ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
EM MISSÃO INTEGRAL
A Trindade como modelo relacional e libertador
ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
Esse campo da teologia tornou-se um verdadeiro
campo
de batalha, com autores e escolas teológicas
EM MISSÃO
INTEGRAL
num verdadeiro estado de conflagração. Temos diversas correntes de pensamento que interpretam o
mistério da Trindade de modos tão diversos e, não raro, divergentes.
De que tipo é a relação das três pessoas? É de subordinação? São elas geradas eternamente?
Quem é maior ou menor? São elas iguais? E assim vão se sucedendo as perguntas. O fato inegável,
nessa questão, é que estamos diante de um mistério: um só Deus e três pessoas. Ele se mantém
único e comunitário; uno e trino ao mesmo tempo; diverso em pessoas, mas indiferenciável em
status, como nos ensina o credo de Atanásio ı .
ı Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar a fé católica.
Porque aquele que não a professar, integral e inviolavelmente, perecerá sem dúvida por toda a eternidade.
A fé católica consiste em adorar um só Deus em três Pessoas e três Pessoas em um só Deus.
Sem confundir as Pessoas nem separar a substância.
Porque uma só é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo.
Mas uma só é a divindade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, igual a glória e coeterna a majestade.
Tal como é o Pai, tal é o Filho, tal é o Espírito Santo.
O Pai é incriado, o Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado.
O Pai é imenso, o Filho é imenso, o Espírito Santo é imenso.
O Pai é eterno, o Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno.
E contudo não são três eternos, mas um só eterno.
Assim como não são três incriados, nem três imensos, mas um só incriado e um só imenso.
Da mesma maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente.
E contudo não são três onipotentes, mas um só onipotente.
Assim o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus.
E contudo não são três deuses, mas um só Deus.
Do mesmo modo, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor.
E contudo não são três senhores, mas um só Senhor.
Porque, assim como a verdade cristã nos manda confessar que cada uma das Pessoas é Deus e Senhor, do mesmo
modo a religião católica nos proíbe dizer que são três deuses ou senhores.
O Pai não foi feito, nem gerado, nem criado por ninguém.
O Filho procede do Pai; não foi feito, nem criado, mas gerado.
O Espírito Santo não foi feito, nem criado, nem gerado, mas procede do Pai e do Filho.
Não há, pois, senão um só Pai, e não três Pais; um só Filho, e não três Filhos; um só Espírito Santo, e não três
Espíritos Santos.
E nesta Trindade não há nem mais antigo nem menos antigo, nem maior nem menor, mas as três Pessoas são
coeternas e iguais entre si.
De sorte que, como se disse acima, em tudo se deve adorar a unidade na Trindade e a Trindade na unidade.
Quem, pois, quiser salvar-se, deve pensar assim a respeito da Trindade.
Mas, para alcancar a salvacão, é necessário ainda crer firmemente na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A pureza da nossa fé consiste, pois, em crer ainda e confessar que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e
homem. É Deus, gerado na substância do Pai desde toda a eternidade; é homem porque nasceu, no tempo,
2
da substância da sua Mãe.
Deus perfeito e homem perfeito, com alma racional e carne humana.
Igual ao Pai segundo a divindade; menor que o Pai segundo a humanidade.
E embora seja Deus e homem, contudo não são dois, mas um só Cristo. É um, não porque a divindade se tenha
convertido em humanidade, mas porque Deus assumiu a humanidade.
Num discurso da fé, a partir da concepção da missão integral de Deus, a revelação da Trindade não é
apenas a revelação da natureza de Deus e de seus atributos. A revelação não deverá ter como objetivo
informar quem Deus é, mas como ele vive e se relaciona. A revelação é, voltamos a dizer, libertadora.
Como podemos, então, conceber essa vida divina? Como Deus vive? De modo relacional. Esse deve
ser o objetivo da revelação para nós. Deve ser para mais do que alimentar abstrações ou a pergunta
de se há ou não uma relação de subordinação entre as pessoas da Trindade. De fato, é apenas
aparente a “subordinação” entre o Pai que comanda, o Filho que faz a vontade do Pai e o Espírito que
coopera. A a aparente diferença é apenas operacional, e não ontológica. Tem-se, entretanto, de cuidar
para que a utilidade de se discutir se há ou não subordinação entre o Pai, o Filho e o Paracleto; se é
ontológica ou operacional; aparente ou real; não se reduza à improdutiva tentativa de dissecar Deus,
de torná-lo mero objeto de estudo, encaixá-lo numa fórmula e reduzi-lo a uma equação.
