JEREMY BIGWOOD
Esta publicação do
programa de segurança
do WOLA promove
moderação, racionalidade
e o respeito pelos direitos
humanos e instituições
civis no debate sobre as
políticas de segurança
nos Estados Unidos,
na América Latina e na
Organização dos
Estados Americanos.
O Conceito Novo de Segurança
Hemisférica da OEA:
Uma Ameaça Potencial
Gastón Chillier e Laurie Freeman
Introdução
A
Declaração Sobre Segurança nas Américas, adotada pela Organização dos
Estados Americanos (OEA) em outubro de 2003, criou um novo conceito
de segurança hemisférica que amplia a definição tradicional, entendida
como defesa de segurança dos Estados, a partir da incorporação de novas ameaças,
preocupações e desafios que incluem aspectos políticos, econômicos, sociais, de saúde
e ambientais. Ou seja, quase todos os problemas podem ser considerados agora uma
potencial ameaça à segurança.
Un Informe Especial do WOLA
J ulho 2005
Consideramos que a implementação deste novo conceito multidimensional constitui
um risco de aumento da securitização dos problemas da região e, por conseguinte,
a militarização como uma resposta para confrontá-los. Este risco existe devido à
três principais fatores: Primeiro, a tendência histórica de intervenção política por
parte das forças armadas durante a vigência dos regimes autoritários no contexto
de conflitos armados ou de instabilidade social. Segundo, as crises dos sistemas de
segurança pública que sofre a maioria dos países da região. Terceiro, “a guerra contra
o terrorismo” lançada pelos Estados Unidos, que promove uma definição expansiva
e nebulosa do terrorismo, aumentando a responsabilidade das forças militares para
combater o terrorismo em qualquer forma que esse se expresse.
As deficiências do novo
conceito de segurança
adotado pela OEA
criam as condições para
justificar, como nunca
antes, o uso das forças
As deficiências do novo conceito de
segurança adotado pela OEA criam
as condições para justificar, como
nunca antes, o uso das forças armadas
dos países da região em missões que
tradicionalmente e formalmente não lhes
correspondem. Esta tendência regional em
direção à securitização é também reforçada
pela propensão da atual política externa
dos Estados Unidos de ver tudo através
da lente do terrorismo. Este cenário
obstrui o longo e trabalhoso caminho da
consolidação das democracias regionais
e o fortalecimento das instituições civis.
Ademais, essa parece ser uma maneira
ineficaz e inapropriada de resolver a ampla
gama de problemas de origem social,
econômica, política, ambienta, entre
oturos, que se apresentam na região.
armadas dos países
da região em missões
que tradicionalmente e
formalmente não lhes
correspondem.
A Militarização na
América Latina
A América Latina conta com um legado
histórico de militarização como resposta
a conflitos internos, instabilidade e
crime. Apesar da região não ser mais
governada por ditaduras militares e todos
os países da região, exceto um, contarem
com líderes eleitos democraticamente,
são vários os governos que recorrem
a suas forças armadas para responder
a problemas internos. Isto se deve
principalmente à dois fatores: a ameaça
do tráfico de drogas (e as políticas antinarcóticos dos Estados Unidos que
patrocinam a participação militar nas
ações de combate ao narcotráfico) e a
falta de políticas de segurança pública,
incluindo a incapacidade das instituições
de fazer cumprir a lei diante do
incremento do crime e da insegurança.
Desde que a administração Reagan,
em meados da década de 80, declarou
as drogas ilícitas como uma ameaça à
segurança nacional, uma parte central da
“guerra contra as drogas” executada pelos
2
EUA se constituiu no fortalecimento das
forças armadas latino-americanas com
o objetivo de levar a cabo iniciativas
anti-narcóticos1. Para isso, os Estados
Unidos providenciaram treinamento e
equipamento a estas forças para somá-las
a esta política2. A pressão que os Estados
Unidos exercem no marco de sua política
anti-narcóticos para a região é um dos
principais fatores que influenciaram
na intervenção das forças armadas em
questões de segurança interior3.
Em segundo lugar, a elevação das taxas
de criminalidade nos países—e os graves
problemas de pobreza e de desigualdade
social que não têm sido solucionados
pelas reformas econômicas promovidas
pelo Consenso de Washington—
geram uma forte demanda social
por respostas eficazes que garantam
níveis toleráveis de segurança cidadã
e resolvam o alto grau de conflito
social. Diante da carência de políticas
de segurança pública democráticas e
eficientes que possam satisfazer estas
demandas, muitos governos optaram
por fazer uso da intervenção das forças
armadas. Trata-se de uma solução
ilusória que não tem sido eficaz e que
possui uma série de conseqüências
negativas, como observamos adiante,
para o fortalecimento das instituições
democráticas na região. A falta de uma
política estatal de segurança cidadã
que responda ao aumento das taxas de
criminalidade também influenciou para
que isso aconteça. Sobre as conseqüências
deste fenômeno na Bolívia, Quintana
afirma que “a militarização da segurança
pública, assim como a resposta
militarizada que se deu aos conflitos
sociais, correspondeu ao incremento
dramático das violações contra os direitos
humanos”4.
O efeito da política anti-narcóticos
adotada pelos EUA pode ser observada
claramente na Bolívia, onde os militares
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
estadunidenses estão diretamente
envolvidos nos esforços anti-narcóticos
e fizeram com que as forças armadas
bolivianas assumissem um papel cada
vez mais importante na luta contra o
narcotráfico. No ano de 1986 as forças
armadas estadunidenses estiveram
envolvidas, pela primeira vez de forma
pública, em uma operação anti-narcóticos
de grande envergadura (Operação Blast
Fumace). No ano de 1988 o governo
dos EUA criou uma unidade boliviana
da Força Aérea e um grupo naval para
desenvolver atividades de combate às
drogas. Esta tendência se manteve com
o lançamento da Iniciativa Andina, na
qual o governo dos EUA iniciou “uma
incorporação deliberada das forças
armadas dos países hóspedes nos esforços
anti-narcóticos e expandiu o papel
militar dos Estados Unidos ao longo da
região”. Nos anos recentes, as Forças
Especiais dos Estados Unidos treinaram as
forças policiais anti-narcóticos, a sessão
de Assuntos Narcóticos da embaixada
dos Estados Unidos fundou uma força
paramilitar anti-narcóticos (Força de
Tarefas Expedicionárias), que foi dirigida
por oficiais militares bolivianos e que foi
provida pelo Pentágono de helicópteros e
equipamentos para as forças de segurança
para controlar as drogas5.
O papel interno das forças armadas
bolivianas não se limita à luta antinarcóticos. Incluem-se também amplas
funções de cumprimento da lei. Os
militares são chamados ocasionalmente
a agir diante de protestos sociais. Por
exemplo, quando a polícia de La Paz
se amotinou em fevereiro de 2003, o
presidente Sánchez de Lozada recorreu a
soldados para restaurar a ordem pública.
