3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL A IRONIA ROMÂNTICA E O LUGAR DO NARRATÁRIO EM CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO Ena Lélis 1 Nascido em Lisboa, no ano de 1825, Camilo Castelo Branco foi um dos grandes nomes da prosa literária do século XIX em Portugal. Órfão de mãe aos dois anos de idade e de pai aos dez, foi entregue, juntamente com a irmã, a parentes de Vila Real. Nessa altura, Camilo já questionava Deus sobre o seu próprio nascimento, tentando entender por que razão o Criador tinha-o condenado à vida. Este momento da sua história foi contado quando já adulto, em página autobiográfica, intitulada No Bom Jesus, no livro Boémia do Espírito. Há cem anos que este Senhor crucificado vê umas poucas de gerações prostradas diante do seu altar – uns a agradecer, outros a suplicar. Pois, talvez no transcurso de um século, nenhuma outra criança de 10 anos repetisse, diante desta sagrada imagem, as palavras de Job: Quare de vulva eduxisti me? – Porque me deste o nascimento? (CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 19) É sabido que Camilo teve uma vida conturbada. Casou-se ainda muito jovem e teve uma filha. Como “não era ave para nenhuma gaiola” (CHORÃO, 1998), abandonou esposa e filha, que morreram logo em seguida. Teve amantes, foi preso e, uma vez residindo no Porto, dedicou-se à literatura e ao jornalismo. Como jornalista, ganhou muitos inimigos por conta do seu estilo, notadamente ferino e provocador. Meio a tudo isso, tentou estudar Medicina e Direito, sem sucesso. Camilo não gostava de seguir programas, era um estudante voluntário e autodidata, afeito a uma vaidade intelectual que era muito maior que o seu desejo de conquistar um diploma. Por conta disso, não fez outra coisa na vida além de escrever, tendo sido o primeiro escritor português a viver das e para as letras. Escrevia por amor, dor, dinheiro e necessidade. Conforme Bigotte Chorão (1998), Camilo foi “escritor a tempo inteiro, conhecendo, como criador, o paraíso, e, como escravo das letras, o inferno.”. Notadamente conhecido 1 Pós-graduanda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana ― UEFS. ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL pela sua versatilidade, dele leem-se não apenas contos, novelas e romances, mas sabe-se também de seus tantos outros textos, como cartas e mesmo sermões que escrevia, mediante honesto pagamento, para abades pouco íntimos da escrita. O próprio Camilo confessava-se versátil e vendedor das próprias insônias. Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos, romances carmelitas, romances jansenistas, romances despóticos, monárquico-representativos, cabralistas e até romances regeneradores: o que eu quiser, e para onde me der a veneta. [...] dou formas dramáticas ao diálogo dos meus fantasmas, e convenço-me de que pertenço bem aos vivos, ao meu século, ao balcão social, à indústria, mandando vender a Ernesto Chardron [o editor] as minhas insónias. (CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 9-22) Aos 25 anos, conheceu Ana Plácido. E porque ela era casada quando iniciou nova relação com ele, foram presos por conta desse adultério e absorvidos após um ano, quando se mudaram para São Miguel de Ceide, onde tiveram filhos. Dona e governanta da sua casa, secretária, enfermeira, amante, mãe, esposa e irmã pelas afinidades literárias; era Ana Plácido para Camilo. Ainda que numa relação que migrou da paixão para a rotina – mais para ele que para ela –, viveram juntos até o fim, quando, aos 65 anos, em 1890, cego, sifilítico e desestruturado financeiramente, Camilo suicida-se. A vida de Camilo foi fortemente marcada por paixões, tragédias e desavenças. Marcas essas que se mostram proeminentes em sua produção literária, a qual acompanha o momento em que o Romantismo se desenvolvia em Portugal. A sua vasta obra, aliás, fez parte da construção desse período naquele país. Entre poesia, teatro, crítica política e literária, além de mais de uma centena de romances e novelas, o autor dedicou 45 dos seus 65 anos à escrita. Como bem pode ser observado, Camilo fez parte da literatura portuguesa do séc. XIX, época marcada pela vitória da burguesia e, consequentemente, pelo lucro, pela hipocrisia e pelo culto à aparência. Nesse contexto, muitos escritores de então utilizavam-se dos mesmos artifícios de representação social e fingimento, como maneira de criticar e denunciar realidades incômodas. Algumas das possibilidades de crítica e denúncia surgiam pelo sarcasmo, pela sátira e pela ironia, características bem conhecidas na obra camiliana. A produção que interessa, neste momento, é uma novela 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 177 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL satírica, Coração, Cabeça e Estômago, na qual Camilo utiliza como recurso a figura de um narratário como intermédio das suas censuras. 