Urbano Tavares Rodrigues
A ÚLTIMA COLINA
Contos
ÍNDICE
Judas 11
Um Dia na Vida 19
Aquém da Luz 27
A mais Bela do Baile 45
Celebração e Desterro 57
O Sonho do Prisioneiro 65
Vera Circe 69
O Cavalo da Noite 75
Margem da Ausência 87
Irmã da Solidão 101
Advogado e Cavalheiro 107
A Torre de Luz 117
1.o Conto de Natal
A Morte de Lenine de Jesus na Noite de Natal
2.o Conto de Natal
A Verdade? 131
A Incandescência desse Natal 137
O Fecho da Noite 141
O Amor e o Tempo na Casa ao Pé do Rio 145
Le Bel Été 149
Jasão em Lisboa (Tropelias do Destino) 153
História do Rapaz, da Mala e da Casa Encantada
O Corno da Lua 167
A Rapariga da Igreja dos Clérigos 171
Os Três Anjos Loucos 177
O Passo da Meia-Noite 187
Conto de Amor 195
123
159
Adolescentes 199
As Fadas Azuis 203
As Baleias no Mar do Estoril 209
No Bar do Paraíso 213
Onde se Queixam os Sonhos 219
A Itinerante do Limbo 229
Salêm’ âli Kum 233
O Pecado dos Intelectuais 237
A Última Colina 243
JUDAS
– Meu caro Jesualdo, você tem na frente uma carreira brilhante, na nossa empresa, que conta consigo. Pois vamos continuar noutro lado. E até vamos mudar de nome. Será a mesma
equipa. Mas se você quiser passar para outro ramo de indústria,
se você tiver voos mais altos, eu saberei compreender. Pense
bem no que lhe estou a dizer. Sempre o apoiámos, no seu trabalho de director de recursos humanos. Mesmo quando você
propunha transformações que implicavam certos custos ou pedia a nossa benevolência para aqueles activistas que ousavam
afrontar-nos, eu escutei-o. Você é um excelente mediador e a
verdade é que muitas das suas iniciativas sociais deram bons resultados e até nos fizeram progredir. Mas agora, caro Jesualdo,
está a disparatar. Parece não querer compreender que não há
outra solução se não a que somos obrigados a aceitar. Vamos
pagar algumas reformas antecipadas, você sabe, e indemnizações razoáveis, o seu tio até será dos mais beneficiados, se chegarmos a acordo. O senhor é um funcionário da casa. Discute
connosco, está habituado a isso e muito bem, mas agora só
contrapõe o impossível. Assim não!
– Desculpe, dr. Arnaldo, mas há uns anos o senhor ainda
falava em subida de salários, em prémios de trabalho, até em
distribuição de lucros...
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Urbano Tavares Rodrigues
– Sonhos, de que o dr. Jesualdo é em parte responsável. Mas
os tempos eram outros. Hoje, em toda a Europa, na América,
em todo o mundo, a regra é produzir o mais possível. O Estado
social... Esses métodos envelheceram. Mas somos humanos,
não vamos deixar esta gente na miséria. Eles é que não compreendem e os sindicatos envenenam-lhes as ideias. Nós ainda
queremos levar tudo a bem.
– E é por isso, doutor, que chamaram a Guarda Republicana
e que eu vejo ao canto daquela varanda espingardas e pistolas
metralhadoras.
– Ah! isso, reconheço, são excessos dos meus filhos, que fervem em pouca água e praticam desportos...
– Violentos, não é?
– Não os julgue mal. Quando vêem o pai ameaçado... Mas,
voltando a si, meu amigo, reflicta.
– Em qualquer lado, mesmo ganhando menos, eu posso...
– Olhe que não. Se o senhor se passar para o outro lado,
e nos hostilizar, não arranja emprego em parte alguma. Bastam
umas palavras nossas a contar isto, que é a pura verdade.
Jesualdo olhou-os em silêncio:
– Pense bem.
