto” a causa de sua enfermidade. Só foi ao médico quando uma de suas filhas o convenceu a fazer isso. Marlene explicou ainda que as imagens de Santos que ficam nas salas das casas de muitos moradores da aldeia, normalmente de frente para as portas principais, têm a função de “proteger a casa dos maus espíritos” (Anésio Pinto disse: “Os Santos eles falam que é guarda da casa”). Esta é uma prática generalizada dentro da aldeia, ter um altar com imagens de santos dentro da casa. Outra prática explicada em razão da crença nos koipihapati, é da de “desmanchar” as casas de familiares mortos. Uma vez quando fui realizar uma conversa na Argola, com Alcindo Faustino, seus filhos estavam desmanchando a casa de um de seus parentes que falecera há pouco. Desta maneira, podemos falar que a crença nos koipihapati é a crença de que os espíritos fazem parte de uma mesma comunidade que reúne vivos e mortos, e além, os animais como onças, cobras, aves e também seres míticos da cosmologia Guaná/Terena, como Voropi (Cobra d´Água) e Yurikoyuvakai. Por exemplo, na conversa com Anésio Pinto, morador da vila Rio Branco e membro da Igreja UNIEDAS (que pelo sistema de parentesco Terena é sobrinho de Afonso Pinto), perguntei sobre Yurikovakai, e depois de consultar sua esposa respondeu: “É uma lenda dos povos Terena, agora eu não se essa lenda é real ou é inventada. Yurikovakai era um homem que puxava os Terenos, diz a lenda que os Terena vinha de um buraco. Ai um passarinho bem-te-vi, cantou vendo aquele monte de gente dentro do buraco, ai o bem-te-vi cantou, cantou,cantou, ai de repente o Yurikovakai tava andando no mundo e ele ouviu aquele 208 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku passaro cantar e aí foi lá ver e viu a etnia Terena, e o que ele fez? Ele pegou esses Terena um por um, isso ai era lá no Chaco, lá no Paraguai. Era um homem, não sei como dizer. Como você aprendeu isso? É contado pelos antepassados, nós temos um livro sobre isso daí. É com meu pai, e depois colocamos isso no livro. Mas só que nossos pais já contava isso daí. Depois do Yurikovakai teve o Kali Sini. Kali Sini. Era um dos lideranças dos povos Terena e ele atravessou todos os Terena do Rio Paraguai para cá para o Brasil. Ai ele é um dos lideranças muito temível a ele, porque ele era um espírito, aliás dos pajelança que f azia mal a todos que eles odiavam. Ai esse Yurikovakai nasceu lá do lado do Paraguai e historia do Kali Sini .é para cá, dentro do Brasil já. Nós juntemos a história do Yurikovakai com Kali Sini . O pessoal conta essas histórias? Se você pergunta para as pessoas mais antigas, se vai ouvir a historia deles. Eu conto na minha sala de aula, eu conto, a história do Yurikovakai, a gurizada gosta, eu faço personagem dele, dos índios terena, do pássaro, os meninos assobia como bem-te-vi, eu não sei se era espírito Yurikovakai, eu sei que era uma pessoa ... Neste sentido, podemos falar que dois elementos são importantes nesta afirmação e que merecem destaque. Em primeiro lugar, vemos que existe uma lógica de reprodução, de transmissão dos mitos a partir de uma cadeia especifica, dos “mais velhos” e dos koixomuneti, para os “mais novos” (especialmente dentro de seu grupo de parentesco). Isto porque o pai de Anésio Pinto era um curandor ou pajé, como veremos abaixo. Esta cadeia de transmissão oral dos mitos Te rena, intergeracional e de xamãs para a comunidade, na verdade hoje foi combinada com outras formas de transmissão, baseadas na escrita. A produção de um livro de “lendas” e sua utilização no espaço escolar, assim como a narração dos mitos dentro da escola diretamente pelos professores indígena, adiciona o elemento da transmissão do mito e da cosmologia através da escrita. Assim, a “Escola”, enquanto instituição social, é utilizada em parte para a reprodução de certos mitos indígenas, sendo que os “professores indígenas” e os “textos” (ao invés do xamã e da narrativa oral) passam a destacar-se como forma de transmissão e reprodução de mitos e aspectos da cosmologia indígena. É importante lembrar que em Cachoeirinha, a Escola (compreendendo o ensino fundamental e médio, atende mais de 800 crianças, numero que corresponde a cerca de 20% da população total de Cachoeirinha). Diego Turíbio, filho de Argemiro, uma vez nos contou meio desconfiado, a “lenda da mandioca” que aprendera na Escola com sua professora (que enfatizou que os “Purutuye” não acreditam). Outro fator importante, a fusão do mito com a história indígena, já que Yurikoyuvakai é colocado ao lado de um personagem histórico, kali Sini (um “cacique” que era um xamã) que realizou uma das travessias do Rio Paraguai, conduzindo os Terena a sua margem ocidental. A temática da Guerra do Paraguai, da experiência histórica indígena, se junta com os mitos de origem Terena, como o de Yurikoyuvakai, que retirou os Terena de um “buraco” tempo em que estes se encontravam no Chaco ou no Paraguai. Assim como a narrativa do “bate-pau” evoca em sua 209 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku principal versão a “Guerra do Paraguai”, uma experiência histórica que dá o significado a uma série de elementos da cosmologia Terena no atual contexto. A dança do bate-pau, o mito que ela ritualiza, na verdade se articula com estas idéias sobre a origem dos Terena e também sobre Kali Sini , que surge ao mesmo tempo como personagem histórico que torna-se um espírito e passa atuar, a ser incorporado na própria cosmologia, ao lado de Yurikoyuvakai. Assim, os acontecimentos relativos a Guerra do Paraguai e a experiência colonial do século XIX, se fundem em termos de importância na memória Terena de Cachoeirinha, com o próprio mito de origem. Oheokoti: uma “luta mágico-religiosa” O Oheokoti é uma das “brincadeiras” citadas pelos Terena e consiste num ritual realizado na semana santa. Segundo a literatura etnográfica no século XIX, era realizado em relação as plêiades no mês de abril. Uma descrição do Oheokoti é feita por Carvalho (1996) em Bananal. Em Cachoeirinha não conseguimos acompanhar a realização de um Oheokoti. Iremos tentar compor aqui uma descrição a partir das experiências de alguns índios que participaram das atividades xamanísticas e é importante lembrar que os participantes do ritual são uma parte tão importante quanto os especialistas, como os xamãs (ver Lévi-Strauss). Em março de 2006, em uma conversa informal com o professor Anésio Pinto, morador da Vila Santa Cruz, e filho do falecido pajé, Ricardo Pinto (primo/irmão, como os índios dizem, ou irmão classificatório de Afonso Pinto), ele falou um pouco sobre sua experiência pessoal e familiar e explicou a relação dos koipihapati com os vivos. Ele me contou que seu pai morreu “devido a outro pajé, que disputavam quem tinha mais força”, outros alegam que ele tinha diabetes. Ele disse acreditar que foi um pouco de cada coisa. “Tinha um pajé que não gostava de nossa família e ameaçava meu pai e que dizia que matou ele”. “Os pajés colocavam doença um no outro para ver quem era capaz de curar, para ver quem tinha mais força”. Seu pai aprendeu seus conhecimentos no Ipegue, com sua avó, lá eles tinham uma casa de pajelança. Disse que quando as pessoas duvidam de seu poder, o “pajé faz o mal” para fazê-los acreditar nos seus poderes. Em outubro de 2004, conversamos com Adelino José, morador da Aldeia Argola que falou de diversos assuntos, política, religião e etc. Disse que muitas pessoas procuram ainda os curadores existentes. Falou que estes não são mais tão poderosos como os de antigamente. Disse que assistiu a um Oheokoti uma vez quando era pequeno, e que os pajés se reuniam e ficavam lançando desafios um para o outro; um fechava a mão e aparecia um “peixe pequenininho” e desafia algum outro a engoli- lo sem morrer, para “provar que tinha poder”. Falou que quando morre um pajé, aparece uma estrela no céu, fica três dias e depois ele morre. Falou que no dia de São João, o João Felipe, curandor, faz festa e toda a comunidade vai lá “pagar promessa” ao Santo. Ele contou que também 210 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku os curandores “tem sua doutrina”: não podem dormir com mulher durante três dias quando vão fazer cura; tem de fazer jejum. Ele disse que os Pajés invocam os espíritos de outros pajés mortos. Falou que os curadores tratam doenças causadas por assombração, por exemplo, quando uma pessoa está andando de noite e ouve um assobio, ou chamar seu nome sem ter ninguém. Tudo isso é somente pajé que cuida. Estes dois depoimentos indicam um fator que não se pode perder de vista; assim como existe uma relação de poder entre os koipihapati e os vivos (que podem ser perseguidos, sofrer pela ação dos primeiros), existe também uma relação de poder entre os koixomuneti/curandores entre si. Uma luta se estabelece, uma luta, uma medição de força, de poder mágico-religioso e Oheokoti se apresenta assim – ou se apresentou - como uma luta, uma disputa de poder entre os curandores. Este ritual pode se inserir num contexto de lutas reais entre curandores, baseada em relações de inimizade que podem começar ou se estender para o domínio mágico-religioso, como é o caso do pai do professor Anésio Pinto, citado acima, que teria morrido “por trabalho” de outro pajé, inimigo de sua família. O Oheokoti, que era realizado em grupo segundo as informações recolhidas na antiga Vila Cruzeiro, poderia assumir o caráter de uma disputa de grupos “de curandores” (constituídos na base de relações de parentesco e residência, como acima indicamos), já que os grupos poderiam se visitar entre si para promoverem tal disputa. Esta dinâmica de oposição koipihapati x vivos, xamã x xamã, é fundamental para compreender as relações comunitárias étnicas. O protestantismo indígena Quando o cristianismo na forma de sub-tradição católica se estabeleceu definitivamente nas comunidades Terena através dos missionários no século XIX , existia uma cosmologia indígena específica, organizada através dos koixomuneti que eram também líderes políticos. A introdução de ação missionária e da sub-tradição protestante se fez somente a partir do início do século XX, e encontrou já um xamanismo articulado com o cristianismo católico. As disputas políticas analisadas no capítulo 3, a luta entre Missão Protestante e SPI, e a oposição dos índios ao regime tutelar ajudam a explicar a difusão do protestantismo enquanto sub-tradição cristã dentro das comunidades Terena do ponto de vista político. Mas na realidade existem razões mágico-religiosas que precisam ser consideradas para entender o fenômeno do protestantismo entre os Terena, seu lugar e significado. É isto que tentaremos fazer agora. Podemos falar de um “protestantismo indígena” porque a sub-tradição protestante se desenvolveu sob uma forma organizativa indígena (hoje existem diferentes igrejas que se autodenominam indígenas, como a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS, talvez a mais importante 211 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku do tipo no Mato Grosso do Sul). Mas é uma tradição local, indígena, do cristianismo, não somente do ponto de vista da organização social, mas também da dos significados simbólico-culturais associados a práticas evangélicas, como veremos abaixo. Em Cachoeirinha, uma das primeiras coisas a saltar aos olhos aos visitantes, são as Igrejas. Nos centros de todas as aldeias, sempre existem Igrejas Católicas, e também distribuídas de forma mais dispersa, as edificações das Igrejas Evangélicas. Descrever a diversidade destas instituições, é um passo inicial necessário para a compreensão da experiência cultural do grupo como um todo. Partiremos desta dimensão mais tangível da experiência religiosa, para fazer nossa descrição e análise. Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Como já dissemos, em Cachoeirinha existe uma diversidade de Igrejas. Na Sede , por exemplo existem cinco igrejas: a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Igreja UNIEDAS (União das Igrejas Evangélicas da América do Sul), a Assembléia de Deus do Mato Grosso, Assembléia de Deus Emanoel e a Assembléia de Deus Missões. Na Argola, existe a Igreja Católica Nossa Senhora Aparecida, a Igreja UNIEDAS, a Igreja Assembléia de Deus Indígena e Assembléia de Deus -Missões. No Morrinho, existem duas Igrejas: a Igreja Católica Cristo Redentor e a Assembléia de Deus -Emanoel. Na Babaçu, existem três Igrejas: a Católica Nossa 212 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Senhora da Conceição, a Igreja Presbiteriana Renovada; na Lagoinha existe apenas uma Igreja, a Católica Santíssima Trindade. O cristianismo é assim uma tradição cultural presente em Cachoeirinha, dividida em catolicismo e protestantismo/evangelismo, e ainda diversificada e particularizada na multiplicidade das denominações religiosas existentes. No entanto, devemos observar que existem algumas diferenças significativas entre as igrejas católicas e evangélicas. Com relação às Igrejas ainda é importante notar como elas surgem e ocupam diferentes lugares territoriais. Normalmente as Igrejas aparecem como tendas anexas às casas das famílias, e as que dispõem de construções, como a UNIEDAS, a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Assembléia de Deus, normalmente também estão estruturadas em torno de certas famílias e grupos vicinais. Desta maneira existe a sobreposição da dimensão religiosa-ritual com o domínio do grupo doméstico, no qual se situam as atividades religiosas. Na Sede, por exemplo, a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, fica localizada no centro da vila principal, em um espaço que poderíamos dizer comunitário, próximo do campo de futebol. No Babaçu, no Morrinho e na Lagoinha o mesmo fato ocorre. Na Argola, isto acontece tanto com a Igreja Católica quanto com a UNIEDAS. Com a maioria das Igrejas Evangélicas, no entanto, isto não acontece. Por exemplo, na Sede a Igreja Evangélica Assembléia de Deus - Mato Grosso, foi construída num terreno de uma família: a do seu Pastor, Zacarias da Silva. A Igreja UNIEDAS foi construída num terreno do Posto da FUNAI, cedido nos anos 1980. Mas a maior parte dos dirigentes da Igreja pertencem a uma rede de grupos domésticos interligados por parentesco que residem em torno da Igreja; a Assembléia de Deus Emanoel, tem sua sede na residência de Rafael Albuquerque, dirigente responsável pela Igreja. Desta maneira, podemos falar que existe uma diferenciação na acomodação das Igrejas, por conta do próprio processo histórico de colonialismo interno na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul. As Missões Católicas foram as primeiras a se estabelecerem, e as primeiras a intervirem diretamente junto aos Terena, em todo o estado do Mato Grosso ainda no século XIX, e com os Terena em particular. O catolicismo foi à primeira tradição cultural cristã a se fixar dentro do território Terena de Cachoeirinha, devido à relação Igreja-Estado. Em Cachoeirinha, especificamente, a construção da primeira igreja data da década de 30 do século XX. Vejamos o que um documento extraído das crônicas da Paróquia Nossa Senhora do Carmo em Miranda: “Dia 11 de Agosto de 1931, Padre Affonso e José (Branco) com o Arquiteto Dr.Arlindo Jorge foram para Cachoeirinha para ver o que podia ser feito quanto a uma capela para os índios. Eles tem um lugar muito lindo para a capela, diretamente em frente à casa do inspetor. Eles também já tem 15.000 tijolos para a capela e os índios são muito alegres e tem muito entusiasmo. 213 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Dia 20 de setembro de 1931: Domingo. Padres Affonso e João foram para Cachoeirinha para a colocação da pedra fundamental da capela nova. Padre João realizou a missa dentro das paredes da capela nova. 98 índios assistiram a missa. Dia 01 de novembro de 1931: Padres Affonso e Frederico foram para Cachoeirinha para a inauguração solene da nova capela. Esta é a primeira capela em Mato Grosso a ser dedicada a Nossa Senhora com o titulo Nossa Senhora do Perpetuo Socorro. Padre Affonso deu a benção solene da capela. Esta é a primeira capela. Padre Frederico celebrou a primeira missa na nova Capela. Durante houve recitação do terço com cânticos. Muitas pessoas vieram de Miranda, até de Bela Vista, Brasil. Três touros foram doados a festa com cerveja e vinho. Houve uma grande festa e todos gostaram imensamente. Os índios ofereceram também a musica e uma dança típicas. Houve 08 batismos e dois casamentos. Os índios contudo não foram beber as bebidas alcoólicas”. A Igreja Católica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro foi a primeira a ser construída em Cachoeirinha. No dia da inauguração da Igreja, 98 índios estavam presentes. Isto corresponde a aproximadamente, 25% da população de Cachoeirinha no início da década de 1930, que era de 507 pessoas. (Cardoso de Oliveira, 1976, p.72, citando censo do SPI de 1927, indica tal número). Pelo que indica o documento, a Missa foi acompanhada também por uma festa e por “danças típicas”. Esta estrutura ritual se mantém até hoje, como poderemos ver mais à frente. Até os anos cinqüenta, os católicos seriam os únicos a estar organizados em Cachoeirinha. Vejamos como Cardoso de Oliveira descreve a situação naquele momento: “A única Igreja de Cachoeirinha é Católica, dos padres norte-americanos da Ordem dos Redentoristas e sediados em Miranda e Aquidauana, donde percorrem as aldeias Terena. A comunidade é caracterizada por sua resistência a entrada de missionários protestantes, e seus componentes se dizem católicos, mais por auto-definição. Contam-se apenas duas famílias protestantes, ambas vindas do Bananal”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 89). A introdução de uma nova denominação religiosa em Cachoeirinha se daria através da Inland South-American Missionary Union, que primeiro se fixaram na aldeia do Bananal, e como indica Cardoso de Oliveira teria sua influência aberta por estas duas famílias. A União Missionária protestante cresceria em Bananal através de um conflito político com o SPI, graças a figura de um “capitão”, o Marcolino Wolilly. A difusão do protestantismo esteve desde o início diretamente associada ao faccionalismo político. A sua difusão pelas demais aldeias Terena reproduziria esta tendência. Pelo que levantamos através de entrevistas e conversas informais, a formação de uma Igreja Evangélica em Cachoeirinha somente se daria nos anos setenta, depois inclusive da retirada dos missionários americanos, e a formação de uma Igreja Especificamente Indígena, a UNIEDAS, em Bananal. Vejamos um pequeno histórico da UNIEDAS contido nos estatutos desta Igreja: “No início do século XX, na providência de Deus, o Rev, Joseph A. Davis, chegou a entender a necessidade de uma efetiva distribuição do evangelho nos campos missionários da América do Sul. A fim de realizar sua visão, o jovem pastor adotou o seguinte programa: a) o cumprir 214 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku literal da grande comissão do nosso senhor Jesus Cristo, na proclamação do evangelho, principalmente entre povos indígenas do vasto interior da América do Sul; b) estabelecer das igrejas evangélicas nacional; c) preparar um ministério nativo do país onde se encontra o obreiro missionário . (...) Em 1912, os primeiros missionários, revs. João Hay e Henrique Whittington, começaram seu trabalho no Brasil entre os índios Terena , na aldeia do Bananal, distrito de Taunay, Estado de Mato Grosso. Os primeiros crentes sendo Georgina Lili, Honório Massi, Henrique Pereira, eram batizados no dia 31 de dezembro de 1916. No mês de janeiro de 1971, o senhor diretor da South American Indian Mission Inc , enviou dos EUA, o seu representante Rev. Roberto Anderson que, acompanhado pelos Revs. David Snyder, então representante da “Missão” no Brasil, Raymond E. Rosse Gordon Dudley Kinsman, transmitiu aos representantes da Igreja reunidos em Taunay, a sugestão do senhor Diretor para nacionalizar o trabalho evangélico fundado pela missão, no propósito de estendê-lo a todo o território nacional. Em abril de 1972, no sul do Estado de Mato Grosso, as Igrejas Evangélicas criadas pela South American Indian Mission inc, decidiram fundar uma união, que toma o nome de União das Igrejas Evangélicas da América do Sul, com administração, governo e nome próprio”. (Estatutos. P. 2) A primeira congregação da UNIEDAS em Cachoeirinha seria formada logo depois, em meados dos anos setenta, na aldeia Argola. Uma das famílias que criou esta igreja é a do professor Genésio Farias, que participou da fundação da UNIEDAS em 1972 em Bananal, e se mudou para Cachoeirinha. A partir de então, ficaram estabelecidos o protestantismo e o catolicismo como variações do cristianismo enquanto tradição cultural, dentro de Cachoeirinha. Os fundadores da Uniedas na Sede foram Raul e Felix Antônio. Conseguiram o terreno para construir a Igreja na época em que o caciq ue era Dionísio Antônio. O Félix Antônio era o presidente do Conselho Tribal nesta mesma época. Félix e Raul se converteram em 1983 e a principio a Igreja ficava no seu próprio lote. As demais Igrejas iriam surgir por processos de fissão faccional, sendo difícil separar as questões religiosas das políticas. A maior parte dos dirigentes de igreja UNIEDAS foram membros da Igreja Católica, e as demais Igrejas evangélicas tiveram um surgimento mais recente, especialmente a partir dos anos 1990. A igreja tem como dirigentes: Antônio Oliveira, vice-pastor: Martins Lemes, casado com Eunice Elias e mora no Rio Branco; Missionário: Rogério Lemes, filho de Martins Lemes - mora no rio branco; Diácono - Amarildo Júlio; secretário: Walter de Oliveira, irmão de Antônio, solteiro, mora com seu pai, Secretário: Adilson Felipe, casado com Adenice Júlio, irmã do Amarildo e mora na vila Serradinho. Ancião: Firmino Augusto, casado com Lídia Samuel (mora na vila Serradinho), Celestino Gregório, casado com Brautília Antônio e morador da vila Rio Branco - do outro lado do campo de futebol. O Pastor Antonio Oliveira é genro de Anésio Pinto, e faz parte do grupo vicinal da “vila rio branco”, um das vilas que se formou dentro da antiga “Cruzeiro”, por meio da ação de Felix Antonio, que atuava com Dionísio Antonio, um dos lideres políticos residente na vila santa cruz, também pertencente a antiga cruzeiro. É uma Igreja que surgiu dentro de um conjunto de grupos vicinais que se destacaram de uma antiga vila. 215 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Entretanto, por hora queremos registrar dois fatores fundamentais para os desdobramentos da pesquisa: 1) a distribuição concreta do cristianismo enquanto tradição cultural entre os Terena se dá tanto pelos canais específicos desta própria tradição (ou seja, pela instituição igreja), quanto pela organização social do grupo. Ou seja, ao que nos parece, as igrejas existentes se superpõem as famílias extensas e grupos domésticos, sendo na verdade atividades de socialização incorporadas pelo grupo étnico através das suas unidades sociais específicas; 2) o aparecimento das diversas igrejas, e a particularização da tradição cultural cristã em múltiplas igrejas, acompanha também uma dinâmica política interna, sendo difícil separar a questão religiosa da questão política. Desta maneira, as Igrejas se formam por processos de luta política, que envolvem freqüentemente disputa por recursos e posições de poder (cargos políticos como o de cacique, empregos e etc.). Mas a importância do estamos chamando de “protestantismo indígena” não deriva somente do papel político das Igrejas e líderes religiosos, mas existe também uma luta mágico-religiosa, que coloca no centro das questões, a eficácia da cura dos xamãs e dos benzedores em geral e luta contra eles e seus poderes. Com relação ao cristianismo das diferentes igrejas evangélicas, podemos dizer que existe também uma disputa pelo poder da “cura”. Em conversa com Adelino (ex-pastor da Assembléia de Deus Indígena Argola) e também com Ademar Polidório (Pastor da Assembléia de Deus Missões), eles me fala ram que em suas respectivas Igrejas muitas pessoas foram “curadas”, através das sessões de oração. As Igrejas Evangélicas se estruturam, em parte, no combate ao “espiritismo” (forma pela qual os koixomuneti e o xamanismo são classificados), e também pela prescrição de um código de conduta determinado (especialmente a proibição do consumo de álcool e participação em bailes e jogos). Alguns outros casos nos foram relatados, por membros de outras Igrejas Evangélicas, como a UNIEDAS. Um desses casos foi relatado por Amarildo Júlio, diácono da UNIEDAS, quando conversávamos sobre koipihapati e religião em Cachoeirinha. E se acontecer com um membro de uma Igreja? Ai, é outra coisa, ai ele vai e procura o pastor ou o grupo de oração que agente chama, já aconte ceu várias vezes ai, na Igreja. Tem uma menina que mora aqui na Vila Nova, mas não é que viu o koipihapati. De repente dentro da Igreja mesmo os irmãos começa a orar aquela oração bem forte, ai começa a manifestar esse tipo de koipihapati no corpo da menin a, o espírito mau no corpo menina, dentro da própria Igreja, aí cai no chão começa a gritar palavras que a gente não entende. Ai o Pastor chama o grupo da oração e quando é uma menina aí que tem ser mulheres, quando é rapaz, aí é os homens. (...) Oração pedindo pra libertar. Nós que somos cristãos, segundo a bíblia, o espírito maligno está ao nosso redor. Por exemplo, aqui agente tá conversando, o diabo fica ao redor da pessoa, pra destruir, pra amaldiçoar essa pessoa. (...) Mais ou menos aconteceu com essa menina. Chama Jéssica Polidório. Aí o espírito mau com ela começou a manifestar. Aí as mulheres foram lá, 216 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku levaram no púlpito, porque é como se fosse o altar de Deus, começaram a orar a favor dela, e ela começou a brigar, é forte e, a menina não é forte, mas quando o espírito mau começou manifestar na vida dela, começo chutar, bater... Ai quando as irmãs começaram a orar a favor dela, ai começou essa luta dela. Mais ou menos uns 15 ou 20 minutos de oração, aí começa a se libertar. Quando o espírito do Diabo manifesta na vida de uma pessoa ele pede mais a água, porque diz que aquele lugar onde levou o espírito daquela menina, diz que era bem quente, tipo inferno que a bíblia fala, ela finge que foi embora, finge que já saiu do corpo da menina, mas é mentira.... Só que o pastor foi lá pegar essa água, ai começou a ungir essa água através do espírito santo, ai esse diabo não bebeu, porque quando pastor ungiu é como se fosse um sangue de cristo, ai não conseguiu beber. Começou a falar que queria água de outro tipo. Ai oraram novamente, até que libertasse. Ai começou falar, vou embora não agüento mais vocês.Ai oraram, oraram, ai a menina ficou curada, ficou sã. Aí começaram a fazer pergunta pra ela. Ai começou testemunhar o que aconteceu com ela. Eu já vi vário s ai na Igreja. Essa menina contou que tava num lugar bem longe daqui, e era um tipo um lugar bem quente, um sol bem quente, aí amarraram o braço dela, o perna, o cabelo assim amarrado99 . (Amarildo Júlio, Março/2006). Ou seja, o Diabo é associado ao koipihapati, a possessão; o “espírito mau” que possuiu a jovem Jéssica Polidório e provocava certas doenças foi expulso graças a intervenção do grupo de “oração” da Igreja e ao poder ritual do pastor (que administrou a água “ungida pelo espírito santo”). Assim, as Igrejas Evangélicas atuam e disputam a cura com os “xamãs e benzedores”, através dos cultos de oração, e o pastor da Igreja tem também um poder mágico-religioso que se exerce sobre os koipihapati. A pauta de obrigações das igrejas evangélicas acaba sendo organizada em função da disputa pela eficácia do “poder” de cura manifesto nela. As igrejas evangélicas entram no circuito disputando “a cura” (pela oração), e o fato de ser “crente” não isenta um individuo ou família se ser atacada por uma doença causada por um feitiço ou espírito, ou seja, ela continua sobre a esfera de ação de um koixomuneti. Quintino Mendes, que é tesoureiro da UNIEDAS da Argola, mas morador da SEDE, também deu informações sobre os “maus espíritos”. Contou que iriam fazer campanha de oração (na terça 28/03/2006), na Argola. Falou que as pessoas vão a Igreja, assistem aos cultos e palavras de oração, e ao final fazem uma corrente e quem está com o “espírito mau” ali mesmo manifesta e o pessoal tira o “bicho” do corpo da pessoa (analogia para indicar o diabo ou o mau espírito 100 ). Falou que os mais vulneráveis são as criancinhas principalmente as meninas de 11, 12 e 13 anos e falou que o mau espírito entra e se instala no corpo das pessoas (também os velhos, são alvos destes espíritos). É comum que as Igrejas Evangélicas se dediquem ao “culto de oração” com a finalidade de combater os “maus espíritos”. Esta é uma preocupação tão fundamental que em certa ocasião em março de 2006 estávamos na aldeia Babaçu conversando e pudemos ouvir no programa de rádio, uma pregação realizada por Eliseu Lindolfo Sebastião (da Igreja UNIEAS), que falava da necessidade de apoio ao 99 Esse caso se assemelha em muito aos casos de “roubo de alma”, descritos por Oberg como consitutivos da cosmnologia Terena, e que aparecem também nos relatos de Almeida Serra. 100 O pajé também retirava animais do corpo que seriam a causa das doenças. 217 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku acampamento “mãe terra” e também sobre as “casas que eram afetadas por forças sobrenaturais e que somente com oração era possível trazer a solução para esses problemas”. Pudemos acompanhar um “culto de libertação” em 2006. Às 19 h fomos à tenda da Igreja Missionária Tabernáculo de Jesus, localizada na Vila Nova Esperança. Com cerca de 30 m2, fraca iluminação de lâmpadas, e ficando a tenda na parte da aldeia mais isolada da vila principal e muito escura. O culto foi conduzido pelo pastor Atanásio, contando com a participação de um evangelista de nome Álvaro, e o pastor Luis, seu pai, ambos de Campo Grande. Atanásio conduziu o culto, sempre alternando o português e o Terena/Aruak. Mencionou a presença do purutuye e de outros visitantes. Cerca de 30 pessoas estavam na tenda. Duas filas de banco de madeiras serviam como assentos; os da esquerda eram ocupados pelos homens e meninos e os da direita pelas mulheres e meninas. Depois da apresentação Atanásio chamou as mulheres para apresentarem “corinhos” (cantarem hinos evangélicos), depois os homens e as crianças foram convidados a fazer o mesmo. A música era sempre cantada em volume muito alto (um amplificador garantia isso, acompanhadas de palmas, e gritos e murmúrios de aleluia. Então o evangelista Álvaro tomou a palavra e falou que aquele era uma primeira noite de 3 dias de culto de cura e libertação “para livrar de macumba e exu”. Depois o pasto Luis fez uma pregação abordando o tema da “cura dos cegos por Jesus”, fazendo uma analogia com a cegueira para com a religião. Ao final Lourenço Muchacho fez uma oração e o pastor Atanásio tomou a palavra e chamou a frente aqueles que precisavam de oração e benção para as famílias, para recebê- las, pedindo que levassem pedaço de “roupa ou foto”; seis mulheres, algumas delas chorando, foram a frente segurando roupas e pedaços de toalha. Álvaro, sempre falando muito alto, foi caminhando e ficando frente a frente com cada uma das mulheres colocava a mão em suas testas e pedia a cura e a libertação e a benção de suas famílias. Depois disso o pastor deu mais algumas palavras e culto foi encerrado. O importante a observar neste culto é como os “objetos” de uso pessoal são utilizados de forma “simpática” para realizar pedidos de “cura” neste culto. Assim, o “culto de libertação”, as orações se apresentam como alternativa de “cura” para males de ordem sobrenatural. Cabe destacar a presença no culto de Lourenço Muchacho, que serviu como nosso informante para diversas questões. A sua história de vida é bem ilustrativa de como existe uma cosmologia indígena que serve contexto simbólico-cultural na qual se inscreve a tradição do protestantismo indígena. Vejamos a história de vida de Lourenço Muchacho. Ele nasceu em 10/08/1965 na aldeia Cachoeirinha, sendo filho de Antonio Muchacho (conhecido também como Gato Preto) e Margarida Candelário. Trabalhou na lavoura dentro de Cachoeirinha, e também como assalariado nas turmas que iam para o canavial. Tornou-se cabeçante durante algum tempo, e também atuou nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, chegando a participar de um Encontro das CEB´s 218 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku no Rio de Janeiro no final dos anos 1980. Atuava dentro da Igreja Católica, sendo também seu dirigente. Elegeu-se cacique em 2002, permanecendo no cargo até agosto de 2005 aproximadamente, quando renunciou sobre pressões dentro da comunidade. Neste mesmo contexto ele abandonou a Igreja Católica e se integrou na Igreja Evangélica Tabernáculo de Jesus. Numa conversa com Lourenço perguntamos: Agora você ta atuando com o que? Eu estou na Igreja Missionária Tabernáculo de Jesus, Pentecostal. Agora é que chegou Ministério. (...) É o pastor Atanásio Valério. Você era da Igreja Católica? Porque você foi pra essa Igreja? Eu era da Católica.Ai passei para o Igreja Evangélica. Houve muita dificuldade, muito problema, muito perseguição. Muito perseguição. Também por outro lado eu pensei muito tempo, que na Igreja Católica eu fui coordenação, ai o pessoal me nomearam para ser primeiro dirigente da Igreja Católica, ai fiquei pensando, pensando bastante, estudando analisando o que eu fiz, Ai chegou na minha cabeça eu fui pregador, preguei bastante na Igreja Católica, mas só que eu não levava em prática, eu pensava comigo eu tô enganando pessoa e ao mesmo tempo eu tô enganando a mim, porque eu saia pra fora e se lá na frente se eu quisesse beber eu bebia. Então eu bebia com meu próprio irmão da Igreja, então dessa forma eu estou perdendo o respeito. Eu estou mentido para essa pessoa, quer dizer mentindo para mim mesmo. . Minha esposa passou por uma grande dificuldade, uma provação muito grande. Eu tenho um irmão lá em Campo Grande que trabalha no Centro. Aí levei minha esposa para lá, sabe que ele me chamou, “leva pra lá que eu vou tratar ela”, ai chego lá, fico lá uma semana, ele muda a versão das coisas. Trabalhou, trabalhou bastante, a minha esposa foi piorando, piorando, piorando, ai quando ele viu que não ia dar conta daquela enfermidade que ela sentia... Quando entrou esse 2005, ele falou para mim esse ano seu pai vai morrer. Ele falou pra mim. Eu fiquei meio chateado, porque ele chamou para tratar minha esposa e chego lá ele falou de outra coisa. Desse jeito aí você tá me ofendendo. Mas enquanto Deus existir, porque o mau desejo que você tem contra meu pai isso não vai acontecer. Hoje meu pai tem 92 anos. Passou 2005, entrou 2006 e vai continuar ainda. Aí dessa forma comecei a desacreditar tudo. Desacreditar de mim mesmo fui colocando esse defeito comigo mesmo. Ai falei sabe de uma coisa vou virar evangélico. Isso tem um ano.Ai por isso que eu deixei o cargo de cacique. Vou renunciar o cargo de Cacique e vou para Igreja, cheguei lá fiquei um mês, ai me deram um cargo e ocupei cargo de diácono lá agora. Hoje tô firme lá graças a Deus, eu acho que Deus fez um grande livramento na minha vida, porque passei uma fase muito difícil, muito difícil mesmo, eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque era muito perseguição, perseguição do meu próprio patrício. Sua esposa melhorou? Ela fez tratamento, também fez muita oração. A gente tá na campanha toda noite. Melhorou bastante. Você levou ela em Campo Grande para tratar com quem? Com um macumbeiro, era o meu primo/irmão, que trabalha no Centro Espírita, Benjamim. Ele só mexe com Purunga e Centro. Aí comecei a perder a confiança que eu tinha com ele, se ele não falasse isso pra mim, o mau desejo dele não aconteceu. Por isso que eu sai fora. Depois que o tratamento dela nã o deu certo vocês fizeram o quê? 219 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Voltamos pra cá, Aí falei com ela, vamos parar com isso. Vamos logo para a Igreja. Ai melhorou, e o estado dela agora é normal. Só que ela é diabética. E o que ela tinha? É o seguinte, o povo indígena quando irmão do meu pai agente sempre seguia o que ele falava. Ele sempre explicava, esse aqui não presta, isso aqui serve, aquilo lá não presta, porque eles acreditava mais na natureza, acredita no espírito mau porque eles são purungeiro, eles entendem isso, eles conhece, crianças não pode brincar lá pras 5 horas. 6 horas porque o espírito mau começa andar. Então que acontecia com minha esposa, ela era muito perturbada, depois que o pai dela faleceu começou uma grande perturbação. Então começou essa perseguição, todo curandeiro que a gente ia, “foi o fulano que fez isso”, quem fez isso foi o fulano, foi o fulano, ele mostrava quem era pessoa mas ao mesmo tempo ele pedia, não mexe não, deixa ele”. Falei, como? Tá prejudicando minha esposa como é que eu posso deixar ele assim, livre à vontade. Deixa ele, porque quem sabe nesse mês ai ele vai morrer. Até agora o homem que eles fala que tá judiando da minha esposa o homem tá firme, tá saozinho (risos), bem firme, aí eu falei, isso que é desengano. Falei larga mão, vou para a Igreja. E a Igreja resolveu, como é que o pessoal faz? Porque na Igreja Evangélica, tem varias igrejas evangélicas aqui, tem um que tem doutrina, tem o que não tem doutrina. Então a nossa aqui nós temos a campanha de 7 noites. Essa campanha tem a tema dela na bíblia, quando é noite, ai quando é madrugada, a gente costuma orar 7 madrugada.Quando é meio dia, é meio dia. Ai todas a coisas que quer nos prejudicar a gente já percebe que aquela coisas não vai dar certo, a gente é avisado né. Hoje eu acredito muito na visão dos grandes pastores. Porque eles falaram para nós. (...) Me deram uma instrução. Para o cristão ser forte na presença de Deus tem que orar, têm que ofertar, tem que jejuar. Eu falei tá bom. Como é que é o trabalho que o pessoal faz? Essas coisas assim vêm através do sonho da pessoa. Quando a pessoa é fraca de espírito, quando o espírito sai fora de nós, ai vê a nossa fraqueza, vê aquele medo, aquele depressão muito grande. Quando esse fracasso do nosso próprio espírito, a gente começa a ficar ligado naquilo que a gente tá sonhando e o próprio sonho prejudica a gente. (Lourenço Muchacho,Março/2006). A história de vida Lourenço Muchacho ilustra bastante bem o tipo de circuito que as crenças xamanísticas estabelecem: a esposa de Lourenço, Luzia Albuquerque, começou a sofrer “perturbação” após a morte de seu pai. Lembremos que um dos sintomas das doenças provocadas pelos “koipihapati” é a “loucura” (“fica doido”, ele disse). A partir do momento que tais sintomas foram identificados por ele e sua família, eles seguiram as orientações que as crenças associadas ao xamanismo exigem:procuraram um “curandor” de renome em Campo Grande, Benjamim Muchacho primo/irmão de Lourenço, e que mora na capital há mais de 50 anos, e que possui um Centro Espírita na sua casa, onde trabalha com “umbanda” e “pajelança”. O tratamento da sua esposa levou mais de uma semana e não teve resultados, e ainda, Lourenço se desentendeu com Benjamim, por conta da previsão de morte de seu pai. Então outros “curandores” foram procurados, e o tratamento não conseguiu dar resultados, apesar de vários deles terem identificado que na 220 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku verdade a doença da esposa de Lourenço foi causada pelo trabalho, pelo feitiço de um outro “curandeiro”. A descrença de Lourenço para com o catolicismo e o xamanismo, se deram num mesmo movimento, pois como vimos, sua participação no catolicismo em nenhum momento é vista como entrando em contradição com o xamanismo. Na realidade, foi a incapacidade dos curandores ou purungueiros em efetivar a cura, a persistência da doença e a necessidade de proteção contra o trabalho de um curandor que estava tentando prejudicá-lo, que o levou a romper relativamente com suas relações anteriores e aderir a Igreja Tabernáculo de Jesus. Esta Igreja fica localizada numa área pertencente a antiga Vila Mangao, e próxima a residência de Lourenço. Depois de sua entrada na Igreja Evangélica, a “oração e os cultos” fizeram algum efeito, e sua permanência na Igreja está associada a eficácia mágico-religiosa encontrada nela. Assim, a “conversão” para a Igreja Evangélica, a ruptura com Igreja Católica, não representa de forma alguma a ruptura com as crenças indígenas e as práticas xamanísticas, ao contrário; é pela reafirmação da crença nos koipihapati e no poder dos “curandores”, já que antes de ir para a Igreja, Lourenço percorreu todos as etapas exigidas pela concepção do processo de cura Terena. A ação do cristianismo evangélico indígena se dá para combater os males sobrenaturais provocados pelos maus espíritos, mas se coloca dentro da mesma cosmologia, na mesma concepção simbólicocultural que distingue dois tipos de doença: aquelas que derivam dos espíritos e precisam ser tratadas por mecanismos mágico-religiosos (seja a sessão de cura dos pajés, seja a sessões de oração nas Igrejas), das que são de origem humana, e são tratadas por médicos. As Festas de Santo: Nossa Senhora Aparecida. As Festas de Santo são realizadas ao longo do ano. Existem festas de padroeiros de aldeia, padroeiros de família, que fazem com que durante o ano, múltiplas festas sejam realizadas. Existem diversas “Festas de Santo” na aldeia Cachoeirinha. Na Sede, são comemoradas as datas de “Santa Cruz” (02/05) e Nossa “Senhora do Perpétuo Socorro” (27/06). Cada setor ou aldeia possui seu “santo padroeiro ou padroeira”: Argola é Nossa Senhora Aparecida (12/12): Morrinho é Cristo Redentor (23/11); de Lagoinha é a Santíssima Trindade (02/06) e de Babaçu é Imaculada Conceição (08/12). Além das festas dos padroeiros das aldeias, existem também as festas promovidas pelos diferentes grupos domésticos, que escolhem cada um os santos de sua preferência para a realização de cultos. São estas festas que compõem o complexo ritual. Iremos agora descrever uma situação social que auxiliará na composição da nossa etnografia. É a descrição de uma festa de santo, realizada na aldeia Argola. A festa de santo começou com uma novena, ou seja, um rito católico que dura, nove dias. A novena culmina com a 221 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku festa de santo, neste caso, realizada no dia 12/10, dia de Nossa Senhora Aparecida, santa padroeira da aldeia Argola. No total, foram 11 dias de atividades rituais. No dia 02, às 19:30h pude acompanhar o início da novena. Chovia nesta noite. Ela consistiu na concentração na Capela de Nossa Senhora Aparecida. Quem conduzia a cerimônia, foi Aldo da Silva, morador da Argola, dirigente da Igreja Católica. A princípio foi feita à leitura da bíblia; depois foi realizada uma procissão até uma casa (de um irmão de Alcindo Faustino, pastor da Igreja Assembléia de Deus Indígena). Na procissão, se cantavam algumas músicas cristãs e eram recitadas algumas orações. A imagem da Santa era conduzida na frente, encabeçando a procissão. Ao se chegar a casa, a imagem da Santa foi colocada na sala sobre uma mesa, e a algumas pessoas entraram, outras ficaram pelo lado de fora. Lá foram rezadas algumas orações, as mesmas feitas durante o trajeto da procissão (de aproximadamente 500 metros, da Igreja até aquela residência). Depois da distribuição de pão e refrigerante, o grupo de cerca de 30 pessoas ficou ainda conversando um pouco, e em seguida se dispersou. Este primeiro dia de novena apresenta a lógica de funcionamento do evento como um todo. A Festa do Santo começa com a circulação da imagem dos santos pelas casas, pelas unidades residenciais familiares. A imagem da Santa, no primeiro dia, sai da Igreja em direção a uma casa; depois a procissão tem início na casa em que imagem fica guardada e vai para outra casa, até completarem-se nove dias. Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena. 222 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Ou seja, a procissão se repete nos demais dias da novena. Pudemos acompanhar também o quinto dia da novena. Esta consistiu continuação da procissão, que iniciou-se na casa de Teresa Barbosa, e terminou na casa de outro membro a igreja. A procissão teve inicio com a reza do terço, a leitura da bíblia; depois as cerca de 35 pessoas, seguiram carregando as imagens e vela, e rezando e cantando até chegar na casa. Lá a imagem foi levada para dentro, rezou-se uma ave Maria e Pai Nosso; depois o grupo fez um círculo pelo lado de fora, foi servido pão e refrigerante e lida a bíblia, por Nério José, um dos diretores da Igreja. Depois foi encerrada a atividade daquele dia. No dia seguinte, às 19:30 h participamos da novena novamente. Ela teve inicio na casa de Teresa (não consegui identificar o sobrenome), onde havia terminado no dia anterior; o rito foi o mesmo, oração, leitura da bíblia e saída em procissão até a casa agora de Rufino Candelário (um excacique, membro de uma das famílias mais importantes da Argola). Chegando lá uma mulher pegou a imagem da Santa e a colocou num pequeno altar dentro da casa; foram rezadas a ave Maria e Pai Nosso, seguiu-se à leitura da bíblia e a palavra de alguns dirigentes da Igreja Católica. No dia seguinte a procissão sairia dali, da casa de Rufino Candelário para a de Mauricio Candelário. No último dia da novena, que não pudemos acompanhar (porque o horário foi mudado sem que tomássemos conhecimento) a procissão sairia da casa de uma das famílias e retornaria a Capela de Nossa Senhora Aparecida, um dia antes da festa da santa. O Dia do Santo O início da festa se deu logo pela manhã. Ao mesmo tempo em que se comemoraria a festa da Santa, se comemorava a festa do “dia das crianças”, neste dia 12 de outubro. Por isso, na programação da festa, a primeira atividade do dia seria a dança do bate-pau, mas com um grupo exclusivamente composto por crianças. A concentração se deu na casa de Laurindo da Silva, pai de Aldo da Silva, as 8:50h aproximadamente. Começaram a chegar às crianças que dançariam o batepau. Eram 20 crianças, dez em cada coluna, azul e vermelha (xumono e sukrekeono). Saem andando em formação pela aldeia: 2 colunas paralelas, cada um deles dava um toque no chão com seu bastão e uma batida no bastão do companheiro da fila contrária. O destino seria também as casas dos moradores locais. É feita uma primeira parada na casa do ex-cacique Tomás Martins, lá eles dançam e recebem bolo e refrigerante. Depois saem e vão para a casa de outro ex-cacique, o Rufino Candelário. Também dançam e é distribuído refrigerante e bolo para as crianças, em seguida o grupo saiu e voltou para a Igreja Nossa Senhora Aparecida. O corpo de uma senhora, que morrera no dia anterior, estava sendo velado e foi retirado para sepultamento naquela hora. Logo após teve inicio o culto/missa, conduzidos por Estrogildo e sua Esposa, dirigentes da capela nossa senhora do Perpétuo Socorro, da Sede. 223 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku As crianças do bate-pau entraram e ficaram sentadas nas primeiras fileiras de bancos. Um grupo de três jovens tocava musica e foi feita a leitura da bíblia e pregação. As 10:3h, mais ou menos, foi encerrado o culto e reiniciado o bate-pau pela aldeia, o grupo retorna a casa de Rufino Candelário, e ganham doces e refrigerantes. Saem e vão para a OCA (espaço do centro comunitário, construído dias antes da festa), lá dançam os demais passos (o torneio de futebol já estava sendo realizado paralelamente, com jogos acontecendo no campo ao lado da OCA). Cerca de 80 pessoas assistiam a festa da Santa neste momento. O grupo sai novamente e vai para a casa de Carlito Antonio, ao lado da Igreja Assembléia de Deus Missões. Dançam e recebem bolo e refrigerante e doces. Voltam para a OCA e fazem alguns dos demais passos da dança do bate-pau; é feito o batismo das crianças que dançam pela primeira vez. A dança se encerra com o "acenar dos lenços". Ás 17:30h o grupo volta a casa de Laurindo da Silva, dançam, ouvem palestra dele (que tocava o tambor) e é feito o encerramento. Foto 12- Culto na Capela com o “Bate -Pau”. Durante à tarde, foi realizado um torneio de futebol, reunindo times de Argola, dos demais setores de Cachoeirinha e também de Campo Grande, vindo várias pessoas da Aldeia Urbana Marçal de Souza para participarem da festa do Santo. Ás 19h, foi realizada uma procissão, sendo a imagem da Santa Nossa Senhora Aparecida retirada da Capela, e levada até a “OCA”, que acabara de ser construída. Cheguei por volta das 20h e a imagem de Nossa Senhora Aparecida já estava fixada sobre uma mesa ao lado da OCA, numa casinha que faz parte do centro comunitário. Um 224 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku grupo de cerca de 30 pessoas estava reunido em torno da imagem da Santa. Os coordenadores da Igreja Católica, Nério José e Aldo da Silva falaram. Também falou o ex-cacique Rufino Cand elário. As pessoas se aproximaram e acenderam velas aos pés da imagem encerrando-se a cerimônia religiosa. A noite aconteceria ainda um baile, com dança de quadrilha e música regional. Os bailes são atividades esperadas. Mais de 40 pessoas dançavam nos gr upos de quadrilha, ao som de música de uma banda contratada em Aquidauana. Cerca de 80 pessoas se reuniram para assistir a quadrilha (pessoas de Igrejas Evangélicas também estavam presentes, como da Igreja Assembléia de Deus Missões e Indígena) assistindo e participando da festa. Depois de encerrada a dança de quadrilha, teve inicio o baile, que vai até às 5h da manhã. A Estrutura do Ritual da Festa de Santo. Estamos chamando aqui de estrutura do ritual, o ordenamento das atividades (partes componentes e seqüência de execução) e as relações entre elas, realizadas ao longo de vários dias, e que se encerrou no dia 12/10, com a festa de santo. Podemos dizer que as “festas de santo” em Cachoeirinha (e isto é válido para todos os setores), são compostas por um núcleo mínimo, com seguintes atividades/ações: 1) novena, conjunto de ritos cristãos, realizados na fase que antecede o dia do santo; 2) dança do bate-pau (hyokixoti-kipahê), realizada na manhã do dia da santa padroeira; 3) culto, realizado na igreja; 4) torneio de futebol, realizado na parte da tarde do dia do santo; 5) procissão, realizada na noite do dia do santo, e imediatamente antes da ultima atividade; 6) as danças (incluindo dança de quadrilha e baile com música regional). Nas festas participam os “festeiros” (que promovem a festa, pagando suas despesas) e os “promesseiros”, que são aqueles que fazem as promessas ao santo. Estas atividades integram, de acordo com entendimento que estamos fazendo dos dados, um determinado complexo ritual. Elas não devem ser vistas isoladamente, mas sim em seu conjunto. Podemos dizer que, seguindo o que foi indicado por Cardoso de Oliveira, os Terena tem uma cultura que articula dinamicamente as dimensões do sagrado-profano. Mas para além desta distinção, que tem também um valor analítico real no caso Terena, e que poderíamos dizer ajuda a classificar as atividades do ritual da festa de santo, na verdade no interessa mais identificar a articulação concreta possibilitada por estes ritos, entre diferentes tradições culturais, no caso o cristianismo e o xamanismo, e também a articulação de redes sociais e de parentesco, que vinculam a dimensão mágico-religiosa a dimensão política da vida do grupo. No caso da Argola, é importante registrar a história da própria festa. Pelo que pudemos levantar, a festa da padroeira local teria tido início em 1973, quando a imagem de Nossa Senhora 225 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Aparecida foi doada para a comunidade local. Nesta ocasião, o dirigente da Igreja Católica era João Felipe, hoje um conhecido curandor/koixomuneti, que reside em Argola. As festas de Santo dos Padroeiros da comunidade são festas tradicionais dos Terena. Mas não são somente as festas de padroeiro que são realizadas ao longo do ano. Na verdade, a festa de santo da Comunidade, acompanham festas dos santos preferidos das famílias, ou mesmo, dos curandores, que as promovem com regularidade ao longo do ano. As festas de santo são promovidas como “pagamento” pelas curas realizadas pelos koixomuneti, e como forma de manter a relação de troca e proteção deste com o santo, e também com o curador/koixomuneti ou benzedor. Ou seja, as festas de santo, não são apenas uma festa cristã, tal como vivenciadas na experiência das relações comunitárias Terena. O rito, cristão-católico, se articula com as práticas e crenças xamanísticas, especificas do grupo étnico. A incorporação das festas de santo se faz não pela supressão automática das práticas e crenças mágico-religiosas relacionadas ao xamanismo, mas ao contrário, se processam também através da mediação do xamã, o curandor/koixomuneti. Com relação a este tópico, é interessante observar, por exemplo, a origem da festa de santa cruz. Em certa ocasião, ouvimos uma narrativa de Elias Antonio, morador da vila América, exdiretor da Igreja Católica da Sede, que a festa de santa cruz teria sido motivada, por uma tragédia. Uma epidemia atingiu Cachoeirinha, e várias pessoas teriam morrido. E a data de Santa Cruz, por exemplo. Por que comemora Santa Cruz? A Santa Cruz, antigamente morre muita gente, né. Enquanto não tem a Santa Cruz, morre muito, criança, idoso. Aí tem um velho, pajé, então viram esse movimento daqui, aí entrou na igreja, aí ele viu que não nada aqui na igreja. Então saiu na rua, ele viu que tá faltando a Santa Cruz. Por isso que a juventude, os velhos, a gente morre. Porque não tem Santa Cruz, por isso. Então chegou, assim, em casa, conversou comigo. Eu morava lá em cima ainda, chegou lá e mandou fazer essa Santa Cruz. Aí levantei, conversei com comunidade, velho, idoso né, aí concordou. Então, por isso, levantei a Santa Cruz. Fui eu que levantei. Eu que mandei. Qual era o nome do pajé que procurou o sr lá na Igreja? Gonçalo, que chama. 