1
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA
Caroline Monteiro de Aquino
ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS:
Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das
Maravilhas de Lewis Carroll
Belém – PA
2012
2
Caroline Monteiro de Aquino
ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS:
Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das
Maravilhas de Lewis Carroll
Projeto Experimental apresentado à
Universidade da Amazônia como requisito
parcial para obtenção do grau em
Bacharel em Moda. Orientadora Profª
Esp.Yorrana Maia
Belém - PA
2012
3
Caroline Monteiro de Aquino
ESTILISTA NO PAÍS DAS MARAVILHAS:
Costura em ziguezague entre processo de criação em moda e Alice no País das
Maravilhas de Lewis Carroll
Projeto Experimental apresentado à
Universidade da Amazônia como requisito
parcial para obtenção do grau em
Bacharel em Moda. Orientadora Profª
Esp.Yorrana Maia
Banca Examinadora:
_______________________________________
Profª. Esp. Yorrana Maia (orientadora)
_______________________________________
Profª Msc Rosyane Rodrigues
_______________________________________
Examinador
Apresentado em: ___ / ___ / ___
Conceito:
Belém - PA
2012
4
Aos meus pais Huêud e Cláudia Aquino por estarem sempre ao
meu lado ensinando para cada sonho há uma esperança e que
com a mesma intensidade que sonhamos podemos tornar
realidade.
5
AGRADECIMENTOS
“Sete oitavos submersos, um oitavo à vista. Essa é a proporção
da flutuação de um iceberg. Um contingente invisível muito
maior se empenhou incansavelmente para tornar este trabalho
visível.” (Jum Nakao)
Agradeço a Deus primeiramente, por estar sempre a frente de todos os meus
sonhos e projetos e conduzir-me em cada passo dado durante a caminhada, pois só
ele é digno de toda honra e toda glória.
Ao meu pai Huêud Aquino e minha mãe Cláudia Aquino por sempre, em quaisquer
circunstâncias me acompanharem durante a jornada me apoiando em todas as
escolhas. Por investirem em mim ensinando-me em qual caminho devo andar.
Agradeço por me darem o maior amor, carinho, atenção e o melhor presente: O
conhecimento.
A Universidade da Amazônia pela competência e referência no que diz respeito ao
curso de Bacharelado em Moda, sempre possibilitando oportunidades em eventos e
exposições.
A minha professora e orientadora Yorrana Maia que abriu novas dimensões em suas
aulas Inspirando-me com a magia da criação, ensinou-me a acreditar que tudo é
possível e às vezes é preciso se perder para poder se encontrar.
A minha professora Rosyane Rodrigues que me orientou durante o Pré-Projeto em
juntamente com a professora Yorrana, sempre apoiando e ajudando a decidir o
melhor caminho.
As minhas amigas Márcia Valéria, Luciana Caetano, Thalita Barcessat e Rhoanny
Gizela, que mesmo a distância participaram dos meus sonhos e planos acreditando
que tudo se tornaria realidade.
As minhas amigas de curso Heloiza Mara e Tábita Andrade por me ajudarem nos
momentos nos quais precisei proporcionando lembranças e momentos de alegria
A minha turma, que desde 2010 proporcionou uma troca de experiências,
conhecimentos e lembranças ao longo de todo o curso.
Agradeço a todas as pessoas que participaram direta ou indiretamente desta etapa
da minha vida, caminharam junto comigo e me trouxeram até aqui sempre
acreditando em meu potencial para a conclusão deste trabalho onde deixo inseridos
meu esforço, dedicação e mérito.
6
“É preciso provocar sistematicamente confusão. Isso promove
a criatividade. Tudo aquilo que é contraditório gera vida.”
(Salvador Dalí)
7
RESUMO
Esta pesquisa possui como objetivo relacionar o processo de criação em moda
com o clássico literário “Alice no País das Maravilhas”, fazendo uma colagem
entre as etapas do processo e os capítulos mais importantes do livro. A relação
se dá através de uma costura em ziguezague com fragmentos mais relevantes
desses dois universos, tendo em mente que o Processo criativo é um movimento
que não possui linearidade. No universo de Alice no País das Maravilhas, a
história fantástica foi improvisada em 1864, pelo escritor britânico Lewis Carroll
que ofereceu à filha do Vice Chanceler da Universidade de Oxford, Alice
Pleasance Liddell. A história é constituída por narrativas fragmentadas, que
relatam os devaneios e a lógica do absurdo de Alice, assim como nos sonhos
nos quais nada é linear e sem ordem cronológica, e acontece ao mesmo tempo,
como no processo de criação no qual tudo é possível fazendo parte de um
processo inacabado.
Palavras-Chave: Criação, fragmentos, estilista, processo inacabado.
8
ABSTRACTS
This research has as objective connect the process of creating fashion jointly
literary classic “Alice in Wonderland”, making a collage between the stages of the
process and the most importants chapters. The relation is through a zigzag
stitching with the most relevant fragments of these two universes, bearing in mind
the creative process is a movement that lacks linearity. Alice in Wonderland is a
fantastic story written in 1864 by British author Lewis Carroll that offered it to the
daughter of the Vice Chancellor of the University of Oxford, Alice Pleasance
Liddell. The plot consists of collages of fragments, reporting and musings of the
absurd logic of Alice, as in dreams in which nothing is linear and without
chronological order, and happens at the same time as the process of creation in
which everything is possible as part of an unfinished process.