O enfrentamento que se produziu
posteriormente resultou na morte de 32
pessoas e centenas de feridos6.
O México é o país latino-americano
que conta com a maior tradição de
WOLA  Julho 2005
ANDEAN INFORMATION NETWORK
A Força-Tarefa
Expedicionária (FTE) da
Bolívia, que é uma força
composta de ex-soldados
bolivianos que opera fora
dos círculos do comando
militar, foi fundada pelos
Estados Unidos para
operações anti-narcóticos
na Bolívia. O FTE cometeu
violações atrozes aos
direitos humanos.
subordinação militar a governos civis. No
entanto, o envolvimento dos militares
em questões de segurança interna cresceu
consideravelmente nas décadas passadas.
Sigrid Arzt sustenta que “o processo de
militarização em matéria de segurança
pública é uma política ad hoc de resposta
por parte da elite política mexicana
diante da escalada do crime organizado,
particularmente expressa no fenômeno do
tráfico de drogas”7.
O exército mexicano historicamente
havia participado na erradicação manual
de cultivos ilícitos. No entanto, quando o
presidente Miguel de la Madrid declarou
no ano de 1987 que o tráfico de drogas era
um assunto de segurança nacional, isto
propiciou a expansão da missão militar
anti-narcóticos para a incorporação
de mandatos de cumprimento da lei e
inteligência. A política anti-narcóticos
dos EUA patrocinou estas tendências por
meio do fornecimento de treinamento e
de equipamento para o exército mexicano
e também apoiou retoricamente a
militarização como uma solução temporal
aos problemas endêmicos de corrupção e
incapacidade das agências encarregadas
de se fazer cumprir a lei.
A militarização do México abarca dois
fenômenos separados, porém, interrelacionados: Por um lado, a expansão
da missão anti-narcóticos das forças
armadas com responsabilidade sobre
3
o cumprimento da lei; por outro, a
designação de pessoal militar (ativo,
licenciado ou aposentado) em postos de
caráter civil.
Diante a elevação das
taxas de criminalidade
nos países, muitos
governos optaram
por fazer uso da
intervenção das forças
armadas.
O primeiro fenômeno se observa, por
exemplo, na incorporação em 1995 da
Secretaria da Defesa Nacional como
membro do Conselho Nacional de
Segurança Pública, o que lhe outorgou
um mandato oficial na tomada de decisões
e no desenho de políticas de segurança
pública. A Corte Suprema ratificou esta
decisão sustentando que as forças armadas
podem intervir em assuntos de segurança
pública à medida que as autoridades
civis as requeiram. Mais recentemente,
a administração do presidente Vicente
Fox outorgou ao exército um papel
direto nos esforços de desmantelamento
das organizações de tráfico de drogas
mediante ficalização dos chefes dos
cartéis e dos comandos de operações
para detê-los. O segundo fenômeno se
observa na designação de pessoal militar
dentro das polícias e procuradorias nas
regiões com alto grau de narcotráfico. Isso
deixou cargos importantes de inteligência
estratégica e operacional da Procuradoria
Geral da República—e inclusive o posto
de Procurador Geral durante a maior parte
da administração de Fox—nas mãos de
militares. Embora a presença de pessoal
militar na Polícia Federal Preventiva,
criada em 1999, havia sido designada
em caráter temporal, na atualidade, o
número de soldados na força em questão
aumentou8.
O exército mexicano também assumiu
outros papéis internos como trabalhos
sociais, a proteção ecológica e casos de
desastres naturais. Em seu mais recente
livro branco, as forças armadas identificam
a pobreza extrema e a exclusão social
como ameaças à segurança nacional.
O Brasil é um país onde a metáfora
“guerra contra o crime” se mostra
4
realidade com freqüência. País marcado
pela pobreza e pela desigualdade social
e racial, suas taxas de criminalidade e
morte por atos violentos são maiores do
que as da Colômbia, país que padece de
um conflito armado9. Neste contexto,
as forças policiais de segurança são, em
geral, parte do problema ao invés de
contribuírem para a solução10. Diante
das recorrentes crises do sistema de
segurança pública em diferentes regiões
do país, e por causas diversas, os governos
federais—pertencentes a distintos
partidos—apelaram à intervenção das
forças armadas como uma “solução”
conjuntural11.
Desde a década dos anos 90 a luta contra
o narcotráfico no Brasil é uma das
principais justificativas para a intervenção
das forças armadas em tarefas referentes
ao cumprimento da lei. De maneira
recorrente as elites governantes apelam
ao exército para “ocupar” militarmente as
favelas do Rio de Janeiro ou de São Paulo
quando há o enfrentamento de distintos
grupos narcotraficantes que disputam
entre si o espaço ou enfrentam a polícia
militar quando esta quer realizar alguma
operação12. No ano de 2004 o congresso
brasileiro aprovou uma legislação que
permite que as forças armadas assumam
funções policiais em ações “de caráter
preventivo e repressivo necessárias para
assegurar o resultado das operações na
garantia da lei e da ordem”13. Em julho
deste ano também foi regulamentada
a Lei de Abate que autoriza a força
aérea brasileira a derrubar qualquer
avião suspeito de transportar droga14.
Nos últimos anos também é possível
observar que as políticas de combate
ao narcotráfico no Brasil têm sido
influenciadas, direta ou indiretamente,
pela política anti-narcóticos promovida
pelos EUA, cujo principal palco na região
atualmente é a Colômbia. De acordo com
a organização Transnational Institute,
“o Brasil tem se deixado arrastar pouco a
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
pouco à militarizada ‘guerra às drogas’ de
inspiração estadunidense” 15.
As forças armadas brasileiras também
foram empregadas para atuar diante
da rebelião ou greve de forças policiais
em sete estados provinciais no ano de
1997: Minas Gerais, Rio Grade do Sul,
Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba
e Mato Grosso do Sul. De acordo com
Paulo Mezquita, o governo federal limitou
a participação das forças armadas na área
de segurança pública para as situações
nas quais a polícia militar e a polícia
civil seja incapaz de garantir a segurança.
No entanto, este autor conclui que “o
governo federal ainda depende das forças
armadas para manter a lei e a ordem,
especialmente quando a polícia se envolve
em ações ilegais ou de desordem”16.
O recente assassinato da missionária
estadunidense Dorothy Stang, que era
ativista em prol do meio ambiente e
de trabalhadores rurais no estado do
Pará, a mando de fazendeiros da região
foi a justificativa para o emprego das
forças armadas no estabelecimento da
ordem pública. Imediatamente após o
assassinato da missionária o governo
federal providenciou o envio de 2.000
membros do exército para restabelecer
a ordem e prender os responsáveis pelo
crime17. Em relação ao papel do exército
na operação para prender os autores do
crime, o comandante da tropa sustentou
“Nossa missão é dar suporte, segurança
e apoio logístico aos destacamentos de
policiais nas operações, mas estamos
preparados para qualquer situação de
confrontação”18.