226 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003. O koixomuneti era Gonçalo Roberto, reconhecido como maior pajé de Cachoeirinha nos anos 1950. Ele teria feito um trabalho, “chacoalhando” a purunga para ver as causas daquela doença ter atingido de forma tão trágica o grupo. Ele teria descoberto que aquela doença teria atingido o grupo por eles terem “descuidado” de dar a festa de santa cruz. A solução apontada pelo koixomuneti foi construir uma capela de santa cruz, como forma de retomar a relação com o santo e eliminar a “causa” das doenças e mortes, que não estavam no mundo material, e não se deviam a condições médico-sanitárias, mas sim mágico-religiosas. É importante observar que “Santa Cruz” é uma festa importante para todo o município de Miranda, não somente Cachoeirinha, mas que é assim re-significada dentro do espaço aldeão, a partir da mediação do xamã e da cosmologia indígena. Além desta articulação entre diferentes tradições culturais, através da festa de santos, temos também a articulação de variações de uma mesma tradição cultural, no caso o protestantismo, com a festa. Como afirmamos em outro momento, as Igrejas Evangélicas se localizam na maior parte dos casos, nas unidades domésticas. E uma das casas em que o “bate-pau” fez passagem, foi a de Carlito Antonio, um dos dirigentes da Igreja Assembléia de Deus Missões. Outro elemento importante é a participação dos membros das igrejas evangélicas na festa, principalmente nas atividades profanas, como baile e dança de quadrilha. Esta postura deve ser observada em contraste com a própria construção das igrejas evangélicas; normalmente a sua identidade se marca por uma série de proibições adotadas como regras de conduta, e que fixam um tabu em relação a estas atividades 227 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku (tanto mágico-religiosas quanto profanas). Cremos que este é um ponto importante de se observar, porque o recrutamento das Igrejas Evangélicas se faz a princípio com base nesta regras, mas depois estas mesmas regras se tornam motivos para crises e rupturas dentro delas, e freqüentemente são abandonadas pelas próprias Igrejas101. Cremos também que é preciso correlacionar este fenômeno com o contexto sócio-cultural do grupo dentro da situação histórica, com o conjunto de acontecimentos históricos e tradições culturais que se territorializam nos espaços de circulação do grupo étnico. As Festas de Santo possibilitam a visualização de uma articulação social, entre famílias e indivíduos que residem fora das reservas, principalmente na capital do estado, Campo Grande, e as relações comunitárias aldeãs e o complexo-ritual local. Esta participação é um fato regular, e tem de ser observada com toda a atenção. Os indivíduos e famílias migrantes (ao contrário do que a visão dos estudos de aculturação/assimilação indicavam), não perdem necessariamente seus laços e suas obrigações para com o grupo. Isto porque a “distância concreta” destas famílias para com o território do grupo, é muito reduzida (considerando a relação Campo Grande/Miranda ou Pantanal). Desta maneira, se existem fluxos aldeia/metrópole, a princípio por motivação econômica, existem também fluxos regulares metrópole/aldeia por motivação sócio-cultural, que são as visitas e a participação regular no complexo-ritual local (como festas de santo, dia do índio e oheokoti). Tivemos a oportunidade de conversar informalmente com uma mulher, nascida e criada em Cachoeirinha, e que hoje mora em Campo Grande com seu marido, um purutuye (branco), e filhos. Esta mulher é irmã de Luis Carlos Antonio, e foi na casa deste durante um jantar, que pudemos conversar com ela e sua família. Ela disse que mora em Campo Grande há 30 anos, inicialmente trabalhou como empregada doméstica. Disse ainda que não acostuma mais de morar na aldeia, que só fica uns poucos dias, mas que sempre vai para lá com os filhos nos dias de festa, como aquele. No meio da conversa, surgiu uma história sobre um “lobisomem” que estaria aterrorizando a aldeia e sobre o perigo de circular a noite na aldeia e uma mulher, parente do seu marido (que é um branco) que a estava acompanhando questionou “se isto existe mesmo”. A Terena afirmou com toda a convicção a existência de tal ser, e que as estórias eram realmente verdadeiras. Devemos observar que, de acordo com as crenças xamanísticas Terena, o curandor/koixomuneti, tem o poder de se transformar em animais. Não foi a primeira vez que ouvimos estórias sobre lobisomem em Cachoeirinha. Altenfelder Silva considerou isso como uma demonstração da “mudança cultural”: “Os índios Terena de Bananal as suas antigas crenças 101 Isto é o caso da Assembléia de Deus Indígena. Conversando com Evanildo Faustino, músico da igreja, filho do Pastor Alcindo Faustino, ele comentava em tom irônico, sobre as regras indumentárias rígidas de usar calças longas e roupas largas para cobrir o corpo, e disse : “se deus quisesse que eu usasse calça, não mandava um esse calor de 40º”. Isto mostra como estas regras são manipuladas e subvertidas para este contexto local. Outro exemplo, é o de Fernando Pereira, vice-cacique da aldeia Morrinho, e que seria segundo informações um curador (ou benzdedor). Ele se converteu a Igreja Assembléia de Deus Emanoel, liderada por um primo e adversário do cacique Isidoro Pinto do Morrinho, mas apesar disso, nos disse Isidoro, continua atendendo e realizando “curas” quando procurado pela população local. 228 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku substituídas em parte pelas crenças bíblicas e pelos mitos caboclos. Em Bananal poucos índios serão capazes, de explicar quem eram Yurikoyuvakai, Voropi,Vanuno ou Hihiai- uné. Em compensação quase a totalidade conhece casos de assombração causados pelo lobisomem ou pela mula sem cabeça” (Altenfelder Silva, 1949, p. 359). Durante esta etapa de campo, ouvimos várias vezes narrativas sobre isto. Podemos citar uma, para marcar a relação desta narrativa em relação às crenças mágico-religiosas: Morreu, o culpado, foi aquele que eu falei, um fulano da Cachoeirinha. Você não conhece o finado Belinho?. Morreu aquele rapaz, um homem forte, não tem nada para sentir, morreu, mas a família dele sabe que ele foi matado, quem que matou o curandor, O Leocádio foi isso também. Não sei por que não tem coragem aquele família, não sei porque, por isso que ele acostumou aquele cara, acostumou ninguém mexer ele (...) Ali no mata -burro de repente, apareceu um bicho, ali, lobisomem, diz que lobisomem eu não sei o que é, a noite né ...na primeira, ele veio assim oito hora, um bicho grande, para cerca ele na estrada, não quer passar, cercou um rapaz, voltou, não foi embora os que quando foi de dia ele falou para nos... no outro dia o meu filho ele trabalha para FUNASA, o meu filho encontrou o bicho...mas ele tem coragem, ele parou, parou para enfrentar ... ai o bicho ...quando ele tem coragem,pulou para fora de estrada... e dali acabou (...) ai aquele morador perto de mata-burro, viu ele ali no pé de caju ali.(...) E o bicho ali, o lobisomem,e quando ele buscou um pau e jogou, ai pulo no mato e aí acabou ...Aí outro meu filho aqui, meu pai vamos a no mata-burro ali a noite, vamos cuidar dele, vamos esperar.(...) Aquele fulano sabe o que você ta ideiando aqui (...) o meu filho queria esperar lá perto de Cachoeirinha, porque nós tamos sabendo vem de lá, de lá da Cachoeirinha, quando escurecer vamos lá, assim que ele falou . Mas aquele bicho já sabe o que nós tamos ideiando aqui. Diz que ele falou, óia aquele família eu não vou facilitar, eu não vou mais ir lá, é algum pessoal que fala para nós ... é verdade que parou mesmo...O meu filho falou para mim, se fosse a gente mesmo, eu não quero saber, eu ia atirar ele, mas diz que ele ta sabendo, o curandor ele sabe para olhar aquele frente ...(Isidoro Pinto, Morrinho, Setembro de 2004). Vemos no depoimento, que o “lobisomem” é um curandor que age dentro da aldeia. Conversamos filho de Laurindo da Silva, que também mora em Campo Grande onde trabalha como carregador, e que estava ali para participar da festa do santo. Ele diz que sua família inteira morou em Campo Grande. No entanto, sua família voltou para Cachoeirinha porque sua irmã ficou doente precisava se tratar com um "curador". Segundo ele o tratamento deu certo, “pois ela está aí até hoje", disse. Estes casos servem para ilustrar como se mantém uma participação importante de parte das famílias migrantes para a metrópole Campo Grande, através disto que estamos chamando de complexo ritual local. Este complexo seria composto por um conjunto de festas: as Festas de Santo (incluindo os padroeiros das aldeias, e as festas de santo familiares), a Festa do Dia do Índio, e a Festa do Oheokoti. Mesmo nas festas de santo, é ritualizado o hiokixoti kipahê, de maneira que o mito da guerra do Paraguai está sempre presente. Além destas duas articulações, devemos chamar a atenção também para a articulação ritualpolítica. As atividades das festas de santo servem também para ilustrar esta relação. A presença de um ex-cacique, e importante liderança política na condução do rito da festa, especialmente na procissão final da festa de Nossa Senhora Aparecida, não é ocasiona l. Na verdade, ao que nos 229 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku parece, tanto as atividades rituais religiosas podem ser uma base para a ascensão política das lideranças (e são também uma forma de liderança política), quanto às atividades políticas se apóiam ou exigem uma participação nestas atividades rituais. Além do caso de Rufino Candelário, excacique e líder de uma família extensa importante em Argola, a família Candelário. Podemos citar também o caso de Argemiro Turíbio, que também conduziu uma festa de santo, a Festa de Santa Cruz, no ano de 2003. Argemiro é neto de Lino de Oliveira Metelo, um ex-cacique e “grande” curador/koixomuneti, de Cachoeirinha, segundo o depoimento de diversas pessoas. Segundo as informações que dispomos, e que abaixo poderemos sistematizar, os “caciques” são sempre lideranças religiosas ou tem em suas redes de parentesco relações diretas com xamãs ou com as igrejas. Existem indícios que nos levam a crer que o status religioso é um dos fatores, mas não o único, a servir como base de legitimação política de um líder. Desta atividade concreta, a festa de santo, podemos destacar estes três elementos: 1) a articulação de diferentes tradições culturais (ritos e mitos), dentro da vida aldeã Terena; 2) a articulação social entre os indivíduos e famílias em situação de “diáspora urbana”, com as relações comunitárias étnicas, o que indica uma profunda vinculação sócio-cultural do grupo étnico em diferentes situações de territorialização, através de redes de parentesco ; 3) a articulação ritual (religião)/política, como uma das características fundamentais da organização social e cultura Terena. O complexo ritual cria um circuito de trocas permanente ao longo do ano: as festas de santo em que são realizadas “trocas” entre os grupos domésticos e os santos, através da mediação das igrejas e curadores (ou seja, há uma permanente troca de símbolos e signos); o Dia do Índio se apresenta como outro destes momentos, mas não o único. Além disso, o rito do hiokixoti-kipahê é encenado em todas as ocasiões importantes, o que faz que isto ocorra várias vezes no ano. Este complexo ritual expressa também algumas das relações e características estruturais da atual situação histórica, de forma que as ações expressivas e o discurso indígena só fazem sentido a luz desta mesma situação. 4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder. O funcionamento das tradições culturais e organização social Terena na atual conjuntura histórica mostra que não podemos separar a sociedade Terena da experiência da mudança social e histórica, pois essa sociedade é produto e soma de tais mudanças. Nesse sentido, a interpretação da cultura e organização social, não pode ser dissociada da análise das relações de poder e das condições materiais de experiência das coletividades. 230 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku A reconstrução da “cultura Terena no tempo do Chaco”, feita a partir da ótica das teorias da aculturação/assimilação, ignorou uma série de elementos importantes, e levou a uma interpretação equivocada dessas relações. Supô-se que as relações entre sociedade indígenas e sociedade nacional, desde que foram estabelecidas, iniciaram um ciclo de declínio sócio-cultural dos povos indígenas, quando a análise da história Terena mostra que isso não é verdade. Na realidade, devemos observar primeiramente que a cultura (certos rituais simbólico-expressivos e formas de organização social) estavam associadas ao tipo de balanceamento de forças no sistema social indígena, ao tipo de equilíbrio de poder estabelecidos entre índios e forças coloniais, o que implicava em modos históricos de acesso aos territórios e recursos naturais. Ou seja, a cultura e organização social eram interdependentes das relações de poder e condições materiais de existência. Duas teses foram apresentadas para interpretar, por exemplo, a organização social Terena. A de Altenfelder Silva, sugere uma organização dos Terena em “quatro classes”: os “naati”, os “wharé-chané”, os “cauti” e os chuna-axeti (Altenfelder Silva,1949,p.286). Cardoso de Oliveira faz uma crítica desta interpretação, levantando a hipótese de que na verdade a organização social Terena teria uma divisão “tríplice e assimétrica” (naati”, os “wharé-chané”, os “cauti”) baseada no status político, e uma “dual e simétrica” baseada em regras rituais; os chuna-axeti não constituiriam uma camada de status, mas sim um segmento dos “naati”. O que nos interessa é discutir os pressupostos sobre os quais são estabelecidas as interpretações acima. Supõe-se, ou parece que supõe-se (mesmo que implicitamente) que esta organização social se definiu por si própria, quando na verdade, não podemos compreender esta organização social sem levar em conta todo sistema e dinâmica de relações existente dentro do Chaco/Pantanal. Isto porque os “cauti” eram uma categoria do sistema do Chaco Pantanal, e não de um grupo específico. “Cativo” era a designação que os Mbayá-Guaicurú atribuíam aos “Terena”, e sua posição social e simbólica dentro do sistema do Chaco Pantanal. Outros povos também eram periodicamente vitimas de ataques Mbayá que visavam adquirir “cativos”, seja para realizarem trabalhos para eles, seja para serem negociados nas povoações espanholas e portuguesas. Quando o sistema indígena é desarticulado e é estabelecido um maior controle sobre a sua força de trabalho, inevitavelmente essa estrutura é modificada, mas isso se dá somente nas últimas duas décadas do século XIX. Durante cerca de 80 anos, existiu um padrão de inter-dependência entres os índios e as forças coloniais em que o Estado tolerava a autonomia relativa dos índios e coexistia com a alteridade étnico-cultural. A figura dos “cativos” desaparecem progressivamente – enquanto categoria social de trabalhadores agregados – com o desaparecimento do poder de guerra dos índios. Com relação à divisão da sociedade e Terena em duas “metades” (xumono), as evidências empíricas nunca foram suficientemente fortes para comprovar sua operatividade na regulação do matrimônio e organização social. Os dados revelam sim que ela esteve associada a um 231 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku ritual, o “mootó”, que consistia numa briga coletiva perpetrada pelos Terena. Os relatos de Ricardo Almeida Serra descrevem um ritual idêntico entre os Guaicurus, e que estaria associado as festas e as atividades guerreiras. Nesse sentido, o ritual estava associado às “correrias”, à “captura”, às “festas”, de maneira que a divisão “cerimonial” também expressava uma dinâmica e uma experiência histórica particular. O desaparecimento desse ritual, já que o último teria acontecido em 1910 (ver Cardoso de Oliveira, 1976), se deu no momento de formação das reservas e na consolidação da subjugação dos índios Terena, privados de qualquer possibilidade de práticas guerreiras. Ao mesmo tempo, no final do século XIX (no ano de 1898) o comerciante J Bach visitou várias aldeias de Miranda, e descreveu a existência do Oheokoti (festa das plêiades que coincidia com a “semana santa”) e também uma dança, realizada por homens e mulheres, comandada por “dois caciques” e que consistia em “bater taquaras”. Também narra a figura do “koixomuneti ou cacique”, como “chefe hereditário”. No final do século XIX, já existia uma “reelaboração da cultura e organização social em curso, que se consolidaria na situação de reserva. Ao contrário da situação de “eminente perda de cultura” – elemento do discurso indigenista e das teorias da aculturação/assimilação – o que vemos é que na realidade, seria uma hipótese plausível indicar que depois da destruição do sistema indígena do Chaco – com a mudança no balanceamento de forças entre índios e Estado-Nacional, e das formas de acesso ao território e recursos naturais – a cultura e organização social do grupo passou por um processo de mudança e adaptação aos novos padrões históricos das estruturas de poder e condições materiais de existência. E mais, como essas condições pouco se alteraram no último século, as mudanças culturais verificadas são muito reduzidas, de maneira que expressam a combinação de tradições culturais e estratégias políticas indígenas (através da difusão de sub-tradições como protestantismo indígena e a re- interpretação de símbolos e signos nacionalistas). A etnografia de Cachoeirinha na atual situação histórica permite ver a coexistência de duas tradições culturais que se articulam a partir de uma cosmologia comum, que fornece os elementos mínimos de significação e simbolização. A cosmologia Terena, centrada na concepção de que os vivos e os mortos estão num mesmo plano, numa mesma comunidade, de que existem espíritos (koipihapati) bons e maus, tanto de seres humanos quanto de animais, e que estes podem se comunicar e interagir com índios, através de curandores, benzedores e pastores. A crença nestes espíritos explica tanto certas atividades mágico-religiosas dos xamãs, quanto das Igrejas Católicas e Evangélicas. Neste sentido, podemos falar que pela concepção Terena de cura e doença, existem dois planos que não entram em contradição: o das doenças que são provocadas por espíritos (encosto), e as doenças provocadas por causas naturais. Os tratamentos não se chocam, os saberes e 232 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku os poderes não se excluem (ver Carvalho, 1996) 102 . Assim é possível trabalhar simultaneamente com uma pluralidade de referências culturais (cosmologia cristã, cosmologia Terena) e processos de cura (mágicos, médicos) sem que isto implique em uma abdicação permanente de alguma das referências. Existe uma crença comum, para católicos e evangélicos, de que os “espíritos”causam doenças e que os “pajés” curam, de maneira que elas intervém oferecendo uma alternativa de proteção e cura dentro da comunidade. O elemento fundamental do modo de distribuição do conhecimento e materiais do xamanismo, enquanto tradição cultural, é que ele se dá num circuito relativamente fechado, marcado pelo segredo, e suas formas de transmissão obedecem a regras que o próprio koixomuneti estabelece. Mas os parentes de um koixomuneti podem herdar tais conhecimentos e materiais, que se adquire também pelo exercício como “ajudante”. Além disso, um espírito de um morto pode exigir que seu familiar retome seu trabalho, e continue sua tradição, de maneira a perseguir os vivos para realizar trabalhos com “a purunga”. Isto em tese significa que pode haver hiatos geracionais na reprodução desta tradição, de maneira que uma geração pode ficar sem koixomuneti, e eles ressurgirem, seja porque um descendente decide reativar estes conhecimentos e ritos invocando o espírito de um morto, seja porque o próprio espírito obriga os vivos a fazerem isso. As características do koixomuneti normalmente se manifestam nos homens e mulheres idosos, o que significa também que ao longo da trajetória de um individuo, ele pode ser estudante, trabalhador rural, evangélico e só manifestar as características de um xamã, depois de passar por estas experiências diversificadas e multi-culturais. A inadequação da teoria da aculturação se mostra por completo quando consideramos estes elementos. Isto tem também uma outra conseqüência importante. Significa que o xamanismo Terena tem uma organização estratificada: de um lado, estão os koixomuneti, que comandam o processo de cura e realizam a comunicação com os espíritos; de outro estão os pacientes, que usam os saberes e poderes destes. A diferença da distribuição do conhecimento destes é expressiva. Os conhecimentos de um curador sobre o xamanismo são muito maiores do que o da média da população indígena. Resulta disso também que a relação com curador, se dá pelo poder de cura que este detém. As Igrejas Evangélicas se moldam em grande parte dentro da cosmologia Terena, das crenças nos koipihapati, que implicam na aceitação de uma cosmovisão especifica, forjada pelos ritos e praticas xamanísticas. O fato das Igrejas Evangélicas terem se constituído em grande parte pela cisão faccional da Igreja Católica, faz com que muitos dos pastores ou dirigentes de Igrejas Evangélicas tenham algum conhecimento do xamanismo, quando não são profundos conhecedores. Como no caso de Anésio Pinto, mesmo sendo um dirigente da Igreja UNIEDAS, tem algum 102 A autora analisando as práticas de cura entre os Terena de Bananal, chega à conclusão de que eles operam em dois sistemas distintos, dois tipos de doença que demandam intervenções diferentes; as doenças naturais e sobrenaturais, sendo que os tratamentos podem ser mesmo complementares. 233 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku conhecimento sobre o xamanismo por ser filho de um pajé, e manifesta respeito para com estes. Ou ainda o próprio Lourenço Muchacho, que recentemente aderiu a uma Igreja Evangélica, tornando-se inclusive seu dirigente. Entendemos que se por um lado não devemos entender a proliferação do protestantismo e do cristianismo em geral, como uma forma de supressão do xamanismo, tão pouco correto seria considerar o cristianismo como uma forma “externa” ao grupo. Na realidade estamos considerando aqui tanto o xamanismo como o cristianismo, como formas simbólico-culturais que só existem por processos concretos de combinação (de símbolos e significados). Os Terena estudam a bíblia, ouvem durante quase todo o dia rádios com músicas e programas evangélicos, participam de encontros, estudam em seminários e cursos de teologia, enfim, estão profundamente inseridos na simbologia e nas práticas cristãs, tanto quanto qualquer comunidade do campo ou da cidade, naquela região do Mato Grosso do Sul. Eles entram em choque em muitas vezes com os caciques para poder ter o direito de construir tendas ou templos das Igrejas, dedicam-se a articulações políticas que visam angariar recursos para melhorar as edificações destas igrejas (transformando-as de tendas de palha em construções de alvenaria), e dedicam uma parte importante de seu tempo semanal as atividades das igrejas (cultos, vigílias, grupos de oração e etc). Muitos inclusive já viajaram para trabalhar como Missionários junto a outros povos indígenas, como é o caso de Quintino Mendes, que morou alguns meses com os Xavante, em Mato Grosso, com o objetivo de desenvolver o trabalho missionário da Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Logo, os Terena são efetivamente cristãos, já que eles adotam ritos e mitos oriundos desta cosmologia, e a empregam e reproduzem. Entendemos que a interpretação que mais se aproxima da realidade empírica é aquela que considera a coexistência de duas tradições culturais, o xamanismo católico – que é a forma que a experiência histórica da conquista colonial e das reações político-culturais indígenas deram ao xamanismo Terena- e o protestantismo indígena, já que tanto a organização social quanto os significados simbólico-culturais dependem da prática indígena como se verifica no contexto local. Poderíamos dizer que a “grande tradição” o cristianismo se implantou dentro de Cachoeirinha, sob a forma de duas sub-tradições. Mas ambas as sub-tradições foram submetidas a um processo de interiorização e resignificação dentro do contexto aldeão, de maneira que se subordinam em aspectos muito importantes a conceitos/signos chave da “pequena tradição”. A “pequena tradição” predomina no contexto local, no processo de construção social do significado da experiência, já que mesmo as Igrejas Evangélicas precisam atuar no combate a doenças sobrenaturais e aos espíritos dos mortos e da natureza. A grande e a pequena tradição não se encontram separadas de forma nítida, ao contrário; tanto a organização social indígena é veículo de transmissão e reprodução da “grande tradição”, quanto às instituições (como as Igrejas e seus símbolos) podem ser meios de reprodução e comunicação das crenças xamanísticas. Essa 234 Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku sobreposição de identidades e territórios (étnicos e nacionais), articulação experiências e estruturas de poder, intercambio de símbolos e signos, tem um profundo impacto político. Um outro elemento importante é a percepção da operatividade das unidades sociais (os grupos domésticos e os grupos vicinais) na construção das relações sociais e culturais dentro da aldeia. Os mesmos critérios de diferenciação irão operar dentro da dinâmica política como poderemos ver, expressando-se inclusive sob formas simbólico-culturais, e explicando em parte a articulação e conflito entre as diferentes tradições. Dessa maneira, vários pontos de conexão estabelecem-se entre cultura e política, tradições de conhecimento e faccionalismo. Estas questões são ainda mais importantes quando consideramos a dimensão política da ação simbólica. Com relação aos significados e narrativas atribuídos pelos indígenas à dança do bate pau, podemos dizer que realizam a articulação de duas expressões simbólicas, uma nacional-estatal e outra indígena, dentro do ritual do Dia do Índio. A identidade étnica se sobrepõe à identidade nacional, mas por meio de uma interpretação indígena, que estabelece um status privilegiado para os Terena na construção da Nação. Ao mesmo tempo em que se afirma à idéia de “resistência” se delineia um projeto de colaboração política com as agencias estatais. Ao mesmo tempo em que os índios invertem a idéia de “incapacidade” estruturante da tutela, assimilam as narrativas triunfalistas do Estado-Nacional. Essas contradições não somente expressam a dinâmica política, mas fazem parte dela. Os discursos indígenas, do cacique, chefe de posto e professor (e notemos que antes o papel de professor e de chefe eram a materialização da “sociedade nacional” frente aos índios como elemento superior e exterior) apontam para a afirmação da capacidade política indígena, do protagonismo étnico. Essa noção de protagonismo étnico se desdobra em dois movimentos distintos; a formulação de uma narrativa que toma a noção de “resistência” como um operador central para a construção da memória e história indígena, mas vejamos, uma noção de resistência “romântica”, derivada da concepção sertanista do antigo SPI; e a defesa de um projeto político, o da “ocupação de espaços” – dentro dos órgãos de Estado - a transformação dos índios em funcionários, ou seja, uma das muitas expressões locais para designar o que estamos chamando de “co-gestão” indígena. Ao mesmo tempo, essa narrativa não se cristaliza somente nos discursos das lideranças, mas também na própria organização do “bate-pau”, na mito-história interna da dança que evoca ao mesmo tempo elementos históricos – a experiência indígena da colonização – e míticos – já que personagens como Kali Sini , representam não somente pessoas históricas, mas entidades sobrenaturais. É por isso que uma análise etnográfica que não dê atenção devida para estes elementos, pode não conseguir superar o “semantical gap”, que Roberto Cardoso de Oliveira detectou na sua comunicação pessoal com os Terena nos anos 1950. 235 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização faccional: a organização política Terena. “Para concluir, quero deichar meu parecer: em resumo, de que ouvi durante a reunião e posterior na reunião em Campo Grande, na Delegacia Regional, FUNAI ficou bem claro/que os indígenas estão numa individualidade tensa e uma grande procura do poder e status, não se preocupando nem mesmo com seus compatriotas, e que teremos daqui pra frente uma dura batalha para terminar, ou melhor para acompanhar com muita habilidade, vista tentar não deichar estravasar os limites. Acho eu os indígenas, particularmente os nossos Terena, estão muito politisados, cada um fasendo seu jogo/disendo que está coesos, juntos, na realidade, isto só aparente/na verdade é um passando “seu” o outro para traz defendendo o seu interesse próprio, acredito piamente, não ser de sua própria cultura, mas sim de uma política divercificada de várias entidades política, religiosa e outras que vem causando esta individualidade como já disse; em outras palavras, o índio não sabe mais a quem acreditar, são tantos os donos da verdade? Relatório do Encarregado do Posto Cachoeirinha, 1982. Neste capítulo iremos focalizar a dinâmica da organização política Terena, e mostrar como esta organização se moldou e transformou a partir da “oposição a” e “composição com” as instituições estatais ao longo do processo histórico de formação do Estado-Nacional, e ao mesmo tempo, como seu funcionamento hoje é profundamente interdependente dos contextos e processos societários nacionais e mundiais. Pretendemos mostrar como, de um lado repressão/colaboração, e de outro, as formas cotidianas de resistência, consistem em estratégias políticas componentes de uma totalidade e que suas interações concretas constituem a dinâmica política básica inerente ao regime tutelar. Iremos isolar aqui dois conjuntos de processos sociais relativos à diferentes relações políticas e sociais dentro de Cachoeirinha: 1º) os “dramas” ou conflitos de sucessão dos caciques ou capitães Terena, num período de aproximadamente cinqüenta anos (1960-2006); 2º) os empreendimentos indigenistas e dramas de cisão que levaram a formação de múltiplas aldeias dentro de Cachoeirinha, e que expressam a tendência de descentralização e segmentação política deste grupo indígena. A análise destes conjuntos de processos sociais, permitirá a visualização da dinâmica política faccional e de como as formas da resistência contra a tutela expressam a fricção da organização e política indígena com a política indigenista, ou seja, a adaptação de uma política de um Sistema Estatal a realidade local das aldeias Terena. No final dos anos 1950 em Cachoeirinha, a morte de um “capitão” deu início a uma “luta pelo poder”, uma disputa para ver quem ocuparia o Posto de Cacique; isto estaria expressando “o esvaziamento da autoridade tribal, que não mais seria levada em consideração pelo SPI (ver Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110). Mas esta luta pelo poder não se encerrou; ao contrário, se institucionalizou, e demonstrou ser um fator estrutural componente do regime tutelar. Na verdade, 236 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional este conflito de sucessão se constituiu apenas num dos “atos” de “dramas sociais” de longa duração. A luta pela “sucessão” do Cacique se mostra como um fator contínuo na história de Cachoeirinha e outras reservas indígenas Terena, e expressam as disputas entre facções políticas e grupos domésticos pelo poder local. Os conflitos entre algumas facções políticas existentes hoje em Cachoeirinha, organizadas e lideradas por homens como Alírio de Oliveira Metelo, Sabino Albuquerque e Esídio Albuquerque, remontam diretamente aos acontecimentos verificados nos anos 1950. Analisaremos os processos de luta pelo poder na aldeia Sede, tomada como caso exemplar para análise das formas de ação/reação entre a política indigenista e política indígena. Demonstraremos que o desaparecimento das antigas formas de organização política não foi completo e o que se deu a partir dos anos 1950, com a consolidação da situação histórica de reserva, foi à transformação das categorias sociais e da organização política indígena (em função do regime tutelar e política indigenista, mas também das estratégias dos grupos domésticos, facções políticas e lideranças indígenas), num processo dialético em que a centralização estatal combinou-se com a lógica segmentar e transformando-a numa descentralização faccional. Os principais conflitos políticos do presente etnográfico, bem como dos últimos 50 anos da história local de Cachoeirinha só podem ser compreendidos a luz dessa dialética, da interação entre política indigenista e política indígena e da dinâmica do campo e arenas das relações interétnicas. O principal objetivo da política indigenista era a imposição da centralização política; os Terena, apesar de serem sempre vistos como colaboradores do Estado, desenvolveram políticas de resistência cotid iana a esta centralização. 5.1 – A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha. Em Cachoeirinha, no ano de 2004, existia também uma luta política pelo poder. O cacique da Sede, Lourenço Muchacho estava enfrentando um movimento de oposição, encabeçado segundo ele, por uma “associação” existente em Cachoeirinha. O Cacique Lourenço estava travando uma luta surda com o Chefe do Posto, Argemiro Turíbio, e esse por sua vez fazia várias críticas ao Cacique e seu desempenho político e administrativo. Cabe registrar que o ano de 2004 era um ano de eleições municipais e para as câmaras de vereadores e prefeituras. As disputas políticas estavam profundamente acirradas também por conta das situações sociais verificadas dentro dos campos e arenas das relações interétnicas. As possíveis alianças com partidos e lideranças políticas do município afetavam a vida dentro da aldeia. Pudemos perceber esta situação de maneira indireta, pelos comentários que alguns índios faziam sobre a necessidade de “tirar o cacique”, pelas conversas e movimentações dentro do Posto Indígena, onde estávamos hospedados na ocasião. Em certos momentos alguns índios (como Tomás 237 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Balbino, morador da Vila Cruzeiro) nos chamavam para conversar e colocavam reclamações sobre o cacique, sobre a possibilidade dele “sair do cargo” antes do fim do seu mandato. A crise estava tão acentuada, que mesmo as reuniões do “conselho tribal” não estavam sendo realizadas. Sabendo desse fato procuramos o cacique Lourenço Muchacho, na sua casa para conversar. Ele narrou os acontecimentos daquele período. Perguntamos: “E com relação à política indígena aqui na Cachoeirinha, como é que tem sido sua gestão, tem tido problema”? “Tem, tem esse atrito, tem essa divisão, divisão da associação, não quer se aproximar com a liderança, às vezes tem uma Igreja ai não quer se aproximar com a liderança... tem uma comunidade ai que não são associado não quer se aproximar com a liderança... acho que no meio de tudo isso a gente não tem como se oferecer, isso dependeria mais dele para chegar mais perto, participar do reunião para saber o que tá acontecendo, as vezes as pessoas nos critica nessa parte o seguinte ...que a gente não tem feito nada, claro que eu vejo assim que eu não fiz nada assim de obra, reformar trator, reforma de viatura, a dificuldade é muito grande, isso ai que afastou a comunidade, associação, essas outras igreja, um pouco de comunidade, por isso que eles se afastou de mim, por não ter visto nada que eu fiz para eles poder trabalhar, então e por isso que eles se afastaram no meio de tudo isso a gente reivindica ... FUNAI principalmente fala que não tem recurso, chega mais ou menos trinta reivindicações para esse conserto nunca foi executado nenhum .... Principalmente município, estado, segundo o estado, a gente tem reivindicado isso pra eles também, mas a gente reivindica esse trator que eles reconhece que é patrimônio do Governo Federal, da FUNAI, as viaturas eles sabe que é patrimônio da FUNAI... Só que a maior dificuldade para nós são essas Administração lá em Campo Grande, porque eles não tem aproximação com o Estado, segundo o pessoal do Governo do Estado eles fala isso ... se o ex-administrador tivesse um dialogo com o estado o Estado poderia ajudar FUNAI para poder levantar isso... Mas não tem como, o cara não tem essa aproximação então dificultou para nós também que somos comunidade ... Então para nós tem essa dificuldade. Então foi isso que afastou comunidade. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004). As “associações”, as “igrejas”, são mencionadas diretamente como os vetores deste “afastamento” das comunidades indígena da “liderança”. O conflito se daria entre os grupos religiosos, associações, de um lado, e o cacique, de outro. A motivação seria o descontentamento com a gestão dos recursos materiais que deveriam ser transmitidos pelo Estado (nas esferas federal, estadual e municipal). O cacique, entretanto aponta como problema a escassez de recursos da FUNAI, que não repassa verbas para investimento nas aldeias indígenas. Mas a responsabilidade pela não obtenção de recursos, segundo a análise de Lourenço, é atribuída pela comunidade ao cacique. Daí a crise política instaurada em Cachoeirinha. Na verdade, isto constitui apenas um dos lados do problema. Na própria entrevista o cacique Lourenço mencionou outros fatos importantes. Perguntamos: “E por que isso aconteceu? Pois é... Uma divisão muito grande, deixa eu me lembrar o que aconteceu daquela vez... quem criou mais essa cabeça daquela vez foi a Associação do Alírio, foi o Pastor Zacarias, o Vitorino Paulino, quem criou essa briga foi eles, eras as minhas lideranças. Eu chamei eles para trabalhar juntamente com agente na liderança. 238 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Era a queixa de uma moça, uma mulher, que é a esposa do meu sobrinho, foi lá na casa do Zacarias, que na época era presidente do Conselho, inventou um montão de coisa, disse que eu tava perseguindo ela, aí me chamaram, ai o Presidente do Conselho me chamou para sentar com as lideranças e conversar sobre isso. De primeira eu não fui, eu mandei a comissão minha, ai a comissão foro lá, e a comissão diz mas eles não aceitaram, você tem que ir lá, ai num dia de sábado eu fui lá, cheguei lá tava uma dona, o esposo dela, sentado tudo junto, então quem primeiro começou a conversa foi presidente do conselho, ai passou para dona, ai a dona falou para mim que eu tava perseguindo ela, faz tempo... Ai eu tenho um irmão que mora aqui, que falou assim, eu acho que isso ai tá errado. Onde já se viu que uma mulher que tem caso com outra pessoa contar para o seu próprio marido. Isso é um papo furado. Ai eu vi que as coisas tava tudo errado mesmo e ai eu falei para ela no meio de todo mundo, eu nunca tive caso com você. Mas isso foi armação política deles porque eles queriam me tirar de todo o jeito”. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004). O que havia acontecido, era a formulação de uma acusação contra o “cacique”, de estar envolvido numa relação “extra-conjugal”, sendo tal queixa apresentada ao Conselho Tribal, e poderia implicar diretamente na deposição de Lourenço do seu cargo de Cacique. Assim, o presidente do Conselho, na ocasião Zacarias da Silva, Pastor da Igreja Assembléia de Deus, recebeu a denúncia dirigida contra o Cacique, que foi apresentada pela esposa de um de seus sobrinhos e a partir daí, as lideranças que integravam o conselho tribal começaram a fazer uma oposição sistemática ao cacique. Estes acontecimentos, na realidade, se inserem dentro de um processo, ou seja, de uma série de acontecimentos ou situações sociais, que dizem respeito à luta pelo poder local dentro da aldeia. O próprio Lourenço, em outro momento da resposta à pergunta que formulamos, comenta sobre o conteúdo político da disputa e real causa das acusações em questão: “Mas a questão daquela vez, o motivo mesmo, eu tava mexendo com o Chefe, então por isso que essas pessoas se cresceram, eu tava mexendo com o Chefe do Posto da FUNAI, eu queria trocar o Argemiro, porque é cargo de confiança, não é um funcionário eletivo não, então o motivo mesmo que eles cresceram é por causa disso. Hoje eu fico admirado, o cacique Ramão, o Cacique Zacarias são tudo contra o Argemiro agora. Agora eles vão procurar minha ajuda de novo, mas só que eu não vou entrar nesse papo, Agora eu tô ouvindo outra conversa aí de que eles vão querer eleição agora nesse mês de dezembro, nesse ano agora, eu tô disposto para ouvir, desde que eles venham de frente, se eles vir por detrás acho que eu não posso aceitar se eles vir por detrás, posso aceitar se eles opinar se eles vier pela porta bem certinha, ai agente pode ter um diálogo, dependendo da conversa eu posso até entregar no mês de dezembro, sair mais tranqüilo, do que agente ficar quebrando a cabeça. Então para mim esse aí não é a questão. Agora eu não vou permitir ser empurrado, ano passado porque eles vieram por detrás. Então como é que eu vou aceitar ser esfaqueado por detrás?Então eu fiquei pensando esses caras não tem organização, porque se eles tivesse organização eles teria que sentar comigo e conversar, tô sabendo disso, que os cabeça são Alírio, Dionísio, Tomás, então se eles passarem pela porta, pode haver eleição, porque meu mandato mesmo por escrito é até em dezembro de 2005, mas se eles quiserem, tranqüilo. Será entregue, de boa vontade, agente não tem nada que brigar. Então a posição, é isso.”. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004). Quer dizer, na realidade, o que estava acontecendo era um processo de luta política: o Cacique Lourenço havia realizado uma tentativa para “trocar” o Chefe de Posto da FUNAI, Argemiro Turíbio. A “associação” do Alírio de Oliveira Metelo, somadas a algumas lideranças 239 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional políticas integrantes do Conselho Tribal, e contando com o apoio dos caciques dos setores, Ramão Vieira e Zacarias Rodrigues responderam, tentando derrubar Lourenço do posto de Cacique. O esforço de derrubar Argemiro Turíbio da posição de Chefe de Posto teve como contrapartida a tentativa da derrubada do Cacique pela “Associação”. As duas posições de poder (profundamente interdependentes no contexto local), foram o objeto da disputa: quem controlaria efetivamente estas posições? Eis o problema Porque a tentativa do Cacique Lourenço Muchacho de derrubar o chefe de posto, teve uma reação forte da sua própria liderança do Conselho Tribal? Porque os demais caciques a princípio, deram apoio político ao Chefe do Posto e depois (segundo Lourenço) iriam querer derrubá- lo? Porque as lideranças políticas de Cachoeirinha questionam a gestão dos recursos econômicos da aldeia pelo cacique? Qual o papel das Igrejas e Associações (mencionadas de forma enfática e direta pelo Cacique ao narrar estes acontecimentos) na luta pelo poder local? É interessante notar que os que tentavam derrubar o cacique Lourenço Muchacho, como ele próprio observa, eram aqueles que até pouco tempo antes se constituíam na sua base de sustentação política: a sua própria “liderança”. Um ano antes, o cacique Lourenço Muchacho e os demais Caciques dos setores, viviam em um acordo político relativamente estável, atuando juntos principalmente no que tange a reivindicação da demarcação de terras. Lourenço havia sido eleito em 2002, derrotando cinco outros candidatos (Sabino Albuquerque, Mário Albuquerque, Vitorino Paulino, Adilson Julio e Pedro Alcântara) sendo que Sabino Albuquerque havia sido cacique entre 1998 e 2002 e um dos lideres da mais importante “associação” de Cachoeirinha, a AITECA. Lourenço já havia sido candidato nas eleições de 1998 e havia sido derrotado por Sabino Albuquerque. A história da ascensão de Lourenço até o posto de cacique é a seguinte: Primeiro eu queria que você um falasse da sua história, até chegar a posição de cacique aqui na aldeia. Bom, de primeira eu, eu falava a idade mesmo, francamente, eu só comecei no meio de muitas amizades, trabalhar muito pra fora, canavial, depois eu tive essa vontade, o espírito de freqüentar a igreja católica, aí freqüentei, trabalhei, trabalhei como catequista da primeira eucaristia e da crisma, né. Aí, terminei sete anos, passei pra ser dirigente da igreja, depois eu fui coordenador da igreja. Aí essa luta foi indo, foi indo, foi indo... eu fui conversando com o pessoal, juventude, da maioria do patriciado conversando sobre a candidatura, né. .. E. Você foi coordenador de igreja em que ano? Foi em 89, parece. Aí conversamos com os amigos, primeiro com a tentativa de ser candidato a cacique eu concorria com três candidatos àquela época. Há uns quatro anos atrás, então foi três candidatos, quem ganhou foi o Sabino, àquela época foi com 412, o companheiro que era segundo candidato, ele ficou com 100 votos, eu fiquei com 400 votos naquela época. Então eu perdi por 12 naquela vez, né. Aí, hoje, eu me candidatei novamente, com seis candidatos, eu tive 240 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional voto maioria, 301 votos. Aí foi conversando muito, diálogo, no meio dos companheiros, e foi tocando isso também, né, aí cheguei de ser cacique. Hoje, eu estou aqui ainda, trabalhando pouco a pouco, se sabe que as dificuldades estão de mais, né. Não tem recurso, não tem nada. Então agente tá aí. L. Tá certo. Durante quatro anos atrás, eu tinha trabalhado pra ele. Foi a primeira campanha do... quatro anos atrás. Aí, esse ano trabalhei novamente, mas hoje, eu saí com peso ainda, né. Porque eu fiz documento de reivindicação a pessoa dele para que pudesse a gente conseguir alguma coisa através dessa luta. Então a gente tá aí, por enquanto tá meio parado ainda, a gente já conversou tanto com ele, mas eu já fiz o documento, já coloquei um tipo de projeto aí de pedido de um trator, complemento, tudo, né. No valor de mais ou menos R$40.000,00. Então esse documento vai entrar no mês de julho, por aí, na seção, pra ser debatido. Isso aí vai ser emenda do governo do Estado, então, se eu conseguir isso, pra mim eu acho que a comunidade vai ser tão satisfeita ainda, se eu conseguir isso. Mas creio que eu vou conseguir, vou ter que lutar em cima disso. Que você sabe como é que é política, né, política... Ele é bom, ele é um bom deputado, mas o quem estraga são os assessores, sabe. Se for conversar diretamente com ele você é atendido, mas se pegou conversar com assessor, aí é complicado, sempre para no meio. Sempre para um documento engavetado, aí não vai pra frente. Agora, se a gente cobrar diretamente da pessoa dele, eu acho que a gente pode conseguir alguma coisa. (Lourenço Muchacho, Maio/2003) A trajetória de Lourenço é similar a de várias outras lideranças: atuou como “cabeçante” nas turmas que iam realizar trabalho em fazendas ou usinas da região; atuou como líder em certas atividades religiosas da Igreja Católica; estabeleceu relações com líderes de partidos políticos e parlamentares, visando conseguir “benefícios” para seu grupo, ou seja, operando como um mediador entre a comunidade indígena e as elites dirigentes locais e regionais. Em 1998 lançou-se candidato a cacique e foi derrotado. O processo de formação do seu grupo político dentro de Cachoeirinha em 2002 se deu da seguinte maneira: “Essa intenção de ser cacique foi formado por 35 pessoas, 35 pessoas iniciaram isso, e essas 35 pessoas se tornou comissão e eles andaram bastante, discutindo sobre isso e levando nosso nome pra a comunidade. (...) Quem fazia parte desta comissão? Felix Canali, Enilson Belisário e Edno da Silva. Era três cabeças que sempre discutia isso com a gente. Agente aceitou a proposta e nós saímos. Na primeira tentativa a gente tinha perdido, ai na segunda agente ganhou como cacique. Durante esses tempo faltou, faltou mais apoio político, fizemos projeto nenhum delas foi aprovado. Ai tava, mais pessoas; Quintino Mendes, Porfírio Martins e Florentino Martins (Vila Nova), Laércio Albuquerque (Vila Nova), Paulo Matias (União São João), Bartolino da Silva , João Miguel, Jorge Vitor, Sebastião Vitor (todos São João) Natalício Joaquim (Vila Principal), Hélio Albuquerque (sogro), Estrogildo Miguel, Valdecir Antonio (Vila América), Luis Martins, Felix Candido Antonio, Cecílio Lipú (Vila Nova). Então esse grupo ai foi formando, foi chegando outras pessoas. (Lourenço Muchacho, Março/2006) Os membros da comissão eram todos eles das vilas que antigamente faziam parte do “Mangao” (exceção importante é Enilson Belisário, morador da vila Santa Cruz. Dentre eles, 241 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional estavam o sogro e um cunhado de Lourenço (Hélio e Laércio Albuquerque, respectivamente), e algumas lideranças da Igreja Católica, como Estrogildo Miguel. Deste grupo inicial, é que foram indicados os primeiros “Conselheiros” de Lourenço Muchacho, como podemos ver pelo quadro abaixo: Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. Adilson Júlio (vice-cacique) Pedro Alcântara (Presidente do Conselho) Hélio Albuquerque (vice-presidente) Conselho Tribal Cachoeirinha - 2002 Felix Candido Antonio Temiz Marcolino Joaquim e Quintino Arruda (Anciãos) Mendes (1º e 2º tesoureiros). Membros: Jorge Vitor, Edno da Silva, Natalício Joaquim, Laudelino de Oliveira, Odir Antonio, Miguel Antonio, João Miguel Porfírio e Florentino Martins, Agnaldo Martins, Milton Raimundo, O processo político interno levou entretanto a alterações desta composição. Vejamos como isso se deu: Quantas vezes esse conselho foi mudado? Esses conselhos foi mudado uma vez só. (mudei porque alguns não participava mais da reunião) e houve uma confusão também, política interna mesmo. Como cacique naquela vez eu tinha autonomia pra... Porque por exemplo, se agente chama a pessoa numa luta porque é nossa confiança. Ai quando acontece uma briga contra a nossa pessoa que nós indicamos.... A pessoa que foi chamado para fazer parte do Conselho são nomeado, digamos. Então quem nomeia se achar por bem que o membro do conselho não tá servindo como deveria servir a comunidade, ai o cacique tem como fazer novo emenda para fazer troca dos novo membro. Quem você substituiu, quem você indicou? Primeiro perguntei pras lideranças que permaneceu se caberia convocar pessoas pra preencher o cargo. Então quando eles deram o resultado que poderia, chamei as pessoas para preencher o cargo de novo. (...) Eu coloquei o Alírio de Oliveira Metelo, Tomás Balbino, Mário Albuquerque, Lírio Lemes, Milton Pires. Vejamos o quadro abaixo, com a indicação da composição dos membros do Conselho Tribal. Quadro 33 – Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. Presidente do Conselho Zacarias da Silva Vice-cacique Cirilo Raimundo Conselheiros Alírio de Oliveira Metelo Virotino Paulino Tomás Balbino, Mário Albuquerque, Lírio Lemes Vemos que algumas mudanças são importantes: primeiramente, o Presidente do Conselho Tribal e o Vice-Cacique foram mudados; saíram Adilson Júlio e Pedro Alcântara, e entraram Zacarias da Silva e Cirilo Raimundo. No Conselho entraram Alírio, Vitorino, Tomás, Lírio e Mário 242 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Albuquerque (este na época presidente da AITECA). Assim, já existia um precedente de mudanças no Conselho Tribal, quando o conflito eclodiu em 2004. A situação que estava colocada, de luta entre o Cacique e a sua liderança, representava a dissolução de uma aliança política que inclusive possibilitou a sua vitória nas eleições para cacique. Mas como a acusação não foi à frente, e não ocorreu um movimento mais sistemático da comunidade para derrubar o cacique, esta situação se resolveu com a “dissolução” do Conselho Tribal, por ordem de Lourenço. Quando estávamos em Cachoeirinha no período de setembronovembro, o Conselho não se reunia, por estar em processo de reformulação. O cacique estava então indicando novos membros para a composição deste Conselho. As antigas lideranças seriam substituídas por novas. Porque aconteceu a oposição da sua liderança? Houve um problema naquele época sobre a troca do Chefe do Posto, Argemiro... ai nasceu uma confusão no meio de tudo isso e eu fui chamado por liderança pra esclarecer se realmente eu tive caso com uma mulher assim. Ai eu fui lá, me presenciei, houve um discussão. Só que naquela vez ali não saiu mais na cabeça dos outros pessoal. Quando aconteceu isso já queria me tirar fora. Mas na verdade eu não tinha rela ção com essa pessoa. Então foi um política, essa dona foi usada para que pudesse me tirar desse cargo. Só que no momento eu não me entreguei, ai começaram uma política interna, conversaram daqui, começaram dali, até que chegaram num momento que queriam me tirar do cargo. Ai como não foi verdade aquela conversa, não me entreguei. Ai eu tive que afastar as pessoas, tive que afastar o Alírio, tive que afastar o Tomás, tive que afastar o seu Lírio, Sabino Lipú tive que afastar ele, que geraram confusão no meio da liderança, por isso que houve esse troca. Quando eu fiz essa troca eu não convoquei eles, deixei de fora. (...) Entretanto, de fato, o Vice-Cacique e o Conselho não abdicaram do poder, criando uma situação de dualidade. Podemos mencionar isso, por ocasião de uma reunião realizada com um representante do Idaterra 103 , no dia 26/10/2004 às 15:30h,. Acompanhamos esta reunião, realizada no centro comunitário. O representante do IDATERRA, de nome Paulo, que apresentou uma proposta de comercialização de produtos, e também levantou as demandas locais – que foram apresentadas especialmente como sendo de sementes, combustível e maquinário para o plantio. Estavam presentes o vice-cacique Cirilo, o cacique Isidoro Pinto do Morrinho, o Cacique João Candelário, da Argola, o vice-cacique João Leôncio do Babaçu, o chefe de Posto Argemiro Turíbio, Alírio de Oliveira Metelo e algumas outras pessoas que não conhecíamos. Foram feitos acertos relativos a distribuição de sementes e óleo diesel entre os diferentes setores, e todas as lideranças se pronunciaram. Esta reunião explicita que o cacique Lourenço se viu relativamente isolado de sua liderança, e que esta assumiu as funções políticas de representação da comunidade- local Terena nas relações 103 Instituto estadual para de execução de política agrícola. 243 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional com os representantes das ins tituições estatais e no controle efetivo dos recursos materiais e produtivos destinado para as aldeias. A presença de Alírio de Oliveira Metelo, de Argemiro Turíbio e do vice-cacique Cirilo Raimundo mostram que o esquema de poder local se manteve, e que na luta entre Lourenço Muchacho e a “Associação do Alírio”, esta última, pelo menos num primeiro momento, saiu fortalecida. Porém, a situação ainda sofreria mais uma reviravolta. As disputas se acirraram tanto, que quando um dos antigos candidatos e ex-vice cacique retornou, se aliou politicamente com os grupos opositores e: Ai naquela vez o Adilson, que abandou o cargo e foi pra destilaria, ai ele chegou no final do mês, achou essa briga, entrou no meio e foram para Campo Grande, e correu o risco de haver naquele época dois caciques. Mas também nós vencemos a luta, não foi pra briga, foi no conversa, a gente resolvemos a questão. Conseguimos derrubar lá no FUNAI a documentação... O que atrapalhou nossos companheiro naquela vez era essa confusão que teve, porque não teve diálogo entre as lideranças. Só houve conversa... lá fora. O pessoal foi levar documento pedindo o que? Pedindo que o Adilson entrasse no meu lugar como cacique. Só que naquele época nós tinha documento justificativo. Porque que ele não ficou. Porque se ele tivesse avisado agente quando ele saiu para destilaria fosse tudo por escrito daquela vez ele conseguiria ficar no meu lugar, mas como ele não avisou agente, não falou nada, pra nós não foi nada escrito, aí nós consideramos ele no documento como abandonou o cargo, nós colocamos na ata que ele abandonou o cargo. Ai ficou na cabeça do pessoal, “não ele abandonou o cargo, ele não pode permanecer, não pode ficar como cacique”. Por isso que não chegou de ser cacique. E hoje tentou novamente e não ganhou, ficou muito longe. Depois que a pessoa vê o nosso defeito aí a pessoa não confia mais. (Lourenço Muchacho, Março/2006). Quando a força do movimento local não foi suficiente para derrubar o Cacique – que haviam se dirigido as instancias locais, como o Conselho Tribal - os grupos opositores partiram para “Campo Grande”, para a instância estatal hierarquicamente superior, solicitando sua intervenção política no contexto dos conflitos aldeãos. A apresentação de uma “documentação” como indicada por Lourenço, visava fundamentar a solicitação da sua substituição como Cacique da Cachoeirinha. O início deste conflito estava, como o próprio Lourenço afirmou, na tentativa feita por ele de derrubar o Chefe de Posto. Assim ele descreve suas razões: Porque você queria trocar o chefe de posto? É o seguinte, a primeira luta que eu fiz pra querer tirar ele eu fui assim na força eu fiz documento com meu próprio punho, porque tava havendo muita conversa, muita pessoa reclamando por ele, só que essa pessoa não tinha coragem de chegar e cobrar ele, essas me cobrava, sempre cobrava a mim. Se eu tivesse naquele época uma visão política assim ampla, acho que eu poderia chamar ele e conversar, ó tem esse pessoal aqui reclamando. Eu não consegui tirar ele. Ai permaneceu mas tempo, ai quando entrou outro administrador, aí por competência dele retirou. Ele mesmo falou pra mim. Isso aqui é minha competência, como novo administrador, eu tenho como colocar a minha confiança lá dentro, ai todos os caciques concordaram. 244 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Segundo outras versões, existiam ainda outras questões. Na Argola, conversarmos com Inácio Faustino, presidente da AITRE. Perguntei a ele sobre a questão da tentativa de derrubada do Lourenço, ocorrida naquele ano. Ele explicou que tudo foi motivado pela “questão dos contratos com as Usinas. Disse que o pessoal não estava satisfeito com o fato de ter maquinário parado, esperando concerto e o dinheiro que entra para o “Caixa Comunitário” não ser usado para isso”. Disse que o negócio ferveu de vez quando o Lourenço “cantou” uma mulher e aí que eles quiseram tirá- lo de vez. Depois o Lourenço tentou tirar o Argemiro, quando as acusações começaram e o chefe não ficou do lado dele. Então, sozinho, fez um ofício para a administração regional em Campo Grande, mas na época o Márcio Justino se recusou a exonerar o Argemiro, argumentando que não faria isso sem haver o apoio de toda a “comunidade”. No final das contas, o Cacique e o Chefe de Posto permaneceram em seus cargos naquele momento. Mas como Lourenço indicou, o Chefe de Posto, Argemiro Turíbio, foi exonerado do seu cargo no primeiro trimestre de 2005, por decisão do recém empossado Administrador Wanderley (pelo soubemos existia uma diferença de alinhamento político partidário, já que Wanderlei era alinhado com o PT e o Governo Estadual, enquanto que o chefe de Posto era aliado no município com Ivan Paz Bossay, opositor da prefeita Beth Almeida, do PT. Além disso, um grupo de Terena de Miranda tinha apoiado a candidatura de Wilson Jacobina, da aldeia Passarinho, e não Wanderlei, nas eleições internas da FUNAI, que escolheram o administrador, meses antes). Lourenço Muchacho,entretanto, também não chegou a concluir o seu mandato. Ele abdicou da função, como nos disse: Como foi o final da sua gestão e porque resolveu entregar o cargo? Fiquei mais ou menos 7 meses. Faltava mais ou menos 3 mês para o encerramento do cargo, ai entreguei o cargo para o pastor Zacarias. Ai o pastor Zacarias continuou. É porque eu tava vendo que não tinha mais saída, porque não tin ha mais projeto. Também o pessoal me perseguia muito. Porque eu cobrava muito sobre venda de bebida alcoólica, o pessoal já tava me ameaçando, então tá bom se o pessoal quer beber, então continua bebendo. Então eu pensei melhor, já tava sendo pior pro meu lado, falei antes que alguma coisa aconteça é melhor entregar. Ai continuou o trabalho. (Lourenço Muchacho, Março/2006). As causas para sua renúncia estavam associadas tanto as questões acima indicadas, quanto a outras que estão associadas diretamente aos poderes do cacique e a forma como a comunidade indígena reage ao seu exercício. Lourenço narra assim a sua situação antes de abdicar do cargo: “...eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque era muito perseguição, perseguição do meu próprio patrício. (...) Ameaça, Porque durante o tempo que eu fiquei de cacique, eu mexia mais com esse venda de bebida, prendia o pessoal para Miranda, tomava arma, quando eu era cacique desarmei 10 pessoas de arma de fogo. Então esse pessoal ficava na mente dele “esse cara vai ter que me pagar”, um dia eu vou pegar ele. 245 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Acontece aqui, foi uma plena noite, parece que foi dia de Sábado, chegou oito pessoa aqui querendo me bater naquela noite, eu não clamei em alta voz, mas eu disse para Deus que podia me livrar naquele momento mas como Deus é grande. Eu não conseguia andar desarmado, Porque a minha intenção era muito...eu tava muito revoltado, se um dia algum patrício me encostar a mão eu vou matar. Então fiquei armado 6 meses. Olha aqui onde fui me meter. (...) Essa perseguição que eu tinha antigamente não tem mais”. (Lourenço Muchacho, Março/2006). Lourenço também avalia que sua gestão sofreu tantas críticas e movimentos de oposição, por conta das dificuldades encontradas em conseguir recursos para a comunidade, de maneira que o fato de não ter sido feliz em estabelecer as alianças políticas (na FUNAI, na Prefeitura e Governo Estadual) é que teria dado abertura para a insatisfação. “Essas 35 pessoas tinham esperança, tinha, grande esperança de que a luta andasse bem. Mas como sempre falo, houve barreira e a gente, só que eu sempre falava, se a gente não dá o braço a torcer digamos para o político, ai agente não consegue nada, político tentava me manipular e eu não aceitava isso. E eu corria de outro para outro. Então por isso que eu não teve ajuda. Mas uma parte andou bem, foi a parte da demarcação da terra. Nós fomos para Brasília, fomos para Campo Grande pra discutir sobre isso. E teve um andamento maior Enquanto agora o processo tá parado. Acho que precisa remexer de novo. Conversar novamente com o pessoal da FUNAI. A gente então mexeu mais por esse lado.... A parte da lavoura não tinha recurso, a FUNAI não tinha recurso para tentar se consertar, agora que o trator saiu. Entrou no orçamento do ano passado, ficou mais ou menos 8 meses na oficina e agora que saiu nesse ano e tá começando a trabalhar. Então pra mim foi uma grande barreira na luta não conseguir nada”. (Lourenço Muchacho, Março/2006). Ou seja, os conflitos e a luta pelo poder, envolvem diretamente a problemática dos recursos materiais e das alianças políticas que os viabilizam, e que vão atender as pautas sócio-culturais dos diferentes segmentos componentes das comunidades indígenas. A ascensão e queda do Cacique Lourenço Muchacho se deu em razão destes fatores. A dinâmica política de Cachoeirinha se estabelece em função dos diversos fatores e elementos descritos acima. Em dezembro de 2005, foi realizada a eleição para o Cacique da Sede. Nesta eleição foram candidatos seis homens: Cirilo Raimundo, Sabino Albuquerque, Vitorino Paulino, Mário Albuquerque, Adilson Júlio e Antônio Gonçalves. Cirilo teria recebido 300 votos, Sabino (apoiado por Lourenço) 150 votos e Antonio Gonçalves (apoiado por Argemiro) ficou em terceiro lugar na disputa. Assim, o antigo vice-Cacique conseguiu tornar-se Cacique, e logo o início da sua gestão foi marcado também por conflitos políticos, desta vez envolvendo os Caciques das aldeia Babaçu, Lagoinha e as lideranças da aldeia Argola, em razão dos encaminhamentos relativos a luta pela demarcação da terra. Por outro lado, muitas pessoas da aldeia elogiavam o trabalho do novo Cacique por estar conseguindo trazer benefícios para a comunidade, como “cascalhamento das estradas” (junto à prefeitura), reforma do trator da FUNAI (junto a Administração Regional da FUNAI) e recursos como óleo e sementes. 246 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Os contornos gerais da situação social descrita acima, e a luta pelo poder que ela expressam, podem sugerir a confirmação das teses dos estudos de aculturação e assimilação; os conflitos políticos derivariam das clivagens introduzidas pelo cristianismo e pelas igrejas, e pelas formas de organização social nacional-ocidentais (como as associações formais, as eleições para Cacique e etc), de maneira que a organização social indígena teria sido completamente desagregada. Na realidade não é exatamente isto que acontece. Esta “luta pelo poder” – que se expressou numa série de situações sociais como aquelas descritas acima (denúncias apresentadas contra o Cacique no Conselho Tribal; requisição de mudança do Chefe de Posto, por parte do Cacique e etc) – na realidade está ancorada numa dinâmica estrutural, gerada pela consolidação do regime tutelar, dentro da situação histórica de reserva, e que se tornou base de formação das novas situações históricas. Para interpretá- la e compreendê- la corretamente, é necessário entender o funcionamento da atual organização política Terena, dentro da situação histórica de “retomada”. É preciso compreender as unidades básicas da organização político-territorial indígena, suas relações com as instituições estatais e a política indigenista. 5.2 – As Unidades Básicas da Organização Política Terena. A dinâmica estabelecida no contexto da aldeia pode ser qualificada da seguinte maneira: 1º) a mobilização política faccional que toma por base múltiplos critérios de recrutamento (relações de parentesco, co-residência, e alianças situacionais mesmo entre adversários), organizada especialmente em torno da disputa do “cargo de cacique”; 2º) o Cacique se mantém em seu cargo, graças a gestão que realiza dos recursos materiais e dos poderes de que dispõe, o que depende tanto das alianças e composições internas com líderes das facções existentes, quanto externas, com administradores e líderes políticos municipais e regionais; 3º) as facções políticas descontentes mantém sempre uma luta contínua pelo poder, luta esta às vezes discreta, às vezes aberta, o que confere uma grande instabilidade a dinâmica política aldeã; 4º) a resolução para os conflitos políticos é quase sempre buscada no apelo a intervenção dos poderes estatais (soluções de cima pra baixo), especialmente pela solicitação de intervenção da FUNAI, que exerce assim uma espécie de “poder moderador” (legitimado e demandado pelos índios), que visa gerar um equilíbrio ou desequilíbrio de poder favorável a esta ou aquela facção, a esta ou aquela liderança indígena que não esteja satisfeita com os encaminhamentos adotados dentro da própria comunidade. Esta dinâmica é gerada pela existência de um conjunto de papéis e instituições políticas interrelacionados, que constituem as unidades básicas da organização política Terena; 5º) em casos limites, é possível que as disputas resultem numa “dualidade” local de poderes, com a consolidação 247 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional de dois Caciques que disputam o poder legal e legitimo de representar os índios, situação que “quase aconteceu” em 2004 (segundo as palavras de Lourenço Muchacho). Precisamos descrever as unidades básicas desta organização. O caso da terra indígena Cachoeirinha se apresenta como tipo exemplar desta organização. A organização e dinâmica das relações políticas entre os Terena, se dá por meio de uma série de instituições e papéis sociais que se distribuem de maneira hierárquica. A descrição das unidades básicas da organização política Terena permitirá demonstrar isso. Dentro da organização política entre os Terena, nós podemos distinguir uma estrutura piramidal: o topo é uma posição de poder individual, representada pelo papel social e posto político do Cacique. Abaixo, tanto do ponto de vista do poder decisório, quanto no sentido de ser a “base” de sustentação estão o Vice-Cacique e o “Conselho Tribal”, que é escolhido pelo próprio Cacique. O Conselho pode variar de dimensão em cada setor/aldeia, mas ele tem uma distribuição interna de papéis que é relativamente constante. O Conselho é composto pelo Vice-Cacique , pelo Presidente do Conselho, pelo Ancião, 1º e 2º Secretários, 1º e 2º Tesoureiros e pelos Conselheiros. Do ponto de vista formal, o Cacique Centraliza o pode decisório, na sua presença o que vale é sua decisão. O Vice-Cacique e o Presidente do Conselho substituem o Cacique quando este não se encontra na Aldeia, tendo as funções de regular a entrada e saída de pessoas, negociar com autoridades e etc. Além disso, o Conselho tem a função de regular e fiscalizar a ação do Cacique, tendo também o poder de destituir o Cacique do cargo. Desta maneira, as relações entre Cacique e Conselho são baseadas nesta tensão estrutural, em que o cacique tem o poder de indicar e destituir o Conselho, e por outro lado, o Conselho tem autoridade formal de fiscalizar e destituir o Cacique. Veremos que esta tensão se manifesta em diferentes ocasiões através da luta entre facções políticas. Em tese, existem reuniões regulares do Conselho com Cacique para administrar as atividades da aldeia. Atualmente, o Cacique é escolhido por eleições. Há um prazo de 4 anos para cada mandato de Cacique. Antes de cada eleição para cacique, existe um período para “campanha” eleitoral em que os candidatos a Cacique fazem suas articulações. As regras válidas para a eleição dentro das áreas indígenas é similar as existentes no processo eleitoral democrático-burguês, definidas pela Justiça Eleitoral. A autoridade formal do Cacique pode ser classificada em três áreas de incidência: 1) as relações pessoais e familiares dentro da aldeia. Quer dizer, o poder do cacique é uma forma de controle sobre as atividades dos indivíduos com relação especialmente ao uso de bebidas alcoólicas, fixação de residência (quando indígenas vêem de fora, de outra aldeia) e conduta “criminal” dos indivíduos, se eles cumprem ou não a lei; 2) as relações interétnicas, é uma forma de controle das 248 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional relações entre os membros do grupo com indivíduos e grupos não indígenas ou outros grupos étnicos, implicando controle do acesso (entrada/saída) da área indígena e ao poder de representação formal do grupo perante as instituições e grupos sociais; 3) é uma forma de controle das relações econômicas e bens “coletivos” do grupo, que dizem respeito ao controle exercido pelo Cacique sobre os contratos de trabalho assinados pelos índios com empresas, atualmente, com as Usinas de Cana de Açúcar, sobre os veículos (trator, caminhonetes, caminhões) que porventura existam, e também os armazéns e recursos e implementos agrícolas que o grupo receba, seja do Governo Federal, seja do Governo Estadual ou Municipal, ou ainda, por meio de projetos de organizações não governamentais. Neste sentido, o poder do Cacique é um poder ao mesmo tempo de controle social, representação política e gestão econômica. A figura do Cacique se apresenta como vértice de uma estrutura centralizadora, que no plano local abrange praticamente todos os domínios da vida social. No entanto, esta estrutura só pode ser compreendida a luz da estrutura global de poder na qual está integrado, que é o Sistema Político Estatal . Em vários grupos indígenas já se indicou que tanto a categoria discursiva quanto a função concreta do “Cacique” são produtos da situação colonial, são imposições do Estado aos diferentes grupos étnicos, implicando uma primeira forma de homogeneização (ver Oliveira Filho, 1988). Com os Terena não aconteceu nada de diferente. O Cacique foi a princípio um representante do Chefe do Posto perante aos índios, um papel social integrante do sistema estatal, vinculado mais diretamente ao SPI/FUNAI. Mas tornou-se também uma categoria integrante e fundamental da organização e relações políticas do grupo étnico considerado 104 . A figura do Cacique ou Capitão, juntamente com a figura do Chefe do Posto, comporá o conjunto de papéis individuais e locais manejados para a aplicação/execução da política indigenista e de controle do Estado sobre os índios. Entretanto, a distinção entre Chefe de Posto e Cacique foi fundamentada na concepção de uma dualidade básica: o Cacique seria um “aliado” interno, um membro do próprio grupo indígena e atuaria em conjunto com o Chefe de Posto, funcionário público e representante da “sociedade nacional”. Esta distinção hoje pode parecer sem sentido, devido à inversão de papeis produzida pelas próprias estratégias indígenas, mas é preciso tê- la em mente para dimensionar corretamente a correlação de forças existente entre índios e Estado. Porque apesar de “relaxada”, tal dualidade ainda se mantém. Chefe de Posto e Cacique são dois papéis sociais determinantes para as relações políticas no espaço aldeão Terena. O Chefe de Posto, assim como o Cacique, possui uma série de atribuições 104 Como a categoria “Tuxaua” - gerada pelas relações com o “barracão” – tornou-se estruturante da organização social e política dos Macuxi. 249 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional formais que conferem também um poder determinado sobre o grupo. O Chefe de Posto compartilha em certa medida o poder com Cacique. Em outras situações históricas, o Chefe de Posto era a autoridade máxima da área indígena, tendo o poder de indicar o Cacique e comandar as relações de trabalho dos índios. Hoje, seu poder é mais restrito, equilibrando-se em certa medida com o poder do Cacique. Existe um poder de controle social, um poder de representação, e um poder de gestão econômica, mas também burocrática. O Chefe do Posto faz a intermediação entre o Posto e a Administração Regional da FUNAI. Ele controla os requerimentos encaminhados ao órgão, e também controla, junto com o Cacique, os contratos de trabalho. Ele controla também os bens da FUNAI juntamente com o Cacique. Desta maneira, da mesma forma que existe uma tensão potencial estrutural entre o Cacique e o Conselho, existe uma tensão entre o Cacique o Chefe de Posto. Entretanto, existem diferenças substanciais entre a função de Cacique e a função de Chefe de Posto. Primeiramente, o cargo de Chefe é, em última instancia, um emprego público, com remuneração fixa, bem acima da média de renda que os lavradores Terena têm. Além disso, existe pelo menos idealmente, um conjunto de saberes técnicos que o Chefe domina, que são distintos dos saberes da média da população indígena, sendo exigido uma formação escolar determinada105 . Desta maneira, o Chefe de Posto enquanto funcionário público possui um status diferenciado, que implica um diferencial de prestigio e saber, que está associado também à renda. O Chefe de Posto, por mais que tenha tido sua força reduzida frente à ascensão dos caciques e comunidades indígenas, manteve estes elementos como importantes de sua atribuição. Dessa maneira, podemos falar que a luta pelo poder dentro das aldeias, é uma luta pela exercício da “co- gestão” dentro do regime tutelar; isso significa, a luta pela legitimidade, autoridade e força para gerir tanto os contratos de trabalho, quanto as decisões relativas a alocação de recursos materiais e relações de mediação política. As posições de Cacique e de Chefe de Posto concentram os poderes, estruturados pelo regime tutelar, de exercer o controle da “mão-de-obra indígena” e do “fundo” gerado pelas relações de trabalho gerenciadas pela FUNAI com as Usinas do Mato Grosso do Sul. A estrutura de poder se estende assim, desde as plantations agroexportadoras até as comunidades indígenas, sendo o órgão tutelar um instrumento de mediação e gestão dessas relações. A co-gestão indígena no plano local se apresenta antes de tudo, como a gestão da mão-deobra indígena, do “fundo” gerado por ela, e de sua aplicação. Mas vejamos, os índios lutam para compartilhar o poder com as estruturais estatais e gerenciá- las de acordo com seus interesses. Ao mesmo tempo lutam para combater os efeitos da dominação imposta por esta estrutura política. Esta estrutura organizacional opera em todas as aldeias dentro de Cachoeirinha. Existem então cinco caciques dentro da terra indígena Cachoeirinha, cinco conselhos tribais, um para cada 105 No caso, a conclusão do ensino médio. 250 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional aldeia. Entretanto, existe uma hierarquia de poder entre as aldeias Terena, ou melhor dizendo, entre os caciques das diferentes aldeias. A aldeia Sede funciona na verdade como centro político e administrativo da terra indígena Cachoeirinha. Assim, os Caciques dos setores ficam subordinados ao Cacique Geral, que é o Cacique da Sede. Quais as bases desta hierarquia de poder entre os caciques, e quais suas conseqüências para a dinâmica política nas comunidades- indígenas? Qual a razão da “Sede” ser este centro político-administrativo? O nível local da dominação: política indígena e economia regional A hierarquia de poder entre os Caciques dentro das aldeias tem como base o sistema político e econômico dos quais os territórios indígenas, enquanto unidades sociais fazem parte. Ou seja, a base da diferenciação está na localização destas instituições locais dentro do campo e arenas das relações interétnicas, e é através destas relações, que se define tal diferenciação dentro das comunidades- locais indígenas. A organização política dos Terena tem uma base econômica que é fundamental: é o chamado “Caixa Comunitário”. Este Caixa Comunitário é um fundo composto por recursos advindos da taxação dos contratos de trabalho. Este dinheiro é da “comunidade indígena”, mas quem tem o poder, na prática, de administrá- lo, é o “Cacique Geral”. O percentual cobrado é de 10% sobre o valor do rendimento de cada trabalhador que sai para as Usinas, sendo 5% descontado do salário do trabalhador e 5% pago pelas Usinas de Cana de Açúcar. Esta é uma base fundamental do poder do Cacique Geral. Esta é uma das bases da hierarquia e conflito político local. Apesar dos trabalhadores serem recrutados dentro de cada uma das aldeias existentes, o dinheiro do Caixa Comunitário é destinado a Sede, onde fica sob o controle do Cacique Geral e só é repassado para estas aldeias caso seja decidido pelo Cacique. Além desta diferenciação, existe uma outra que é fundamental: a investidura estatal. Os caciques das aldeias Terena tem uma legitimidade própria, se reúnem inclusive num grande encontro para indicarem o Administrador Regional da FUNAI, e decidirem questões de grande importância para o grupo 106 . Cada aldeia/setor, como dissemos, possui uma estrutura de liderança própria, seu Cacique e seu Conselho. Mas existe uma hierarquia interna entre os próprios Caciques. Ao mesmo tempo em que o Cacique de cada setor tem um poder real de mobilização, ele não tem o mesmo poder de representação, já que esta depende de uma investidura estatal e do reconhecimento externo para se validar. Conseqüentemente, o poder do cacique local se vê 106 Por exemplo, na ocasião da construção do Gasoduto Brasil-Bolívia, que passou na região do Pantanal, as lideranças Terena se reuniram para discutir o que fazer com o dinheiro de indenização pago pela Petrobrás as comunidades indígenas. 251 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional inferiorizado em face da existência do Cacique Geral, que em casos de disputa, pode suprimir temporariamente, mas em questões fundamentais, o poder dos demais Caciques. Logo, podemos dizer que a organização política Terena de Cachoeirinha, em forma piramidal, na base é composta pelos Caciques e Conselhos das comunidades- locais e se fecha no topo com o Cacique Geral e o Conselho Tribal da Sede. Existem os Caciques Locais (de Morrinho, Argola, Babaçu e Lagoinha), que tem um certo poder sobre suas comunidades locais, mas que tem seu poder limitado nas relações supra-aldeãs que são partes constitutivas da função de Cacique. Somente o Cacique Geral tem poder sobre o “Caixa Comunitário”, e este poder marca uma diferença crucial para os demais Caciques. A organização política dos Terena em Cachoeirinha revela dois aspectos antinômicos: uma tendência descentralizadora expressa pela existência de uma pluralidade de lideranças políticas locais, e uma tendência centralizadora, dada pela hierarquização entre os Caciques Locais e o Cacique Geral. Esta tendência contraditória da organização política Terena é fruto dos fundamentos materiais desta organização, que faz com que sua organização e relações políticas sejam um nível local do sistema capitalista de dominação, não no sentido que seja uma parte em coerência funcional com tal sistema, mas que as relações ali constituídas são interdependentes de outras instituições e atores sociais. O Caixa Comunitário, que como veremos é um fator fundamental para a compreensão dos conflitos faccionais entre os Terena é um “fundo” gerado pela articulação entre Estado (através da política e instituições indigenistas) e Empresários e Unidades Produtivas Capitalistas, para a exploração do trabalho indígena. Num certo sentido, é uma técnica de governamentalização dos índios, já que trata-se de um dispositivo ao mesmo tempo voltado para uma racionalidade econômica (de exploração do trabalho e geração de riquezas) e que prevê uma medida de “retorno”, de reciprocidade em relação aos governados – a geração de fundo para o beneficio “coletivo”, “comunitário”. Os contratos coletivos são o meio principal dessa governamentalização dos índios. Ao mesmo tempo, é a base fundamental para a constituição do poder do Cacique Geral, e a utilização destes recursos abaliza e dá legitimidade para as lideranças. Assim, mesmo existindo um movimento local e autônomo que descentralizou a posição do Cacique, o reconhecimento da legitimidade deste pela FUNAI,enquanto instituição estatal é fundamental. A FUNAI tem o poder de reconhecer, não reconhecer e às vezes indicar ou retirar Caciques. O poder dos Caciques, Locais e Geral, compartilhado e rivalizado como Chefe de Posto, se dá assim sobre a mediação das relações de trabalho e administração da propriedade indígena, e está fundamentado nas relações existentes entre estes instituições do Estado e Mercado Capitalistas e as instituições indígenas. Se não considerarmos as relações e situação de classe dos índios Terena, é 252 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional impossível entender a exata configuração de sua organização política. A política indígena se encontra diretamente subordinada à dinâmica da economia regional e nacional, e ainda, ao Estado, através do regime tutelar. Além das instituições estatais locais, existe a Administração Regional da FUNAI, que na prática empreende uma função de arbitragem dos conflitos e da vida política dentro de cada terra e comunidade indígena existente, apesar de que sua intervenção quase sempre depende da solicitação ou demanda local. A FUNAI assim funciona como instancia decisória final para os processos e conflitos políticos desencadeados no âmbito da aldeia. Naati e Tuuti: organização política em processo A organização política indígena se baseia também nas formas de organização social e cultural. É importante compreender que o ponto de partida histórico da atual forma de organização política Terena. A etnografia brasileira se ateve muito pouco as características desta organização política, dando maior ênfase às distinções “estruturais” entre os “naati” (camada dos chefes) e os “wharê-xané”, sem se preocupar com descrição da formação das comunidades/aldeias indígenas, seus princípios e com os padrões de ação política e territorialização dentro das aldeias. Quando falamos com os Terena e perguntamos o significado da palavra naati, ela é traduzida como sinônimo de “Cacique”. Na descrição que J.Bach realizou das comunidades Terena de Miranda no final do século XIX, ele descreve “koixomuneti” como sendo o cacique, o líder político das aldeias Terena. Assim, existem divergências na etnografia quanto à caracterização do líder ou chefe Terena, e conseqüentemente, acerca de sua organização política, de maneira que é preciso aprofundar tal discussão e esclarecer certos aspectos. É preciso compreender a organização política Terena nas situações históricas do Chaco e do Diretório, para podermos caracterizar de forma mais precisa a sua atual dinâmica e organização política. É preciso compreender a diferenciação entre os “naati” e “wharê-chané”, e as formas de ação política dos “chefes ind ígenas”, assim como os padrões de distribuição e transmissão do poder dentro das diferentes comunidades indígenas Terena existentes . Iremos agora tentar delinear os traços fundamentais da organização política Terena nas situações históricas que antecederam a situação histórica de reserva, pois estes trações são fundamentais para compreender o caráter das transformações decorrentes do processo de formação do Estado-Nacional, bem como do regime tutelar e do campo das relações interétnicas. As informações levantadas por Baldus, Altenfelder Silva e Cardoso de Oliveira, tem pontos comum. Primeiramente, concordam com a hierarquização na organização social dos Terena, seja na Situação do Chaco, em que mantinham relações de aliança e simbiose com Mbaya-Guaicuru no 253 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional século XVIII, seja na Situação de Diretório, ou seja, aquela dada pela localização dos Terena em territórios administrados pelo Império do Brasil, no século XIX. O problema é que as informações reconstituídas pela memória dos informantes Terena, não foram submetidas a uma maior contextualização dos informantes (se lugar interno), e nem se especificou a que momento da vida do grupo elas se aplicavam. Neste sentido, uma reconstrução histórica da organização social e política Terena tem de ser considerada com muito cuidado. As principais fontes para o século XIX são de Francis Castelneau (anos 1840) e Affonso E. Taunay (anos 1860), que forneceram descrições relativas a organização dos Terena. Bach fornece algumas informações ainda sobre o final deste (anos 1890). Estes autores fornecem algumas descrições sobre a organização e vida dos índios Terena, de maneira que se constituíram em algumas das bases importantes para escrever a história indígena da região. Duas teses foram formuladas para interpretar a organização política Terena: a de Altenfelder Silva, que classificou esta organização em quatro “classes”: “Unati-aché, os chefes do povo ou do conselho; os wharê-chané, “gente feia”; cauti, cativos; e chuna-axeti, chefes guerreiros (Altenfelder Silva, 1949, p. 319); e a tese de Cardoso de Oliveira, que distingue três “camadas”: naati, wharêchané e cauti (para ele, os guerreiros não constituíam uma camada, mas eram uma posição especifica da organização militar). Entretanto, na elaboração deste esquema, não se leva em consideração dois fatores fundamentais: 1) a situação histórica em que, em tese, esta organização social “tradicional” operou; 2) as relações interétnicas como fator determinante para a definição desta organização social e política, de maneira que não se pode considerá- la em “separado” das relações com outros grupos e instituições sociais. Quer dizer, é preciso considerar os dois tipos de sistema social no qual os Terena, enquanto sub- grupo Guaná/Chané, estiveram inseridos em cada situação histórica para poder compreender esta organização e suas posteriores transformações sociais. Dois eventos históricos iriam alterar profundamente as condições sociais sob as quais vivia a população Terena e sob as quais esta organização social existiu e se desenvolveu. Primeiramente, a conquista e partilha dos territórios do Chaco (como era denominada a região no Império Espanhol) ou Pantanal (no Império Português e depois do Brasil), ou ainda Exiwa, como é chamada pelos índios Guaná e Terena (ver Azanha, 2002). Esta conquista implicou uma série de deslocamentos dos grupos étnicos ali existentes, provocando novos processos de territorialização indígena, afetando conseqüentemente as relações sociais entre os Mbya-Guaicuru e os Guaná e todos os povos indígenas da região. No entanto, os Terena no século XIX seriam inseridos numa situação histórica distinta daquela na qual a sua organização social “tradicional” (segundo a literatura existente) havia prevalecido. A colonização da região sudoeste da então Província de Mato Grosso foi uma das principais preocupações do Governo Imperial do Brasil. A relação entre os aparelhos de Estado 254 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional imperiais e os diversos grupos indígenas passaram a se intensificar. Neste sentido, uma certa autonomia territorial e organizativa indígena correspondia a um período de transição entre diferentes situações históricas. A aliança com os Guaicurus, aos quais os Terena prestavam tributos em uma relação comparada com a “vassalagem”, foi rompida. No século XIX, a autonomia de movimentação territorial e capacidade bélica dos Guaicurus foi desmantelada, de maneira que as condições sobre as quais se assentava a “relação de simbiose” foram desfeitas devido ao avanço do colonialismo português e espanhol. Os “Oquilidi-Naati” e os “Bairros-Cacicatos”. Em primeiro lugar devemos indicar que a organização política dos Guaná/Chané, e seus subgrupos como os Terena, era definida pela sua posição concreta e variável, no sistema social indígena do Chaco Pantanal. Neste sentido, não podemos falar da “organização política tradicional Terena”, somente considerando os fatores internos (cultura modo de vida agricultor, tecnologia neolítica), mas também os fatores externos, como o padrão de suas relações com e as formas de ação dos outros grupos indígenas sobre os Guaná, e também do colonialismo português e espanhol na região do Chaco/Pantanal. Assim sendo, quando se fala de uma categoria como os “cativos” (cauti) na organização política Terena, não se pode esquecer que esta era uma categoria do sistema social indígena. Os grupos agiam e se organizavam em função da captura destes cativos, que poderiam tanto ser absorvidos na sua economia e grupo, quanto comercializados nas cidades coloniais, como Assunção no Paraguai. Os “cativos” incluíam uma ampla gama de povos indígenas da região, o que revela o caráter estrutural da sua posição. Os próprios Guanás eram chamados de “cativos” ou “cativeiros” pelos Guaicurus e marca a existência de relações estruturais entre estes dois povos indígenas, dentro desta situação histórica. Além disso, a existência de “cativos” enquanto categoria social se dava dentro de uma Economia colonial-escravista, encontrando paralelos na organização do EstadoNacional. A categoria social de “cativos” era assim não uma categoria de um ou outro grupo indígena tomado isoladamente, mas sim uma categoria do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. Logo, o desaparecimento deste sistema deveria provocar necessariamente, o desaparecimento de tal categoria social. Com relação às demais categorias sociais, é preciso indicar as suas características fundamentais, e demonstrar como não se pode considerá- las isoladamente, mas sim dentro do sistema total de relações existente no Chaco/Pantanal. As descrições dos anos 1760, do Padre 255 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Sanchez Labrador, que atuou como missionário junto aos Guaná, fornecem alguns destes elementos: “.. tem os Guaicurus, de uma a outra margem do rio Paraguai, criados ou tributários que há tempo lhes fazem pequenos oferecimentos. Até onde pude indagar sobre a origem deste seu direito sobre os Nyololas, como eles chamam a toda a nação, tudo vai baseado no parentesco, sem que pelas armas ou conquistas pretendam este domínio (...) Alguns caciques ou grupos Eyguaeyegis se casaram a seu modo com cacicas ou capitãs Guanás. Os vassalos destas, mortas elas permaneceram num perpétuo feudo aos descendentes do maridos de suas senhoras. (...) Visitam-nos cada ano e recebem - o preito -homenagem de seus criados. Quando vão a suas povoações, se detém em cada uma no máximo três dias, seja por não lhes permitir mais tempo a falta de pastos para seus cavalos, seja pelo costumes de muitos anos. A particularidade que existe neste ponto é que cada capitão Eyguaeyegi se aloja em casa de seus criados, sem que outro Mbayá se hospede na mesma casa. Observam esta prática com tantas precisão que, se a capitã Mbayá tem distintos criados que o de seu marido, se separam aqueles dias e cada um vive com os seus, sem o menor sentimento”. (Sanchez Labrador, apund in Cardoso de Oliveira, 1976 p. 32-33) A organização política dos Mbayá-Guaicuru distinguia os Oquilidi, os chefes denominados nas formas de comunicação do sistema colonial de “capitães”. Este grupo é que mantinha relações diretas com os Guaná/Chané e seus subgrupos, através de outra categoria social, os naati/ unati107 , chefes ou capitães. A relações sociais Guaciuru-Guaná se davam pela cúpula, baseadas em relações econômicas e de parentesco. Na realidade, os grupos de naati e oquilidi, tinham profundas características exogâmicas, pelo que os dados dos relatos de militares e missionários permitem indicar. Como vimos anteriormente, os Mbayá-Guaicurus eram um grupo profundamente mestiçado do ponto de vista étnico-cultural no final do século XVIII, tanto na “base”, pela incorporação de cativos Xamacocos, Guatós e Guanás, quanto cúpula pelas, alianças matrimoniais com sub-grupos Guaná através da categoria dos chefes. As visitas dos Oquilidis Guaicuru nas aldeias Guaná, como indicam os dados acima, eram direcionadas para os grupos domésticos específicos, aqueles diretamente relacionados por trocas ou alianças matrimoniais. Estas visitas obedeciam, em tese a certas regras, e seu descumprimento poderia ser a causa de tensões inter- indígenas. Os naati ou chefes Guaná e dentre eles os Terena, tinham assim a possibilidade de estabelecer relações de aliança com um grupo indígena dominante dentro do sistema social do Chaco/Pantanal, e a forma de interação entre cada sub-grupo poderia variar, mas em termos gerais, esta aliança política baseada em trocas matrimoniais, econômicas e acordos militares, se colocou como um padrão de interação entre os dois povos indígenas. Os Layana e os Chavaraná teriam mantido uma relação mais conflituosa com os Guaicurus, enquanto os Terena – por terem adotado o 107 Unati, é a designação indicada por Altenfelder Silva e por Susnik, enquanto que naati é a designação utilizada por Cardoso de Oliveira, que indica que esta palavra é derivada etimologicamente de “unati” que quer dizer “bom” em Trena-Aruak. 256 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional cavalo e se lançado a práticas guerreiras, conseguiram uma relação de maior equilíbrio de forças com os Guaicurus, de forma a serem tratados mais como aliados do que como “cativos”. De toda maneira, existia a possibilidade de uma aliança vertical, ou seja, dos Terena (que enquanto Guanás eram “nyololas”ou cativos, e por isso com status inferior em relação aos Guaicuru e devedores de tributos) para com o grupo dominante. Os naati/unati, capitães ou chefes Terena, eram uma categoria social que se formou sob a marca da aliança política com grupos sociais dominantes, de status e poder relativamente superior, e que em conseqüência disso, podiam compartilhar a tradição cultural destes grupos, se desvinculando da lealdade para com a totalidade dos grupos locais Terena, que poderiam se apresentar não do ponto de vista da divisão “étnica” (Guaicuru X Guaná), mas sim “chefes” (oquilidi/naati) e cativos ou “comuns”. A “exogamia étnica” da categoria social dos naati ou chefes, dentro da situação histórica do Chaco/Pantanal e também do Diretório, pelo menos na sua primeira fase, faz com que a experiência da “chefia” e organização política Terena fosse extremamente complexa, caracterizada pela dispersão das mulheres “naati” e a vinculação de diferentes grupos- locais Terena a grupos de alta mobilidade territorial Guaicurus, aos quais muitas vezes se aliavam em empreendimentos diversos, como ações militares e migrações. É preciso dizer que, o padrão de territorialização e organização política Guaná era muito distinto dos Guaicuru; enquanto os primeiros eram preferencialmente sedentários e agricultores, os segundos eram nômades e caçadores-coletores. As aldeias (no sentido indígena, e não estatal administrativo) podiam variar em sua composição demográfico-social entre 500 e 1500 pessoas (ver Susnik). Estas unidades sociais e territoriais, entretanto, não coincidiam com as unidades de ação política, de maneira que não se pode imputar formas extremamente totalizadoras a elas. As aldeias mantinham uma unidade cerimonial e simbólico-cultural, sendo um espaço de socialização e conflito, eventuais relações de cooperação e concorrência econômica, mas não constituíam, por conseqüência automática, unidades políticas. As informações que dispomos acerca da organização social dos Terena na situação do Chaco, são principalmente dadas por Felix Azara e Sanchez Labrador, e segundo este, as aldeias Terena eram formadas: “em ruas divididas em quadras e no meio, uma praça grande...”, e dividiam-se também “em bairros capitanias, podendo cada um compor-se de 15 ou mais casas comunais..”