1 O CONCEITO DE IRONIA Antes de adentrar na discussão da inserção e do papel da ironia romântica na novela satírica camiliana, é relevante esclarecer a respeito do conceito de ironia. A ironia é comumente compreendida como a figura de retórica em que se diz o contrário do que era pretendido, levando-se em consideração que o receptor da mensagem entenderá a mentira implícita no discurso (DUARTE, 2006, p. 18). Resumida e claramente, Massaud Moisés definiu em seu Dicionário de termos literários que “a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender” (1992, p. 295). Entre os estudiosos da linguagem irônica, no entanto, é repetitiva a afirmação de que a ironia apresenta uma série de dificuldades em sua conceituação. Na visão de Muecke (1978, p.8-12, apud DUARTE, 2006, p. 18), “os pontos de contato existentes entre suas várias formas tornam possível defini-la de muitos diferentes ângulos.”. Além disso, e ainda segundo este autor, conceituá-la é tão difícil quanto definir arte ou poesia. Opta-se aqui, então, por apontar a ironia, em linhas gerais, como uma maneira de argumentação sagaz e intelectual, que se alicerça na intenção e consciência do ironista e na pretensão que este possui de fazer o seu receptor refletir sobre a mensagem que lhe é transmitida, de sentido dual: o que é enviado e o que é pretendido. A esta definição generalista, acrescenta-se alguns pressupostos para que aconteça a presença da ironia no discurso. Segundo Maria de Lourdes A. Ferraz, em sua obra A ironia romântica: a) ironia pressupõe um ato de comunicação que envolva um emissor, uma mensagem e um receptor; b) a ironia revela uma visão particular do mundo, a do emissor, e daí o seu caráter preferencialmente crítico; c) por pressupor um ato comunicativo e por seu caráter crítico, a ironia se relaciona com a linguagem de uma forma muito particular, pois exigirá do emissor irônico uma plena consciência dos recursos da linguagem que utiliza, isto é, uma consciência linguística crítica. Do receptor será exigida a mesma consciência, assim como um conhecimento amplo dos recursos linguísticos de que se utiliza o emissor para a construção da ironia; d) da questão anterior, decorre que haverá a necessidade, no discurso irônico, de que emissor 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 178 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL e receptor dominem a convenção da formulação irônica. Atente-se para o fato de que o receptor poderá ou não ser o objeto da ironia. Independente disso, para o discurso irônico acontecer e ser reconhecido como tal é necessário que haja um receptor que o compreenda. Mesmo que o receptor seja o próprio emissor (FERRAZ, 1987, p. 20, apud MUNIZ, 1999, p. 136). 2 A IRONIA NO CONTEXTO HISTÓRICO CAMILIANO Para se fazer uma breve análise do momento histórico em que a ironia se inseriu na literatura portuguesa, é preciso inquirir sobre o final do século XVIII, bem como o século XIX, em Portugal, quando se deu a Revolução Industrial e o desenvolvimento e instauração do sistema capitalista na Europa. A resposta disso é uma sociedade que apresenta como fortes características a valorização do capital, a mecanização do cotidiano, a objetividade e o pragmatismo das relações. Concomitante a essas mudanças, quando se identificava a vitória da burguesia, nota-se, na civilização ocidental, uma acentuação do homem enquanto indivíduo, enquanto ser uno e a necessidade do homem-artista em incorporar essas modificações no campo das artes. Quanto a isso, Lélia Parreira Duarte apresenta as duas vertentes do conflito do artista de então: aceitar essa incorporação e contribuir para a legitimação das mudanças ou resistir, criticando-a, o que significaria um suicídio do seu reconhecimento estético? (2006, p. 141). Camilo Castelo Branco, por ter vivido no séc. XIX, vivenciou o momento de transição estética, da romântica para a realista, tempo de efervescência literária em Portugal. E isso marcou algumas de suas obras, como a que agora se apresenta. Se a literatura clássica pautava-se na representação do real, na mimesis, a nova arte prezava a denúncia da artificialidade. Como bem afirma Duarte, “Se a nova sociedade era dominada