Quando olhamos para a Trindade, não para entender Deus mas para saber como ele vive, nos
deparamos com uma revelação libertadora. Quando Deus se revela é para nos libertar. Deus é uma
comunidade, vive como uma comunidade e nos diz para vivermos como seres comunitários. Deus é
relacional. Se fomos criados à sua imagem e semelhança, logo nós também somos seres relacionais.
Voltemos ao início.
“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; (...)
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;” (Gn 1.26, 27)
Esse texto marca uma mudança de ritmo e de forma na Criação. Até então, Deus falava e tudo vinha
à existência. Antes da Criação do homem temos uma declaração de intenção e uma descrição.
“Façamos o homem...”
A fé cristã entende que essa afirmação nos apresenta a Trindade - doutrina que afirma haver três
pessoas e um só Deus: Pai, Filho e Espírito Santo, como declara G. W. Bromiley 2
2 Um, finalmente, não por confusão de substâncias, mas pela unidade da Pessoa.
Porque, assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim também a divindade e a humanidade
formam um só Cristo.
Ele sofreu a morte por nossa salvação, desceu aos infernos e ao terceiro dia ressuscitou dos mortos.
Subiu aos Ceus e está sentado a direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
E quando vier, todos os homens ressuscitarão com os seus corpos, para prestar conta dos seus atos.
E os que tiverem praticado o bem irão para a vida eterna, e os maus para o fogo eterno.
Esta é a fé católica, e quem não a professar fiel e firmemente não se poderá salvar.
in artigo Trindade, in Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã – v.3 – W..A. Elwell – editor – ed. Vida Nova
mi
MISSÃO
na integra
3
ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
EM MISSÃO INTEGRAL
Gosto de pensar nesse texto como uma declaração de intenção; como se tivesse havido uma
ESCOLA LIVRE
DE TEOLOGIA
conferência entre as três pessoas, cuja conclusão
fosse
a criação do ser humano.
EM MISSÃO INTEGRAL
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;”
Eis a descrição do projeto: o homem seria à imagem e semelhança o Criador.
O que significaria isto?
Primeiro, quem é o Criador? Uma vez que o homem foi criado tendo-o como modelo, responder a
essa pergunta é crucial para a compreensão do que significa o termo “homem”.
Como declara Bromiley 3, o Deus do Universo, para os cristãos, é a unidade de três pessoas: Pai, Filho
e Espírito Santo.
É uma comunhão, uma família, uma comunidade. Há três pessoas e um só Deus.
Para James Huston “Deus é o permanente conselho das três pessoas eternas” 4
Sobre o tema, Stanley Rosenthal 5 afirma: “A última palavra hebraica da Shema ‘Ouve, Israel, o
Senhor, nosso Deus, é único’ (Dt 6.4) é echad, que, embora traduzido por ‘único’, é um substantivo
coletivo - em outras palavras, um substantivo que demonstra unidade, ao mesmo tempo que se trata
de uma unidade que contém várias entidades. Poderíamos citar exemplo: em Números 13.23 lemos
que, os espias, pararam em Escol onde ‘cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas’.
A palavra que aqui aparece como ‘um’, em ‘um cacho’, novamente é echad, no hebraico. Mas, como
é evidente, esse único cacho de uvas consistia em muitas uvas.”
Segundo Rosenthal, a palavra echad, embora traduzida por “unidade”, fala de um conceito de
unidade que não tem sido devidamente explorado; uma unidade que contempla, em si, diversidade.
Essa colocação aponta para a possibilidade de se falar sobre unidade sem, contudo, restringir-se
ao conceito de uma peça única. É um conceito que talvez pudesse ser melhor traduzido por “um
conjunto único, distinto, só reconhecido como tal, e inconfundível”.