. (Sanchez Labrador apud in Susnik, op.cit, p. 112). Isto pode ser demonstrado através das próprias formas de interação Oquilidi-Naati, como indica Susnik: “A dependência se fundamentava nas relações matrimoniais. (...) Desta maneira, diferentes bairros-cacicatos que compunham as aldeias Chanés, podiam reconhecer a um determinado capitão Mbayá, quem era o verdadeiro “oquilidi’ do respectivo bairro. Em virtude deste status, o oquilidi tinha o direito de usufruir da produção agrícola do bairro e exigir o serviço da plebe integrada, sempre na mesma medida que o próprio chefe chané do bairro, recebia os atuais regalos –segundo a etiqueta Chané -, seja mantas de algodão ou bolos de ‘nibadená-urucu’ 257 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional para pintura corporal, devendo corresponder na qualidade de oquilidi com objetos de ferro, sempre uma necessidade básica dos cultivadores. A dependência Chané era estruturada através da integração cacical de um Mbayá dentro da classe dominante; o integrado oquilidi obteve assim o direito próprio de um senhor Chané do bairro, o que significava o poder sobre a plebe integrada, mas não sobre a classe cacical, com a qual tinha que cumprir as pautas de reciprocidade. A vassalagem não implicava uma subordinação tribal como conjunto sóciopolítico, mas uma dependência econômica por unidades fragmentadas, estas representadas nos ‘bairros’ das aldeias”. (Susnik, op.cit, p.115). Ou seja, as unidades sociais e territoriais amplas dos Terena, os grandes aglomerados populacionais, eram parte de uma tendência sócio-cultural, mas estas unidades eram fragmentadas politicamente, em um tipo de organização segmentar baseada na exogamia étnica e alianças matrimoniais verticais, na camada dos “chefes”. Esta forma de organização, inclusive, criaria dificuldades para os Terena no território administrado pelo Império Espanhol. Ao contrário do lado da fronteira brasileira, ocorreu já no início aquele século uma colonização criolla nos território na margem ocidental do Rio Paraguai, e a demanda por terras melhor cultiváveis criou uma tensão entre as comunidades locais Terena e os colonos criollos. Enquanto no lado brasileiro, os Terena eram sempre associados a representações de índios “pacíficos” e potenciais aliados do “Império”, no lado espanhol, na mesma época, eles era acusados de ser um gr upo incontrolável, dado a roubos, saques e raptos, tratado então como um grupo “bravio” e guerreiro108. Os contornos gerais desta organização política permanecerão na primeira fase da situação de diretório. A inserção num sistema político estatal não afetaria a transmissão hereditária da liderança dentro da camada dos naati, e mais especificamente, de pai para filho ou dentro do grupo de siblings, mecanismo que continuou operando durante o “cativeiro” no início do século XX (ver Altenfelder Silva, 1949, Cardoso de Oliveira, 1968). 5.3 - Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial. O processo de formação das aldeias deve ser compreendido a luz da organização social e dinâmica política Terena (especialmente as formas de segmentação) e sua interação com as instituições estatais. As primeiras reservas indígenas Terena foram estabelecidas em 1904, as de Cachoeirinha e Bananal. Mas em todas as reservas ao longo do século XX foram formadas diferentes aldeias, com organização política própria. E a origem dessas aldeias remonta aos empreendimentos indigenistas, assim como a formação das reservas remetem a empreendimentos 108 “Mas não eram as únicas causas o roubo e o rapto de mulheres a que motivavam o pedidos dos colonos de desalojar os Terenos de Naranjaty: havia certa preocupação pelo rápido crescimento demográfico deste grupo indígena”...: (Susnik, 1981,p. 220). Éinteressante observar que o último núcleo Terena no território paraguaio é desalojado em 1840,data próxima a que Oberg diz ter sido a migração dos Terena de Bananal. Épossível que ele tenha registrado exatamente a história deste grupo. 258 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional governamentais e militares. É uma história da formação das aldeias por meio de empreendimentos indigenistas dentro da reserva que iremos narrar agora. Cachoeirinha/Sede. As denominações dos cinco setores ou aldeias hoje existentes na Terra Indígena Cachoeirinha remetem a natureza. Os nomes dados pelos Terena as aldeias representam a incorporação de elementos da natureza na criação de categorias de classificação do espaço e território. Bookoti ou Cachoeirinha, é um nome dado devida a existência de uma pequena cachoeira no local onde hoje se localiza a aldeia. Morrinho, é devido a existência de um Morro, que seria o antigo limite da terra de Cachoeirinha. Babaçu é um tipo de árvore, existente na área que hoje é a aldeia; Argola, é um nome dado em razão de os primeiros moradores do local terem construído as suas casas de maneira circular, em torno de um rio (informações dadas por Inácio Faustino, Aldeia Argola, Setembro/2004). No século XIX, existia uma aldeia Terena denominada Cachoeirinha, mas não é possível que sua localização não corresponda a da atual Cachoeirinha. E esta aldeia atual, teria sido formada depois da Guerra do Paraguai, quando o líder Kali Sini (pequena onça ou oncinha) conduziu um grupo de Terena para as margens ocidentais do rio Paraguai. Antes da formação da reserva, Cachoeirinha passou por uma situação de grande instabilidade populacional. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, ao final do século XIX, um fazendeiro o “Coronel Zózimo Filho”, dono da Fazenda Santana (hoje fazenda Petrópolis, de propriedade de Pedro Predrossian, ex-governador do Estado do Mato Grosso do Sul, que faz limites com Cachoeirinha), acusou os Terena de roubo e saque nas fazendas. Como conseqüência deste processo, o Coronel passou a considerar os Terena como devedores, obrigando-os a trabalhar de graça na sua fazenda. Alguns índios se rebelaram e fugiram para Bananal e serra de Maracajú, não retornando mais. Porém outras famílias chegariam de Lalima, e da Fazenda Salobra. Assim, a demarcação da reserva de Cachoeirinha em 1905 pela Comissão Rondon encontra esta situação, de reagrupação de famílias no local. Cachoeirinha é a mais antiga das áreas residenciais. Na realidade, a localização da área da Cachoeirinha mudou várias vezes ao longo do tempo. A princípio, a ocupação teria se dado na área que hoje é conhecida como Morrinho, e somente depois este nome teria ficado associado ao local que hoje é a “Sede”. Cachoeirinha é a primeira das aldeias hoje existentes a ter sido formada. Adolfo Pedro, hoje morador do Babaçu, falou que segundo sua mãe, “eram 8 as famílias “fundadoras” da Cachoeirinha: “Na historia da mamãe, eram 8 famílias, tudo veio daquele lado, Chaco. Ai vinha vindo, disse que tinha homens corajosos, que atravessaram Rio Paraguai, e os índios bravos mataram gente lá, e esse primeiro índio que veio investigar aqui chamava Kaly Siny 259 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional (pequena onça), e foi feito por Deus”. Citou os no mes dos primeiros moradores: Handi; Hitu´tui; Soporoke´e; Miexou; Kiriu; Heovoloukê; Pe´pelô. Disse que só conhece os nomes no “idioma” porque antigamente os índios não tinham nome em português, que eles “pegaram trabalhando com o patrão”. Das famílias identificadas como fundadoras Adolfo identificou as relações genealógicas de algumas delas: Handi seria antepassado da família Canali; Kiriu seria da família Lipú; Pe´pelô seria bisavô de Adolfo Pedro; Heovoloukê da família Gonçalves (o que é interessante é que o Gonçalves que nós conhecemos era um índio Kadiwéu) que moram nas vilas Serradinho e Morrinho principalmente. A aldeia Cachoeirinha se compunha assim no início do século XX, de alguns grupos domésticos, os quais possuem ainda descendentes – e famílias importantes – em Cachoeirinha. Argola Vejamos à história da ocupação das terras que hoje fazem parte da aldeia Argola. Segundo Fernando Antonio da Silva, um ex-cacique da Argola: “Assim conforme conta o histórico desta aldeia Argola o inicio da vinda dos lavouristas lá aldeia da Cachoeirinha começou o povoado desta aldeia, aonde foi deixado os moradores desta aldeia Argola, mais ou menos no período de 1935 por ai. Eu fiquei já sabendo no período de 1960, eu já existia aqui na aldeia e comecei acompanhar o movimento.(...) Fomos trabalhando, expandindo esta aldeia, começou chegar gente da Cachoeirinha, mudando para cá. Onde foi a historia desta aldeia Argola. Começou a juntar a população onde foi formada uma aldeia até no presente momento. (...) Segundo Fernando Antonio da Silva, foram cinco as famílias a se fixarem inicialmente em Argola: uma delas é a de Felipe Antonio, seu avô, outra é a de Pedro Candelário (parente) de Rufino Candelário. A família Candelário e a família Antonio da Silva são duas das maiores e mais importantes do setor no atual momento histórico. O atual cacique de Argola é João Candelário, e o primeiro cacique foi Rufino Candelário, ainda morador da Argola. Fernando Antonio da Silva também já foi cacique, por duas vezes, entre (1995-2003). A formação da Argola deriva em parte da ocupação das antigas áreas de roça. Conversamos também com Januário Candelário, e cruzando as informações genealógicas com as fornecidas por Fernando é possível concluir o seguinte: os irmãos Candelário (Antônio Candelário - pai de Januário - João, Pedro e José) se mudaram para Argola por volta de 1950 (quando Januário tinha 18 anos); ele, seu pai e seus irmãos (Jerônimo, Cândido, Lázaro, Marilza e Margarida Candelário). Existiam 4 famílias na Argola no início de sua formação, sendo que Felipe Antônio seria sogro do Pedro Candelário, porém não conseguimos determinar com que filha ele foi casado, possivelmente Guilhermina Antônio. 260 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional O grupo teria se deslocado para tocar roças o que confirma a formação de aldeias a partir de núcleos de famílias extensas inter-relacionadas por parentesco, a família Candelário se juntaria à família de Felipe Antônio, que seria sogro de um dos filhos de Antonio Candelário. Na realidade estas trocas matrimoniais é que gerariam as no vas famílias extensas, que seriam à base da formação das novas aldeias. Em 1935, aproximadamente começa a ocupação de diferentes áreas de roça em Cachoeirinha. Morrinho Vejamos a história de Morrinho, outro dos setores da terra indígena de Cachoeirinha. Conversando com Isidoro Pinto, ele me passou algumas informações sobre a história de Morrinho. Vejamos como o cacique Isidoro Pinto, conta à história local: “Quando e quem criou esse setor? Foi, parece que começaram 1961. Foi finado Luiz Raimundo. Mas eu tava 15 anos ainda. ( ) Mas quando fundou aqui tinha quatro famílias. Não, cinco famílias. Era todo mundo da família do Luiz Raimundo? É, era família dele mesmo. Porque a minha mãe era da família do Luiz Raimundo. Só que tem finado Luiz Raimundo, finado meu pai, e tem Firmino Augusto, é outra família. Firmino Augusto, ele está aí na Cachoeirinha, não sei se você viu, ele é irmão. Aí tem o Renato, ele está aí ainda. (...) Os primeiros que começaram nesse Morrinho. (...). Por que essas famílias vieram para cá? De primeiro aqui é roça, primeiro era roça. Finado Luiz Raimundo, ele morava em Cachoeirinha, finado meu pai morava lá. Mas só que aonde que ele toca roça era aqui. Foi indo, foi indo, tocando roça nessa parte, vai embora pra Cachoeirinha, cedo já tava aqui na roça. Depois ele fez um barraquinho aqui na roça. Aí outro veio fazendo barraquinho também, dentro da roça. Aí depois ele acostumou de morar, depois ele mudou, mas não tinha ainda essa tal de Morrinho, trabalhava na roça, ainda. Aí, depois aquele chefe do posto, apareceu aquele chefe do posto, chama Vitorino. Não sei se ele é finado ou está aí ainda... Ele é branco, mas eu não sabia que ele tá aí ainda. Mora em Campo Grande. Aí, apareceu aquele chefe do posto, aí já inventaram pra levantar a comunidade aqui no Morrinho. Aí falou pro Luiz Raimundo pra ele ser cacique, ele que comanda aqui. (...). É. Depois, foi indo, levantando aquele outro também, né, o Babaçu. Quem mais primeiro cacique lá, chama Faustino, do Babaçu. Do tempo do finado Luiz Raimundo. Faustino já é finado também. Aí foi indo, levantaram. Aí já tem outro aldeia, Morrinho, Babaçu, Argola, Lagoinha, se tiver muitos anos, é dez anos, por aí. Por que colocaram o nome de Morrinho? Agora sim, rapaz... Esse aí, quando já conheci nesse mundo, já estou com aquela idade, já conheci, aquele que nome do Morrinho, tem um açude pra cá nesses rumos. Um açude, né. Um índio antigo que fez descer aquele açude. Tinha aquela pedra ali, aquela pedra (...) até hoje tá ali. Aí quando era, já conheci mundo, eu sei que o nome daquele morrinho e lá, aquele açude. Sempre a indiada veio pra lavar roupa ali. Não tinha açude, aquele perto ali. Não era como hoje. Antigamente, aí, a minha mãe sempre falava – Eu vou lá no morrinho lavar roupa, aí eu bem acompanhando, era ali. E aquela pedra toda ali rodando aquele morro ali. E eu que falo, 261 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional pode ser por causa daquele, o açude. Mas tem aquele morro, agora, que fala aquele Morrinho lá, aquele grandão lá. Mas não é. Não é. Esse é enganado. Eu sei que o Morrinho é aquele ali. Aí quando levantou aqui, pegou nome aqui. Já escutei o que ele falou – Morrinho, aqui, ele pegou o nome daquele morro lá. Mas não esse. Esse aí, ele criou agora essa conversa, mas pra mim não é. (08/05/2003). O que hoje é aldeia Morrinho, era até os anos cinqüenta aproximadamente uma área de roçado. As residências foram construídas depois, e cinco famílias se deslocaram para ali, na época do “capitão Timóteo”: as famílias de Otávio Pereira, Luis Raimundo, Pereira Pinto, Renato Barbosa e Firmino Augusto. A genealogia do Cacique Isidoro é interessante para descrever a história local. Seu Pai é Pereira Pinto. O pai de seu pai e a mãe de seu pai ele não soube informar os nomes. Seu pai tinha dois irmãos, Firmino Pinto e Antonio Pinto, e duas ir mãs que morreram e ele não soube informar o nome. Sua Mãe é Cristina Domingo.O pai de sua mãe é José Raimundo e mãe de Sua mãe é Domingas, não soube informar o sobrenome. Os irmãos de sua mãe são Luis Raimundo, João Raimundo e Armando Raimundo, suas irmãs, Lúcia Raimundo e Rosa Raimundo. Eu recolhi também a genealogia da esposa de Luis Raimundo, a senhora Zenaide Gonçalves, nascida em 1935. O Pai dela é Batista Gonçalves e sua Mãe Anita Heloi. O pai de seu pai é Brigito Gonçalves (índio Kadiwéu) e a mãe de seu pai é Cirina. Seu pai tinha como irmãos Lino Gonçalves, Artério Gonçalves e Pascoal Gonçalves. Sobre sua mãe não consegui maiores informações. Ela tem como irmãos : Aldo Gonçalves, Lucio Gonçalves, João Gonçalves, Heitor Gonçalves (com quem peguei informações genealógicas também) e Margarida Gonçalves (que alguns dizem ser “benzedora/rezadora”). Seus filhos são: Milton Raimundo (que me ajudou a fazer as entrevistas), Ramão Raimundo, Jorge Raimundo (diretor da Igreja Assembléia de Deus Emanoel), Lúcio Raimundo, Getulio Raimundo, Edenir Raimundo, e Sebastiana Raimundo e ... (ver nome Raimundo). Ou seja, as famílias que se deslocaram para a área que hoje é a aldeia Morrinho, duas delas pelo menos, eram previamente inter-relacionadas por parentesco. Luis Raimundo era cunhado de Pereira Pinto e tio de Isidoro Pinto. Atualmente, as residências do cacique Isidoro, e dos descendentes das demais famílias,seguem o padrão da co-residência da família extensa. Destas famílias fundadoras do Morrinho, saíram às primeiras lideranças locais, especialmente o “cacique Luis Raimundo”, que ficou no seu cargo durante cerca de 15 anos, até o início dos anos “80”, pelo que nos informamos. Depois da morte de Luis Raimundo, outros dois homens ocuparam os cargos de caciques (Roberto Júlio, que teria abandonado o cargo por ter “fugido” com uma mulher, e (...) que teria sido removido da função por pressão da comunidade). Isidoro foi escolhido em 1988 para cacique (temos um documento que confirma isso). Campão/Babaçu 262 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional O setor que hoje é conhecido como “Campão/Babaçu” existe pelo menos desde os anos 50, pois já era mencionado nos estudos de Cardoso de Oliveira, inclusive como área de maior “produtividade econômica” naquele contexto. Na realidade, Campão e Babaçu consistem em duas áreas diferentes, ocupadas por conjuntos de distintos grupos familiares. O Campão fica do lado oeste da estrada, próximo a uma área de serrado, e foi ocupada por famílias de origem Laiano, especialmente as de Gonçalo Roberto e Faustino Salvador . O Babaçu é uma área mais central, próxima a estrada da Cachoeirinha. Uma das primeiras famílias a se fixar no local, é a família “Balbino”, hoje responsável pela Igreja Presbteriana Renovada, e que foi protagonista de um conflito político-religioso nos meados dos ano s 90. Seu pastor, Emenegildo Balbino, nos contou que em certa ocasião que a tenda da sua Igreja foi incendiada pelos Católicos, com a ajuda da Associação Mãos Unidas (presidida pelo hoje Cacique Zacarias da Silva). O Cacique Zacarias é morador do Campão e não do Babaçu. Conversamos com Saturnina Rodrigues, nascida em Campão em 04/06/1955. Sua mãe nasceu no Lalima, de nome Calixta Roberto e filha do Xamã Gonçalo Roberto, e seu pai Demétrio Rodrigues, nasceu no Bananal. Indicou (junto com dois de seus irmãos que os primeiros moradores do setor foram Faustino Salvador, Irene Salvador e Marcelino Salvador). Na sua genealogia vimos que há uma mulher (Firmina Salvador) que indica a troca matrimonial, ou a absorção de indivíduos migrantes – no caso Gonçalo – nas famílias existentes, no caso a Salvador. Depois entrevistamos Justo Salvador (filho de Faustino Salvador) e sua esposa Maria Belizário (irmã de Celinho). Eles informaram que Faustino era nascido na Cachoeirinha e foi para Lalima onde residiu 12 anos e depois retornou. Lá ele se casou com “Camila Roberto” e foram morar no Campão. Indicam que ele Faustino se deslocou com sua esposa, sua irmã Marcelina Salvador (casada com Miguel Batista). Depois a segunda família a se deslocar para o que hoje é Babaçu, foi a de José Balbino, que morava e trabalhava na região de Albuquerque. Faustino (seu apelido era Xovoti, que em Laiano significa “filho único”) teria se tornado cacique em 1962, ficando 5 anos. O primeiro cacique do Babaçu foi Adolfo Pedro, indicado por Lino em 1979. Assim segundo estes dados, Campão teria sido formado por um grupo de siblings (os “Salvador”) a quem se juntariam depois os membros da família Roberto, também vindos de Lalima. A parentela Rodrigues teria início com a absorção de Demétrio neste gr upo. No Campão entrevistamos Calixta Roberto e Demétrio Rodrigues (o cacique Zacarias Rodrigues é um de seus filhos). Ela reside na mesma área que seu pai e sua mãe moravam, e ali foram construídas as casas de dois de seus filhos. Calixta Roberto é nascida na Lalima, em 14-101936 e foi para o Campão aos 10 anos, aproximadamente. Ela é filha de Gonçalo (que tinha dois nomes, também o de Valeriano Roberto) e Firmina Salvador. Disse que Camila Roberto que se 263 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional casou com Faustino Salvador, era tia de Gonçalo. Foi então um grupo de siblings Laiano vindos de Lalima que fundaram a área chamada Campão – até então um serrado desabitado. Depois conversamos com Adolfo Pedro, primeiro cacique do Babaçu. Ele é nascido em 11/09/1933, e começou a construir seu rancho com 16 anos naquele local. Seu pai era Geraldo Pedro e sua mãe Dionísia Balbino (filha de José Balbino). Foi morar ali, depois da morte do pai. Isto significa que a família Balbino, era uma família extensa, e que a filha se reintegrou na casa do pai depois da morte do marido. Disse que os primeiros moradores foram: José Balbino e sua esposa Maria Carolina; seus irmãos Antonio, Mário e Augusta Balbino (casada com Leôncio da Silva); José Vaquero (genro de Balbino). Citou também como moradores antigos (Seranio Sebastião, Gonçalo Roberto, Faustino Salvador Francisco da Silva e João Lemes, do lado do Campão). Ou seja, o Babaçu foi também formada por famílias extensas inter-relacionadas por parentesco; José Balbino, com seus irmãos, filhos e genros. Lagoinha Lagoinha é a aldeia de criação mais recente em Cachoeirinha. Ela começou a ser formada nos meados dos anos 1970, com a chegada de algumas famílias vindas da aldeia Lalima. O atual Cacique da Lagoinha é Ramão Vieira, de uma destas famílias vinda da Lagoinha. Conversamos com Felipe Neto, nascido em 23/09/1952, e atual presidente do Conselho da Aldeia. Ele nasceu na aldeia Argola, onde o pai e a mãe moravam e se mudou para a Lagoinha aos 28 anos, ainda solteiro (acompanhando sua mãe Vitoriana Ferreira, que havia se separado de seu pai). Antes dele já residiam na área da Lagoinha, Osvaldo Vieira (que se tornaria seu sogro) e Benedito Ferreira com sua esposa Joana da Silva (seus avós, pais de sua mãe). Ou seja, o retorno de Felipe e sua mãe indicam a reconstituição de uma “família extensa”, depois de um divorcio. A família de Osvaldo Vieira, casado com Adelaide Arruda, foi morar lá mais ou menos na mesma época (1980), vindos de Lalima com seus nove filhos. 3 filhos de Osvaldo Vieira casaram-se com as irmãs de Felipe Neto: Alípio Vieira com Pedrosa Felipe; Lilio Vieira com Dionísia Felipe; Virgilio Vieira com Petronia Felipe. A comunidade de Lagoinha se constituiu na base de trocas matrimoniais, e destas duas famílias inter-relacionadas é que sairiam as lideranças políticas. Uma outra família residente na Lagoinha era a do xamã Mário Lemes. Na Lagoinha o padrão é o mesmo: co-residência dos ovokuti com famílias nucleares, agrupadas em lotes e que funcionam como unidades de produção/consumo e também de ação política. Felipe Neto falou que foi ele que brigou para colocar o cacique, “lutei, lutei e coloquei o Alípio, porque era o mais velho de todos, e eu era vice dele. Alípio Vieira é seu cunhado (irmão de 264 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional sua esposa). O segundo cacique foi Joãozinho Felipe e Jorge Felipe seu vice (seus irmãos), e neste momento construíram um Conselho Tribal. O terceiro Cacique é Ramão Vieira, pelo que disse, os caciques são escolhidos na comunidade, ainda não há eleições. A formação das comunidades- locais Terena obedece certas características comuns. A história de Cachoeirinha, de seus cinco setores, da territorialização interna dos grupos domésticos, revela alguns padrões 1) Argola, Morrinho, Campão/Babaçu e Lagoinha foram criadas pela ocupação inicial de 3 ou 4 famílias. Em todo os casos, as famílias que se fixaram, eram famílias extensas previamente relacionadas, ou terminariam por se inter-relacionar através de matrimônios, e a forma de ocupação que elas hoje fazem do território, indica que desde o início estas famílias extensas eram a forma de organização social das unidades familiares; 2) a fixação da residência nestas novas áreas (e isto é igualmente válido para Babaçu, Lagoinha, Morrinho e Argola), se deu a princípio por uma motivação econômica, para facilitar o trabalho e a exploração das roças que se localizavam nestas áreas; 3) os setores hoje existentes foram sendo construídos a partir das décadas de 1930/40 (Argola e Campão/Babaçu), década de 1950 (Morrinho), e década de 1970 (Lagoinha). Os três setores (Argola, Babaçu, Morrinho), foram construídas sob o período de existência do SPI, por ordem ou orientação do Encarregado do Posto, ou seja, pela intervenção da política indigenista, de maneira que os objetivos de índios e encarregado do Posto eram coincidentes neste aspecto. Pelo que a memória dos moradores do local indica, os deslocamentos destas famílias para as roças muitas vezes era feito por incentivo ou ordem direta dos Chefes de Posto, que visavam aumentar a produção econômica da reserva indígena 109 . 4) Como vimos pelas informações dadas por Isidoro Pinto, o primeiro cacique de Morrinho foi indicado pelo Chefe de Posto. Os primeiros caciques de cada setor saíram das famílias que inicialmente ocuparam as áreas de roça. Isto significa que, em todos os setores, as famílias extensas que se fixavam, se já não tinham uma relação privilegiada com o Estado, através do Chefe de Posto do SPI antes de se deslocarem para as áreas de roça, terminaram por estabelecer tal relação no processo de ocupação das roças. Como algumas pessoas nos falaram, o Cacique em Cachoeirinha era escolhido por “indicação”. Segundo estas pessoas, os “mais velhos” se reuniam para indicar o nome do Cacique. Mas este processo era regulado pelo Chefe de Posto do SPI, que indicava também o cacique. A “indicação” era um sistema em que se conciliava a indicação do Chefe de Posto com a indicação feita por alguns indígenas. Assim, o Cacique Lino de Oliveira Metelo teria sido indicado por um Conselho de Anciãos e pelo Chefe de Posto. O Cacique Lino por sua vez teria indicado seus auxiliares, que deveriam trabalhar segundo sua orientação, todos se subordinando ao poder do Chefe de Posto. Criou-se uma rede determinada de famílias que compartilhavam, em certa medida o poder de certas instituições de Estado, ou 109 Lembremos que Roberto Cardoso de Oliveira, fala de uma “economia do posto”, quando analisa as relações interétnicas entre os Terena e o SPI. 265 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional melhor, o poder concedido pelo Estado sob certos objetos específicos. Veremos mais a frente que hoje a maior parte das lutas políticas faccionais se dão entre membros destas famílias e grupos vicinais que inicialmente se integraram nas redes de Estado e outros que com elas iriam disputar poder e recursos materiais e simbólicos. No conjunto deste processo, em que empreendimentos indigenistas conciliavam os interesses do Estado com os dos grupos familiares Terena e possibilitaram a expansão das roças e a formação de novas aldeias, ocorreu simultaneamente uma tendência ao crescimento demográfico do conjunto da reserva combinada com a da descentralização política. Ou seja, ao longo de um século, entre 1900 e 2000, houve uma tendência à descentralização política relativa. Mas mesmo sendo estes processos de formação gerados por processos de “empreendimentos”, eles terminaram por acumular uma série de questões e efeitos que levariam a emergência de dramas sociais. Neste sentido, podemos falar de que num primeiro momento, os empreendimentos sociais prevaleceram, e que a ocupação das áreas de roça tinha as características deste tipo de processo social. Este processo de formação de novas aldeias, e depois sua transformação em unidades políticas relativamente autônomas – ou que buscam ter autonomia – se deu a princípio, pela estratégia deliberada do SPI, através dos encarregados de Posto, de expandir a área plantada, aumentar a produção e gerar o “desenvolvimento” da aldeia, de acordo com os parâmetros do indigenismo do século XX - criar arruamentos, construir casas com o padrão “brasileiro”. Além da ação do Encarregado de Posto do SPI, era fundamental também para o estabelecimento destes “ranchos” nas áreas de “roça”, a ação do Cacique, pois ele gerenciava as ordens do Encarregado e deveria aplicá- las e supervisioná- las. A princípio, não existiam “caciques” nestas novas áreas, nem elas eram consideradas como “aldeias”, mas eram vistas apenas como grupos domésticos residentes em novos ranchos. A origem dos “caciques” e a posterior transformação destas unidades em aldeias, se relaciona diretamente ao próprio processo de centralização política dentro da aldeia. Pelo que levantamos o Cacique da sede Lino de Oliveira Metelo indicou “auxiliares” dentro das novas áreas de residência, conforme estas áreas foram crescendo em importância e demografia. Com o tempo, estas lideranças locais teriam começado a reivindicar autonomia política local, transformando-se os antigos conglomerados de ranchos ou “bairros” em novas “aldeias” (no sentido estatal e indígena) das quais estes teriam se tornado os caciques. A formação das aldeias por meio de empreendimentos conjuntos dos índios e o Estado, através da ação do Encarregado de Posto que incentiva va a exploração econômica das terras da aldeia, teve como efeito de longo prazo um processo de descentralização política que assumiria contornos faccionais. Esta descentralização inicial teria como resultado a transformação destas antigas áreas de roça, em “aldeias”, cada uma com um Cacique e uma estrutura de liderança própria. Sabemos que 266 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional uma disputa política existe entre os caciques dos setores e o Cacique da Sede, e que a transformação das antigas “roças” e “auxiliares de cacique” respectivamente em “aldeias” e “caciques”, expressam a reivindicação de autonomia das novas comunidades locais e a disputa de poder dentro do grupo. Ouvimos em uma ocasião o seguinte “cacique da Sede manda na Sede, aqui quem manda é o cacique daqui” (palavras de Adelino José, secretário da liderança da Argola, em conversa informal sobre os assuntos de Cachoeirinha). A atual organização política e territorial Terena hoje é o produto desta história e experiência local. As forças advindas da organização social e das relações político-econômicas combinaram-se e produziram o que hoje é a realidade social do grupo. Hoje as cinco aldeias existentes, sua organização social e política, só são plenamente compreensíveis à luz desta história. Somente assim compreendemos o real significado de certos acontecimentos. Veremos mais a frente que a luta política dentro do grupo étnico, e a forma das relações interétnicas, acompanham esta dinâmica histórica. Estas aldeias são unidades básicas da organização política Terena. Elas são hoje uma interseção entre as instituições administrativas de Estado e a organização indígena. Do ponto de vista estatal, consistem em unidades territoriais na qual se aplica a política indigenista, do ponto de vista indígena, consistem em unidades societárias compostas pela articulação de grupos domésticos inter-relacionados por parentesco, e que participam em relações de sociabilidade, cooperação e conflito. Mas estas unidades, como produtos das relações interétnicas, não podem ser vistas apenas como resultado da imposição da política indigenista, mas tem de ser compreendidas como produtos das estratégias políticas indígenas. Esta organização do território indígena em diferentes aldeias é o resultado de um processo verificado dentro da situação histórica de reserva. A construção do território indígena expressa exatamente os processos de centralização/descentralização verificados dentro da organização política Terena, por meio da combinação de empreendimentos indigenistas e lutas faccionais. 5.4 – As facções e a política do óleo e da semente. O processo de descentralização político-territorial não foi gerado exclusivamente por empreendimentos indigenistas. Na realidade, paralelamente aos empreendimentos, desenvolveramse dramas de sucessão que foram fatores determinantes para a organização política Terena. Isto porque dentro das próprias aldeias se deram processos de segmentação que resultaram na construção de diversas “vilas”. Essas unidades têm um profundo significado e importância e seu surgimento está associado aos dramas de sucessão. 267 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional A multiplicação de aldeias dentro das reservas na realidade é apenas o desdobramento de um processo que já existia, de diferenciação interna. Cachoeirinha era historicamente dividida em “bairros”. Nos anos 1950 eram 53 ranchos na área que hoje é a Sede, Argola com 23 ranchos e Capão, com 18 ranchos. Mas na “Sede”, “... poder-se ia ainda dizer que esse núcleo estaria dividido em dois “bairros”, Cachoeirinha propriamente dita e Cruzeiro, atualmente muito pouco diferenciados mas que tempos atrás chegaram a representar dois grupos até certo ponto rivais e com equipes de futebol próprias”. (Cardoso de Oliveira,1976, p.72). Quer dizer, o processo de localização dos grupos domésticos dentro do espaço aldeão tinha levado a diferenciação em “bairros”. No caso da antiga área central da Cachoeirinha, dent re os 53 ranchos existia uma subdivisão entre “Cachoeirinha” e “Cruzeiro”. Essa configuração territorial só pode ser compreendida em relação a dois fatores: o regime de escolha dos caciques e a organização política indígena, e historia das facções e líderes locais. Em Cachoeirinha e nas demais aldeias, a partir dos anos 1920, serão aplicadas diferentes fórmulas de organização política. Primeiramente a indicação do Cacique pelo Chefe de Posto. Depois a criação de um “Conselho Tribal” (aparentemente, nos anos 1930), que indicaria o cacique, e finalmente as “eleições”. As eleições para Cacique foram implantadas a princípio nos anos 1960, mas seu uso se generalizou entre os Terena apenas nos anos 1980. A implantação das eleições emergiu como uma “solução” à mera indicação do Cacique pelo Chefe de Posto, como forma de dar maior legitimidade à ação o Estado, criando bases internas ou o “consentimento” do grupo para as ordens dadas pelo Encarregado do Posto. Isto se fez necessário devido às dificuldades encontradas em impor uma liderança única centralizada ao conjunto do grupo. Mas na realidade o seu emprego foi logo descartado e só voltaria a ser acionado em razão da política de resistência dos índios. O quadro abaixo permite visualizar a evolução da organização política de Cachoeirinha: Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha – 1850-2005. 1850-1903 1904-1927 1928-1979 1980-2005 “Regime da Transmissão Hereditária da Chefia”. (dentro da camada naati). Controle total dos índios sobre o processo político aldeão. “Regime de Indicação Unilateral” (pelo SPI). Controle total do Estado sobre o processo político aldeão. “Regime de Indicação Bilateral” Os “índios” representados pelo“Conselho Tribal”, em conjunto com o SPI, escolhiam o Cacique. Em tal regime havia o predomínio do Estado no controle do processo político aldeão. “Regime de Eleições Diretas” (organizadas pelo SPI/FUNAI). Os “índios”, tomados em seu conjunto, escolhem o Cacique. Em tal regime há um relativo equilíbrio entre Índios e Estado no controle do processo político aldeão. Conseguimos algumas informações para tentar compor uma “linha de sucessão” dos caciques Terena. Esta linha não está completa. Segundo estas informações entre meados da década de 1950 e o atual momento, sucederam-se 11 caciques. 268 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas). Até 1904 1904-1918 1919-1928 1928-1958 Década 1960 Polidório Benedito Polidório. Capitão Vitorino Pereira da Silva Década de 1970 1976-1979 Lino de Oliveira 1979-1982 1982-1985 João Niceto Júlio João Niceto (renunciou) Mario Pedro Dionísio (teria abandonado o (renunciou) Alírio de cargo) Oliveira Metelo. 1994-1998 Argemiro Turíbio (teria Esídio Albuquerque sido Ciriaco Júlio (foi derrubado do cargo) Faustino Salvador Lino de Oliveira Metelo 1988-1991 1985-1988 Metelo 1991-1994 Capitão José Timóteo Sabino de Albuquerque Antônio Albuquerque Lourenço Muchacho 2006 Cirilo Raimundo (abandonou o cargo) e derrubado do cargo) assumiu Zacarias da Assumiu Silva. Cirilo Alburquerque Dionisio Antonio 2002-2005 de de X 1998- 2002 Sabino Sabino Raimundo Pelas informações etnográficas disponíveis (ver Cardoso de Oliveira,1968) podemos dizer que os conflitos de sucessão no Caso de Cachoeirinha, são tão antigos quanto a situação de reserva. Enquanto a “Comissão de Linhas Telegráficas” demarcava a reserva de Cachoeirinha, um processo de luta pelo poder se verificava. A princípio esta luta de suc essão se dá entre os membros de uma mesma parentela, entre dois irmãos classificatórios. O Capitão Polidoro, foi assassinado por meio de feitiçaria, por Benedito Polidoro e este último seria assassinado poeteiormente numa vingança, por seus atos de feitiçaria. O quadro 35 permite fazer algumas afirmações: 1) a partir dos anos 1960 até 1986, existe uma linha de sucessão do poder político do cacique, por uma determinada linha de grupos familiares e vicinais, por um conjunto determinado de famílias relacionadas por parentesco. Se observarmos o período que vai 1986-1990, poderemos notar a existência de “dois caciques” em Cachoeirinha, um deles sendo Sabino Albuquerque. E depois ocorreria uma alternância de facções. Dos 11 caciques, seis pertenciam a um mesmo conjunto de famílias extensas e grupos vicinais (Lino, Dionísio Antonio, Mario Pedro, João Niceto, Alírio, Argemiro) e dois de uma de outras famílias e outras “vilas” (os irmãos Albuquerque e Lorenço). Nos anos 1980, a quebra da linha de sucessão se dá paralelamente a mudança na forma de escolha do cacique (do regime de indicação para as eleições), por conseqüência de uma série de 269 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional conflitos internos que marcou a vida em Cachoeirinha. A própria aldeia Sede ficou dividida em duas; uma era comandada por Sabino, outra por Dionísio Antônio. As facções rivais segundo nos informamos chegavam a ter alguns enfrentamentos físicos, com ameaças de parte a parte. Os moradores dos diferentes “territórios” não podiam cruzar de um lado para outro. Esta situação de tensão foi gerada por uma série de questões. A principal é a “monopolização” de recursos realizados pelos “caciques”, que com o poder de representar o grupo étnico terminaram sendo acusados de utilizar sua posição em favor próprio, apropriando-se dos “recursos da comunidade”. Soma-se a isto, o fato de os recursos disponibilizados pela FUNAI para investimento nas áreas indígenas estarem sendo reduzidos a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990. Iremos analisar agora o processo de formação destes “bairros” como parte de uma luta política pela sucessão dos caciques. Estes conflitos de sucessão, expressão da luta pelo poder na aldeia, alcançaram um clímax importantíssimo nos anos 1980, quando a ascensão de novas lideranças e facções indígenas explicitaria as contradições do regime tutelar e as estratégias de resistência indígena. 5.5 – A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais. O drama socia l de sucessão que levou a cisão de Cachoeirinha, e que de certa maneira ainda condiciona a vida na aldeia, teve início mais exatamente no final dos anos 1970. O clímax seria a “cisão” da aldeia Cachoeirinha em dois “bairros”, Cruzeiro e Mangao, cada um com seu respectivo “Cacique”, que era líder de uma certa facção local. Por outro lado, este conflito político entre facções expressa também a luta não entre indivíduos, mas entre grupos vicinais: um que remonta diretamente ao antigo capitão Benedito Polidório e outra ao antigo capitão Vitorino Pereira da Silva. A divisão faccional e político-territorial traz em seu interior uma luta entre famílias descendentes de antigos “naati”, e que expressa também as formas de resistência ao regime tutelar e seus colaboradores/executores dentro da aldeia, as facções políticas indígenas. Na década de 1970 três nomes passaram pelo cargo de Cacique (ver quadro 40): Lino de Oliveira Metelo, Mário Pedro e João Niceto Júlio. De acordo com relatórios da FUNAI, João Niceto Júlio já era cacique em 1979. Pelas informações dadas por Dionísio Antonio, que na época era o seu vice-cacique, antes deles assumirem o Cacique era Mário Pedro, que teria ficado três anos no cargo. Desta maneira, pelas informações disponíveis, parece que Lino de Oliveira ficou como Cacique entre 1964 e 1976, aproximadamente. É neste período que alterações na política indigenista, com a implementação dos projetos agrícolas orientados por uma ótica produtivista teriam forte repercussão no contexto local de Cachoeirinha. Segundo o relatório do Chefe de Posto de Cachoeirinha, a situação naqueles anos era a seguinte: 270 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional “O presente instrumento tem a finalidade de tentar mostrar a VSA, a situação do PI, tanto com dados positivos como fatos e até mesmo boatos os quais fazem parte do exposto abaixo discriminado: em outubro do ano de 1979, esta chefia chegava no PI Cachoeirinha,já como servidor no mesmo e deparando com um projeto agrícola; por sinal primeiro a ser desenvolvido nesse PI; de primeira mão observei todas as particularidades da área, notei pouco ou quase nada de investimento agrícola. Era dotado de uma Casa-Sede, mais duas casas circunvizinhas próxima à da Sede, ambas acervo da FUNAI, onde uma morava a professora da FUNAI a outra em estado precário, funcionava a enfermaria da FUNAI”. (Relatório FUNAI, 1983, p.1) Cachoeirinha teria como estrutura administrativa e de serviços indigenistas, 3 auxiliares de ensino e 3 atendentes de enfermagem, com uma população residente de 1209 pessoas. O Chefe de Posto designado para Cachoeirinha e autor do relatório era Manoel Nunes de Freitas, que narra assim a sua chegada na aldeia: “Encontrei na época o índio João Niceto Júlio, atual capitão naquela época, junto seu vice-cap. Dionísio Antonio; conheci o referido Cacique, dias antes de estar designado oficialmente a esse PI da 9º DR, a qual estamos informando-a, nesta mesma, junto ao referido representante do PI, acompanhei a reformulação do Projeto Agrícola acima mencionado; reformulação esta que queria trocar 10 Juntas de Bois contidas no referido por Trator MF, o que foi difícil, mas aconteceu”. (Relatório FUNAI, 1983110 , p. 1) A introdução do “Projeto Agrícola” em 1979, seria bem recebida pelos índios, que formulariam uma pauta de reivindicações. Essa pauta apontava para a introdução de novas tecnologias produtivas (o trator e a mecanização, substituindo os “carros de boi”), visando a expansão da produção. Pelo relato do Chefe Manoel, foi a própria liderança da comunidade indígena Cachoeirinha que exigiu da FUNAI a introdução das novas tecnologias, encontrando resistência dos representantes desta: “O delegado naquela época, era Joel Oliveira (índio Terena) tiveram um longo debate para convencê-lo, mas saindo, como queria o trator; só que ouve uma promessa por parte do cacique de que, poderia isentar os Bois – mas só isto não daria para cobrir o preço da máquina, argumentou senhor Delegado Joel – o Cacique pediu que retirasse também uma mimi-máquina de beneficiar Arroz – argumentou senhor delegado que não daria –novamente pediu que retirasse tudo e enfatizou, dizendo que queria condições de trabalho. O senhor delegado, ai quis pegar no pé novamente do líder, argumentando que ainda teria gastos com manutenção e outros – o líder novamente assumiu por sua conta, que estava falando em nome de seu povo, os quais estava informado de sua intenção. E foi assim que no final do mesmo ano enviaram um trator MF 290 equipado de uma grade (...) niveladora e um Arado 4 discos, já como parte integrante do projeto agrícola 83/digo 79/80 junto mais CR$ 150.000,00 de Cantina Reembolsável, um ralador de mandioca, um motor elétrico, 60 há de desmatamento através de AGROSUL-MS, em resumo o valor do referido projeto foi no montante de CR$1.000.000, 00”. (Relatório FUNAI, 1983, p.1-2). Por um acordo com a FUNAI, a prefeitura manteria “200 litros de óleo diesel” para o maquinário obtido, sendo a complementação feita pela comunidade. O dinheiro era obtido com a changa, e segundo o Chefe de Posto, os índios conseguiram mesmo realizar a compra de uma “trilhadeira” e um Trator MF50X com estes recursos. Um técnico agrícola foi enviado para atender 110 Relatório da Situação do P.I.Cachoeirinha nos anos 1979-1983 (16/11/1983, por Manoel Nunes de Freitas). 271 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional os grupos dedicados à produção, familiar e coletiva (são citados os grupos de Gilberto Augusto com 25 pessoas e Dionísio Antonio, 19 pessoas, mais dois grupos com menos de 9 pessoas - Relatório FUNAI, op.cit). Porém, o Chefe de Posto acrescenta que o “trabalho estaria começando a fracassar”, e reflete sobre suas possíveis causas: “Por outro lado não sabemos se existe a influência de Políticos, Religiosos, Centro de Trabalho Indígena (CTI), onde como exemplo citamos em nossa área (entre Sabino Albuquerque – anterior ou através do índio Calixto Francelino) que até agora está em vigor, em fim outros e até mesmo acreditamos de funcionários, interferindo (Professora Benedita Fonseca Prado, Enfermeira do Estado, D. Dolores Pereira Dorval) mesmo os próprio s índios, evidente, o mais aculturado, como por exemplo Adão de Oliveira, e outros, isto também poderá estar trazendo semente infrutífera para nosso trabalho (AMBOS NO DISQUE=DISQUE FOFOCA) quando da reunião realizada neste PI dia 04/05/83 com presença do delegado Amauri Mota Azevedo contidos na reunião conhecida, Reunião do Posto Indígena da Região Norte, onde esta chefia já acreditava que a situação que ora propalamos, particular do PI, já era sentida por VSA.” (Relatório FUNAI, p.3) Num relatório de 1982, já haviam sido relatados problemas do Chefe de Posto com o CTI: “6 (Agricultura- o projeto agrícola desenvolvido no Posto Indígena Cachoeirinha, embora com boas perspectivas de desenvolvimento (área de 280 hectares cultivada/arroz e milho ano/81/82) com mais adesão de interessados particulares e mesmo em forma coletiva mas, mesmo assim esta chefia teme dissabores, tendo em vista a intromissão de outras entidades ou melhor entidade (Gilberto Azanha) e suas digo seus comparsas) adentrando na área deste PI ocultamente e fornecendo dinheiro gratuitamente, para alguns elementos sem que haja qualquer critério de trabalho junto à FUNAI e comunidade com um todo, como é de conhecimento da DR, através de relatórios. 6-1 ( - está sendo concluído um desmatamento com o trator de esteira de propriedade do senhor José Carlos, residente nas proximidades digo de propriedade, em tempo, na Cidade de Miranda-MS/ o qual nos informou que o desmatamento feito por eles seria para beneficiar o Sr. Sabino de Albuquerque, Rafael de Albuquerque e Alberto de Albuquerque, e outros ainda não identificados. A origem dos recursos para este trabalho, não sabemos ainda de onde/parte achamos que os recursos são oriundos da entidade da qual participa o conhecido Gilberto Azanha, cremos nós que este tipo de trabalho poderá prejudicar futuramente o andamento do projeto do Órgão Tutelar na área111 ” (Relatório FUNAI, 1982). No período 1982/83, começam a aparecer no contexto regional, novos atores políticos, que rivalizavam com a FUNAI. Além das Missões Religiosas e dos “Políticos”, começaria a atuação do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), especialmente no que tange aos Projetos Agr ícolas. Fica visível a existência de dois “projetos rivais”, o Projeto Agrícola da FUNAI e o Projeto do CTI, sendo que este último teria alguns aliados dentro de Cachoeirinha, como Sabino Albuquerque. Em conseqüência desta rivalidade a FUNAI enviaria um engenheiro agrônomo (José Resina) para trabalhar no seu projeto agrícola. 111 Relatório de Ocorrência (por Manoel Nunes de Freitas) – 08/01/1982. 272 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional A atuação deste engenheiro detecta os conflitos latentes dentro da Cachoeirinha, entre estes “grupos” envolvidos com o Projeto Agrícola da FUNAI e aqueles voltados para a aliança com o CTI. A visita do Engenheiro agrônomo é assim relatada: “No mês seguinte tivemos a visita de nosso Engenheiro Agrônomo José Resina (..) ele me revelou que estava percebendo haver um pouco de falta de entrosamento, mútuo de funcionários e indígenas, pois até mesmo uma palestra com o índio Sabino Albuquerque, ele realizou, no sentido de unir os trabalhos agrícolas, nos moldes da FUNAI mas que não esquecesse o trabalho oposto, também está beneficiando índios, isto na minha ausência, mas posterior levou ao meu conhecimento como também ao Cacique e ao Técnico; o que ocasionou novamente com meu propósito pois dias anteriores, esta chefia tentava esta junção, que na verdade não é fácil, tendo em vista que este tipo de tentativa sempre por esta chefia foi tentado, mas ora sempre oportuna e sempre rejeitadas por parte do Sabino, sempre foi contra a FUNAI e a favor do CTI, disendo que neste teria melhores indigenistas, antropólogos, enfim uma equipe melhor (...) quero com isto tentar mostrar estar tentando em todos os ângulos estarmos nos preparando a paz”. (Relatório FUNAI, p.4) Em 1983, já existia um conflito entre os executores da política indigenista, como o Chefe de Posto, os Engenheiros e Funcionários da FUNAI e o nascente trabalho do CTI. O projeto agrícola, que havia sido introduzido na comunidade e a implantação de novas máquinas e processos produtivos criou uma demanda específica por matéria prima, que irá condicionar a própria vida política dentro de Cachoeirinha. O conflito FUNAI X CTI daria-se em diversas dimensões e em todas as aldeias do município de Miranda. A documentação da FUNAI da época indica que o CTI procurava fornecer uma assessoria alternativa para os índios em diversos domínios, não somente o da produção agrícola. Um relatório do Chefe de Posto de Passarinho narra à visita de Gilberto Azanha e Advogados do CTI, que procuravam dar assistência jurídica a um índio acusado de homicídio: “Disseram que só queriam ajudar e que não estavam de maneira nenhuma interessados em fazer política contra a FUNAI e que em resposta a minha pergunta se possuíam autorização da FUNAI para atuar na área, disseram que já estavam providenciando a documentação para tal. (...) Os referidos senhores se retiraram depois de uma hora de palestra, sendo que cumpre-nos esclarecer que não pudemos escorraçar as pessoas que vêm ao posto, por isto fomos cordiais, sem sermos servis ou ter traído a confiança que em nós deposita o órgão”. (Relatório FUNAI, 1982)112 Vemos claramente que existia uma profunda desconfiança da Administração Regional da FUNAI, para com a ação do CTI dentro das reservas indígenas, de maneira que o mero diálogo do Chefe de Posto com os membros do CTI, tinha de ser justificado por este, para que não parecesse uma “traição” deste funcionário aos seus superiores no órgão tutelar. Logo, o CTI apresentava-se como uma organização que oferecia uma alternativa à política de assistência oficial do órgão tutelar (oferecendo assistência jurídica, educacional e agropecuária), criando um canal diferente de 112 Relatório de ocorrência de Visita de Pessoas Extra-FUNAI (08/12/1982, por Luiz Pereira). 