R E V I S TA P O R T U G U E S A
RPCV (2008) 103 (565-566) 41-45
DE
CIÊNCIAS VETERINÁRIAS
Efeito da ureia na activação da apoptose em células da granulosa
de bovinos, avaliada por citometria de fluxo
Urea effect on apoptosis activation of bovine granulosa cells, evaluated by
flow cytometry
Susana M. Costa, António Chaveiro, Margarida Andrade e Fernando Moreira da Silva*
Universidade dos Açores, Departamento de Ciências Agrárias, Reprodução Animal – CITAA; 9701-851 Angra do Heroísmo, Portugal
Resumo: No presente trabalho foi avaliado o efeito da ureia
plasmática na viabilidade e na activação da apoptose em células
da granulosa em vacas da raça Holstein-Friesian, recorrendo à
técnica da citometria de fluxo. Para isso, a um total de 82 vacas,
foi retirado sangue no dia anterior ao seu abate, no qual se
avaliou a concentração de ureia plasmática permitindo dividir
os animais em quatro grupos: grupo 1 (n=32; 0-13 mg/dL);
grupo 2 (n=30; 13-16 mg/dL) grupo 3 (n=13; 16- 20 mg/dL) e
grupo 4 (n=7; > 20 mg/dL). No dia do abate, os ovários foram
separados de acordo com os diferentes grupos, colocados
num recipiente térmico e transportados ao laboratório sendo
puncionados todos os folículos com um diâmetro entre 4-10 mm.
Após aspiração dos complexos cumulus-oophurus as células da
granulosa foram separadas, homogeneizadas e diluídas a uma
concentração final de 5x106 células/ml, sendo incubadas, no
escuro e à temperatura ambiente, durante 15 minutos com 5 _l
de Anexina V- FITC e com 5 _l de Propídio Iodado (PI). Após
este período as células foram avaliadas por citometria de fluxo
e analisadas recorrendo ao software Cell-Quest. Os resultados
demonstraram existir uma correlação negativa (r = -0,959; P
<0,05) entre os níveis de azoto ureico no sangue e a percentagem
de células vivas não apoptóticas e uma correlação positiva (r =
0,997; P <0,05) entre o azoto ureico no sangue e a percentagem
de células vivas apoptóticas.
Os resultados permitem inferir que a concentração de azoto
ureico no sangue influencia a actividade das células da granulosa e que a diminuição da fertilidade das vacas associada a
altas concentrações sanguíneas de ureia, poderá ser mediada
pelo efeito directo da ureia na indução da apoptose das células
da granulosa.
Summary: The purpose of this study was to evaluate the effect
of urea nitrogen on the viability and apoptosis activation of
bovine granulosa cells, evaluated by flow cytometry. Bovine
blood samples and ovaries were obtained from a nearby slaughterhouse. Blood samples were collected from 82 dairy cows, in
the day before being slaughtered. The blood was centrifuged
and plasma urea nitrogen was evaluated. The animals were
divided by four different groups: group 1 (n=32; 0-13 mg/dL);
group 2 (n=30; 13-16 mg/dL) group 3 (n=13; 16- 20 mg/dL)
and group 4 (n=7; > 20 mg/dL). At the slaughter day, ovaries
were individually collected and follicles from 4-10 mm diameter
were punctioned. The cumulus oophorus complexes (COC´s)
were recovered and granulosa cells were separated and
homogenised to 5x106 cells/mL. Then, they were incubated
with 5 µL of propidium iodide and 5 µL of Annexin V- FITC.
Afterwards, 400 µL of Binding Buffer was added and cells were
evaluated by flow cytometry using the CellQuest software.
Results of the present study indicated a negative and a positive
correlation (r = - 0.959; r= 0.997) (P<0.05) between blood urea
nitrogen levels and the percentage of granulosa cells considered
as alive (non apoptotic) and between blood urea nitrogen
levels and the percentage of the cells considered as apoptotic,
respectively.
The results of the present study allowed concluding that blood
urea nitrogen can influence the activity and viability of bovine
granulosa cells. It is proposed that the lower reproductive
performance of dairy cows usually associated with high blood
urea levels, may be mediated through a direct effect on bovine
granulosa cells apoptosis.
