Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
DO LITERÁRIO AO CINEMATOGRÁFICO:
O FANTÁSTICO DISTÓPICO NAS ALICES DE LEWIS CARROLL E DE JAN
SVANKMAJER
Jéssica Gonçalves da Silva (Ufal)
Mariana dos Santos (Ufal)
Marcus Vinícius Matias (Ufal)
Introdução:
Alice inicia as suas aventuras ao perseguir um coelho branco que muito incitou
a sua curiosidade, pois o livro lido por sua irmã na ribanceira do rio é monótono
demais. O coelho branco passa correndo, olha seu relógio e exclama algumas
palavras. Alice nunca tinha visto algo tão extraordinário quanto um coelho com bolso
de colete e até relógio para tirar de lá. Logo, as aventuras se iniciam e a menina
conhece um universo até então inédito, criado por Lewis Carroll, precursor da literatura
Nonsense.
Apesar de muitas leituras críticas acerca de As Aventuras de Alice No país das
Maravilhas (1865)1 verificarem a presença de características maravilhosas em sua
composição, nosso trabalho terá como base de análise o Fantástico, sendo
necessário, inicialmente, diferenciá-lo do Maravilhoso. Todorov (1975) em sua
Introdução à Literatura Fantástica contribui para nossas discussões iniciais com o
conceito de fantástico na literatura, traçando um paralelo com o que vem a ser o
estranho e o maravilhoso. Para o teórico, o fantástico se define como categoria que
“dura apenas (n)o tempo de hesitação”(p.47. Grifo nosso), entre o que se é impossível
definir como realidade ou fantasia; já o maravilhoso, a priori, é definido como algo
totalmente inexplicável, sobrenatural, diante de leis físicas já convencionadas.
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, [...]
produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis
deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por
uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos
sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do
mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso
esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. [...] O
fantástico ocorre nessa incerteza; [...] é a hesitação experimentada
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Nas demais citações da obra, nos referenciaremos a edição de 2009.
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por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31-31)
Para além das definições de Todorov, alguns outros teóricos, problematizando
o fantástico, contribuíram significativamente com a (re)definição do gênero no decorrer
da história. Adotamos nesse trabalho, concepção semelhante a de Irène Bessière
(1974) e Rosemary Jackson (1993). Sobretudo Bessière, que compreende o fantástico
como constituído das dicotomias real/ irreal, razão/ loucura, aparente/ escondido e
regra/ transgressão, sendo impossível admitir um lado, um posicionamento. Nesse
sentido a tensão, a dúvida do que é ou não real paira no ar.
Nas
nossas
análises, o conceito de fantástico dialoga com o conceito de distopia, que por sua vez
se caracteriza como oposto ao movimento utópico. Enquanto a utopia se caracteriza
como um bom lugar, impulsionado pelo sonho, pela esperança presente, a distopia se
apresenta como um mau lugar, um lugar que dá espaço à melancolia e a
desesperança, sendo por vezes inibidor de liberdade, totalistarista, semelhante à
postura da rainha de copas, presente no romance em questão, que ordena a
decapitação da maioria de seus súditos sem motivo aparente, caracterizando uma
situação distópica.
Sobre o Nonsense, pode-se inferir que se caracteriza como estética voltada a
composição metalinguística do texto, no qual as palavras são exploradas em sua
significação opaca, plurissignificantes, transgredindo uma única leitura do texto. Sendo
assim, o Nonsense enquanto estética literária não é percebido apenas como texto
dissociado de sentidos, mas
Como alerta inúmeras vezes Bessière, não convém confundir o
fantástico – ou, acrescentaríamos, o nonsense – com a
irracionalidade ou a “desrazão” representadas tematicamente em
suas narrativas. Em certa medida, o fantástico e o nonsense
aproximam-se e mesmo tocam-se, compartilhando alguns aspectos
característicos, tais como a representação de um universo e um
imaginário não realistas e, sobretudo, a distância deliberadamente
criada entre objeto e sentido, signo e significado, uma das
características principais no discurso nonsênsico. (SALGADO, 2012,
p.86)
Desse modo, o Fantástico e o Nonsense dialogam, como foi visto, sendo
ambos transgressores em sua significação, pois o que é realidade ou sonho em se
tratando de fantástico e nonsênsico? Não há solução definitiva em ambos os casos.