Keywords: Creation, fragments, designer, unfinished process
9
LISTA DE ILUSTRAÇÃO
Ilustração 1 Alice no País das Maravilhas de Walt Disney
17
Ilustração 2 Estilista Paul Smith em seu atelier
19
Ilustração 3 Caderno de esboços
23
Ilustração 4 Ronaldo Fraga e seu livro “Caderno de roupas, memórias e croquis” 24
Ilustração 5 Ilustração de John Tenniel do Coelho Branco
35
Ilustração 6 Alice abrindo a pequena porta
36
Ilustração 7 Alice nadando na lagoa de lágrimas na companhia do rato
40
Ilustração 8 Alice e Dodô na premiação da corrida
42
Ilustração 9 Alice e a lagarta
45
Ilustração 10 Um Chá Maluco
47
Ilustração 11 Alice e as cartas no julgamento
49
Ilustração 12 Personagens no Chá Maluco
51
Ilustração 13 Blazer e colete da época Vitoriana
53
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................10
2. O ESTILISTA : CRIADOR COMO ALICE.......................................................13
3. CRIAÇÃO EM PROCESSOS..........................................................................29
3.1. A Pesquisa....................................................................................................36
3.2. Trajeto com Tendência..................................................................................39
3.3. Público-Alvo...................................................................................................41
3.4. Documentos de Processo: Armazenamento e Experimentação...................42
3.5. Expressão do Produto: Conteúdo e Forma...................................................44
3.6. Projeto Acabado............................................................................................47
4. COLEÇÃO: WONDERLAND TEA..................................................................50
4.1. Painéis...........................................................................................................55
4.1.1. Lifestyle......................................................................................................56
4.1.2. Release......................................................................................................57
4.1.3. Ambiência...................................................................................................58
4.1.4. Cartela de cores.........................................................................................59
4.1.5. Materiais.....................................................................................................60
4.1.6. Painel de estilo...........................................................................................61
4.1.7. Coleção......................................................................................................62
4.1.8.Look conceito..............................................................................................64
5. CONCLUSÃO..................................................................................................65
REFERÊNCIAS....................................................................................................67
ANEXOS
ANEXO 1 - Editorial Alice in Wonderland.............................................................69
APÊNDICES
APÊNDICE 1 - FICHAS TÉCNICAS.....................................................................71
11
1. INTRODUÇÃO
O ato criador consiste numa fuga da realidade e um despertar para si. É um
momento no qual o criador precisa passar um tempo em seu intimo, redescobrir
seus valores, reorganizar as ideias, encher-se novamente. Para esse processo
começar a funcionar, o estilista deve estar sempre aberto a novas informações
globais e assim traduzir em um novo mundo constituído por seus valores e
significados.
Era tempo de reflexão, de encontrar o silencio, de parar e formular as
perguntas certas para as nossas inquietudes. Descobrir que há
inúmeros caminhos e que quanto mais se sabe mais se descobre
que nada se sabe, que falta algo dentro da gente, que muito precisa
ser questionado. (NAKAO, 2005, p.11)
É importante saber usar a individualidade no mundo da moda para transmitir
tudo aquilo que foi recolhido de diversas fontes. Ser subjetivo diante da sociedade,
recolhendo informações e transformando parte do que foi coletado em um novo
universo, um universo particular. Esse processo consiste em um mundo constituído
por fragmentos coletados pelo estilista ao longo de seu trajeto e pesquisas.
As inovações do pensamento só podem ser introduzidas por este
calor cultural e intelectual dialógica, na qual convive uma grande
pluralidade de pontos de vista, possibilita o intercâmbio de ideias,
que produz o enfraquecimento dos dogmatismos e normalizações e o
consequente crescimento do pensamento. (SALLES, 2006, p.40)
Esta pesquisa trata de uma costura em zigue-zague1 constituída de fragmentos
entre o mundo do processo criativo e o mundo de Alice no País das Maravilhas. Os
capítulos do livro formam uma rede de conexões com as falas dos estilistas que
possuem um processo criativo sem linearidade, assim como Jum Nakao, Ronaldo
Fraga e Hussein Chalayan. A costura de fragmentos será realizada para ilustrar o
processo inacabado como uma colagem tendo os estilistas no papel de Alice. “Na
maioria das vezes, o que amarra uma coleção a outra é a colagem caleidoscópica
de distintos elementos da cultura.” (FRAGA apud GARCIA, 2004, p 70).
1
Ziguezage, conceito de Gilles Deleuze no vídeo “Abecedário de Deleuze”,Z a ultima letra do alfabeto “Z é uma
letra formidavel que nos faz voltar ao A.” Disponível em <www.youtube.com>. Acesso em: 10 de novembro de
2012
12
A costura entre Alice no País das Maravilhas 2 e os estilistas selecionados
acontece levando em consideração os fatos que ocorrem durante toda a história na
qual nada se conclui, assim como o processo de criação. Alice participa de todos os
acontecimentos e todos eles se passam dentro de seu imaginário, sendo assim,
Alice é a protagonista de algo que ela mesma criou. A história relata as suas
aventuras ao cair na toca de um coelho, um lugar surreal, com personagens
imaginários.
Portanto esta análise tem como objetivo relacionar o processo de criação em
moda com a narrativa de Alice no País das Maravilhas, comparando partes do
percurso criativo com os capítulos mais marcantes do livro, reunindo
valores e
pensamentos acerca do processo criativo, e assim revelando que não há fórmula
exata para criar, e sim vários caminhos a serem seguidos. Não há linearidade, e sim
um constante zigue-zague como uma colagem na qual irá gerar um produto final
através de um processo inacabado, assim, o criador em seu processo criativo, deixa
em evidencia as sensações que adquire no decorrer do percurso através de seus
registros em suas pesquisas. Tais sensações servem de alimento para o processo
se manter em constante andamento e são responsáveis pelo crescimento da obra.