273 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional diálogo, de fornecimento de recursos e alianças políticas. A implantação do indigenismo não estatal, colocaria uma nova gama de questões e conflitos no primeiro plano da vida de Cachoeirinha. O relatório do engenheiro agrônomo José Resina, descreve assim o projeto agrícola de Cachoeirinha, depois de dar um “histórico” da aldeia (em que indica as características básicas da terra indígena e a ocupação imemorial Terena), descreve da seguinte maneira o projeto agrícola: “Mas foi no ano de 1979 que esta Comunidade Indígena – começou a receber efetivamente o que mais desejava, qual seja, a implantação de Projeto Agrícola, para o seu desenvolvimento comunitário. O difícil de tudo isso foi à execução do trabalho de base realizado. A escolha de um lote padrão de índios, estes com ambições moderadas, porém entusiastas e dedicados, foi a parte principal, refletido hoje em dia de modos a ser o PI Cachoeirinha, o mais unido, que possui um desenvolvimento em ritmo acelerado, mais equilibrado e finalmente que possui a maior perspectiva de desenvolvimento, em termos de 9º Delegacia Regional”113 (Relatório FUNAI, 1982). De acordo com os dados do relatório, montamos o seguinte quadro, sobre a produtividade agrícola: Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” – em HA cultivados. 1979 53 hectares 1980/1981 200 hectares arroz 47 hectares de milho 60 hectares feijão 1982 278 hectares 1982/83 350/400 hectares (meta) O relatório de José Resina ainda diz o seguinte: “Com uma produção significativa a ser colhida, a comunidade entrou do PI Cachoeirinha realizou a aquisição por conta própria de uma trilhadeira de arroz (nova), pois observaram que tinham ingressado em um ciclo produtivo de grande porte. Vale ressaltar também, que desde a chegada do trator, o tratorista é pago pela comunidade. Desse ponto em diante, passaram a receber visitas constantes de comerciantes, cooperativas e até mesmo dos agentes do Banco do Brasil, com a finalidade de realizar a compra da produção. Os indígenas passaram a ser olhados com outros olhos na cidade de Miranda, pois a antiga concepção era de que os índios em geral não passavam de vagabundos e Cachaceiros”. (Relatório FUNAI, 1982) Ou seja, a introdução do projeto agrícola possibilitou simultaneamente um incremento da produção agrícola e a formação de um capital que era reinvestido na produção, de maneira que as relações comerciais e mesmo a imagem do “índio” teria sido mudada dentro do município de Miranda, em razão do “desenvolvimento” alcançado com tais projetos. Com os recursos realizaram a aquisição de um trator e “aguardaram a chegada de um trator da FUNAI, para elevar a área cultivada para 400 hectares”. A lógica “desenvolvimentista” da política indigenista encontrava assim entre os Terena um espaço exemplar de realização. A própria comunidade local absorvia como seus objetivos este mesmo desenvolvimento (basta ver que é a própria comunidade que exige a introdução de máquina e tecnologias; é a comunidade que paga os tratoristas, que consegue o combustível e etc). 113 Projeto Agrícola do Posto Indígena Cachoeirinha (José Resina Fernandes Jr., 1982). 274 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional A FUNAI implementava estes projetos com o apoio político interno dentro da Cachoeirinha, especialmente na figura do então Cacique, como indica José Resina: “Todo este trabalho desempenhado, não seria possível sem a ajuda constante e permanente do Capitão do P.I. Sr. João Aniceto. Pessoa digna e honesta, merecedora de toda nossa confiança, pois durante todo este período (3 anos), a cantina do P.I. está sob seus auspícios e até hoje a mesma dá suporte para os novos iniciantes do Projeto. É comum esta Delegacia, especificamente o Setor Agrícola receber informações dos funcionários do P.I., que o Sr. João Aniceto tenha passado a noite inteira em cima do trator, ajudando o preparo de solo para o plantio, para não atrasar os trabalhos. Certa vez, o referido capitão chegou até mim, e disse que não estava suportando a carga de serviços que recaia sobre ele, e que suas intenções era de abandonar o cargo de capitão. Diplomaticamente solicitei a ele que não deixasse o cargo, e que seu trabalho era de muita importância para sua comunidade. E, realmente ocorreria uma interrupção natural, se sua saída fosse efetuada. Por fim este permaneceu, e os resultados estão para ser vistos, apesar das interferências: externas que tentam criar uma ala dissidente entre a Comunidade, contra o Sr João Aniceto. Porém seu trabalho, sua dignidade, sua moral e sua força de espírito, supera todas estas dificuldades encontradas, e os trabalhos por nós desenvolvidos geralmente apresentam alta rentabilidade em conotação social significativa”. (Relatório FUNAI, 1982, p. 2) Por este relato, vemos que já se apresenta uma análise por parte dos técnicos e funcionários da FUNAI e o delineamento de um quadro bem preciso. No contexto da implementação dos projetos agrícolas - e do surgimento de novos atores históricos como o CTI, que apresentam como canais alternativos de recursos e aliança política e rivalizavam com a estrutura políticoadministrativa da FUNAI - se estabelecerá uma conexão entre os grupos ou facções indígenas locais (organizados em torno de certas lideranças emergentes) e o CTI. De um lado, temos a figura de João Niceto Júlio, como aliado da FUNAI e executor da sua política através do “projeto agrícola”. De outro, temos a emergência da figura de Sabino Albuquerque, como líder de um grupo que se articulava com o CTI e era combatido pela FUNAI tanto no contexto da aldeia Cachoeirinha quanto das demais aldeias Terena do Mato Grosso do Sul. É neste contexto que ressurgem os conflitos de sucessão, envolvendo o posto do Cacique. O projeto agrícola da FUNAI estava apresentando certos resultados dentro do contexto da aldeia; a expansão da produção, a circulação de dinheiro e novas tecnologias e ferramentas, que ficavam de acordo com a estrutura da FUNAI, sob o controle centralizado do cacique da aldeia. Este monopólio dos recursos motivava a disputa pelo cargo de cacique, principalmente num contexto de aumento da oferta de recursos materiais, como estava acontecendo, durante o período de vigência do “projeto agrícola”. O que começa com uma disputa de grupos ou facções locais, que a principio faziam criticas ao projeto da FUNAI e buscavam novas alianças políticas (com o CTI, por exemplo), irá se manifestar também na luta política pelo controle do cargo de Cacique, torna ndo-se-um conflito de sucessão. Segundo as informações de diversas pessoas dentro da aldeia Cachoeirinha, quem “inventou” a idéia das eleições foi o “Sabino”. Isto é parcialmente verdade. Na realidade, o SPI 275 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional tinha implementado tal sistema nos anos 1960, porém ele não perdurou e voltou a realizar um processo de indicação. As eleições seriam retomadas como solução por Sabino Albuquerque e por pressão de sua facção. Numa conversa que tivemos com ele em sua casa ele disse: “Se um grupo indicava, era válido, porque era pouco índio, depois do Lino batemo o pé, batemos o pé, vamos eleger, vamos eleger, então daí pra cá foi eleição já...”. (Sabino Albuquerque/ 2004). A implantação do atual regime de eleições em Cachoeirinha, a mudança na forma de atuação da FUNAI, é conseqüência das lutas faccionais. Um documento manuscrito (uma ata de reunião da Comunidade da Cachoeirinha) anexo a um memorando encaminhando a 9º DR da FUNAI em 14/05/1982, relata os seguintes acontecimentos: “Dia 08/05/1982. As 16 horas. Recebemos uma antropóloga, um estudante e um motorista da FUNAI dentro da Reserva do PI da Cachoeirinha. Finalidade:Forçando de fazer uma reunião com a comunidade afim de fazer pesquisa não realizada de acordo com liderança. A reunião foi liberada para o dia 10/05. Início da reunião foi as 9 horas. Assunto: consultar com a liderança: não aceitaram. Pediram reunião da comunidade: foi aceito reunião. Sabino de Albuquerque forçando comunidade para trocar de capitão. Ai ouve a eleição: início: as 16 horas, encerro: as 17 horas. Candidato: João Niceto Júlio 120 votos. Sabino de Albuquerque, 86 votos. Tendo voto de 4 mulheres. De acordo com os voto da Comunidade não aceita outro projeto sem ser da FUNAI de acordo com a decizão do grupo. Conselho Tribal pede máxima providencia para a transferência do Sabino Albuquerque da área indígena. Motivo: dando problema para a comunidade, para a FUNAI.” Vemos a confirmação de que as eleições de 1982 se realizaram sobre pressão direta de Sabino de Albuquerque, que tentava garantir o acesso de um antropólogo a área indígena, sendo o pedido negado pela liderança – Cacique e Conselho Tribal. O exercício do poder de controle sobre o acesso ao território indígena, e que limitava assim as alianças e a assistência que outras facções políticas não dominantes podiam obter através delas. Sabino concorreu com João Niceto Júlio que venceu com uma diferença de 34 votos. Mas a realização das “eleições” para Cacique em 1982 não solucionou o problema da “luta pelo poder”, que então se reabria. A retaliação contra Sabino Albuquerque (a solicitação da transferência dele para outra aldeia, por estar “dando problema para a comunidade, para a FUNAI”, é ilustrativo de como as facções políticas indígenas colaboradoras do Estado dentro do regime tutelar, se valiam dos poderes e técnicas, utilizadas pelo SPI e FUNAI, para combater e reprimir outros indígenas dentro das suas lutas internas). A técnica da “remoção” era muito comum, e foi acionada pela facção então no poder em Cachoeirinha. Na realidade, o cacique eleito João Niceto Júlio não terminaria o seu mandato. O “Relatório de Ocorrência” do Chefe do Posto de Cachoeirinha, Manoel Nunes de Freitas, de 04/11/1983, menciona como Cacique Dionísio Antônio. Isto confirma as informações de que João Niceto Júlio 276 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional teria renunciado ao cargo (devemos lembrar que um dos relatórios acima citados menciona a vontade de João Niceto abandonar o cargo de cacique). O seu vice-cacique, Dionísio, assumiu. O “regime de indicação” pelo Chefe de Posto com a anuência do Conselho Tribal, começou a ser contestado por esta nova liderança indígena e pela facção política que ele conseguiu organizar em torno de si. Assim, as “Eleições para Cacique” tiveram dois momentos dentro de Cachoeirinha; um primeiro, no final dos anos 1960, por iniciativa direta do SPI, que visava dar maior legitimidade aos Caciques, e um segundo momento, quando são as facções indígenas que exigem a implantação deste modelo estatal, por questões de disputa política interna, permitiria uma maior rotatividade nas posições de poder local e ainda a quebra do monopólio que certas “facções” exerciam (por sua política de colaboração com os poderes estatais). Podemos dizer que na “política indígena” Terena, as lutas faccionais se estruturam em função do controle das instituições da aldeia: a função de Cacique e o Caixa Comunitário, o Posto da FUNAI, a Escola. As tentativas de derrubar caciques e chefes de posto passam sempre por estas questões de poder local na aldeia, sem as quais não se compreende a organização social e as relações políticas do grupo. Por outro lado, sem fixarmos atenção na política local municipal, e no contexto econômico e político regional e nacional, não é possível compreender plenamente esta situação. Já que as próprias bases do poder local do grupo étnico se assentam nas relações com o Estado-Nacional e o Mercado Capitalista. Depois da implantação do projeto agrícola, a dinâmica política da Cachoeirinha se viu relativamente alterada: inaugurou-se a era da política do “óleo e da semente”, ou seja, a introdução do trator e da mecanização da lavoura criou uma demanda permanente por combustível e por sementes que viabilizassem o ciclo de expansão e re-investimento gerado. A política dos conflitos de sucessão e das lutas faccionais se organizariam em torno desta política; as lideranças locais iriam ascender e cair em função da sua capacidade de buscar e gerenciar eficazmente tais recursos, que tem um significado tanto econômico quanto simbólico-cultural para os índios, já que possibilitam uma maior produtividade da lavoura, a conseqüente comercialização do excedente e diminuição da demanda de mão de obra, liberando assim os filhos e filhas para as atividades mais valorizadas e vistas como estratégicas para os índios como as atividades educacionais e políticas – e a preparação de quadros “gestores” capazes de “ocupar espaços”. A emergência de Sabino Albuquerque durante os anos 1980 se deu no quadro da getsação desta política do óleo e da semente. O monopólio exercido pelas facções associadas e colaboradoras da FUNAI, obrigavam em certa medida as demais facções existentes a buscarem canais alternativos de realização destas mesmas demandas, assim como a desencadearem uma “luta pelo poder”, pelo controle do cargo de Cacique. Entretanto uma outra questão possibilitou a ascensão de Sabino Albuquerque enquanto liderança: a revisão e ampliação dos limites da reserva de Cachoeirinha. 277 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional As informações passadas por Élcio Albuquerque, nascido em 08/02/1961, na própria Sede, filho Hélio Albuquerque (um irmão de Sabino Albuquerque), e que participava das lutas internas da aldeia acompanhando seu pai e tios, indicam isso. Ele nos disse que quando era novo fugiu de casa para trabalhar em fazendas; trabalhou também no corte de cana, sendo cabeçante em algumas turmas. Entre 1993 e 2001 foi secretário da AITECA. Disse que o Sabino se lançou como “liderança” batendo na questão da demarcação da terra e que ele tinha um grupo que o apoiava nas lutas internas. Mesmo certos rivais de Sabino concordam com a importância dele para a luta pela terra. Sabino narra assim o processo de reivindicação para demarcação: Como começou a movimentação da comunidade para solicitar o GT da FUNAI? Faz ano que vem, desde 1980, nós vem lutando, nós vem mexendo aí... nós organizando, todos os caciques da Argola, Morrinho, mas de apoio, né... Nós tá apertado aqui, nós fizemos levantamento (...) e a população aumentando (...) Começamos reivindicar para a FUNAI fazer a demarcação na área e nós fomos lutando, FUNAI contra, até o dia que nós conseguimos, Governador, esse Barbosa, deu uma mão também, fomos localizando documento, vestígios, da área, os velhos indicava os pontos para nós antigamente, e fomos percorrendo a região escondido porque os fazendeiro não deixava nós olhar. E fomos indo e cada trabalho as vezes demorava um ano...Pra gente olhar os pontos que os velhos falava para nós antigamente.... Até que conseguimos agora Fernando Henrique fomos a Brasília e aí obrigamos a FUNAI a fazer um GT para fazer a pesquisa da área. Onde veio Gilberto Azanha, fazer a pesquisa nos pontos reivindicados dos índios, aí tá aí, alcançamos os documentos no cartório, Terrasul, também o Zeca deu uma força grande para nós... Aí conseguimos localizar o documento Terrasul, no cartório de Miranda... Tudo isso aí é os ponto, que os velhos falava para nós.... Aí começamos assustar, comover que realmente nossas crianças ia precisar da área. Tá faltando só isso aí, Ministro analisar, Zeca reconheceu que o Estado errou.... Quais foram às pessoas que começaram a mobilização? “Foi a comunidade toda, mas quem mais deu força para nós foi a Argola, capitão Rufino, que assumiu mesmo, juntamente com nós, grupo nosso aqui da Sede, primeira batalha foi isso aí, Dionísio era cacique na época, mais João Niceto, foi contra, foi a favor da FUNAI, mas só ele de cacique, e a comunidade falando. Então Dionísio e João Niceto foi contra na época, mas hoje graças a Deus reconheceu. Tá reconhecendo. Uma vez aí veio, mandado pela FUNAI, o funcionário da FUNAI, que é índio, que é irmão do Marcos Terena, que tem o apelido de Maninho, o nome eu não lembrando como é que ele chama.... Veio fazer demarcação queria fazer essa documentação aqui onde tá nós com 2.600ha, e aí comunidade nós não deixamos, o cacique Rufino. E esse João Niceto, e o Dionísio o Guilherme ainda brigou com o Rufino que queria fazer demarcação aqui... Ai nós falamos para eles, isso aí tá seguro, ninguém toma mais de nós, isso aí não é demarcação, não é por aí que nossos pais falava, porque meu pai era campeiro, Alexandre Albuquerque. Ele sabia todos os ponto,ele falava para nós, e falava eu vou marcar os pontos para vocês, e o velhos faleceu novo, setenta e poucos anos... Porque a FUNAI mandou ele demarcar... Até o próprio Rondon não deixou nos limites certos. O pessoal do Carrapatinho recebeu terra do Rondon... Na época o Valdir Neves, veio aí, pressionou muito o delegado, falou que nós estava invadindo... Vinha aqui em casa... As vezes o índio tava pescando na Bahia, e falava que nós tava ocupando... Achava que eu era cabeça.... (Sabino Albuquerque/ 2004) 278 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional O início do processo de demarcação de terras em Cachoeirinha, também se tornou motivo de conflito de posicionamentos entre as diferentes facções políticas. A facção de João Niceto e Dionísio se colocaram na época a favor da demarcação das terras com os limites de 1904 (2600 hectares) enquanto que a facção de Sabino queria iniciar um processo de revisão dos limites, o que aconteceria cerca de 20 anos depois com o envio do GT da FUNAI coordenado pelo antropólogo Gilberto Azanha. A demarcação só não feita no inicio dos anos 1980 pela oposição encontrada. É interessante notar que a política fundiária da FUNAI encontrava executores e colaboradores em facções locais e nos próprios índios Terena. Segundo moradores da Cahcoeirinha, foi um irmão de Marcos Terena (funcionário da FUNAI) que foi enviado para tentar convencer os índios a aceitarem a demarcação tal como proposta pela FUNAI, as facções locais que atuavam em aliança/colaboração política com a FUNAI, apoiaram tal proposta, entrando em choque mais uma vez com as facções e lideranças políticas emergentes. Neste sentido, o regime tutelar e a política fundiária a que ele sempre atendeu, dependia da divisão política das comunidades indígenas, do apoio e colaboração política das facções locais existentes. A reafirmação dos limites da reserva de Cachoeirinha pela FUNAI, era a reafirmação histórica da política de redução das terras indígenas, visando liberá- las para o Mercado Regional. Tal política só se implantou (assim como no século XIX, a redução das terras Terena), em razão da política de colaboração que diversas e importantes lideranças indígenas estabeleceram com as agências de Estado. O caso relato acima se insere dentro destes precedentes históricos. No período que vai de 1983-1985, mas uma mudança ocorreria na liderança de Cachoeirinha. Dionísio Antonio daria lugar a Alírio de Oliveira Metelo, que assumiria o cargo de Cacique. Segundo algumas informações dadas pelo próprio Alírio, ele teria assumido por que Dionísio sofreu um acidente, segundo outras versões ele teria renunciado em razão das lutas e conflitos políticos internos. Um ofício encaminhado a FUNAI em 1985, contém o nome de Alírio como cacique, e este teria ficado no cargo até 1986. Uma nova eleição teria sido realizada, e Sabino Albuquerque foi escolhido como Cacique, permanecendo três anos na função. A partir de então as relações políticas dentro de Cachoeirinha vão caminhar para um acirramento cada vez maior. A antiga facção do cruzeiro, liderada agora por Dionísio Antonio, passa a fazer uma política de oposição sistemática a Sabino. As acusações contra ele e sua liderança eram do mesmo tipo das que este lançava contra Dionísio: de monopolizar os bens da comunidade somente em proveito próprio, de usar o trator, caminhonete e poder somente para favorecer o seu próprio “grupo”. Algumas das pessoas que na época apoiavam o Sabino, hoje o acusam de “querer comandar a aldeia como se comandasse uma fazenda particular”, de centralizar as decisões políticas e recursos. 279 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Mas na época, a força de Sabino Albuquerque junto à comunidade indígena era grande. Tanto que nas eleições de 1988, ele concorreu novamente e se elegeu. Entretanto, neste ano a facção “derrotada” não aceitou o resultado das “eleições” e se acirrou assim o conflito de sucessão e reacendeu a luta pelo poder dentro da aldeia. Numa conversa com Sabino, ele relembra dos acontecimentos deste momento, do final dos anos 1980: “Eu não sei se foi segundo mandato meu, parece (...) Que a FUNAI começou me enxergar contra eles aqui, eu fui, eu fazia porque o pessoal mandava, eu batia naquela fase, onde era autorizado do Conselho, e não onde peitava. Na época o Chefe de Posto da FUNAI, o delegado que eles falava antigamente, e tinha o Chefe de Posto, o Juracy, foi mandado pelo Delegado, eu não sei se era cabo, se era tenente, se era major, ele era policial capitão, não sei o que ele era, onde ele foi mandado aqui. A comunidade queria, que queria, que queria brigar... E aí o Dionísio quis assumir tinha caixa comunitário que influía muito o cacique antigamente, o cacique brigava muito pelo caixa comunitário que a Usina pagava. Aí eu falei para a turma, deixa que ele assume, Dionísio, se ele quer caixa comunitário, deixa pra ele, eu não quero, nós queremos trabalho. Então ele ficou lá, fazedor de contrato, mas ele não resolvia nada na comunidade. Ninguém ouvia ele, ele só pegava caixa comunitário, que ele era interessado na caixa comunitário na época, tinha renda, eu não me interessei. Ai eu deixei a caixa comunitário ele recebendo, ai ficou tudo pouco né, era interessado naquilo mesmo e eu fiquei dominando a comunidade. O que eu lembro que ficou dividido foi isso ai, AITECA, a divisa, rua, tudo aqui eu que resolvia. Ele mesmo era pegar dinheiro do caixa comunitário, ele ficou gostando, eu num ligava, num fazia contrato pra ir para as Usinas, não me importei, falei para turma, deixa eles, brigar com Chefe de Posto, que dividiu nós, o Juracy, nós não vamos brigar por causa disso aí, deixa que eles quere isso ai, deixa ficar pra eles. Aí nós ficamos tocando até o final do mandato, nós fizemos eleição eu não lembro se eu concorri de novo. Essa divisão ficou por causa disso aí, por causa do caixa comunitário. Tem ata, mas essa ata o Juracy queimou. Invadiu e queimou nossa documentação todinha nessa época. (...) Eles se interessava no caixa comunitário. Eles só fazia grupinho, não era grupo grande”. (Sabino Albuquerque/ 2004) A partir do ano de 1988 a comunidade de Cachoeirinha se viu cindida em duas: Cruzeiro, que abrangia todos os grupos domésticos fixados do Posto da FUNAI para o Leste; Mangao, abrangendo os grupos domésticos do Posto para Oeste. A cisão entre “Cruzeiro e Mangao” aparece assim como o resultado das lutas faccionais dos anos 1980, da luta de resistência movida por certas facções locais contra o regime tutelar, mas é também o produto da experiência histórica local, das formas de organização social e política dos Terena. O contexto da vida dentro da aldeia foi profundamente alterado por esses conflitos. A violência e as hostilidades entre os grupos se reproduziam no cotidiano, de maneira que se tentava mesmo impedir a circulação de moradores do Cruzeiro pelo Mangao e vice-versa, pelos relatos de alguns moradores. Dionísio Antonio era o Cacique do Cruzeiro, e Sabino Albuquerque do Mangao. Élcio Albuquerque nos falou em certa ocasião: "existia a briga de duas facções de caciques, uma era amparada pela FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se pegavam na reunião, se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e 280 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional as janelas pregadas." Élcio mora com sua esposa, que é filha de uma das lideranças do Dionísio Antonio, na área do Cruzeiro, mas apoiava a facção do Sabino. O caso de Zacarias da Silva, um pastor da Assembléia de Deus, é o contrário. Ele era membro da liderança de Dionísio Antonio, e morava no lado do Mangao, e narra assim os acontecimentos: “Que eu entendo que morava na Cruzeiro era Quiniquinau, então dois raça não combinava com outro. Já mudaram tudo daí. Mas eles moravam desse lado assim. São raça meio resolvido, não combina com outro.... Em 1958 mudaram... A divisão do Sabino X Dionísio.Você chegou acompanhar? “O motivo é de administração, o divisão quando começou, falava que não sabe dirigir, não sabe conduzir o povo, um quer ser mais do que o outro, onde ele queria caçar o mandato do Dionísio, isso foi mais ou menos 1980. (...) O Dionísio queria caçar, caçou sim, a comunidade se reuniu, caçar o mandato do Sabino quando ele foi eleito pelo povo, só que ele não conseguiu e o Sabino continuou, e o Dionísio continuou como Cacique. Aí que o índio perdeu a direção, quando havia algum problema, quando vai lá no Sabino, manda lá no Dionísio, ai o Dionísio manda lá no Sabino, ai é assim. Foi quatro anos de luta, ai teve outra eleição, ai outro partido ganhou, aí melhorou”. “Eu comecei com Dionísio, ai quando foi no tempo, eu fui escolhido para ser presidente do Conselho. “Eu sei que o Sabino e o Dionísio não combina até agora, continua aquela separação. Essa pergunta foi bom, porque a maioria do juventude já começa a levantar contra o outro lado da ala, deu problema juventude”. (Zacarias da Silva, Março/2006). As palavras de Zacarias da Silva são importantes porque quando perguntamos da divisão “cruzeiro/mangao” ele mencionou a antiga divisão entre os moradores do lado oeste do Posto que seriam “Terena” e os do lado Oeste que seriam Quiniquinau. Isto reforça que esta divisão era mais antiga, e precedia os conflitos faccionais dos anos 1980. As pessoas envolvidas mais diretamente nos conflitos indicam que esta cisão provocou uma profunda ruptura nas relações sociais dentro da aldeia. Conversando com outro morador da antiga Mangao, o ex-cacique Lourenço ele que não chegou a se envolver diretamente no conflito, disse, ao responder nossa pergunta: “Mas porque que aconteceu essa divisão, porque que o chefe de posto fez isso? “Política dele. Para dividir o povo mesmo, não tinha intenção de trabalhar como ele tinha que trabalhar. Eu acho que antigamente o chefe do Posto da FUNAI ele queria ser mais do que o cacique. Mas não é que acontece isso. Quem manda realmente é o cacique. Que começa a liderar a comunidade. Então o que os caciques decidia antigamente, era aquilo, o chefe do posto não poderia mudar aquilo, se foi decidido isso, foi decidido. Se for decidido isso, então foi decidido. Então naquele época o FUNAI era forte ainda, tinha recurso, tinha recurso de todo lado, naquele época o índio era recebido no Estado, Município, Governo Federal, FUNAI, o povo naquela época tinha recurso, os cacique naquele época tinha conseguido muita coisa, hoje mudou muito. Hoje a gente não consegue nada senão pressionar mesmo. Eu acho que o pessoal 281 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional queria tomar o cargo dos outro acho que por isso mesmo. Tinha muito recurso aquele época. Hoje não tem mais recurso não. A pessoa pensar assim eu vou entrar, vou tirar esse cacique e vamos entrar e vamos conseguir aquilo, é muita mentira, o pessoal é muito enganado se falar isso. Hoje eu vou lá no estado e vou trazer isso. Antigamente você ia lá e você trazia na mão, hoje você vai lá, três mês, quatro mês, cinco mês, aí é que você recebe. Hoje não. Hoje o político tem mais desconfiança, dos políticos das lideranças indígenas. Mas porque que isso acontece? Eu vejo que as maiorias das lideranças, de outros aldeia, sempre ouve conversa ali, o fulano tirou aquilo, o fulano desviou óleo diesel, o fulano desviou recurso. Eu acho que o que tem mais aqui é desvio de verba, desvio de tudo. Antigamente nem ligava isso. O povo ia na FUNAI se precisava de 10, 20 rolos de arame, ia lá e trazia, hoje não é uma burocracia desgraçada. Hoje você vai lá reivin dica, dois mês, três mês, ai que vem, as vezes vem com resultado as vezes não. O que eu vejo naquela época é por isso que o povo brigava muito. Os caciques antigamente, se saia daqui,o FUNAI pagava diária para ele, se ia para Brasília ele tinha diária, ele recebia diária, ele tinha recurso de alimentação e de passagem. Hoje não tem, o cacique não tem diária. Hoje se a pessoa pensar assim eu vou para Brasília vou passar no FUNAI porque FUNAI vai me pagar diária, se ele pensar assim, tá enganado. FUNAI hoje não dá mais isso, foi cortado. Então o povo via isso mais essa parte de recurso naquele época. Hoje não tem mais isso. Senão me engano, acho que mudou tudo isso, mais ou menos de 85. Ai veio esse clima de política, já veio essas confusão, aí foi mudando. Até que 2002, 2001, ainda tinha recurso do pessoal que ia para canavial, Cacique recebia e trabalhava com aquilo, hoje não tem, não tem mais desse pessoal de usineiro que vem para contratar pessoal. Tem mais é pouco, não era como antigamente. Se vinha de lá pra cá pegava cinco grupo ...Completava trinta dias mandava caixa comunitário. Hoje se não vencer o contrato não manda o caixa comunitário.Mas só que o taxa comunitário hoje é 500,600, um grupo naquele época era 1000 real, se saia 5 grupo de 40 homens, pô era cinco paus na mão, era dinheiro.É engano do pessoal que fala isso vou entrar, vou fazer aquilo, aquilo... Hoje o que eu vejo que a comunidade mudou muito é que o pessoal era brigueiro mas as vezes era unido no trabalho ... O pessoal chamava pro mutirão ia todo mundo ...e essas pessoas que fazia limpeza aqui na divisa ... A comunidade tinha gado, o cacique carneava e dava pedacinho para todos aqueles pessoas que estão no trabalho... hoje não tem mais, não tem cavalo nem gado para comunidade, hoje acabou tudo. Tem muita pessoa que fica lembrando. Poxa mas naquele tempo era isso, era aquilo, nós ia para limpar o divisa no mutirão, nos tinha pedacinho de carne... Hoje para você fazer esse compromisso com ele, pra você comprar duas vacas para carnear você vai gastar 2 mil e quinhentos. Cachoeirinha cresceu muito. Mas o que brigava antigamente era pessoa de idade, homem forte, hoje é juventude que briga, hoje 12, 13, 14... uma baderna aí hoje. O que era a situação mais ruim antigamente hoje se tornou a juventude. Porque que eu vejo isso agora? Hoje tem pai aposentado, tem mãe que recebe auxilio maternidade, auxilio da doença, cesta básica, bolsa escola, agente jovem, agente de saúde, tem tudo hoje... essas pessoas tem emprego hoje. Mas quanto mais a liberdade que os pai tem hoje para seus filhos ... Antigamente eu, meu pai falava pra mim, hoje de manhã você vai estudar, de tarde você vai para roça, se você não for vai apanhar. Hoje se a família vê filho, o pai vai para roça e o filho fica dormindo, na mo rdomia ...Então tem essa mudança. Antigamente não era assim, porque se o povo furasse um dia, era necessidade. Hoje se um fulano tá dormindo hoje, levantou tá comendo, tá bebendo água. Antigamente se tinha que buscar água era longe, sete quilômetro, cinco quilometro, com lata na cabeça. Hoje ate na cabeceira da cama do fulano tem água..Então a gente pensa que vai acontece para o futuro? Então é isso”. (Lourenço Muchacho, Setembro de 2004). A disputa política dentro da aldeia, pelo poder do posto de cacique e a outras posições, se vincula intima e diretamente as alianças externas e a disputa por outros postos de poder dentro das instituições de Estado. Desta maneira, o faccionalismo político Terena não pode ser pensado fora 282 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional das redes de relações que este grupo étnico constitui no contexto local e regional, que por sua vez se inserem em redes nacionais de dominação. Um outro depoimento importante é o de Anésio Pinto, que morava no lado do Cruzeiro, mas que na época ficou do lado da facção de Sabino Albuquerque. Perguntamos: Você chegou a pegar a época em que Cachoeirinha ficou dividida? Sim, esse aí se eu não em engano foi na década de 1980, me parece, quando a Cachoeirinha dividiu-se a ala do Dionísio mais a ala do Sabino. Isto ai foi o resultado da política interna e da política lá de fora. E também eu como professor naquela época um dos prefeito não queria que eu falasse idioma Terena na sala de aula, e fui até ameaçado por isso, lembro que daquela vez.... Eu tava na ala do pessoal daqui ... eu me senti muito assim, não gostei daquela divisão, onde teve muito entrada de políticos, foi muito difícil de resolver... Naquele tempo eu apoiei porque as pessoas mais forte em relação ao Estado ou Município, estava em poder do Sabino. O prefeito mesmo estava ao lado do Sabino e o pessoal contra queria fazer dele também. O prefeito apoiava ele, só que eles não tinha aquele grande poder como o Sabino tinha. Eu achei de estar ao lado do Sabino devido a esses grupos de pessoas que tem poder como o Governador do Estado de Mato Grosso de Sul o próprio CTI já vinha agindo neste sentido, a Prefeitura, onde naquela época o Sabino desentendeu com o Prefeito, aí o Prefeito deixou o Sabino e procurou ajudar o Dionísio. Mas só que o Dionísio não tinha aquele grande conhecimento através do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul, somente com o prefeito, aí o Sabino cortou a parceria com o Prefeito aonde eu sofri a conseqüência disso daí, durante seis anos, onde eu me desliguei da prefeitura, naquela época eu já era professor, e a prefeitura não queria mais auxiliar os alunos aqui, aonde o Sabino levou esses alunos a ser reconhecido como escola Estadual, ai teve a parceira do CTI aonde o CTI arcou com os uniformes, foi muito difícil naquele tempo. Quem tava do lado do Sabino e quem tava do lado do Dionísio? O Sabino tava com maioria, e o Dionísio tava com minoria. O Sabino era reforçado através do Cacique da Argola e do Morrinho. Adolfo Pedro apoiou muito o Sabino. O pessoal do Lino tava apoiando o Dionísio, Alírio, o Mário Pedro apoiava o Dionísio. (Anésio Pinto,Março/2006). No período entre 1988 e 1991 a cisão entre Cruzeiro e Mangao na Cachoeirinha, marcou a ascensão de uma facção política local. Através de alianças externas com o CTI, e pela inserção de suas lideranças nas redes políticas regionais, essa facção conseguiu fortalecer suas bases de mobilização política interna e ao mesmo tempo fazer uma política de oposição a FUNAI e a facção política que nela se amparava. A ascensão da facção que chamamos de facção do “Mangao”, liderada por Sabino Albuquerque, se relaciona a um conjunto de processos e fatores. Primeiro lugar, a luta pelo poder, que diferenciava as duas facções; uma atuava como força de apoio da FUNAI, através dos empreendimentos indigenistas, sob forma de “projetos agrícolas”, e controlando de forma relativamente monopólica, os recursos e relações políticas com o Estado através da FUNAI. A outra facção, começou a questionar os métodos de organização política, o “regime de indicação do cacique”, exigindo eleições e a transferência do poder de decisão para a “comunidade indígena ”. Ao mesmo tempo, começou a articular a demanda de revisão e ampliação das terras indígenas, e nesse momento, entrou em choque com a facção do cruzeiro que atendendo as orientações da 283 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional FUNAI, tentou impedir o processo e a reivindicação de terras. O envio do “índio funcionário” para realizar a “demarcação” nos limites de 2600 hectares, sem nenhuma revisão, mostra o compromisso em transmitir ordens do Estado para a comunidade e manter os padrões de territorialização e inserção na estrutura de classes estabelecido ao longo do século XX. A técnica da “desobediência” política e do “boicote” aos empreendimentos agrícolas e o trabalho comunitário foram as principais formas da resistência cotidiana. Dessa maneira, a política de resistência cotidiana expressa-se nesse momento pelo choque com os índios funcionários e o projeto de “co-gestão indígena” – que se apresenta antes de tudo, como meio de garantir que certas facções indígenas atuem como forças de apoio do Estado dentro do regime tutelar. Isto significava que as bases locais do regime tutelar estavam sendo transformadas: primeiramente, quebrava-se o poder de uma facção aliada à FUNAI, e abria-se espaço para outras facções; em segundo lugar, o próprio poder da FUNAI nesse processo se via contestado, já que juntamente com o declínio do poder da antiga facção dominante, declinava relativamente a capacidade da FUNAI de impor decisões às aldeias como um todo, de se fazer obedecer e de monopolizar a representação e as decisões em nome das comunidades indígenas. Como vimos pelo depoimento do Anésio, muitas estratégias individuais e de grupos familiares contabilizavam o poder que estas facções não alinhadas com a FUNAI (e que minavam as bases do regime tutelar) como um fator para aderirem ou não as diferentes facções políticas. Estes conflitos ganharam grande repercussão na sociedade sul- mato-grossense, de maneira que alguns jornais chegaram a noticiar os conflitos ocorridos no dia do índio: “Nem tudo foi festa ontem durante a comemoração do Dia nacional do Índio. Na aldeia Cachoeirinha em Miranda, os dois caciques promoveram duas festividades, dividindo os índios. Uma das comemorações foi financiada pelo prefeito de Miranda, Roberto Paulo de Almeida, do PTB. Há denúncias de que ele está procurando dividir as lideranças do local114”. O conflito e a divisão durou até 1991, quando uma nova eleição foi realizada e mudanças na política local possibilitaram uma reconciliação entre as duas facções, que foi simbolicamente promovida no “Dia do Índio”, como vemos pela descrição abaixo: “Em comemoração no dia 19 de abril fizemos uma festa, onde no dia 19 de Abril os dois entraram em paz e pediram aquele união, aliança de novo com eles, desde aquela época 1989, eu me lembro que foi no dia 19 de abril eles entraram em paz, entraram aliança entre eles para acabar aquele conflito entre eles, entre nós aqui, eu mesmo eu sofri a conseqüência daquele divisão naquele tempo. (...) Aí no final de 1991, a prefeitura voltou e contratou todos os professores, depois que o Sabino se entendeu com o Ivan. (Anésio Pinto,Março/2006). Neste mesmo ano, foi realizada uma nova eleição para Cacique, e o vencedor foi Argemiro Turíbio (que na época já era vereador, eleito em 1988), morador do “Cruzeiro”. Também ele não 114 “Dia do índio Provoca Divisão entre os Terena”. 284 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional conseguiria “terminar” o seu mandato, segundo informações dadas por alguns moradores do local e confirmadas por alguns documentos da FUNAI. Assim, podemos identificar todas as fases características do drama social: primeiramente, a eclosão de um conflito entre diferentes facções políticas indígenas, que tinha como objeto a disputa de recursos materiais e poder local; depois, a transformação de um conflito latente em um conflito aberto que levou inclusive a cisão política da aldeia Cachoeirinha durante 3 anos aproximadamente; por fim a fase da reconciliação, quando as facções em luta repactuam certos elementos e voltam a um convívio relativamente normal, o que aconteceu no Dia do Índio. O relato de Argemiro, um dos personagens dessa história indica o seguinte: “Porque aconteceu a divisão entre cruzeiro e mangao? Eu não sei bem dizer isso, porque antigamente isso já existia, antes de eu nascer isso já existia, mas a gente acompanhou através das conversas. Porque a Cachoeirin ha sempre assim dividido em uma família, antigamente tinha aquele Cruzeiro... Uma parte o pessoal considerava uma família morava em Cruzeiro, então tinha uma certa divisão, outro o pessoal falava de Mangao, então são duas divisões que era fortíssima, que era difícil se juntarem naquela época, inclusive fizeram até dois times, do lado do Mangao que chamava estrelinha e aqui permaneceu Cruzeiro, por causa da implantação de Santa Cruz que fizeram. Então chamou esse nome ai e ficou, nesta fase antigamente. E hoje naturalmente tem esse nome mas vários divisão de localidades que já foram inventadas. Historicamente na Cachoeirinha tinha essas duas divisões. E a luta entre Sabino e o Dionísio? Aquela divisão é mais assim desconfiança da própria comunidade, como tinha duas alas, era difícil bater e o pessoal acusou muito o pessoal do Sabino, porque tava fazendo isso, desviando aquilo da comunidade, então criou-se aquela impasse, a comunidade querendo destituir do cargo dele naquela época. (...) Qual o cacique reconhecido pela FUNAI? Incentivava as duas alas. A liderança do Dionísio, era sempre o turma mesmo, Alírio, Adolfo, uma turma que vinha pra apoiar para resolve o problema. O do Sabino era o Sabino Lipú Gaudêncio Henrique. O do Dionísio era Zacarias da Silva. (Argemiro Turíbio, Março/2006). Mas como explicar em termos sociais e históricos os conflitos de sucessão? Seriam apenas o resultado da luta pelo poder e expressariam como sugerem os indigenistas, o resultado de uma “influência” externa e estranha aos índios, que os dividiria e manipularia? Na realidade, o drama da cisão se relaciona aos outros dramas de sucessão. É isto que analisaremos abaixo, através dos dados levantados sobre a facção do cruzeiro. 5.6 - A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.” A facção do Cruzeiro era organizada a princípio em torno de uma liderança: João Niceto Júlio. Outros indivíduos como Dionísio Antonio e depois Alírio de Oliveira Metelo, jogariam um 285 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional papel importante na construção desta facção, e conseqüentemente nos conflitos políticos de Cachoeirinha analisados anteriormente. A análise da biografia destes indivíduos e também das suas relações genealógicas se torna fundamental para a real compreensão dos dramas de sucessão, que redundaram inclusive numa cisão temporária da aldeia Cachoeirinha. Iremos começar analisando primeiramente as genealogias e relações de parentescoresidência de quatro caciques da facção do Cruzeiro: João Niceto Júlio, Dionísio Antônio, Alírio de Oliveira Metelo e Argemiro Turíbio. Figura 3- Esquema Genealógico de João Niceto Júlio. 1 – Antônio Júlio 2 – Justina Maria 3 – Ciriaco Júlio 4 – Hilário Júlio 5 – Luiza Francelino 6 – Arlindo Júlio 7 – Abertino Júlio 8 – Alcides Júlio 9 – Ailton Júlio 10 – João Niceto Júlio 11 – Nancy Jùlio 12 – Elida Júlio João Niceto Júlio é filho de Ciriaco Júlio, um antigo “tenente” da polícia indígena, que se tornou cacique de Cachoeirinha logo após a morte do “Capitão Timóteo”, no final dos anos 1950. Por sua vez, Ciriaco era filho do mais “odiado” curandor da Cachoeirinha, Antônio Júlio. João Niceto, na época em que foi Cacique, final dos anos 1970 e início dos anos 1980, era casado com Leda Pedro e ambos residem hoje na vila “Cruzeiro”. 286 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Figura 4– Esquema Genealógico de Dionísio Antônio. 1 – Francolino Antonio 2 – Não soube informar 3 – Guilherme Antonio 4 – Otílio Antonio 5 – Vitorino Pereira da Silva 6 – Joana da Silva 7 – Dalva da Silva 8 – Dionísio Antonio 9 – Àguida Antonio 10 – Laurentina Antonio 11 - Ernesto Antonio (falecido) 12 - Silvia Antonio 13 – Doracy Francisco 14- Laércio Antonio 15 – Sildo Antonio 16 – Pedro Dionísio 17 – Maurício Antônio 18 – Adilson Antonio 19 – Guilherme Antonio 20 – Marlisa Antonio 21- Dalva Antonio 22 – Maisa Antonio Os dados genealógicos de Dionísio Antonio mostram o seguinte: ele é descendente do Vitorino Pereira da Silva, que foi “capitão” da Cachoeirinha no início do século XX. Vitorino é seu avô materno (Onjú); seguindo a linha patrilateral de descendência, Dionísio herdou o sobrenome de seu pai (Antonio) e não de sua mãe (Pereira da Silva). Dionísio nasceu na Cachoeirinha, mas sua família morava numa área de roça chamada “Pindó”. Sua família teria se mudado para a área do Cruzeiro por convite de Lino de Oliveiro Metelo (que convidou também Eusébio Antonio), “em 1958 mais ou menos”, segundo o próprio Dionísio. “Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em 1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique. (...) Eu entrei como vice, primeiro ano em 1979, era João Niceto, afastou, eu assumi, membro do conselho fez avaliação e eu assumi. Foi assim. (...) Em 1982 foi eleito pelos membros do Conselho”. (Dionísio Antonio, março/2006) 287 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Dionísio Antonio aparece primeiramente como vice-cacique em 1979, acompanhando o grupo de João Niceto. Ele passa a ser Cacique pelo convite de “Lino de Oliveira Metelo”, nos anos 1980 um ex-cacique da Cachoeirinha e membro do Conselho de João Niceto Júlio. Analisando a genealogia de Alírio de Oliveira Metelo, o cacique que sucedeu Dionísio no seu primeiro mandato, veremos o seguinte. Figura 5– Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo. 1 - João Metelo 7 – Felix da Silva 2 – Maria Rita de Oliveira 3 – Lino de Oliveira Metelo 4 – Amâncio de Oliveira Metelo 8 – Marcolina Rodrigues 9 – Benedita Rodrigues 10 – João Guilherme 5 – Idalina de Oliveira Metelo 6 – Deolinda de Oliveira Metelo 13 – Alírio de Oliveira Metelo 14 – Marcos de Oliveira 15 –Adão de Oliveira 19 – Ari de Oliveira 16 – Alinor de Oliveira 21 – Maria Joaquim Pio 22- Ginaldo de Oliveira 25 – Wanda de Oliveira (falecida) 26 – Cleonice de Oliveira 27 – Regina de Oliveira 28 – Creuza de Oliveira 11 – não soube informar 17 – Ariano de Oliveira 23 – Evandir de Oliveira 29 – Cleide de Oliveira 12 – Maria Rodrigues 18 – Arino de Oliveira 24 – Renaldo de Oliveira 20 – Agripina Júlio Alírio é filho de Lino, o antigo líder que convidou o Dionísio Antonio para ocupar o cargo de Cacique. Sua esposa é originária da aldeia do Bananal. Agripina Júlio é sua meia “irmã”, ela é filha de um outro casamento de sua mãe, Benedita Rodrigues com Ciriaco Júlio. O seu irmão Marcos é casado com Nancy Júlio (uma das irmãs de João Niceto Júlio), o seu irmão Ariano é casado com Ramona da Silva, Adão com Margarida Belisário e Alinor com Marisa Candelário (sendo que todos atualmente residem em Campo Grande), sua irmã Agripina Júlio é casada com Gilberto Turíbio. Pelo que levantamos de informações junto ao próprio Alírio, ele começou sua atuação política como presidente do Conselho de João Niceto Júlio. Depois foi vice-cacique de Dionísio 288 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Antonio e tornou-se cacique em 1984, ficando um ano na função. Alírio serviu ao exército, morou em Campo Grande vários anos, e trabalho em Mato Grosso e São Paulo, sendo cabeçante durante certo tempo. Assim, antes de se tornar-se um líder político, Alírio tinha tido experiência de organizar e liderar grupos de trabalhadores e suas relações nas fazendas da região. Figura 6- Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio 1– Pereira da Silva 6 – Idalina Pedro 16 - Ademar Turíbio 21 – Vianey Lipú Gonçalves Turíbio 7 – Ciriaco Júlio 11 – não conseguimos identificar 12 – Agripina Júlio 2–Helena Joaquim 17 – Adirce Turíbio 8 – Benedita Rodrigues 9 – Gilberto Turíbio 13 – Argemiro Turíbio 14 – Ademir Turíbio 10 – Cláudia Timóteo 15- Milton Turíbio (falecido) 18 – Maria Helenice Turíbio 19 – Maria Darcy Turíbio 20 – Marlene Lipú Gonçalves 22- Jean Lipú Gonçalves Turíbio 23- Argemiel Lipú Gonçalves Turíbio 24 – Narliene Lipú Gonçalves Turíbio 25- Diego Lipú Gonçalves Turíbio 3– Turíbio Pereira da Silva 4 – Vitorino Pereira da Silva 5 – José Timóteo Argemiro Turíbio é filho de Gilberto Turíbio (nascido em 1911). Gilberto é filho de Turíbio Pereira da Silva, e herdou o primeiro nome do pai, ao invés do sobrenome (como foi comum em certas épocas). Turíbio, avô de Argemiro é por sua vez filho de Pereira da Silva, que seria irmão do pai de Vitorino Pereira da Silva, o “capitão” que antecedeu José Timóteo no Comando de Cachoeirinha, entre 1918 e 1928 aproximadamente. Dentro do sistema de parentesco Terena, Vitorino Pereira da Silva e Turíbio Pereira da Silva são “primos/irmãos”, e logo, Gilberto, é sobrinho do antigo capitão (ou filho classificatório). Turíbio Pereira da Silva faleceu quando Gilberto ainda era pequeno, e sua mãe teve um segundo casamento, com José Timóteo. Gilberto por sua vez casou-se com uma das filhas de Ciriaco Júlio, Agripina irmã de João Niceto Júlio. 