Impacto da qualidade da matéria-prima na indústria de laticínios Mônica Maria Oliveira Pinho Cerqueira1, Cláudio Antonio Versiani Paiva2, Mônica de Oliveira Leite1, Leorges Moraes da Fonseca1, Marcelo Resende de Souza1, Cláudia Freire de Andrade Morais Penna1 1 Professores do DTIPOA/Escola de Veterinária da UFMG; Médico Veterinário, estudante de Pós-Graduação da Escola de Veterinária da UFMG 2 1. Introdução O agronegócio do leite é um dos setores mais importantes da economia brasileira. A produção de leite está distribuída de forma heterogênea em todo o território nacional, e estima-se que 800.000 produtores e que mais de 3.000.000 de pessoas ocupem direta e indiretamente um posto de trabalho no setor (CNA, 2001 citado por Alvim et al., 2002). Segundo Carvalho et al. (2005), apenas 6 a 7% dos produtos lácteos produzidos mundialmente são comercializados internacionalmente. Dentre as razões para esse baixo volume comercializado entre os diferentes países destacam-se: os laticínios estão entre os produtos mais protegidos mundialmente, com quase US$ 40 bilhões em subsídios anualmente, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico); o leite é produzido em várias regiões do mundo, tanto em climas secos como em climas úmidos, tanto em latitudes altas como latitudes baixas; o consumo tem aumentado justamente em países em que a produção também tem aumentado. De cada 100 litros produzidos a mais no mercado em 2010, 71 litros serão originários de países em desenvolvimento, a maior parte para abastecimento local. No ano de 2004, pela primeira vez na história, o Brasil terminou o ano com superavit no comércio internacional de leite. Foram exportados naquele ano US$ 11,5 milhões a mais do que os valores importados. Desde então, o Brasil vem aumentando gradativamente a sua participação no mercado internacional de lácteos. O cenário é otimista e as projeções de exportação para o ano de 2015 são superiores a 4 bilhões de litros de leite. Em 2007, o mercado mundial comercializou 40 milhões de toneladas de leite, excluindo o comércio entre países da União Européia. O Brasil pode vir a fazer parte desse mercado tornando-se um dos maiores exportadores de leite para o mundo em 2015. Porém, para que isso ocorra, é preciso que se avance ainda mais nas questões relativas a melhoria da qualidade do leite, da produtividade, e do controle sanitário do rebanho, além de questões relativas ao financiamento da atividade, negociações internacionais e exigências do mercado externo. Nesse contexto, o sucesso econômico do Brasil no mercado internacional de lácteos dependerá, entre outros fatores, da melhoria da qualidade do leite e do aumento do rendimento da matéria-prima em produtos acabados. Por esse motivo, a valorização dos componentes sólidos do leite na política de preços pagos ao produtor tende a ser uma ação obrigatória para as empresas que pretendem ser competitivas no mercado internacional (Carvalho et al., 2005). No Brasil, durante muito tempo, pouca atenção foi dada à qualidade da matéria-prima, ou seja, do leite cru. Sabe-se que a melhoria das condições de produção, de obtenção, de estocagem do leite nas fazendas, de transporte até as indústrias e de acondicionamento nas plantas são etapas fundamentais para garantir a qualidade do leite e de seus derivados. Nos últimos anos, no entanto, houve alguns avanços da cadeia produtiva do leite no Brasil. Entre eles, destacam-se a profissionalização do produtor, a granelização da captação de leite, os investimentos em modernização e ampliação do parque industrial, a regulamentação do setor pelos órgãos oficiais e o monitoramento da qualidade do leite por parâmetros internacionais. Com isto, mudanças na produção e produtividade, maior especialização e alguma melhoria na qualidade do leite produzido no país começam a ser observados. A coleta de leite a granel no Brasil foi adotada a partir do início da década de 90. Nesse sistema, o leite cru armazenado em tanques de expansão a 4ºC por até 48 horas é transportado para a indústria em caminhão com tanque isotérmico. Em 2002, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) publicou