1 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA Caroline Monteiro de Aquino ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS: Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll Belém – PA 2012 2 Caroline Monteiro de Aquino ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS: Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll Projeto Experimental apresentado à Universidade da Amazônia como requisito parcial para obtenção do grau em Bacharel em Moda. Orientadora Profª Esp.Yorrana Maia Belém - PA 2012 3 Caroline Monteiro de Aquino ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS: Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll Projeto Experimental apresentado à Universidade da Amazônia como requisito parcial para obtenção do grau em Bacharel em Moda. Orientadora Profª Esp.Yorrana Maia Banca Examinadora: _______________________________________ Profª. Esp. Yorrana Maia (orientadora) _______________________________________ Profª Msc Rosyane Rodrigues _______________________________________ Examinador Apresentado em: ___ / ___ / ___ Conceito: Belém - PA 2012 4 Aos meus pais Huêud e Cláudia Aquino por estarem sempre ao meu lado ensinando para cada sonho há uma esperança e que com a mesma intensidade que sonhamos podemos tornar realidade. 5 AGRADECIMENTOS “Sete oitavos submersos, um oitavo à vista. Essa é a proporção da flutuação de um iceberg. Um contingente invisível muito maior se empenhou incansavelmente para tornar este trabalho visível.” (Jum Nakao) Agradeço a Deus primeiramente, por estar sempre a frente de todos os meus sonhos e projetos e conduzir-me em cada passo dado durante a caminhada, pois só ele é digno de toda honra e toda glória. Ao meu pai Huêud Aquino e minha mãe Cláudia Aquino por sempre, em quaisquer circunstâncias me acompanharem durante a jornada me apoiando em todas as escolhas. Por investirem em mim ensinando-me em qual caminho devo andar. Agradeço por me darem o maior amor, carinho, atenção e o melhor presente: O conhecimento. A Universidade da Amazônia pela competência e referência no que diz respeito ao curso de Bacharelado em Moda, sempre possibilitando oportunidades em eventos e exposições. A minha professora e orientadora Yorrana Maia que abriu novas dimensões em suas aulas Inspirando-me com a magia da criação, ensinou-me a acreditar que tudo é possível e às vezes é preciso se perder para poder se encontrar. A minha professora Rosyane Rodrigues que me orientou durante o Pré-Projeto em juntamente com a professora Yorrana, sempre apoiando e ajudando a decidir o melhor caminho. As minhas amigas Márcia Valéria, Luciana Caetano, Thalita Barcessat e Rhoanny Gizela, que mesmo a distância participaram dos meus sonhos e planos acreditando que tudo se tornaria realidade. As minhas amigas de curso Heloiza Mara e Tábita Andrade por me ajudarem nos momentos nos quais precisei proporcionando lembranças e momentos de alegria A minha turma, que desde 2010 proporcionou uma troca de experiências, conhecimentos e lembranças ao longo de todo o curso. Agradeço a todas as pessoas que participaram direta ou indiretamente desta etapa da minha vida, caminharam junto comigo e me trouxeram até aqui sempre acreditando em meu potencial para a conclusão deste trabalho onde deixo inseridos meu esforço, dedicação e mérito. 6 “É preciso provocar sistematicamente confusão. Isso promove a criatividade. Tudo aquilo que é contraditório gera vida.” (Salvador Dalí) 7 RESUMO Esta pesquisa possui como objetivo relacionar o processo de criação em moda com o clássico literário “Alice no País das Maravilhas”, fazendo uma colagem entre as etapas do processo e os capítulos mais importantes do livro. A relação se dá através de uma costura em ziguezague com fragmentos mais relevantes desses dois universos, tendo em mente que o Processo criativo é um movimento que não possui linearidade. No universo de Alice no País das Maravilhas, a história fantástica foi improvisada em 1864, pelo escritor britânico Lewis Carroll que ofereceu à filha do Vice Chanceler da Universidade de Oxford, Alice Pleasance Liddell. A história é constituída por narrativas fragmentadas, que relatam os devaneios e a lógica do absurdo de Alice, assim como nos sonhos nos quais nada é linear e sem ordem cronológica, e acontece ao mesmo tempo, como no processo de criação no qual tudo é possível fazendo parte de um processo inacabado. Palavras-Chave: Criação, fragmentos, estilista, processo inacabado. 8 ABSTRACTS This research has as objective connect the process of creating fashion jointly literary classic “Alice in Wonderland”, making a collage between the stages of the process and the most importants chapters. The relation is through a zigzag stitching with the most relevant fragments of these two universes, bearing in mind the creative process is a movement that lacks linearity. Alice in Wonderland is a fantastic story written in 1864 by British author Lewis Carroll that offered it to the daughter of the Vice Chancellor of the University of Oxford, Alice Pleasance Liddell. The plot consists of collages of fragments, reporting and musings of the absurd logic of Alice, as in dreams in which nothing is linear and without chronological order, and happens at the same time as the process of creation in which everything is possible as part of an unfinished process. Keywords: Creation, fragments, designer, unfinished process 9 LISTA DE ILUSTRAÇÃO Ilustração 1 Alice no País das Maravilhas de Walt Disney 17 Ilustração 2 Estilista Paul Smith em seu atelier 19 Ilustração 3 Caderno de esboços 23 Ilustração 4 Ronaldo Fraga e seu livro “Caderno de roupas, memórias e croquis” 24 Ilustração 5 Ilustração de John Tenniel do Coelho Branco 35 Ilustração 6 Alice abrindo a pequena porta 36 Ilustração 7 Alice nadando na lagoa de lágrimas na companhia do rato 40 Ilustração 8 Alice e Dodô na premiação da corrida 42 Ilustração 9 Alice e a lagarta 45 Ilustração 10 Um Chá Maluco 47 Ilustração 11 Alice e as cartas no julgamento 49 Ilustração 12 Personagens no Chá Maluco 51 Ilustração 13 Blazer e colete da época Vitoriana 53 10 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................10 2. O ESTILISTA : CRIADOR COMO ALICE.......................................................13 3. CRIAÇÃO EM PROCESSOS..........................................................................29 3.1. A Pesquisa....................................................................................................36 3.2. Trajeto com Tendência..................................................................................39 3.3. Público-Alvo...................................................................................................41 3.4. Documentos de Processo: Armazenamento e Experimentação...................42 3.5. Expressão do Produto: Conteúdo e Forma...................................................44 3.6. Projeto Acabado............................................................................................47 4. COLEÇÃO: WONDERLAND TEA..................................................................50 4.1. Painéis...........................................................................................................55 4.1.1. Lifestyle......................................................................................................56 4.1.2. Release......................................................................................................57 4.1.3. Ambiência...................................................................................................58 4.1.4. Cartela de cores.........................................................................................59 4.1.5. Materiais.....................................................................................................60 4.1.6. Painel de estilo...........................................................................................61 4.1.7. Coleção......................................................................................................62 4.1.8.Look conceito..............................................................................................64 5. CONCLUSÃO..................................................................................................65 REFERÊNCIAS....................................................................................................67 ANEXOS ANEXO 1 - Editorial Alice in Wonderland.............................................................69 APÊNDICES APÊNDICE 1 - FICHAS TÉCNICAS.....................................................................71 11 1. INTRODUÇÃO O ato criador consiste numa fuga da realidade e um despertar para si. É um momento no qual o criador precisa passar um tempo em seu intimo, redescobrir seus valores, reorganizar as ideias, encher-se novamente. Para esse processo começar a funcionar, o estilista deve estar sempre aberto a novas informações globais e assim traduzir em um novo mundo constituído por seus valores e significados. Era tempo de reflexão, de encontrar o silencio, de parar e formular as perguntas certas para as nossas inquietudes. Descobrir que há inúmeros caminhos e que quanto mais se sabe mais se descobre que nada se sabe, que falta algo dentro da gente, que muito precisa ser questionado. (NAKAO, 2005, p.11) É importante saber usar a individualidade no mundo da moda para transmitir tudo aquilo que foi recolhido de diversas fontes. Ser subjetivo diante da sociedade, recolhendo informações e transformando parte do que foi coletado em um novo universo, um universo particular. Esse processo consiste em um mundo constituído por fragmentos coletados pelo estilista ao longo de seu trajeto e pesquisas. As inovações do pensamento só podem ser introduzidas por este calor cultural e intelectual dialógica, na qual convive uma grande pluralidade de pontos de vista, possibilita o intercâmbio de ideias, que produz o enfraquecimento dos dogmatismos e normalizações e o consequente crescimento do pensamento. (SALLES, 2006, p.40) Esta pesquisa trata de uma costura em zigue-zague1 constituída de fragmentos entre o mundo do processo criativo e o mundo de Alice no País das Maravilhas. Os capítulos do livro formam uma rede de conexões com as falas dos estilistas que possuem um processo criativo sem linearidade, assim como Jum Nakao, Ronaldo Fraga e Hussein Chalayan. A costura de fragmentos será realizada para ilustrar o processo inacabado como uma colagem tendo os estilistas no papel de Alice. “Na maioria das vezes, o que amarra uma coleção a outra é a colagem caleidoscópica de distintos elementos da cultura.” (FRAGA apud GARCIA, 2004, p 70). 1 Ziguezage, conceito de Gilles Deleuze no vídeo “Abecedário de Deleuze”,Z a ultima letra do alfabeto “Z é uma letra formidavel que nos faz voltar ao A.” Disponível em <www.youtube.com>. Acesso em: 10 de novembro de 2012 12 A costura entre Alice no País das Maravilhas 2 e os estilistas selecionados acontece levando em consideração os fatos que ocorrem durante toda a história na qual nada se conclui, assim como o processo de criação. Alice participa de todos os acontecimentos e todos eles se passam dentro de seu imaginário, sendo assim, Alice é a protagonista de algo que ela mesma criou. A história relata as suas aventuras ao cair na toca de um coelho, um lugar surreal, com personagens imaginários. Portanto esta análise tem como objetivo relacionar o processo de criação em moda com a narrativa de Alice no País das Maravilhas, comparando partes do percurso criativo com os capítulos mais marcantes do livro, reunindo valores e pensamentos acerca do processo criativo, e assim revelando que não há fórmula exata para criar, e sim vários caminhos a serem seguidos. Não há linearidade, e sim um constante zigue-zague como uma colagem na qual irá gerar um produto final através de um processo inacabado, assim, o criador em seu processo criativo, deixa em evidencia as sensações que adquire no decorrer do percurso através de seus registros em suas pesquisas. Tais sensações servem de alimento para o processo se manter em constante andamento e são responsáveis pelo crescimento da obra. Diante de tanta dificuldade e da consciência de problemas, o artista depara com intensos momentos de prazer e encantamentos, e também com instantes que não oferecem resistência, mas facilidade, como a fluidez das associações. São fluxos de lembranças e relações: pessoas esquecidas, cenas guardadas, filmes assistidos, fatos ocorridos, sensações são trazidas à mente sem aparente esforço. (SALLES, 1998, p.85) O livro é repleto de alusões satíricas aos amigos e conhecidos de Lewis Carroll e também a objetos de seu cotidiano, levando em consideração que o estilista como criador, está inserido em sua criação. A costura é realizada através dos capítulos mais importantes que fazem referência aos acontecimentos das etapas mais importantes da criação. Nesse processo, o estilista assume papel de Alice em seus momentos de prazer e desprazer, tensões e angustias. Alguns dos fragmentos da história selecionados são: Na “Toca do Coelho” que dá origem a seqüência de aventuras. Alice segue um coelho branco e acaba caindo 2 História em fluxo de relações não lineares. O conto britânico foi escrito por Charles Lutwidge Dodgson, de pseudônimo Lewis Carroll, em 4 de julho de 1864 e publicado em 4 de julho de 1865.Seu título original em inglês é Alice’s Adventures in Wonderland e assim abreviado para Alice in Wonderland. 