Diante de tanta dificuldade e da consciência de problemas, o artista
depara com intensos momentos de prazer e encantamentos, e
também com instantes que não oferecem resistência, mas facilidade,
como a fluidez das associações. São fluxos de lembranças e
relações: pessoas esquecidas, cenas guardadas, filmes assistidos,
fatos ocorridos, sensações são trazidas à mente sem aparente
esforço. (SALLES, 1998, p.85)
O livro é repleto de alusões satíricas aos amigos e conhecidos de Lewis Carroll
e também a objetos de seu cotidiano, levando em consideração que o estilista como
criador, está inserido em sua criação. A costura é realizada através dos capítulos
mais importantes que fazem referência aos acontecimentos das etapas mais
importantes da criação. Nesse processo, o estilista assume papel de Alice em seus
momentos de prazer e desprazer, tensões e angustias.
Alguns dos fragmentos da história selecionados são: Na “Toca do Coelho” que
dá origem a seqüência de aventuras. Alice segue um coelho branco e acaba caindo
2
História em fluxo de relações não lineares. O conto britânico foi escrito por Charles Lutwidge Dodgson, de
pseudônimo Lewis Carroll, em 4 de julho de 1864 e publicado em 4 de julho de 1865.Seu título original em
inglês é Alice’s Adventures in Wonderland e assim abreviado para Alice in Wonderland.
13
em sua toca e bem lá no fundo do buraco aumenta e diminui de tamanho para enfim
conseguir passar pela pequena porta que leva ao Jardim Secreto; Na “Lagoa de
Lágrimas”, Alice chora tanto por estar confusa e acaba formando uma lagoa com as
próprias lágrimas. A menina acaba decidindo atravessar tal lagoa e encontra um rato
que a leva para um local seco onde encontra outros animais ; “Uma Corrida de
Comitê” é o capítulo onde Alice participa de uma corrida sem regras proposta por um
animal chamado Dodô. Todos os animais em equipe correm em circulo e são
vencedores; “Conselho de uma Lagarta” é o capítulo que no qual Alice tem uma
crise de identidade por já não saber quem era após crescer e diminuir várias vezes,
e assim passa a buscar soluções para sair daquele local onde tudo era estranho. A
Lagarta Azul que estava sobre um cogumelo fumando um narguilé dá à Alice um
pedaço de um cogumelo e orienta a menina dizendo que um lado a fará crescer e o
outro a fará diminuir; “Um Chá Maluco” é o capítulo onde Alice se depara com a
Loucura de sua mente representados pelo Chapeleiro Louco na companhia de uma
Lebre de Março e um Caxinguelê que só dorme. O Chapeleiro propõe à menina
uma série de enigmas sem sentido . A conversa entre eles é inacabada e o relógio
marca sempre às 6 da tarde e, assim, não possuem tempo para lavar a louça nos
intervalos, os personagens rodeiam a mesa; No “Depoimento de Alice”, Alice
comparece juntamente com todos os outros personagens em um julgamento para
saber quem roubou as tortas da Rainha. No final Alice percebe que tudo aquilo só
acontecia dentro de sua mente.
O Primeiro capítulo trata da relação entre o estilista e Alice, assim, comparando
suas emoções durante o percurso criativo Essa análise é necessária para pode
compreender o capítulo seguinte.
O segundo capítulo discute o processo criativo em comparação com os
capítulos de Alice no País das Maravilhas, já selecionados. Para cada etapa da
criação há um capítulo do livro para ilustrar
O terceiro capítulo é o da coleção Wonderland Tea, que revela o imaginário de
Alice através do capítulo do Chá Maluco no qual nada possui linearidade e tudo
acontece em tempo acelerado como, com conversas que não se concluem.
A obra Alice no País das Maravilhas foi selecionada nesta pesquisa, pois,
ilustra de forma lúdica o processo criativo, envolvendo criador e sua própria criação.
14
2. O ESTILISTA: CRIADOR COMO ALICE
Mapa Marítimo
Ele tinha comprado um grande mapa representando o mar,
Sem o menor vestígio de terra:
E os tripulantes ficaram muito satisfeitos quando perceberam que era
um mapa que todos eles podiam entender.
Qual é a vantagem do polo norte e do equador de mercator,
Trópicos, hemisférios e meridianos?’
E o mensageiro iria anunciar e a tripulação responder:
Eles são apenas símbolos convencionais!’
Outros mapas têm formas parecidas, como ilhas e cabos!
Mas nós devemos agradecer ao nosso bravo capitão:
(E a tripulação iria reconhecer). Ele nos comprou o melhor.
Um mapa perfeito, absolutamente vazio’ (CARROLL, 1993, p. apud
NAKAO, 2005, p.).
Para entender o processo de criação na moda, é necessário compreender
primeiramente o que é moda, quem é o estilista e o papel que ele desempenha
enquanto criador, nesse cenário. É necessário compreender o estilista acerca de
seu trajeto durante o percurso criativo até chegar a seu produto final dentro de um
processo inacabado. A moda proporciona liberdade para construir novos mundos
através da imaginação e tudo se renova através de um olhar subjetivo.