O ainda director de recursos humanos, ouvindo ruído na
grande cerca fronteira ao casarão, aproximou-se de uma das varandas, cuja janela estava entreaberta, e olhou para a multidão
de trabalhadores, homens e mulheres, onde logo reconheceu
rostos familiares e entre eles, muito agitado, o do tio, que
o criara e lhe pagara os estudos.
Os guardas republicanos, a cavalo e motorizados, tentavam
envolver a turba mas, dividindo-se, ficavam mais vulneráveis,
eram apedrejados e alguns, ao aproximarem-se, corriam mesmo
risco de agressão.
Os amotinados contemplavam com rancor e com desespero
o enorme casarão cor-de-rosa, que fora outrora um hospital
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Judas
e onde agora estavam instalados nos andares superiores a direcção, os escritórios, a cantina, enquanto na grande nave de
baixo, sempre iluminada, ficavam as linhas de montagem das
máquinas de lavar louça, cujas peças ultimamente já nem vinham da Suécia (pátria dos outros sócios), faziam-se cá, vinham
do litoral, da Marinha Grande ou de Leiria.
Tudo aquilo agora ao mesmo tempo os horrorizava e lhes
cortava o coração. Ali tinham vivido, sofrido, feito projectos,
ganho – julgavam eles – a segurança. E já nem um grão de esperança os animava. Até os reformados, os velhos estavam presentes. Aquele protesto era de todos.
Entardecia. À beira do bosque o sol incidia nas colmeias
dos poucos operários que tinham alguma actividade camponesa.
Mais longe a mancha branca das garças ainda emoldurava o rio,
que afinal era apenas um riacho.
Numa das últimas casas da aldeia, já quase todas substituídas por feios prédios uniformes de sete andares, com muitos
estendais de roupa a secar e quase colados uns aos outros, adivinhava-se nalgum canteiro o sono das violetas, que dantes havia ali por todo o lado.
Sob um intenso fulgor do sol, habitualmente suave no
declínio, a multidão começou a avançar desordenadamente na
direcção da fábrica, sem medo à ameaça dos cavaleiros impacientes, como empurrada por um vento de perdição.
Os tiros para o ar detiveram-nos, e houve outra grande pausa de incerteza.
Há momentos de indecisão em que tudo estremece e as
ameaças pairam no céu, os rios tornam à nascente. No centro
de uma luz implacável dançavam a sua sarabanda trágica o desemprego, o mau passadio, por fim a fome, oculta ou às escâncaras. Na meia-idade sobretudo já não se encontra trabalho. Lábios choram tremulamente o medo da vida que os espera. Mãos
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gretadas, ansiosas, estorcem-se sem pejo, das palmas desapareceu a linha da vida.
Nas veredas do pinhal a luz gera sombras (ou recorta-as?)
que correm por entre os troncos. E de lá vêm gritos enraivecidos de animais feridos, cobertos de cinza. Ou esses gritos enraivecidos são os dos trabalhadores que aqui vão na frente?
As portas verdes da aldeia que escurece parecem verter
lágrimas.
Joana e Luís iam de mão dada. Agora caminham cabisbaixos
lado a lado, abatidos, revolvem por dentro os seus sonhos
amortalhados. Não terão nem o desafogo da casa nova onde
coubessem à vontade eles e os dois filhos. Nem a motocicleta,
nem as férias à beira-mar sempre diferidas. Férias de amargura,
isso sim, a apertarem o cinto. Sequer a roupa nova que lhes faz
falta. Nada de humano à vista, depois de tantos anos. Como
é possível?
Os guardas dão voltas e voltas nas suas motos, levantando
poeira e aflição.
Em vez da trepidação das máquinas, o casarão cor-de-rosa
só lhes transmite uma mudez podre, de ameaça. Muito raramente surgem silhuetas por detrás das janelas, que logo desaparecem.