A Venezuela é um país onde a
presença militar na vida pública
aumentou significativamente durante
os últimos anos como conseqüência
de uma profunda crise do sistema de
representação política. O atual presidente
Chavéz iniciou sua carreira política
WOLA  Julho 2005
liderando um frustrado golpe de estado
em fevereiro de 199219. A partir da
ascensão de Chávez, as forças armadas
aumentaram sua presença na política
nacional. A Constituição de 1999
criou um novo modelo de segurança
e defesa nacional cujos princípios
estão refletidos na Lei Orgânica de
Segurança Nacional e nas Linhas
Gerais do Plano de Desenvolvimento
Econômico e Social da Nação 20012007. Tal como assinala Ana María
San Juan, “a característica fundamental
deste novo modelo de segurança é
seu caráter maximalista e totalizante,
abarcando temas fundamentais de
desenvolvimento e concebendo uma
defesa integral da nação, como categoria
superior à estatal, buscando superar o
aspecto exclusivamente militar incluindo
fatores econômicos, sociais, políticos
e ambientais”. Assim, o governo tem
como política o envolvimento das forças
armadas em atividades que não têm
relação com a função que historicamente
desenvolveram de defesa da integridade
do Estado.
Na Argentina, a possível
intervenção das forças
armadas no âmbito da
segurança pública é
um tema recorrente no
debate público.
A Argentina, que como tantos outros
países da América Latina que sofreram
ditaduras militares responsáveis por
graves e massivas violações aos direitos
humanos, conta com um marco legal
que proíbe a intervenção das forças
armadas em assuntos de segurança
interna, salvo claras exceções de abalos
internos estabelecidas por lei20. Apesar
deste impedimento legal, a possível
intervenção das forças armadas no
âmbito da segurança pública é um tema
que de forma recorrente volta ao debate
público nos últimos anos por diferentes
razões. Por exemplo, diante de uma onda
de seqüestros que atingiu a cidade e a
província de Buenos Aires em 2004, o
ex-presidente Eduardo Duhalde propôs
abrir o debate sobre a participação das
forças armadas na segurança interna21.
Embora esta proposição tenha sido
5
categoricamente rechaçada pelo governo
nacional, a proposta recebeu grande
apoio de empresários da província de
Buenos Aires e também setores políticos
apoiaram a idéia. Estes setores também
sugeriam a participação das forças
armadas como uma possibilidade para
resolver o elevado grau existente de
conflito social no país como fruto do
fracasso das políticas neoliberais aplicadas
durante os anos 9022.
Da indiscriminada
aplicação do conceito
amplo e difuso de
terrorismo utilizado
pela administração
Bush surge um
diagnóstico distorcido
da região.
Estados Unidos e sua
Nova Agenda de
Segurança para a Região
A “guerra contra o terrorismo”, lançada
como resposta aos ataques terroristas
sofridos em 2001, é agora a principal
missão militar dos EUA. Jeffrey Record
se refere a esta declaração de “guerra
contra o terror” nos seguintes termos: “A
natureza e os parâmetros desta guerra,
contudo, continuam frustrantemente
pouco claras. A administração postulou
uma multiplicidade de inimigos,
incluindo estados párias, distribuidores
de armas de destruição em massa
(WMD); organizações terroristas de
alcance global, regional e nacional; e o
próprio terrorismo. Parece também estar
sobrepondo-os a uma ameaça monolítica
e, fazendo isso, subordinou a clareza
estratégica à clareza moral que busca em
sua política externa”.23
A princípio a América Latina é a região
de menor importância estratégica para
a administração Bush na “guerra contra
o terrorismo”. No entanto, sendo
o terrorismo a maior ameaça a sua
segurança e assim se convertendo na
prioridade da política externa dos Estados
Unidos, o Pentágono e seu Comando Sul
estão vendo a América Latina através
desta lente, como se todos os problemas
na região fossem potenciais ameaças
terroristas. Isso exacerbará ainda mais a
6
tendência regional de militarização e seus
conseqüentes impactos sobre os direitos
humanos e a democracia.
Para observar como a percepção desta
“guerra” translada a região é útil revisar
a declaração de posicionamento que o
então comandante-chefe do Comando
Sul, General James Hill, realizou em 2004
diante do congresso dos Estados Unidos:
“Não assombrosamente, os grupos
radicais islâmicos, os narcoterroristas
na Colômbia e as gangues urbanas ao
longo da América Latina praticam
muito dos mesmos métodos de negócio
ilícito... Os terroristas ao longo da área
de responsabilidade do Comando Sul
bombardeiam, assassinam, seqüestram,
traficam drogas, transferem armas, lavam
dinheiro e realizam contrabando de seres
humanos”24.
Assim, da indiscriminada aplicação do
conceito amplo e difuso de terrorismo
utilizado pela administração Bush surge
um diagnóstico distorcido da região,
onde os problemas reais de terrorismo
ficam entrelaçados ou superpostos com
outros problemas de segurança nacional
ou transnacional. Segundo Arlene
Tickner, o 11 de setembro causou uma
“terrorificação” da agenda política
exterior, que produz uma tendência de
sobreposição das agendas de segurança
vinculadas ao terrorismo sobre as agendas
locais”25.
A “guerra contra o terrorismo”
lançada pelos EUA—cujos principais
componentes são a definição ampla
e nebulosa de terrorismo e a resposta
essencialmente militar a este
fenômeno26—na América Latina tem
impactos tanto diretos como difusos.
Sobre o impacto direto, este pode
rastrear-se afetando tanto o desenho
como a aplicação de políticas nacionais
para responder a ameaças de segurança—
ou outros bens do Estado. A Colômbia é
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
WOLA ARCHIVES
o expoente mais claro deste fenômeno.
Apesar da realidade mostrar a existência
de um conflito armado interno com
mais de 40 anos de vigência cuja
característica principal é a existência de
grupos de rebeldes armados, o governo
atual adotou como política reduzi-lo a
um problema de terrorismo27.
Mais grave ainda é que outros conflitos
de causa política ou social, que são os
que mais afligem os países da região,
são diagnosticados como ameaças à
segurança e, direta ou indiretamente,
como ameaças terroristas.
Um exemplo deste tipo de impacto
pode ser observado no Chile com a
condenação judicial a líderes indígenas
acusados de terrorismo. No sul do
Chile, o povo indígena Mapuche
está enfrentando o governo chileno,
empresários e donos de terras em
conflitos agrários. Ainda que o governo
chileno não tenha apelado às forças
armadas para responder a este conflito
social, as instituições deste governo
aplicaram de forma questionável uma
lei antiterrorista herdada da ditadura do
General Pinochet. O uso de legislação
antiterrorista a membros da comunidade
Mapuche provocou violações aos
direitos humanos, assim como o
descumprimento do devido processo
legal, o maltrato e a brutalidade
policial28. Embora em muitos casos
membros do povo Mapuche tenham
cometidos atos criminosos no contexto
de suas reclamações (em geral contra
a propriedade privada e nunca
tiraram a vida de uma pessoa), parece
questionável o tratamento judicial a este
conflito como se tratasse de crimes de
terrorismo.