a Instrução Normativa nº 51, que estabelece o Regulamento Técnico de Produção, Identidade e Qualidade do Leite Tipo A, do Leite Tipo B, do Leite Tipo C e do Leite Cru Refrigerado. Neste regulamento constam os requisitos de qualidade, incluindo os parâmetros físico-químicos, microbiológicos, contagem de células somáticas (Brasil, 2002) e de resíduos de medicamentos veterinários (Brasil, 1999), com redução gradativa a partir de 2008 até 2011. Além da Instrução Normativa nº 51 (Brasil, 2002), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) publicou em 1999 (Brasil, 1999), a Instrução Normativa nº 42, que estabelece normas e regulamentos para a coleta, metodologia de análise, monitoramento e ações preventivas ligadas ao controle de resíduos em produtos de origem animal. A matéria-prima está entre os principais fatores que influenciam a qualidade dos derivados lácteos, e neste contexto destacam-se a contagem de células somáticas e a contagem bacteriana total do leite cru. Na verdade, há um longo caminho a percorrer e o país precisa se preparar, pois novas e maiores exigências surgirão, principalmente do mercado internacional. 2. Qualidade do leite produzido no Brasil: breve relato sobre a situação A produção de leite no Brasil é muito diversificada e se caracteriza por diferentes sistemas de produção. Há produtores muito tecnificados que produzem volumes expressivos de leite e outros que ainda produzem leite em sistemas mais simples, sem muita tecnologia agregada. Comparando-se, no entanto, a qualidade do leite produzido, percebe-se que os problemas de qualidade muitas vezes são comuns e independem muito do tipo de sistema e da tecnologia adotada. Alguns trabalhos de pesquisa (Picinin, 2003; Lamaita et al., 2005) têm demonstrado que a qualidade de leite produzido em propriedades que realizam ordenha mecânica e manual é semelhante (p>0,05) (Tabelas 1 e 2). Tabela 1. Contagens médias (log10 UFC/mL) de microrganismos aeróbios mesófilos e psicrotróficos de leite cru refrigerado e estocado por 48 horas em diferentes propriedades mineiras segundo o tipo de ordenha. Média e s CV Valor mínimo Valor máximo Microrganismos (log10 UFC/mL) (%) (log10 UFC/mL) (log10 UFC/mL) (tipo de ordenha) Mesófilos (manual) 5,58 + 0,75a 13,4 4,48 6,83 Mesófilos (mecânica) 5,61 + 0.52 a 9,4 4,70 6,89 Mesófilos (total) 5,59 + 0,65 11,7 4,48 6,89 Psicrotróficos (manual) 5,69 + 0,59 a 10,4 4,48 6,67 Psicrotróficos (mecânica) 5,39 + 0,55 a 10,2 4,48 5,94 Psicrotróficos (total) 5,56 + 0,59 10,5 4,48 6,67 a Letras iguais para mesmos microrganismos não diferem significativamente (p>0,05). Fonte: Picinin (2003) Isto pode sugerir que falhas no manejo de ordenha estão ocorrendo nos diferentes sistemas de produção, o que compromete a qualidade do leite produzido. No campo, estes resultados podem refletir em falta de critérios dos produtores quanto aos procedimentos de manutenção preventiva e também às falhas nos processos de limpeza e desinfecção dos equipamentos. Tabela 2. Médias, Desvios-padrão e coeficientes de variação da contagem de Staphylococcus sp, contagem de células somáticas (CCS) e contagem bacteriana total (CBT) de amostras de leite de propriedades com diferentes tipos de ordenha. Staphylococcus CCS CBT Manual Balde CanaliManual Balde CanaliManual Balde ao Canaliao pé zada ao pé zada pé zada Média 4,56ª 4,46ª 4,42ª 5,68ª 5,73ª 5,63ª 5,9ª 5,65ª 5,88ª s 0,58 0,58 0,4 0,36 0,30 0,39 0,76 0,87 1,07 CV 12,71 13,0 9,0 6,34 5,23 6,92 12,88 15,31 18,19 (%) a Médias na mesma linha, seguidas por letras minúsculas iguais, são estatisticamente semelhantes (p>0,05). Fonte: Lamaita et al. (2005) Sabe-se que o resfriamento do leite a 4C, no máximo 3 horas após a ordenha, foi um dos importantes passos para a melhoria da qualidade do leite. No entanto, se a ordenha não for higiênica, os microrganismos psicrotróficos podem dominar a microbiota do leite, chegando a representar 75% dos microrganismos (Cousin, 1982). As conseqüências do predomínio destes microrganismos no leite estocado sob refrigeração por 48 horas na propriedade estão