289 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Na realidade, a “facção do cruzeiro”, se constituiu sobre a base das alianças matrimoniais entre algumas famílias: a família Oliveira Metelo, família Antonio, a família Pereira da Silva (Turíbio) e a família Pedro. Mas os membros desta facção são recrutados dentro do “cruzeiro”, que como vimos é um antigo “bairro” dentro da Cachoeirinha. Na realidade, para compreender efetivame nte a formação das facções com base nos bairros ou vilas, temos de olhar os conflitos de sucessão como dramas sociais. Um primeiro drama de sucessão – possivelmente ocorrido entre 1900-1905 - é caracterizado pela luta interna entre irmãos classificatórios, ou seja, entre dois membros de um grupo de siblings, dentro de uma mesma geração, pelo controle do poder político no espaço aldeão. Esta luta teria sido marcada pela utilização de “técnicas indígenas” como a feitiçaria, empregada por Benedito Polidoro para eliminar o Capitão Polidoro, e assumir seu lugar de chefe da comunidade- local. Este ato teria sido bem sucedido, mas o Capitão Benedito Polidoro terminaria assassinado numa vendeta, por índios de Bananal. Depois do assassinato de Benedito Polidoro teria ascendido à posição de “Capitão” o índio Vitorino Pereira da Silva, que teria sido indicado pelo SPI. Segundo as informações “A ascensão do capitão Vitorino é um tema controvertido na aldeia. As versões variam. Umas mostram-no como um autêntico líder indígena: outros um preposto do Inspetor de Índios da época” (Cardoso de Oliveira, 1968, p.108). As relações de colaboração do capitão Vitorino com Rondon e o SPI são corroboradas pelos depoimentos de alguns de sues descendentes: “Quando ele chegou aqui, esse Vitorino Pereira da Silva, assim que o finado capitão Timóteo falou pra mim, que o primeiro capitão aqui na Cachoeirinha é ele, porque tempo de Rondon, tava trabalhando junto com ele em serviço até Cuiabá, Rio de Janeiro pra lá, na linha telégrafa, porque quando chegou aqui e acabou o serviço, aí deixou, ficou como capitão, tomar conta de terra. O primeiro capitão, diz que sabia falar português, e respeitava tudo. Assim que me contou. (...) Porque ele sabia, homem que já tem idade. Tempo de Coronel quando recebeu a terra. Então é por isso que cada aldeia recebeu a terra, por causa desse general, por que quem guentava serviço era só índio Terena (Gilberto Turíbio – 26/03/2006) Vemos pelo depoimento de Gilberto que Vitorino Pereira da Silva teria acompanhado Rondon nos trabalhos das linhas telegráficas, sendo indicado como capitão da aldeia Cachoeirinha quando retornou dos trabalhos para a reserva. O que importa marcar é que com a indicação de Vitorino Pereira da Silva, consolidou-se o deslocamento do poder político de uma família – os Polidório – para outros grupos familiares. No final dos anos 1920, entrou na função de Capitão José Timóteo, em substituição ao Capitão Vitorino Pereira da Silva, “. As razões da substituição de Vitorino foram assim narradas por José Timóteo: 290 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional “O Capitão Vitorino inventou de beber e tinha quatro mulheres e queria mais uma mulher. O pai da mulher não queria dar a filha. Daí o finado Capitão Vitorino mandou o José Polidoro bater no velho, enquanto ficava em casa. O seu Werneck mandou buscar o Capitão Vitorino que estava bêbado e dizia nada saber. Aí, o Coronel Horta Barbosa mandou ele embora. Ele pediu, e deixaram ele ficar na roça, doente, tubercoloso, até morrer. Quando ele morreu, eu já era capitão.” (Timóteo Turíbio, apud in Oliveira, 1968, p. 109). José Timóteo que foi indicado para “Capitão” casou-se com Idalina Pedro, viúva de um irmão classificatório de Vitorino, Turíbio Pereira da Silva. O Capitão Timóteo foi quem mais tempo ficou a frente da Cachoeirinha, cerca de trinta anos, até sua morte, que abrirá um segundo drama de sucessão. A morte de José Timóteo abriu um período de luta política e um conflito de sucessão dentro de Cachoeirinha, que não se resolveu até 1960. Cardoso de Oliveira indica que três homens disputaram o posto de Cacique naquele momento: Ciriaco Júlio (“tenente” da polícia indígena), Faustino Salvador (migrante de Lalima, Koixomuneti) e Emílio Polidório (da parentela dos Polidório, casado com uma sobrinha do capitão Timóteo). Cardoso de Oliveira notara a preferência da comunidade- local Terena por Emílio Polidoro, pelo fato deste pertencer a uma família tradicional. Mas quem ficou com o cargo foi o então “tenente” da polícia indígena, Ciriaco Júlio. Este permaneceria à frente da comunidade cerca de 3 anos, e depois seria substituído por Faustino Salvador. Segundo as informações dadas por uma de suas filhas, Agripina Júlio, a comunidade teria brigado e batido nele, e por isso ele deixou o cargo de capitão. Na seqüência teria assumido Faustino Salvador (koixomuneti, assistente de Gonçalo Roberto, maior xamã de Cachoeirinha na época e relacionado a ele por parentesco), que também ficaria no comando da Cachoeirinha cerca de 4 anos. Segundo informações de algumas pessoas, foi afastado por ser muito “violento” (além de ser de origem Laiano e identificado como de “fora da aldeia” por ter migrado de Lalima, apesar de seus descendentes afirmarem que ele era nascido na Cachoeirinha e ter ido pequeno para Lalima e depois retornado). Seria somente Lino de Oliveira Metelo, antigo membro da polícia indígena, que ao ser indicado para a função de capitão, permaneceria mais de 10 anos no cargo, dando maior estabilidade e fazendo cessar temporariamente as lutas de sucessão. Lino por sua vez se casaria com uma ex-esposa de Ciriaco, a Benedita Rodrigues (que abandonou Ciriaco para casar com Lino). Assim, Lino de Oliveira Metelo teria sido o Cacique indicado pelo Encarregado do Posto do SPI com anuência do Conselho Tribal, logo após a experiência das “eleições” promovidas pelo SPI terem “fracassado” diante das continuas disputas estabelecidas nas aldeias como Cachoeirinha. Mas Lino de Oliveira Metelo não teria sumido do cenário político local, como veremos adiante. 291 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Depois da saída de Lino de Oliveira Metelo o homem a assumir a posição de Cacique foi Mário Pedro. Este teria abandonado o cargo de Cacique e ido morar em São Paulo (segundo algumas versões relatadas em Cachoeirinha). Na realidade, podemos dizer que um grupo de famílias estabeleceram um conjunto de alianças matrimoniais, especialmente as famílias dos líderes indígenas que tornaram-se caciques/capitães. As famílias dos caciques Vitorino Pereira da Silva estabeleceram trocas matrimoniais com os membros das famílias Pedro e Antônio (no caso, Idalina Pedro que foi casada com Turíbio Pereira da Silva) e Dalva da Silva, uma das filhas de Vitorino, que casou-se com Guilherme Antonio. Idalina Pedro tinha dois irmãos, Geraldo Pedro e Antonio Pedro, sendo os pais destes Pedro Elói e Aninha Joaquim. Mário Pedro casou-se com Rosalina Antonio, e João Niceto foi casado com Leda Pedro. Estas famílias é que ocupam a área que ficou conhecida como Cruzeiro. A facção política do Cruzeiro é conseqüentemente aquela que reúne os líderes indígenas e grupos familiares locais que conseguiram estabelecer com maior eficácia uma relação de colaboração/aliança com o SPI. Ao que parece, as famílias que estabeleceram estas trocas matrimoniais, absorveram dois indivíduos que tornaram-se “caciques” durante o segundo “drama de sucessão”; Ciriaco Júlio e Lino de Oliveira Metelo; e é graças ao trabalho político e as relações de parentesco e aliança que este último soube construir, que ele conseguiu agrupar no lado “leste” do Posto, um conjunto de grupos familiares, que poderiam ter ascendência comum. A facção do “Cruzeiro”, tal como se apresenta nos anos 1980, e a organização política e cultural de Cachoeirinha indicam que este antigo líder e membro da policia indígena, continuou exercendo forte influência na vida política da comunidade mesmo depois de ter deixado a função de cacique em meados dos anos 1970. A vila Cruzeiro reuniria assim os grupos familiares mais vinculados ao SPI/FUNAI, e aqueles que por mais tempo tinham exercido o controle político da aldeia graças a essa relação. 292 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Para compreender a real importância da figura de Lino, construtor tanto de uma política de alianças com o Estado quanto de um agrupamento residencial entre diferentes grupos familiares de uma ou duas linhagens, em torno da sua atividade e liderança, é preciso observar a atual composição (os grupos domésticos residentes) da antiga “Cruzeiro”. Os mapas 5 e 6 ilustram isso: 293 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Mapa 5– Vila Santa Cruz. Mapa 6 –Vila Cruzeiro. 294 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional 1) Luiza Francelino (viúva de Ciriaco Júlio) 2) Elenilda Antonio (neta de Luiza Francelino) e Enilson Albuquerque 3) Hélcio Albuquerque e sua esposa Silvia Regina Oliveira (filha de Marcos de Oliveira) 4) Marcos Oliveira e sua esposa Nancy Júlio 5) Jailce Oliveira filha de Marcos de Oliveira e seu esposo Sebastião de Oliveira Costa (branco) 6) Maria Helenice e sua filha, Ednara 7) Gilberto Turíbio e Agripina Júlio (filha de Ciriaco Júlio) 8) Ademar Turíbio 9) Argemiro Turíbio, sua esposa Marlene Lipú Gonçalves. 10) Venâncio Barbosa (viúvo de Dirce Turíbio, irmã de Argemiro) 11) Leda Pedro (ex-esposa de João Niceto Júlio, mãe de Airton Júlio) 11-A) Rosa Antônio (ex-mulher de Mário Pedro, com seu filho Edílson Pedro, Nora e Netos. 12) Cecílio Antonio com esposa e filhos. 13) Bernardina Antonio 14) Temiz Arruda e sua esposa Ruth Lemes 15) Luiz Antonio e sua esposa e filhos. 16) Airton Júlio e Vaneide Turíbio (filha de Ademir Turíbio) 17) Mário Albuquerque e sua esposa Maria Darci Turíbio (irmã de Argemiro) 17-A) Simão da Silva e Lucila Brás 18) Ademir Turíbio e sua esposa Lucília Pedro 19) Tomás Balbino e sua esposa Paulina Barbosa. 20) Alírio de Oliveira e sua esposa Maria Joaquim Pio. 21) Ariano de Oliveira e sua esposa Ramona da Silva (estão em Campo Grande – é o lote que pertenceu a Lino Oliveira). 22) Elcio de Oliveira (filho de Alinor Oliveira) e sua esposa Daniela Paiva) 23) Danilo Paiva e sua esposa Nelsinha Vitor (sogro e sogras de Élcio) 24) Dionísio Martins e sua esposa Cleide Oliveira (filha de Alírio) 25) Basílio Martins (irmão de Dionísio) e sua esposa Regina Oliveira (filha de Alírio). Estão em Campo Grande, sua filha mora no local. 26) José Antonio e sua esposa Marlene Oliveira (filha de Alinor) 27) Mariza Candelário (viúva de Alinor e Mãe de Marlene Oliveira). 28) Tereza Salvador, filha de José Vaqueiro (falecido) 29) Ielmiro José (neto de Vaqueiro), com sua esposa Cileide Vitor 30) João Niceto Júlio e filhos. A antiga “Cruzeiro” compreendia as atuais vilas Cruzeiro, Santa Cruz e Rio Branco dos mapas acima. Os lotes em que hoje estão Alírio de Oliveira e os lotes vizinhos dos seus irmãos eram do seu pai, Lino. Algumas das famílias extensas que hoje se encontram nestas vilas, foram reunidas por Lino, como por exemplo, a própria família de Dionísio Antonio. Segundo o depoimento deste último, ele e seu pai moravam na roça até os anos 1950, quando o Lino convidouos para ir residir na Sede, que facilitaria a “escola” para as crianças. Guilherme Antonio e um primo/irmão Eusébio Antonio transferiram-se com suas famílias para a Sede. O grupo doméstico de Dionísio Antonio hoje é composto por uma família extensa de 4 gerações. Residem na mesma vila, em casas vizinhas, seu pai Guilherme Antônio com sua irmã (exesposa do cacique do Babaçu, Zacarias Rodrigues) e os filhos e netos de Dionísio. Na mesma vila moram também alguns cunhados como Horto Belizário, e genros, como Joelino Pereira. Os membros da família Belizário, estão integrados no grupo de Dionísio. Guilherme e Eusébio Antonio eram companheiros de Lino de Oliveira na realização do ritual Oheokoti. Outra família que se mudou para aquela vila por convite de Lino, foi a família de Afonso Pinto. Afonso Pinto é chefe de uma família extensa, residindo no seu lote ele, dois de seus filhos 295 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional com suas esposas e 3 filhas com seus maridos. A família de Afonso residia no Morrinho até os anos 1970, quando foi morar na Sede, por convite de Lino. Afonso Pinto tornou-se também companheiro de Lino, Eusébio e Guilherme Antonio no Oheokoti. Uma parte dos filhos de Lino de Oliveira se mantém residindo no mesmo “lote” que pertencera a seu pai. Gilberto Turíbio e Agripina Júlio foram convidados para fixar residência ali, depois de morar um tempo junto do capitão Timóteo, mas saíram e foram morar num lote ao lado da casa do pai de Agripina, Ciriaco Júlio, que morava num lote vizinho ao de Lino Oliveira. É interessante ver que os homens que ocuparam o cargo de cacique foram escolhidos quase todos por Lino de Oliveira ou sua liderança: “Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em 1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique. A comunidade eu vi que tava precisando, eu fiz muito projeto grande, quando eu fui cacique, nós colhemos arroz, feijão, essa máquina 290 que ta aí, foi do nosso projeto, teve um F4000 e acabou noutro mão, e foi assim a minha vida e eu fiquei aqui até agora”. (Dionísio Antonio, Março/2006) Lino de Oliveira era membro do Conselho Tribal de João Niceto Júlio, e uma das figuras que organizava o processo político e ao que parece, dava unidade para estas diferentes parentelas de naati/caciques e que foram política e residencialmente agrupadas por sua iniciativa. Outras lideranças foram preparadas por esta facção e seus principais “cabeças”, como Argemiro Turíbio nos anos 1980, e como parece hoje em dia, um dos filho do Dionísio Antonio, Adilson Antonio que tornou-se vice-cacique e um filho do ex-cacique Mário Pedro, que reside na vila Cruzeiro, Edílson Pedro. A própria análise da trajetória individual de Argemiro Turíbio, o último cacique do Cruzeiro, mostra isso também: “Primeiro quando comecei a entrar no movimento, eu comecei na Igreja, desde jovem, participando do trabalho na Igreja, ai comecei a aprender ali, a participar de todos os encontros, discussão dentro da Igreja, falando da palavra de Deus. Ai depois eu fui entrando, aproximando das lideranças, quando tinha reunião, eu ia, participava... Depois mais tarde comecei a organizar esporte (...) evento, danças nas festas eu fazia tudo isso... Qualquer movimento assim social eu tava no meio, ajudando a organizar.... Quando você começou a acompanhar a liderança? Isso foi demorado. (...) Ai depois fui crescendo, ai comecei participar, eu comecei sair, estudei para fora, me formei, voltei pra cá... Quando sai daqui, eu já fazia tudo isso, ai sai 84, 85, 86, pra fora, voltei, retornei para cá, aí comecei a trabalhar na educação, três anos como professor, ai depois disso o pessoal me indicou para concorrer a eleição em 1988 ... Quem o indicou para concorrer? Mais os parentes, como o Dionísio, Alírio, Adolfo Pedro, algumas pessoas ligadas a gente. Ai eu sai vitorioso em 1988, e fiquei até 1990.Em 1991 eu concorri para cacique, eu já era vereador, eu ganhei mais quatro anos, ai comecei a trabalhar desse jeito. 296 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Quem fazia parte da sua liderança? Cirilo Raimundo, Zacarias da Silva, Alírio Oliveira, Dionísio, Adolfo Pedro Ai eu tentei eleição para vereador, e não consegui. Ai eu fiquei um ano lá no Morrinho implantando um projeto de agricultura, horta na escola, lá no Morrinho, trabalhando lá, ai depois disso eu tentei mais uma vez vê se conseguia eleger para vereador e não consegui, e depois disso eu comecei a organizar uma associação, o nome dele hoje é ACIC..”. (Argemiro Turíbio, Março/2006) O grupo que se articulava em torno de Argemiro Turíbio, era composto pelos chefes das famílias moradoras do “cruzeiro”, especialmente os líderes da comunidade nos anos anteriores. Assim, entre 1910 e 1985, os caciques da Cachoeirinha foram recrutados entre um limitado grupo de famílias, sendo que aqueles que não eram das famílias que antes forneciam os “caciques”, se integraram em suas redes de parentesco e afinidade através de torças matrimoniais, como vimos acima. Este grupo conseguiu manter-se no poder local durante um tempo importante, especialmente depois da ascensão de Lino de Oliveira. Os dramas de sucessão, aqui analisados, o primeiro passado no início do século, o segundo em final dos anos 1950, e o drama da cisão e suecessão dos anos 1980 estavam inter-relacionados. No início do século, a substituição de Benedito Polidório por Vitorino Pereira da Silva, marcou um deslocamento de poder importante dentro da reserva – também ocasionado pela mudança do regime da transmissão hereditária da chefia para o regime de indicação unilateral. Nos anos 1950, depois da morte do capitão Timóteo, outro drama de sucessão de desenvolveria. Emílio Polidório, descendente da parentela derrocada do poder na Cachoeirinha disputaria a posição de Cacique com lideranças emergentes. Ciriaco Julio e Lino Metelo participaram de um mesmo grupo vicinal e foi este ultimo que conseguiu manter-se de forma estável na liderança. O terceiro drama de sucessão, que resultou na cisão da Cachoeirinha, traz a tona conflitos que remontam a estes outros dramas e lutas entre diferentes parentelas e grupos vicinais. No terceiro “drama de sucessão dos anos 1970/80, descendentes dos Polidório e de Vitorino Pereira da Silva se defrontaram politicamente, agrupados em diferentes facções: uma liderada por Sabino Albuquerque e outra por João Niceto Júlio. De um lado um grupo de famílias que já estava controlando o poder local há bastante tempo, de outro, um conjunto de grupos familiares que estava disputando este poder. Na realidade, a facção liderada por Sabino Albuquerque, era composta na sua grande maioria por moradores da área da aldeia conhecida como “Mangao”, por sua vez da parentela do capitão Polidorio. As famílias que ocupam esta área e que serviram de base para sua mobilização política, foram especialmente as famílias Albuquerque, Polidório e Muchacho. As relações genealógicas dos líderes que passaram a combater a facção do cruzeiro nos anos 1980 e disputar o 297 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional poder e controle dos recursos dentro da aldeia, remontam aos Polidorio. Além disso, existia também uma rixa entre a família Albuquerque e certas famílias da facção do cruzeiro. Uma análise da história da família Albuquerque e informações genealógicas são encontradas no trabalho de Ladeira (2001). Podemos perceber o seguinte: Figura 7– Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque. 1 – Lili Albuquerque 6 – Xavier Polidório 2 –Maria Angelina Antonio 3- José Polidório 7 – Leonardo Polidório 8 – Floriza Polidório 4 – Alexandre Albuquerque 5 – Carlos Polidório 910 11 – Cecilia Muchacho 12 – Sabino Albuquerque 13 – Rafael Albuquerque 14 – Alberto Albuquerque 15 – Hélio Albuquerque 16 – Esídio Albuquerque 17 – Mário Albuquerque 18 – Almerinda Albuquerque 19 – Marina Albuquerque 20 – Genésia Pinto 21 – Genilda 22 – Genimara 23 - Salmir 24 Geni 25 – Saulo 26 – Samir Sabino é filho de Alexandre Albuquerque, que é filho de Lili Albuquerque, um branco que foi o primeiro marido de Maria Angelina Antonio, avó de Sabino. Este separou-se de Maria Angelina em 1930-31. Maria Angelina Antonio casou-se novamente, com José Polidório (que é, pelas informações de Roberto Cardoso, filho do capitão Polidório, o primeiro capitão de Cachoeirinha ). Alexandre é assim o fundador de um novo grupo familiar, os Albuquerque. Alexandre casou-se com Cecília Muchacho, e teve oito filhos (6 homens e 2 mulheres). Hélio casou-se com Idalina Polidório; Sabino casou-se com Genésia Pinto; Alberto casou-se com Maria Aparecida Pedro; Esídio casou-se com Eulógia (uma branca); Rafael casou-se com Dominga Américo; Mário casou-se com Maria Darci Turíbio; Almerinda e Marina casaram-se com homens de fora da aldeia, não indígenas e residem em Campo Grande. 298 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional A história da família Albuq uerque indica que Alexandre era um índio dedicado ao trabalho e comércio, criador de gado e empreendedor. Pelo que conseguimos levantar junto aos moradores de Cachoeirinha, existia uma certa antipatia de alguns frente a figura de Alexandre, tanto pela sua capacidade comercial quanto pela sua estratégia individual, que levava – segundo alguns – a não participar em mutirões dentro da aldeia e atender a convocação para o trabalho feita pelo Capitão Timóteo. Em 1954 aproximadamente Alexandre recebeu um convite para ir morar em uma fazenda da região do rio Salobra, onde conseguiu uma criação de gado. Desta maneira, existia já um atrito entre Alexandre alguns indígenas. Eles “Voltaram para aldeia em 1961. Uma volta conturbada, já que o chefe da aldeia na época, capitão Julio Siriaco, recusava permissão para Alexandre estabelecer novamente moradia na aldeia de Cachoeirinha” (Ladeira,2001, p. 47). De acordo com as memórias dos filhos de Alexandre: “ele alegava que por ter passado um tempo para fora ele não era mais índio, foi quando meu pai falou com o compadre dele que era Chefe de Posto na época, sr. Américo. O chefe de Posto teve que conversar muito com o cacique e mostrar todos os documentos do finado meu pai, que era analfabeto.....se não fosse o Chefe de Posto o cacique atual na época não estava aceitando ele .... Eu já não lembro muito bem dessa história, meu pai contava para mim: meu filho, foi difícil de nós voltar novamente para a nossa área...então meu filho não sai daqui, fica aqui, aqui você constrói a sua vida.”. ( Alberto Albuquerque, apud in Ladeira, p. 47) Existiu um conflito entre Alexandre Albuquerque e o então Capitão Ciriaco Júlio, que tentou proibir a entrada de Alexandre na área, o que só foi conseguido graças à intervenção do Encarregado do Posto. Retornando para Cachoeirinha, ele conseguiu ainda acumular alguns bens, que ficaram para seus filhos: “Quando o velho faleceu, vendemos as terras , meus irmãos se reuniu para vender essas terras, aí teve a herança, aí ficou até hoje a gente tem um gadinho e aí que a turma fica com inveja com o que a gente tem, sei que meu pai foi perseguido por causa de gado, então até hoje a turma tem coragem de falar que a gente não é índio, minha mãe é índia e meu pai filho de índia... meu pai não condeno que ele é brasileiro, não sei o que ele é, mas o pessoal de Albuquerque de Miranda, coitado, todo mundo xinga ele de índio, de bugre.... acho que é mais inveja né, ninguém pode ter nada aqui que a turma fica de olho em pé” (Sabino, apud in Ladeira, 2001, p. 48). Desta maneira, a ascendência “purutuye ” de Sabino foi (e na verdade ainda é) utilizada para desqualificá- lo dentro da política aldeia. A experiência de enfrentamento com certos grupos familiares, que dominavam a vida política em Cachoeirinha, por questões especificamente individuais ou familiares, juntou-se ao fato de o pai de Sabino, Alexandre, ser enteado de José Polidório, descendente de um antigo cacique e um naati. 299 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional A ação política de Sabino foi motivada tanto pela sua vontade de auto-afirmação da família Albuquerque dentro da aldeia 115 , quanto pela sua localização social e territorial, dentro de um conjunto de famílias que residia no lado oeste do Posto, especialmente os Polidório e os Muchacho. A ascensão política de Sabino coincidiu com o seu deslocamento para o “centro” da aldeia, já que ele construiu uma grande casa com uma enorme varanda ao final da “vila principal”. Ele conseguiu alcançar um padrão de vida econômico muito superior ao da média da população de Cachoeirinha, tendo gado, carros, ônibus e caminhões e “terras” fora da aldeia. É como ele próprio descreve: "Então é isso aí, é minha luta sempre adquirir as coisas pra deixar meu nome, pra não apagar pros meus netos, essa é que é minha preocupação né, deixar a família Albuquerque desprotegida né, quero que o meu filho seja considerado, por isso que eu luto pra adquirir alguma coisa, por causa do começo da vida do meu pai aqui, disso eu tenho sentimento e graças a Deus, eu tenho correspondido, e eu acho que daqui pra frente vai ser respeitado meu nome ..a gente taí lutando pra adquirir mais terra pra comunidade, essa é a minha luta". (Sabino, apud in Ladeira, p. 50). Neste sentido, podemos falar que a parentela dos Albuquerque, iniciada com Alexandre, e hoje composta por algumas dezenas de pessoas, foi integrada numa rede troca matrimoniais e alianças políticas com as famílias que tradicionalmente ocupavam a área do Mangao, especialmente os Muchacho e os Polidório. As facções do Cruzeiro e do Mangao eram compostas por grupos domésticos que integravam unidades político-territoriais mais amplas, os grupos vicinais que se constituíram em conjuntos de ação política, seguindo certos critérios, especialmente as relações de parentesco dentro de determinadas parentelas de naati. Estas facções foram construídas por um longo processo político de alianças matrimoniais entre certas famílias da reserva de Cachoeirinha. Para entender o funcionamento destas facções políticas, é preciso entender a constituição das “vilas” ou “bairros” dentro de Cachoeirinha, que são esses grupos vicinais. Hoje em dia estes antigos “bairros” se “fragmentaram” em diferentes “vilas”, indicando talvez uma tendência ainda maior a um tipo de descentralização faccional, e uma composição de alianças altamente móvel, tanto entre as facções e lideranças indígenas, quanto entre estas e grupos políticos e elites dirigentes locais e regionais. Depois de 1986, o monopólio exercido pela facção do Cruzeiro foi quebrado; a facção do Mangao, liderada por Sabino e aliada ao CTI, conseguiu eleger o “cacique” por duas vezes consecutivas. A cisão “Cruzeiro X Mangao” entre 1988 e 1991, que eclodiu por conta do controle dos recursos do “caixa comunitário”, especialmente, foi um momento de crise provocada pela 115 “Em todos os depoimentos gravados e em todas as conversas mantidas os filhos fizeram questão de manifestar sua mágoa pela marginalidade de seu pai, Alexandre Albuquerque, na comunidade terena. Na verdade, seu pai, por ser filho de branco, não poderia ser enquadrado em nenhuma das camadas sociais, já que a descendência, como vimos é patrilinear. E, consequentemente, seus filhos também não. Mas, paradoxalmente, todos, com exceção do Ezídio, procuram reforçar sua identidade terena lutando para fazer o nome Albuquerque, nos padrões atuais de pertencimento de um grupo, como dos Xuna Xati, de onde saiam os "chefes de guerra". Daí o empenho de Sabino em ser eleito como chefe e lutar para conseguir um grande feito para a comunidade:a ampliação do território indígena.” (Ladeira, op.cit, p. 51). 300 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional quebra desta linha de sucessão dos caciques dentro da mesma facção e grupo vicinal. Nos anos 1990, a antiga facção do Cruzeiro só conseguiu eleger um Cacique, Argemiro Turíbio. Mesmo assim ele foi tirado do cargo, sob circunstâncias que nós não conseguimos esclarecer, ficando em seu lugar o vice-caciq ue, Cirilo Raimundo Pinto, casado com Nilza Júlio, uma das filhas de Hilário Júlio, irmão de Ciriaco Júlio. Cirilo é filho de Pereira Pinto e Cristina Raimundo, que residia m na antiga Cruzeiro (no lugar em que hoje reside Afonso Pinto), antes de mudar-se para o Morrinho. Depois os caciques eleitos foram Esídio Albuquerque (1994-1998) e Sabino Albuquerque (19982002) e Lourenço Muchacho (2002-2006), todos moradores da antiga área do Mangao. Somente em 2006 seria eleito Cirilo Raimundo, que apesar de residir do lado “oeste” do Posto, é relacionado por parentesco e aliança política tradicionalmente a Dionísio Antonio, tanto que Adilson Antonio, filho de Dionísio, tornou-se vice-Cacique e o próprio Dionísio faz parte da liderança, como membro do conselho tribal. Na realidade um processo de fragmentação da facção do cruzeiro se verificou, principalmente após a morte de Lino de Oliveira, que ao que parece, era quem dava coesão ao conjunto de famílias, permitindo sua constituição em conjuntos de ação política. Houveram dissidências entre Dionísio Antonio que passou a liderar as famílias da Vila Santa Cruz, e Alírio de Oliveira, que passou a liderar os moradores da Vila Cruzeiro. Outras crises entre estes grupos familiares iriam se verificar em diferentes momentos, e muitos indivíduos iriam buscar alianças com antigos adversários, como o Sabino, além do fato de que várias trocas matrimoniais se deram entre os Albuquerque e os Turíbio, Antonio e Pedro. Também na facção do Mangao um processo similar se verificou. Os irmãos, Esídio, Sabino e Rafael Albuquerque entraram em conflito. Durante a nossa pesquisa de campo vimos depoimentos sobre os conflitos entre Sabino e Esídio: “Sabino e seu irmão Esídio Albuquerque não se dão. Por exemplo, na época que o Sabino era vereador, Inácio perguntou ao Sabino porque não fazia projeto para a comunidade, e ele respondeu “o cacique não trabalha junto comigo”. (Inácio Faustino, 2004), o que é corroborado (ver Ladeira 2001), que diz que Esídio é “o maior desafeto político de Sabino”. Também continua existindo uma rixa entre Dionísio e Sabino, apesar de um filho de Dionísio ser casado com uma filha de Sabino. Antigas lideranças de Sabino, como Sabino Lipú, que foi vice-cacique, passaram a atuar com o grupo de Alírio e Argemiro. Assim, a mobilidade dos indivíduos e grupos familiares, característico da organização faccional, se encontra em Cachoeirinha. A disputa pelo controle dos recursos – econômicos e políticos – precipitou este processo e seu desenvolvimento. Os conflitos de sucessão dos anos 1980, quando uma facção liderada por Sabino Albuquerque começou a desencadear uma política de oposição à facção dominante e à FUNAI, na realidade não eclodiram somente em razão da política do “óleo e da semente”. No fundo deste 301 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional processo, estava uma outra questão: a da substituição de uma facção (composta por grupos familiares que controlaram a política de Cachoeirinha por anos, através da colaboração direta com o SPI/FUNAI) por outra, que incluía grupos familiares de uma parentela que foi deslocada da posição política dominante, no processo de construção da reserva em 1904-1910. Além disso, existiam rixas e rivalidades entre as famílias, em razão de diversos fatores, como o “exercício monopólico do poder” – que ia desde a exclusão do acesso a recursos, até a repressão política e imposição de situações vexatórias e formas de exclusão ideológica, como as fofocas e o não reconhecimento da identidade indígena (como é o caso de Sabino). Esta rivalidade ganhou expressão territorial. A cisão Cruzeiro X Mangao deve ser vista como um parte de um drama social, que na realidade reativa e explicita conflitos e contradições históricas dentro da aldeia, que remontam aos primeiros dramas de sucessão. É importante notar que durante muito tempo, esta forma de organização territorial dos Terena em “bairros” ou grupos vicinais, de onde surgiam os tuuti, líderes políticos e religiosos, foi ignorada. Estes bairros expressam a descentralização da autoridade política, e conseqüentemente produzem uma grande instabilidade, levando aos contínuos conflitos de sucessão. No cerne de todo este processo está à problemática do regime tutelar. O exercício do poder tutelar dependia de uma colaboração continua do SPI/FUNAI com segmentos dos grupos indígenas. O poder monopólico e centralizado era compartilhado com facções indígenas que exerciam este poder, em nome de seus interesses e do Estado, excluindo outras facções locais. Os poderes inerentes ao regime tutelar – controlar o acesso ao território e movimentos dos indígenas, realizar a gestão dos bens, e exercer a representação política – tornaram-se objeto de contestação e disputa; as facções contestavam os poderes e o regime tutelar porque contestavam o domínio das facções rivais; assim, as forma de resistência contra a tutela são também formas de luta política interna, de maneira que não faz nenhum sentido considerar a centralização política como um fator acessório ou externo. Diferentemente das representações do discurso indigenista, que são reforçadas por certas teses sociológicas, os conflitos entre os próprios indígenas não são a conseqüência de uma mera intervenção externa. Na realidade a centralização estatal não eliminou a descentralização segmentar (que compreendia conflitos entre os próprios indígenas), ao contrário, atuou sobre ela acentuou e transformou numa descentralização segmentar- faccional. O processo de imposição de uma estrutura de poder e chefia centralizada, assimilada em parte pelos Terena, teve como contrapartida um processo de descentralização faccional. A centralização levou ao faccionalismo; o favorecimento de um grupo de famílias recrutadas dentro de certo grupo vicinal produziu uma cristalização do poder em uma “aristocracia indígena”; um grupo que detinha privilégios e poderes especiais concedidos pelo Estado em razão de (e em quanto durasse) sua colaboração para com as agências estatais, no caso, as instituições tutelares. 302 Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional Esta descentralização surgiu também da própria política produtivista de formação de “novas roças”, que era incentivada pelo SPI e FUNAI – especialmente através da nova modalidade de empreendimentos indigenistas, os projetos agrícolas. Os grupos domésticos deslocados para as áreas de roça levavam consigo o modelo de organização social, e rapidamente as famílias se transformaram em agrupamentos residenciais e conjuntos de ação política. A partir deste momento, ocorreu uma pluralização das chefias, relativamente tolerada, mas não totalmente sancionada pela FUNAI – o que possibilitou o aparecimento de novas aldeias e caciques. Esta centralização política coexiste assim com uma descentralização administrativa, que se tornaria também faccional, e ambas são na realidade, causa e efeito uma da outra. O faccionalismo, conseqüência direta do regime tutelar e também das estratégias de resistência e formas de organização social e cultural do grupo, levaram a transformações significativas no regime tutelar, com a mudança em aspectos importantes de sua configuração, ao mesmo tempo garantindo sua reprodução. 303 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Capítulo 6 – A Co-gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e a resistência cotidiana. “Meus povos temos que aprender a dirigir o barco, para nós possamos ser acreditado e respeitado por “PURUTUYE”, por que um dia nós veremos a realização dos nossos trabalhos, para que as nossas comunidades possam ver nos próprios olhos o que eu sonhei, porque eu sinto muito quando eu vejo minha comunidade esquecida pelos projetos de nosso município. As muitas vezes nós elegemos os “PURUTUYE”, que nunca teve retorno para os nossos povos, porque eles não sabem o que nossas comunidades precisam, mas eu sei o que meu povo lamenta, eu nasci e cresci nesta comunidade dos Terenas da aldeia Argola e grande Cachoeirinha. É por isso que eu estou nesta luta, para ser candidato a vereador dos “COPENÓTI”, para ser representante”. Proposta Política do Candidato a Vereador Aldo da Silva para todos os povos indígenas Terena, 2004. O processo de construção das facções indígenas e de resistência ao regime tutelar em Cachoeirinha, não se esgotou na disputa pelo posto de cacique. Na realidade, este processo se estende para diversos domínios: a política local, a política indigenista, o cotidiano das relações sociais dentro e fora da aldeia. Iremos analisar agora alguns dos processos sociais mais importantes ocorridos em Cachoeirinha: a formação das “associações” indígenas; a luta pela autonomia dos “setores” contra o cacique geral; o novo processo de territorialização desencadeado pela “retomada” de terras tradicionais. As idéias sintetizadas no lema “vamos dirigir o barco” do candidato indígena Aldo da Silva mostram essa vontade política dos índios de “ocuparem espaços”, de “gerirem” instituições e recursos – materiais e simbólicos. Iremos descrever e analisar como as transformações nas relações entre Índios e Estado e no próprio regime tutelar, são marcadas por múltiplas contradições – que levam ao aprofundamento das tensões entre as formas de resistência e o projeto de co-gestão indígena, e ao mesmo tempo como esta última tem exigido um fortalecimento das “dominações horizontais” no contexto das aldeias de Cachoeirinha. 6.1 - A formação das Associações Indígenas Iremos descrever abaixo a história de duas associações indígenas (AITECA e ACIC) formadas nos anos 1980/1990 como produtos da luta verificada entre duas grandes facções indígenas. 304 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. AITECA Atualmente Cachoeirinha possui praticamente uma dezena das chamadas “Associações”. Mas a maior parte destas associações indígenas tem existência efêmera; algumas se formam e logo desaparecem, muitas vezes sequer conseguem obter registro legal e realizar sua principal função – possibilitar a representação dos grupos indígenas perante organismos estatais e outras organizações e instituições sociais e obter “recursos” e “projetos” para a “comunidade”. A mais sólida é a AITECA (Associação Indígena Terena da Cachoeirinha), que dispõe de Sede própria, 2 tratores e maquinário. Algumas outras Associações existem na Sede, como a ACIC (Associação da Comunidade Indígena Terena de Cachoeirinha). A AITECA foi constituída em outubro de 1989, na mesma conjuntura em que Cachoeirinha apresentava a cisão entre “Cruzeiro e Mangao”, lutas faccionais e conflitos de sucessão. A facção de Sabino Albuquerque, que já havia estabelecido uma aliança política com o CTI, consolida esta relação e o processo de “ruptura política” com a FUNAI, ao implementar o processo de constituição desta nova organização: “Ata da Assembléia Geral de Constituição da Associação Indígena Terena de Cachoeirinha. Aos 12 (doze) dias do mês de Outubro, do ano de 1989 no local da reunião, sito na Aldeia Cachoeirinha município de Miranda, estado do Mato Grosso do Sul, reuniram-se as pessoas a seguir indicadas, com o propósito de constituírem uma associação de produtores rurais indígenas, sob a forma de uma sociedade civil sem fins lucrativos. Para coordenar os trabalhos, a Assembléia escolheu, por aclamação, o senhor Gaudêncio Henrique que convidou a mim Luís Cláudio Bona, para lavrar esta ata. Seguidamente se procedeu a leitura, discussão e esclarecimentos finais do estatuto social, o que foi feito artigo por artigo. O Estatuto foi aprovado pelo voto de todas as pessoas anteriormente identificadas no prosseguimento dos trabalhos. A assembléia procedeu à eleição dos primeiros membros da Diretoria: Diretor Presidente: Sabino Albuquerque; Diretor Vice-Presidente: Alberto Albuquerque; 1 e 2 Diretores Secretários: respectivamente Elcio Albuquerque e Gilberto Augusto;1 e 2 Diretores Tesoureiros, respectivamente Gaudêncio Henrique e Aliana Alfredo Pinto; para membros efetivos do conselho fiscal Hélio Albuquerque, Bento Silvério e Maria Aparecida; como suplentes do Conselho Fiscal, Cecílio Lipú, Milton Pires e Sabino Lipú. Todos os membros já eleitos já se encontram devidamente identificados nesta ata. Após a eleição e tomada a posse de todos os membros, o presidente da mesa declarou definitivamente constituída a Associação Indígena Terena da Cachoeirinha – AITECA com administração e Sede na aldeia da Cachoeirinha, município de Miranda, Estado do Mato Grosso do Sul, sociedade civil sem fins lucrativos, criada ao abrigo do Código Civil brasileiro que terá como objetivo a prestação de quaisquer serviços que possam contribuir para o fomento e racionalização das explorações agropecuárias e artesanais em geral e para melhorar as condições de vida de seus associados”. (Ata de Fundação da AITECA, 1989). A escolha de Sabino Albuquerque para presidente, seu irmão Alberto para vice, seu sobrinho Élcio para secretário, e seu irmão Hélio para Conselho Fiscal, marcam a proeminência da família Albuquerque na fundação desta associação. Gaudêncio Henrique era um antigo companheiro de 305 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Sabino, sendo presidente do seu Conselho Tribal e também articulador importante dentro da facção em meados dos anos 1980. Nos documentos de fundação da AITECA (ata e estatuto) estão os no mes de 47 pessoas (28 homens e 19 mulheres). Destes indivíduos destacam-se 8 da família Polidório (7 mulheres e 1 homem) e 8 da família Albuquerque (7 homens e 1 mulher). Abaixo podemos ver o quadro completo dos fundadores: Gaudêncio Henrique, 39 anos Laurindo José Muchacho, 43 anos Antonio Muchacho, 74 anos Camilo Henrique, 62 anos Cecílio Lipú Cesário Canali Barbosa, 64 anos João Lipú, 74 anos Ramão Vitor, 31 anos Otacílio Canali, 49 anos Marcelino da Silva, 44 anos Antonio da Silva, 44 anos Ricardo anos Lemes, 34 Maria Aparecida Pedro, 38 anos Elias anos Rafael Albuquerque, 58 anos Eniá anos Polidório, 43 Letícia Polidório, 54 anos Hélio Albuquerque, 52 anos Milton Pires, 39 anos Sebastiana Polidório, 30 anos Cláudia Timóteo, 60 anos. Sabino Albuquerque, 40 anos Aleixo anos Dilma da Silva, 27 anos Maria Fátima Canale 15 anos Alberto Albuquerque, 37 anos Gilberto Augusto, 37 anos Assunção Pedro, 38 anos. Esídio Albuquerque, 43 anos Lucia Pereira, anos. Soeli Polidório, anos Elcio Albuquerque, 28 anos. Sabino Lipú, 45 anos Mário Albuquerque, 39 anos. Alberto Polidório, 75 anos Genésia Pinto, 36 anos Idalina Polidório, 44 anos Cândida da Silva, 39 anos Emiliana da Silva, 56 anos Feliciana Polidório, 39 anos. Donalita Polidório, 54 anos Valdelina Pereira 17 anos Eusinda Albuquerque, 17 anos. Aliana Alfredo Pinto, 30 anos Antonio, Bento Silvério, anos Jacinto Samuel, anos 42 33 37 Pinto, Lemes, 56 59 Feliana anos 69 29 Na realidade tratam-se de algumas famílias inter-relacionadas por parentesco e que seguem também um padrão de co-residência. Além dos membros das famílias Albuquerque e Polidório, estavam entre os fundadores 5 membros da família “Silva”, 2 membros da família “Muchacho”, 2 membros da família “Henrique” e 3 membros das famílias “Lipú”, “Pinto” e “Canali” (e indivíduos de sobrenome Lemes, Pires, Pereira, Vitor, Pedro e Timóteo). Os indivíduos acima citados nos documentos são oriundos de famílias que mantêm trocas matrimoniais e estão inter-relacionadas por parentesco há algumas gerações, além de manterem formas de cooperação econômica e ação política comuns. Enquanto os irmãos e a família Albuquerque se destacam como articuladores políticos das facções e da iniciativa de formação da nova associação, a família Polidório (de um antigo naati), figura como uma parentela extensa na qual os diferentes indivíduos e famílias buscam esposas e alianças políticas e matrimoniais. A análise interna da composição deste grupo irá revelar exatamente isto. 306 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Essas famílias estão fixadas, praticamente todas elas, na área ou nas vilas da antiga “Mangao”, e algumas delas são da aldeia Morrinho. Os irmãos Laurindo José Muchacho e Antonio Muchacho, por exemplo, residiam no que hoje é a “Vila América”. Os irmãos Albuquerque residiam a princípio no Morrinho e alguns deles ainda moram numa área mais retirada (como Esídio Albuquerque que mora na área conhecida como Carrapatinho e Rafael Albuquerque, que mora nos limites da Sede com o Morrinho, sendo que Sabino se transferiu para a Sede, vindo a construir sua casa no centro da aldeia). Uma exceção importante é a de Ricardo Pinto. Ele residia com sua família na antiga área do “Cruzeiro”. Mas é importante indicar que ele e sua família nuclear se tornaram uma base de apoio político de Sabino Albuquerque, que casou-se com Genésia Pinto, uma das filhas de Ricardo sendo assim “genro” deste último. Genésia é também uma das fundadoras da AITECA, assim como sua irmã, Aliana Alfredo Pinto que foi inclusive indicada para a tesouraria da AITECA nesta primeira gestão. Já Hélio Albuquerque, um dos irmãos de Sabino era casado com Idalina Polidório, filha de Alberto Polidório e Júlia Pereira. Tanto Alberto como Idalina Polidório (e suas irmãs, Feliciana, Sebastiana, Donalita e Soeli Polidório) estão entre os fundadores da AITECA. A parentela de Alberto Polidório, sogro de Hélio Albuquerque, reforçou assim a base de mobilização desta associação. Antonio Muchacho, um dos fundadores da AITECA, é pai de Mariana Muchacho casada com Assunção Pedro, outro dos fundadores da AITECA, ou seja, mais uma vez a relação “sogro-genro” sustenta a ação política e organização indígena. Lourenço Muchacho, que viria a ser cacique de Cachoeirinha 13 anos depois é também filho de Antonio Muchacho, e por sua vez é casado com Luzia Albuquerque, uma das filhas de Hélio Albuquerque, irmão de Sabino. A criação desta Associação deu expressão formal para as bases da mobilização política Terena (relações de parentesco e vizinhança), de forma que as facções políticas constituídas para a luta pelo poder local dentro da aldeia, se valeram da formação deste tipo de organização como uma tática de resistência contra os esquemas de distribuição de poder impostos pela FUNAI e pelo regime tutelar. A formação da Associação visava garantir a auto-representação indígena perante a sociedade e o Estado em meio à cisão da aldeia indica isto. Elcio Albuquerque, que foi secretário da AITECA por mais de 10 anos, disse sobre a história desta associação: “existia a briga de duas facções de caciques, uma era amparada pela FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se pegavam na reunião, se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e as janelas pregadas. (... )O clima era tenso, era muito perigoso, o Dionísio tinha o apoio da FUNAI, que não apoiava quem ficava do lado do Sabino, não tinha recurso para lavoura, nem, trator nem semente, por isso que fundou a AITECA, por causa desse conflito”. " (Elcio Albuquerque, 2004, 2006). 307 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Quer dizer, a monopolização dos recursos e poderes garantida a certas facções indígenas através de uma relação de colaboração/aliança com a FUNAI, e que somava-se a rixas existentes entre grupos familiares de diferentes vilas, é que levou não somente a cisão entre “Cruzeiro e Mangao”, mas também a formação de associações como parte de uma política de oposição às facções indígenas dominantes na política aldeã e também de oposição a FUNAI, como vemos pelo depoimento de Sabino Albuquerque: Como foi a construção da AITECA? “A AITECA foi nós que iniciou o Governo queria que fizesse, tem até uma emenda, depois falaram assim nós tem que fazer associação pro Governador, pro Estado, pra poder atender o grupo, vai mudar a FUNAI e ai FUNAI não queria ouvir nós, queria bater pé, fazer o que quer, dominar o cacique, dominar a comunidade. Pra fazer a demarcação, onde foi a primeira associação que existiu aqui foi a AITECA. Ai foi isso. Trabalhando, compramos trator. O que eu queria mesmo é essa regulamentação que tá na mão do ministro que a gente tá ficando velho, o que eu queria mais era deixar um histórico para minha família, o que eu queria realizar esse trabalho até agora, tem muitas pessoas brancos... Isso que eu queria, pra comunidade branca ver que o índio tem condição de trabalhar sozinho. (Sabino Albuquerque, Outubro/2004). Vemos pelo discurso de Sabino, que a criação da AITECA estava associada a diversos elementos: 1) a oposição a “dominação da FUNAI sobre o Cacique”;2) a vontade política de encaminhar a luta pela redefinição dos limites de Cachoeirinha, a luta pela terra; 3) a compra de maquinário, especialmente de tratores; 4) deixar um “histórico” para a família e ao mesmo tempo garantir a auto-afirmação da capacidade indígena perante a sociedade regional “branca”. Este discurso sintetiza grande parte das idéias, símbolos, interesses, práticas e questões implicadas nas formações das associações indígenas. A AITECA surgiu assim tendo por base um conjunto de famílias integrantes de certos grupos vicinais, algumas delas muito antigas e importantes dentro de Cachoeirinha; na realidade, foi a facção do Mangao que através da aliança estabelecida com o CTI (num contexto em que a disputa com a facção rival aliada a FUNAI estava extremamente acirrada) construiu a AITECA. A AITECA é fruto desta aliança política com um – naquele momento - novo ator histórico, que possibilitava outros canais de recursos materiais e espaços políticos. Ao longo dos anos 1990, AITECA desenvolveria ainda outros projetos voltados para Agricultura, e hoje ela continua em atividade. Analisando o livro ata da AITECA, pudemos ver que ela manteve suas atividades e reuniões regularmente ao longo de 15 anos. Foram pelo menos 24 assembléias entre 1992 e 2003 e ainda 6 reuniões de diretoria. O número de presentes nas assembléias oscila bastante ao longo dos anos. O quadro abaixo permite uma visualização das atividades da AITECA registradas em seu livro ata, constando os temários e o número de presentes (quando foi possível contabilizar esta informação). 308 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. 1992 Assembléia 17/04/1992 – admissão de novos membros. : Sabino Lipú, Elias Antonio e Antonio da Silva demitiram-se da AITECA. 1993 Assembléia 25/04/1993 – assembléia de eleição de diretoria. Foi eleito para presidente Esídio Albuquerque, vice Cecílio Lipú; Assembléia 07/07/1993 – emenda de admissão de novos membros, 1994 Assembléia 01/05/1994 – a pauta do dia. Sendo o ponto principal a renovação do mandato da atual diretoria e discussão sobre alteração do artigo 27 parágrafo 18 dos estatutos. 46 presentes. Assembléia 01/05/1994 – às 11:45h, para deliberar sobre prorrogação de prazo de mandato da Diretoria. Aprovada mudança de mandato para 4 anos. 2000 26/07/2000 – reunião extraordinária da Diretoria, devido ao falecimento de Alberto Albuquerque. Criticas da diretoria ao antigo presidente. 1996 Assembléia 08/10/1996 – reunião com representantes do Governo Estadual. 22 presentes. 1997 Assembléia 09/05/1997 – discute o trabalho na lavoura e o repasse de recursos 31 presentes Assembléia 28/01/1997 – Debate a dificuldade da AITECA na gestão do prefeito. Assembléia 24/05/1997 – discute a adesão de novos membros. 9 Presentes. Assembléia 30/06/1997 – discute a adesão de novos membros e prioridade no atendimento com o maquinário da AITECA. 30 presentes Assembléia 07/07/1997 – informe do presidente Esídio sobre obtenção de recursos como Cacique e Presidente para a AITECA. 41 presentes Assembléia 04/08/1997 - reunião extraordinária da diretoria/troca de 4 touros por tanque de combustível de 5.000 litros (Cecílio Lipú,Antonio Muchacho e outros) Assembléia 06/08/1997 – assembléia geral aprova troca do tanque de combustível. 20 presentes (Sem Sabino) Assembléia 15/09/1997 – na Gleba da AITECA, 13 presentes. Assembléia 17/09/1997 – filiação de novos sócios. 1998 Assembléia 13/03/1998 – discute a sucessão do presidente da AITECA. Informa dos “projetos”. 32 presentes Assembléia 23/04/1998 – debate sobre a sucessão na AITECA:candidatos: Mario, Esidio, Alberto Albuquerque. 42 presentes Assembléia 26/04/1998 – eleição da AITECA. É eleito o Alberto Albuquerque com 35 votos; Mario tem 20 e Esídio tem 13 (2 votos nulos). Assembléia 27/0/1998 – posse da nova diretoria da AITECA. Fala da necessidade de integrar efetivamente as mulheres na AITECA, por estarem ausentes das assembléias e etc. 40 presentes. 2002 06/05/2002 – reunião de diretoria. Coloca que o Mário Albuquerque para se candidatar a Cacique deverá deixar o cargo de presidente da AITECA. 15/11/2002 – reunião de diretoria. 2003 05/01/2003 – reunião de diretoria. Assembléia 07/01/2003 –, assuntos relativos a trator. 36 presentes. 27/01/2003 – reunião de diretoria com o CTI, para analisar os projetos em comum. Rogério Resende reclama das fofocas e discute-se a parceria com o CTI irá continuar ou não. Projeto com ceramistas a ser desenvolvido pela antropóloga Bernadete. 28/01/2003 – reunião de diretoria, conflito da câmera com Elcio Albuquerque, que diz estar sendo tratado como “ladrão” pela atual d iretoria. Assembléia Geral – discute projetos com o CTI. Elcio defende aliança com o Governo Estadual através da parceria com, o CTI. 34 presentes. 2001 Assembléia 21/03/2001 – pauta, eleição do presidente da AITECA. Eleito Mário Albuquerque por unanimidade. 49 presentes. Assembléia 25/03/2001 – posse da nova diretoria. 37 presentes Assembléia 04/06/2001 – reunião com representante do CTI para discutir projeto agrícola (viveiro de mudas de arvores de lei e frutíferas). 