13 em sua toca e bem lá no fundo do buraco aumenta e diminui de tamanho para enfim conseguir passar pela pequena porta que leva ao Jardim Secreto; Na “Lagoa de Lágrimas”, Alice chora tanto por estar confusa e acaba formando uma lagoa com as próprias lágrimas. A menina acaba decidindo atravessar tal lagoa e encontra um rato que a leva para um local seco onde encontra outros animais ; “Uma Corrida de Comitê” é o capítulo onde Alice participa de uma corrida sem regras proposta por um animal chamado Dodô. Todos os animais em equipe correm em circulo e são vencedores; “Conselho de uma Lagarta” é o capítulo que no qual Alice tem uma crise de identidade por já não saber quem era após crescer e diminuir várias vezes, e assim passa a buscar soluções para sair daquele local onde tudo era estranho. A Lagarta Azul que estava sobre um cogumelo fumando um narguilé dá à Alice um pedaço de um cogumelo e orienta a menina dizendo que um lado a fará crescer e o outro a fará diminuir; “Um Chá Maluco” é o capítulo onde Alice se depara com a Loucura de sua mente representados pelo Chapeleiro Louco na companhia de uma Lebre de Março e um Caxinguelê que só dorme. O Chapeleiro propõe à menina uma série de enigmas sem sentido . A conversa entre eles é inacabada e o relógio marca sempre às 6 da tarde e, assim, não possuem tempo para lavar a louça nos intervalos, os personagens rodeiam a mesa; No “Depoimento de Alice”, Alice comparece juntamente com todos os outros personagens em um julgamento para saber quem roubou as tortas da Rainha. No final Alice percebe que tudo aquilo só acontecia dentro de sua mente. O Primeiro capítulo trata da relação entre o estilista e Alice, assim, comparando suas emoções durante o percurso criativo Essa análise é necessária para pode compreender o capítulo seguinte. O segundo capítulo discute o processo criativo em comparação com os capítulos de Alice no País das Maravilhas, já selecionados. Para cada etapa da criação há um capítulo do livro para ilustrar O terceiro capítulo é o da coleção Wonderland Tea, que revela o imaginário de Alice através do capítulo do Chá Maluco no qual nada possui linearidade e tudo acontece em tempo acelerado como, com conversas que não se concluem. A obra Alice no País das Maravilhas foi selecionada nesta pesquisa, pois, ilustra de forma lúdica o processo criativo, envolvendo criador e sua própria criação. 14 2. O ESTILISTA: CRIADOR COMO ALICE Mapa Marítimo Ele tinha comprado um grande mapa representando o mar, Sem o menor vestígio de terra: E os tripulantes ficaram muito satisfeitos quando perceberam que era um mapa que todos eles podiam entender. Qual é a vantagem do polo norte e do equador de mercator, Trópicos, hemisférios e meridianos?’ E o mensageiro iria anunciar e a tripulação responder: Eles são apenas símbolos convencionais!’ Outros mapas têm formas parecidas, como ilhas e cabos! Mas nós devemos agradecer ao nosso bravo capitão: (E a tripulação iria reconhecer). Ele nos comprou o melhor. Um mapa perfeito, absolutamente vazio’ (CARROLL, 1993, p. apud NAKAO, 2005, p.). Para entender o processo de criação na moda, é necessário compreender primeiramente o que é moda, quem é o estilista e o papel que ele desempenha enquanto criador, nesse cenário. É necessário compreender o estilista acerca de seu trajeto durante o percurso criativo até chegar a seu produto final dentro de um processo inacabado. A moda proporciona liberdade para construir novos mundos através da imaginação e tudo se renova através de um olhar subjetivo. A moda é um fenômeno efêmero que avança de geração em geração e está sempre em constante movimento. Está ligada aos hábitos e modos de um povo e, como consequência, acaba afetando as atitudes das pessoas, inovando algo já existente através da criatividade do estilista. ”O desenvolvimento da moda foi um dos eventos mais decisivos da história mundial, porque indicou a direção da modernidade” (SVENDSEN, 2004, p.23 ) Um criador de moda é aquele, que está apto a desenvolver coleções através de suas inspirações, adequando-as a um determinado público, o que o faz exercer certa influência na maneira de vestir das pessoas e criando, então, tendências. Vale ressaltar que o estilista precisa obter uma visão global do mundo, coletar informações de diversas fontes para então absorvê-las as e transformá-las em algo singular. 15 O estilista é o criador e pesquisador de uma coleção, é aquele que possui papel fundamental de gerar conceitos, e assim deve demonstra-se disposto a lidar com momentos de dificuldade, momentos de perdas e encontros, tensão psicológica. Alice diz “- Eu... mal sei Sir, neste exato momento... Pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então” (CARROLL, 2009, p. 55) Para criar, não há fórmula exata. Não há certo ou errado. O estilista escolhe quais caminhos seguir e conhece seus obstáculos, porém tem em mente que há um tempo rígido para apresentar sua coleção, que deve ser-se obedecido. Uma vez que o calendário da moda está baseado em uma nova coleção a cada semestre: Primavera-Verão e Outono-Inverno Segundo a autora Cecília Almeida Salles (1998), estão inseridos no processo criativo, dentre outros: Olhar, a percepção, memória, tempo e lugar. O estilista começa a mapear os passos, e, assim torna-se sensível ao movimento de transformação das coisas que nos cercam como agem os cartógrafos. Esses elementos fazem parte da construção do processo de criação de um estilista de modo que formam uma rede em cadeias para iniciar tal processo Para os cartógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem [...] A cartografia nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido- e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1989, p. 15-16 apud NAKAO, 2005, p.45) É possível criar uma costura de fragmentos entre o mundo real dos estilistas e o mundo imaginário de Alice, pois será baseada em alguns estilistas que possuem um processo criativo sem linearidade baseado em muitas pesquisas e experimentações, assim como, Ronaldo Fraga, Jum Nakao e Hussein Chalayan. A costura de fragmentos envolve ideias acerca do processo criativo dos estilistas citados em comparação com as falas de Alice. Para o estilista se aventurar no desconhecido assim como Alice, é necessário ressaltar alguns pontos do enredo fantástico criado por Lewis Carroll. Alice é uma menina que segue sua curiosidade e acaba se perdendo em seu 16 imaginário, com criaturas surreais, e toda trama tem inicio a partir do momento em que ela cai na toca do coelho e adentra a pequena porta. Ali, Alice aumenta e diminui de tamanho muitas vezes durante o trajeto. “-Que sensação estranha. Devo estar encolhendo como um telescópio”, fala a personagem Alice. Assim como Alice, os estilistas se expressam por meio da criatividade, o que faz com que seus trabalhos sejam subjetivos e singulares. Para Chalayan “A moda é um artesanato, um know-how técnico e não, em nossa opinião, uma forma de arte. Cada mundo partilha uma expressão por meio da criatividade, embora seja por muitos diferentes meios.” (LOVINSKI, 2010, p. 171) Sendo assim, no primeiro momento, a criação ocorre em um espaço, o estilista redescobre o mundo com um olhar de viajante. Em um segundo momento, a criação acontece no interior, onde o estilista reflete suas ideias e cria seus próprios caminhos. Durante o trajeto é possível “localizar-se por meio de mapas imaginários” (SONTAG, 1986, p. 87 apud NAKAO, 2005, p 47) A história avança não de modo frontal como um rio, mas por desvios que decorrem de inovações ou de criações internas, de acontecimentos ou acidentes externos [...] Toda evolução é fruto do desvio bem-sucedido cujo desenvolvimento transforma o sistema onde nasceu [...] não há evolução que não seja desorganizadora/ reorganizadora em seu processo de transformação ou de metamorfose.” (MORIN, 2003 apud NAKAO, 2005, p. 192) Verifica-se, então, que muitos obstáculos se fazem presente no processo criativo (processo inacabado), o caminho é em zigue-zague e o estilista precisa aprender a lidar com isso tendo em mente que sua obra está em constante movimento e metamorfose. Alice, no enredo de Carroll, experimenta dois lados de um cogumelo, e isso faz com que ela esteja em constate mudança, uma vez que um lado a faz crescer e o outro a faz diminuir. O enredo de Alice no País das Maravilhas vai se metamorfoseando com entradas e saídas dos personagens, em uma colagem de acontecimentos. Os episódios seguem de forma inacabada dando abertura a um ziguezague. Alice possui seus momentos de não linearidade também: Como parecia não haver nenhuma possibilidade de erguer as mãos até a cabeça, tentou abaixar a cabeça até elas, ficando maravilhada ao descobrir que seu pescoço podia se curvar facilmente em qualquer direção, como uma cobra. Acabara de conseguir curva-lo num gracioso zigue-zague. (CARROLL, 2009, p. 63) 17 O estilista atravessa inúmeros obstáculos relacionados ao processo criativo. Haverá momentos que será se perder e se encontrar, como Alice ao levar a mão na cabeça e descobrir outras direções. O estilista segue um caminho de incertezas “Como todas essas mudanças desorientam! Nunca sei ao certo o que vou ser de um minuto para outro!” (CARROLL, 2009, p. 65) O caminho para a meta parece caótico e interminável a principio, e só gradativamente aumentam os sinais de que ele está levando a algum lugar. O caminho não é reto e parece desenrolar-se em círculos. Um conhecimento mais precisa provou que ele se estende em espirais: os motivos do sonho voltam sempre, depois de certos intervalos, para formas definidas, cuja característica é definir um centro (JUNG, 1995 apud NAKAO, 2005 p.52) O livro “Alice no País das Maravilhas” de Carroll possui um enredo improvisado, é constituído de colagens de fragmentos que não apresentam ordem cronológica. A história faz parte de um processo inacabado onde tudo acontece ao mesmo tempo. Charles Lutwidge Dodgson,assim mais conhecido por seu pseudônimo Lewis Carroll, nasceu em Daresbury no dia 27 de janeiro de 1832.Foi um romancista,poeta e matemático britânico. Lecionava matemática no Christ College em Oxford. Lewis é mundialmente famoso por ser o autor do clássico livro Alice no País das Maravilhas. Faleceu em Guildford (Inglaterra) no dia 14 de janeiro de 1898. Suas histórias foram inspiração, inclusive, para a música "I Am the Walrus", dos Beatles, música que trata de personagens e elementos característicos das obras literárias de Lewis e uma animação infantil da Walt Disney.(Ver ilustração1) Ilustração 1 – Alice no País das Maravilhas de Walt Disney Fonte: <carloscostajr.blogspot.com> 18 A história relata as aventuras de uma menina chamada Alice que cai na toca de um coelho e segue suas aventuras em um lugar fantástico, com personagens que são frutos de sua imaginação. O livro é repleto de alusões satíricas aos amigos e conhecidos de Lewis Carroll e também à objetos de seu cotidiano. A escritura fragmentária, organizada em torno de ideias, palavras, atadas entre si por um elo de sutil afinidade, é um buquê de formas que não forjam nem um destino textual, sequer um destino subjetivo. Ao contrario, incorpora sem culpa a ‘doida poligrafia’ de uma caderneta de apontamentos solta em um campo (PRECIOSA, 2010, p.24) Porém é necessário compreender o Tempo e o Espaço de criação para dar início ao processo criativo. Sabe-se que o estilista está inserido na rede de informações e mix de cultura que a globalização nos traz. Seus pensamentos se formam a partir dessa rede de conexões, o que possibilita um intercâmbio de ideias, levando-o a produzir os documentos de processo da obra a se formar. Era hora de buscar novos ares, de ir além do hermético mundo da moda, respirar, conversar com os amigos, ver filmes em casa, ir ao cinema, ler livros, folhear revistas, visitar exposições, conhecer pessoas, estar sensível e atento, reaprender a se surpreender com o mundo, a se perder pelos mapas antigos que confinam e encontrar novos sentidos (NAKAO, 2005, p.11). O estilista passa a criar um espaço para desenvolver seu processo, podendo ser seu atelier de criação. Nesse espaço, ele tem total liberdade de armazenar o que lhe confere curiosidade, memórias, pesquisas e outros pontos. É um mundo particular do estilista. Ela estava bem rente a ele, mas quando dobrou a esquina não havia sinal do coelho Branco: Viu-se num salão comprido e baixo, iluminado por uma fileira de lâmpadas penduradas no teto. Havia portas ao redor do salão inteiro, mas estavam todas trancadas; depois de percorrer todo um lado e voltar pelo outro, experimentando cada porta, caminhou