relacionadas à capacidade destes microrganismos produzirem enzimas proteolíticas e lipolíticas termoestáveis, causando diversos prejuízos às indústrias de laticínios. No Brasil, o que se tem constatado na prática é uma dificuldade de ajuste entre os horários de término da ordenha e de coleta do leite. A partir daí, vários problemas surgem quando a ordenha não foi completada ou quando terminou imediatamente antes da coleta. Em outras palavras, o leite não foi suficientemente resfriado à temperatura necessária e o transporte do leite acaba ocorrendo em temperatura mais elevada. As conseqüências podem ser observadas na qualidade de todo o leite transportado, sendo caracterizadas principalmente por elevação da contagem de microrganismos mesofílicos. Segundo dados dos laboratórios que compõem a Rede Brasileira de Laboratórios de Análise da Qualidade do Leite, a contagem bacteriana total (CBT) tem sido um dos parâmetros com maiores índices de não conformidade, considerando a Instrução Normativa n51/MAPA (Brasil, 2002). No Laboratório de Análise da Qualidade do Leite da Escola de Veterinária da UFMG (LabUFMG), por exemplo, os resultados são ainda preocupantes (Tabela 3). Verifica-se que 24,6% das amostras estavam fora do padrão legal (máximo de 1,0 x 106 UFC/mL) estabelecido para o leite refrigerado e estocado por 48 horas em propriedades leiteiras. Estes dados assemelham-se aos de Mendonça et al. (2001) que, ao avaliarem a qualidade microbiológica do leite produzido em Minas Gerais, constataram também elevado percentual de amostras (32%) com contagens de microrganismos mesofílicos superiores a 1,0 x 106 UFC/mL. Picinin (2003) observou que 25,81% dos produtores analisados não atenderiam o padrão estabelecido para julho de 2005 (Brasil, 2002). Tabela 3. Distribuição da contagem bacteriana (UFC/mL) de 11.400 amostras de leite cru analisadas no Laboratório de Analise da Qualidade do Leite da Escola de Veterinária da UFMG durante o período de dezembro de 2003 a abril de 2004. Contagem Bacteriana (UFC/mL) < 100.000 101.000 a 300.000 301.000 a 750.000 751.000 a 1.000.000 >1.001.000 Fonte: Fonseca et al. (2004) Ocorrência (%) 33,4 20,5 16,7 4,8 24,6 Percentual de amostras fora dos padrões legais segundo a IN 51 Estes resultados preocupam, pois análises mais recentes de qualidade do leite produzido no Brasil demonstram a necessidade urgente de melhoria dos parâmetros analisados. Resultados, por exemplo, de amostras analisadas no LabUFMG (Fonseca et al., 2009) demonstram que os parâmetros mais críticos em 1.176.000 amostras analisadas são a contagem bacteriana total (CBT) e o extrato seco desengordurado (Figura 1). Gordura Proteína ESD EST CCS CBT Parâmetros Figura 1. Percentual de amostras não conformes analisadas no LabUFMG no período de 2007 a 2009 segundo a Instrução Normativa n 51 (Brasil, 2002). Fonte: Fonseca et al. (2009) Um ponto importante que deve ser considerado sobre estes resultados, refere-se ao atual sistema de coleta de leite adotado no Brasil pelas indústrias de laticínios. A coleta de leite feita hoje, basicamente por volume, deve ser revista, pois quando o leite de boa qualidade microbiológica de uma fazenda for coletado e misturado no caminhão com o de alta contagem microbiana, o leite que apresentar elevada contagem bacteriana, certamente piorará a qualidade microbiológica do leite daqueles que o estão produzindo com baixa contagem microbiana. Em outras palavras, o esforço de alguns e a remuneração destes produtores de forma diferenciada podem ser “perdidos” pelas indústrias que pagam por qualidade, se não houver orientação e um programa nacional para melhoria da qualidade microbiológica do leite. Pouco irá adiantar pagar mais por sólidos, por exemplo, se a contagem microbiana não for contemplada e se não tiver um peso significativo nos programas de bonificação e/ou penalização. Pode-se com isto ter mais rendimento industrial, mas problemas como baixa qualidade sensorial e pequena vida de prateleira continuarão ocorrendo, comprometendo a imagem do produto nacional. Outro aspecto relevante refere-se à qualidade dos tanques