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Há apenas o movimento ambíguo que problematiza uma realidade que se faz interior e
ao mesmo tempo exterior ao texto ficcional. Segundo Salgado:
Nesse sentido, o nonsense e o fantástico problematizam uma certa
desconfiança e inquirição com relação ao universo à nossa volta e
com as formas históricas e cognitivas com que os temos interpretado,
pressionando os limites conhecidos, tomando-os como constructos,
questionando-os pela inserção de uma polissemia de informações e
significados – nem sempre compatíveis, usualmente contraditórios –,
que vem substituir a monossemia vigente. Entretanto, mesmo em tal
semelhança, nos venturamos a perceber uma diferença primordial
entre o fantástico e o nonsense, qual seja: enquanto o primeiro
questiona a relação do homem com o mundo e a realidade, o
segundo fundamenta sua desconfiança e questionamentos na relação
entre a linguagem, o discurso e a realidade. (IDEM, p.88)
O filme Alice (1988), do diretor surrealista tcheco Jan Svankmajer, também
complementa o corpus desse estudo, sendo nosso objetivo analisar comparativamente
as duas obras (literária e fílmica), observando como o fantástico, o distópico e o
grotesco se constroem esteticamente nas duas narrativas. A película é analisada
tendo como ponto de partida conceito de grotesco como categoria que abala a ordem,
que escapa a compreensão e que dialoga, por esses motivos, com a narrativa
fantástica. Além disso, o grotesco é visto como uma forma de traduzir aquilo que não
pode ser compreendido, a partir de imagens que remetem a uma desestabilização
estética, muitas vezes, em confronto com o conceito de belo. Daí surge a ênfase na
correlação entre o fantástico e o distópico.
1.
A passagem ao universo fantástico: Alice desce ao país das maravilhas
Antes de adentrarmos o universo fantástico e distópico a que se propõe este
trabalho, cabe perceber como se deu a passagem de Alice ao País das Maravilhas,
fazendo os apontamentos necessários acerca da percepção do fantástico, do distópico
e do grotesco nas obras. No filme e no romance tal passagem é incitada inicialmente
por um coelho branco que surge de forma a romper com o tédio que se fazia presente
naquela tarde quente na qual Alice se encontrava. O coelho carrolliano surge em
situações extraordinárias demais e faz com que Alice saia de seu lugar tediosamente
confortável e vá em busca de seu desejo utópico “sem nem pensar de que jeito
conseguiria sair depois” (CARROLL, 2009, p.14), impulsionada por sua curiosidade
infantil.
O primeiro ponto a se considerar é o deslocamento de Alice até o país das
maravilhas. Tal passagem ocorre no momento em que a personagem adentra a toca
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do coelho e cai em um poço escuro e aparentemente sem fim: “Ou o poço era muito
fundo, ou ela caia muito devagar, porque enquanto caia teve tempo de sobra para
olhar a sua volta e imaginar o que iria acontecer em seguida” (CARROLL, 2009, p.14).
O lugar de difícil acesso é um ponto chave nas narrativas de tradição utópica, como
nA Utopia de Morus (1997) no qual a ilha marca o lugar afastado da realidade, das
lógicas e convenções sociais vigentes. Esse espaço afastado dá margem a
possibilidades inventivas, utópicas, a realização dos anseios almejados e de difícil
realização em uma sociedade que se faz cada vez mais cruel. No caso da obra de
Carroll, ao cair infinitamente em um poço, Alice seria “transportada” a um lugar
utópico? O país a ser encontrado poderia ser descrito como semelhante aos contos de
fadas, o que seria uma possível inclinação utópica, talvez mais lúdica e interessante,
inclusive, que o livro lido por sua irmã na ribanceira do rio.