O que afirmamos, quando falamos da Trindade, senão uma unidade que contem, em si, diversidade?
A unidade da três pessoas co-eternas e co-todo-poderosas. Unidade que não é mero ajuntamento,
mas, comunhão profunda.
4
3
4
5
Op. cit.
Congresso Brasileiro de Espiritualidade – 1998 – São Paulo - Brasil
A Tri-unidade de Deus Velho Testamento – Stanley Rosentahl - Fiel
Segundo, o que significa ser “imagem e semelhança” de Deus? Saber isso é compreender como
deveríamos ser.
Derek Kidner 6 diz que, para alguns teólogos, “ ‘imagem’ é a indelével constituição do homem como
ser racional e como ser moralmente responsável e ‘à semelhança’ é aquela harmonia com a vontade
de Deus, perdida com a queda”. Ele, porém, diz que não há, no original, a partícula aditiva “e”, de
modo que os termos se reforçam (a palavra, então, seria imagem-semelhança). A imagem seria a
“expressão ou transcrição do Criador eterno e incorpóreo em termos de uma existência temporal,
corpórea e própria de uma criatura – como se poderia tentar a transcrição, digamos, de um poema
épico numa escultura, ou de uma sinfonia num soneto.” O que, segundo Kidner, perdemos dessa
imagem-semelhança, na queda, foi o amor, que recuperaremos quando for retomada nossa plena
comunhão com o Senhor.
“Complicado...”, alguém pode pensar. E é mesmo. O que só comprova a dificuldade de trabalharmos
a questão do significado do termo “imagem-semelhança”.
Sem menosprezar a dificuldade inerente ao tema, pensando na definição: “ ‘imagem’ é a indelével
constituição do homem como ser racional e como ser moralmente responsável e ‘à semelhança’
é aquela harmonia com a vontade de Deus, perdida com a queda”; gostaria de propor algumas
considerações:
Não são os anjos, também, seres moralmente responsáveis?
Pedro disse: “Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram...” (2 Pe 2.4)
Como os anjos poderiam pecar, se não fossem moralmente detentores de arbítrio, uma vez que a
opção pelo pecado pressupõe capacidade de escolha?
“...reservando-os para juízo” (2 Pe 2.4)
Como qualquer ser pode ser julgado, se não for moralmente responsável?
Não são os anjos, também, racionais?
Como os anjos poderiam comunicar-se de maneira lógica conosco, como fizeram, por exemplo, com
Ló (Gn 19.10-22) se não fossem seres racionais?
Ao observar diálogos entre anjos e homens, como com Ló, ou com Zacarias (Lc 1.8-23), ou com Paulo
(At 27.22-24) parece-me não haver dúvidas de que os anjos, também, são seres racionais.
6 Gênesis – introdução e comentário – série cultura bíblica – Derek Kidner – eds Mundo Cristão/Vida Nova
mi
MISSÃO
na integra
5
ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
EM MISSÃO INTEGRAL
Se, o ser imagem de Deus 7 “é a indelével constituição do homem como ser racional e como ser
ESCOLA LIVRE
moralmente responsável” e, se a semelhança,
está DE
naTEOLOGIA
“harmonia com a vontade de Deus”, então,
EM MISSÃO INTEGRAL
os anjos fiéis também poderiam ser classificados assim, pois, como parece-me demonstrável, são
seres racionais e moralmente responsáveis que não perderam nada de sua criação original mantendo
harmonia com a vontade de Deus.
Se, o ser imagem-semelhança, como diz Kidner 8 , é ser transcrição do eterno em termos de
existência temporal, os anjos, também, estariam incluídos, uma vez que são criaturas que, num
determinado espectro, expressam Deus. (Ex 23.20,21) E que, por terem sido criados, estão no
tempo, pois, tiveram início, ainda que o tempo, talvez, não lhes faça diferença.
Entretanto, somente do homem é dito que foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Que teríamos, então, que nos dá esta exclusividade?
Gosto de pensar que esta imagem-semelhança inclui, além do já citado, algo que só é comum a
Deus e a nós: a unidade. Entendo que, guardadas as devidas proporções, somos as únicas criaturas
de Deus que podem alcançar o que Deus vive: a unidade, onde dois ou mais são um só.