refrigeradores. Estes devem atender os requisitos estabelecidos pela Instrução Normativa n48 (Brasil, 2002). Lamaita et al. (2005) avaliaram a qualidade do leite estocado em diferentes tipos de tanques refrigeradores e observaram resultados surpreendentes (Tabela 4). Tabela 4. Médias, desvios-padrão e coeficientes de variação da contagem de Staphylococcus sp, contagem de células somáticas (CCS) e contagem bacteriana total (CBT) de amostras coletadas de diferentes tanques refrigeradores. Staphylococcus Imersão Média s CV (%) a 6,28ª 0,64 10,19 Individual 5,51ª 0,44 7,98 Comunitário 5,95ª 0,6 10,08 Imersão 5,94ª 0,86 14,48 CCS Individual 5,68ª 0,33 5,81 Comunitário 5,70ª 0,4 7,01 Imersão 5,58ª 0,69 12,36 CBT Individual 5,76ª 0,89 15,37 Comunitário 6,06ª 0,75 12,37 Médias na mesma linha, seguidas por letras iguais, são estatisticamente semelhantes (p>0,05). Fonte: Lamaita et al. (2005) A manutenção técnica dos tanques de expansão é um ponto importante a ser discutido, pois define os procedimentos adotados para o adequado funcionamento do equipamento, inclusive para ajuste do dispositivo de temperatura. Em 59 tanques (74,7% do total avaliado), a temperatura registrada pelo termostato do equipamento foi inferior à temperatura mensurada em termômetro aferido e adequado à utilização por indústrias de laticínios. A variação chegou a ser superior a 6°C, pelo termômetro aferido. A temperatura indicada no tanque foi semelhante à mensurada no termômetro comercial em nove observações (11,4%). A temperatura indicada no tanque foi superior à do termômetro aferido em 11 observações (13,9%), sendo a variação neste caso de apenas 0,7°C para menos no termômetro comercial. As variações nas mensurações da temperatura do leite do tanque demonstram que os mesmos não estão bem calibrados e isto pode contribuir para uma maior proliferação de microrganismos no leite, incluindo Staphylococcus sp. (Lamaita, 2003). Outro ponto importante que pode contribuir para a contaminação do leite é a qualidade da água. Picinin (2003), ao avaliar a qualidade da água de 31 propriedades leiteiras de Minas Gerais, observou que 87,10% das amostras não apresentaram níveis aceitáveis para coliformes a 30C e 45C, segundo a Portaria Nº 1.469 de 29 de dezembro de 2000, do Ministério da Saúde, que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2001, de acordo com Brasil (2001). Por isto, a baixa qualidade microbiológica da água utilizada nas fazendas, indica a necessidade de mais pesquisas e adoção de medidas corretivas, devido aos riscos de contaminação do leite, afetando consideravelmente sua qualidade final. Desta forma, não se pode falar em qualidade do leite sem avaliar a qualidade da água da propriedade leiteira. 3. Influência da qualidade do leite cru na qualidade dos produtos lácteos A matéria prima está entre os principais fatores que influenciam a qualidade dos derivados lácteos, e neste contexto destacam-se a contagem de células somáticas e a contagem bacteriana total do leite cru. 3.1 Efeito da elevada contagem de células somáticas A contagem de células somáticas no leite do tanque aumenta quando as vacas apresentam mastite, processo inflamatório da glândula mamária, geralmente causada por um agente bacteriano. O leite de vacas com mastite é caracterizado pelo aumento da contagem de células somáticas (Kitchen, 1981). O epitélio da glândula mamária é comumente afetado, resultando em menor produção e alteração na composição do leite (Auldist e Hubble, 1998). Devido à resposta inflamatória durante a mastite, ocorre um influxo dos componentes do sangue para o leite (Kitchen, 1981). Estes componentes do sangue incluem uma variedade de enzimas hidrolíticas que alteram a composição do leite e promovem a degradação da caseína e da gordura do leite (Grieve e Kitchen, 1985). Azzara e Dimick (1985) e Verdi e Barbano (1988) reportaram que leites com alta CCS apresentam aumento das atividades proteolíticas e lipolíticas. As principais enzimas proteolíticas e lipolíticas associadas à alta CCS são a plasmina (termo-estável) e a lipase (lipoproteína), respectivamente. Outros pesquisadores