Enquanto Alice cai no buraco percebe a presença de objetos diversos que
faziam parte da sua realidade: como livros, pregos e um pote de geleia que, para sua
decepção, se encontra vazio e sem utilidade aparente dentro do novo espaço. O pote
de geleia vazio pode sinalizar a ressiginificação do real naquele novo mundo: um pote
de geleia não precisa estar repleto para assumir uma função, sequer necessita de uma
função clara. A realidade antes vivida por a protagonista passará a ser questionada a
partir desse momento, assumindo aspectos que serão reais dentro da lógica do
fantástico, através da linguagem que se torna cada vez mais opaca e ao mesmo
tempo aberta a significações diversas.
Segundo Salgado (2012), em relação ao real e ao fantástico:
O real é composto por uma estrutura cognitiva e sociocultural,
definida de acordo com as crenças coletivas de cada época e
sociedade. Já o fantástico, ao utilizar de tal estrutura para existir,
expõe tanto aquilo que foi deixado de fora trazendo à tona a
possibilidade de outras “verdades”, “probabilidades”, “realidades”,
quanto a própria estrutura em si e seu estatuto de construção
discursiva. (SALGADO, 2012, p 79-80)
O real socialmente vivido no mundo não-maravilhoso se aproxima cada vez
mais do real exigido pelo fantástico. Esse real, entretanto, não tem obrigação alguma
com a realidade em seu sentido estrito, mas se torna real a partir da linguagem
verossímil no texto literário. A linguagem do texto vai subvertendo gradualmente os
significados reais das sentenças apresentadas inicialmente nos devaneios de Alice ao
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longo de sua descida, seus questionamentos vão se fazendo distantes de uma lógica
racional.
‘[...] Mas será que gatos comem morcegos?’ E aqui Alice começou a
ficar com muito sono, e continuo a dizer para si mesma, como num
sonho: ‘Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos? E às
vezes ‘Morcegos comem gatos?’, pois, como não sabia responder a
nenhuma das perguntas, o jeito como as fazia não tinha muita
importância. (CARROLL, 2009, p. 16)
O mundo a partir desse momento narrativo irá se configurar em sentido
diverso. Alice em uma mistura de sono e devaneio questiona a possibilidade de um
gato comer um morcego e também o seu oposto a possibilidade de um morcego
comer um gato. Como não encontra respostas, pois o fantástico sobrevive da
ambiguidade do que é real e não necessita do que é verdadeiro, assim como o
nonsense que, relacionado ao universo onírico de Alice, não tem obrigação alguma
com respostas únicas, a menina é despertada por um súbito golpe: havia chegado ao
solo.
A passagem em questão apresenta características distintas na narrativa
fílmica. Se por um lado, os fragmentos evidenciados sugerem um deslocamento
entendido como utópico, que possibilita uma leitura da possível construção fantástica
da narrativa, o filme de Svankmajer (1988), por sua vez, evidencia uma leitura voltada
para aspectos grotescos, obscuros e violentos em sua composição.
O filme se inicia com Alice e sua irmã na ribanceira do rio. A ociosidade é
presente na película, assim como na obra literária. A protagonista joga pedras no rio e
ao tentar folhear o livro que a irmã lê, recebe uma palmada na mão. Após essa cena,
Alice apresenta, em uma estratégia metaficcional, o possível objetivo do filme, através
da seguinte fala: Alice pensou com ela mesma: agora vamos ver um filme feito para
crianças, talvez. Mas não esqueças que deves fechar os olhos, porque de outra
maneira não verás nada2. Essa fala inicial da protagonista-narradora evidencia o
caráter nonsênsico da obra e o seu diálogo com a polissemia própria dessa estética,
radicalizada no momento do sonho, momento por excelência no qual fechamos os
nossos olhos e deixamos nossa imaginação mais livre. A personagem do romance, ao
cochilar busca respostas aos questionamentos feitos no decorrer de sua descida,
assim como o espectador deverá fazer, em sentido metafórico, ao assistir Alice e ao
adentrar em seu universo.
Tradução a partir da legenda em espanhol: “Alicia pensó para si: ahora veremos uma película hecha para niños,
quizás. Pero no olvides que debes cerrar los ojos porque de outra manera no verás nada”.