Pedro e Teresa entreolham-se. O mutismo dele, a sua expressão de derrota (mas estão ali, a pé firme) corta-lhes a respiração. Recém-casados, há duas noites que não dormem, a dar
voltas àquela situação. Só uma vez o corpo de Teresa se inundou de amor. Tantos projectos se esboroaram. De madrugada
ele ouve-a a soluçar baixinho, escondendo-se no outro lado da
cama.
Ângela tenta cantar canções vibrantes de revolta, mas as colegas já não a acompanham. Há um mau presságio nas nuvens
vermelhas do lento crepúsculo. Ângela vai-se abaixo, o seu cor-
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Judas
po ainda jovem está a atingir o limite da exaustão. Vê na frente
o espectro da pobreza, para lá dos GNR, do rosa falso das paredes da empresa, das semanas dolorosas por vir. A pobreza, inevitável, à sua espera. Não haverá hoje nem amanhã, o bolor vai
invadir-lhe a casa, onde tudo há-de faltar. Talvez peça emprestado. E os ricos hão-de escarnecer as suas costas dobradas.
O pilriteiro florido do seu exíguo quintal, vê-o empalidecer,
morrer de desgosto.
Lídia e Manuel, cinquenta anos com filhos ainda pequenos,
mordem os lábios quando os GNR tentam em vão parlamentar.
Nos próximos dias haverá sem dúvida arranjos com a empresa.
Uns aceitarão. Mesmo migalhas. Outros persistirão na luta. Até
quando?
– Então, dr. Jesualdo – diz o presidente do conselho de
administração –, que longa meditação! Já escolheu?
Nem uma mosca bulia no interior daquela sala da empresa.
– Escolhi – dr. Arnaldo –, fico do lado de lá, o meu, o da
minha gente.
– Duvido de que essa malta que está a berrar lá fora seja
a sua gente. Já terá sido. O senhor hoje é um intelectual, de
origem operária, mas complexo, contraditório. Há-de arrepender-se.
– Eu sei o que faço.
O dr. Arnaldo mudou bruscamente de tom e de expressão:
– Então vá-se lixar. E já sabe: guerra é guerra. Vamos fazer-lhe a cama como deve ser. Percebe? Vamos tramar-lhe a vida.
Jesualdo encolheu os ombros. Ia já para sair, sem dar troco,
e meter-se no ascensor, que alívio, quando o dr. Arnaldo Ferreira disse ainda aos filhos:
– Acompanhem-no, não vá ele fazer alguma, e fechem bem
a porta.
– Está a Guarda lá em baixo.
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– O seguro morreu de velho.
Na estrada próxima estrondeavam camiões pesados, chegava até ali um ranger de ferragem, brutal. Os cavalos da Guarda
escarvavam o terreiro.
Um anónimo grito, insidioso, sangrou no meio da turba
quando Jesualdo se mostrou e deu alguns passos na direcção
das primeiras filas.
– Judas!
E outras vozes acompanharam a acusação, carregadas de
verrina. Eram dos que menos o conheciam:
– Judas!
– Judas!
– Traidor!
O pasmo no rosto de Jesualdo.
– Escusas de falar connosco.
Jesualdo, de maxilares cerrados, esquivou duas pedras e
resolutamente continuou a aproximar-se dos trabalhadores.
Apenas gritou, o mais alto que pôde:
– Olhem que estou convosco. Larguei a empresa. Estou
convosco.
Há remoinhos no meio da multidão, brados confusos.
Tê-lo-ão ouvido bem?
Os guardas republicanos desorientaram-se com o inesperado arraial e um deles, esturrado, arremessa à toa uma granada
de gás lacrimogénio, que vai precisamente atingir Jesualdo na
cabeça, de tal modo que ele cai logo, estrebuchando. Eleva-se
um autêntico urro da multidão confusa e cada vez mais pronta
a tudo.
Depois é o tumulto total. As pedras contra os tiros, os cavaleiros rompendo pelo meio da multidão, sabres derrubando
a eito homens e mulheres, anciãos e adolescentes. Mais gás
mostarda, lançado sobre a rectaguarda.