também documentaram que as atividades de enzimas proteolíticas do leite aumentam com o aumento da contagem de células somáticas (Barry, 1980). A importância dessas enzimas proteolíticas e lipolíticas para a indústria de leite está diretamente ligada ao rendimento na fabricação de diversos produtos lácteos, e aos defeitos sensoriais decorrentes das ações enzimáticas sobre a caseína e gordura do leite (Kitchen, 1981). Em comparação com o número de pesquisas já realizadas sobre a influência da CCS no rendimento de fabricação de queijo, há muito pouco material disponível correlacionando a CCS com a qualidade do leite fluido pasteurizado e outros derivados. Diversos estudos (Ruffo et al.,1975; O'Leary e Leavitt,1982; Munro et al.,1984; Grandison e Ford, 1986; Mitchell et al., 1986) indicaram que elevada CCS reduz o rendimento na fabricação de queijo. Os efeitos desta elevada CCS sobre o rendimento e a qualidade total do leite e dos queijos incluem aumento do tempo de coagulação e da perda de gordura e caseína no soro (Politis e Ng Kwai, 1988a; Politis e Ng Kwai, 1988b; Barbano et al., 1991; Klei et al., 1998;) e reduzida qualidade sensorial e vida de prateleira (Munro et al., 1984). Em um estudo realizado por Verdi e Barbano (1987) para determinar se havia ou não associação entre alta contagem de células somáticas e aumento da proteólise da caseína, constatou-se que houve maior degradação da caseína em leites com alta contagem de células somáticas. O estudo mostrou que as amostras de leite com baixa contagem de células somáticas (176.000 CCS/mL) após serem incubadas a 37°C por 24 horas, apresentaram um aumento de 11,5 (leite in natura) para 29,5% nos níveis de degradação da caseína. Já as amostras com alta contagem de células somáticas (673.000 CCS/mL), tiveram 37,1% da caseína degradada, em comparação aos 30% iniciais no leite in natura. O estudo demonstrou que houve uma relação significativa entre atividade proteolítica da caseína e alta contagem de células somáticas. Tempos prolongados de armazenamento ou transporte do leite resultaram em degradação enzimática da caseína, comprometendo o rendimento de queijos fabricados com leite com alta contagem de células somáticas. A mistura de leite com alta e baixa contagem de células somáticas também pode resultar na degradação da caseína proveniente do leite com baixa CCS. Gargouri et al.. (2008) estudaram a relação entre diferentes contagens de células somáticas e os efeitos da lipólise no leite. Três grupos de amostras de leite contendo diferentes variações de CCS foram analisados (Grupo 1: < 1.000 x 103 céls./mL; Grupo 2: 1.000 - 1.500 x 103 céls./mL; Grupo 3: >1.500 x 103 céls./mL). Os níveis de lipólise medidos em meq de Acid Degree Value/100g de gordura, encontrados nos grupos 1, 2 e 3 foram, respectivamente: 1,40 a; 1,76a e 2,29b). O estudo demonstrou que a extensão da lipólise não apresenta correlação significativa com o teor de gordura (r = 0,04; p > 0,05), também observado em outros trabalhos (Chazal e Chilliard, 1986; Cartier et al., 1990). Porém, houve uma alta correlação positiva com a contagem de células somáticas total do tanque (r 2 = 0,33; p > 0,001). O padrão de alteração no nível de lipólise em relação à contagem de células somáticas observada nesse estudo está de encontro com outros trabalhos reportados anteriormente (Murphy et al., 1989; Harmon, 1994; Ma et al., 2000; Santos et al., 2003). O efeito da proteólise no leite associada com o aumento da contagem de células somáticas foi estudado por Senyk (1985). Comparando-se seis níveis crescentes de CCS x 103 (50, 100, 200, 500, 1.000 e 2.000) com dois diferentes tratamentos e período de estocagem (leite cru a 6,7°C/72horas e leite pasteurizado a 6,7°C/14 dias), observou-se em ambos tratamentos um aumento no nível de proteólise do leite, medido pelo valor da tirosina. O aumento no valor da tirosina nas amostras de leite com contagens de células somáticas acima de 1.000 x 103 foi aproximadamente quatro vezes maior do que os valores encontrados em leites com contagens menores que 100 x 103. É esperado que o aumento da