Ainda que não seja possível estabelecer
uma relação de causalidade direta
entre esta prática e o contexto pós-11
de setembro de 2001, parecia claro
WOLA  Julho 2005
que a região havia sido influenciada
pelo novo cenário de segurança e
definição de terrorismo promovidos
pela política dos EUA. Em um informe
publicado sobre este tema, a Human
Rights Watch sustenta que “...teme
que o atual clima internacional tenha
propiciado o uso injustificado por parte
do presidente Lagos da lei antiterrorista
chilena. Infelizmente, a ‘guerra’ contra
o terrorismo liderada pelos Estados
Unidos se converteu em um pretexto
para alguns governos que queiram
desviar a atenção de seu tratamento com
mãos de ferro aos dissidentes internos.
Atualmente governos de países de todo
o mundo estão tentando usar medidas
antiterroristas ou de segurança nacional
para evitar o escrutínio internacional de
práticas duvidosas em matéria de direitos
humanos”29.
A polícia peruana garante a
segurança de uma marcha contra
o Tratado de Livre Comércio
Andino.
As definições amplas diluem as
linhas divisórias
No contexto desta definição ampla do
que seja uma potencial ameaça terrorista,
as forças armadas estadunidenses estão
definindo antigos problemas da região
que antes haviam sido determinados
como questões de policiamento ou
7
assuntos sociais, como ameaças. Esta é a
securitização dos problemas sociais.
Altos funcionários
do Departamento de
Defesa continuam
diluindo as linhas
divisórias entre os
papéis policiais
e militares.
Por exemplo, em seu testemunho diante
do Congresso estadunidense em abril
de 2004, o então chefe do Comando
Sul, General James Hill, estabeleceu
ao congresso dos Estados Unidos que
as principais novas ameaças que a
região enfrenta são problemáticas de
natureza distinta como o terrorismo,
o narcotráfico, o crime organizado, as
gangues e as atividades dos movimentos
sociais populistas30. A estes últimos os
denominou de “radicalismos populares”,
referindo-se particularmente ao
movimento liderado por Evo Morales na
Bolívia31. Ao falar dos mecanismos para
se confrontar estas novas ameaças, em
particular as gangues de rua , o General
Hill sustentou que para muitos países da
América Latina era difícil e complexo
responder a estes grupos já que se
localizam precisamente na linha divisória
entre as agências encarregadas de fazer
cumprir a lei e de operações militares.
Ao invés de promover a importância de
manter uma linha divisória clara entre os
papéis e responsabilidades da polícia e das
forças armadas, o General Hill afirmou
que “[...] os líderes latino-americanos
necessitam resolver esta questão de
responsabilidade para promover a
cooperação entre a polícia e as forças
armadas, enquanto simultaneamente
reestruturam as forças de segurança do
Estado [...]”.32
Em seu testemunho diante do Congresso
em março de 2005 o atual comandante
do Comando Sul, General Bantz
Craddock, diagnosticou melhor sua
visão sobre as raízes da instabilidade nas
Américas. Ele apresentou os problemas
sociais, econômicos e de segurança
pública como os principais desafios
da região e não os equiparou com o
terrorismo. No entanto, seu testemunho,
igual ao de seu antecessor, continuou
8
gerando dúvidas sobre quais devem ser as
respostas apropriadas a estes problemas
ao sugerir que as forças armadas possam
ter um papel a cumprir na solução dos
mesmos33.
Altos funcionários do Departamento
de Defesa continuam diluindo as linhas
divisórias entre os papéis policiais e
militares sobrepondo os problemas
da região sob uma definição ampla de
terrorismo. Durante a VI Conferência
de Ministros de Defesa, o Secretário
de Defesa Donald Rumsfeld se referiu
às ameaças que a região enfrenta nos
seguintes termos: “[...] os terroristas,
traficantes de drogas, seqüestradores e
gangues criminosas configuram uma rede
anti-social que avança em sua intenção
de desestabilizar as sociedades civis[...]”34.
O ministro repetiu estas declarações em
visitas subseqüentes à região.
A convergência da definição ampla
e a diluição da linha: Colômbia
A ajuda dos EUA à Colômbia aumentou
notoriamente no ano de 1989 com a
Iniciativa Andina para lutar contra
o narcotráfico. A maior parte desta
ajuda estava destinada ao treinamento
e capacitação das forças policiais,
que como agências encarregadas do
cumprimento da lei, tinham a missão
de lutar contra o narcotráfico35. Esta
situação, no entanto, mudou no ano
de 2000 a partir do lançamento do
Plano Colômbia dos Estados Unidos
que destinou mais de 1.300 milhões de
dólares (e desde esta data mais de 4.000
milhões de dólares), originalmente para
a luta contra o narcotráfico36. De acordo
com Ramírez Lemus, Stanton e Walsh,
“desde este momento as forças armadas
haviam evitado desempenhar um papel
significativo nos esforços de controle
de drogas [...] As forças armadas viam
as drogas ilegais como um assunto de
cumprimento da ordem pública a cargo
da polícia, dado que seus principais
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
adversários eram as guerrilhas”37. Assim,
seguindo a tendência de militarização
da luta contra o narcotráfico da região
andina, as forças armadas colombianas
começaram a ter um papel protagonista
na política anti-narcóticos.
O Plano Colômbia foi originalmente
planejado como um programa antinarcóticos. No entanto, depois dos
ataques de 11 de setembro o Congresso
expandiu a autoridade ao Departamento
de Estado e ao Pentágono para usar a
assistência anti-narcótico para fins de
contenção de insurgências também sob
o argumento de que já não havia mais
forma de distinguir entre os traficantes de
drogas e os grupos terroristas, já que todos
eles recebem financiamento do tráfico de
drogas.
Esta mudança coincidiu com a eleição
do Presidente Álvaro Uribe, que foi
eleito em 2002 tendo como base uma
proposta eleitoral centrada na segurança.
Uma vez desempenhando suas funções,
o Presidente Uribe implementou a
Política de Segurança Democrática, dessa
forma incrementando a militarização da
segurança pública que foi iniciada pela
incorporação da função de controle de
drogas às forças armadas.
Por outro lado, influenciado certamente
pelo impacto global da reação dos Estados
Unidos aos ataques de setembro de 2001,
o governo de Uribe começou a aplicar
a categoria de “terrorismo” para referirse ao problema colombiano, negando a
existência de um conflito armado. Estas
medidas puseram o governo de Uribe
na mesma linha da guerra “contra o
terrorismo” da administração Bush, o que
converteu a Colômbia no principal aliado
dos EUA na região. A autorização por
parte do Congresso dos EUA de ampliar a
utilização dos fundos do Plano Colômbia
com finalidade de conter insurgências
reflete esta nova conjuntura.