Vejamos como isso aparece no processo da nossa criação:
“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus os criou; macho e fêmea os criou”.
(Gn 1.27) (RC).
Seriam, realmente, duas criações? Visitemos outros textos.
“Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida,
e o homem passou a ser alma vivente”. (Gn 2.7)
Então, o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das
suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o Senhor Deus tomara ao homem,
transformou-a numa mulher e lha trouxe”. (Gn 2.21,22)
Entendo que macho e fêmea são descritos como uma única criação, já que o barro e o sopro (que
dá vida ao ser humano) só aparecem uma vez. O segundo ser não é uma segunda criação mas uma
duplicação do ser criado. Sendo que, no segundo ser, Deus fez desabrochar características que não
fizera desabrochar no primeiro.
“Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus
o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que
foram criados”. (Gn 5.1,2)
6
Duas pessoas, um só nome. Quando o Criador celebrou o primeiro casamento (Gn 2.24) surgiu o
homem à imagem semelhança da Trindade.
Adão era o nome do casal, não apenas do ser masculino, Adão era o nome do casal.
A mulher só ganhou o nome de Eva depois da queda: “E deu o homem o nome de Eva a sua
mulher, por ser a mãe de todos os seres humanos” (Gn 3.20). Quando, então, o macho passou a
ter governo sobre a fêmea: “e à mulher disse: (...) o teu desejo será para o teu marido, e ele te
governará’.” (Gn 3.16) Se Deus condenou a mulher a essa condição de subserviência ao homem
como conseqüência da queda, é de se supor que antes não era assim, isto é, que a relação entre
ambos não era de governo. Antes da queda, a relação entre macho e fêmea era de unidade – viam-se
como extensão um do outro, além do que não eram distintos por Deus.
Por isso, o homem, à imagem e semelhança de Deus, sugiro, é um ser coletivo.
Quando Deus chamava: “Adão!”, macho e fêmea se voltavam para falar com Ele.
Novamente, guardadas as devidas proporções, o macho e a fêmea estavam um para o outro como as
pessoas da Trindade Santa estão entre Si. Eram duas pessoas e um só homem.
“Em Gn 2.24, Deus (...) instruiu marido e mulher a tornarem-se ‘os dois uma só carne’, indicando
que aquelas duas pessoas unir-se-iam, formando perfeita e harmônica unidade. Em tal caso,
novamente, a palavra hebraica é echad”, afirma Stanley Rosenthal 9; a mesma palavra que descreve a
unidade de Deus no Shema (Dt 6.4)
Se Deus é uma família, Sua imagem-semelhança também o tem de ser.
Se Deus é uma unidade-comunhão, Sua imagem-semelhança também o tem de ser.
Note-se que, independente da conclusão que proponho, o projeto divino privilegiou a unidade: criou
uma pessoa e a duplicou. Duas pessoas, portanto, vieram a existir a partir de uma única manipulação
do barro e de um único ato divino de soprar. Matriz e duplicata formaram, apenas, um casal. A matriz
nunca mais seria duplicada, a espécie seria formada pela multiplicação, fruto de entrega mútua, entre
o casal; toda a raça seria, por conseguinte, uma só família.
Deus criou-nos tendo a Si como modelo. O que caracteriza a Trindade é o amor, vínculo da perfeição
(Cl 3.14), que une perfeitamente. Amor, para a Trindade é comunhão, não mero sentimento. Deus
criou-nos para, a exemplo da Trindade, nos amarmos com esse amor que unifica; criou-nos para
vivermos em unidade; nos criou “unidade” e para a unidade.
7 Também, segundo Kidner, op. cit., dizem alguns teólogos.
8 Op. cit.
9 A Tri-unidade de Deus no Velho Testamento – Stanley Rosenthal - Fiel
mi
MISSÃO
na integra
7
ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
EM MISSÃO INTEGRAL
Se não tivéssemos caído, penso, seríamos hoje, no mundo, talvez, bilhões de pessoas que, à
LIVREde
DE tal
TEOLOGIA
semelhança da Trindade, estaríamos nosESCOLA
amando
forma que, apesar de muitos, seríamos
EM MISSÃO INTEGRAL
um só homem: o homem à imagem e semelhança de Deus. O homem à imagem e semelhança de
Deus, guardadas as devidas proporções, é como Ele – unidade, no nosso caso, formada a partir da
comunhão de todos os seres humanos. A queda, de fato, foi marcada pela quebra de unidade entre o
homem e Deus, entre macho e a fêmea.