CCS resulte em maior nível de proteólise em leites pasteurizados conforme demonstrado por Richardison (1983), devido à atividade da plasmina mesmo após o processo de pasteurização. Ma et al.. (2000) demonstraram que a mastite afeta a qualidade do leite fluido pasteurizado acelerando o aparecimento de defeitos sensoriais como sabor amargo e ranço. Esses defeitos são causados pela proteólise e lipólise, respectivamente. O estudo avaliou o tempo de estocagem a 5°C (1, 7, 14 e 21 dias) e a degradação da caseína nos diferentes períodos, comparando os resultados entre os leites com alta e baixa contagem de células somáticas. Aos 21 dias de estocagem, o leite com alta CCS apresentou uma diminuição no teor de caseína em relação à proteína total de 4.04%, enquanto que o leite de baixa CCS apresentou uma redução de 1,5%. Este estudo demonstrou que o leite pasteurizado com baixa CCS tem um potencial muito maior de alcançar uma vida de prateleira mais longa do que leites com alta CCS, quando a contagem bacteriana é mantida baixa. Em um estudo sobre o efeito da CCS na qualidade do leite fluido pasteurizado, Ma et al., (2000) demonstraram resultados importantes a respeito da lipólise, proteólise e qualidade sensorial do leite. O leite pasteurizado com alta CCS mostrou-se mais susceptível à lipólise durante a estocagem sob refrigeração. Isso indica que as lipases permanecem ativas após o processo de pasteurização. O Acid Degree Value encontrado aos 21 dias de estocagem para o leite com baixa CCS foi de 0,68 meq/100g de gordura, 25% acima do valor encontrado no primeiro dia de estocagem sob refrigeração. Esse valor foi de 1,00 meq/100g de gordura aos 21 dias para o leite com alta CCS, 65% acima do valor encontrado no primeiro dia de estocagem sob refrigeração. O ranço tem sido associado com elevados níveis de ácidos graxos livres (Shipe, 1980), e foi reportado que Acid Degree Value a partir de 1,00 meq/100g de gordura já é possível perceber indícios na alteração sensorial (Bodyfelt, 1988). No que diz respeito à proteólise, a relação caseína/proteína total sofreu uma redução de 4,04% após 21 dias de estocagem sob refrigeração. A maioria dos países desenvolvidos melhorou a qualidade e o rendimento de seus produtos lácteos executando programas para reduzir o nível de células somáticas do leite. Muitas indústrias preocupadas com a qualidade do leite executam a análise do leite para recompensar os produtores que primam em produzir um leite da alta qualidade e com uma baixa incidência de mastite (Britten e Emerson, 1996; Keeter, 1997; Mickelson et al., 1998; Jayarao et al., 2001). 3.2 Efeito da contagem bacteriana total No leite cru há uma diversidade de microorganismos, incluindo os psicrotróficos, que podem se multiplicar a 7ºC ou menos, independentemente de sua temperatura ótima de crescimento; as termodúricas, que podem sobreviver ao tratamento térmico da pasteurização; as láticas, que acidificam rapidamente o leite cru não-refrigerado; os coliformes e as bactérias patogênicas, principalmente as que causam mastite (Hayes et al., 2001). A ação dos microorganismos ou de suas enzimas sobre os componentes lácteos causa várias alterações no leite e seus derivados. Esses defeitos incluem sabores e aromas indesejáveis, diminuição da vida de prateleira, interferência nos processos tecnológicos e redução do rendimento, especialmente de queijos (Hicks et al., 1982; Champagne et al., 1994). O leite pode se contaminar por microorganismos presentes na pele, no esfíncter, no canal dos tetos, no úbere, em quartos infectados e pela água usada na limpeza dos equipamentos de ordenha. Bactérias presentes na superfície de equipamentos de ordenha mal higienizados constituem outra fonte de contaminação (Bramley, 1990). Wong (1998) conduziu um estudo para avaliar a eficácia de cada ciclo de limpeza do equipamento de ordenha pelo método Clean-in-Place: pré enxágüe, enxágüe com detergente, pós enxágüe ácido e enxágüe com desinfetante. O pré enxágüe removeu aproximadamente 45% do resíduo total do leite. O enxágüe com detergente removeu adicionalmente 27% e o pós enxágüe