WOLA  Julho 2005
Em muitos casos a retórica antiterrorista,
utilizada pelos funcionários públicos de
primeiro escalão, esteve acompanhada
por uma lógica de guerra em que, em
muitas oportunidades, os atores críticos
ao governo, em particular a sociedade
civil e os movimentos sociais, são
estigmatizados como inimigos do governo
e aliados das organizações armadas38. De
acordo com o International Crisis Group,
“[...] O desejo de Uribe de outorgar ao
exército e à polícia poderes adicionais
e reduzir os controles constitucionais
e judiciais faz com que se corra o risco
de fomentar um aumento das ações
arbitrárias empreendidas pelas forças
de segurança contra a população civil,
como ocorreu nas Zonas de Reabilitação
e Consolidação ( ZRC) e em outras
regiões do país […]”39. A isso se somou
uma forte pressão às forças armadas e de
segurança pela obtenção dos resultados
na confrontação com organizações
“terroristas”. A combinação destes fatores
criou condições férteis para estigmatizar
um setor da população associando-os
a grupos armados. Um exemplo deste
fenômeno são as detenções massivas que,
em geral, resultam na liberação por falta
de evidências40. O escritório do Alto
Comissariado de Direitos Humanos
das Nações Unidas nota em seu último
informe que aumentou o número de
denúncias de execuções extrajudiciais e
violações ao devido processo41.
A autorização por parte
do Congresso dos EUA
de ampliar a utilização
dos fundos do Plano
Colômbia com
finalidade de conter
insurgências reflete
esta nova conjuntura.
O Novo Conceito de
Segurança da OEA
Em outubro de 2003 a OEA, mediante
a aprovação da Declaração Sobre
Segurança nas Américas, adotou um
novo conceito de segurança hemisférica.
De acordo com o texto da Declaração
“[...] As ameaças, preocupações e
outros desafios à segurança hemisférica
são de natureza diversa e de alcance
multidimensional e o conceito e as
9
abordagens tradicionais devem ampliarse para englobar ameaças novas e nãotradicionais que abrangem aspectos
políticos, econômicos, sociais, de saúde
e ambientais…”.42 Assim, uma nova
definição ampliou o conceito tradicional
de segurança, incorporando ameaças
novas e não tradicionais. Esta Declaração
considera as seguintes práticas como
ameaças, preocupações ou outros desafios
à segurança:
“O conceito de
segurança hemisférica
deve ampliar-se
para englobar
ameaças novas e
não-tradicionais que
abrangem aspectos
políticos, econômicos,
sociais, de saúde e
ambientais…” – OEA
O terrorismo, o crime organizado
transnacional, o problema mundial
das drogas, a corrupção, a lavagem
de ativos, o tráfico ilícito de armas
e as conexões entre eles; a pobreza
extrema e a exclusão social de amplos
setores da população que também
afetam a estabilidade e a democracia...
solapa a coesão social e vulnera a
segurança dos Estados; os desastres
naturais e os de origem humana, o
HIV/AIDS e outras doenças, outros
riscos à saúde e a deterioração do meio
ambiente; o tráfico de seres humanos;
os ataques à segurança cibernética; a
possibilidade de que surja um dano em
caso de acidente ou incidente durante
o transporte marítimo de materiais
potencialmente perigosos, incluindo o
petróleo, material radiativo e resíduos
tóxicos; e a possibilidade do acesso,
posse e uso de armas de destruição
em massa e seus sistemas vetores por
terroristas.43
Por outro lado, a Declaração reconheceu
a soberania dos Estados para identificar
suas prioridades a respeito da segurança e
a flexibilidade na escolha de mecanismos
para enfrentar as ameaças. Além disso,
a Declaração incorporou a democracia,
o estado de direito, os direitos humanos
e o direito internacional humanitário
e o multilateralismo como valores
comuns aos Estados do hemisfério. Por
fim, a Declaração também incorpora o
conceito de segurança humana ao afirmar
10
que o fundamento e a razão de ser da
segurança para os Estados democráticos
do hemisfério é a proteção da pessoa
humana.44
Devido a suas características
principais, este sistema foi denominado
“multidimensional” e de “arquitetura
flexível”. O caráter multidimensional
se consiste na ampliação do conceito
tradicional de segurança regional, ligado
à defesa da segurança dos Estados,
por meio da incorporação de novas
ameaças, preocupações e desafios. A
flexibilidade da arquitetura se relaciona
com a diversidade de mecanismos com
que os Estados contam para responder às
ameaças.
A adoção de um novo sistema de
segurança para a região gerou diferentes
reações. Alguns países destacaram que
a Declaração de Segurança atualizou
um esquema obsoleto de segurança
típico da guerra fria e que refletia
as novas necessidades da região em
matéria de segurança.45 Vários atores
envolvidos na negociação do texto
da Declaração sentiram que o seu
conteúdo—particularmente a longa lista
de novas ameaças e preocupações—mais
do que um acordo consensual, refletia
a impossibilidade de criar uma agenda
comum para a segurança da região.46 Ao
invés de estabelecer claramente uma
agenda comum para enfrentar os desafios
em matéria de segurança na região, o
novo esquema estende o conceito de
segurança a muitas problemáticas de
outro caráter e se parece mais com uma
longa lista de problemas conforme as
necessidades de cada país, sub-região ou
região.
A transformação do sistema de segurança
das Américas responde a uma clara
necessidade de atualizar o sistema que
imperou de acordo com a lógica da guerra
fria e que havia deixado de responder à
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
realidade da região.47 Entretanto, diante
do contexto atual da região e o conceito
de terrorismo promovido pelos EUA,
a implementação deste novo conceito
multidimensional constitui um risco
de que se aumente a securitização dos
problemas da região e, por conseguinte,
a militarização como uma resposta para
enfrentá-los.
De acordo com o nosso critério, o novo
conceito de segurança multidimensional
da OEA sofre dois problemas principais:
Em primeiro lugar, ele trata problemas
comuns na região como pobreza extrema
e exclusão social, o HIV/AIDS e
outras doenças e os desastres naturais a
partir da ótica da segurança nacional,
concebendo-os como uma ameaça. Neste
sentido, a declaração cria as condições
para a securitização dos problemas de
caráter político, econômico, social ou
ambiental que, a princípio, não deveriam
ser parte de uma agenda de segurança
hemisférica.48 O principal inconveniente
disto é que, a partir de agora, tudo seja
um problema de segurança.
Em segundo lugar, ao tratar de forma
indistinta as ameaças tradicionais à
segurança junto às novas ameaças, a
declaração dilui a diferença histórica
entre os conceitos de defesa e de
segurança pública ou cidadã que regeram
a região até este momento. A defesa tem
como objetivo principal a proteção da
integridade do Estado—tanto política
como geográfica—contra as ameaças que
emanam do exterior e, em circunstâncias
excepcionais claramente definidas por
lei, contra graves atos de abalo interior
que ameacem a integridade do Estado.