desolada até o meio, pensando como haveria de sair dali. (CARROLL, 2009, p. 17) O atelier é um lugar em que acontece normalmente a criação (Ver ilustração 2), como um salão da história de Alice comprido e baixo onde o estilista armazena coisas que lhe chamam atenção, é o local para experimentação. Nesse salão o estilista busca uma saída, respostas para os seus projetos. O criador de moda aproveita este momento para expressar suas ideias responsáveis por formarem uma rede de fragmentos que constituem o todo. A turbulência de informações e culturas 19 endossa a obra do estilista de modo que tudo aquilo que foi coletado passará a fazer parte de algo único. Ilustração 2 – Estilista Paul Smith em seu atelier Fonte: <refletindomoda.com > Segundo Lovinski (2010) o estilista Hussein Chalayan, em suas coleções vai em busca de temas que lhe agradam, aqueles que lhe despertem grande interesse, pois, assim estará disposto a encontrar soluções para os problemas que surgirão durante a pesquisa. O tempo e o espaço possuem papel fundamental em seus desfiles. O estilista geralmente examina ideias de representações culturais, identidade pessoal e autoconhecimento por meio do vestuário, conforme ele se relaciona com o tempo e o espaço. Sua infância e herança cultural possuem grande participação em suas analises. (LOVINSKI, 2010, p.18) Assim, estilista entra no seu mundo particular e para isso está disposto a enfrentar os obstáculos e o tempo rígido que o calendário semestral da moda pede. Ele passa a refletir acerca daquilo que o cerca, assim como fez Alice ao ser impulsionada por sua curiosidade: 20 No instante seguinte, lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele, sem nem pensar de que jeito conseguiria sair depois. Por um trecho, a toca do coelho seguia na horizontal, como um túnel, depois se afundava de repente, tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito fundo. (CARROLL, 2009, p.14) É o momento no qual o estilista começa a buscar respostas e soluções para seus desafios e suas pesquisas passam a conduzir relações trazidas de fora, outras influências para ampliar seu repertório criativo através da diversidade cultural, esta é a base para a construção da costura em zigue-zague realizada pelo estilista. O artista observa o mundo e recolhe aquilo, que por algum motivo o interessa. Trata-se de um percurso epistemológico de coleta: O artista recolhe aquilo que de alguma maneira toca sua sensibilidade e porque quer conhecer. Às vezes, os próprios objetos, livros, jornais ou imagens que pertencem à rua são coletados e preservados. (SALLES, 2006, p.51) Este processo serve como um armazenamento a ser explorado pelo estilista, assim como uma “memória para obras” (SALLES,2006). Tudo faz parte de um pensamento em etapa de construção por uma rede de conexões que o estilista vai desenvolvendo. Chalayan (2010) afirma: “Eu realmente acho que sou alguém de ideias. As pessoas frequentemente não percebem que uma ideia qualquer que seja tem seu valor. Há algo a ser considerado em cada ideia dada, não importa de onde venha.” (LOVINSKI, 2010, p. 183) A mente do estilista também pode ser considerada como seu Espaço de criação, uma vez que o armazenamento de ideias revela seus gestos, seus registros durante seu trajeto e assim seus projetos são moldados a sua maneira. Cada estilista desenvolve seu próprio espaço e decide o que deve ou não conter nesse local. Tudo faz parte de uma cadeia de experimentos. Alice diz: ”-Bem! Depois de uma queda desta, não vou me importar nada de levar um trambolhão na escada!” Em primeiro momento Alice se faz estrangeira àquele local pois nunca havia estado ali antes. A constituição do espaço, que envolve uma organização de natureza estritamente pessoal, mostra-se como índices da constituição da subjetividade desse artista ao longo do processo de criação. O espaço se amolda a sua vontade e em função das obras em construção. A forma como cada um se apropria de seu espaço fala de sua obra em construção e do próprio sujeito. (SALLES, 2006, p. 54) 21 O que envolve este espaço está associado à necessidade do estilista, ele decide com quais “ferramentas” deseja trabalhar naquele momento. O criador de moda institui suas próprias condições para que tal espaço seja propício a sua criação, tendo em mente que suas ideias estão em constante movimento, tudo está sempre sujeito a mudanças e assim como suas ideias, o seu espaço também muda. O estilista estará sujeito a um “caos” de pensamentos acumulados, igualmente como ocorre com Alice que, após mudar de tamanho diversas vezes reflete: “-Oh! Meus pobres pezinhos, quem será que vai calçar meias e sapatos em vocês agora, queridos? [...] Vou estar longe demais para me incomodar com vocês [...] Mas preciso ser gentil com eles, ou quem sabe não vão andar no rumo que quero!” (CARROLL, 1864, p. 23) As caminhadas e as viagens são palco de muitas tentativas de obra, muitas vezes, não registradas: amadurecimento de ideias, encontros, rejeições etc. Registros posteriores falam, em alguns casos, da relevância de alguns objetos, imagens ou ideias apropriadas nesses percursos. Essas coletas mostram-se mais tarde responsáveis por jogos com a imaginação criadora. (SALLES, 2006, p.57) Com olhar de viajante, o estilista se faz estrangeiro a tudo que o cerca e redescobre novos valores. É o momento de fazer novas viagens através do olhar. A criação não acontece “do nada”, e sim por meio de pesquisas realizadas pelo estilista, uma vez que o mesmo possui total liberdade em criar, obedecendo apenas o tempo. Sua inspiração surge, portanto, a partir da combinação de novas emoções produzidas pelo olhar do criador no rumo escolhido por ele. Como diria Proust, uma verdadeira viagem de descobrimento pressupõe o encontro com um novo olhar. Nisso Ronaldo fraga é expert. Liquida estereótipos e traduz as situações de maneira que passem a nos pertencer. Aponta uma infinidade de conexões, jogando os padrões às favas e regendo-nos por critérios que nos forçam a avançar. (GARCIA, 2007, p.84) Através de seu olhar perceptivo, o estilista vai deixando documentos, seus registros criativos. Ele se apropria do externo e através de seu olhar curioso, transforma e inova algo já existente, sob um novo ponto de vista. O estilista está sempre ligado à criatividade. Assim como Alice com toda sua curiosidade “Abriu a porta e descobriu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um 22 buraco de rato: ajoelhou-se e avistou do outro lado do buraco, o jardim mais encantador que já se viu.” (CARROLL, 2009, p. 18) Esse é o momento no qual o estilista começa a passar da realidade externa ao mundo imaginário, uma vez que ele precisa manter esse mundo sempre alimentado por suas pesquisas. A sua percepção é o que move sua sensibilidade e mantém sempre constante seu desejo de novas emoções. “De vez em quando, a vida nos dá uma visão momentânea de algo que quebra a ordem da realidade” (CASARES, 1988 apud SALLES, 1998, p.96) O que alimenta essa etapa do processo são as emoções, que surgem de qualquer lugar e cabe ao estilista captar e armazenar para seu repertório criativo. A sensibilidade da percepção que faz com que este processo esteja em constante movimento, um processo inacabado no qual o que é apenas uma possibilidade vai passar a se concretizar. Sendo assim, o olhar está ligado à percepção, memória e tempo, os pensamentos do estilista estão ligados a suas lembranças e vão estar inseridos no seu processo criativo. Marc Tadié (1999) relata a memória de modo que “não há sensação isolada ou separada – é um estado que começa continuando o anterior e termina se perdendo nos posteriores”. Logo, a memória também é tempo. É disso que falávamos, quando ressaltamos a coleta sensível que o artista faz ao longo do processo, recolhendo aquilo que, sob algum aspecto geral, o atrai. São seus modos de se apropriar do mundo. Essa sensação é intensa, mas fugaz; e, mais que isso, é, muitas vezes, responsável pela construção de imagens geradoras de descoberta, que não se limitam ao campo da visualidade. (SALLES, 2006, p.68) A percepção faz parte da atividade da mente ao criar e faz-se assim um filtro no qual vai se processando o mundo externo para formar uma nova realidade através do olhar do estilista, gerando novos valores e significados para sua obra. Salles (2006, p.90) descreve a percepção como “a construção de mundos mágicos decorrentes de estimulação interna e externa recebidas por meio de lentes originais.”. Consequentemente, os elementos colhidos no mundo real passam a ter a magia de um mundo imaginário do estilista, que ainda com olhar de viajante, vai 23 lançando novos significados. O olhar do estilista interpreta determinado objeto sob uma nova perspectiva O estilista é como Alice e seu “País das Maravilhas” e dentro de seu sonho tudo será conforme o seu desejo. Sua coleção trará significado, conceito em cada peça. “Ora, a melhor maneira de explicar é fazer” (CARROLL, 2009, p. 35). Ele passa a usar “lentes” para fazer o real virar imaginário numa coleção. Discutir a intervenção do acaso no ato criador vai além dos limites da ingênua constatação da entrada, de forma inesperada, de um elemento externo ao processo. Por um lado, o artista, envolvido no clima da produção de uma obra, passa a acreditar que o mundo está voltado para sua necessidade naquele momento; Assim o olhar do artista transforma tudo para seu interesse. (SALLES, 1998, p 34-35) Cada estilista possui uma forma de armazenar em forma de registros, ou, documentos, o que provoca emoção. Diários ou cadernos de anotações (Ver ilustração 3) são exemplos desse espaço onde o estilista vai armazenar tais informações que servem para auxiliar o processo de construção da obra e vão nutrindo o criador. Ilustração 3 – Caderno de esboços Fonte: <objetosdedesejo.com> Os registros que o criador de moda vai produzindo, servem como documentos com os quais vão se arquivando os momentos da percepção que o mesmo tem durante seu trajeto, essa percepção traz à tona a maneira que o criador vê o mundo, as coisas que o cercam. A percepção é marcada pela subjetividade do olhar. 24 Por subjetividade deve-se entender ‘ o perfil de um modo de ser – de pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc., em determinada época’ (ROLNIK, 1989). São também variáveis componentes da subjetividade outras dobras que se fazem no tempo e no espaço: Outros verbos, tais como se comunicar, aprender, trabalhar, adoecer, curar, aprisionar, liberar, etc. (MESQUITA, 2010, p.14) Imagens, recortes, cartas, reflexões e outros, são o que compõem esse repertório auxiliador de criatividade, e cada estilista decide o que deve conter ou não nesses registros; de que forma ele deseja trabalhar acerca de sua própria fonte de ideias. Ele coleta e acumula tudo aquilo que lhe parece necessário, são registros que vão ajudar na sua criação mais tarde. (Ver Ilustração 4) O artista tem maneiras singulares de se aproximar do mundo à sua volta. Os cadernos de anotação guardam, muitas vezes, as seleções feitas pela percepção, ou seja, o modo como o artista apreende e se apropria da realidade que o envolve. (SALLES, 1998, p.123) A percepção, então, é o momento no qual o estilista vai conhecendo o mundo ao seu redor é o que possibilita novas sensações e conhecimento de novas informações. A percepção, muitas vezes se dá de forma involuntária, porém a memória do criador interfere no modo de olhar essas novas sensações. Desse modo, a memória possui um papel fundamental na criação. “Talvez o poder da memória seja o responsável pelo crescimento do poder da imaginação” (KUROSAWA, 1990, p.62 apud SALLES, 1998, p. 100). Sendo assim, o ato criador da memória é a imaginação, portanto ligada ao devaneio. Para Mário Quintana (1986) “a imaginação é uma memória que enlouqueceu”. Ilustração 4 – Ronaldo Fraga e seu livro “Caderno de roupas, memórias e croquis”. Fonte: <coconutavenue.wordpress.com> 25 Assim como Alice quando se depara com o Gato de Cheshire da história e chega à conclusão do ápice de sua loucura. Disse o gato “-Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca” e Alice pergunta “-E como sabe que eu sou louca?”