24 presentes 309 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Com relação ao quadro de associados, verifica-se tanto a admissão de novos membros quanto a demissão de fundadores, como acontece na assembléia de 1992, quando Sabino Lipú e Elias Antonio – o primeiro foi vice-cacique de Sabino Albuquerque, mas mudaria de “facção”. Sabino Lipú é irmão de Aracy Gonçalves Lipú, mãe de Marlene Lipú, que viria a casar-se com Argemiro Turíbio (morador e membro da facção do “Cruzeiro”), e aderiu à Associação fundada naquele mesmo ano pelo grupo do Cruzeiro. Elias Antonio, que foi presidente do Conselho Tribal do Morrinho, também entraria para tal associação. Com relação ao temário das assembléias é interessante observar que estes são referidos exclusivamente a assuntos que envolvem a produção agropecuária; são dois projetos discutidos no ano de 2001, um relativo a formação de um viveiro de mudas de árvores frutíferas e madeiras de lei e outras envolvendo as mulheres ceramistas, ambos do CTI. Discussões sobre a aquisição de tratores, maquinários, óleo e semente também são feitas. Os únicos pontos que não dizem respeito a tais questões, são relativos à política e negociação com Governos e FUNAI ou então a sucessão do presidente da associação. O quadro permite ver que foram os irmãos Albuquerque que se revezaram na presidência da AITECA entre 1989 e 2003; primeiramente Sabino, depois Esídio, Alberto e Mário Albuquerque. E neste aspecto (da sucessão do presidente da associação) que é interessante ver que mesmo dentro das associações os conflitos políticos apareceram, com relação a definição do presidente. Os irmãos Albuquerque entraram numa dura disputa pelo controle da Associação. Na assembléia da AITECA de 01/05/1994, vemos este debate. “Em seguida foi apresentada a pauta do dia. Sendo o ponto principal a renovação do mandato da atual diretoria e discussão sobre alteração do artigo 27 parágrafo 18 dos estatutos, o que só poderá ser feito em Assembléia Geral extraordinária com um mínimo de 2/3 dos sócios presentes. Abriu -se a discussão com a argumentação de Sabino que falou ser contrário a prorrogação do mandato do Esídio por ele estar se candidatando também à capitania da aldeia, Sabino reclamou que sendo ele o representante da AITECA, eleito vereador, ficou isolado pelo Grupo. Surgiram protestos de alguns presentes e do atual presidente, que argumentou que o assunto em pauta não tem nada a ver com a vereança do Sabino e com a disputa da capitania. O Coordenador garantiu a palavra ao Sabino para que se manifestasse. A discussão desse tema ficaria para a diretoria decidir com encaminhá-lo. Sabino argumentou que seus objetivos são os de garantir os direitos dos associados. Ele acha que acumular dois cargos seria prejudicial a AITECA. Houve nova discussão, sem ordem de falação. (...) Sabino ainda falou que não está sendo convidado para as reuniões, nem sua mulher, que é associada e do grupo de ceramistas. Novamente foi interrompido e o coordenador pediu para garantirem a palavra a quem está falando. Rafael rebateu falando que o Sabino já teve dois cargos antes e que agora ele não quer que o Esídio tenha e que isto foi uma escolha da comunidade. Sabino reclamou que não foi chamado para a escolha de capitão dizendo que fizeram uma escolha fechada e que Esídio tinha oferecido o cargo de cabeçante para outros. Foi contestado mas disse ter provas. 310 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Teve manifestação garantindo que a escolha do Esídio para os dois cargos foi do povo, assim como fizeram para o Sabino. Novo tumulto e o Esídio disse que já esperava esta manifestação do Sabino. Apesar de que deixaram ele falar e ele mesmo está demonstrando ser o agitador. Sabino argumentou que no mínimo devia assumir o cargo de vice da Aiteca para não haver acúmulo de cargos e que agora já se mostra que não estão dando conta de preparar as áreas de roças, que ficam atendendo outra aldeia, deixando pra trás os associados. Rafael contestou e mais outros, dizendo que no tempo dele é que não podiam fazer roça direito porque Sabino não administrava as máquinas e que várias vezes usava só para seu benefício. Hélio comentou que a escolha do Conselho da capitania será feita à parte da associação para que não tenha mistura com o conselho da Aiteca. Falou também de que é uma pessoa bem aceita pelos adversários e que o Sabino não é: o pessoal tem desconfiança.” Sabino entra em choque direto com seu irmão Esídio, que é escolhido tanto para a presidência da AITECA quanto para ser candidato a “capitania”, ou seja, para disputar as eleições para cacique (que acabaria vencendo em 1994). A assembléia de 01/05 transcorreria em clima acirrado, com interrupções das intervenções dos diferentes grupos em disputa, Sabino denuncia que a diretoria marca as reuniões no dia das sessões da câmara (às segunda- feira), impossibilitando-o de participar. Rafael Albuquerque e Esídio rebatem as acusações de Sabino. Uma assembléia extraordinária é convocada para o mesmo dia, 15 minutos após o termino da primeira, que contou com 46 associados presentes. Ao fim, é mudado o mandato do presidente da associação, que deixa de ser de 1 ano para ser de 4 anos. Sabino e Esídio passam a estar em lados políticos opostos. A AITECA por sua vez, e os diversos grupos familiares que compõem os seus quadros conseguem garantir mais uma vez a eleição do seu candidato a cacique. Assim, ao longo da década de 1990, as associações passam a desempenhar um papel cada vez mais importante: a princípio, elas surgem como uma forma de escapar ao controle exercido pela FUNAI sobre o Cacique (através das trocas de “óleo e semente” por “obediência e lealdade política” ); num segundo momento, a AITECA torna-se um espaço de articulação para a conquista da poder político local e de interação com a FUNAI, já que é no âmbito da associação, que se decide quem será o candidato a Cacique, por exemplo. Entretanto, as estratégias individuais não são diluídas nesta associação. Os conflitos entre os irmãos Albuquerque revelam isso; as facções políticas se multiplicam e os conflitos eclodem dentro da própria associação. A vontade de um líder de ocupar um cargo ou posição de poder (posto de presidente da associação, cargo de vereador ou cacique) criaram cisões no interior mesmo das associações. Além disso, o estabelecimento de no vas relações de parentesco e afinidade, possibilitaram também a mudança de facções e associações de alguns indivíduos, como Sabino Lipú, que havia sido vice-cacique de Sabino Albuquerque entre 1988-1991, ou seja, como membro da facção do “Mangao”. Entre os anos de 2000 e 2006, a AITECA continuaria como as outras associações, a desempenhar um papel importante, tanto nas questões relativas a produção quanto a política local. A formação desta Associação abriu caminho para o desenvolvimento de outras associações similares, como veremos abaixo. 311 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. “O caminho a ser seguido”: a criação da ACIC A Associação da Comunidade Indígena Cachoeirinha foi criada em 23/09/1992. A assembléia foi realizada na Sede do Posto Indígena da FUNAI. Assim é descrita a assembléia na ata de fundação da organização: “As oitos horas e trinta minutos do dia 23 de setembro de um mil novecentos e noventa e dois, na Sede do Posto Indígena Cachoeirinha realizou-se a reunião das lideranças da comunidade de Cachoeirinha pra assembléia geral para discutirem quanto a criação de uma associação por motivo de dificuldade que as lideranças vinham enfrentando nas suas reivindicações, assim sendo analisado e discutido e resolveram criar a associação para facilitar qualquer trabalho a serem realizado na Comunidade, assim criou-se a associação denominado “A.C.I.C.”, Associação da Comunidade Indígena de Cachoeirinha e para definição da sua composição esta mesma reunião foi presidida pelo Cacique Geral sr. Argemiro Turíbio, iniciando que a mesma fora convocada para escolher a composição da diretoria da associação, salientem-se que os que forem se associar não poderão sair para trabalhar fora da aldeia, para não complicar a situação. E na mesma pauta frisou-se ainda que futuramente os associados terão que colaborar para a compra de um trator, através da união de todos e todos os líderes da Comunidade Argola, Babaçu, Morrinho e Sede decidiram pela criação dessa associação. (...) (Livro Ata da ACIC, p. 2) Os documentos da entidade indicam que assembléia foi realizada com a presença dos caciques da Argola, Babaçu, Morrinho e Sede. O nome do indicado para presidir a assembléia de fundação foi o então Cacique Geral, Argemiro Turíbio. Podemos ver também que as motivações para a formação da “associação” se relacionam à percepção que os índios estavam tendo sobre a dificuldade de obter recursos e implementos agrícolas. Na definição dos objetivos/atividades da associação consta apenas a seguinte indicação: “...e uma das principais atividades da associação será de garantir o aumento da produção e de boa qualidade de vida e aquisição de implementos agrícolas”. (Livro Ata da ACIC, p. 2). A ACIC se forma com o objetivo de reunir os indígenas para organização do trabalho e produção, para obtenção de recursos externos e para a aquisição de tecnologia que permitisse o aumento da capacidade das forças produtivas locais. A presença dos 4 caciques de Cachoeirinha, indica que esta associação era pensada como “representativa” da comunidade indígena como um todo. Mas analisando a composição dos associados, e os nomes indicados pela assembléia para os órgãos diretivos da entidade, veremos que esta associação se produz no seio de uma rede particular de grupos de parentesco, que formaram num certo contexto, conjuntos de ação, com objetivos determinados. A ação continuada destes conjuntos estruturados em tornos destes grupos de parentesco e certas lideranças é que podemos chamar de uma facção política local. Na estrutura organizacional da ACIC foi indicado um “Conselho Consultivo”, composto pelos seguintes membros: Alírio de Oliveira Metelo (presidente), Isidoro Lemes, Luis Martins da 312 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Silva, João Miguel, João Niceto e Temiz Arruda. Como membros do Conselho Fiscal, Félix Cândido Antonio, Elias Antonio, Dionísio Antonio, Cecílio Antonio e Venâncio Barbosa. Na diretoria executiva Mamédio Pedro, Raul Félix Antônio, Daniel Pinto e Sabino Lipú. Na assembléia de fundação 53 homens assinaram o livro ata, sendo assim os associados fundadores, como podemos ver abaixo. Danilo Paiva Cecílio Antonio Venâncio Barbosa Temiz de Arruda Felix Antonio Adão de Oliveira Raul Antonio Pedro Manoel Luis Martins Silva Elias Antonio da Zacarias da Silva Isidoro Lemes Sabino Lipú Maurílio Pedro Egídio Barbosa Simão da Silva Marcos de Oliveira Daniel Pinto Afonso Pinto Cirilo Raimundo Robson Júlio Sebastião Miguel Basílio Martins Ariano Rodrigues Metello Dorival Antonio Odenir Barbosa Alírio de Oliveira Reinaldo de Oliveira Lírio Lemes Bartolino da Silva Albertino Júlio Porfírio Martins Isidoro Lemes Antonio Lemes Ramão da Silva Acácio Muchacho João Martins João Miguel Júlio Martins Florentino Martins Sebastião Vieira Gilberto Augusto Alinor de Oliveira Antonio Júlio Mário Lemes Dionísio Antonio Adailton Júlio Varmedir Antonio Admir Turíbio Adão Joaquim Maurício Antonio Gilberto Turíbio Mas se observamos atentamente a sua composição, veremos que elas fornecem informações importantes. No seu conselho consultivo estão Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto, os membros da facção do cruzeiro. No Conselho Fiscal estavam Félix Cândio Antonio, um dos fundadores da Igreja Uniedas e presidente do Conselho Tribal de Dionísio Antonio, Elias Antonio, velho dirigente da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e Dionísio Antonio, ex-cacique de Cachoeirinha, também nos anos 1980, e principal líder da facção do cruzeiro. Podemos perceber que entre os associados fundadores da ACIC, se destacam algumas famílias: a família Antonio (com seis membros), a família Oliveira Metelo (com seis membros), a família Lemes com 5 membros, a família Pinto com 4 membros, a família Júlio com 3 membros, e a família Turíbio com 3 membros. Na verdade, estes indivíduos estão inter-relacionados por parentesco, além de compartilharem atividades mágico-religiosas e políticas. Argemiro Turíbio, que então era o Cacique Geral, e presidiu a assembléia de fundação da ACIC, é filho de uma das irmãs de Alírio, e conseqüentemente, neto de Lino de Oliveira Metelo. Dionísio Antonio, é outro ex-cacique, e foi ele quem disputou no final dos anos 1980, com Sabino Albuquerque, a posição de Cacique Geral, durante o período em que a Sede ficou “cindida” e com dois “Caciques”. Ao longo dos anos 1990, a ACIC manteve também suas atividades. O quadro abaixo mostra as atividades registradas em ata, num total de 6 assembléias num período de 4 anos: 1993 Assembléia de 31/0/1993 – reunião realizada na escola Nicolau Horta Barbosa. Delibera sobre roça coletiva dos associados. 30 membros presentes 1994 Assembléia 23/04/1994 – eleição de nova diretoria, 73 membros presentes na assembléia Assembléia 23/06/1994, na casa de Dionísio, que 313 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Assembléia de 02/02/1993, em assembléia realizada no PI Cachoeirinha, sob presidência de Adailton Júlio. Desligaram-se da associação Cirilo Raimundo, Antonio Joaquim e Isidoro Lemes, por não estarem cumprindo o item do estatuto de não fazer “changa” informa do registro da associação. Estabelecido critério para requisição de “sementes” na associação (quem pega paga com a colheita). A Sede da associação seria construída nas imediações da casa de Gilberto Turíbio. 21 presentes Assembléia 21/03/1993 – realizada na quadra esportiva da aldeia Cachoeirinha, discutiram solicitação de Anésio Pinto para ajudar o mutirão: 38 membros presentes na assembléia 1995 Assembléia 12/02/1995- Dionísio Antonio pede demissão da função de presidente da associação, e assume o cargo Pedro Alcântara. 25 membros presentes. 1997 Nova solicitação de registro da entidade, desta vez encaminhada por Argemiro Turíbio. É interessante que o temário das assembléias da ACIC tratam quase que exclusivamente da produção agropecuária e mencionam questões políticas internas. Estas atividades reuniam principalmente os membros da antiga facção do cruzeiro. Foi a antiga facção do “cruzeiro” que se constituiu em associação, sendo primeiramente presidida por Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto Júlio; depois assumiria a presidência da entidade Dionísio Antonio, que se demitiu da função em 1995. É importante observar que Dionísio rompeu politicamente com Argemiro Turíbio e Alírio de Oliveira (os moradores da atual “vila cruzeiro”), por conta das alianças com diferentes lideranças políticas do município. Esta cisão no interior da associação representou um distanciamento relativo das antigas lideranças da facção do cruzeiro, que passaram a ter estratégias próprias e diferenciadas de relacionamento político e de trabalho. Por outro lado também esta associação iria se tornar a base de articulação dos grupos que almejavam controlar o posto do Cacique. Na realidade é emblemático que o presidente da assembléia de fundação desta associação seja o então cacique geral Argemiro Turíbio, e que esta assembléia tenha sido realizada no Posto Indígena da FUNAI; além disso, o então vice-cacique Cirilo Raimundo (que tornaria-se Cacique), também fazia parte desta associação no momento de sua fundação. Pedro Alcântara seria candidato a Cacique nas eleições de 2002 e seria derrotado. Também este espaço da associação – construída sobre as bases da organização política indígena, as “vilas” compostos por grupos familiares de certas linhagens – seria utilizado para construir a disputa política pelo cargo de Cacique. Num das atas vemos como estas associações eram acionadas para cumprir certas demandas dentro da comunidade, e como elas ao mesmo tempo apontavam para uma fragmentação da autoridade política local: 314 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. “Na pauta mencionou-se que os professores através da pessoa do professor Anésio Pinto, solicitou uma colaboração da associação uma vez que os pais dos alunos não participam do mutirão. Os associados por sua vez deram a sua posição neste termo achando injusto que outras associações existentes dentro desta comunidade ou até membro da comunidade não venha a participar do mutirão uma vez que é benefício da comunidade. Eles alegaram ainda que todos os mutirões a exemplo da limpeza somente os membros da associação vem prestando sua colaboração. Diante de tantas discussões decidiu -se que os professores tem que tentar novamente com os pais dos alunos e se não derem conta de fazer em um dia de trabalho os membros do ACIC irão auxiliar no dia seguinte”. (Livro Ata ACIC, Assembléia 21/03/2003) O caso acima é interessante porque mostra a fissão política na aldeia; ao chamado para os trabalhos em regime de mutirão, só respondia a “associação” da qual o Cacique e o vice-Cacique eram os membros. É comum que a desobediência se expresse desta forma: como uma das principais bases da autoridade do Cacique é o comando do trabalho coletivo na aldeia, a desobediência ao chamado expressa uma forma de oposição política velada. No caso acima, o professor Anésio tentou articular um mutirão para a escola e convocou a associação, mas esta se recusou a fazer um trabalho para toda a comunidade sem que outras “associações” tomassem parte nele. Entre 1997 e 2004, a ACIC continuou sua atuação, mesmo que esta – como da grande parte das associações existentes – não cumpra seus objetivos formais, mas continuam sendo uma referência interna e externa; os moradores identificam os lideres e os membros da associação, assim como as lideranças de partidos políticos e os representantes da FUNAI, que falam diretamente com estas lideranças. O papel na política local destas associações é decisivo (compreendendo tanto os conflitos dentro da aldeia quanto a inserção nos campos e arenas regionais). A ACIC se apresenta como o produto da ação de um conjunto de grupos de parentesco, articulados por relações de aliança, e que compunham a antiga facção do cruzeiro. As famílias Oliveira Metelo, Antônio, Lemes, Pinto, Júlio e Turíbio se articulam politicamente e por meio de relações parentesco há algumas gerações. A formação da ACIC visa tentar buscar re-estabelecer o poder de um conjunto de grupos de parentesco, que estavam perdendo espaço político desde os anos 1980, e também dar viabilidade para o projeto de gestão indígena das atividades produtivas. O surgimento de novas lideranças políticas locais, que conseguiram acumular dinheiro, bens, status e poder político, ameaçava seriamente o poder destes grupos. A facão rival era liderada por um gr upo de siblings, da família Albuquerque, que estava conseguindo ser bem sucedida num novo empreendimento, num novo campo de alianças, composto por instituições estatais, ONG´s e lideranças políticas locais. No novo cenário criado pela globalização, pela “redemocratização”, os esquemas de distribuição do poder local estavam sendo afetados seriamente. A formação da AITECA, e o seu “sucesso” inicial indicou o caminho a ser seguido pelos Terena. Por isso a formação de inúmeras associações, como a ACIC, cada uma delas composta por membros das antigas facções do Mangao e Cruzeiro. 315 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. A formação das associações indígenas se dá como um resultado direto dos dramas de sucessão verificados ao longo dos anos 1980, e da luta entre facções compostas por diferentes grupos vicinais. A criação da AITECA pelos principais líderes da facção do Mangao e da ACIC pelas lideranças da facção do Cruzeiro revela isso. As associações se apresentam como ma is uma tática para viabilizar o ideal de “gestão indígena”, que é concebido a partir das unidades segmentadas em que se encontram organizados os Terena do que o grupo como um todo “homogêneo’ em oposição “a sociedade regional”. A formação da AITECA e da ACIC (e das diversas organizações/associações indígenas), apresentam-se assim como resultado da combinação de três forças: 1º) da crise de um esquema de poder produzido pela situação histórica de reserva, em que a “governabilidade” das aldeias indígenas foi baseada na centralização do poder nas mãos do Chefe do Posto do SPI/FUNAI, que para melhor exercer sua ação política construiu uma relação de aliança com grupos de parentescos locais, que partilhavam o poder, através do controle da posição de Cacique; 2º) as estratégias indígenas, especialmente dos grupos de parentesco-vizinhança que se apresentam como importantes unidades de ação política no plano local; 3º) ao novo cenário econômico e institucional imposto pelo liberalismo, que reduziu os orçamentos de assistência às áreas indígenas, de um lado, e de outro, criou uma retórica de incentivo ao “associativismo”, pela criação de um mercado de financiamentos no chamado “terceiro setor”. Desta maneira, a formação das primeiras associações indígenas pode ser entendida como uma expressão da reação local a centralização política imposta pelas estruturas estatais e estatizantes. Um efeito direto e contraditório, já que em última instância, representa uma descentralização faccional que dinamiza e reproduz as mesmas estruturas e esquemas de distribuição de poder contra as quais se coloca, a princípio. As disputas de sucessão travadas ao longo dos anos 1990, na realidade expressavam a luta entre duas antigas facções (Cruzeiro e Mangao), só que agora organizadas também sob formas de associações; as cisões dentro das facções permitiram também uma recombinação das alianças de maneira que muitos membros das facções mudaram de lado ou começaram a investir em sua própria liderança pessoal, rompendo com os antigos líderes como aconteceu no caso da AITECA com os irmãos Albuquerque, e também dentro da ACIC, com Dionísio Antonio. Sabino Albuquerque iria estabelecer relações de aliança política de curta duração com antigos membros da facção do Mangao, como por exemplo, com Argemiro Turíbio, que teria sido indicado para Chefe de Posto por Sabino em 2000. Também a candidatura de Lourenço Muchacho com o apoio de alguns membros da família Belisário que são moradores da vila Santa Cruz, e relacionados por parentesco a Dionísio Antonio. Assim, o processo de segmentação dentro da aldeia Cachoeirinha é marcado por uma grande instabilidade, de maneira que estratégias individuais e familiares podem levar a 316 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. rupturas dentro de grupos de parentesco e co-residência, de forma que antigos aliados se tornam adversários e vice-versa, como é característico da dinâmica da organização faccional em geral. O importante a observar é que estas associações criaram um novo espaço de articulação política; o Cacique não seria o único representante das “comunidades indígenas”; também agora as facções indígenas constituídas sobre as bases das unidades políticas segmentadas em “vilas” com seus respectivos cabeçantes, poderiam se representar e articular diretamente com as instituições estatais, lideranças políticas locais e regionais e ONG´s. E é isto que aconteceu. O processo de descentralização faccional se acentuou, no sentido que emergiram cada vez mais as lideranças destas unidades segmentadas. Mas se de um lado as bases simbólicas e políticas da relação e regime tutelar eram relativamente abaladas pelas estratégias indígenas – e mais a frente veremos porque relativamente -, a configuração do campo e das arenas das relações interétnicas coloca o clientelismo como relação de dominação preponderante, de maneira que as condições econômico-sociais da vida dos Terena se torna um fator determinante para a construção de limites para o ideal de “controlar a própria vida”, gerado pela política de resistência indígena contra o regime tutelar. Além disso, o próprio processo de segmentação e as formas de tradicionais de constituição das facções indígenas – baseadas nos “cabeçantes de bairros” – faz com que as alianças entre estas e outros grupos políticos reative mecanismos e técnicas de poder característicos do regime tutelar. Para entender como funcionam estes processos, iremos descrever algumas situações sociais desenroladas dentro de Cachoeirinha. 6.2 - As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo. O ano de 2004 foi um ano de eleições para as câmaras de vereadores e prefeituras municipais. No mês de setembro, a campanha já tinha atingido um certo clímax no Município de Miranda, e a disputa estava muito acirrada, entre Ivan Paz Bossay (PDT) e Beth Almeida (PT). Ivan é um médico e fazendeiro que já havia sido prefeito da cidade algumas vezes. Ele estava novamente concorrendo às eleições a Prefeitura pelo PDT, e sua principal adversária naquele ano era Beth Almeida, professora, esposa de Roberto Almeida que também já havia sido Prefeito da cidade de Miranda. O terceiro candidato era João Pedro Pedrossian Neto, do PSDB, ex-prefeito, sobrinho do ex-governador e Senador do Mato Grosso do Sul, Pedro Pedrossian, e fazendeiro (era o candidato apoiado pelo Sindicato Rural). Beth Almeida se candidatava a reeleição pelo PT, e batalhas judiciais estavam sendo travadas, com tentativas de impugnação das candidaturas de ambos. Beth Almeida havia sido eleita prefeita em 2000 pelo PPS (Partido Popular Socialista), e mudou de partido em 2003, sendo o anuncio de sua filiação ao PT realizado numa cerimônia 317 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. ocorrida durante um evento esportivo na aldeia de Cachoeirinha (1º Campeonato Inter-tribal de Miranda), mediante o “convite feito pelo índio “Carlos Jacobina”, liderança indígena do Posto Pilad Rebuá. As situações sociais que iremos descrever estão todas elas relacionadas às eleições de 2004, para apresentar em termos etnográficos como se dá a ralização dessa ocupção de espaços e tentativa de construção de co-gestão indígena na política local. Nas eleições de 2004¸ várias redes políticas foram estabelecidas dentro das aldeias. Os candidatos que estavam em maiores condições de disputa, pelas pesquisas divulgadas na cidade eram Ivan Paz Bossay e Beth Almeida. Obras de “cascalhamento” da avenida principal e das estradas de acesso a Cachoeirinha estavam sendo realizadas, para receber a visita do Governador do estado José Orcírio Miranda, o Zeca do PT. Comícios eram promovidos dentro da aldeia. Enfim, diversas atividades se desenrolavam. A primeira atividade que vimos foi a chegada de um ônibus trazendo indígenas das aldeias Passarinho e Moreira com cerca de 60 pessoas, para fazer campanha eleitoral em Cachoeirinha, do candidato Terena Carlos Jacobina. O cacique e outras pessoas que estavam conversando no PIN torceram o nariz, mas nada fizeram. Depois de cerca de 2 horas de campanha em Cachoeirinha o grupo de 60 cabos eleitorais de Carlos Jacobina se reuniu no centro comunitário e ele falou da importância de estarem ali, que convidaram a comunidade para uma reunião, e que mesmo que aparecessem poucas pessoas estava bom. Isto se deu por volta das 16h. Às 17:45h teve inicio a reunião. Com poucas pessoas além dos cabos eleitorais, um homem Terena falando em idioma começou a reunião, fez menção a Lula, a Zeca e a prefeita Beth Almeida (parecia estar apresentando os mesmos argumentos que Wilson Jacobina, irmão de Carlos, tinha apresentado para mim pouco antes (de que mesmo estando a Beth desgastada, ela era representante do PT, de Lula e Zeca no município) e que por isso eles estavam com ela. Carlos Jacobina tomou a palavra e disse: "a gente está aqui no fortalecer as candidaturas indígenas. E o Celinho vai tá falando como tá sendo a política aqui, se tá tendo reunião grande, se tá sendo de casa em casa .... O índio precisa ter seu representante no legislativo. Nós vamos estar implementando aqui em Cachoeirinha o programa habitacional. Aqui na Cachoeirinha vamos começar com 20. Lagoinha tá recebendo 20. Isso é uma realidade. Nós já temos casa em Buriti, Nioaque”. Celinho disse: “Vou tentar explicar como é que a política aqui em Cachoeirinha. Cachoeirinha hoje no cenário municipal, eu espero que os nossos patrícios estejam valorizando o voto em prol dos próprios patrícios. Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja (explicando que não haviam reuniões maiores para esta questão). Nós fizemos um trabalho de conscientizar os patrícios de votar nos próprios patrícios”. Carlos Jacobina: "Nosso lema é resistir e transformar (resistir aos 500 anos ...) e transformar a realidade de nossas aldeias (cita como sua realização o campeonato intertribal). O pessoal precisa tá preparando para receber o governador 318 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. que é um chefe de estado e tem compromisso com as aldeias (falou para os índios levarem suas reivindicações, das associações, da terra, no papel para entregarem ao governador)”. Às 18:40 h chegou o ônibus para levar os indígenas de volta. Wilson Jacobina toma a palavra para fazer o encerramento e autoriza os cabos eleitorais a irem para o ônibus (o que alguns já estavam fazendo antes dele falar). Naqueles dias, a aldeia viva uma grande movimentação e agitação por conta da expectativa de visita do Governador do Estado, o Zeca do PT. Esta visita aconteceu no dia 15/09/2004. O clima estava instável, alternando-se o frio e o calor intenso, mas sem chuva; a seca já durava quarenta dias, segundo as informações dos moradores. Neste dia seria realizada visita do Governador em Cachoeirinha e também, na cidade, o comício da prefeita. Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate -Pau. 319 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Foto 15 - Público do Comício de Zeca. O comício da candidata Beth Almeida do PT, com a presença do governador José Orcírio, o Zeca do PT, seria iniciado às 16h. No fim da tarde o clima estava limpo, apesar do pouco sol. As 16h o povo já se aglomerava na vila principal, próximo a um caminhão que seria utilizado como palanque, enquanto esperavam a chegada da prefeita e do governador. Mas a esta altura o número ainda era reduzido. Um grupo de dançarinos do bate-pau esperava, caracterizado, organizado em duas filas paralelas - formação tradicional da dança - em frente ao centro comunitário. O cacique Lourenço aguardava próximo a eles. O governador e a prefeita chegaram com suas comitivas e seguranças. Juntaram-se ao cacique Lourenço e ao grupo do bate-pau que os esperavam. O governador tomou posição ao centro das duas filas e a frente, os indígenas carregavam uma faixa em homenagem a presença do Governador, e caminharam até o caminhão que seria usado como palanque (estacionado em frente ao campo de futebol Capitão Timóteo, na vila principal). Neste momento um público numeroso já estava no local e cabos eleitorais, indígenas e não indígenas seguravam as bandeiras vermelhas do PT e portavam camisas e faixas. No trajeto até o caminhão (de cerca de 30 metros) foi tocada a música do bate-pau. Nas cercas das casas da vila principal, próximas ao local do comício, foram colocadas 7 faixas. Em duas delas lia-se “A comunidade [de Babaçu, de Argola] tem o orgulho de receber nossos amigos, Zeca, Beth e Neder" Em outra estava 320 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. escrito: "Amigo Zeca do PT. Amiga Beth Almeida. Obrigada por ajudar a resgatar nossa dignidade". Nas demais faixas, mensagens de agradecimento à presença do governador em nome das comunidades indígenas. O mestre de cerimônias anuncia a presença da prefeita, do deputado Arroyo, do presidente da câmara e vice na chapa de Beth, Neder, dos candidatos indígenas e não indígenas a vereador. À esquerda do palanque havia um galhardete do candidato indígena Carlos Jacobina. No palanque Zeca ao centro, à sua direita a prefeita e o deputado Arroyo, rodeados por lideranças e candidatos indígenas. A boléia do caminhão estava cheia. À frente do caminhão ficaram postados os índios caracterizados, juntamente com algumas jovens que seguravam faixas e bandeiras. Neste momento estavam na avenida principal, por nossas estimativas, cerca de 1000 pessoas. Depois das apresentações iniciais começaram as intervenções. Foto 16- Zeca discursa aos indígenas. Primeiramente falou o cacique Lourenço Muchacho que agradeceu a presença do governador e elogiou-o, falando o seguinte. "... A vinda do governador do estado zeca do PT, com muito orgulho, pela primeira vez que governador do estado visitou a nossa comunidade aqui na Cachoeirinha e o senhor ta de parabéns. Quero cumprimentar a prefeita de Miranda, Elizabeth, bem vinda a nossa comunidade, muito obrigado. o deputado Arroyo, deputado estadual, pela primeira vez também, ele vai nos ouvir ao nosso desabafo dentro de nossa comunidade.Nós agradecemos sua vinda aqui também. Muito obrigado. Queremos agradecer a presença do Neder, candidato a viceprefeito Os demais companheiros, candidatos indígenas aqui presentes, o Otto, o (...) Jacobina. Os demais companheiro presentes nesta ocasião, o meu agradecimento é isso ai, queremos mais ouvir o futuro senador, futuro senador, esse aqui é o senador do povo, presidente da república, se o Lula deixar, se o Lula não deixar depois de Lula ele pode até se candidatar como presidente da república. A esperança do indígena hoje, senador, governador, senador porque o senhor já tá lá profetizando, o meu agradecimento é esse ai. Meu agradecimento a todos 321 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. indígenas presentes. De Lagoinha, Campão/Babaçu, Argola Morrinho, e da comunidade da Sede. Muito obrigado o nosso agradecimento é esse ai." Depois falou o cacique da aldeia Argola, João Candelário, falando da necessidade de construção de casas do programa habitacional do governo no seu setor. "Quero cumprimentar a toda população da aldeia Cachoeirinha, e também quero cumprimentar o nosso excelentíssimo governador doutor José Orcírio Miranda, o nosso grande governador do estado, e também cumprimentando a nossa excelentíssima prefeita Elizabeth de Paula Almeida, quero cumprimentar o deputado Arroyo, que é deputado estadual, cumprimentando também nosso futuro vice-prefeito ilustre Neder Vedovato. E aproveitando também cumprimentar todos os vereadores que fazem parte da nossa caravana, que fazem parte da coligação de nosso partido. Primeiramente eu quero dizer ao nosso governador Zeca do PT, seja bem vindo em nossa aldeia Cachoeirinha. Eu quero dizer de todo o coração, zeca do PT, o nosso grande governador, que eu tenho grande orgulho da sua pessoa. Porque o senhor é um governador que tem compromisso com os pobres e tem compromisso também com a comunidade indígena. E nunca houve um governo passado que teve compromisso com nosso povo. É por isso com toda convicção eu subo aqui no palanque pra dizer ao nosso povo o que nosso governador tem feito em nossa comunidade. E acredito também que a comunidade indígena sabe disso, está consciente de tudo isso, e elogio o nosso governador também pelos grandes programas sociais, trabalhos sociais, que tem realizado no estado do Mato Grosso do Sul, em todos os municípios, como no Município de Miranda, nós reconhecemos o seu grande trabalho governador. Gostaria também de pedir ao governador do estado que como liderança da aldeia Argola, setor da Cachoeirinha, que também nós precisamos do seu grande apoio sobre construção de habitação para aldeia Argola e nos pedimos que o governador não esqueça como nós temos em Morrinho isso e nós temos certeza que estas aldeias circunvizinhas da Cachoeirinha será beneficiado. Também está conosco a excelentíssima prefeita Beth Almeida. Eu quero agradecer a presença da nossa prefeita que tem também dado grande apoio ao nosso povo, a comunidade indígena. E agradecendo também o deputado Arroyo, que é um dos nossos parceiros e parceiro da prefeita também, que juntando seus esforços traz recursos, traz projetos para o município de Miranda. E é isso que eu quero dizer para comunidade. O terceiro a falar foi o cacique Isidoro Pinto, de Morrinho. Isidoro: "Primeiramente eu agradeço a esse horário que nesse dia de hoje, porque nós precisa dele, e precisa das cinco comunidade daqui da Cachoeirinha governador, porque nós precisamos dele para toda comunidade, deputado Arroyo, tudo companheiro. Porque o cacique tem muito que ele precisa para comunidade, então eu queria isso para Zeca, para atender nossa comunidade, Morrinho é pequena ainda, mas precisa de construção, de tudo, nós tamos precisando de escola, lá no Morrinho nós não temos, escola é de tauba ainda, e nós tamos aumentando aluno, isso que eu quero passar para vocês. E também eu queria a viatura, nós tamos precisando. Nós não temos nada lá na nossa aldeia. A nossa esperança para ajudar nossa comunidade , temos quem para dar a mão. Mas esse ano é uma esperança. E esse é nosso companheiro, nossa companheira, dona Beth, então é isso aí que eu quero agradecer, nosso amigo candidato. É isso que eu quero passar para nossos companheiros. E só isso que eu quero falar. Muito Obrigado. O quarto a fazer o uso da palavra foi Wilson Jacobina, cacique de Passarinho: "Boa tarde para todos os nossos patrícios daqui da aldeia cachoeirin ha. Boa tarde governador, seja bem vindo aqui dentro da nossa reserva indígena, prefeita Beth Almeida, futura prefeita do município de Miranda , seja bem vinda aqui no meio do nosso povo. Quero agradecer também a presença das pessoas que não são indígenas que tá aqui na nossa comunidade. Seja bem vindo. É com muito carinho que nós recebemos vocês aqui. Juntamente com essa caravana da vitória, caravana a da Beth Almeida. E é por isso que nós tamos aqui hoje para tá conscientizando o 322 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. nosso povo do projeto que Beth também representa. E eu enquanto cacique da aldeia Passarinho quero deixar bem claro pros nossos patrícios aqui. No dia 3 de outubro nós da aldeia Passarinho vamos eleger Beth Almeida. E tenho certeza que nas outras aldeias vão fazer o mesmo. Porque uma pessoa que tem o aval do Governador, do deputado estadual, o Arroyo aqui, nenhum candidato pode perder. E a Beth não vai perder, e num vai perder nem o sono, quem vai perder é o nosso adversário. Porque ele está desesperado com essa política de inclusão social que o PT tem feito no nosso estado. No dia 11 recebemos 30 casas do programa novo habitar na aldeia Passarinho e na Aldeia Moreira e lá o Governo do estado, PT fez a revolução em termos de habitação nas áreas indígenas, com a parceria da prefeita e do governo federal e do governo estadual. E com esse time, no dia 3 de outubro tudo vai estar a nosso favor. Eu acho que é o momento das comunidades indígenas prestar atenção na inclusão social. Prestar atenção de 10 anos atrás de como era o abandono da nossa comunidade, como era o abandono de nossas lideranças. E hoje nós temos uma prefeita voltada para as áreas indígenas, um governador voltado para área indígena. na questão da inclusão social. Então é isto que meu povo tem que acordar, tem que prestar atenção que inclusão social e só o PT e essa caravana que vai fazer.Outro nenhum vai fazer. Então presta atenção. ...Aqui também no nosso município veio com muita firmeza esse projeto. Porque? Diminuiu o índice de mortalidade infantil aqui nas nossas áreas indígenas. Onde que nós vemos que nossos jovens, crianças que antes passavam necessidade, agora tão passando com fartura aqui dentro. E graças a esse governo voltado para minoria. Eu quero deixar aqui meu abraço governador, meu abraço dona Gilda. Beth tem certeza que nós vamos aqui chegar lá juntamente com Carlos Jacobina na câmara municipal e os demais companheiros que aqui se encontram nessa caravana da vitória. Meu muito obrigado que deus abençoe todos. Em quinto na seqüência falou Neder Vedovato, que o mestre de cerimônia frisou ser "primo do governador". Em sexto falou Arroyo. Depois dele falaram a prefeita Beth Almeida e o governador Zeca do PT. O governador citou a inauguração do hospital em Miranda também do “Memorial da Cultura Terena”, a serem realizadas no dia seguinte (16/09), como exemplo das realizações da administração da Beth Almeida. Depois de encerrada sua intervenção, o Governador e sua comitiva retiraram-se pela parte traseira do caminhão e neste momento as lideranças foram atrás dela entregar "documentos". Ainda foram distribuídos picolés, para o que se formaram imensas filas ao redor do caminhão. A visita do Governador movimentou toda a cidade e as aldeias; os adversários políticos da prefeita também realizariam atividades dentro de Cachoeirinha, e uma delas aconteceu no dia seguinte, dezesseis de setembro de 2004. Ao fim da tarde, para ser mais preciso, Às 17:30h, notavase uma movimentação em uma das casas da “vila cruzeiro”. Uma reunião política estava começando no quintal da casa de Alírio de Oliveira Metelo (que reside próximo ao Posto Indígena e a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro). Era uma reunião de campanha do candidato a prefeito pelo PDT “Ivan Paz Bossay” e do candidato indígena pelo PL (que estava coligado com o PDT) Edílson Pedro (apelido Bebe). Estavam presentes cerca de 40 pessoas, que fizeram um círculo para a realização da discussão. Primeiramente falou Alírio de Oliveira Metelo. Ele declarou seu apoio ao candidato Ivan e disse palavras próximas a estas: "que o doutor prometeu trator e o trator para nós é tudo". Depois dele ter terminado sua fala, quem tomou a palavra foi o candidato indígena Edílson Pedro: "Precisamos eleger candidato índio. Vote candidato índio" Falou da 323 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Associação do Alírio, que está precisando disso, precisando daquilo e ajudá- la é o “papel do vereador”. Disse ainda, ao comentar as dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é diferente, vocês não vão precisar gastar nada, por isso a gente tá pedindo o apoio’. Na seqüência falou um homem, ao que parece de nome Donato. Depois deste homem, falou Adílson Júlio. Sua intervenção enfatizou também o apoio para as atividades econômico-produtivas. Ele perguntou: "eu não sei onde está nosso trator", disse reclamando da falta de apoio da prefeita e candidata Beth Almeida, do PT e da falta de recursos. Falando sobre o candidato disse " porque nós temos deputados para apoiar. Porque ele vai pedir apoio no governador do estado”. Frisou ao final que seriam promessas do Ivan a reforma das duas viaturas e a reforma do trator. Levantou-se então para falar um homem de nome Milton Pires, " Tá aqui a presença de nosso candidato, o dr. Ivan, e Bebê nosso vereador. Já teve elemento lá em casa cutucando, cutucando, e eu falei, já te ajudei e nada você fez por mim. Ele disse quinta-feira o Ivan tá preso, hoje nosso candidato tá aí... e ele não fez nada por nós. Deus está vendo todo o sofrimento que nós estamos passando com essa mulher aí." Depois ele comentou sobre a visita do governador Zeca do PT a Cachoeirinha, realizada no dia anterior. "Não falo mal do Zeca, do presidente Lula, mas o problema é aquela mulher ai. Você vai na prefeitura e cadê a prefeita, nunca tá, tá viajando. É mentira (...)" E fala olhando para o Edílson Pedro: "E Bebe, eu vou cobrar você, não só eu, a comunidade vai cobrar." Seu Alírio, que estava atuando como um coordenador da reunião, pergunta se mais alguém queria falar, e então dona Agripina Júlio, sua meia irmã, vai até o centro da roda e canta e dança em homenagem ao dr. Ivan (grita “viva o doutor Ivan”). Depois de sua manifestação, toma a palavra Ramão (um “branco”, assessor de campanha do candidato a prefeito), e diz: "O Ivan foi o único candidato que colocou um branco para trabalhar para o índio, para pedir voto para o índio”. Olha então para o Ivan e diz: “O senhor é um mito entre os indígenas”. Depois de tecer mais elogios a ele e falar que a vitória já estava garantida, de acordo com as pesquisas, ele encerrou. Então o próprio Ivan tomou a palavra. Começa agradecendo ao senhor Alírio por fazer a reunião na casa dele. "O objetivo de chegar na prefeitura é trabalhar pelo nosso povo". Comenta sobre o comício da prefeita realizado na noite anterior, acontecido na cidade de Miranda, citando o fato de um índio de Argola ter sido esfaqueado numa briga, ironizando a “falta de urgência no atendimento” dispensado a ele (já que não se liberou uma ambulância que estava à disposição do Governador, presente no local, para fazer o atendimento). Fala da disputa pela prefeitura municipal, afirmando que está vencendo as eleições e para os índios trabalharem como cabos eleitorais de outros candidatos, “mas peguem o dinheiro e não votem neles”. Declara seu apoio ao governador, fala que seu partido apóia o Zeca na ALEMS, e que o Zeca só apoiou a Beth Almeida por obrigação partidária. "Além disso eu queria falar para vocês da lavoura, citando projetos de fomento, apoio e 324 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. fornecimento de maquinário, que pretendemos criar uma indústria de farinha.", Afirmou que vai criar uma secretaria indígena e que será comandada e composta por índios, para atender suas reivindicações, para que eles não tenham que ficar sempre esperando para falar com o prefeito. Falou ainda que a comunidade indígena deveria votar no índio. “Nós temos que votar no patrício. Eu quero agradecer a todos vocês. Mas a associação tem um peso na administração, para que nós mandemos máquinas, semente, ela é unida. Muito obrigado". A reunião se encerrou por volta das 19h, e as pessoas presentes ficaram ainda no local conversando e tomando refrigerante distribuído pelo candidato. Poucos dias depois, a candidata à prefeita Beth Almeida e vice na sua chapa, Neder Vedovato (vereador), voltariam a Cachoeirinha, desta vez na aldeia Argola. No dia vinte de setembro, fomos até a Argola e lá encontramos Inácio Faustino, por volta das 15:30h e ficamos sabendo da reunião que ele estava preparando com a prefeita e o candidato a vice, Neder, para as 16h. No caminho ele foi explicando as razões da reunião e suas expectativas. Falou que eles ficaram “afastados da prefeita nesta última gestão” e que “as outras associações tinham espaço”, e que eles estavam querendo reverter esta situação. Por isso ele tinha pedido a reunião com a prefeita, para o Neder. Fomos para um terreno, que depois saberia ser da AITRE (Associação Indígena Terena Reviver, da qual Inácio é presidente) e ficamos embaixo de uma mangueira. Ficamos esperando um tempo o inicio da reunião e neste meio tempo chegou o candidato indígena Aldemir Soares, da aldeia Moreira. Ele falou, ao considerar o seminário de capacitação de professores realizado na Sede: "Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma administra isso aí. Nós temos idéia, capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para administrar qualquer coisa, inclusive uma secretaria de educação.” Às 17h a reunião teve inicio, com a chegada da Prefeita Beth, do Vice Neder e de uma assessora, de nome Juliana. Sentaram-se Juliana, Beth, Neder e Waldemir, de frente para o grupo de pessoas que estavam esperando (que fizeram um semi- círculo). Conteamos cerca de 20 pessoas no local. Quem primeiro tomou a palavra para falar foi Inácio Faustino, presidente da AITRE. Ele falou, “quem tá aqui, a maioria é da diretoria da AITRE, a maioria tá cadastrado para fazer campanha. Nós tivemos dificuldade com a senhora prefeita, a gente ficou distanciado, não teve acesso depois da campanha. Não sei se a senhora lembra, nós fizemos campanha voluntariamente. Mas nós não tivemos acesso na prefeitura. Nesse período eu não tive respaldo na comunidade porque não tive acesso. Eu queria garantir de não ficar mais distanciado. Eu dirijo uma associação de quase 40 famílias. O que nós estamos esperando é uma Sede para a associação. Um projeto tá nas mãos do deputado. Essas são as dificuldades que a gente tem”. A prefeita respondeu, dizendo para ele passar na prefeitura para ver isso. “Nesse galpão tá funcionando o Mova”, disse Inácio. Ele pede uma caixa d´água, a extensão da rede e luz. Falou que nunca a associação recebeu 325 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. maquinário. A prefeita contestou, diz que a prefeitura mandava as máquinas. Ela citou uma ocasião em que falou com o Tomás, marcou uma reunião com os presidentes das 3 associações, mas o Inácio não foi. O Inácio retrucou, “Às vezes a senhora fala com um e pensa que tá falando com todos. Quando uma pessoa quer dominar, então fica só ele sabendo”. Falou então o cacique da Argola João Candelário: "Eu lembro que nos recebemos o ofício de recebimento de um trator, a senhora vai dizer como e que ta isso ai. A gente queria amarrar o atendimento da senhora” e fala de um rapaz, do secretario de esportes da comunidade, dizendo que esperava muito dele. A prefeita fala, diz que vai mandar o padrão (para resolver a questão da energia elétrica), a caixa de água, mas que só não pode fazer isso imediatamente por causa da fiscalização. A prefeita reclamou porque ele não a procurou mais. Inácio respondeu : "Eu sou sistemático. Uma vez eu fui na prefeitura com a liderança, mas ligaram para que nós não fossemos atendidos, eu e o Fernando batemos com a cara na porta. O Esídio e o Celinho Segato, eu sei porque depois eles me cercaram na rua e disseram que na prefeitura nós não íamos arrumar nada. Creio que nós vamos acertar essas coisas. Daqui por diante pode confiar em nós.” Terminada a intervenção do Inácio, a palavra foi passada a João Candelário. "Só queria fazer uma pergunta para a senhora, da emenda que o deputado Arroyo fez”. A prefeita responde. Ao final volta a tomar a palavra Inácio, para combinar a contratação e conversa com Neder, que dá os valores: sessenta reais por pessoa. Inácio pediu para que adicionassem mais cinco pessoas na lista, mas não foi atendido. Antes do fim da reunião se pronunciou ainda “Baixinho”, secretario de esportes, e reclamou de uma série de coisas. Em seguida a reunião foi encerrada.. No dia vinte e seis de setembro, à noite assistimos o comício do candidato João Pedro Pedrossian. O comício teve início as 20:40h minutos aproximadamente, sendo realizado ao lado da AITECA, em um caminhão que serviu de palanque. Antes do início, uma banda tocava xamamé para atrair o publico. Aglomeraram-se no local cerca de 100 pessoas, ou um pouco mais, porém número bem inferior ao que aglutinou o comício do Ivan. As pessoas, mulheres, crianças, sentavamse em bancos e cadeiras trazidas das casas, ou ficavam paradas em pequenos grupos ao redor do local do comício. Algumas dezenas de cabos eleitorais com camisas e bandeiras aguardavam no local, e outros chegaram em ônibus e caminhões. Chegou o candidato, e o mestre de cerimônias começou a chamar os convidados para o palanque: Vacílio Elias, Edílson Pedro, Airton Vitor da Igreja Católica, Rafael Albuquerque, Nicola Pedro da Assembléia de Deus, Quintino Pereira Mendes da Vila União São João, Evandro Antonio, representante da Vila Nova, Arlene Julio, da Associação de Ceramistas, Mario de Albuquerque da AITECA, Leôncio Belisário da Vila Santa Cruz e os coordenadores Felix Canali, do Morrinho e Esidio Albuquerque; o Pastor Zacarias a futura “primeira dama”, o João Pedro e vice na sua chapa, Henrique. Chamou também os candidatos a vereador Celma Iranda, Luiz Meneses e Kátia. 