As forças armadas desempenham um
papel central na defesa de um país. A
segurança pública, em sua concepção
tradicional, está relacionada à
manutenção da ordem pública e para
isso se emprega as forças policiais para
WOLA  Julho 2005
promover o cumprimento da lei. Há um
tempo, na América Latina começouse a utilizar o conceito de segurança
cidadã que amplia o de segurança pública
enfatizando a proteção do cidadão e
seus direitos como uma parte central da
função policial.
No contexto da Declaração, a
securitização dos problemas políticos,
sociais ou econômicos por um lado,
e a militarização das respostas por
outro, são como duas faces da mesma
moeda. As conclusões de uma reunião
de especialistas sobre o conceito
multidimensional de segurança se
expressam do seguinte modo: “O risco
principal é que se associem os problemas
de desenvolvimento com ‘ameaças’ à
segurança, com o qual as estratégias
militares poderiam ser alternativas. Isso
é chamado de securitização da agenda do
desenvolvimento”.49
É importante destacar que, tanto a
securitização como a militarização
não são políticas criadas na região
por este novo conceito de segurança
multidimensional. Pelo contrário, a
execução de práticas deste tipo, sobretudo
o uso das forças armadas em assuntos
internos, já existia em vários países antes
da adoção da Declaração.
O conteúdo da
Declaração—
particularmente
a longa lista de
novas ameaças e
preocupações—mais
do que um acordo
consensual, refletia a
impossibilidade de criar
uma agenda comum
para a segurança da
região.
A implementação da Declaração nestas
circunstâncias, no entanto, cria certos
riscos de se aumentar as atuais tendências
de militarização da segurança na região,
à medida que a nova definição de
segurança—na qual quase tudo pode
ser considerado uma ameaça—reforça e
legitima estas tendências.
Além disso, a incorporação de uma série
de diversos fatores—como a segurança
pública, o desenvolvimento, o meio
ambiente e a saúde—ao conceito de
segurança é um obstáculo para a sua
aplicação, tornando o novo conceito de
11
segurança vazio. Sendo assim, parece
que o conceito não possui os elementos
necessários para ser uma ferramenta eficaz
para proteger os Estados e os cidadãos das
Américas.
A implementação
deste novo conceito
multidimensional
constitui um risco
de que se aumente
a securitização dos
No âmbito multilateral, a implementação
do novo conceito multidimensional
de segurança da OEA, combinada com
a pressão que os EUA exercem para
promover suas prioridades em matéria de
segurança, viu-se refletida no resultado da
VI Conferência de Ministros de Defesa.50
Sua declaração ministerial , conhecida
como Declaração de Quito, cita o novo
conceito de segurança adotado pela OEA
“de alcance multidimensional que inclui
ameaças tradicionais e as novas ameaças,
preocupações e outros desafios aos Estados
do hemisfério [...]”.51
problemas da região
e, por conseguinte, a
militarização como
uma resposta para
enfrentá-los.
Efetivamente a VI Conferência de
Ministros de Defesa celebrada é um
bom exemplo de como o novo conceito
multidimensional da OEA adquire
conteúdo próprio conforme a agenda de
segurança que os EUA têm para a região.
Apesar de utilizar o marco conceitual da
nova definição de segurança da análise
da Declaração de Quito é possível
observar que o caráter multidimensional
é relativo e o terrorismo—em sua
versão estendida—ocupa um lugar
desproporcional em relação às outras
ameaças ou preocupações. A Declaração
de Quito superenfatiza a ameaça de
terrorismo sobre qualquer outra ameaça
ou preocupação à segurança regional.
Assim, a ameaça terrorista ou o
terrorismo estão incluídos em 8 parágrafos
distintos da Declaração, em alguns casos
mais de uma vez.
Do mesmo modo que a Declaração de
Segurança nas Américas, a Declaração
de Quito promove a dissolução das linhas
divisórias entre a competência das forças
de segurança e a das forças armadas.
Se observar as declarações anteriores
12
destas Conferências em geral, o foco está
colocado na defesa. Nas poucas vezes que
se menciona a defesa e a segurança de
forma conjunta, entendia-se que se fazia
referência a um conceito de segurança
regional ou hemisférica.52 Por outro lado,
na maioria das vezes, tanto os temas como
os mecanismos que se tratavam eram
em sua maioria de defesa (fomento da
confiança mútua e transparência; política
de defesa, cooperação militar; educação
de civis e militares, etc.). No entanto, ao
incorporar o conceito multidimensional
de segurança a Declaração de Quito se
refere quase sempre à segurança e à defesa
de forma conjunta. Como conseqüência
trata os conceitos de defesa e segurança
quase de forma sobreposta e por vezes
é difícil identificar as diferenças e
especificidades de cada um deles em
relação às funções que as forças de
segurança e as forças armadas devem
cumprir.53 Por exemplo, o parágrafo
13 da Declaração de Quito estabelece
que “Entre as preocupações comuns de
segurança e defesa tanto tradicionais
como não tradicionais, devem ser
incluídos a prevenção de conflitos, a
solução pacífica de controvérsias e o
fortalecimento da confiança mútua
entre os Estados da região, a partir
de uma concepção cooperativa da
segurança e da defesa, que reconheça
seu caráter multidimensional, envolva
os atores estatais e não estatais, e inclua
componentes políticos, econômicos,
sociais e naturais”.54
Conclusão
A adoção do novo conceito de segurança
multidimensional da OEA veio para
substituir oportunamente uma estrutura
de segurança hemisférica obsoleta
que não respondia às necessidades da
região. Seu caráter multidimensional
e, sobretudo, sua arquitetura flexível
aparecem como mecanismos interessantes
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
para responder às ameaças atuais que os
países do hemisfério sofrem.
2
Ver WOLA, Clear and Present Dangers: The U.S
Military and the War on Drugs in the Andes, Washington
DC, WOLA, 1991.
No contexto atual da região, no entanto,
não podemos ser menos que cautelosos
na hora de avaliar o impacto que a
implementação deste novo conceito de
segurança pode causar nas democracias
e nos sistemas de segurança dos países da
América Latina.
3
Cf. Kathryn Ledebur, “Bolivia: Clear Consequences”,
em Drogas y Democracia en América Latina, cit. na nota
1.
4
Quintana, Juan Ramón, “Bolivia: Militares y Policías:
Fuego cruzado en democracia”, rascunho nas mãos dos
autores.
5
Ver Kathryn Ledebur, “Bolivia: consecuencias claras”,
op. cit.
6
Ver “Para que no se olvide. 12-13 de Febrero 2003”,
APDHB, ASOFAMD, DIAKONIA, Bolívia, 2004.
7
Ver Sigrid Arzt, “La militarización de la Procuraduría
General de la República: Riesgos para la democracia
mexicana”, documento solicitado pelo Proyecto de
Reformación de la Administración de Justicia México,
Centro de Estudos Estados Unidos-México, San Diego,
15 de maio de 2003 p. 4. Disponível em: repositories.
cdlib.org/usmex/prajm/arzt/.