pela hipocrisia, pela representação, o novo artista, irreverentemente, passa a denunciar esse culto da aparência.” (2006, p. 141). É comprovado que a ironia enquanto recurso linguístico é utilizada desde os gregos. Mas a ironia enquanto status literário nasce nessa ambiência do fim do séc. XVIII, enquanto forma de criticar, indiretamente, a realidade circundante, através do fingimento, da máscara, da necessidade de distanciar as vozes intra e extradiegéticas. Pode-se, ainda, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 179 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL lembrar do primeiro teórico da ironia romântica, Friedrich Schlegel, o qual afirmava que o autor precisa se destruir e se autocriar. Dessa forma, ele – o autor - atinge novas perspectivas, alcançando a liberdade, que tem a ironia como signo, o qual possibilita ao autor uma autoconsciência, podendo rir de si e, assim, ser levado a sério (SCHLEGEL, apud DUARTE, 2006, p. 142). A autoconsciência defendida por Schlegel é, pois, o questionamento que o autor faz do seu papel social e do próprio fazer literário, valendo-se, metalinguisticamente, da própria obra para expressar as suas reflexões. “Este comportamento crítico provocará uma reavaliação, inclusive, de seus ideais, de suas visões de mundo e de seus gostos estéticos. O recorrer à ironia tornar-se-á bastante comum.” (MUNIZ, 1999, p. 137). No intuito de credibilizar as suas obras e embutir-lhes veracidade, muitos escritores do século XIX, particularmente na literatura romântica, buscavam maneiras diversas de contar as suas histórias. Recorrer a escritos que lhes foram entregues ou a documentos que foram descobertos, ou mesmo a uma história que ouviram contar eram artifícios para tornar verossímeis as suas narrativas. Não diferente, Camilo utilizou-se desse recurso. Na narrativa que ora protagoniza esse artigo, tem-se a história de Silvestre da Silva, um autor-defunto, que, antes de morrer, deixa os seus escritos com um amigo para que este os publique, a fim de pagar as dívidas que contraiu em vida. Este amigo, que não apresenta nome, torna-se herdeiro e editor dos escritos de Silvestre da Silva. Vê-se no direito de editar aqueles três capítulos que tem em mãos – Coração, Cabeça e Estômago -, tornando-se, assim, o segundo narrador daquela história: o narratário. E na posição de editor desses papéis, revisita-os e modifica-os, imprimindo em sua justificativa o seu tom crítico-irônico. E o fará em todo o romance, por meio de notas. Eu fui o herdeiro dos seus ‘papéis’. Alguns credores quiseram disputar-mos, cuidando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender que eram pedaços num romance; e eles, renunciando à posse, disseram que tais pataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis. [...] Os manuscritos de Silvestre careciam de ser adulterados para merecerem a qualificação de romance. [...] No volume denominado Coração encontro algumas poesias, que não traslado, por desmerecerem publicidade, sobre serem imprestáveis ao contexto da obra. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 16-19) 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 180 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL 3 A DESCONSTRUÇÃO CAMILIANA PELO NARRATÁRIO E PELO PRÓPRIO AUTOR Jacinto do Prado Coelho nos informa que “a ironia camiliana pode ser avaliada tanto ao nível das micro-estruturas (frase-sintagma) como nas macro-estruturas (novela inteira)” (1983, p. 216). Grande parte dessa ironia está presente no discurso crítico do narratário, uma vez que o faz em sua macroestrutura. O seu olhar se volta não somente para trechos da narrativa de Silvestre da Silva (frases-sintagmas), mas, sobretudo, da novela inteira. Critica a estética literária recentemente decaída, apresentando-a como démodé, aponta uma sociedade injusta e interesseira e se aproveita, ainda, do autor já morto para diminuir e fazer pouco do seu olhar demasiado romântico. Nesses trechos, percebe-se que, já no Preâmbulo, Camilo, em utilização desse narratário, tece uma explícita crítica à narrativa de Silvestre da Silva. Ao depreciá-lo, quem Camilo critica, de fato? Vejamos. O ano de publicação de Coração, Cabeça e Estômago, uma de suas maiores novelas satíricas, foi o mesmo ano de publicação de uma de suas mais lidas novelas românticas, Amor de Perdição. A publicação desta foi anterior à daquela. O ano era 1862. A época era a de transição literária. A estética realista, como já exposto, ganhava força. A notável e mordaz ironia de Camilo, pois, deixa clara a desconstrução do editor sobre o autor, como uma leitura da desconstrução do próprio Camilo realista sobre o Camilo romântico. Tem-se, então, um embate discreto e sarcástico entre narrador e narratário, que é, se bem observado, uma releitura da consciência crítica do próprio Camilo Castelo Branco. O próprio romance propõe a primeira parte – Coração – como a fase emocional do protagonista; a segunda – Cabeça – como a sua fase racional; e a terceira – Estômago – a realista. Maior parte da ironia trazida pelo editor norteia o leitor a encontrar a desnecessidade do amor romântico, pondo-o como tolo: “O Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice brava.