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A cena seguinte mostra a menina em seu quarto, um ambiente obscuro e
repleto de objetos pouco comuns ao universo infantil, o que marca um claro contraste
com o estereótipo da infância como uma fase singela e lúdica. A câmera nos parece
evidenciar um a um os objetos que irão se tornar personagens no filme, em
deslocamentos constantes a vários ângulos do quarto de Alice. Nesse ambiente, a
personagem reproduz a mesma situação vivida por ela na ribanceira do rio, sendo ela
e sua irmã, bonecas de porcelana, exatamente nas mesmas posições.
Essa reificação metalinguística do que é real, pode ser a primeira evidência de
que o país das maravilhas não é tão distante assim da realidade de Alice. De fato, o
lugar fantástico e inédito se faz em um velho casarão abandonado e escuro, repleto de
escrivaninhas que dificilmente são abertas. A pouca iluminação e a trilha sonora
composta apenas por ruídos, assim como o próprio quarto mal iluminado da menina,
repleto de objetos que irão se tornar personagens, aponta para a ficcionalização do
ambiente real, através da metamorfose dos objetos apresentados.
Alice reproduz em seu quarto a primeira cena do filme, em uma espécie de
brincadeira, na qual o rio é uma xícara de chá e ela e sua irmã são bonecas, e
percebe algum ruído. Seu coelho, que em nada se assemelha ao coelho Carrolliano,
veste uma roupa “de gala” e sai de sua gaiola. Talvez o coelho branco seja no filme a
personagem que mais se distancia da narrativa de Carroll. Svankmajer a compõe em
constante decomposição física, sendo um coelho-objeto, provavelmente uma pelúcia,
que deve preencher-se constantemente do próprio material físico. Ambas as
características
desse
coelho,
como
a
constantemente
necessidade
de
se
autopreencher de matéria sólida como uma espécie de serragem, e a sua
agressividade, contribuem com o aspecto grotesco dessa personagem. Sobre a
representação grotesca, Salgado, afirma que em relação a construção estética desse
filme
[...] é possível inferir que o grotesco não é utillizado pelo cineasta
somente no sentido do estabelecimento de um tom muito mais
sinistro e obscuro a todo o universo fílmico, seja o real ou o
maravilhoso. Apesar disso, esse uso é bastante efetivo nesse sentido
ao criar tal realidade afetada e “arruinada” tanto pelo real controlado e
corrompido pela guerra e por sociedades racionalistas, quanto pelo
desejo violento e ameaçador do irreal subitamente irrepremido.
(SALGADO, 2012, p 149)
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Alice decide seguir seu coelho e ao iniciar-se na perseguição, a menina se
encontra em um espaço muito diferente de seu quarto. É um lugar desértico, seco,
repleto de pedras, no qual ao longe se vê a “toca do coelho”, simbolicamente
representada por uma escrivaninha (a primeira de muitas a aparecer no filme). Ao abrir
a gaveta, não sem alguma dificuldade, pois as gavetas são sempre passagens de
difícil acesso na narrativa, a menina se depara com objetos que remetem a uma lógica
matemática, como réguas e compassos. Além de uma possível citação ao autor da
obra original, pois Lewis Carroll ensinou matemática, a presença de tais figuras pode
remeter à lógica racional que deverá ser abandonada por Alice ao longo de sua
aventura no País das Maravilhas, a qual não deixa de ser dolorida, pois Alice fura o
dedo ao encontrar um compasso. O machucado no dedo de Alice pode sinalizar,
também, a natureza distópica do lugar fantástico e grotesco ao qual ela se deslocará.
A gaveta se assemelha a um túnel e assim que este termina, ficando seus
objetos de medida para trás, Alice cai novamente em um buraco tão profundo quanto o
da Alice de Carroll. No filme, tal poço se assemelha mais a um fosso de elevador,
evidenciado pelo ruído das engrenagens e pelos números que marcam a parte
superior e interna dos andares percorridos. A Alice de Svankmajer se mostra o tempo
inteiro melancólica e, por vezes, apreensiva diante do caráter sempre inédito daquilo
que vivenciará. Até que ponto esse país inesperado, será um lugar utópico ou
distópico?