Mesmo que a ação mantenedora de Deus, por sua graça, tenha nos mantido em condições de
experimentarmos, ainda que de modo extremamente rarefeito, a possibilidade de união – que
é inferior ao conceito de unidade - o que perdemos é algo que não temos mais condições de
apreender.
A revelação de Deus como a Trindade é libertadora. Não é um conhecimento para diletantes. Ao
contrário, traz libertação, emancipa-nos do estado de alienação em que nos encontramos. Toda
revelação é libertadora, e não pode ser outra maneira.
Tem de ser conhecimento a nos beneficiar. Não pode reduzir-se a elucubração acerca de um ser que
transcende nossa capacidade de entendimento. É necessário tratar de tais questões, porque sempre
existe o risco de construirmos um deus à imagem e semelhança do nosso próprio intelecto. A idéia
de uma Trindade, claro, revela que Deus é trino, mas revela acima de tudo como Deus vive: ele é
relacional, comunitário. Deus é uma família. Essa revelação é libertadora. Liberta-nos em relação ao
outro, seja Deus ou o próximo.
Vivemos em uma sociedade competitiva, onde as pessoas são marcadas pelo instinto de
sobrevivência, e não pela solidariedade. Para sobrevivermos, temos que nos matar uns aos outros. O
que está por trás dessa visão é uma compreensão deformada do significado do ser gente. Deus é um
ser relacional. Uma vez que nos criou à sua imagem e semelhança, a idéia que temos do ser humano
como um ser competitivo está errada, porque um ser relacional não poderia criar seres competitivos.
A competitividade é, portanto, um desvio, porque Deus vive cooperativamente. Quando dizemos:
“Ah, aquele sujeito é muito competitivo”, estamos apontando para um desvio, não para uma virtude.
A competitividade nunca será uma virtude, porque virtude é a cooperação entre as pessoas. Não nos
damos conta disso, e então estimulamos a competição e aplaudimos pessoas competitivas.
Quando votamos, digamos, para presidente, esperamos eleger alguém que nos levará para o primeiro
mundo. A pergunta que podemos nos fazer é: “À custa de quem chegaremos lá?” Há um preço a
ser pago para colocar o país no patamar das nações mais ricas. Se tomarmos a riqueza do mundo,
e dividirmos esse valor pelo número de habitantes do planeta (aproximadamente sete bilhões),
chegamos a um valor para cada pessoa. Se alguém tiver o dobro é porque há quem não tem nada. É
pura aritmética. Dinheiro não cai do céu nem cresce em árvore. Não existe mágica, não imprimimos
8
o nosso próprio dinheiro nem fabricamos ouro. Logo a riqueza saiu de algum lugar. A promessa do
capitalismo é a de que o sistema produzirá a riqueza das nações. Não existe, porém, para o conceito
desse sistema, riqueza sem capital, sem competição e, portanto, sem desigualdade.
Chegamos, assim, ao âmago do capitalismo, logo, o grupo dos países mais ricos do mundo não quer
rebaixar o padrão nem nivelar as coisas. Não há qualquer possibilidade de diálogo. Nada está aberto
a negociações. E ponto. O sistema continuará a funcionar do mesmo jeito e as outras nações que se
ajustem. É isso ou nada.
Quando dizemos que precisamos eleger um presidente que nos leve a participar do grupo das
nações mais ricas, temos de perguntar: às custas de quem conseguiremos isso? Não temos que
fortalecer esse grupo. Ao contrário, temos que desmobilizá-lo! Recentemente, um pastor de grande
igreja de Uganda afirmou que, a despeito dos seus incontáveis membros, não conseguiam ser
eficazes contra a pobreza da comunidade, por causa do estado de penúria a que todos estavam
condenados. Não é possível olhar para uma situação dessas e dizer que temos que fortalecer o grupo
das nações mais ricas! Esse grupo está vitimando as demais nações do mundo. Esse estado de coisas
é um pecado, a opulência é pecado.