. Já o gato por sua vez conclui “só pode ser, ou não teria vindo parar aqui” (CARROLL, 2009, p.77) Memória está ligada às lembranças que o criador de moda possui. Sua percepção trabalha a sensibilidade e a intensidade da emoção que foi sentida pelo estilista e esta intensidade, por sua vez faz com que fique guardada na memória. As percepções estão relacionadas com as memórias passadas. Os registros armazenados, os documentos do processo e as lembranças do olhar do estilista funcionam como uma memória que é sempre reativada no momento da coleta de novas informações e experiências. “Memória e percepção, além de terem emoções como elemento comum, devem ser ambas observadas em sua dinamicidade.” (SALLES, 2006, p.69) Como exemplo, podemos tomar por base o estilista Ronaldo Fraga. Ao criar uma coleção, ele considera muito fatos de sua vida, como memórias, fatos do cotidiano que presencia acontecimentos felizes e tristes de etapas da sua vida em qualquer idade. Ele não é um estilista pós-moderno que enxerga o mundo como um espelho fragmentado onde nada faz sentido, sem nenhuma conexão com o passado nem a emoção. Ronaldo Fraga não cria roupas para pessoas sem cenário, sem lembranças, sem humor e sem história. Sua força criativa é movida por imagens que vão se transformar em profissões de fé, protestos, festas, celebrações, sons, coreografias e. Roupas. (KALIL, 2007, p.7) Vale ressaltar que a memória não tem o objetivo de fixar as lembranças, uma vez que o estilista está sempre descobrindo e redescobrindo o mundo ao seu redor através de seu ponto de vista e, portanto, a memória está em constante mudança. Cecília Almeida Salles (2006) afirma que “como memória é ação, ou seja, essencialmente plástica, as lembranças são reconstruções: redes de associações, responsáveis pelas lembranças, sofrem modificações ao longo da vida.”. Deve-se ter em mente que o processo criativo é um processo inacabado que está em constante mudança, o estilista também está inserido no contexto da 26 mudança. Suas emoções se modificam com o passar do tempo e essa mudança coloca a memória e a percepção em constante movimento. “Não há percepção que não seja impregnada de lembranças, não há lembranças que não sejam modificadas por novas impressões.” (SALLES, 2006, p.70). A memória está também vinculada à imaginação, o mundo de ficção do estilista. Toda lembrança faz parte do contexto imaginário, porém não há possibilidade de haver a imaginação sem o auxílio da lembrança, juntas inseridas no mesmo contexto. [...] Toda lembrança é, em parte, imaginária, mas não pode haver imaginação sem lembrança. A imaginação está vinculada a memória e esta é o trampolim da imaginação. Imaginar é conhecer aquilo que ainda não é a partir daquilo que foi daquilo que percebemos e daquilo que vivemos. (YVES; TADIÉ, 1999, p. 316 apud SALLES, 2006, p.71). A imaginação está presente nas experimentações que o estilista realiza, de modo que essa imaginação se inclui no percurso criativo. Há obras que nascem a partir da imaginação e lá permanecem. Todo esse universo mágico que é criado pelo estilista é produzido a partir de suas experiências. “Imaginação é o ato criador da memória” (SALLES, 2006, p. 73) Era muito mais agradável La em casa. Lá não se ficava sempre crescendo e diminuindo, e recebendo ordens aqui e acolá de camundongos e coelhos. Chego quase a desejar não ter crescido por aquela toca de coelho... No entanto... No entanto é bastante interessante este tipo de vida! Realmente me pergunto o que pode ter acontecido comigo! Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou eu no meio de um (CARROLL, 2009, p.46) No meio dessa explosão de ideias e experimentações dentro desse mundo imaginário, o estilista é levado a desacomodar e assim deixa em evidência suas emoções e estas, consequentemente, estão inseridas no contexto de marcas psicológicas que o estilista carrega. Essas marcas compõem um grupo de sentimentos adquiridos no trajeto e na medida em que atuam um sobre o outro, tornam o processo criativo possível. Assim como Alice, o estilista chega a ficar confuso com tantas transformações já sofridas levando até a uma crise de identidade. Passando a se encontrar ao se perder. Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de costume. Será que fui trocada durante a noite? 27 Deixe-me pensar: Eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: Afinal de contas quem sou eu? Ah este é o grande enigma! (CARROLL, 2009, p. 25) No meio de seu processo criativo, o estilista ao encontrar sua inspiração, se fecha em seu íntimo. É o momento de deixar as ideias correrem. Fechar-se no intimo não significa renunciar o mundo, mas ele precisa de um tempo para fazer tudo aquilo que está no inconsciente se tornar real. O estilista assume papel de autor e ator de sua própria história estando inserindo em sua criação seu olhar perceptivo. O isolamento possibilita ao estilista compreender o que realmente ele busca na obra, o processo como um todo é o que gera seu produto final. O relacionamento mantém o procedimento da obra possível. O criador precisa se fazer presente em um contexto de desejos opostos: estar solitário e estar em contato com pessoas. O artista sabe, por um lado, que ‘o homem solitário pode preparar muitas coisas futuras, pois suas mãos erram menos’, talvez porque seja fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões e suas façanhas. No entanto, ele aprende também que solidão não significa recusa ao mundo. A artista precisa de sua torre de observação. (SALLES, 1998, p. 81) O prazer e o desprazer também fazem parte do contexto das marcas psicológicas que o criador de moda carrega. É o momento em que ele encontra ao longo de todo seu trajeto, enigmas, preocupações, desesperos e inúmeros obstáculos que mantém a vitalidade da obra. Esses elementos se fazem presente devido a necessidade do estilista buscar a perfeição e a obra vai se formando em meio a um turbilhão de sensações.Todas as dificuldades que ele deve enfrentar, geram angustia e essa angustia leva à criação. O prazer que leva o estilista a continuar criando vai além do armazenamento de energia que o mesmo carrega e o anseio de ver seu projeto bem encaminhado. O processo criativo oferece ao criador um mundo de encantamentos. O estado de tensão e encantamento levam o estilista a se perder inúmeras vezes e continuar suas experimentações, e Alice conversa consigo mesma: “-e se no fim das contas ela estiver freneticamente louca? Chego quase a desejar ter ido visitar o chapeleiro.” (CARROLL, 2009, p. 79) 28 Tanto os momentos de prazer como os de desprazer podem proporcionar seguimento à obra e está ligado a uma rede de pensamentos e relações, tais como: cenas, filmes assistidos, emoções adquiridas que fazem o estilista aderir o acaso a sua obra. A coleção vai se desenvolvendo a partir dessa rede em processo, e é o estilista o responsável por atuar em cada meio. Ele é o responsável por atuar em cada meio e suas ações abrem caminhos até chegar ao produto final. A pesquisa é o que vai conduzir o estilista no desenvolvimento da criação, permitindo o desenvolvimento do tema até chegar ao real conceito da criação. Há vários caminhos e possibilidades, e durante o trajeto, o projeto vai recebendo forma, e refinando-se até de fato ter um foco principal, uma vez que o processo criativo não possui linearidade. Primeiro traçou uma pista de corrida, uma espécie de circulo ( a forma exata não tem importância, ele disse) e depois todo o grupo foi espalhado pela pista aqui e ali. Não houve “um, dois, três e já: começaram a correr quando bem entenderam e pararam também quando bem entenderam, de modo que não foi fácil saber quando a corrida havia terminado (CARROLL, 2009, p. 36) A criação é um processo instável, está sempre se renovando, sofrendo modificações, uma corrida interminável, ou no mínimo difícil de saber ao certo o fim. Isto ocorre devido os pensamentos do criador. Suas ideias geram uma rede de informações que vão se acumulando, o que acaba configurando seu projeto. Todo projeto tem um conceito. Muitas vezes, este é passado em forma de briefing, mas, em moda, isso quase nunca acontece. Como o sistema de moda pede renovação (usualmente adotada a cada nova estação do ano), o designer necessita de um caminho para criar e desenvolver seus produtos, e a este caminho damos o nome de conceito de criação. Ele, na verdade, é a ideia que pautará, juntamente com a definição do publico alvo/usuários,toda criação e o desenvolvimento de produtos.(FARIA, 2012, p.51) O conceito da coleção é definido a partir dos processos de classificação e organização dos pensamentos que tornam possível o processo criativo para a obtenção de resultados. Após coletar as informações necessárias para gerar um conceito, deve-se lapidar até, de fato chegar ao tema da coleção, uma vez que, os elementos coletados servirão como guia para a construção da coleção. 29 As etapas iniciais do projeto de moda, predominantemente de pesquisa, servem para fundamentar o processo de criação, entrelaçar valores sociais, culturais, tecnológicos e artísticos, a fim de definir os princípios que irão orientar e reger as formas e os volumes da coleção de moda. (FARIA, 2012, p. 15) A criação é um processo que acontece em meio às ações do estilista e, muitas vezes está ligada ao acaso. O acaso é gerado através da tendência e está inserido nos momentos de desvio que o estilista estabelece, e, assim seu projeto se encontra em constante mudança. Salles (1998, p. 33-34) afirma que “o artista acolhe o acaso [...]. Depois desse acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo no instante em que foi interrompido”. Alice ao encontrar a lagarta azul, questiona sobre a metamorfose do animal: “-Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso, mas quando tiver de virar uma crisálida... Vai acontecer um dia, sabe... E mais tarde uma borboleta, diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?” (CARROLL, 2009, p. 57) Durante o percurso criativo, aquilo que já é existente recebe novas formas através do acaso e do próprio criador. Tudo se renova a cada dia através do olhar subjetivo do estilista. “O novo é uma inflexão de uma forma anterior; a novidade é, portanto, sempre uma variação do passado”(FUENTES, 1989 apud SALLES, 1998, p. 112) Assim como Alice, estilistas constroem seus próprios mundos. Movidos por sua curiosidade, vão tornando possível a obra através de um processo inacabado. O processo criativo trata de uma colagem em etapas que os criadores de moda vão desenvolvendo a partir de suas pesquisas. “Tudo que sei é que para mim isso parecia muito esquisito.” (CARROLL, 2009, p.57) 3. CRIAÇÃO EM PROCESSO NO PAÍS DAS MARAVILHAS Lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele, sem nem pensar de que jeito conseguiria sair depois. Por um trecho, a toca de coelho seguia na horizontal. Como um túnel, depois se afundava de repente, tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito fundo. 30 Ou o poço era muito fundo, ou ela caia muito devagar, porque enquanto caía teve tempo de sobra para olhar a sua volta e imaginar o que iria acontecer em seguida. (CARROLL, 2009, p 14) O processo criativo consiste em dar uma nova forma a algo, inovar, experimentar e chegar a novas conclusões. Buscar soluções através de constantes buscas. Tal processo é um longo percurso a ser trilhado pelo estilista e este, por sua vez deve estar apto a refletir, perceber, e buscar inspiração através de suas memórias para, desta forma, dar um novo sentido a algo já existente, formando o novo. Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender, esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (OSTROWER, 1987, p.9) No mundo da moda, quando se trata de processo de criação, é necessário compreender o estilista. Antes mesmo de desfilar seu projeto final, passa por inúmeras experimentações sempre em busca de respostas até chegar ao conceito que será seu tema de coleção. O processo de criação é um momento de inteira reflexão para o estilista, como para Alice “-Pois eu mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador” (CARROLL, 2009, p. 55-57) O processo criativo é palco de uma relação densa entre o artista e os meios por ele selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e domínio. Isso significa uma troca recíproca de influências. Esse diálogo entre artista e matéria exige uma negociação que assume a forma de obediência criadora. (SALLES, 1998, p.72) Tal processo consiste em buscar respostas para os problemas enfrentados pelo estilista, sendo realizado através de muitas pesquisas e combinações. O primeiro passo é obter uma inspiração, um direcionamento para suas pesquisas para depois colocar as outras ideias no papel. Não podemos dizer especificamente como é o processo criador, mas podemos dizer de coisas que ajudam o desenvolvimento do processo. Sempre se inicia sua descrição a partir do desafio e do incômodo, que normalmente são muito pessoais. Existem alguns momentos, independente das fases de criação. O momento sensível, normalmente, aciona os mecanismos de percepção, que fazem com 31 que cada indivíduo estabeleça uma relação com o mundo exterior. (GALVAO, 1999, p.19) A história fantástica de Alice, por exemplo, se inicia quando ela começa a se cansar de ficar sentada ao lado de sua irmã na beira de um riacho com sua gatinha de estimação Dinah. Por uma ou duas vezes olhou o livro sem gravuras que sua irmã mais velha estava lendo. Então, Alice pensou consigo mesma: “-E para que serve um livro sem gravuras nem conversas?”