Introdução
*Correspondência: [email protected]
Tel: +351 295402224; Fax: +351 295402205
Desde a Segunda Guerra Mundial, a produção de
leite tem vindo a aumentar, o qual tendo sido possível
através de uma forte selecção genética bem como
através da optimização dos programas de nutrição
de vacas de leite. Não só a produção de leite por si só
tem sofrido um significativo aumento desde então,
como também a forma da curva de lactação tem-se
alterado significativamente, a maior produção de leite
concentra-se no início do período de lactação. Como
consequência, principalmente as vacas de elevadas
produções durante este período encontram-se em
balanço energético negativo (BEN) uma vez que não
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Costa SM et al.
são capazes de suprir as suas próprias necessidades.
Por esta razão dietas predominantemente ricas em
proteína são fornecidas a estes animais, com o
objectivo de estimular e manter a elevada produção de
leite no decorrer deste período (Grings et al., 1991;
Kung e Huber, 1983; Roffler e Thacker, 1983).
Na alimentação dos ruminantes a ureia é muito
utilizada como fonte de azoto não proteico (NNP),
estando a concentração de azoto ureico no sangue
(BUN) directamente relacionada com o aporte
proteico dos concentrados e também com a relação
energia/proteína da dieta (Kohn, 2000). Dietas com
excesso de proteína bruta, falta hidratos de carbono
fermentescíveis ou assincronia entre a degradação da
proteína e a disponibilidade de energia promove uma
grande concentração de ureia no sangue e/ou excreção
de ureia no leite e urina (Ferguson e Chalupa, 1989;
Garcia-Bojalil et al., 1998). Apesar de existirem
resultados contraditórios sobre o efeito de elevados
níveis de ureia e a fertilidade dos animais, vários
mecanismos têm sido propostos com o objectivo de
explicar a relação entre o excesso de proteína bruta
da dieta e a reduzida taxa de fertilidade. Em 1998
Santos e Amstalden, propuseram que os sub-produtos
tóxicos, resultantes do metabolismo azotado no rúmen
e que se acumulam no aparelho reprodutor, são
responsáveis por alterações no ambiente uterino
(nomeadamente uma diminuição de pH), provocando
uma menor viabilidade dos espermatozóides, óvulos
ou embriões recém-formados Ainda em 1998 Santos
e Amstalden descreveram que os desequilíbrios
energético-proteicos da dieta podem afectar a eficiência
metabólica e o equilíbrio energético. Desta forma, os
dois pontos anteriores, agindo isolada ou complementarmente, podem actuar a nível do eixo hipotálamohipófise-ovários, nomeadamente no controlo da síntese
ou libertação de gonadotrofinas e progesterona prejudicando a eficiência reprodutiva. Além disso, sabe-se
que elevados níveis de ureia são reflectidos no
líquido folicular e consequentemente poderão afectar
a qualidade do ovócito como também das células da
granulosa (Leroy et al., 2004), por vários mecanismos
fisiológicos, entre os quais a apoptose. Este consiste
num fenómeno fisiológico, rápido e activo, necessário
ao normal desenvolvimento, que envolve um programa
genético na sua execução, assumindo uma finalidade
homeostática e funcional, desenvolvendo um conjunto
de alterações funcionais e morfológicas que conduzem
à morte celular.
Uma das técnicas mais utilizadas para detectar
células apoptóticas é a citometria de fluxo, a qual, tal
como o nome indica, consiste na avaliação das células
por um sistema de fluxo. A citometria de fluxo – FCM
– é uma metodologia que foi desenvolvida, pela
primeira vez, no fim dos anos 50, como um método
rápido de contagem e análise de células sanguíneas,
método este que, com o aparecimento de novos
marcadores de fluorescência e com o avanço da
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técnica, se estendeu a outras áreas de investigação no
campo da biologia (Dolezel, 1997a). É uma técnica
que permite a análise rápida, objectiva e quantitativa
de células em suspensão (Faldyna et al., 2001). O
objectivo do presente trabalho foi estudar o efeito da
ureia na viabilidade e na activação da apoptose em
células da granulosa de bovinos, avaliada por citometria
de fluxo.
Materiais e métodos
A um total de 82 vacas de raça Holstein, sem
qualquer referência ao seu estado de gestação ou fase
do ciclo sexual foi recolhido sangue no dia antes do
abate para determinação da concentração plasmática
da ureia (Kenny et al., 2002; Newman e Price, 1999),
permitindo dividir os animais em quatro grupos:
grupo 1 (n=32; 0-13 mg de ureia/dL); grupo 2 (n=30;
13-16 mg de ureia/dL) grupo 3 (n=13; 16-20 mg de
ureia/dL) e grupo 4 (n=7;>20 mg de ureia/dL).