Um discurso pastoral da fé que não questiona tudo isso corre o risco de não afetar a história. O
discurso pastoral da fé, para ser relevante, tem que ter conseqüência, se não a revelação se torna um
dado alienador, exatamente o contrário do que deveria ser.
Discutir se há ou não subordinação na Trindade, se são três as pessoas, ou três as hipóstases ou ainda
três as essências etc, diante da crise gerada por esse sistema em que estamos imersos, pode tornar-se
em despropósito, se não nos mantivermos focados no motivo da revelação da Trindade: que Deus
vive comunitariamente, que ele criou seres à sua imagem e semelhança, que esses mesmos seres
devem viver como uma comunidade. Se não vivem assim, estão fora do propósito para o qual foram
criados.
Esse é, portanto, o objetivo da Trindade ter se revelado como tal. Insistimos em dizer que Deus não
está dando informações de si para que nos ocupemos escrevendo tratados filosóficos sobre sua
essência. Deus se revelou para nos libertar.
Se falharmos em captar esse elemento libertador da revelação, então de pouco ou nada terá nos
adiantado esse conhecimento. Diante duma desigualdade que não conhece limites. Os seres
humanos podem ser embrutecidos até o ponto de literalmente se tornarem feras. Não podemos
assistir a tudo isso impassíveis e ainda dizer que temos que, simplesmente ir para o grupo das nações
mais ricas. Soa a insanidade. Fazer o que lá? A ira de Deus vai se revelar algum dia, e será contra as
nações ricas do mundo que seu braço se moverá, porque não entenderam que Deus deseja um
mundo comunitário, e não individualista; inclusivo, e não excludente; solidário, e não competitivo.
Há quem oponha o discurso pastoral da fé à política, defendendo que são esferas excludentes. Esta
oposição expulsa Deus do mundo, tira-o da história, da realidade humana. Um Deus assim, fora do
mi
MISSÃO
na integra
9
ESCOLA LIVRE DE TEOLOGIA
EM MISSÃO INTEGRAL
mundo, da história altera o que? O que ele terá a nos dizer? Nada. A única coisa que poderíamos
ESCOLA
LIVRE DE TEOLOGIAque teria nos criado apenas por um
concluir a seu respeito é que ele é um Deus
inconseqüente,
EM MISSÃO INTEGRAL
capricho. Assim era, pelo menos, o que os gregos diziam de seus deuses. Eram seres poderosos
e suscetíveis, que brincavam com o destino dos homens. Restava apenas resignar-se e aceitar
passivamente o bom ou mau humor de deuses caprichosos.
Aqueles que advogam uma teologia sem conseqüências nos dizem a mesma coisa: “Resigne-se,
tudo o que você pode fazer é sofrer Deus.” Um Deus brincalhão, gracejador do infortúnio alheio
e caprichoso não se interessaria por nada que nos dissesse respeito. De fato, um tal Deus teria
mais semelhança com um demiurgo. Não restaria à humanidade outra coisa que não sofrer Deus.
Passíveis, ficaríamos sujeitos ao humor de um Deus instável, que usaria os homens para espantar o
tédio da sua vida.
Nada disso faria qualquer sentido. Não seria um Deus, seria uma caricatura.
Não é esse Deus que se revela na Bíblia e na pessoa de Jesus Cristo. O Deus que se revelou a nós, ao
contrário, é um Deus que se importa, que age na história e vem para nos libertar. Se um Deus assim
não afetar a história, a política, afetará o quê? É aqui e agora que vivemos: na política, na economia,
na sociedade. Se o Deus que fala e faz não muda a realidade, então muda o quê? Estas estão muito
longe de ser perguntas meramente retóricas. Antes, vão direto ao âmago da questão: com que tipo
de Deus estamos lidando? A resposta nos dirá o que esperar desse Deus.