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 17). Como revela no Preâmbulo, o editor, sentindo-se no direito de adulterar os escritos de Silvestre da Silva, chega a acrescentar informações através das notas. Já no início da primeira parte, quando o protagonista faz saber sobre o primeiro amor que teve em Lisboa, o editor acrescenta fatos não narrados por Silvestre e inicia dizendo “Eu sei mais alguma coisa, que merece crónica.” (CASTELO BRANCO, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 181 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL 1988, p. 23). Nesta mesma nota, em crítica ao algibebe que se casou com o referido primeiro amor de Silvestre, Leontina, conta que ele ganhou um prêmio na loteria e que, por isso, mudou de cara e de maneiras, espezinhando em seguida que “O dinheiro faz estas mudanças e outras mais espantosas ainda. [...] Estão gordos, ricos e muito considerados na sua rua.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 24). Com este último trecho, o narratário expõe a interesseira dialogia entre dinheiro e imagem, tudo isso que veste a burguesia. Esta mesma observação é feita não só pelo narratário, como também pelo narrador e pelo próprio Camilo, ao escolher como títulos de dois de seus capítulos “A mulher que o mundo respeita”, para tratar de D. Paula, mulher vil, traiçoeira e vulgar, porém rica, e “A mulher que o mundo despreza”, para apresentar Marcolina, mulher de “virgindade moral”, cheia de valores, mas desprezada pela sociedade por ser pobre. Ao revolver a biografia de Camilo, percebe-se que essa reversibilidade de méritos é muito encontrada em seus escritos, sobretudo quando buscava explicação para a sua existência e sofrimento, defendendo que para os bons há castigos, sendo reservados prêmios para os maus. Voltando à crítica do narratário sobre o autor, encontra-se espalhada pela obra algumas alertas ao leitor, ou de que este se prepare para o que irá ler ou de que, enquanto editor, ele retirou algumas partes do autor, por serem de demasiado mau gosto: “Defendo a paciência do leitor dos duros golpes que lhe estão iminentes.” (CASTELO BRANCO, 1988, p.44) ou “As seguintes coisas são menos inocentes [...] Basta isso para terror das almas.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 45). Além da crítica aos poemas e ao exagero sentimental de Silvestre da Silva, o editor espezinha ainda o Silvestre jornalista, que se metia em tudo e era odiado por muitos. Perdoe-me a memória de Silvestre. A calúnia, conquanto escrita em palavras cultas e penteadas, é sempre calúnia. Elegâncias da linguagem, por mais que valham na retórica, valem nada para o desconceito de quem injustamente difamam. O jornalismo do Porto teve e tem admiráveis e valentes mentenedores da honra contra classes poderosas pela infâmia nobilitada. À conta de muitos poderia escrever-se o que o finado Silvestre disse de um [...].” (p. 116). E após transcrever as palavras de Silvestre, nas quais este reconhece o quão é odiado pelos seus escritos jornalísticos e, aos poucos, perde seu lugar nos jornais locais, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 182 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL o editor arremata: “Fez bem! Partiu o braço querendo parar o movimento da roda.” (p. 116). Ao perceber sua inaptidão para os assuntos do coração, Silvestre adentra a sua fase racional. Decepcionado com esta, após muito infortunar seus inimigos e sentir-se só e desprestigiado, o protagonista finda a sua vida intelectual e afirma que “Nem já coração, nem cabeça. Principia agora o meu auspicioso reinado do estômago” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 131), o qual não lhe deixará preocupações intelectuais, tampouco sentimentais. Reina o estômago e assim justifica: Não cuidem, porém, que eu hei-de consumir o restante da minha individualidade em comer. Há