MENSAGEM DE NATAL 2014
Recorda-te das maravilhas que o Senhor fez…(Sl. 105,5)
A
7 de setembro passado tive o privilégio de participar na cerimónia que marcou o
encerramento das celebrações dos 150 anos de fundação da comunidade espiritana de
Chevilly Larue na França. Em 1863 o P. Inácio Shwindenhammer, com a ajuda do seu
património, comprou uma quinta de caça nos arredores de Paris que pertencia aos nobres da
época e transformou-a num lar para futuros missionários espiritanos e para o Superior Geral da
Congregação dedicada ao serviço dos pobres. A história de Chevilly, escrita pela vida de
Espiritanos simples e comuns, irmãos e padres, e seus colaboradores, é verdadeiramente
admirável. É a história de sucessivas gerações de formadores e professores que através da sua
sabedoria e testemunho moldaram cerca de 4000 missionários que, por sua vez, fundaram,
formaram e inspiraram comunidades cristãs florescentes pelo mundo além. Mais recentemente, é
a história da evolução de uma comunidade que antes se dedicava unicamente à formação de
jovens missionários que partiram para terras estrangeiras e agora se tornou num lar para eles
quando finalmente regressam devido à sua idade avançada ou doença. E assim tornam-se
missionários de outra forma, talvez mais importante do que quando eram jovens e ativos,
aceitando a missão dos seus limites com fé, dignidade e alegria e testemunhando a presença de
um Deus que cura e transforma num mundo precisando de esperança e de sentido.
O
s 150 anos de Chevilly são uma das muitas celebrações espiritanas que aconteceram em
2013 e 2014 em diferentes partes do mundo: o início da Igreja católica na ilha de Zanzibar;
a abertura do Colégio de Santa Maria em Porto-de-Espanha, na Trindade, assim como o início da
presença espiritana nesta ilha; a fundação do Colégio de Rockwell, na Irlanda; a chegada dos
Espiritanos e a fundação da Igreja local na Serra Leoa, Africa ocidental, onde as celebrações
previstas para o passado mês de Novembro tiveram que ser canceladas indefinidamente devido
ao trágico surto do virus Ebola. Sem esquecer a coincidência de 2014 ser também o 150º
aniversário da morte do Beato Tiago Laval na ilha Maurícia. Estes vários aniversários mostramnos um período extraordinário de crescimento, diversificado e internacional, da Congregação,
após a morte do Ven. Padre Francisco Libermann e que, apesar dos poucos recursos, exigiu
decisões corajosas e imaginativas ao seu sucessor, o dotado embora controverso P.
Schwindenhammer. Enquanto superior Geral (1852-1881) viu surgir, imagine-se lá, 79 novas
fundações, 33 das quais na Europa e Estados Unidos, 25 nas Indias Ocidentais e outras antigas
colónias e as restantes na Africa. Várias destas novas fundações eram seminários, colégios ou
escolas agrícolas e muitas eram dedicadas à educação e formação de jovens pobres na sociedade
daquele tempo.
muito importante que nós façamos memória e celebremos estes e outros marcos
É significativos
da nossa história Espiritana, particularmente tendo presente o contexto da
nossa reflexão atual sobre a nossa identidade de Espiritanos. Antes de mais, a memória é tão
importante para a nossa identidade como para a do povo de Deus “Recorda-te das maravilhas que o
Senhor fez”, diz-nos o salmista (Sl. 105,5). O papel do Espírito Santo é precisamente recordar-nos
tudo o que o Senhor fez na nossa história humana e através dela, para nos ajudar a descobrir a
presença e ação de Deus formando o seu plano de amor através da realização da nossa história
humana, através das vidas e ações de homens e mulheres comuns, apesar das suas limitações e
erros. Como nos dizem muitas das parábolas do Evangelho, as memórias da nossa experiência
da compaixão, do amor e do perdão de Deus nas nossas próprias vidas, conduzem-nos, por sua
vez, a sermos compassivos, amorosos e capazes de perdoar aos nossos irmãos e irmãs. Fé e
memória estão muito ligadas; enquanto o esquecimento está muitas vezes na raiz das nossas
falhas. “Nunca esqueças a bondade do Senhor” (Sl. 103,2).