A moda é um fenômeno efêmero que avança de geração em geração e está
sempre em constante movimento. Está ligada aos hábitos e modos de um povo e,
como consequência, acaba afetando as atitudes das pessoas, inovando algo já
existente através da criatividade do estilista. ”O desenvolvimento da moda foi um
dos eventos mais decisivos da história mundial, porque indicou a direção da
modernidade” (SVENDSEN, 2004, p.23 )
Um criador de moda é aquele, que está apto a desenvolver coleções através
de suas inspirações, adequando-as a um determinado público, o que o faz exercer
certa influência na maneira de vestir das pessoas e criando, então, tendências. Vale
ressaltar que o estilista precisa obter uma visão global do mundo, coletar
informações de diversas fontes para então absorvê-las as e transformá-las em algo
singular.
15
O estilista é o criador e pesquisador de uma coleção, é aquele que possui
papel fundamental de gerar conceitos, e assim deve demonstra-se disposto a lidar
com momentos de dificuldade, momentos de perdas e encontros, tensão
psicológica. Alice diz “- Eu... mal sei Sir, neste exato momento... Pelo menos sei
quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias
mudanças desde então” (CARROLL, 2009, p. 55)
Para criar, não há fórmula exata. Não há certo ou errado. O estilista escolhe
quais caminhos seguir e conhece seus obstáculos, porém tem em mente que há um
tempo rígido para apresentar sua coleção, que deve ser-se obedecido. Uma vez que
o calendário da moda está baseado em uma nova coleção a cada semestre:
Primavera-Verão e Outono-Inverno
Segundo a autora Cecília Almeida Salles (1998), estão inseridos no processo
criativo, dentre outros: Olhar, a percepção, memória, tempo e lugar. O estilista
começa a mapear os passos, e, assim torna-se sensível ao movimento de
transformação das coisas que nos cercam como agem os cartógrafos. Esses
elementos fazem parte da construção do processo de criação de um estilista de
modo que formam uma rede em cadeias para iniciar tal processo
Para os cartógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa,
representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e
se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da
paisagem [...] A cartografia nesse caso, acompanha e se faz ao
mesmo tempo em que o desmanchamento de certos mundos – sua
perda de sentido- e a formação de outros: mundos que se criam para
expressar afetos contemporâneos em relação aos quais os universos
vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1989, p. 15-16 apud
NAKAO, 2005, p.45)
É possível criar uma costura de fragmentos entre o mundo real dos estilistas e
o mundo imaginário de Alice, pois será baseada em alguns estilistas que possuem
um
processo
criativo
sem
linearidade
baseado
em
muitas
pesquisas
e
experimentações, assim como, Ronaldo Fraga, Jum Nakao e Hussein Chalayan. A
costura de fragmentos envolve ideias acerca do processo criativo dos estilistas
citados em comparação com as falas de Alice.
Para o estilista se aventurar no desconhecido assim como Alice, é
necessário ressaltar alguns pontos do enredo fantástico criado por Lewis Carroll.
Alice é uma menina que segue sua curiosidade e acaba se perdendo em seu
16
imaginário, com criaturas surreais, e toda trama tem inicio a partir do momento em
que ela cai na toca do coelho e adentra a pequena porta. Ali, Alice aumenta e
diminui de tamanho muitas vezes durante o trajeto. “-Que sensação estranha. Devo
estar encolhendo como um telescópio”, fala a personagem Alice.
Assim como Alice, os estilistas se expressam por meio da criatividade, o que
faz com que seus trabalhos sejam subjetivos e singulares. Para Chalayan “A moda é
um artesanato, um know-how técnico e não, em nossa opinião, uma forma de arte.
Cada mundo partilha uma expressão por meio da criatividade, embora seja por
muitos diferentes meios.” (LOVINSKI, 2010, p. 171)
Sendo assim, no primeiro momento, a criação ocorre em um espaço, o estilista
redescobre o mundo com um olhar de viajante. Em um segundo momento, a criação
acontece no interior, onde o estilista reflete suas ideias e cria seus próprios
caminhos. Durante o trajeto é possível “localizar-se por meio de mapas imaginários”
(SONTAG, 1986, p. 87 apud NAKAO, 2005, p 47)
A história avança não de modo frontal como um rio, mas por desvios
que decorrem de inovações ou de criações internas, de
acontecimentos ou acidentes externos [...] Toda evolução é fruto do
desvio bem-sucedido cujo desenvolvimento transforma o sistema
onde nasceu [...] não há evolução que não seja desorganizadora/
reorganizadora em seu processo de transformação ou de
metamorfose.” (MORIN, 2003 apud NAKAO, 2005, p. 192)
Verifica-se, então, que muitos obstáculos se fazem presente no processo
criativo (processo inacabado), o caminho é em zigue-zague e o estilista precisa
aprender a lidar com isso tendo em mente que sua obra está em constante
movimento e metamorfose. Alice, no enredo de Carroll, experimenta dois lados de
um cogumelo, e isso faz com que ela esteja em constate mudança, uma vez que um
lado a faz crescer e o outro a faz diminuir. O enredo de Alice no País das Maravilhas
vai se metamorfoseando com entradas e saídas dos personagens, em uma colagem
de acontecimentos. Os episódios seguem de forma inacabada dando abertura a um
ziguezague. Alice possui seus momentos de não linearidade também:
Como parecia não haver nenhuma possibilidade de erguer as mãos
até a cabeça, tentou abaixar a cabeça até elas, ficando maravilhada
ao descobrir que seu pescoço podia se curvar facilmente em
qualquer direção, como uma cobra. Acabara de conseguir curva-lo
num gracioso zigue-zague. (CARROLL, 2009, p. 63)
17
O estilista atravessa inúmeros obstáculos relacionados ao processo criativo.