. (CARROLL, 2009, p.13) A partir do incômodo de Alice é possível começar a fragmentar o universo criativo com base nos capítulos mais importantes de Alice no País das Maravilhas, tendo em mente que o processo criativo é um percurso contínuo, sem linearidade, sendo assim subjetivo ao criador. A ilusão é o que mantém a obra em movimento e gera um desejo no criador de ver o objeto pronto, uma vez que o objeto acabado pertence ao processo inacabado (SALLES, 1998) O processo de criação, com o auxilio da semiótica peirciana, pode ser descrito como um movimento falível com tendências sutentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas.Um processo no qual não se consegue determinar um ponto inicial nem final.(SALLES,1978) Tal processo opera no universo da incerteza, da mutabilidade, da imprecisão e do inacabamento (SALLES, 1998). É um processo sem precisão e previsão totalmente marcado por dúvidas, com muitos desejos vagos deixados pelo caminho, esse desafio move o criador em busca da satisfação pessoal. Assim como Alice, o estilista se aventura por um “mundo” desconhecido com vários caminhos e incerteza, então, cabe ao criador escolher por onde deseja começar. [...] parece que estamos seguindo uma rotina parecida com uma estrada circular, de tal forma viciada, que, quando se pensa em lidar com as pressões, a primeira coisa que nos ocorre é a copia, ou seja, achar o que já está feito. Portanto, não precisamos nos dar o trabalho de pensar. Outras vezes, percebemos a tendência de tentar melhorar o que já existe. (GALVAO, 1999, p.19) É necessário que, o estilista seja sensível a essas percepções, seja cultural e seja consciente em relação ao seu inconsciente, fazendo as mais profundas pesquisas através de suas memórias. O ato criativo acontece em primeiro momento na mente do estilista, no âmbito da intuição. (OSTROWER, 1978) 32 No que diz respeito ao processo de criação, vale ressaltar que para criar é preciso estar atento ao que se quer fazer e se deixar levar pela liberdade da mente. O criador de moda embora não tenha total liberdade, pois está inserido em uma lógica de mercado, possui certos limites como o tempo para criar, tempo para entregar a coleção. No momento da criação o estilista cria seu próprio mundo onde só ele tem a capacidade de permitir o que está inserido. Alice indaga: “Tenho o direito de pensar” (CARROLL, 2009, p.107), levando em consideração que: Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As delimitações são como as margens de um rio pelo qual o individuo se aventura no desconhecido. Vemos o ser livre como uma condição seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade presente, embora talvez inconsciente e a valores individuais e sociais de um tempo “(OSTROWER, 1978, p.64) A criação acontece em meio à tensão. Salles (1998, p.63), “poderíamos afirmar, em termos bastantes gerais, que a criação realiza-se na tensão entre limite e liberdade: liberdade significa possibilidade infinita e limite está associado a enfrentamento de leis”. As inúmeras batalhas psicológicas mantém firme o processo de construção da obra, uma vez que as mesmas aparecem nas emoções do criador. Todas as dificuldades geram angústia e essa leva a criação. (SALLES, 1998) No ato criador, o estilista imprime em sua coleção, marcas de seu trajeto, suas emoções, suas expectativas. Tais elementos funcionam como alimento para a partir de então a criação se tornar possível. É necessário navegar e beber das águas que cercam a ilha, uma vez que o criador tem um mundo em suas mãos. É somente pelos limites que se chega ao ilimitado; o ilimitado é que exige limites. A capacidade de estabelecer limites é a maior prova de liberdade. O artista é um livre criador de limites, do cumprimento ou da superação desses elementos. O artista é um criador de leis infinitas (ACCIOLLY, 1977 apud SALLES, 1998, p.66) No processo criativo, alguns estilistas, no auge de seu prazer, deixam seu projeto fluir naturalmente. É chegada a hora em que o mesmo colocará em ordem todos os elementos colhidos de diversas fontes e criará uma “linha”, um caminho a seguir. A criação pertence ao mundo do prazer e ao universo lúdico: um mundo que se mostra um jogo sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o leitor não as conhece. Jogar é sempre estar na aventura com palavras, formas, cores, movimentos. O artista 33 vê-se diante das possibilidades lúdicas de sua matéria (SALLES, 1978, p.85) A obra vai se desenvolvendo em meio a angústias, juntamente com prazeres e desprazeres. Alice, após passar por tais sensações no meio de sua aventura, reflete: “-Parece que vou ser castigada por isso agora, afogando-me nas minhas próprias lágrimas! Vai ser uma coisa esquisita, lá isso vai! Mas está tudo tão esquisito hoje.” (CARROLL, 2009, p. 28) O criar só pode ser visto em sentido global, o criador precisa enxergar além da roupa, uma vez que todo o seu processo será estampado numa roupa e em toda coleção. É o momento em que o criador não termina sua coleção e sim dará continuidade nas próximas coleções. O processo criativo está em constante movimento. “Na maioria das vezes, o que amarra uma coleção a outra é a colagem caleidoscópica de distintos elementos da cultura.” (GARCIA, 2012, p.70) É importante o estilista saber coletar as informações e lapidar as ideias até chegar ao seu principal objetivo dentro de uma coleção que tem data para ser lançada. “Individualidade é coisa medida com rigor pelos críticos e compradores. E para deixar essa fonte de criatividade sempre na ativa, o melhor caminho é passear entre mundos. Interligar áreas afins e somar um olhar curioso sobre coisas distintas.” (HERCHCOVITCH, 2007, p.51) Como se estivesse em um bosque, o estilista se vê na condição de traçar seus caminhos e decidir quais elementos utilizará para chegar a seu objetivo, levando em consideração suas ideias que acontecem no âmbito da intuição. O estilista diante de várias possibilidades precisa escolher apenas uma e seguir com ela até seu destino final, tendo em mente que, aquilo que o prende é a liberdade. Só se pode agir livremente sacrificando constantemente outras possibilidades de liberdade; a liberdade constitui-se tanto das escolhas que se deixa de fazer ou que não se pode fazer quanto das escolhas que efetivamente acontecem. O artista é incitado a vencer os limites estabelecidos por ele mesmo ou por fatores externos, como data de entrega, orçamento ou delimitação de espaço. (SALLES, 1998, p.64) Então, certas etapas fundamentais vão se fazendo presente tais como Marcelo Galvão (1999) diz: “Familiarização com o problema, questionamento do 34 problema, tempo de digestão, bolação ou sacação e transpiração, teste das ideias, desenvolvimento e concretização.” O processo de criação possui inúmeras trilhas a serem seguidas, uma vez que é o estilista quem decide quais seguir. Caminhos indefinidos que se bifurcam e se entrelaçam, assim como Alice no meio do bosque encontra o Gato de Cheshire e pergunta: -“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” - “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato. - “Não me importa muito para onde”, disse Alice. - “Então não importa que caminho tome”, disse o Gato. - “Contanto que chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação. - “Oh, isso certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante.” (CARROLL, 2009, p. 76-77) Para um estilista começar a criar é necessário obter um ponto de partida, isso significa que, ele deve escolher por onde quer começar seu trabalho. O processo de criação pode variar de estilista para estilista, mas as etapas que o mesmo vivencia são, em grande parte, as mesmas. O momento inicial é para refletir sobre o mundo juntamente com sua angústia e inquietude. “Naquele instante mergulhei nessa viagem, totalmente desvencilhado dos limites, das regras e convenções. Lá encontrei uma ideia bruta que emergiu como a síntese pura da metáfora necessária: uma coleção de papel” (NAKAO, 2005, p. 12). Fala de Jum Nakao sobre o momento inicial do desenvolvimento da sua última coleção A Costura do Invisível. A reflexão dentro do processo criativo é fundamental. É o momento em que o estilista se conhece melhor, redescobre o seu cotidiano, e se perde num mundo particular, encontrando sentidos que até o momento estavam ocultos. O momento da reflexão é necessário para perder-se sem medo, mergulhar fundo, mesmo estando diante de inúmeras incertezas. O estilista é capaz de criar o seu próprio mapa em meio a um bosque onde não existem trilhas bem definidas, todos poderiam traçar seu próprio caminho, optando, a cada novo personagem, por uma nova direção. (NAKAO, 2005, p. 13). O processo de criação é autocatalisador, e cada vez mais as transformações se processam de forma mais acelerada. A produção do conhecimento altera as dimensões dos problemas bem como coloca novos recursos a disposição da sociedade. A criatividade passa a se constituir o instrumento mais poderoso do homem para se adaptar ativamente as transformações que se operam no meio 35 ambiente, seja em termos científicos.(GALVÃO,1999, p.5 ) sociais, tecnológicos ou Levando em consideração todo o processo criativo de um estilista juntamente com todos os seus obstáculos a serem enfrentados, é possível embarcar em uma “fantástica aventura” pela toca do coelho, fazendo alusão ao fantástico mundo de Alice no País das Maravilhas. Obra fragmentada com recortes de histórias inseridas uma dentro da outra. Redescobrimos a fundamental participação ativa do espectador na obra, o uso preciso do vago, o principio de que o que à primeira vista parece caótico e interminável gradativamente pode dar sinais de que conduz a algum lugar, que é preciso repetir, repetir, repetir, repetir até ficar diferente, que é bom saber incorporar o acaso à criação artística.” (NAKAO, 2005, p.19) No primeiro capítulo do livro de Lewis Carroll, denominado “Pela toca do Coelho”, a sequência de aventuras se inicia quando Alice se encontra com sua irmã que lhe conta uma história de um livro e aos poucos ela vai se sentindo cansada. No auge do seu cansaço Alice vê um coelho branco (Ver ilustração 5), e segue-o até cair na sua toca. “Ardendo de curiosidade, correu pela campina atrás dele, ainda a tempo de vê-lo se meter a toda a pressa numa grande toca de coelho debaixo da cerca” (CARROLL, 2009, p. 14) Ilustração 5 – Ilustração de John Tenniel do Coelho Branco Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br> 36 Durante a queda, Alice percebe quão profundo é aquele local. “-Bem! Depois de uma queda desta, não vou me importar nada de levar um trambolhão na escada! Como vão me achar corajosa lá em casa! Ora, eu não diria nadinha, mesmo que caísse do topo da casa!” (CARROLL, 2009, p. 15) Alice precisa pegar a pequena chave para abrir a pequena porta (Ver ilustração 6) que leva ao jardim secreto, bebe um líquido e come um bolo e, assim, aumenta e diminui de tamanho. “Pois vejam bem, havia acontecido tanta coisa esquisita ultimamente que Alice tinha começado a pensar que raríssimas coisas eram realmente impossíveis” (CARROLL, 2009, p. 18) Ilustração 6 – Alice abrindo a pequena porta Fonte - <eduardolamas.blogspot.com.br> A não linearidade, os fragmentos, a combinação, registros, percepção, transformação, memória, tensão, angústias, pensamentos e imaginação estão inseridos no contexto criativo de modo a formar uma rede de conexões e um processo contínuo. É importante não se fechar apenas para o mundo imaginário Se a realidade é uma grande ilusão, que vemos emprestados da cultura, podemos construir o nosso mundo e emprestar os nossos olhos para a cultura, desde que não fiquemos só na fantasia ou na negação dos fatos. Não negar a realidade, mas também não deixa de viver nela para somente viver no mundo do sonho acordado(GALVÃO, 1999, p. 06) O estilista constrói um mundo fictício a partir da coleta de ideias ao seu redor, uma vez que nesse “mundo próprio” a realidade vai ser fantasiada a partir do olhar 37 do estilista. Vale ressaltar que a criação não depende apenas da ilusão. Os fatos constroem esse mundo e a realidade é o que forma o “mundo imaginário”. 