ácido diminuiu a quantidade de ATP em mais 22%. Após o enxágue final com desinfetante, a quantidade de ATP foi reduzida a < 1% do nível inicial. O resíduo de leite foi removido principalmente pelo pré enxágüe e pelo enxágüe com detergente, indicando a importância dos efeitos mecânicos e químicos. O sanitizante foi importante para reduzir ainda mais o número de bactérias no término do ciclo de limpeza. A limpeza dos tetos antes da ordenha reduz a contagem bacteriana (Pankey, 1989). A lavagem dos tetos com água deve ser realizada com cuidado e logo em seguida, deve-se realizar a secagem dos mesmos (Galton et al., 1984). McKinnon et al.. (1983) demonstraram que a contaminação por bactérias e esporos no leite cru refrigerado diminuiu quando os tetos eram lavados e secados antes da ordenha em comparação à não realização da lavagem ou lavando, porém não secando os tetos. Em um estudo realizado por Jeffrey e Wilson (1987) sobre o efeito da mastite na contagem de bactérias total do tanque, verificou-se que 75% das amostras de um total de 9.066 apresentavam contagem microbiana maior do que 45.000 UFC/mL. Do total das amostras, 43,8% estavam relacionadas com bactérias causadoras da mastite. Verificaram-se em um quarto das amostras, culturas quase puras para Streptococcus agalactiae, Streptococcus. dysgalactiae, Streptococcus. uberis, Staphylococcus aureus ou Staphylococcus coagulase-negativo. Aproximadamente 75% das penalidades impostas aos produtores eram atribuíveis às bactérias causadoras de mastite na maioria das amostras do leite. Bactérias Gram-negativo presentes no leite refrigerado em tanques incluem microorganismos que são patogênicos ao homem e animais e aqueles que diminuem a qualidade do leite (Jayarao et al., 1997; Steele et al., 1997). Microorganismos Gram negativo associados à redução da qualidade do leite podem ser divididos em dois grupos: coliformes e não-coliformes. Os coliformes incluem Citrobacter spp., Enterobacter spp., Escherichia coli, e Klebsiella spp. (Bray, 1996). As bactérias Gram-negativo não coliformes incluem um grande grupo de espécies pertencentes aos gêneros Acinetobacter, Aeromonas, Flavobacterium, Moraxella, Pasteurella, Pseudomonas, e Xanthobacter. Dentre as bactérias que pertencem a estes gêneros, Pseudomonas em particular, foram em várias ocasiões responsáveis pelos defeitos no leite cru, no leite pasteurizado e outros produtos lácteos (Suhren, 1989). Sabe-se que as condições de armazenamento influenciam a qualidade do leite, e pesquisas realizadas no passado apontam para o crescimento bacteriano como a principal causa para a diminuição da qualidade do leite (Roupas, 2001; Barbano et al., 2006). Por esse motivo, a indústria leiteria apóia-se no resfriamento do leite para manter a qualidade do leite cru durante o armazenamento e o transporte. Há um consenso que a qualidade se deteriora com o passar do tempo, e que armazenar o leite por muito tempo prejudica a sua qualidade microbiológica, seu rendimento industrial e sua conformidade para fabricação de vários produtos lácteos (Barbano et al., 1991; Mara et al., 1998; Roupas, 2001; Barbano et al., 2006). As bactérias psicrotróficas produzem enzimas extracelulares que podem causar proteólise e lipólise no leite (Cousin, 1982). Também é conhecido que o armazenamento a 4°C não interrompe o crescimento dos microorganismos psicrotróficos (Cousin, 1982; Rowe e Gilmour, 1983; Shelley e Deeth, 1986). O acúmulo e a ação de enzimas extracelulares são geralmente correlacionados com a deterioração da qualidade do leite e dos produtos lácteos, como se pode observar na Tabela 5 (Sorhaug e Stepaniak, 1997). Tabela 5. Efeito do crescimento de psicrotróficos no leite cru antes do tratamento térmico sobre a qualidade dos produtos lácteos. Produto Leite UAT Psicrotróficos em leite cru (Log UFC/mL) 5,9 Efeito sobre a qualidade Gelificação após 20 semanas 6,9-7,2 Gelificação após 2-10 semanas, desenvolvimento gradual de sabores de sujo, amargo e envelhecido Leite em pó 6,3-7,0 Redução da estabilidade térmica e aumento da capacidade de formar espuma em leite reconstituído Leite