Haverá momentos que será se perder e se encontrar, como Alice ao levar a mão na
cabeça e descobrir outras direções. O estilista segue um caminho de incertezas
“Como todas essas mudanças desorientam! Nunca sei ao certo o que vou ser de um
minuto para outro!” (CARROLL, 2009, p. 65)
O caminho para a meta parece caótico e interminável a principio, e
só gradativamente aumentam os sinais de que ele está levando a
algum lugar. O caminho não é reto e parece desenrolar-se em
círculos. Um conhecimento mais precisa provou que ele se estende
em espirais: os motivos do sonho voltam sempre, depois de certos
intervalos, para formas definidas, cuja característica é definir um
centro (JUNG, 1995 apud NAKAO, 2005 p.52)
O livro “Alice no País das Maravilhas” de Carroll possui um enredo
improvisado, é constituído de colagens de fragmentos que não apresentam ordem
cronológica. A história faz parte de um processo inacabado onde tudo acontece ao
mesmo tempo.
Charles Lutwidge Dodgson,assim mais conhecido por seu pseudônimo Lewis
Carroll, nasceu em Daresbury no dia 27 de janeiro de 1832.Foi um romancista,poeta
e matemático britânico. Lecionava matemática no Christ College em Oxford. Lewis é
mundialmente famoso por ser o autor do clássico livro Alice no País das Maravilhas.
Faleceu em Guildford (Inglaterra) no dia 14 de janeiro de 1898. Suas histórias foram
inspiração, inclusive, para a música "I Am the Walrus", dos Beatles, música que trata
de personagens e elementos característicos das obras literárias de Lewis e uma
animação infantil da Walt Disney.(Ver ilustração1)
Ilustração 1 – Alice no País das Maravilhas de Walt Disney
Fonte: <carloscostajr.blogspot.com>
18
A história relata as aventuras de uma menina chamada Alice que cai na toca
de um coelho e segue suas aventuras em um lugar fantástico, com personagens que
são frutos de sua imaginação. O livro é repleto de alusões satíricas aos amigos e
conhecidos de Lewis Carroll e também à objetos de seu cotidiano.
A escritura fragmentária, organizada em torno de ideias, palavras,
atadas entre si por um elo de sutil afinidade, é um buquê de formas
que não forjam nem um destino textual, sequer um destino subjetivo.
Ao contrario, incorpora sem culpa a ‘doida poligrafia’ de uma
caderneta de apontamentos solta em um campo (PRECIOSA, 2010,
p.24)
Porém é necessário compreender o Tempo e o Espaço de criação para dar
início ao processo criativo. Sabe-se que o estilista está inserido na rede de
informações e mix de cultura que a globalização nos traz. Seus pensamentos se
formam a partir dessa rede de conexões, o que possibilita um intercâmbio de ideias,
levando-o a produzir os documentos de processo da obra a se formar.
Era hora de buscar novos ares, de ir além do hermético mundo da
moda, respirar, conversar com os amigos, ver filmes em casa, ir ao
cinema, ler livros, folhear revistas, visitar exposições, conhecer
pessoas, estar sensível e atento, reaprender a se surpreender com o
mundo, a se perder pelos mapas antigos que confinam e encontrar
novos sentidos (NAKAO, 2005, p.11).
O estilista passa a criar um espaço para desenvolver seu processo, podendo
ser seu atelier de criação. Nesse espaço, ele tem total liberdade de armazenar o que
lhe confere curiosidade, memórias, pesquisas e outros pontos. É um mundo
particular do estilista.
Ela estava bem rente a ele, mas quando dobrou a esquina não havia
sinal do coelho Branco: Viu-se num salão comprido e baixo,
iluminado por uma fileira de lâmpadas penduradas no teto. Havia
portas ao redor do salão inteiro, mas estavam todas trancadas;
depois de percorrer todo um lado e voltar pelo outro, experimentando
cada porta, caminhou desolada até o meio, pensando como haveria
de sair dali. (CARROLL, 2009, p. 17)
O atelier é um lugar em que acontece normalmente a criação (Ver ilustração 2),
como um salão da história de Alice comprido e baixo onde o estilista armazena
coisas que lhe chamam atenção, é o local para experimentação. Nesse salão o
estilista busca uma saída, respostas para os seus projetos. O criador de moda
aproveita este momento para expressar suas ideias responsáveis por formarem uma
rede de fragmentos que constituem o todo. A turbulência de informações e culturas
19
endossa a obra do estilista de modo que tudo aquilo que foi coletado passará a fazer
parte de algo único.
Ilustração 2 – Estilista Paul Smith em seu atelier
Fonte: <refletindomoda.com >
Segundo Lovinski (2010) o estilista Hussein Chalayan, em suas coleções vai
em busca de temas que lhe agradam, aqueles que lhe despertem grande interesse,
pois, assim estará disposto a encontrar soluções para os problemas que surgirão
durante a pesquisa. O tempo e o espaço possuem papel fundamental em seus
desfiles.
O estilista geralmente examina ideias de representações culturais,
identidade pessoal e autoconhecimento por meio do vestuário,
conforme ele se relaciona com o tempo e o espaço. Sua infância e
herança cultural possuem grande participação em suas analises.