2.1. A Pesquisa Para criar é necessário pesquisar. O estilista sai em busca de novos conhecimentos e ideias para seu repertório criativo. A necessidade de obtenção de repertório leva o estilista a estar sempre em busca de fatos novos. A coleção será baseada nessas pesquisas. Hemingway é sempre lembrado, por muitos criadores, por sua constatação de que um conto é como um iceberg que deve ser sustentado, na parte que não se vê, pelo estudo e reflexão sobre material reunido e não utilizado diretamente na obra. (SALLES, 1998, p.126) Assim como o iceberg, as fontes de pesquisa de um estilista (livros, revistas, jornais e outros) são também uma forma de registro acerca do estilista como pessoa e revelam aquilo pelo qual ele desenvolve certo interesse e como tudo aquilo que foi coletado vai ser transformado através de um novo significado atribuído por ele. O estilista vai à busca de daquilo que lhe chama atenção. Para inventar eu necessito sempre partir da realidade concreta. É por isso que geralmente em documento, visito os lugares onde ocorrem as histórias, mas nunca com a ideia ou simplesmente reproduzir uma realidade, mesmo porque sei que isso não é possível, que ainda que quisesse fazê-lo não daria resultado – resultaria em algo muito diferente. (LLOSA, 1986, p.57-8 apud SALLES, 1998, p.126-7). A pesquisa pode ser entendida como a constante busca por referências para se criar. Nela estão inseridos valores sociais, culturais contemporâneos que o estilista passa a observar com seu olhar perceptivo durante a trajetória do processo criativo. É o momento no qual o estilista olha para tudo aquilo que deve focar em sua coleção. Sendo assim, a pesquisa é a acumulação e a organização de ideias para gerar a maturação e a fundamentação de um conceito. Ao se realizar uma pesquisa durante o desenvolvimento de um produto de moda, é necessário verificar a relevância das fontes pesquisadas, e somente as referencias realmente utilizadas devem ser inseridas e apresentadas no Memorial Descritivo ou Relatório de Projeto. A fundamentação teórica deve sempre ser baseada em autores e centros que sejam considerados uma referência no assunto; (p.50) 38 Na pesquisa de moda é necessário explorar diversas referências a fim de definir o tema de estudo, aquilo que será abordado como foco principal numa coleção através do desenvolvimento de um conceito para a criação. E como já foi mencionado, deve-se estipular e atender o determinado público-alvo. Assim como Alice, o estilista começa a refletir em seu íntimo e segue sua imaginação. Ele começa então sua viagem ao interior de sua mente buscando soluções e respostas, e é preciso adentrar cada vez mais em seu inconsciente para conhecer seu “Jardim secreto”. É o momento em que o estilista segue sua imaginação e sua curiosidade que o leva a novos rumos. Cai em um buraco e começa a se aventurar no desconhecido. O nosso inconsciente é o local onde ocorrem os fatos mais antigos, únicos e surpreendentes. O conteúdo do inconsciente é, ao mesmo tempo, o mais oculto e o mais familiar, o mais obscuro e o mais limitador: Cria ansiedade e esperança. Não está limitado por um tempo, localização ou sequencia lógica de eventos específicos, como definido por nossa racionalidade. Sem nos darmos conta, o inconsciente nos leva de volta aos tempos mais remotos de nossas vidas. Os lugares mais estranhos, mais antigos, mais distantes, e, ao mesmo tempo, mais familiares de que fala um conto de fadas, sugerem uma viagem ao interior de nossa mente, nos domínios da inconsciência e do inconsciente. (BETTELHEIM apud NAKAO, 2005,p.38-39) Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição [...] Toda experiência possível ao indivíduo também a racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos (OSTROWER, 1978). Criar significa buscar soluções para os problemas que surgirão no meio do trajeto. “Ah, como gostaria de poder me fechar como um telescópio! Acho que conseguiria, se soubesse pelo menos começar”. Diz Alice tentando achar uma solução para passar através da pequena porta. (CARROLL, 2009, p.18) O coelho representa a curiosidade e o tempo a se seguir. O estilista vai seguir sua imaginação até adentrar o mais profundo “buraco” (seu inconsciente) e neste mesmo buraco há um salão com uma pequena porta que significa que o criador precisa se adaptar a quaisquer circunstâncias durante o percurso criativo, como a porta é pequena Alice deve encolher para chegar ao mais lindo “Jardim Secreto”. Cada vez mais o estilista se aprofunda em sua pesquisa que o leva aos seus devaneios e que o faze criar. 39 A criação se dá a partir das pesquisas que o estilista realiza e assim passa a obter conhecimento daquilo que lhe atrai ao seu redor. Aquilo que está em suas anotações e registros é relativo à sua percepção e seleção. “A percepção é portanto, uma possibilidade de aquisição de informações, consequentemente, de obtenção de conhecimento.”(SALLES, p.122) O estilista deve ir experimentado e moldando suas pesquisas do modo que lhe agrada, sem medo de errar e, acrescentando ao seu processo criativo, no inicio tudo acorre na sua mente. Sua ideia deve ser lapidada até se chegar ao conceito. Assim como Alice ao realizar experimentações antes de comer o pequeno bolo, pensa: “Se me fizer crescer, posso alcançar a chave; se me fizer diminuir, posso me esgueirar por baixo da porta; assim, de uma maneira ou de outra vou conseguir chegar ao jardim; para mim tanto faz!” (CARROLL, 2009, p. 21) No capítulo “A lagoa de lágrimas” Alice atinge 9 metros de altura e, portanto, fica muito triste e chora por não conseguir passar pela porta para entrar no jardim. Suas lágrimas bastaram para formar uma lagoa. “Pobre Alice! o máximo que conseguiu deitada de lado foi olhar para o jardim com um olho só; chegar lá estava mais impossível que nunca: sentou-se e começou a chorar de novo.” (CARROLL, 2009, p. 24) Alice, em seguida, começa a se abanar por estar com calor, diminui de tamanho novamente e acaba mergulhando na lagoa que ela mesma criou, e desse modo, atravessa o lago na companhia de um rato e do outro lado encontra vários animais molhados. (Ver ilustração 7) Ilustração 7 – Alice nadando na Lagoa de Lágrimas com o rato Fonte: <pelatocadocoelho.wordpress.com> 40 Tensões e marcas psicológicas também compõem o processo criativo, e se inserem na etapa de Trajeto com Tendência. Nesse momento o estilista se faz perceptivo, as tensões o perturbam o suficiente para criar um lago ao seu redor onde ele vai ter de navegar nesse “oceano de incerteza em meio a arquipélagos de certeza” (MORIN, 2003). Alice cansada e confusa no meio de sua lagoa diz: “Ó camundongo, sabe como se faz para sair desta lagoa? Estou muito cansada de ficar nadando para todo lado, ó camundongo” (CARROLL, 2009, p. 29) 2.2. Trajeto com Tendência É a tensão entre o que se quer dizer e aquilo que se está dizendo [...] A vagueza da tendência leva ao ambiente de imprecisão relutante. O processo de criação dá-se na relação entre essa tendência e a mobilidade do percurso que está, necessariamente, inserido no fluxo da continuidade. (SALLES, 1998, p. 63) O estilista, após estar perdido em um caos de ideias, vai passar a se encontrar aos poucos em suas pesquisas. A lagoa representa as tensões que o criador acumula em si e assim transforma-se em marcas psicológicas inseridos no percurso criativo e se fazem presentes no produto final. Segundo Caldas (2004, p. 22) “o conceito de tendência que se generalizou na sociedade contemporânea foi construído com base nas ideias de movimento, mudança, representação de futuro, evolução e sobre critérios quantitativos.”. [...] Continuou derramando galões de lágrimas, até que a sua volta se formou uma grande lagoa, com cerca de meio palmo de profundidade e se estendendo até a metade do salão. Passado algum tempo, ouviu uns passarinhos a distancia e enxugou as lagrimas mais que depressa para ver o que estava chegando. (CARROLL, 2009, p.24-25) Cabe considerar aqui que este capítulo traz à tona as mudanças repentinas que Alice sofre e as consequências que isto trouxe. O estilista também possui momentos como este em que Alice se sente confusa a respeito de si: “-Afinal de contas quem sou eu? Ah, este é o grande enigma!” (CARROLL, 2009, p. 25). Lá não se ficava sempre crescendo e diminuindo, e recebendo ordens aqui e acolá de camundongos e coelhos. Chego quase a desejar não ter crescido por aquela toca de coelho...no entanto...no entanto é bastante interessante este tipo de vida! Realmente me pergunto o que pode ter acontecido comigo! Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou eu no meio de um. (CARROLL, 2009, p.46). 41 Assim como Alice, o estilista passará por constantes mudanças, se fará grande e pequeno inúmeras vezes, o processo criativo também é um meio de fazer com que ele se encontre de modo que suas pesquisas também falam por si. Alice indaga: “cada vez mais estranhíssimo! Agora estou espichando como o maior telescópio que já existiu” (CARROLL, 2009, p.23). Cada projeto possui um conceito específico, e esse é obtido através de uma síntese das pesquisas realizadas pelo estilista, uma vez que na moda, cada coleção pede renovação e inovação. “O designer necessita de um caminho para criar e desenvolver seus produtos, e a este caminho damos o nome de conceito de criação” (MARTINEZ; MARTUCHELLI; CANTO; NAVALON; LIMA; FARIA; GRAGNATO; RONCOLETTA; LEVINBOOK; MEDEIROS; GUILLEN; CURCE; BARBOSA; NASCIMENTO, 2012, p.51). Através do conceito a coleção é gerada, sendo definido o público-alvo o qual a coleção será destinada, silhueta das peças, cartela de cores e outros. As interações são norteadas por tendências, rumos ou desejos vagos. O artista impulsionado a vencer o desafio, sai em busca da satisfação de sua necessidade, seduzido pela concretização desse desejo que por ser operante, o leva à ação, ou seja, à construção de suas obras. A tendência é indefinida, mas o artista é fiel a esta vagueza. – As construções de novas realidades, pelas quais o processo criador é responsável, se dão, portanto por meio de um percurso de transformações que envolvem seleções e combinações. (SALLES, 2008, p.33) Em “Uma corrida de comitê e uma história comprida”, o personagem Dodô decide que todos devem ser secos através de uma Corrida Eleitoral (Ver ilustração 8), na qual a única regra é correr apenas em círculos. Meia hora depois a corrida acaba e todos ganham. Como prêmio, Alice dispõe os doces que estavam em seu bolso e seu prêmio é um dedal. O rato conta sua história acerca da origem de seu ódio por cães e gatos. O capítulo termina quando Alice deixa finalmente os corredores do átrio. 42 Ilustração 8 – Alice e o Dodô premiação da corrida Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br> É o processo de conhecimento de si e da obra. Na moda há grupos de criação que ajudam o diretor de criação de uma empresa durante o processo criativo e cada uma dessas pessoas que compõem o grupo vivencia particularmente a criatividade. “Pareciam mesmo um grupo estrambótico o que se reuniu na margem” (CARROLL, 2009, p.33) O grupo de pesquisa auxilia o estilista no que diz respeito aos detalhes de uma coleção, ajuda a pensar e buscar soluções sendo que cada uma dessas pessoas vive individualmente o processo criativo. Segundo Marcelo Galvão (1999), “O grupo ajuda muito a criar a nebulosidade; cada fato ocorrido no grupo modifica o pensamento das pessoas e contribui muito para a internalização da realidade de uma forma mais universal.”. A obra vai se desenvolvendo através das ideias obtidas que até certo momento se faz presente no interior. Ao se concretizar no externo, é possível perceber o processo criativo. Mas normalmente a criatividade ocorre sem muita explicação, de uma forma paralela ao consciente; depois, as pessoas manifestam e se complementam no grupo [...] As pessoas buscam os grupos justamente para sair da impessoalidade e poder ocupar o seu lugar em algum contexto que permita colocar as suas potencialidades a serviço dos seus ideais. (GALVÃO, 1999, p. 17) 43 2.3. Público-Alvo A cada coleção de moda, lançada a cada semestre, os elementos se renovam, é o que faz parte da inovação, que é a essência da moda, e a partir disso é necessário compreender o público-alvo o qual a coleção será destinada. Através da pesquisa e do conceito é possível observar o público-alvo para coletar as devidas informações acerca do mesmo e agregar ao produto. Nesse processo é necessário compreender e refletir aquilo que está presente no cotidiano do estilista. Ele obtém um novo olhar perceptivo e armazena as ideias na sua memória. A roupa caracteriza o individuo e o meio social o qual o mesmo está inserido, assim é possível conhecer o seu público-alvo. O público-alvo é o que dá alicerce na pesquisa de criação de moda, apresenta proporções, aceita e entende as ideias, o conceito da coleção, tendo em mente que o público-alvo não é o que prende o estilista no meio do processo, o publico apenas direciona suas ideias para tornar real a coleção. Conhecendo o público, é possível surpreendê-lo e encantá-lo. É o momento no qual o estilista abre mundos e o convida para adentrar e explorar tudo o que há nele. É possível brincar com formas, estruturas e cores. Sendo assim, o público-alvo pode interferir nas escolhas do estilista no decorrer do processo criativo. O produto é criado para atender as necessidades do público-alvo, e o estilista se dedica a isso. A cada detalhe ele atribui um significado, porém o produto se apresenta sempre incompleto. “O objeto ‘acabado’ pertence, portanto, a um processo inacabado.” (SALLES, 1998, p.78) O objeto considerado acabado representa, também de forma potencial, uma forma inacabada. A própria obra entregue ao público pode ser retrabalhada ou algum de seus aspectos – um tema, um personagem, uma forma específica de agir sobre a matéria – pode ser retomado. (SALLES, 1998, p. 80) 2.4. Documentos de Processo: Armazenamento e Experimentação Para que a obra ganhe vida, a pesquisa do estilista deve conter suas experimentações e seu armazenamento de ideias. Os documentos de processo servem de rascunho e esboço para registrar tudo aquilo que se passa na cabeça do 44 criador de moda. Ao armazenar esses pensamentos é possível fazer novas experimentações até chegar aonde se deseja. Pode-se dizer que esses documentos, independentemente de sua materialidade, contém sempre a ideia de registro. Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos, que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização. (SALLES, 1998, p. 17) Os documentos registram o processo da criatividade do estilista, não enfatizam a materialização de tudo aquilo que o estilista está pensando, mas são a forma que ele encontra de registrar suas ideias mesmo que não as concretize. Não é possível obter a construção do pensamento do estilista e sim apenas alguns vestígios de sua construção de uma criação em etapas. “A ação do artista é levada e leva a aquisição de informações e a organização desses dados apreendidos. É, assim estabelecido o elo entre pensamento e fazer.”(Jardim, 1993) Alice admite sua crise de identidade (Ver ilustração 9), no capítulo “Conselhos de uma Lagarta”, causada pelas constantes transformações no tamanho, numa conversa com a Lagarta Azul e assim chega à conclusão de que não sabe mais quem é já que cresceu e diminuiu inúmeras vezes. Ilustração 9 – Alice e a Lagarta Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br> 45 Então, a Lagarta lhe revela que um dos lados do cogumelo faz crescer e o outro diminuir. Sozinha, Alice tenta primeiro o lado direito e diminui de altura; em seguida experimenta o lado esquerdo e cresce tanto que atinge o ninho de um pombo na copa da árvore. O estilista no percurso vai modificando as construções de si e já não sabe quem é exatamente, após tantas mudanças pelo caminho. Um lado do “cogumelo” leva a um caminho e o outro lado o conduz por um caminho diferente, cabe ao criador escolher ou experimentar ambos os lados, uma vez que não há certeza de nada.Talvez o segredo seja misturar ambos os lados. Consequentemente, a Lagarta Azul representa a metamorfose, mudança que ocorre tanto no estilista quanto no seu processo criativo que dialoga com Alice (estilista) a respeito dessas transformações e orienta a buscar soluções para seus problemas. “Ficou bastante assustada com essa mudança súbita, mas lhe parecia que não havia tempo a perder, pois estava encolhendo rapidamente; assim, tratou logo de comer um pouco do outro pedaço.” (CARROLL, 2009, p.62). O projeto durante o processo criativo tende a sofrer inúmeras mudanças em decorrência do acaso. O produto vai ganhando novas formas. A necessidade de expressar as ideias leva o criador de moda a apresentar novas formas ao seu projeto, levando em consideração que a forma que a coleção vai ganhando não se trata apenas da concretização da mesma e sim de uma parte do estilista que se insere no processo criativo. Portanto, forma é a maneira a qual o estilista tem domínio sobre seu projeto. 2.5. Expressão do Produto: Conteúdo e Forma O projeto de moda vai ganhando forma a partir dos rascunhos, anotações e esboços que formam o repertório de registro documentado pelo criador. A obra vai se desenvolvendo em constante mudança, sofrendo diversas alterações a partir das experimentações. A roupa vai surgindo através do conceito que a coleção possui, cada detalhe tem um significado. O estilista vai produzindo através de formas e através de uma peça, o criador diz aquilo que quer transmitir na coleção. 46 No entanto, o que se percebe é que nem a tendência do processo é desprovida de matéria: o que se quer dizer, aquilo que surge como uma vaga tendência, já é carregado da matéria que será amoldada, para que isso seja dito. Durante todo o processo, forma e conteúdo estão sempre em relação de interdependência. (SALLES, 1998, p. 74) A expressão do produto em desenvolvimento se dá através da mistura da forma e do conteúdo, e o estilista está também inserido nesses dois elementos que agem um sobre o outro. Assim o estilista tem controle sobre o desenvolvimento do produto e o processo de criação revela o produto final do estilista em partes como uma colagem de fragmentos. Após tal questionamento, Alice se convida para a festa do chá maluco (Ver ilustração 10) no qual estarão presentes o Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março e o Arganaz que permanece adormecido durante uma grande parte da festa. O Chapeleiro Maluco revela que está perpetuamente destinado a beber chá, porque o tempo o puniu em vingança, parando assim o tempo às 6 da tarde, a hora do chá. Com tantos enigmas e charadas Alice sente-se insultada e sai imediatamente e assim entra no desejado jardim. Uma memória criadora em ação que também deve ser vista nessa perspectiva da mobilidade: Não como um local de armazenamento de informações, mas um processo dinâmico que se modifica com o tempo. Novas percepções sensíveis de um olhar, que não conhece fixidez, impõem modificações e novas conexões (SALLES, 2008, p. 19). Ilustração 10 – Um chá de Loucos 47 Fonte: <universofantastico.wordpress.com> O estilista entra em conflito com os frutos de sua imaginação e percebe que o tempo é muito rígido, podendo punir em vingança e tudo acontece ao mesmo tempo. As relações tensionais, que mantém a vitalidade do processo de construção da obra, aparecem também nas emoções do criador. As marcas psicológicas do gesto criador carregam sentimentos opostos que, na medida em que atuam um sobre o outro, tornam a criação possível (SALLES, 1998, p. 81) No momento da reflexão acerca de suas ideias, o desejo do estilista de ver seus devaneios e seus pensamentos armazenados se tornando reais vão gerando um diálogo interno, que fazem parte do processo criativo também. O estilista dialoga com seu repertório de ideias registrado em anotações. No calendário da moda, as coleções são lançadas, no mínimo, a cada seis meses e o estilista deve cumprir esse tempo para apresentar o produto ao seu público. Alice diz: “-Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o tempo do que gastá-lo com adivinhações que não tem resposta” (CARROLL, 2009, p. 84). Nesse intervalo que acontece o processo criativo, o estilista vai aperfeiçoando sua obra até onde ele achar que se deve parar ou que esteja dentro de um cronograma que permita a produção da coleção no tempo do lançamento. ‘’Que dia do mês é hoje? Disse o chapeleiro voltando-se para Alice. Tinha tirado seu relógio da algibeira e estava olhando para ele com apreensão, dando-lhe umas sacudidelas vez por outra e levando-o ao ouvido Alice pensou um pouco e disse “dia quatro” “dois dias de atraso! suspirou o Chapeleiro” (CARROLL, 2009, p. 8283) É necessário se fazer atento ao tempo, pois ele conduz todo o processo e o estilista precisa entregar a coleção dentro de um determinado tempo que é marcado a cada seis meses. Nesse intervalo ele realiza suas pesquisas e cria o conceito e produz a próxima coleção. Como diria o Chapeleiro: “-[...] Agora são sempre seis horas.” (CARROLL, 2009, p.86) Embora exista um tempo determinado para se apresentar uma coleção em cada desfile, a moda continua como uma tendência por vários anos seguidos e tudo volta. De uma forma inovadora a moda se repete, e como diria o Chapeleiro: “-mas é porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo seguido” (CARROLL, 2009, p. 83). 48 2.6. Projeto Acabado No “depoimento de Alice”, (Ver ilustração 11) é provocada assim uma discussão de Alice com o Rei e com a Rainha de Copas, enfatizando as atitudes ridículas cometidas durante todo julgamento. A Rainha ordena “Cortem-lhe a cabeça!”, mas Alice não tem medo, por ser agora muito alta diante de cartas de um baralho. De repente a irmã de Alice faz-lhe acordar para ir tomar um chá, tirando do seu rosto folhas que caíram e não uma chuva de cartas de jogar. Alice percebe que tudo não passou de um sonho e então conta tudo e volta pra casa, deixando a irmã, que ficou a sonhar o sonho de infância das Maravilhas de Alice. Ao longo de todo o percurso, problemas infinitos, conflitos sem fim, provas, enigmas, preocupações e mesmo desesperos que fazem o “oficio do poeta um dos mais incertos e cansativos que possa existir”. Valéry (1984) fala de dificuldades que são, na verdade, de toda ordem: desconforto de decidir, resistência dos limites ou busca da palavra certa. (SALLES, 1978, p. 82) Ilustração 11 – Alice e as cartas no julgamento Fonte: <clubecetico.org> É o momento de comunicar o resultado da obra acabada de um processo inacabado. O estilista circula por seus mundos e os deixa abertos para seu público conhecer e assim parte para mapear novos horizontes sem rumo sempre com olhar 49 de viajante. A coleção não se resume apenas ao estilista, o publico será o receptor desta obra de tal modo é convidado a participar e conhecer o mundo subjetivo criado pelo estilista. A imprensa, os formadores de opinião e o publico são os atores que criam a crença da magia dos produtos finais através de sua percepção. O estilista abre mundos e convida o público a explorar esse mundo subjetivo criado a partir de seu olhar, e, portanto, a criação é uma forma de comunicação para com o outro. Carlos Fuentes (1999, apud SALLES, 1998, p.41) afirma que “o processo de criação mostra-se, também, como uma tendência para o outro. Está em sua própria essência a necessidade de seu produto ser compartilhado.”. A obra também se comunica com o global, com o passado, presente e futuro. Está ligada à tradição, memória e olhar. Muitos críticos e criadores discutem a questão de que não há criação sem tradição: Uma obra não pode viver nos séculos futuros se não se nutriu dos séculos passados. Nenhum artista, de nenhuma arte, tem seu significado completo sozinho. Assim como o projeto individual de cada artista insere-se na tradição, é, também, dependente do momento de uma obra no percurso da criação daquele artista especifico: Uma obra em relação a todas as outras já por ele feitas e aquelas por fazer. (SALLES, 1998, p.42-43) A coleção vai sendo moldada pelo estilista, e dialogando internamente com ele mesmo e sua obra como um todo, uma vez que o estilista é o primeiro receptor de sua coleção. Desse modo, o criador como seu primeiro receptor, julga sua obra e assim vai interferindo no decorrer do percurso criativo, fazendo o que acha necessário, e assim dando nova forma ao produto. “Ele é agente e testemunha do ato criador” (SALLES, 1998, p.43) Levando em consideração que o processo criativo é uma “trajetória de experimentações”, o estilista dialoga também com sua obra, no caso, sua coleção e em meio a tantas emoções produzidas. Ele percebe, assim que está criando para sua própria obra. “O publico estabelece o contrato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador” (DUCHAMP, 1986 apud SALLES, 1998, p.47). 50 O processo criativo apresenta em si a necessidade de ser compartilhado com o público e isso revela que o processo de criação também é comunicativo. Cada estilista possui um olhar único que insere e influencia o ato de criar sua coleção. Sendo assim, o estilista tem em mente que seu produto faz parte de um processo que não termina. A cada coleção ele realiza as pesquisas até obter um conceito para assim seguir seu processo e no final de cada coleção ele parte em rumo de novas pesquisas para outras novas coleções. O desfile se encerra, mas o processo continua. Alice conclui: “Então ficam mudando de um lugar para outro em círculos, não é? Disse Alice.(CARROLL, 2009, p.86) “Mas o que acontece quando chegam de novo ao começo?”Alice se aventurou a perguntar”. 51 4. COLEÇÃO WONDERLAND TEA “Se eu tivesse um mundo próprio tudo seria sentido. Nada seria o que é, porque tudo seria o que não é.” (CARROLL, 1864) A coleção Wonderland Tea é um pedaço do mundo fantástico de Alice em seu País das Maravilhas, onde seus devaneios vão dando forma a um roteiro embalado por ilusões, loucuras e alucinações. A coleção revela as loucuras e dúvidas vindas de Alice e Chapeleiro Louco na hora do chá das 6h. “tudo tem uma moral, é questão de saber encontrá-la” (CARROLL, 2009, p. 105) Wonderland Tea tem como principal inspiração o capitulo 7 do livro de Lewis Carroll, “Um chá maluco”, no qual Alice se encontra com um Chapeleiro Louco, uma Lebre de Março e um Caxinguelê que está em constante sono (Ver ilustração 12). Nele, o Chapeleiro afirma que foi castigado contra o tempo e por isso seu relógio marca sempre seis da tarde, que por sinal é a hora do chá. Ilustração 12- Personagens no Chá Maluco Fonte: < attemptedbloggery.blogspot.com> Os três personagens circulavam constantemente a mesa para tomar chá, pois não tem tempo para lavar a louça durante os intervalos, uma vez que o relógio 52 marca sempre a mesma hora. O chapeleiro, representando a loucura, propõe alguns enigmas endossados pela Lebre de Março, sem sentido para Alice tentar descobrir e eles nunca concluem uma conversa, fica sempre inacabada. Tudo se fazia confuso durante aquele chá. Nesse capítulo é relatado o auge da loucura de Alice que é representada pelo Chapeleiro Louco Entrelaçando o tema processo de criação em moda e o livro Alice no País das Maravilhas, é possível mergulhar em múltiplas ideias e conceitos, entre os quais, o lúdico, os sonhos, as memórias, a criatividade e a imaginação. É possível relacionar, ainda, ambos os universos comparando as inquietudes e dúvidas do estilista com as aventuras tensivas imaginárias de Alice. O nosso inconsciente é o local onde ocorrem os fatos mais antigos, únicos e surpreendentes [...] Não está limitado por um tempo, localização ou sequência lógica de eventos específicos, como definidos por nossa racionalidade. Sem nos darmos conta, nosso inconsciente nos leva de volta aos tempos mais remotos de nossas vidas. Os lugares mais estranhos, mais antigos, mais distantes e, ao mesmo tempo, mais familiares de que fala um conto de fadas, sugerem uma viagem ao interior de nossa mente, nos domínios da inconsciência e do inconsciente. (BETTELHEIM, 1979, p.79 apud NAKAO, 2005, p.38) Em Wonderland Tea o mundo imaginário de Alice fica em evidência. O País das Maravilhas é seu mundo particular e lá é possível se aventurar em meio as suas próprias alucinações. Nada tem sentido. É necessário mergulhar fundo, mesmo estando diante de inúmeras incertezas. A coleção, então, retrata esse mergulho no universo fantástico que valoriza a arte do sonho e da fantasia através de uma colagem de fragmentos da história de Lewis Carroll, evidenciando a criatividade do indivíduo e a imaginação. Possui uma estética romântica3 e ao mesmo tempo surrealista4 no que diz respeito a modelagem das peças, com formas pontiagudas e curvas. 