Imediatamente após o abate dos animais, os ovários
foram recolhidos, separados de acordo com o grupo
que os animais pertenciam e transportados para o
laboratório em Solução Tampão de Fosfato (PBS)
previamente aquecida a 37-38 ºC. Os folículos entre
4-10 mm de diâmetro foram puncionados com o
auxílio de uma agulha 18,5G, tendo o líquido folicular
sido colocado em tubos contendo meio de recolha,
como descrito por Marques et al. 2007. Após 10
minutos de decantação, as células da granulosa foram
transferidas para tubos de Falcon (15 mL) e centrifugadas durante 10 minutos a 1000xg. A contagem
celular foi feita numa Câmara de Newbauer adicionando-se 20 µL de Azul Tripano a 20 µL das células.
Posteriormente 5 µL de Anexina V-FITC e 5 µL de
Propídio Iodado (PI) (Annexina V-FITC Apoptosis
detection KIT II, BD Pharmigen, San Diego, USA)
foram adicionados a 1ml de células (5x106 células/mL)
as quais foram incubadas no escuro durante 15 minutos
à temperatura ambiente. Após incubação foi de
imediato feita a avaliação das células num citómetro
de fluxo FACSCalibur equipado com uma fonte de luz
laser de árgon. Os resultados foram analisados recorrendo ao software Cell-Quest.
Resultados e discussão
No presente estudo foi avaliada a relação entre os
níveis de ureia plasmática em vacas da raça Holstein
Frísia e a apoptose das células da granulosa.
Relativamente aos fluorocromos utilizados, a Anexina
V-FITC caracteriza-se por se ligar à fosfatidilserina (FS)
presente no lado exterior da membrana citoplasmática
de células apoptóticas, na presença de iões cálcio. Este
fluorocromo, quando excitado por uma fonte de luz
com um comprimento de onda de 488 nm, emite
Costa SM et al.
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Grupos [azoto ureico]
Figura 1 - Exemplo de imagem dos resultados obtidos por
citometria de fluxo após marcação das células da granulosa
com Anexina V-FITC e Propídio Iodado (PI): Células vivas
(não apoptóticas); Células vivas apoptóticas e Células mortas
(necróticas).
Grupos [azoto ureico]
Figura 2 - Relação existente entre a percentagem de células
vivas (não apoptóticas) (Anexina V-FITC-/PI-) e as diferentes
concentrações de azoto ureico no sangue: grupo 1: 0 a 13
mg/dL; grupo 2: 13 a 16 mg/dL; grupo 3: 16 a 20 mg/dL;
grupo 4: > 20 mg/dL
Grupos [azoto ureico]
Figura 3 - Relação existente entre a percentagem de células
vivas apoptóticas (Anexina V-FITC+/PI-) e as diferentes
concentrações de azoto ureico no sangue: grupo 1: 0 a 13
mg/dL; grupo 2: 13 a 16 mg/dL; grupo 3: 16 a 20 mg/dL;
grupo 4: > 20 mg/dL.
Figura 4 - Relação existente entre a percentagem de células
mortas (necróticas) (Anexina V-FITC+/PI+) e as diferentes
concentrações de azoto ureico no sangue: grupo 1: 0 a 13
mg/dL; grupo 2: 13 a 16 mg/dL; grupo 3: 16 a 20 mg/dL;
grupo 4:> 20 mg/dL
fluorescência verde na ordem dos 525 nm. O PI,
embora excitado pela mesma fonte luminosa, emite
fluorescência vermelha com um comprimento de onda
na ordem dos 620 nm. Este flourocromo caracteriza-se
por penetrar na membrana citoplasmática de células
necróticas, permitindo desta forma a sua rápida identificação. Pela conjugação destes dois fluorocromos
podem ser distinguidas três sub-populações distintas:
células vivas não apoptóticas (Anexina V-FITC-/PI-),
células vivas apoptóticas (Anexina
V-FITC+/PI-) e células mortas (necróticas)
(Anexina V-FITC+/PI+) (Figura 1).
Após análise dos resultados, observou-se que quanto
maior foi a concentração de azoto ureico, menor foi a
percentagem de células vivas (não apoptóticas)
(Anexina-V-/PI- ) (r=-0,96; P≤0,05) (Figura 2). Esta
diminuição poder-se-á justificar devido à elevada
toxicidade da ureia, quando fornecida aos animais
em quantidades excessivas (Maynard et al., 1984),
podendo activar os mecanismos da apoptose, uma vez
que se observou uma elevada correlação (r = 0,99
P≤0,05) entre o número de células vivas apoptóticas e
a quantidade de azoto ureico plasmático nos animais
(Figura 3).