Em primeiro lugar, o tratamento de
uma diversidade de temas sob a ótica
da segurança abre as portas para a
securitização das agendas políticas, sociais
e econômicas. Este risco se potencializa
com a definição ampla de terrorismo
e a visão expandida do que significa
uma ameaça à segurança utilizada pelos
Estados Unidos depois de setembro de
2001.
Em segundo lugar, a formulação ampla
e difusa do conceito de segurança da
OEA dilui as linhas divisórias entre
os conceitos de defesa e de segurança
pública. Como vimos nos exemplos
descritos, a conseqüência prática deste
processo é a alteração das funções
tradicionais das forças armadas para
aplicá-las em questões de segurança
interior ou pública. Esta situação
contribui à tendência de militarização
da segurança interna produzida nos
últimos anos a partir da atuação das
forças armadas em papéis que não
correspondem à defesa dos Estados. 55
Isto contribuiria para retroceder nos
esforços realizados pelos governos da
região para assegurar a subordinação
das forças armadas às instituições civis
democráticas.
8
Ibid.
9
De acordo com Mezquita Neto e Loche, de 1985 a
1995 os homicídios no Brasil aumentaram de 13.910
a 37.129. Ver Mezquita Neto e Loche, “PoliceCommunity Partnership in Brazil”, em Crime and
Violence in Latin America: Citizen Security, Democracy
and the State, editado por Hugo Fruhling e Joseph
S. Tulchin com Heather A. Golding, Baltimore e
Londres, Woodrow Wilson Center Press e The Johns
Hopkins University Press, 2003.
10
Como aconteceu no restante dos países da América
Latina que sofreram ditaduras militares, a transição
democrática no Brasil não garantiu por si mesma a
democratização das forças de segurança que, em geral,
continuaram operando sob o modelo autoritário de
segurança da guerra fria cujo objetivo era a proteção
do Estado frente ao inimigo interno ao invés da
proteção dos direitos e dos bens de seus cidadãos.
11
É importante mencionar que no Brasil as polícias
preventivas (encarregadas do patrulhamento nas ruas)
se denominam polícias militares e são por si forças
de segurança militarizadas no que diz respeito a suas
práticas, estruturas e mecanismos de controle.
12
Isto se passou em 1994 com as Operações Rio I
e II; em 2003 a ocupação militar das favelas do
Rio foi precedida pela intervenção do terrorismo
como justificativa desta medida por parte da então
governadora do Rio de Janeiro Rosinha Garotinho.
Ver “Una guerra inútil. Drogas y violencia en Brasil”,
Editorial, TNI, Novembro 2004; Paul E. Amar,
“Reform in Rio: Reconsidering the Myths of Crimen
and Violence”, NACLA, setembro/outubro 2003; “El
Ejército combatirá a los narcos en Río”, La Nación,
Buenos Aires, 28 de fevereiro de 2003.
13
Lei Complementar No. 117, de 2 de setembro de
2004.
Endnotes
1
Cf. Coletta A. Youngers e Eileen Rosin (editoras),
Drogas y Democracia en América Latina: El impacto de la
política de Estados Unidos, Buenos Aires, Editorial Biblos
e WOLA, 2005.
WOLA  Julho 2005
A formulação ampla
e difusa do conceito
de segurança da OEA
dilui as linhas divisórias
entre os conceitos de
defesa e de segurança
pública.
13
14
Ver Folha de São Paulo, “Lei do Abate só vai permitir
ataques a aviões de tráfico”, julho de 2004.
30
Ver Comando Sul dos Estados Unidos, “Posture
Statement” do Gen. James T. Hill, op. cit.
15
Ver Transnational Institute, “Una Guerra Inútil: Droga
y Violencia en el Brasil”, TNI Briefings No. 2004/8,
novembro 2004.
31
16
Ver Mesquita Neto e Loche, op. cit.
17
Ver “Troops sent to Amazon alter nun’s killing”, CNN
online, 16 de fevereiro de 2005.
De acordo com este informe, em termos de pressupostos
e de pessoal, o Comando Sul tem mais presença
na região do que a soma de todas as agências civis
dos Estados Unidos. Ver “Diluyendo las Divisiones:
Tendências dos programas militares dos EUA para a
América Latina, op. cit na nota 26.
32
Ver Comando Sul dos Estados Unidos, “Posture
Statement” do Gen. James T. Hill, op. cit.
33
Ver Comando Sul dos Estados Unidos, “Posture
Statement of Gen. Bantz Craddock”, Exército
Estadunidense, comandante chefe, Comando Sul
dos Estados Unidos, diante da Comissão das Forças
Armadas da Câmara dos Deputados, Washington
DC, 9 de março de 2005. Disponível em: http://
www.house.gov/hasc/testimony/109thcongress/
FY06%20Budget%20Misc/Southcom3-9-05.pdf
34
Departamento de Defesa dos Estados Unidos, “Remarks
by Secretary Rumsfeld”, durante a sessão plenária da
VI Conferência de Ministros de Defesa das Américas,
Quito, Equador, 17 de novembro de 2004.
35
De acordo com Ramírez Lemus, Stanton e Walsh,
desde 1997 90% da ajuda dos Estados Unidos para
a luta contra o terrorismo estava destinada à politia
de combate às drogas e fumigação de cultivos ilegais.
Ver Ramírez Lemus, Stanton e Walsh, em “Colombia:
Un círculo vicioso de drogas y guerra”, em Drogas y
Democracia en América Latina, cit. na nota 1.
36
De acordo com Mónica Hirst, “a aprovação do Plano
Colômbia abriu as portas para a presença militar dos
Estados Unidos na Colômbia que foi mais bem-vinda
pelas forças armadas da Colômbia” Ver Mónica Hirst,
“Seguridad Regional en las Américas”, em La Seguridad
Regional en las Américas, Wolf Grabendors, Bogotá,
2003.
37
Ver Ramírez Lemus, Stanton e Walsh, op. cit.
38
Human Rights Watch, Informe Anual 2005, Nova
Iorque, janeiro 2005. Disponível em: http://hrw.org/
english/docs/2005/01/13/colomb9847.htm.
39
International Crisis Group, “Colombia: La política de
seguridad del Presidente Uribe”, Informe Sobre América
Latina No. 6, Bogotá/Bruselas, Novembro de 2003.
Disponível em: http://www.crisisgroup.org/library/
documents/latin_america/06_colombia__uribe_dem__
sec_sp.pdf.
40
Ver Comisión Colombiana de Juristas (CCJ), “En
contravía de las recomendaciones internacionales”,
Bogotá, CCJ, 2004.
41
Informe do Escritório do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos sobre a situaçaõ dos
direitos humanos na Colômbia, E/CN.4/2005/10, 28 de
fevereiro de 2005.
42
Sessão II, Parr. 4, inc. i da Declaração sobre
segurança nas Américas, Organização dos Estados
Americanos,Conferência Especial sobre Segurança, México
18
19
Em novembro deste mesmo ano houve outro golpe
de estado que fracassou. Ver Ana María San Juan, La
Agenda de Seguridad de Venezuela ¿Ruptura o continuidad
de paradigma? Un análisis preliminar. Rascunho nas mãos
da autora.