3 O movimento estético Romantico,ou,Romantismo,surgiu nas ultimas décadas do século XVIII e perdurou por um longo período do século XIX.Está ligado a arte do sonho e da fantasia,evidencia a criatividade e a imaginação do individuo,e baseia-se na inspiração fugaz dos momentos fortes da vida subjetivaa.Refere-se a uma tendencia edealista ou poética de alguém que carece de sentido objetivo. 4 O surrealismo foi um movimento artistisco e literário, nascido em Paris na década de 20.Enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa.(Conceitos disponiveis em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Romantismo> e http://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo. Acesso em: 29 de maio de 2012) 53 As peças trazem em sua essência romântica o clássico inglês com os coletes e blazers de lordes da época vitoriana da Inglaterra (Ver ilustração 13), presente também no livro de Lewis Carroll, sendo utilizado pelo coelho branco. Tudo sendo lembrado em forma de vestidos estruturados. O surrealismo fica por conta da utilização do espelhamento entre as peças (inversão de ordem) de silhuetas volumosas, e armadas com camadas, sobreposições, sendo lembrado pelas louças do chá maluco. Cada peça traz a repetição de elementos, como uma forma de enigmas e ao mesmo tempo lembrando-se de um produto acabado de um processo inacabado. Ilustração 13 – Blazer e Colete da Época Vitoriana Fonte: <modaparavestir.com.br> As peças trazem silhuetas e formas que remetem aos elementos encontrados na aventura de Alice como o Coelho Branco de colete, Chapeleiro e a própria louça do chá maluco. Assim os pedaços das peças recebem nomes como: “Manga Coelho”, pois se trata de uma manga bufante estruturada (pontiaguda) com franzido na cava; “Saia Xícara”, que recebe este nome por ser uma saia estruturada com silhueta como uma xícara da louça do chá do Chapeleiro Louco; “Saia Cogumelo” e o colete do coelho, recebe uma releitura podendo ser inacabado com costuras mal feitas e sendo facilmente mudado de lugar, passando a ser na cintura como um espartilho. A coleção é voltada ao público jovem feminino entre 17 – 26 anos que está sempre conectado com o mundo através da tecnologia e redes sociais, buscando novas tendências para transformar em uma moda única através de adornos ou detalhes. Mas que, ao mesmo tempo carrega os sonhos de infância de uma menina 54 aliados a certa dose de loucura formada pela imaginação. Wonderland Tea traz em sua essência as memórias juntamente ao nonsense5 e ao lúdico. As Alices que integram o público-alvo trazem dentro de si o romantismo de uma época, memórias que marcaram uma fase de sua vida e retomam esse momento de nostalgia ouvindo musicas de bandas como Coldplay, Oasis e The Beatles. Adoram ler livros fantásticos como Alice no País das Maravilhas, O Pequeno Príncipe, Peter Pan e O Mágico de Oz. Gostam de sair para se divertir em locais como cinemas, pois são amantes de um bom filme clássico. Andam de bicicleta pelo parque durante o fim da tarde e por lá fazem fotografias para armazenar em seu repertório de criação e inspiração. Colecionam novas sensações num parque de diversões com algumas amigas e na noite optam por ficar em casa refletindo em seu quarto lendo um bom livro para no dia seguinte ir a busca de novas aventuras. Assim, Wonderland Tea conta uma história sem linearidade, como um sonho que não possui roteiro definido, usando elementos do próprio livro de Lewis Carroll e, assim, obtendo uma nova visão cheia de cores e formas, da cena do Chá Maluco. Tons vivos como “Vermelho Colete”, “Verde Chapeleiro”, “Amarelo Relógio”, “Preto Buraco” e tons pastéis como “Branco Coelho”, “Rosa Chá das 6” e “Azul Alice” formam a cartela de cores que remetem ao constante movimento em que os fatos ocorrem nos sonhos e, concomitantemente a isso, remetem às cores dos objetos encontrados na cena do Chá Maluco e no País das Maravilhas, à loucura do surrealismo. Os tecidos como a como organza, seda, musseline, e renda, possuem a fluidez que faz alusão aos sonhos, coisas abstratas e a suavidade. O veludo, por ser um tecido pesado e grosso faz alusão a alfaiataria da época vitoriana. Na coleção s trajes do Chapeleiro e o colete do Coelho recebem uma estética “desordenada” ilustrando o tempo corrido do relógio do Coelho e a algo que nunca se conclui, com peças inacabadas. 5 Nonsense (“sem sentido” em inglês) é uma expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo. A expressão é utilizada para denotar um estilo característico de humor perturbado e sem sentido, que pode aparecer em diversas artes. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nonsense>. Acesso em: 3 de dezembro de 2012 55 Aviamentos como botões dourados, fitas de cetim e viés preto remetem ao tempo, simbolizado pelo relógio do coelho branco de colete na história, e as fitas nos revelam os diversos caminhos a serem traçados e escolhidos para chegar a um destino. O viés nos remete ao acabamento perfeito, sendo assim possível realizar um jogo entre o acabado e o inacabado, representado por bainhas imperfeitas e desfiadas nos vestidos. Com Wonderland Tea é possível revelar os segredos mais ocultos do nosso imaginário, e atravessar as fronteiras do inconsciente. Cada um de nós carrega uma Alice dentro de si, porém, é preciso perder-se para a partir de então encontrar-se. No País das Maravilhas, há inúmeros caminhos a serem seguidos, cabe a cada um escolher apenas uma e assim seguir em frente. É necessário arrumar as malas e adentrar na toca do coelho para vivenciar cada etapa da aventura. Às vezes o eterno dura apenas um segundo. 56 4.1.Painéis 57 4.1.1. Lifestyle 58 4.1.2. Release 59 4.1.3. Ambiência 60 4.1.4. Cartela de cores 61 4.1.5. Materiais 62 4.1.6. Painel de estilo 63 4.1.7.Coleção 64 65 4.1.8. Look conceito 66 5.CONCLUSÃO Esta pesquisa demonstrou o processo criativo de moda através de uma relação com os capítulos mais importantes do livro “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll. Essa relação envolve uma costura de fragmentos do livro no qual cada elemento presente recebe um significado ligado à criação na moda. A partir da não linearidade do processo criativo é possível associar um conto construído por colagens de episódios como nos sonhos, nos quais não há um roteiro exato para os fatos, revelando que a moda é um campo no qual estilistas atuam também através de sua imaginação A personagem Alice representa os estilistas que ao caírem na “toca do coelho” se perdem em suas imaginações enfrentando os obstáculos que se fazem presentes durante o percurso criativo. Mesmo assim, é importante ressaltar que o tempo da criação na Moda é rígido, pois obedece a datas do calendário de lançamento das coleções. Alguns estilistas como Jum Nakao, Ronaldo Fraga e Hussein Chalayan dialogam com a história de Alice para exemplificar e justificar o processo criativo no que diz respeito à subjetividade do mesmo, levando em consideração que não há uma fórmula exata para criar e a inspiração surge a partir do olhar perceptivo que o estilista possui com se fazendo estrangeiro aos seus pensamentos e aquilo que o cerca. Algumas falas de Alice, retiradas do livro, se cruzam com os pensamentos do estilista abordado no texto. Assim, esta pesquisa possibilitou uma visão diferente acerca do processo criativo na moda, utilizando um elemento da literatura nonsense britânica como exemplo para ilustrar as aventuras de um estilista em seu mundo particular, para gerar um desfile com produtos acabados em um processo inacabado. “Acorde, Alice querida! Disse a sua irmã ‘’mas que sono comprido você dormiu. Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no país das maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade...a relva só farfalharia ao vento, e as águas da lagoa só se encrespariam ao ondular dos juncos...as xícaras de chá tintilantes se transformariam no tinir dos sinos das ovelhas, e os gritos agudos da rainha na voz do pastorzinho...e os espirros do bebe, o guincho do grifo, e todos os 67 outros barulhos esquisitos se converteriam (ela sabia) no alarido do movimentado terreiro da fazenda...enquanto os mugidos do gado a distancia iriam tomar o lugar dos soluços tristes da tartaruga falsa. Por fim imaginou como seria essa mesma irmãzinha quando, no futuro, fosse uma mulher adulta; e como conservaria, em seus anos maduros, o coração simples e amoroso de sua infância; e como iria reunir outras criancinhas a sua volta e tornar os olhos delas brilhantes e impacientes com muitas histórias estranhas, talvez até com o sonho do país das maravilhas de tanto tempo atrás; e como iria sofrer com todas as mágoas simples dessas crianças, e encontrar prazer em todas as alegrias simples delas, lembrando sua própria vida de criança, e os dias felizes de verão’’ (CARROLL, 2009, p. 149) Assim como no mundo particular de Alice, o estilista vê um sentido em tudo que lhe atrai. como diria a Duquesa: “-tudo tem uma moral, é questão de saber encontrá-la” (CARROLL, 2009, p.105). Assim, dando um novo significado a qualquer objeto seguindo sua curiosidade para ser levado a outra dimensão através de uma pequena porta. Sempre vai haver um Jardim Secreto, o mais bonito. O estilista é assim, cria mundos e sempre convida o público a entrar e fazer uma visita, levando em consideração que o processo criativo não tem fim. Depois de uma coleção outra vem logo em seguida como uma colagem, uma costura em ziguezague seja no processo, seja no produto. 68 REFERÊNCIAS BARBOSA, Regina; CANTO, Cristine de bem e; CURCE, Priscila;FARIA, José Neto de; GRAGNATO, Luciana; GUILLEN; LEVINBOOK, Miriam; LIMA, Geraldo; MARTINEZ, Adriana; MARTUCHELLI, Allan; MEDEIROS, Mitiki; NASCIMENTO, Veniza; NAVALON, Eloize; RONCOLETTA, Mariana Rachel. Interagindo: Design de moda. São Paulo. Editora Esfera, 2012. CAMPOS, Amanda Queiróz; RECH, Sandra Regina. Como se faz tendência? O desenvolvimento de um modelo conceitual para a pesquisa prospectiva. Revista da Pesquisa. Santa Catarina, 2009. Disponível em: <http://www.ceart.udesc.br>. Acesso em: 03 de dezembro de 2012 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. GARCIA, Carol. Coleção moda brasileira – Ronaldo Fraga. v. 4. São Paulo. Cosac Naify Editora, 2008. GALVÃO, Marcelo. Criativamente. 2ed. Rio de Janeiro RJ: Editora Qualitymark, 1999. HERCHCOVITCH, Alexandre. Cartas a um jovem estilista (a moda como profissão). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2007. LOVINSKI, Noel Palomo. Os estilistas de moda mais influentes do mundo: A história e influência dos esternos ícones da moda. 1ed. Barueri, SP. Editora Girassol, 2010. MESQUITA, Cristiane. Moda em ziguezage: Interfaces e expansões. São Paulo: Editora Estação das Letras e das Cores, 2011. NAKAO, Jum. A Costura do Invisível. Rio de Janeiro: Editora Senac Nacional; São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. 69 OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 16 ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1997. PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade – Sujeito e escritura em processo. 1ed. Porto Alegre. Sulina Editora da UFRGS, 2010. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado – Processo de criação artística. 3 ed. São Paulo: Editora Fapesp, 1998. _______.Redes de criação – Construção da obra de arte. 2ed. São Paulo: Editora Horizonte, 2006. SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro, 2010. 70 ANEXO – Editorial Alice in Wonderland6 6 Editorial de Annie Leibovitz para a revista Vogue disponível em < WWW.trendlad.com > 71 72 APÊNDICE – FICHAS TÉCNICAS 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82