(LOVINSKI, 2010, p.18)
Assim, estilista entra no seu mundo particular e para isso está disposto a
enfrentar os obstáculos e o tempo rígido que o calendário semestral da moda pede.
Ele passa a refletir acerca daquilo que o cerca, assim como fez Alice ao ser
impulsionada por sua curiosidade:
20
No instante seguinte, lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele,
sem nem pensar de que jeito conseguiria sair depois. Por um trecho,
a toca do coelho seguia na horizontal, como um túnel, depois se
afundava de repente, tão de repente que Alice não teve um segundo
para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito
fundo. (CARROLL, 2009, p.14)
É o momento no qual o estilista começa a buscar respostas e soluções para
seus desafios e suas pesquisas passam a conduzir relações trazidas de fora, outras
influências para ampliar seu repertório criativo através da diversidade cultural, esta é
a base para a construção da costura em zigue-zague realizada pelo estilista.
O artista observa o mundo e recolhe aquilo, que por algum motivo o
interessa. Trata-se de um percurso epistemológico de coleta: O
artista recolhe aquilo que de alguma maneira toca sua sensibilidade
e porque quer conhecer. Às vezes, os próprios objetos, livros, jornais
ou imagens que pertencem à rua são coletados e preservados.
(SALLES, 2006, p.51)
Este processo serve como um armazenamento a ser explorado pelo estilista,
assim como uma “memória para obras” (SALLES,2006). Tudo faz parte de um
pensamento em etapa de construção por uma rede de conexões que o estilista vai
desenvolvendo. Chalayan (2010) afirma: “Eu realmente acho que sou alguém de
ideias. As pessoas frequentemente não percebem que uma ideia qualquer que seja
tem seu valor. Há algo a ser considerado em cada ideia dada, não importa de onde
venha.” (LOVINSKI, 2010, p. 183)
A mente do estilista também pode ser considerada como seu Espaço de
criação, uma vez que o armazenamento de ideias revela seus gestos, seus registros
durante seu trajeto e assim seus projetos são moldados a sua maneira. Cada
estilista desenvolve seu próprio espaço e decide o que deve ou não conter nesse
local. Tudo faz parte de uma cadeia de experimentos. Alice diz: ”-Bem! Depois de
uma queda desta, não vou me importar nada de levar um trambolhão na escada!”
Em primeiro momento Alice se faz estrangeira àquele local pois nunca havia estado
ali antes.
A constituição do espaço, que envolve uma organização de natureza
estritamente pessoal, mostra-se como índices da constituição da
subjetividade desse artista ao longo do processo de criação. O
espaço se amolda a sua vontade e em função das obras em
construção. A forma como cada um se apropria de seu espaço fala
de sua obra em construção e do próprio sujeito. (SALLES, 2006, p.
54)
21
O que envolve este espaço está associado à necessidade do estilista, ele
decide com quais “ferramentas” deseja trabalhar naquele momento. O criador de
moda institui suas próprias condições para que tal espaço seja propício a sua
criação, tendo em mente que suas ideias estão em constante movimento, tudo está
sempre sujeito a mudanças e assim como suas ideias, o seu espaço também muda.
O estilista estará sujeito a um “caos” de pensamentos acumulados, igualmente
como ocorre com Alice que, após mudar de tamanho diversas vezes reflete: “-Oh!
Meus pobres pezinhos, quem será que vai calçar meias e sapatos em vocês agora,
queridos? [...] Vou estar longe demais para me incomodar com vocês [...] Mas
preciso ser gentil com eles, ou quem sabe não vão andar no rumo que quero!”
(CARROLL, 1864, p. 23)
As caminhadas e as viagens são palco de muitas tentativas de
obra, muitas vezes, não registradas: amadurecimento de ideias,
encontros, rejeições etc. Registros posteriores falam, em alguns
casos, da relevância de alguns objetos, imagens ou ideias
apropriadas nesses percursos. Essas coletas mostram-se mais tarde
responsáveis por jogos com a imaginação criadora. (SALLES, 2006,
p.57)
Com olhar de viajante, o estilista se faz estrangeiro a tudo que o cerca e
redescobre novos valores. É o momento de fazer novas viagens através do olhar. A
criação não acontece “do nada”, e sim por meio de pesquisas realizadas pelo
estilista, uma vez que o mesmo possui total liberdade em criar, obedecendo apenas
o tempo. Sua inspiração surge, portanto, a partir da combinação de novas emoções
produzidas pelo olhar do criador no rumo escolhido por ele.
Como diria Proust, uma verdadeira viagem de descobrimento
pressupõe o encontro com um novo olhar. Nisso Ronaldo fraga é
expert. Liquida estereótipos e traduz as situações de maneira que
passem a nos pertencer. Aponta uma infinidade de conexões,
jogando os padrões às favas e regendo-nos por critérios que nos
forçam a avançar. (GARCIA, 2007, p.84)
Através de seu olhar perceptivo, o estilista vai deixando documentos, seus
registros criativos. Ele se apropria do externo e através de seu olhar curioso,
transforma e inova algo já existente, sob um novo ponto de vista. O estilista está
sempre ligado à criatividade. Assim como Alice com toda sua curiosidade “Abriu a
porta e descobriu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um
22
buraco de rato: ajoelhou-se e avistou do outro lado do buraco, o jardim mais
encantador que já se viu.” (CARROLL, 2009, p. 18)
Esse é o momento no qual o estilista começa a passar da realidade externa ao
mundo imaginário, uma vez que ele precisa manter esse mundo sempre alimentado
por suas pesquisas. A sua percepção é o que move sua sensibilidade e mantém
sempre constante seu desejo de novas emoções. “De vez em quando, a vida nos dá
uma visão momentânea de algo que quebra a ordem da realidade” (CASARES,
1988 apud SALLES, 1998, p.96)
O que alimenta essa etapa do processo são as emoções, que surgem de
qualquer lugar e cabe ao estilista captar e armazenar para seu repertório criativo. A
sensibilidade da percepção que faz com que este processo esteja em constante
movimento, um processo inacabado no qual o que é apenas uma possibilidade vai
passar a se concretizar.