A teologia da prosperidade, a mais popular corrente teológica em voga em nosso país, imiscuiu-se
na vida política sob a idéia de que Deus tem seus beneficiários, cristãos especiais portadores de
uma super fé. O deus da teologia da prosperidade é um deus que tem gente a quem ele abençoa e
gente a quem ele nega suas bênçãos. De acordo com essa visão, Deus abençoaria apenas os cristãos
“competitivos”, favoreceria a riqueza e as posses materiais e zombaria dos pobres, que passam à
mingua por não terem fé. O deus da teologia da prosperidade é o diabo. Quem zomba dos pobres
e ri dos necessitados é Satanás, não o Deus e Pai de Jesus Cristo e do Antigo Testamento. O Deus
de Israel é aquele que chama os homens à justiça, à eqüidade. É o Deus que exige que se faça
justiça ao órfão e à viúva, se socorra o necessitado e se acolha o estrangeiro. O deus da teologia
da prosperidade é uma impostura, que vai fazer uns cada vez mais ricos enquanto deixará outros
morrerem na penúria.
Numa sociedade desigual e que favorece o acúmulo de riquezas, não há dinheiro para tornar a todos
milionários. O deus da prosperidade não nos deixa ser solidários, porque isso seria premiar a falta de
fé, o pecado dos pobres. A miséria é a paga dos pobres por sua idolatria. É irônico que há países de
inegável riqueza, em há mais idolatria do que entre nós. Numa inversão das causas, lá a falta de fé em
Deus parece não ser punida. Há religião majoritária religiosa em países “prósperos”, que nem mesmo
sabem a quantos deuses prestam culto. É até possível encontrar os que se devotam a adorar Mamon!
10
Aqui algo parece não se encaixar na lógica da teologia da prosperidade.
Quando afirmam que as nações mais ricas do mundo têm o cristianismo como religião oficial, os
defensores dessa corrente ignoram que o progresso material das nações “cristãs” deveu-se mais à
beligerância dos de alguns povos, do que a uma suposta virtude religiosa. Foi o uso da violência
–às vezes com requintes de crueldade– contra outros povos que permitiu às nações européias
dominarem o mundo.
Tais povos viveram o tempo todo em guerra, sempre se lançando em guerras de conquistas. É isso
que explica sua prosperidade. Os povos que viviam em grandes espaços, estavam mais ligados à
natureza e menos à guerra. Não é que não houvesse guerras entre esses povos. Apenas que se
dedicavam mais à luta pela sobrevivência.
Os herdeiros de tribos marcadas pela sede de conquistas, acabam por explicar seu progresso material
sem precedentes. Os espanhóis não conquistaram os aztecas porque eram mais avançados do que
estes –o contrário era o que sucedia– , mas porque eram mais violentos. Do mesmo modo, os povos
africanos não sucumbiram às investidas dos colonizadores europeus por que eram inferiores, mas
porque estes se superaram no uso da força e da crueldade.
Sem o Cristianismo, provavelmente, tais os povos já teriam destruído o planeta. A fé judaico-cristã
atuou como força atenuante, impedindo que a violência crescesse numa escalada constante.
Quando o embaixador americano chegou, no século XIX, ao Japão, o país estava fechado para o
mundo ocidental. Após longa ação diplomática, o enviado americano conseguiu uma audiência com
os xoguns. Estes disseram ao diplomata que os japoneses não conheciam uma guerra há duzentos
anos. E perguntaram: e vocês? Os americanos haviam acabado de sair de uma. O mundo ocidental
não conhece um ano sem guerra.
Nosso papel, enquanto povo, é dizer aos europeus e aos americanos que sejam coerentes com a fé
que dizem professar. E o que diz essa fé? Que Deus é relacional, comunitário, que ele é uma família.
Neste ponto, alguém pode se perguntar: “O que é isso? Discurso pastoral ou política?” Não existe
discurso pastoral divorciado do mundo. Se nosso discurso pastoral não tem nada a dizer ao mundo
real, como demonstrará a relevância de sua mensagem? Esse é o ponto. Precisamos olhar para a
revelação de Deus como ação libertadora.
mi
MISSÃO
na integra
11
Realização
mi
MISSÃO
n a in te gra
www.missaonaintegra.com.br/eltmi
Download

ElTMI004-15 Apostila Ari.indd