pasteurizado 5,5 Sabor de qualidade inferior quando comparado com leite pasteurizado produzido com leite fresco Queijos duros 6,5-7,5 Rancidez 7,5-8,3 Alteração no sabor, principalmente rancidez e sabor de sabão. Redução do rendimento de fabricação 5,0-7,8 Correlação significante entre a contagem de psicrotróficos no leite cru e sabor amargo Cotage cheese Manteiga Iogurte Não determinado 7,6-7,8 Desenvolvimento mais rápido de rancidez em manteiga feita a partir de leite refrigerado do que de leite fresco, lipase de Pseudomonas estava ativa na manteiga congelada Gosto amargo, sabor “sujo” ou de fruta, dependendo da microbiota presente Fonte: Adaptado de dados compilados por Sorhaug e Stepaniak (1997) Apesar do conhecimento destas informações, o leite produzido no Brasil ainda apresenta, de modo geral, uma elevada contagem de microorganismos psicrotróficos. O problema está relacionado à qualidade da água utilizada nas fazendas, às falhas na higienização dos equipamentos (ordenha e tanque refrigerador) e também à contaminação durante o transporte do leite. Falhas na higienização dos caminhões de coleta à granel podem comprometer a qualidade do leite produzido e analisado nas fazendas. É preciso monitorar esta qualidade e atualmente há diversas ferramentas disponíveis que permitem às indústrias, identificar pontos de contaminação e melhorar os procedimentos de higienização empregados. Entre estas ferramentas, destacam-s os métodos rápidos que utilizam swabs para monitoramento de superfícies. Sem este monitoramento, a indústria corre o risco de pagar o leite por uma qualidade e processar com outra. As consequências são imediatas e relacionam-se a perdas econômicas significativas e ao surgimento de defeitos tecnológicos que comprometem a qualidade sensorial e a vida de prateleira dos derivados lácteos. Portanto, é necessário repensar os controles realizados e perceber que os cuidados para a produção de leite com qualidade se iniciam na fazenda, continuam durante a captação e transporte do leite até o processamento tecnológico na indústria. Em todas as etapas, monitorar a qualidade é fundamental. 4. Captação seletiva do leite cru refrigerado em função da qualidade Leite com alto teor de sólidos pode ser coletado separadamente nas fazendas ou entre fazendas, permitindo que o mesmo seja destinado para fabricação de produtos com maior valor agregado, por exemplo, leite produzido com uma proteína em particular (Larking, 1989). Os programas de pagamento por qualidade do leite no Brasil bonificam os produtores que atingem os requisitos de qualidade e penalizam aqueles que não os alcançam. Contudo, devido à grande diferença de qualidade do leite encontrado nas fazendas, o atual processo de captação acaba comprometendo a qualidade da matéria prima ao chegar à indústria. O aumento do rendimento de fabricação dos produtos lácteos pode justificar a implantação da captação seletiva de leite, direcionando o leite com baixa contagem bacteriana e de células somáticas para a produção de produtos com maior valor agregado. 5. Considerações Finais Promover ações nas indústrias de laticínios para melhorar a qualidade da matéria prima (leite cru) é essencial para garantir a qualidade sensorial, físico-química e microbiológica dos produtos lácteos. No Brasil, as indústrias estão finalmente implantando medidas de monitoramento para a obtenção de leite de melhor qualidade, mas é preciso repensar também os modelos de captação do leite no país. O acondicionamento de leite de qualidade satisfatória e insatisfatória no mesmo caminhão e silo compromete todo o trabalho do produtor e eleva as perdas econômicas das indústrias. O momento é de repensar e de monitorar, implantando um bom programa de rastreabilidade e de assistência técnica. Integrar todos os elos da cadeia produtiva na busca de melhoria da qualidade do leite cru deve ser a meta de todas as indústrias do país. Assim, aumentaremos a produção de um leite de melhor qualidade, de forma sustentável. 6. Referências Bibliográficas ALVIM, R. S., MARTINS, M. 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