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Judas
Parece que se cega, os olhos picam, a cabeça incha. E a concentração não se dispersa, como seria normal, os operários
comprimem-se, às vezes atropelam-se. Há guardas caídos por
terra, combates corpo a corpo. Sobretudo espancamentos dos
trabalhadores mais audazes, que são por fim arrastados no pó
e presos, atirados para dentro das carrinhas da guarda, aos
montões.
Há quem note a crueldade das estrelas, do seu estranho
brilho. Os misteriosos espelhos da noite surgem no bosque.
Começam também a fosforescer os pirilampos. Muitos dos
trabalhadores levam a roupa manchada de sangue.
O corpo de Jesualdo, ainda sem acordo, entra agora numa
ambulância, onde vai seguir para o posto de socorros da vila.
Amanhã, como será?
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UM DIA NA VIDA
Quando a minha habitual e massacrante dor de cabeça começou a diminuir, pensei que talvez pudesse e devesse afinal ir
à recepção, tanto mais que uma das nossas companheiras de
viagem tinha-me dito que a cidade era linda, um misto de Roma e de Lisboa, mas com arquitectura própria. E placidamente
intrigante.
Tomei mais um comprimido, com um grande copo de água
(quando me rebentará nova úlcera no estômago?), e iniciei a pé
o trajecto, em direcção ao centro histórico, onde creio que fica
o palácio da Câmara. Caminho complicado, por vezes labiríntico.
Os blocos de altos edifícios, uns neoclássicos, outros superlativamente decorados, de um barroquismo insólito, todos lavados de luz mas sem sombra, sucediam-se em aglomerados monumentais, entre os quais havia pequenas praças com fontes
secas.
Aqui e ali algumas estátuas de grande porte, representando
virtudes.
Estávamos a meio da Primavera, o sol parecia latir nas paredes brancas e o seu peso aquecia-me os ombros.
Adolescentes de jeans e ténis, aos pares ou em grupo, cansados de se beijarem, sorviam bagos de romã. Às vezes riam, mas
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nunca levantavam a voz. Naqueles arcos, naquelas estátuas
colossais que ornavam os tímpanos e os portais das casas, semelhantes a templos laicos, ressaltavam sinais que eu não conseguia ler, mas de certeza conhecia, de uma outra vida ou de
algum sonho.
Tive até a impressão de que os olhares de pedra dessas estátuas me seguiam. Pedras de tempo sobre tempo que guardavam
ciosamente a sua verdade, mas queriam sussurrar-me algum segredo.
Havia agora pelo meio desses quarteirões o esplendor da
água ressoando num invisível lago e a sensível doçura, talvez venenosa, de flores sem nome num jardim gradeado.
Como em todas as cidades carregadas de história, dir-se-ia
que farrapos de ideias, o tecido da memória, brandamente
saíam das janelas entreabertas e se iam esfumando nas cornijas,
nos terraços e nos telhados ou se evolavam, quase imperceptíveis, pelo azul, pelo ouro já pálido da tarde.
Ao aproximar-me do Palácio Municipal, notei, à altura dos
meus olhos, as carrancas e as cabeças de leões que avultavam
dos dois lados da grande porta de entrada, encimada por um
confuso brasão, onde distingui uma espada e um elmo, uma balança e um saco fechado, eterno recipiente do mistério.
No grande largo que tive de atravessar, até lá chegar, havia
ainda acumulações de trânsito mas, ou por eu ver mal ou pela
turbação da hora e da luz, que estremecia, condutores sem rosto pressionavam os peões a afastarem-se. E desses peões, até
dos que estugavam o passo perto de mim, eu só via máscaras
apodrecidas.
Ao subir a rigorosa escadaria de mármore, dei-me subitamente conta de que na ampla curva das paredes alvíssimas se
abriam nichos com esculturas falantes. Sim, os homens ali retratados viviam ainda a suprema vida das ideias e interpelavam-me.
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