326 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. A primeira pessoa a se pronunciar no palanque foi Arlene Julio, ceramista. “Nós somos lutadoras, somos trabalhadeira, principalmente dentro das nossas casas”. Diz que precisam de oportunidade para fazer feira em Miranda. Fala da organização das mulheres, a AMITECA. Lê então um discurso: "Precisamos de apoio das autoridades. Esta associação não é legalizada." "Nós mulheres somos lembradas só na época de eleição, de campanha. Em reunião da comunidade nós não somos convidadas. Nós temos a mesma autoridade e autonomia que os homens”. Na seqüência falou Mario Albuquerque, presidente da AITECA, vestindo a camisa da campanha: "Eu vou fazer um pedido aos meus companheiros. Nós temos esse companheiro que é candidato. Ele me procurou na minha casa pedindo meu apoio. Então eu fiz reunião com os associados porque eu não faço nada sozinho, e confirmamos ao João Pedro Pedrossian. Na eleição passada nós trabalhamos para essa prefeita. Mas resolvi sair fora dela. Em tudo ela enganou nós. Ela não merece nosso voto. Ela prometeu ônibus para as ceramistas...Beth é mentirosa. Nós tamos com um homem que tem compromisso com nós. Ele trabalhou muito bem para a AITECA”. Na seqüência falaram o pastor Zacarias, Vacilio Elias, que falou da criação da secretaria indígena, Felix Canali, Rosana Canali, Edílson Antonio (locutor da rádio), Cilsa da Passarinho, e os candidatos a vereador, Nica, Luis Meneses e Davi. e Carlinhos da Lalima. Por fim falou a esposa de João Pedro: "Amigos de Cachoeirinha, vocês terão semente e óleo diesel. As mulheres serão valorizadas sim. Nós teremos o maior prazer em apoiar a associação das ceramistas. Henrique e João Pedro falaram para encerrar: “Amigos. Queridos. A alegria de estar aqui é muito grande, nos emociona, toca o coração. Vocês podem em 2005 contar com o total apoio do 45, do João Pedro. Felizmente conseguimos reunir liderança expressivas de Cachoeirinha, Argola, Babaçu, Lagoinha e Morrinho e através dessas lideranças chegamos na comunidade, em vocês." Fala da sua proposta: “Secretaria do Índio sim, faremos com que ela tenha toda a estrutura, para receber projetos", e promete que serão os índios que irão comandá-la. “É preciso que vocês tenham o apoio necessário para produzir e produzir bem. Semente, óleo diesel e estrada cascalhada vocês já tiveram. Teremos um cerimonial comandado por esse povo ordeiro, por esse povo Terena”. Depois das palavras de Pedrossian, o comício foi encerrado, a banda tocou músicas ainda, mas grande parte do público foi se dispersando lentamente. Até o dia três de outubro, vários outros comícios foram realizados dentro da aldeia, inúmeras reuniões de articulação política. O dia das eleições foi tranqüilo, a maior parte dos índios votam na própria aldeia, nas urnas instaladas nas seções eleitorais das escolas. Os mesários e fiscais eram os próprios moradores das aldeias. Depois da divulgação do resultado da apuração das eleições para prefeito e vereador, 5 carros, 2 motos e 1 caminhão e algumas bicicletas percorreram a avenida principal com algumas dezenas de pessoas acompanhando, carregando bandeiras e portando 327 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. camisas e bonés do PT e da Beth Almeida, soltando fogos de artifício e gritando muito. Os veículos formaram um círculo em frente ao PIN e ficaram dando voltas, fazendo muito barulho durante alguns minutos. Depois saíram em disparada percorrendo as demais vilas. Ao conversar com um dos ciclistas que acompanhava o grupo, ele amostrou a marca de uma pedrada e disse “o pessoal não sabe perder”. O resultado das eleições era provisório, já que estava em curso um processo judicial contra a candidata Beth Almeida (sua candidatura seria cassada e depois a cassação seria suspensa por decisão do STF, garantindo sua posse). Nos dias que se seguiram as eleições de 2004, houve uma grande movimentação na aldeia. A expectativa em torno da indefinição de quem seria o prefeito era muito grande. No município são 11 sessões de votação dentro das aldeias, totalizando 3118 votos de indígenas (num total de 16.769 eleitores, o que representa cerca de 18% do eleitorado municipal). Abaixo segue um mapa do resultado das eleições para prefeito dentro das aldeias do município: Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM) Aldeias Aldeia Cachoeirinha Seção 92 147 37 38 23 Paulo Rebuá Siufi 20 Seção 36 Seção 35 Seção 67 355 297 305 75 69 58 87 81 90 62 51 46 41 31 25 Aldeia Argola Aldeia Lalima Seção 34 Seção 88 Seção 63 353 224 318 83 58 89 126 51 75 17 45 65 58 22 34 Aldeia Passarinho Seção 77 Seção 43 277 285 87 102 86 70 27 27 25 29 Aldeia Moreira Seção 70 Seção 44 279 278 87 88 83 59 30 50 36 27 3118 833 846 443 348 Total 11 Total de Votos Beth Almeida Ivan Paz Bossay João Pedro Pedrossian O resultado das eleições foi o seguinte: Beth Almeida, 5641 votos; Ivan Paz Bossay, 5077 votos; João Pedro Pedrossian 1664 votos; Paulo Rebuá Siufi, 1341 votos. Nas áreas indígenas foram 2470 votos nos candidatos e mais 648 votos brancos e nulos; Ivan (846 votos) foi ligeiramente mais votado nas áreas indígenas consideradas em seu conjunto que a Beth Almeida (833 votos). Foram 89 candidatos a vereador no município, sendo 7 eleitos para a câmara. A busca pelo poder: os líderes indígenas na política local O “tempo da política” se apresenta como uma conjuntura muito propícia para a descrição e análise da ação das facções políticas dentro do campo e das arenas das relações interétnicas. As 328 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. eleições 2004 permitem mostrar os pontos de constituição de redes sociais que articulam o universo das aldeias com diversas ins tituições e atores dos campos e arenas políticas descritos inicialmente. Primeiramente, podemos analisar cada uma das situações sociais, e indicar as relações e questões implicadas nelas: 1) A primeira situação é a atividade de campanha de um dos muitos candidatos indígenas de Miranda, Carlos Jacobina. Aliado da Prefeita Beth Almeida, ele promoveu atividades de apoio a Beth desde 2003, tendo sido também candidato a Administração Regional da FUNAI, mas foi derrotado por poucos votos, por Wanderle y de Limão Verde; a “reunião de campanha” e o discurso de Carlos e seu irmão Wilson Jacobina explicitam o discurso hegemônico entre os índios Terena, da necessidade de um “voto étnico” (como por exemplo "a gente está aqui no fortalecer as candidaturas indígenas”). Por outro lado a descrição da campanha coordenada por Celinho Belisário mostra que “Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja” (explicando que não haviam reuniões maiores para esta questão). Este tipo de discurso volta a ser acionado, por exemplo, na outra reunião, na Argola, por outro candidato indígena, Aldemir Soares, que afirmou: “Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma administra isso aí. Nós temos idéia, capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para administrar qualquer coisa, inclusive uma secretaria de educação.”Ou seja, é a expressão do ideal de controlar a própria vida/gestão indígena, da afirmação da “capacidade política indígena” de se representar, de gerir atividades, inclusive de organismos estatais. Este discurso era reproduzido por todos os candidatos a prefeito e se cristalizava na proposta da formação de uma “secretaria indígena” na Prefeitura, que seria ocupada por um índio. Assim, o discurso produzido pelos Terena, e corresponde práticas e políticas desenvolvidas pelos índios dentro das aldeias, no sentido de garantir seus espaços políticos; os discurso realizados pelo Chefe de Posto, Argemiro, e pelos professores e outros indígenas no Dia do Índio de 2004 (ver capítulo 3), também apontam na mesma direção. O trabalho dos líderes indígenas dentro das aldeias expressa a busca “espaços de poder”, de maneira que as alianças com as elites dirigentes locais e autoridades de Estado, aumentam o capital político destas mesmas lideranças. 2) Um aspecto organizativo é também fundamental; nas diversas situações sociais descritas, vemos que as facções e as associações criadas por elas, são instrumentos fundamentais de constituição das relações políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Na reunião de campanha ocorrida na Vila Cruzeiro fica explícito que Alírio, líder da antiga facção do cruzeiro e da ACIC, atua como coordenador de campanha e mediador político, sendo o ponto numa rede social que articula grupos familiares de certas linhagens em torno de uma aliança situacional com um líder 329 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. político local (Ivan Paz Bossay); o candidato a vereador lançado e apoiado pela ACIC (por Alírio de Oliveira, Argemiro Turíbio, João Niceto Júlio) foi Edílson Antonio Pedro, filho de Mario Pedro e Rosalina Antonio, e morador da Vila Cruzeiro. O seu discurso mostra como na realidade o “candidato a vereador” indígena está mais associado a um “bairro”, sua associação e seus líderes do que a aldeia considerada como um todo homogêneo: (Associação do Alírio, que está precisando disso, precisando daquilo e ajudá-la é o “papel do vereador”. Disse ainda, ao comentar as dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é diferente, vocês não vão precisar gastar nada, por isso a gente tá pedindo o apoio”. Ou seja, o espaço buscado na política local, é para os diferentes segmentos em que se organizam os Terena, e não para os índios considerados como um agregado de indivíduos. É a busca de poder individual e para o grupo de parentesco e vizinhança que se busca, não para o grupo Terena como um todo; isto ainda é confirmado pelo comício realizado próximo a AITECA, com a presença de Mario e Esídio Albuquerque, além do presidente do Conselho Tribal pastor Zacarias da Silva, o que marca a importância das formas de liderança e organização política dentro da aldeia; também na reunião da Argola, o líder Inácio Faustino e o cacique João Candelário se apresentam diante da prefeitura como representantes de uma associação de 40 famílias, para negociar com a candidata a prefeita Beth Almeida; 3) A outra dimensão a ser destacada, é como certos recursos materiais entram diretamente no circuito de trocas entre as facções indígenas e as lideranças políticas do município. Na primeira situação descrita, temos as obras de “cascalhamento” das estradas e ruas das aldeias de Cachoeirinha que são uma das “moedas” de troca utilizadas na política local; as estradas cascalhadas facilitam o trânsito de veículos, principalmente em tempos de chuva, de forma que os índios levam em consideração este tipo de ação; durante o comício do Governador do Estado, os “agradecimentos” para o Governador realizados pelo Cacique Lourenço em seu discurso, ou então o pedido de projetos e recursos feito pelo cacique da Argola João Candelário; Wilson Jacobina agradece a construção de “casas” pelo programa habitacional do Governo do Estado, realizado em Passarinho/Moreira; na reunião realizada na casa de Alírio na Sede, na AITRE na Argola e também no comício de Pedrossian na Sede, vemos certos fatores serem colocados em negociação: 1º) trator e maquinário (esteiras, estrados e etc) da prefeitura são prometidos por Ivan a Alírio de Oliveira e sua associação; 2º) no comício de João Pedro Pedrossian, são prometidos “óleo, semente e estrada cascalhada”; 3º) na reunião da AITRE, vemos que outros recursos de infra-estrutura (“padrão” para instalação elétrica e caixas d´água compõem os elementos a serem negociados em torno de apoio político, além da própria remuneração em dinheiro para os cabos eleitorais que realizam as campanhas políticas). 330 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. 4) Outro fator fundamental é ver como as alianças políticas se dão entre os diferentes atores componentes do campo, e as unidades segmentadas nas quais os Terena se organizam; neste sentido a reunião na Argola entre as lideranças indígenas e lideranças políticas do município são emblemáticas; Inácio coloca a necessidade de uma “aproximação” com a prefeita, o que não tinha acontecido nos 4 anos anteriores. Ele fala de como ele enquanto líder tinha ido várias vezes diretamente ao Gabinete da Prefeita, sem ser atendido (é interessante que Alírio de Oliveira falou a mesma coisa); a Prefeita Beth tinha um contato estreito com Tomás Martins, uma das lideranças políticas da Argola, ex-cacique e presidente de uma das associações, a APRAA (Associação dos produtores Rurais da Aldeia Argola). Inácio reclama que Tomás manipulava as informações, impedindo o dialogo entre ele e a prefeita, e que muitas vezes “a prefeita fala com um e pensa que está falando com todos mas não está”. Ou seja, as máquinas (tratores) que eram enviadas para aldeia Argola, eram gerenciadas por Tomás Martins, que monopolizava o acesso e definia os critérios de sua utilização, assim como de outros recursos. Ou seja, a aliança com uma facção indígena leva a exclusão das outras da comunicação e da participação na distribuição dos recursos que circulam nas relações dentro do campo de relações entre índios, instituições de Estado e grupos políticos locais; é o mesmo tipo de relação de exclusão que Alírio de Oliveira denuncia na Sede com relação a ele e sua associação; “A política sempre traz a proposta, mas nunca é cumprida a proposta. Então toda política, todo ano tem sido assim. Principalmente essa prefeita que tá agora ai nunca fez nada para nós. No dia que falou lá, dia que o Zeca do PT veio, que ele tem ajudado a associação, pelo menos a minha associação não tem ajudado não, pelo menos se abrisse a porta para mim para conseguir conversar com ela a gente ficava satisfeito. Quando eu vou procurar na prefeitura, fala que ta viajando, reunião e quando procura o marido dela, fala que tá na obra. Ia várias vezes, só falava com um tal de Serginho, então ele me passava que a prefeita tava em reunião, tava viajando. É desse jeito. Até que nos desistimos da prefeitura. Questão de Zeca a gente não tem anda a ver com o Zeca, fizemos nossa parte, votamos já para ele, se for preciso nós estamos em peso do lado dele de novo. Agora a questão é dessa mulher, da prefeita”. (Alírio de Oliveira Metelo/2004); o mesmo foi falado por Mário de Albuquerque, no comício, em que questiona a política da prefeita para a AITECA. O poder compartilhado pelas elites locais com determinadas facções indígenas leva diretamente a exclusão das outras facções, e implica sempre numa política de rebaixamento e de repressão de uma em relação às outras. As trocas de recursos materiais e poder político (cedido pelas lideranças das elites dirigentes e grupos políticos locais, pelas autoridades representantes do Estado) por apoio político na forma de voto e obediência das lideranças indígenas, reproduz em grande medida as formas de colaboração/aliança desenvolvidas pelo SPI/FUNAI. Na realidade, como vimos, existe uma profunda e intensa disputa política entre as facções indígenas Terena, para acumular bens e poder 331 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. para sobrepujar as facções rivais, o que parece ser o grande objetivo dos líderes Terena. Neste sentido, as alianças com as elites e líderes políticos municipais e estaduais, são uma forma de aumentar o poder político destas facções indígenas, para reforçar uma dominação horizontal, através de políticas de colaboração com agências do Estado e grupos dominantes na política local. E nesta direção, se valem inclusive dos próprios dispositivos do regime tutelar, do acionar constante das suas técnicas e dispositivos de poder, para garantir seus interesses. Na realidade o que o Terena chama de líder, o “Tuuti” ou “Cabeçante” em português, na realidade é avaliado por sua capacidade de construir e manter estas relações de aliança. A capacidade de manter “boas relações” com as autoridades políticas (prefeito, governador, vereadores, representantes da FUNAI) é talvez o grande critério que torna uma liderança aceita, e ao mesmo tempo, a incapacidade de manter esta comunicação regular e eficaz com os “donos do poder’ o que leva a sua rejeição e derrocada política. A capacidade de conseguir bens materiais e recursos para si e para seu grupo é uma conseqüência desta capacidade de comunicação e relacionamento. Um bom líder é “bem relacionado”, e por ser bem relacionado ele consegue ter acesso a recursos; esta é a equação que avalia o líder. O papel da FUNAI não deixa de ser importante dentro desta configuração; por mais que tenha perdido recursos e competências (educação para as prefeituras, saúde para a FUNASA), ela ainda se apresenta como um espaço de poder para os índios, o qual é sempre procurado. Desta maneira, o que não se consegue na Prefeitura ou Câmara de Vereadores, busca-se na FUNAI e viceversa. Nas eleições de 2004, estas relações de aliança estavam sendo refeitas, seja para confirmar as alianças estabelecidas nos anos anteriores, seja para desfazê- las e construir novas alianças. Neste sentido, ve jamos algumas das alianças: Ivan, do PDT, conseguiu estabelecer alianças com a ACIC na Sede tendo o apoio de lideranças como Alírio de Oliveira, Arge miro Turíbio em troca de fornecimento de tratores e implementos agrícolas, e também do apoio a candidatura de Edílson Antonio Pedro; na Argola ele estabeleceu uma aliança importante com Adelino José e Aldo da Silva, também candidato a vereador; João Pedro, do PSDB, estabeleceu sua rede de apoio através de Esídio e Mário Albuquerque. No Morrinho conversamos com um dos “coordenadores de campanha” de João Pedro, Felix da Silva Canali. Disse que o candidato o procurou na casa dele, através do seu tio, Esídio Albuquerque. Ele nos disse que é através da política que consegue semente, trator. Afirmou estar coordenando uma equipe de 11 cabos eleitorais no Morrinho 116 . 116 Ele citou os nomes de Zilo Muchacho, Mateu Antonio, Robson Julio, Bento Silverio, Aparecida Raimundo, Argemiro Polidoro e Miguel Barbosa, que teriam participado da sua equipe. 332 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Em uma conversa com Vitorino Paulino, nascido em 05/05/1948, morador da Sede, falou sobre as eleições e que coordenou uma equipe de 26 pessoas, sendo que os cabos eleitorais ganhavam 60 por quinzena e os coordenadores 130,00. Pessoas com que trabalhou: esposa, filhos e filhas; Valdirene Pedro, Dionísia Belisário (irmã da esposa), Emilio Polidório, Maria José (esposa do irmão), Marilza Matias, Valentino Lemes, Zenildo Batista (nora), os demais disse não se lembrar. O quadro abaixo mostra a existência de um mercado temporário de trabalho na politica local. Quadro 38 – Mercado Temporário de Trabalho na Política Local. Candidatos Valor Pago Coordenadores Quantidade de Cabos Eleitorais João Pedro Pedrossian PSDB R$100, 00 por quinzena (60 dias) R$ 40.000, 00 Felix da Silva Canali Esídio Albuquerque Deodato Lipú Vacilio Elias, Quintino Mendes Ailson Vitor Evandro Antonio Gordo Nelinho Cutia, Francisco Neito João Leiteiro. Joazinho, Antonio de Arruda Rogério 100 cabos eleitorais Ivan Paz Bossay PDT R$ 130 reais por quinzena por coordenador R$ 60 reais por quinzena por cabo cabo eleitoral R$ 42.240. Coordenadores: Alírio (40) Adilson Júlio (60) Vitorino Paulino (26) Lírio Lemes (20) Sabino Loto Beth Almeida PT R$ 60 reais por quinzena por cabo cabo eleitoral 176 50 Total R$ 94.000 R$ 12.000 Sabino Albuquerque 326 Este quadro indica a importância econômica e social de tais alianças políticas; as estimativas de circulação de dinheiro dentro da aldeia nos dois últimos meses do processo eleitoral, chegam a R$ 94 mil, com pelo menos 326 cabos eleitorais que conseguimos identificar. Somente três candidatos constam da tabela, porque somente para eles conseguimos informações sistemáticas. O “tempo da política” possibilita a formação de um mercado de trabalho temporário, em que são agenciadas as lideranças indígenas que funcionam como intermediários (como os “cabeçantes” das Usinas); devem recrutar, organizar e executar o trabalho, receber o dinheiro e fazer o pagamento dos “cabos eleitorais”. As principais lideranças políticas é que articulam os acordos e normalmente acionam seus parentes ou pessoas de confiança para assumirem a coordenação do trabalho; é o caso de Esídio Albuquerque, Sábio e Alírio. Estes líderes normalmente atuam de forma mais discreta (por 333 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. exemplo, Sabino não assumiu que trabalhava com Beth Almeida, mas no comício do Zeca em Cachoeirinha foram seus ônibus que transportaram grande quantidade de pessoas até a Sede para participar do evento). Além de Sabino, também Dionísio Antonio coordenou equipes e apoiou a candidatura de Beth Almeida. Este “mercado de trabalho temporário”, no qual muitos índios participam, é fundamental para entender as relações de poder no contexto da política local. Enquanto que as lideranças buscam efetuar “trocas” com lideres das elites locais, grande parte da população encara esta atividade como uma “changa”. O volume de dinheiro total consiste de uma soma importante, e o percentual da população indígena empregada nas eleições chega a mais de 10% - somente considerando os 326 cabos eleitorais identificados acima, mas deve ser maior. Podemos dizer que durante as eleições de 2004 ocorreu a seguinte configuração: na Sede, um líder de facção estabeleceu uma relação de aliança política com Ivan, foi Alírio de Oliveira Metelo; Esídio e Mário de Albuquerque estabeleceram relações de aliança com João Pedro Pedrossian; Sabino de Albuquerque e Dionísio Antonio, estabeleceram uma relação de aliança política com a Prefeita Beth Almeida do PT. Na realidade, estas relações também tem precedentes históricos; Sabino por exemplo tinha no início dos anos 1990, uma relação de aliança com Roberto Almeida (marido e do mesmo grupo de interesses que Beth Almeida), mas brigou com ele e ficou com o apoio do Governo do Estado; ele também já trabalhou com Ivan Paz Bossay durante um certo tempo, e passou a se articular com Beth Almeida possivelmente a partir de 2000, quando ela foi eleita; Alírio e os grupos do “Cruzeiro” apóiam Ivan desde 2000 e mantiveram esta posição em 2004; Mário Albuquerque trabalhou com Beth Almeida em 2000, mas tendo suas expectativas frustradas, mudou sua aliança para João Pedro Pedrossian. Assim, cada facção indígena, cada grupo de parentesco e vizinhança, constrói sua própria rede de alianças políticas de forma autônoma e muitas vezes concorrente com as outras; da mesma forma que estabelecem relações comerciais e de trabalho enquanto famílias extensas ou indivíduos. Assim, as facções organizadas também em associações, impulsionam a dinâmica política sob a forma de conflitos por recursos e poder político. Os líderes de bairros que conseguem ser mais eficazes na comunicação e relação com os líderes políticos locais, são aqueles que tendem a manter sua própria liderança e poder pessoal e faccional. A descentralização faccional, num contexto de escassez (socialmente produzida e relativa) de recursos abre espaço para uma dinâmica de concorrência entre as facções, que termina com o estabelecimento de um “monopólio” sobre certos recursos e poderes locais – possibilitado graças à aliança/colaboração com os membros das elites locais, que atuam como patrões na relação clientelista. Esta descentralização faccional, que provocou em parte mudanças no regime tutelar, e abriu espaços de poder aos índios, é a mesma que garante a reprodução da dominação centralizada. Mas esta relação clientelista, que aparece sob formas de colaboração voluntária e reciprocidade, se 334 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. assenta também sempre sobre a possibilidade da repressão – garantida especialmente através das relações de trabalho formais que podem derivar das trocas (empregos em instituições públicas, por exemplo), além da exclusão do acesso a recursos públicos. No contexto da aldeia, a Escola e o Posto de Saúde da FUNASA, assim como o Posto da FUNAI, apresentam-se não somente como instituições políticas, ou difusoras e reprodutoras de mensagens simbólico-culturais, mas se apresentam como espaços de trabalho acessíveis aos índios, e com uma remuneração regular e estável (o que o trabalho da lavoura não oferece) e com um trabalho mais leve (por serem atividades de cunho intelectual, ou mesmo manual, mas sem muito desgaste) que aquele das Usinas. Assim, as instituições locais e os postos de trabalho são também integrantes do circuito de trocas clientelistas (emprego de professor ou merendeira na escola; de servidor do posto de saúde; e mesmo de chefe ou zelador do Posto da FUNAI). A indicação para estes cargos assim tem múltiplas dimensões. Iremos analisar abaixo como dentro da política faccional e do regime clientelista, se dão os processos de dominação política. A Escola Indígena: a experiência da co-gestão e da coerção. No início do século XXI, as comunidades da Cachoeirinha desenvolveram uma política para alcançar a “gestão” da Escola dentro das aldeias. Nesse sentido, a criação da “Escola Indígena” pode ser tomada como um caso para o aprofundamento da análise do projeto político de “co-gestão indígena”, de “ocupação de espaços” de representação política. Devemos registrar aqui a importância que a Escola enquanto instituição adquiriu na vida e na organização social dos Terena. Podemos dizer que a Escola se constitui não só num mecanismo de mobilidade profissional individual e familiar, mas é também depositária de uma expectativa coletiva relacionada ao grupo étnico como um todo. As percepções simbólicas do grupo atribuem uma valorização expressiva à educação, escolarização, incorporando-os mesmo como valores do grupo. A educação é vista como um instrumento político e como símbolo de uma melhor posição de poder na sociedade brasileira. Podemos ilustrar isso por algumas informações colhidas junto aos indígenas. Numa conversa informal ocorrida entre o chefe de Posto de Cachoeirinha, o Cacique e etnógrafo em Campo Grande, logo após uma audiência pública sobre a questão indígena, o chefe comentou: “ os nossos parentes foram enganados na questão da terra, perderam muita terra porque não tinham estudo.” O índio Terena Wanderley, na ocasião membro de uma comissão especial de educação escolar indígena da secretaria estadual de educação do mato Grosso do Sul e depois administrador da FUNAI, afirmou na Audiência Pública “A Dívida de Mato Grosso do Sul com os Índios”,afirmou: 335 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. “A educação joga um papel muito importante na questão da afirmação identitária,por que?. Porque é na escola que nós vamos estudar muito da nossa história que foi negada (..). Aí as pessoas vão ter orgulho de ser índio, vão saber de onde vieram,e porque estamos hoje numa situação dessas, de conflito,queiramos ou não, de animosidade,de insegurança, de incerteza e de aflição. (...) E quero fazer um apelo aqui a toda liderança indígena, discutam no mesmo teor,no mesmo nível, com o mesma ênfase que se discute o óleo, semente, trator,discutam também o papel da educação para as nossas comunidades”. (fl 157-159). O antropólogo Kalervo Oberg, nos anos quarenta do século XX, já registrava mesmo que de maneira superficial esta valorização da escolarização por parte dos Terena: “The attitude of the local Brazilian toward the Terena is one of tolerant disdain. Like other Indians they are sometimes called bugres, a term o abuse associated with sodomy and heresy. (…) A Terena, on other rand, accepts Brazilians in general as superiors but adds that if he were better educated he could compete with a Brazilian on equal terms. (OBERG, 1948, p.38). Esta importância simbólica e identitária atribuídas pelos Terena a Escola pode ser percebida também no fato da classificação das Escolas existentes dentro de Cachoeirinha; com exceção da escola Pólo que leva o nome de Coronel Nicolau Horta Barbosa, todas as extensões levam os nomes de lideranças indígenas, caciques ou líderes de famílias extensas. Cada extensão existente em cada setor leva um nome: Sala Luís Raimundo, em Morrinho; sala Alexandre Albuquerque, na aldeia Lagoinha; sala Felipe Antonio, na aldeia Argola; sala José Balbino, na aldeia Babaçu; sala José Caetano, na Sede (todos fundadores ou antigos moradores das respectivas aldeias). Nestas escolas trabalham cerca de 20 professores indígenas, de um total de 25 que conseguimos identificar, estando duas professoras já aposentadas. A Escola é parte do espaço da aldeia construído simbolicamente, em que a percepção indígena se objetiva em instituições materiais, que para além das funções específicas, operam como espaços de referência e memória coletiva. Esta importância simbólica se associa conseqüentemente a uma diferença social e política, que faz com que os professores se destaquem como agentes políticos dentro das aldeias e dentro da política local como um todo. As Escolas ocupam um lugar importante na vida e na cultura dos Terena. Mas devemos observar, no entanto, como a instituição se insere na dinâmica da política local, e como estas se entrecruzam com as relações de trabalho e poder, configurando assim uma complexa configuração na qual se desenvolve a vida do povo Terena. Debateremos esta temática ao analisar as relações e restrições que se impõem as ações dos professores indígenas. A Escola serviu também como um importante espaço de formação das lideranças políticas Terena. As trajetórias individuais mostram que muitas vezes elas podem servir para preparar futuros candidatos a “caciques” – especialmente os mais jovens – dentro de determinadas facções, ou então administradores para a FUNAI e outros cargos. Dois casos ilustrativos disso são os de duas lideranças da vila Cruzeiro: Argemiro Turíbio e Edílson Pedro. 336 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Argemiro, em sua trajetória individual, começa sua atuação – ele mesmo o lembra – na Igreja Católica. Depois, investe em seus estudos, sai para estudar um curso técnico em agropecuária e retorna a aldeia em meados dos anos 1980, onde começa a atuar como professor. Participa, assim como sua esposa, Marlene, da experiência de mobilização dos professores indígenas, e depois seria candidato a vereador e eleito em 1998. Seria eleito cacique em 1991, e depois de deixar o cargo passaria a ser presidente da ACIC. Edílson Pedro, filho do ex-cacique Mário Pedro, tornou-se professor. Como vimos, foi também candidato a vereador em 2004, com o apoio da ACIC e dos lideres e parentela residente na vila cruzeiro, estando sendo preparado para assumir tarefas de “gestão” e administração dentro da aldeia. A Escola e atuação enquanto professor auxilia na formação de lideranças e na construção de redes de comunicação dentro da política local. Os dados quantitativos reproduzem essa tendência a busca da escolairazação pelo povo Terena. Obtivemos acesso a informações da Administração Regional da FUNAI117 sobre educação indígena para os anos de 1998, 1999 e 2000. Os dados relativos à escolarização da população indígena também são significativos. Em 1999 eram 3.684 os alunos que estudavam dentro das próprias áreas indígenas (3629 no ensino fundamental e 55 no ensino médio). Estudando fora das áreas indígenas existiam 240 alunos (152 no ensino médio, 88 no ensino superior público federal118 ). Eram 33 escolas em áreas indígenas, destas 28 ficam localizadas em aldeias Terena (dessas escolas, muitas são extensões de escolas que ficam localizadas fora das aldeias). Do total de alunos, 3.377 estavams nas áreas Terena (mais de 90% do total na FUNAI/AER Campo Grande). Em 2000 o total de alunos subiu para 3.975. Destes, 3.577 estão em áreas Terena. O volume de alunos cresceu e os Terena mantiveram a proporção de 90% do total de alunos. É interessante registrar que nos documentos relativos ao ano de 1998 o número de alunos no ensino médio dentro das aldeias é 0 enquanto que em 1999 é de 55. Isto revela que foi implementado o ensino médio dentro de algumas aldeias apesar dos documentos não apontarem quais. Dados de outubro de 2000 apontam à existência de 4.065 estudantes nas aldeias distribuídos em 38 escolas (26 escolas de 1º à 4º, 8 escolas de 5º à 8º e 4 escolas de ensino médio). Do total de alunos 309 estão na educação infantil, 3.666 no ensino fundamental e 90 no ensino médio. Fora das aldeias o número era de 345 (dos quais 78 estavam cur sando o nível superior). O total de professores no ano de 1999 é de 152. Destes 105 são indígenas (96 do órgão Municipal e 9 do Federal) e 47 “não índios” (em 1998 eram 78 os professores indígenas e 47 os “não índios”. Dessa maneira, em um ano, houve um crescimento na contratação de professores 117 118 Estes dados referem-se às populações das áreas discriminadas nas tabelas. FUNAI/AER-Campo Grande, seção de educação 1999. 337 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. indígenas da ordem de aproximadamente 15% (27 professores contratados). Em 2000 são 116 os professores índios e 55 os não índios). Entre 1998 e 2000 o número de estudantes cresceu tanto dentro quanto fora das aldeias, no ensino infantil, médio e superior. Cresceu também o número de professores indígenas dentro das áreas indígenas (foram contratados 38 professores indígenas para 8 não índios) entre 1998 e 2000. Existem alguns dados sobre as áreas de trabalho deste quadro de professores. Não consta, no entanto no documento o ano de sua produção e muitas das suas informações não batem com as anteriores. Caso os dados sejam precisos, num universo de 79 professores indígenas, 1 está em área Guató/Corumbá, outros 8 em área Kadiwéu em Porto Murtinho e todos os demais em áreas Terena. A presença Terena no ensino superior na FUNAI/AER - Campo Grande também é majoritária. Dados de 2001119 apontam a existência de 110 alunos matriculados em cursos universitários. Destes dois são Caiuás e um Kadiwéu. Todos os demais são da etnia Terena. Em Cachoeirinha existem cinco Escolas, sendo uma delas a Escola pólo “Coronel Nicolau Horta Barbosa”, localizada na Sede, que tem cinco extensões, uma em cada setor: Babaçu, Morrinho, Lagoinha, Argola. Esta Escola foi transformada em Escola Municipal Indígena pelo decreto municipal nº 1224 de 12 de novembro de 2001, que transformou a Escola Pólo Coronel Nicolau Horta Barbosa e instituiu as demais como extensões suas. O decreto municipal 1262 de 26 de agosto de 2002 substitui a designação “escola” atribuída às extensões no decreto 1224 por “salas”. As extensões são construções pequenas, com duas salas de aula, que se localizam normalmente nas áreas centrais das respectivas aldeias. Do ponto de vista administrativo, as escolas dos setores são subordinas a Escola Pólo, seguindo uma mesma organização pedagógica. O caráter de Pólo atribuído a Escola lhe dá autonomia administrativa dão poder de escolha de um diretor. A história da construção da “Escola Indígena” remete a processos locais e também nacionais. Um desses processos é a desvinculação da educação indígena da FUNAI, e sua transformação em atribuição dos poderes municipais. Parece que em Cachoeirinha a escola foi administrada pela FUNAI até 1985. A Escola teria passado ainda por período na rede estadual. Segundo os moradores, isso teria se dado num momento em que Sabino Albuquerque era cacique. Ele tinha uma aliança com o então prefeito, que foi rompida por desentendimentos políticos. Sabino teria conseguido o apoio do Governo do Estado e teria, com o apoio do CTI, reivindicado e conseguido estadualização da escola – exatamente para fugir ao controle que a prefeitura exercia, através dos mecanismos de contratação temporária de pessoal. 119 FUNAI/AER-Campo Grande. Diretoria de Assistência – Departamento de Educação. 338 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Nos anos 1990, o CTI desenvolve ações de incentivo a formação de uma associação de professores indígenas em Miranda. A formação da APROTEM (Associação dos Professores Indígenas Terena de Miranda) em 1994 indica o amadurecimento deste processo na região de Miranda. Out ros esforços de organização dos professores Terena teriam se dado também nos anos 1980. Mas o impulso final na direção da formação da Escola Indígena se daria no período 20002001, quando lideranças indígenas negociaram tal questão junto a Prefeitura, durante o primeiro Governo de Beth Almeida. As narrativas de alguns professores mostram como algumas questões estavam colocadas: como autonomia administrativa e pedagógica e relação da escola com a secretaria de educação e prefeitura. O professor Genésio Farias, que foi diretor interino da Escola Indígena, narra assim a historia da escola: “Aí fizeram um convênio, contratando professores, né, pagos pelo Estado. Aí, com essa documentação do pedido, aí que transformou a escola, a escola indígena. Quer dizer, tem uma diferença de entendimento. Esse documento aí, nunca foi referido pelo Município. Nunca aparece no discurso, dizer assim – Ah, esse documento, que a gente começou a pensar isso... Elas nunca falam isso. Nunca falam que foram vocês que tomaram a iniciativa. Não, não, nunca. A idéia foi nós, né. Foi nós que fizemos a escola indígena. Agora, na verdade, foi assim, essa escola indígena que aconteceu... Nós pedimos pólo, mas pra começar ela teve uma reunião. Interessante que a gente não comentou, com medo de problematizar o assunto. Desde que, quando a liderança entrou pediram pra liderança que querem a escola indígena, nós não problematizamos pra não atrapalhar. Essa é nossa idéia. Aí o que a liderança falou – Isso é um pedido nosso há muito tempo. Nós queremos a escola indígena. Então, muito bem. Nós vamos fazer essa escola aí pela prefeita, dizendo que a gente vai fazer, mas quando que a gente não sabe. A gente não tem equipamento, a gente não tem teoria pra isso. Mas, vamos fazer, e der o que der. Vocês serão responsáveis, os professores. E ela disse uma frase, assim, interessante, falou assim – Se a gente não souber levar essa escola, a gente pega nosso violãozinho, põe no ombro, e a gente volta novamente começar a fazer o que era antes. Ela usou essa frase. Ela falando da inexperiência, porque ninguém tem experiência. E justamente era aquela argumento nosso quando dizemos que a gente não quer ir na frente da liderança, pedindo a escola indígena, porque sabemos que é complicado. Como é complicado até agora, não é fácil essa questão. Como é que foi o papel da APROTEM em relação a isso? Essa história, da... nós tivemos também relacionamento com ONG, né. Nós tivemos relacionamento, por exemplo, a CTI de São Paulo... Então, nós tivemos um... o cacique Sabino, ele teve uma aproximação com essa ONG. Me parece que foi em 80, eu não lembro quando que é, não. Então essa ONG fazia um projeto em nome do lugar onde eles trabalhavam eles conseguiam recurso, e entravam em contato com a liderança. E a liderança quando pensava na educação, o que ele pedia? Pedia uniforme... Porque a educação é uma questão muito 339 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. complicada. Falar dela, o líder falar da educação. Então, quando a Maria Luiza que era coordenadora da educação do CTI chegava, tinha mais conversa com ele, e eu como professor, eu não concordava. E não concordava. Primeira vez a Maria Luiza sabia que eu tinha um pensamento diferente, primeira vez que eu tive contato com ela, sentamos bem na frente daquela escola da... Porque nós não concordamos também como o Sabino fazia. (...) E naquele momento a proposta dela era justamente a APROTEM. Ela entendia que os professores devem se organizar para poder fazer frente a essa questão do problema aí, do Município. Tinha muito problema de evasão, naquela época, né. Muito problema de evasão. O problema era sério na escola. E a proposta dela era a criação dessa organização de professores, e nós concordamos, fizemos essa organização. Primeiro foi aqui em Cachoeirinha, depois nós puxamos para os outros. Aí, na fundação dela mesmo, foi com todos os professores de Miranda. Então, acho que, mais ou menos, é isso, a história da... Porque, na verdade a gente tem relação com essa entidade até agora, né, ainda tá esperando, depende da gente conversar. Porque a comunidade convidou ela para ser acessor dessa briga, só que a gente não está abrindo a porta, convidando ela, né, porque a gente vê muito problemática aqui, né. Ou seja, trazer ela, porque o Município, uma vez ela veio, fez reunião, né, nós fizemos reunião, tivemos muita briga com ela, então a secretária, ela não tem boa relação com ela. Então, com isso, a gente não puxa ela, mas de vez em quando tá mandando umas cartas aí, né – Como é que é, a gente vai trabalhar? Tudo bem, nós estamos aí pra trabalhar, né. Quer dizer, a APROTEM surgiu desse diálogo com o CTI? É, a questão da APROTEM. E às vezes ela reclamava que a gente não fala o nosso discurso, o CTI, né. Que a gente não fala. (Riso) Agora eu faço questão do trabalho ser, né... A gente apresentar o nome dele. Que na verdade fizeram um trabalho de incentivo, só, incentivo. E muitas brigas... E o problema maior, eu acho, não sei, acho que vem contra nossa cultura, umas coisas assim, né. A gente faz confronto com município, e ela sempre fazia essa proposta – Não pode abaixar a cabeça. Tem que enfrentar. E a gente nunca cedeu, até agora. Não sei se você está percebendo esse nosso posicionamento, em relação nós mandar carta, que essa nossa carta, a gente não cria essa briga assim, de frente a frente, né. Não sei se é cultura, alguma coisa assim... uma questão de verificar e saber, né.” (Genésio Farias, Abril-Maio/2003) Ou seja, a discussão acerca da escola indígena é remetida iniciativa indígena dos caciques de reivindicar o projeto de formação de uma escola “pólo” – independente das escolas rurais ou das escolas municipais urbanas. A adoção dessa proposta pela prefeitura se deu através do dialogo das lideranças indígenas, APROTEM e a prefeita Beth Almeida. A criação da Escola Indígena possibilitaria a criação das eleições para a diretoria da escola, tornando-se mais um espaço de disputa política dentro da aldeia. É importante observar os atritos em relação ao CTI e a diferença de estratégia política, que não visava o enfrentamento mas a colaboração e o dialogo com a prefeitura. Outro professor indígena, Eliseu Lindolfo Sebastião, que foi o primeiro diretor eleito da escola comentou: “Olha, a construção, se bem que na verdade nós continuamos nessa batalha, nessa luta de conquistar realmente a escola indígena. Que, na verdade, o que está funcionando é uma experiência da prefeita, dona Bete, também da secretária, a professora Célia. Que na verdade ainda não é a escola indígena, não é essa a escola que a gente tá batalhando por ela. Continua sendo municipal – escola municipal indíg ena – mas comparando com a gestão anterior, já dá 340 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. pra perceber diferença. Que antigamente era considerado como se fosse uma escola rural... da fazenda. Não tinha essa diferença. Que a questão indígena é super diferente. Comparando a escola que fica na área indígena é diferente da que fica na área rural... nas fazendas, por exemplo. É superdiferente. E com essa administração da dona Bete, logicamente com a luta dos caciques e da APROTEM, que fizeram essa reunião, onde foi feita essa proposta de criar a escola indígena, aqui dos três povos. Aqui em Cachoeirinha, La Lima, Pílade Reboá. Onde a prefeita entendeu que é um pedido da comunidade, não é de uma pessoa. Onde a prefeita decidiu, teve essa ousadia, e até ela falou – Vamos fazer essa experiência, vamos juntos fazer essa experiência, se eu errar, todos vão errar, não vou errar sozinha. Então foi uma ousadia através da prefeita, e com isso foi criada a escola indígena e onde eu trabalhava também a portaria do reconhecimento junto ao conselho estadual de educação, e graças a Deus foi reconhecida à escola. Tanto a escola daqui, da La Lima, e da Pílade. Mas que não foi fácil não. Foi uma luta grande mesmo. Qual a diferença do que vocês pedem em relação a escola indígena, com o que vocês têm hoje? Hoje, o que dificulta, bom, não tanto agora. Mas pensando comparando a escola sendo considerada como escola rural, é uma escola onde acaba sendo manipulada, e essa manipulação, a gente tá querendo colocar um ponto final, a escola não ter liberdade de decidir sua própria política, o seu próprio plano político pedagógico. Isso é uma coisa que se a escola não tem, é praticamente uma escola sem objetivo. E o que nós queremos com isso? A escola que tenha autonomia e seja uma escola que tenha o seu objetivo, qual é a sua meta enquanto um estabelecimento de ensino, de educação. (Eliseu Lindolfo Sebastião, Abril-Maio/2003). Nesse sentido, a autonomia administrativa e pedagógica reivindicada e a independência em relação às lutas políticas locais era um dos objetivos da “Escola Indígena”. Entretanto o depoimento do próprio Eliseu mostra que na realidade na gestão do primeiro diretor eleito existiam restrições a essa autonomia. Tal problemática remte a própria historia da construção da Escola Indígena e também as relações políticas dentro do município. No período 2004-2006 alguns acontecimentos irão marcar mudanças nessas relações (especialmente as eleições municipais 2004 e o processo de luta pelo poder dentro da Cachoeirinha). A análise de algumas trajetórias individuais e situações de conflito (envolvendo professores indígenas e poderes locais) permitirá uma compreensão do funcionamento da “co-gestão” indígenas no nível local da política. O projeto da gestão indígena parece esbarrar nas relações de poder dentro da Escola tomada enquanto espaço de trabalho. As relações entre trabalho e política serão aqui consideradas do ponto de vista das práticas que as equacionam numa totalidade complexa e dinâmica. Entendemos que esta vinculação é tão estreita que nos permite pensar na necessidade de formular o problema das relações interétnicas, pelo menos em parte, em função delas. È preciso considerar que a Escola é não somente um espaço simbólico e político, mas também um espaço de trabalho, em que os índios buscam empregos assalariados. Sem considerar essa dimensão, é impossível compreender o funcionamento da co- gestão indígena. 341 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Iremos delimitar inicialmente o universo de pessoas consideradas, ou seja, de professores indígenas Terena com quem conversamos e interagimos. Professores Professores Professores Marlene Lipú Anésio Alfredo Pinto Celinho Belizário Josefina Muchacho Maria Rosário Gonçalves Nerci Julio Raimundo Luzinete Julio Edílson Antonio Pedro Rui Sebastião Sebastião Rodrigues Aldenira Pinto Julio Eduardo Candelário Nilza Júlio Anilson Julio Marlene Rodrigues Amarildo Julio Helena Antonio da Silva Isidoro Pereira Pinto Maiza Antonio Silviana Augusto Aronaldo Júlio Vania Antonio da Silva Olavo Pinto Eulógia Aguiller Albuquerque 120 Temos aqui um número total de vinte e três professores indígenas. Selecionaremos algumas entrevistas e informações levantadas junto a eles sobre esta a questão da relação entre trabalho e política, que mostram as formas concretas pelas qualis a co-gestão se estabelece. No entanto cabe antes caracterizar a própria forma de inserção destes indígenas nas relações de trabalho, o que acaba condicionando e influenciando a própria dinâmica política indígena dentro das aldeias, a ação dos professores e também a própria política local. Pelo que conseguimos apurar, apenas 3 dos 23 professores indígenas são funcionários públicos concursados, o que lhes garante do ponto de vista jurídico-trabalhista, estabilidade no emprego, sendo que dois destes se encontravam aposentados em 2006 e um em atividade. Os outros professores são “convocados”, ou seja, tem vínculo empregatício com a prefeitura regulado por um contrato temporário, renovado anualmente mediante a convocação da prefeitura. Iremos analisar três casos diferentes em que se coloca o entrecruzamento das relações de trabalho, do seu lugar na vida indígena e as relações de poder. Todos os três professores são membros de parentelas importantes e grandes dentro da Cachoeirinha. Começaremos relatando o caso do professor Anésio Pinto, um dos três mais antigos da Cachoeirinha, que começou a atuar na década de setenta como professor. Ao descrever sua história de vida ele fala: Primeiramente, diga seus dados pessoais. Nome, nome dos pais, escolaridade. “Meu nome é Anésio Alfred Pinto, tenho 45 anos, etnia Terena, professor há 25 anos. Meus pais são naturais de Aquidauana e eu também sou natural de Aquidauana, mas atualmente tô morando aqui no município de Miranda, meus pais chama Ricardo Pinto, falecido, e minha mãe Mariana Alfredo Pinto, falecida também. Meu pai teve só 4ª série primária, agora eu como filho dele terminei o magistério e cursei um ano de faculdade mas não terminei.(...) Queríamos que você falasse da sua trajetória como professor. 120 Esta professora é uma Purutuye casada com um Esídio Albuququerque e mora em Cachoeirinha há muitos anos. 342 Capítulo 6 – Co-gestão indígena. Em 1973 me fizeram um convite, a aldeia Argola me fez um convite para dar aula para os adultos. Antigo Mobral, onde qual eu dei aula 1 ano e 6 meses. Ai depois eu vi, eu casei com minha esposa, eu vi que tava meio difícil já de sustentar os meus filhos, depois eu desistir, depois de 1 ano e 6 meses, ai eu tive que sair para poder sustentar os meus filhos, por causa que o pagamento naquele tempo era muito atrasado, o Mobral num pagava assim mensalmente, então ai eu tive que sair. Foi quando eu sai para fazenda onde qual me procuraram, onde eles me localizaram, né, então eles me localizaram eu tava numa fazenda trabalhando, e ai eles mandaram me chamar... Quem chamou? Foi a secretaria de educação porque naquele tempo o Mobral era vinculado através da secretaria de educação. Ai eu voltei e passei lá depois, ai chegando lá em Miranda eles deram a oportunidade novamente para mim, ai eu comecei novamente. Ai eles tinham falado para mim que o meu pagamento já estava em ordem. Ta bom eu vou voltar, vou terminar mais estes 4 meses, para poder ter o fechamento dos meus diários essas coisas, né. Tá bom. Ai depois de 2 anos eu p