Sendo assim, o olhar está ligado à percepção, memória e tempo, os
pensamentos do estilista estão ligados a suas lembranças e vão estar inseridos no
seu processo criativo. Marc Tadié (1999) relata a memória de modo que “não há
sensação isolada ou separada – é um estado que começa continuando o anterior e
termina se perdendo nos posteriores”. Logo, a memória também é tempo.
É disso que falávamos, quando ressaltamos a coleta sensível
que o artista faz ao longo do processo, recolhendo aquilo que, sob
algum aspecto geral, o atrai. São seus modos de se apropriar do
mundo. Essa sensação é intensa, mas fugaz; e, mais que isso, é,
muitas vezes, responsável pela construção de imagens geradoras de
descoberta, que não se limitam ao campo da visualidade. (SALLES,
2006, p.68)
A percepção faz parte da atividade da mente ao criar e faz-se assim um filtro
no qual vai se processando o mundo externo para formar uma nova realidade
através do olhar do estilista, gerando novos valores e significados para sua obra.
Salles (2006, p.90) descreve a percepção como “a construção de mundos mágicos
decorrentes de estimulação interna e externa recebidas por meio de lentes
originais.”.
Consequentemente, os elementos colhidos no mundo real passam a ter a
magia de um mundo imaginário do estilista, que ainda com olhar de viajante, vai
23
lançando novos significados. O olhar do estilista interpreta determinado objeto sob
uma nova perspectiva
O estilista é como Alice e seu “País das Maravilhas” e dentro de seu sonho
tudo será conforme o seu desejo. Sua coleção trará significado, conceito em cada
peça. “Ora, a melhor maneira de explicar é fazer” (CARROLL, 2009, p. 35). Ele
passa a usar “lentes” para fazer o real virar imaginário numa coleção.
Discutir a intervenção do acaso no ato criador vai além dos limites da
ingênua constatação da entrada, de forma inesperada, de um
elemento externo ao processo. Por um lado, o artista, envolvido no
clima da produção de uma obra, passa a acreditar que o mundo está
voltado para sua necessidade naquele momento; Assim o olhar do
artista transforma tudo para seu interesse. (SALLES, 1998, p 34-35)
Cada estilista possui uma forma de armazenar em forma de registros, ou,
documentos, o que provoca emoção. Diários ou cadernos de anotações (Ver
ilustração 3) são exemplos desse espaço onde o estilista vai armazenar tais
informações que servem para auxiliar o processo de construção da obra e vão
nutrindo o criador.
Ilustração 3 – Caderno de esboços
Fonte: <objetosdedesejo.com>
Os registros que o criador de moda vai produzindo, servem como documentos
com os quais vão se arquivando os momentos da percepção que o mesmo tem
durante seu trajeto, essa percepção traz à tona a maneira que o criador vê o mundo,
as coisas que o cercam. A percepção é marcada pela subjetividade do olhar.
24
Por subjetividade deve-se entender ‘ o perfil de um modo de ser – de
pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc., em determinada época’
(ROLNIK, 1989). São também variáveis componentes da
subjetividade outras dobras que se fazem no tempo e no espaço:
Outros verbos, tais como se comunicar, aprender, trabalhar, adoecer,
curar, aprisionar, liberar, etc. (MESQUITA, 2010, p.14)
Imagens, recortes, cartas, reflexões e outros, são o que compõem esse
repertório auxiliador de criatividade, e cada estilista decide o que deve conter ou não
nesses registros; de que forma ele deseja trabalhar acerca de sua própria fonte de
ideias. Ele coleta e acumula tudo aquilo que lhe parece necessário, são registros
que vão ajudar na sua criação mais tarde. (Ver Ilustração 4)
O artista tem maneiras singulares de se aproximar do mundo à sua
volta. Os cadernos de anotação guardam, muitas vezes, as seleções
feitas pela percepção, ou seja, o modo como o artista apreende e se
apropria da realidade que o envolve. (SALLES, 1998, p.123)
A percepção, então, é o momento no qual o estilista vai conhecendo o mundo
ao seu redor é o que possibilita novas sensações e conhecimento de novas
informações. A percepção, muitas vezes se dá de forma involuntária, porém a
memória do criador interfere no modo de olhar essas novas sensações.
Desse modo, a memória possui um papel fundamental na criação. “Talvez o
poder da memória seja o responsável pelo crescimento do poder da imaginação”
(KUROSAWA, 1990, p.62 apud SALLES, 1998, p. 100). Sendo assim, o ato criador
da memória é a imaginação, portanto ligada ao devaneio. Para Mário Quintana
(1986) “a imaginação é uma memória que enlouqueceu”.
Ilustração 4 – Ronaldo Fraga e seu livro “Caderno de roupas, memórias e
croquis”.