2. O Fantástico-distópico e o grotesco: entre romance e filme
Após cair em um buraco, Alice se encontra em um salão repleto de portas, o
problema, no entanto, é que nenhuma porta pode ser aberta pela pequena chave que
se encontra em cima de uma mesa de três pernas. Mas eis que há uma “cortina baixa
que não havia notado antes” (p.17) e por trás dela uma pequena porta, a qual a chave,
enfim, abriu. O comprimento de Alice, que é grande demais para a tal passagem,
impossibilita a personagem de alcançar seu desejo utópico. Uma garrafa é
encontrada, então, em cima da mesma mesa em que a chave havia sido encontrada
outrora, está escrito “beba-me”. A menina bebe o liquido da garrafa, não sem antes
averiguar se não se trata realmente de um veneno, e logo após beber todo o
conteúdo, Alice percebe que algo acontece:
[...] agora só tinha vinte e cinco centímetros de altura e seu rosto se
iluminou à ideia de que chegara ao tamanho certo para passar pela
portinha e chegar àquele jardim encantador. Primeiro, no entanto,
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esperou alguns minutos para ver se ia encolher ainda mais: a ideia a
deixou um pouco nervosa: pois isso poderia acabar’, disse Alice
consigo mesma, ‘ me fazendo sumir completamente, como uma vela.
Nesse caso, como eu seria?’ E tentou imaginar como é a chama de
uma vela depois que a vela se apaga, pois não conseguia se lembrar
de jamais ter visto tal coisa. (CARROLL, 2009, p 20)
No fragmento acima, podemos perceber inclinações grotescas em relação ao
tamanho
mutável
de
Alice,
pois
a
menina
poderia
inclusive
desaparecer
completamente se continuasse encolhendo. O grotesco como categoria estética, por si
só remete a essa instabilidade, pois sua natureza remete a oposição ao perfeito, bem
acabado, delimitado. Essa categoria proporciona ao mesmo tempo atração e repulsa
diante da imagem que não se faz perfeita, como a imagem de Alice encolhendo tanto
a ponto de cogitar sumir. É possível observar o fantástico presente no fragmento
acima. Alice não consegue se lembrar de como é a chama de uma vela após ela se
apagar. Ora, se a vela se apaga como haverá chama? Tal questionamento de Alice
remete ao fantástico e ao nonsense e sua relação de subversão da realidade.
No capítulo “A lagoa de lágrimas” o viés distópico do romance se faz presente,
pois ao não conseguir chegar ao jardim (após ter encolhido e crescido demais) Alice
agora com três metros começa a chorar, pois não consegue atravessar a pequena
porta:
Pobre Alice! O máximo que conseguiu, deitada de lado, foi olhar para
o jardim com um olho só; chegar lá estava mais impossível que
nunca: sentou-se e começou a chorar de novo.
‘Devia ter vergonha’, disse Alice, ‘uma menina grande como você’
(poderia bem dizer isso), ‘ gorando dessa maneira! Pare já, já, estou
mandando!’ Mesmo assim continuou, derramando galões de
lágrimas, até que a sua volta se formou uma grande lagoa, com cerca
de meio palmo de profundidade e se estendendo até a metade do
salão. (CARROLL, 2009, p 24)
O choro da personagem evidencia a situação distópica em que ela se encontra.
O tamanho desproporcional, o jardim inatingível são fatores que contribuem para a
percepção dessa distopia presente, através da melancolia da personagem. O filme de
Svankmajer, por sua vez, radicaliza o caráter distópico.
