ANNABELA RITA, BREVES & LONGAS NO PAÍS DAS MARAVILHAS1 (Recensão Crítica) MARIA DE FÁTIMA MARINHO UNIVERSIDADE DO PORTO Recentemente publicado, este livro de Annabela Rita reúne textos de índole variada, éditos e inéditos, divididos em duas partes que reflectem as preocupações da autora e o âmbito da sua investigação. A primeira parte, intitulada «No País das Maravilhas», compila prioritariamente ensaios de reflexão crítica sobre temas que à partida não parecem aparentar-se com a análise literária, dado que se debruçam sobre problemas ligados com a identidade nacional e correspondente imaginário colectivo. Esta dicotomia, porém, revela-se enganadora e a disparidade acaba por se transformar num contributo de unidade. Na realidade, as questões levantadas nestes textos têm evidente ligação com a produção literária portuguesa. Numa visão desassombrada e crítica, Annabela Rita evoca características próprias da mentalidade e do modo de ser nacionais, ajudando a compreender as obras literárias através do prisma da actuação e da funcionalidade lusitanas. Alguns exemplos paradigmáticos legitimirão a tese da interpenetração de ambas as perspectivas de análise de uma realidade comum. Logo no segundo texto, «Portugal ou o País das Maravilhas», ao referir as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, a autora equaciona a forma como o discurso inerente a essas comemorações é já um meio de modificação de um real passado que é, por natureza, inacessível, porque só apreendido indirectamente através de outros textos que dele falam. Daí que evocar seja já ficcionalizar e que as mais ingénuas celebrações sejam meios de construir a lacunar História. Annabela Rita escreve lucidamente: «É este processo ficcionalizador que está na origem das diferenças entre as versões (muitas vezes, contraditórias) que as diversas Histórias oficiais dão dos acontecimentos (especialmente, dos mais importantes) : cada país escreve (faz) a sua própria História, constrói o seu próprio romance, e os compêndios escolares (quantas vezes!) chegam ser belos livros de contos fascinantes. E a voz oficial sobrepõe-se quase sempre eficazmente às vozes discordantes que no espaço nacional (e não só) tentam fazer-se ouvir...» (p.21). Consciente deste limitação inevitável, a autora problematiza o estudo da mentalidade portuguesa, o seu relacionamento com o outro, que reconhece sempre como 1 Lisboa, Roma Editora, 2004. 2 não eu, o que pressupõe uma incorporação progressiva. As consequências desta visão do estranho (no sentido em que assim se qualifica tudo o que não faz parte do nosso restrito universo de valores) reflectem-se em vários níveis, incluindo o dos comportamentos institucionais, que Annabela Rita levanta em «Problemas de visão, crise de crescimento», ao analisar a má-consciência portuguesa na sua relação com os países africanos, antigas colónias. Relacionadas com estas reflexões, estão outras menos abrangentes, mas não menos significativas, da sociedade actual. Refiro-me às considerações sobre o funcionamento dos grupos de jovens e à sua forma de encarar a existência, em «Sensibilidades...», ou à «Transformação do Paradigma de leitura» que faz deslocar a tradicional leitura para uma outra centrada no audio-visual que exige certamente competências e disponibilidades diferentes. O esteriótipo feminino presente no inconsciente masculino é ostensivamente mostrado em «Na Guerra entre o XY e o XX», a propósito de um programa televisivo, o «Frou-Frou», da responsabilidade de cinco mulheres. A forma de alienação que representam os «reality shows» e o discurso próprio da literatura de viagens, consoante as épocas e os lugares, são analisados em vários capítulos, entrelaçando sempre a autora, a representação literária com a mais prosaicamente factual. Ainda na primeira parte, e a iniciar, o texto «Da Crónica (queirosiana & outra)» debruça-se sobre a escrita própria deste género, como que antecipando as reflexões que serão levadas a cabo ao longo de cerca de cem páginas e que, frequentemente, assumem características muito próximas das da crónica. Usando um processo que poderíamos apelidar de metalinguístico, Annabela Rita actualiza formas de escrita de que metodologicamente diz servir-se. A segunda parte, «Na Biblioteca, Gabinete de Curiosidades», engloba textos mais directamente relacionados com os estudos literários, desde o comentário a duas obras de Sena Freitas até algumas recensões críticas, passando por dois ensaios sobre Camilo Castelo Branco e um outro sobre o confronto entre um conto de Autran Dourado e um de Machado de Assis. A importância de Camilo Castelo Branco na obra da autora é visível na atenção que lhe é dada neste conjunto de estudos. Não só alude com algum pormenor à biografia de Sena Freitas, como se debruça sobre O Marquês de Pombal da autoria do escritor de Ceide, alongando-se na análise da auto-reflexividade da escrita camiliana, evocando o estatuto do narrador, a construção de algumas personagens e os modos como se estrutura o enredo. Romances como Amor de Perdição, Coração, 3 Cabeça, Estômago, Vinte Horas de Liteira e As Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, servem de modelos para a exemplificação da escrita de Camilo que oscila entre uma ironia exemplar e um melodramatismo próprio dos propósitos de escola por que se rege. A consciência de que a ironia é um modo privilegiado de discurso literário levam a autora a dar especial atenção ao conto de Autran Dourado, «Mote Alheio e Voltas» que é uma reescrita paródica de «Missa do Galo» de Machado de Assis. O confronto que faz entre os dois textos levam-na a uma interessante conclusão, ao unir a reflexão e a ironia, «os dois pólos de um eixo sobre que se desdobram especularmente o hemisfério do real e o do imaginário unidos por uma tensão indestrutível.» (p.202) Desenhando-se sob o signo do perfil, vocábulo aliás presente em oito dos onze capítulos desta segunda parte, os textos do livro afloram, como sumariamente vimos, personalidades e modos de dizer aguçando a curiosidade para ensaios de maior fôlego sobre as matérias aqui esboçadas.