Relativamente às células necróticas não foram
observadas diferenças significativas entre os animais
pertencentes aos diferentes grupos (Figura 4). Isto
poder-se-á justificar devido ao facto da necrose
somente ocorrer quando as células são expostas a uma
variação extrema das suas condições fisiológicas
(Betts e King, 2001; Wyllie et al., 1980), o que não se
verificou em nenhuma das vacas neste trabalho.
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Costa SM et al.
Apesar de in vivo, elevadas concentrações de ureia não
promoverem a necrose das células, in vitro elevadas
concentrações de ureia provocam um aumento
significativo da necrose celular (Pereirinha et al.,
2007).
O metabolismo pelo qual os níveis de ureia influenciam a actividade das células dos ovários, afectando
negativamente a fertilidade das vacas não está completamente explicado. Nos trabalhos desenvolvidos
por vários autores (Santos e Amstalden, 1998;
Ferguson e Chalupa, 1989; Witt, 2002; Hammon et al.,
2005) são apresentadas várias hipóteses explicativas
do metabolismo pelo qual o excesso da proteína na
dieta pode afectar negativamente a fertilidade das
vacas leiteiras. Segundo estes autores, os subprodutos
resultantes do metabolismo azotado em ruminantes
(amoníaco e ureia) acumulam-se nos fluidos do
aparelho reprodutor, causando alterações no ambiente
uterino (nomeadamente no pH), provocando assim
uma menor viabilidade dos espermatozóides, óvulos e
embriões e consequente diminuição da fertilidade das
vacas leiteiras.
Sabe-se ainda que os teores de ureia no sangue são
reflexo não só da quantidade de proteína ingerida, mas
também da sua degradabilidade no rúmen e da energia
de origem alimentar disponível para que os microrganismos transformem a proteína alimentar em proteína
microbiana. Desta forma, a existência de interacções
entre os balanços proteicos, energético e a partição de
nutrientes, dificulta o isolamento da acção da proteína
a nível do eixo-hipotalámo-hipófise-ovários, afectando
os níveis endócrinos.
Estudos publicados por Elrod (1992) demonstraram
que valores de ureia superiores a 16 mg/dl reduzem a
taxa de concepção de novilhas em 30%. No entanto,
estudos realizados anteriormente por Canfield et al.
(1990) e Ferguson et al. (1988) só verificaram
reduções na fertilidade, traduzidas por menores taxas
de gestação, com concentrações de ureia plasmática
superiores a 18,57 mg/dL e 20 mg/dL, respectivamente. Os possíveis efeitos da ureia sobre o ovócito
não estão, ainda, adequadamente estudados. Num
estudo realizado in vitro, relativo ao efeito da ureia na
maturação nuclear de ovócitos bovinos e no desenvolvimento embrionário, constatou-se que esta pode
impedir a meiose e consequentemente reduzir a
percentagem de ovócitos fertilizados bem como a
percentagem de embriões com capacidade de se
desenvolverem normalmente (Santos et al., 2008),
podendo ser um dos mecanismos pelo qual a ureia
influencia negativamente a fertilidade das vacas
leiteiras, quando estas apresentam elevados níveis de
ureia plasmática.
No presente estudo ficou demonstrada a elevada
correlação entre os níveis de ureia plasmática em
vacas e o aumento do número de células apoptóticas
da granulosa, permitindo inferir que este, além dos
anteriormente apresentados, poderá ser um dos
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mecanismos pelo qual a fertilidade é drasticamente
reduzida, quando as vacas são sujeitas regimes
alimentares com elevados níveis de azoto. A não
alteração do número de células necróticas para os
diferentes grupos de animais leva-nos a concluir que
os níveis de azoto ureico presentes no sangue das
vacas não foram suficientemente elevados para provocarem uma alteração extrema no ambiente celular e
assim provocarem a morte das células da granulosa.
Poder-se-á, perante estes resultados, aconselhar uma
redução na no fornecimento de azoto alimentar num
período não inferior a um ciclo sexual antes da inseminação artificial, evitando assim que as células da
granulosa/ovócito, da(s) onda(s) folicular(es) de
recrutamento do folículo a ovular na altura da IA,
venham a ser afectadas por elevados níveis de ureia.
Agradecimentos
Este trabalho foi parcialmente financiado pela
Fundação Regional para a Ciência e Tecnologia.
Projecto nº M1.1.2/I/005B/2005.
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