E
m segundo lugar, ao recordarmos as memórias do passado e as histórias daqueles que nos
precederam, tocamos de novo as mais profundas motivações da nossa vocação religiosa e
missionária; reavivamos o chamamento e o carisma que partilhamos em comum e que nos une
mais intimamente aos nossos irmãos e irmãs na família Espiritana. Damo-nos conta também
quanto devemos, naquilo que somos, pessoal e coletivamente, aos que nos precederam, pela sua
inspiração, sua visão e sua coragem. Uma vez mais tomamos consciência de como Deus pode
fazer coisas maravilhosas através das vidas de homens e mulheres comuns que, sabendo dos
seus limites, permanecem abertos ao poder do Espírito Santo. Descobrimos que a fraqueza
humana e suas falhas não são necessariamente um obstáculo à graça de Deus ou à eficiência do
nosso testemunho. Assim o disse o Papa Francisco aos superiores gerais em Novembro 2013: “
um religioso que se reconheça fraco e pecador não está a negar o testemunho que é chamado a dar, mas está
a reforça-lo e isso é bom para todos” ( “Acordar o mundo”, António Spadaro, S.J., p.3).
N
a minha recente visita à Província do Canadá, em Quebec surpreendeu-me o lema
escolhido: “Je me souviens (Eu me recordo)” “Este lema só tem três palavras”, explica o
historiador Thomas Chapais, “mas estas três palavras valem mais do que muitos belos discursos.
Sim, nós recordamos. Recordamos o passado e as suas lições, o passado e as suas desventuras, o passado
e as suas glórias… Este lema diz de forma eloquente em três palavras não só o passado, mas também o
presente e o futuro”, acrescenta o arquivista Pierre-Georges Roy. A memória não é sobre o
passado. A forma como recordamos o passado determina, até um certo ponto, o modo como
vivemos o presente e delineamos o nosso futuro. Tal como memórias negativas de sofrimento e
injustiça afetam o modo como percebemos o mundo, as nossas relações humanas, a nossa
capacidade de regozijo e em certo sentido limitam as possibilidades para o nosso futuro; assim
também as memórias positivas das experiências de amor, aceitação, de inspiração e apoio dos
outros, dão cor também à nossa capacidade de relacionamento com os nossos irmãos e irmãs e
marcam positivamente o nosso futuro. “Recordações de amor tornam possível todos os nossos
empreendimentos”, disse Sr. William Dietrich, filantrópico americano quando em 2011 deu a
sua grande fortuna para várias instituições de educação em Pittsburgh. “Dão-nos a confiança
para arriscar e irmos para além de nós próprios”.
Silf, escritora britânica, exprime a mesma convicção doutro modo: “Tudo o que
M argaret
aconteceu neste lugar tornou-o naquilo que ele é hoje, que por sua vez é a semente de todo o
potencial que tem para ser…. A nossa história é importante – as nossas estórias, tanto coletivas como
pessoais. Quando escutamos as nossas memórias, expomos camadas escondidas daquilo que somos. Temos
um dever sagrado de partilhar o nosso tesouro com aqueles que nos seguem. Se não o fizermos, corremos o
risco de nos tornarmos seres unidimensionais sem profundidade para lá do impulso imediato, sem
montanha que nos permita um horizonte, e com um sentido muito diminuto de quem nós somos. Contemos
as nossas estórias. Elas são o nosso presente (dom) para o futuro.” (Compass Points, p. 208)
N
as palavras do Papa Francisco “a tradição e a memória do passado devem ajudar-nos a ter a
coragem de abrir novos espaços para Deus” (Entrevista com Antonio Spadaro, S.J., Agosto
2013).
D
entro em breve vamos celebrar a história fundacional da nossa fé cristã, com a vinda do
Filho de Deus ao nosso meio, deixando o seu estatuto e dignidade para se identificar
totalmente com a nossa condição humana, abrindo-nos assim um novo futuro para a
humanidade. Oxalá a comemoração deste extraordinário acontecimento renove a nossa
consciência de sermos chamados como Espiritanos a identificarmo-nos e partilharmos a vida
daqueles que vivem nas margens da sociedade contemporânea, dando-lhes nova esperança e
dignidade. Oxalá a celebração do Natal nos conceda, como concedeu àqueles que nos
precederam, a coragem de abrir em nossos corações, nas nossas comunidades e na nossa
Congregação “novos espaços para Deus”.
John Fogarty, C.S.Sp.
Superior Geral
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