20
Ver Constituição Nacional, leis 23.554 de Defesa
Nacional e 24.059 de Segurança Interna.
21
Ver La Nación, “Nacionalizar la inseguridad”, 11 de
setembro de 2004.
22
De acordo com os setores que elaboraram a proposta,
a participação das forças armadas poderia ser direta,
ou seja, reprimindo os protestos sociais; ou indireta,
mediante a intervenção destas forças em áreas de
inteligência de distintos setores sociais.
23
Jeffrey Record, Bounding the Global War on Terrorism,
Strategic Studies Institute, US Army War College,
Carlisle, Pennsylvania, dezembro 2003.
24
Comando Sul dos Estados Unidos, “Posture Statement
of Gen. James T. Hill”, Exército Estadunidense,
comandante-chefe, Comando Sul dos Estados Unidos,
diante da Comissão das Forças Armadas da Câmara
dos Deputados, Washington DC, 24 de março de
2004. Disponível em: http://www.house.gov/hasc/
openingstatementsandpressreleases/108thcongress/0403-24hill.html
25
Ver Conclusões do Seminário Agenda de Seguridad
Andino-Brasilera, Friedrich Ebert Stiftung no Brasil, 15
e 16 de maio de 2003.
26
Sobre a resposta militar dos Estados Unidos ao
fenômeno terrorista ver “Diluyendo las Divisiones:
Tendencias de los programas militares de EE.UU.
para América Latina”, Washington DC, Latin
America Working Group Education Fund, Center for
International Policy e WOLA, setembro de 2004.
27
Isso não significa que os grupos guerrilheiros (FARC e
ELN) e o grupo paramilitar (AUC) não cometam atos
terroristas como parte de sua estratégia.
28
Para uma informação detalhada sobre esse ponto
ver Cf. Indebido Proceso: Los juicios antiterroristas, los
tribunales militares y los Mapuche en el Sur de Chile,
Human Rights Watch e Observatorio de Derechos de
los Pueblos Indígenas, Nova Iorque, outubro 2004.
29
14
“Exército chega à região onde morreu irmã Dorothy e
já cercam pistas de pouso”, no site Amazonia.org; 18 de
fevereiro de 2005.
Op. cit. pg. 5.
O Conceito Novo de Segurança Hemisférica da OEA: Uma Ameaça Potencial
27-28 2003, Disponível em espanhol em: http://www.
wola.org/security/declaracion_seguridad_americas_
espaniol.pdf, (Disponível em português em http://www.oas.
org/documents/por/DeclaracionSecurity_102803.asp)
43
Sección II, Parr. 4, inc.m., Declaração sobre segurança
nas Américas, op cit.
44
Sección II, Parr. 2, inc.e., Declaração sobre segurança
nas Américas, op cit. A análise do impacto concreto
da incorporação do princípio de segurança humana
excede o marco deste documento. Em nosso critério,
contudo, embora não estejamos de acordo com um
conceito de segurança que tenha como principal sujeito
a proteção da pessoa, sua implementação na região nos
causa dúvidas relacionadas aos pontos propostos neste
documento, fundamentalmente em relação aos riscos
de categorizar todos os problemas do hemisfério a partir
da perspectiva da segurança. Por outro lado, a forma
como a Declaração de Segurança incorpora a segurança
humana não faz mais do que reforçar nossas dúvidas
já que, ao invés de utilizar este conceito como eixo da
declaração, sua incorporação tangencial só contribui
para a confusão criada pelo conceito multidimensional
de segurança.
45
Entrevistas realizadas pela WOLA a embaixadores
das missões diplomáticas na Organização dos Estados
Americanos, entre outubro de 2003 e fevereiro de 2004.
46
Ibid.
47
Ver Cesar Andrés Restrepo F., “La nueva Seguridad
Hemisférica”, Fundación Seguridad y Democracia,
Colômbia, 2004.
48
Em uma análise sobre a segurança regional nas
49
50
Américas, anterior à adoção do conceito de segurança
multidimensional da OEA, Mônica Hirst se refere à
agenda preliminar da Conferência de Segurança nestes
termos: “[...] Além de insistir novamente na segurança
cooperativa, o tema do encontro põe em evidência a
tendência de securitização da agenda política da região
[...]”. Ver Hirst, op cit, p. 41.
A Equipe do WOLA
Ver Informe da Conferência “Seguridad Hemisférica.
Una visión mesoamericana y caribeña”, Antigua,
Guatemala, Fundação Ford, ITAM e Foreign Affairs em
espanhol, maio de 2004.
Lori Piccolo
Diretora de Captação de Recursos
Sexta Conferência de Ministros de Defesa das
Américas, Declaração de Quito, Novembro 2004,
disponível em http://vicdmaecuador2004.org/espanol/
documentos/otros/DECLARACION%20DE%20
QUITO%20%20PORT.pdf; Ver também “Informe
sobre la VI Conferencia de Ministros de Defensa
celebrada en Quito, Ecuador”, Washington e Buenos
Aires, Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) e
WOLA, disponível em espanhol em: http://www.wola.
org/security/informe_conf_ministros_defensa_2004.pdf
Joy Olson
Diretora Executiva
Geoff Thale
Diretor de Programa e Representante
Sênior, Cuba e América Central
Jason Schwartz
Gerente de Finanças e Administração
Gastón Chillier
Representante Sênior, Direitos Humanos e Segurança
Jeff Vogt
Representante Sênior, Assuntos
Econômicos
John Walsh
Representante Sênior, Andes e Políticas Antidrogas
Adriana Beltrán
Representante, Guatemala e Coordenadora de Mídia
51
Ver Declaração de Quito, op cit.
52
Cf. Declarações da I, II, III e IV Conferências de
Ministros da Defesa.
53
Ver “Informe sobre la VI Conferencia de Ministros de
Defensa”, op. cit.
Elsa Falkenburger
Oficial de Programa, Cuba, América
Central, Brasil e Assuntos Econômicos
54
Ver Declaração de Quito, op cit, parágrafo 13.
Ana Paula Duarte
Assistente de Captação de Recursos
55
Ver “Pronunciamiento de Organizaciones de la Sociedad
Civil ante la VI Conferencia de Ministros de Defensa
de las Américas” em http://www.wola.org/security/
pronunciamiento_coalicion_vi_conf_min_def.pdf
Laurie Freeman
Representante, México, Segurança e
Políticas Antidrogas
Katie Malouf
Assistente de Programa, Região
Andina e Segurança Hemisférica
Kristel Muciño
Assistente de Programa, México e
Políticas Antidrogas e Coordenadora
de Estágios
Coletta Youngers
Sênior Fellow
Rachel Neild
Sênior Fellow
George Withers
Sênior Fellow
WOLA  Julho 2005
15
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