Em um quarto escuro, no qual se encontra apenas uma escrivaninha Alice
bebe o liquido nada atrativo da garrafa sobre a mesa e encolhe. A protagonista
assume exatamente as mesmas feições de sua boneca, presente em seu quarto no
momento em que Alice reproduzia com seus brinquedos a cena já vivida por ela e sua
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irmã na ribanceira do rio. Como não consegue recuperar a chave que ficou em cima
da escrivaninha, a literalmente pequena Alice cresce novamente, dessa vez, por conta
de um biscoito que, assim como o liquido da garrafa, tem propriedades fantásticas,
rola em sua direção. Ao crescer o problema da Alice de Svankmajer é idêntico ao da
Alice de Carroll, entretanto, o filme difere do enredo literário na seguinte cena: Após
crescer, Alice abre a porta para observar o jardim, mesmo que não consiga chegar à
ele. Nesse momento a menina distingue o coelho segurando dois remos, em uma
espécie de tempestade, e tenta alcançá-lo com as mãos. O coelho, por sua vez, bate
nas mãos de Alice com os remos, que mais se assemelham a colheres de pau, em
uma alusão aos objetos metamoforseados do ambiente real de Alice, em uma postura
violenta.
O coelho como personagem grotesca, utiliza da crueldade para acentuar o seu
caráter disforme, em diálogo, ainda assim, com o fantástico que perpassa toda a
narrativa fílmica e literária, quando se trata da representação da (des)ordem social, de
caráter inédito, não-tradicional:
A deformação grotesca é o sinal de uma confusão na representação
da realidade no momento de crise. Por detrás da deformação
grotesca, insinua-se a presença de um impensável. Esse tipo de
hibridação provoca assim um efeito específico que denominamos
“fantástico”. Se o gênero fantástico recorre ao grotesco, é porque este
se torna uma linguagem capaz de dar conta do inédito, ou daquilo
que não se encaixa nos moldes conceituais da tradição (BATALHA,
2008, p. 187)
É com base nessa relação entre o fantástico e o grotesco, em destaque no
fragmento acima, e acrescentando a presença da distopia nas cenas e trechos
apresentados em ambas as Alices, que concluímos nossas análises. Na obra de
Carroll as categorias analisadas dialogam em função de um universo fantástico e
nonsensico. Esse mesmo universo se faz grotesco, a partir das imagens e
mutabilidade física da própria Alice, e distópico, pois tal país não é agradável o tempo
todo, sendo possível verificar características distópicas a partir de impulsos utópicos
da personagem, como o momento em que ela quase se afoga nas próprias lágrimas,
percebendo que já não se encontrava em um bom lugar.
Na película, percebe-se uma maior presença do grotesco que se evidencia a
partir das características das personagens, que são objetos de Alice, do cenário
obscurecido e da comida que não é nada atrativa. O coelho branco é grotesco a
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medida que se auto preenche da sua própria matéria (uma espécie de serragem) e é
dotado de agressividade em relação à protagonista. O próprio país das maravilhas é
grotesco ao se configurar como um velho casarão escuro e abandonado, repleto de
objetos familiares e estranhos ao mesmo tempo. Nesse contexto, o país ainda é
fantástico, pois assume caráter dicotômico entre realidade e sonho, regra e
transgressão. É também distópico a medida que se apresenta como não agradável,
violento e assustador. Assim percebemos que nas obras analisadas o fantástico e o
distópico se entrelaçam e dialogam, causando um desconforto vivido por a
protagonista diante do inédito e o grotesco nos dois enredos apresentados.
REFERÊNCIAS
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas; Através do espalho e o que
Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975
BATALHA, Maria Cristina. O grotesco ente o informe e o disforme, um possível sentido.
São Paulo, 2008. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/1134/922 .
Acesso em: 20 de Abril 2014
SALGADO, Fernanda de Cássia Alves. Cinematografias do fantástico: visões de Alice e do
País das Maravilhas no cinema. Minas Gerais, 2012. Disponível em: <
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/JSSS-8ZZJE5 >. Acesso em: 15 de
Abril 2014
ALICE, or something of Alice. Direção: Jan Švankmajer. Channel Four Films; Condor Films;
Hessicher Rundfunk; Schweizerische Radio und Fernsehgesellschaft. Tchecoslováquia, 1988.
Animação. 86 min; Mono; Color. Título original: Neco zAlenki.
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