faculdades que não se obliteram imolando-as a uma única manifestação da vida orgânica: o mais que pode fazer o espírito é impulsioná-las, concentrá-las e convergi-las todas para um ponto. (p. 140) Observa-se que a desconstrução da qual tratamos anteriormente é também identificada através das palavras do próprio protagonista, que, com o passar dos anos, percebe a sua transformação; não a da sua consciência – o papel de consciente cabe ao editor -, mas a da sua racionalidade, endurecendo o que antes era somente exagero sentimental. Outro exemplo encontra-se ainda no início da segunda parte, quando Silvestre da Silva retorna ao Porto e já não julga as mulheres encantadoras como as de outrora. Neste momento, o leitor atento deve se perguntar se, de fato, o encanto dessas mulheres não mais existe ou não há mais encanto no olhar de Silvestre, tomado agora pela racionalidade. Ó mulheres do Porto, ó virgens saudosas da minha mocidade, ó santas da natureza como Deus as fizera, que é feito de vós, que fizeram de vós os romances, e o vinagre, e a Lua, e o pó de telha, e as barbas do colete, e os jejuns, e a ausência completa do boi cozido, que vossas mães antepuseram às mais legítimas e respeitáveis inclinações do coração?! [...] Estavam as minhas faculdades regidas pela cabeça. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 103-4) O protagonista julga a publicação dos seus escritos como proveitosa para a iniciação da mocidade da época, a fim de que esta não repetisse os erros que ele 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 183 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL cometera, numa alusão ao reconhecimento de que é inválido ou desnecessário estar afeito às agruras do coração, do romantismo. Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus papéis, com plena autorização de divulgá-los, se eu visse que podiam ser de proveito para a iniciação da mocidade. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 177) Finalmente, ainda resta tempo para apontar que o romance não está apenas dividido em três partes. Há ainda dois acréscimos feitos pelo editor: um no início, o Preâmbulo, e outro no fim, intitulado “O editor ao respeitável público”. Daquele já foram feitas, anteriormente, as devidas demonstrações. Sobre este, no qual o editor se despede, justifica as partes aproveitáveis do romance, que são as que mostram que “a deusa da fortuna é a predilecta amiga dos que submetem a vida ao regime suave da matéria”, imprimindo, assim, crítica e atualização daquele momento histórico e literário. Em suas últimas palavras, o narratário espreme ainda a sua última gota de tinta na ferina pena. Apresenta o último soneto de Silvestre. E destina-lhe merecimento. Grande merecimento, aliás. Não por ser bom. Mas por ser o último. RESUMO Este artigo traz a análise da novela satírica Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco, na intenção de demarcar a maneira como o Camilo realista desconstruía o Camilo romântico através de um discurso irônico, por intermédio de um narratário. Para tanto, é necessário discutir, antes, o conceito de ironia, bem como apontar o momento histórico português, nos idos do séc. XIX, justificando a relação entre a ironia romântica e a inserção de um narratário como recurso literário da época. PALAVRAS-CHAVE: Camilo Castelo Branco. Literatura portuguesa. Ironia. Narratário. ABSTRACT This article contains the analysis of the satirical novel Heart, Head and Stomach, by Camilo Castelo Branco, with the intention of shows the way realist Camilo 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 184 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL deconstructed the romantic through an ironic speech, through narratário. Therefore, it is necessary to discuss before, the concept of irony as well as pointing out the historical Portuguese, back in the twenty first century, explaining the relationship between romantic irony and the insertion of a narratário as a literary resorting of the time. KEYWORDS: Camilo Castelo Branco. Portuguese literature. Irony. Narratário. BIBLIOGRAFIA CASTELO BRANCO, Camilo. Coração, Cabeça e Estômago. Portugal: EuropaAmérica, 1988. CHORÃO, João Bigotte. O Essencial sobre Camilo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998. COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao estudo da novela camiliana. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. 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Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185. 185