Fonte: <coconutavenue.wordpress.com>
25
Assim como Alice quando se depara com o Gato de Cheshire da história e
chega à conclusão do ápice de sua loucura. Disse o gato “-Somos todos loucos aqui.
Eu sou louco. Você é louca” e Alice pergunta “-E como sabe que eu sou louca?”. Já
o gato por sua vez conclui “só pode ser, ou não teria vindo parar aqui” (CARROLL,
2009, p.77)
Memória está ligada às lembranças que o criador de moda possui. Sua
percepção trabalha a sensibilidade e a intensidade da emoção que foi sentida pelo
estilista e esta intensidade, por sua vez faz com que fique guardada na memória. As
percepções estão relacionadas com as memórias passadas.
Os registros armazenados, os documentos do processo e as lembranças do
olhar do estilista funcionam como uma memória que é sempre reativada no
momento da coleta de novas informações e experiências. “Memória e percepção,
além de terem emoções como elemento comum, devem ser ambas observadas em
sua dinamicidade.” (SALLES, 2006, p.69)
Como exemplo, podemos tomar por base o estilista Ronaldo Fraga. Ao criar
uma coleção, ele considera muito fatos de sua vida, como memórias, fatos do
cotidiano que presencia acontecimentos felizes e tristes de etapas da sua vida em
qualquer idade.
Ele não é um estilista pós-moderno que enxerga o mundo como um
espelho fragmentado onde nada faz sentido, sem nenhuma conexão
com o passado nem a emoção. Ronaldo Fraga não cria roupas para
pessoas sem cenário, sem lembranças, sem humor e sem história.
Sua força criativa é movida por imagens que vão se transformar em
profissões de fé, protestos, festas, celebrações, sons, coreografias e.
Roupas. (KALIL, 2007, p.7)
Vale ressaltar que a memória não tem o objetivo de fixar as lembranças, uma
vez que o estilista está sempre descobrindo e redescobrindo o mundo ao seu redor
através de seu ponto de vista e, portanto, a memória está em constante mudança.
Cecília Almeida Salles (2006) afirma que “como memória é ação, ou seja,
essencialmente plástica, as lembranças são reconstruções: redes de associações,
responsáveis pelas lembranças, sofrem modificações ao longo da vida.”.
Deve-se ter em mente que o processo criativo é um processo inacabado que
está em constante mudança, o estilista também está inserido no contexto da
26
mudança. Suas emoções se modificam com o passar do tempo e essa mudança
coloca a memória e a percepção em constante movimento. “Não há percepção que
não seja impregnada de lembranças, não há lembranças que não sejam modificadas
por novas impressões.” (SALLES, 2006, p.70).
A memória está também vinculada à imaginação, o mundo de ficção do
estilista. Toda lembrança faz parte do contexto imaginário, porém não há
possibilidade de haver a imaginação sem o auxílio da lembrança, juntas inseridas no
mesmo contexto.
[...] Toda lembrança é, em parte, imaginária, mas não pode haver
imaginação sem lembrança. A imaginação está vinculada a memória
e esta é o trampolim da imaginação. Imaginar é conhecer aquilo que
ainda não é a partir daquilo que foi daquilo que percebemos e
daquilo que vivemos. (YVES; TADIÉ, 1999, p. 316 apud SALLES,
2006, p.71).
A imaginação está presente nas experimentações que o estilista realiza, de
modo que essa imaginação se inclui no percurso criativo. Há obras que nascem a
partir da imaginação e lá permanecem. Todo esse universo mágico que é criado
pelo estilista é produzido a partir de suas experiências. “Imaginação é o ato criador
da memória” (SALLES, 2006, p. 73)
Era muito mais agradável La em casa. Lá não se ficava sempre
crescendo e diminuindo, e recebendo ordens aqui e acolá de
camundongos e coelhos. Chego quase a desejar não ter crescido por
aquela toca de coelho... No entanto... No entanto é bastante
interessante este tipo de vida! Realmente me pergunto o que pode
ter acontecido comigo! Quando lia contos de fadas, eu imaginava
que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou eu no meio
de um (CARROLL, 2009, p.46)
No meio dessa explosão de ideias e experimentações dentro desse mundo
imaginário, o estilista é levado a desacomodar e assim deixa em evidência suas
emoções e estas, consequentemente, estão inseridas no contexto de marcas
psicológicas que o estilista carrega. Essas marcas compõem um grupo de
sentimentos adquiridos no trajeto e na medida em que atuam um sobre o outro,
tornam o processo criativo possível. Assim como Alice, o estilista chega a ficar
confuso com tantas transformações já sofridas levando até a uma crise de
identidade. Passando a se encontrar ao se perder.
Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam
exatamente como de costume. Será que fui trocada durante a noite?
27
Deixe-me pensar: Eu era a mesma quando me levantei esta manhã?
Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho
diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: Afinal de
contas quem sou eu? Ah este é o grande enigma! (CARROLL, 2009,
p. 25)
No meio de seu processo criativo, o estilista ao encontrar sua inspiração, se
fecha em seu íntimo. É o momento de deixar as ideias correrem. Fechar-se no intimo
não significa renunciar o mundo, mas ele precisa de um tempo para fazer tudo
aquilo que está no inconsciente se tornar real. O estilista assume papel de autor e
ator de sua própria história estando inserindo em sua criação seu olhar perceptivo.
O isolamento possibilita ao estilista compreender o que realmente ele busca
na obra, o processo como um todo é o que gera seu produto final. O relacionamento
mantém o procedimento da obra possível. O criador precisa se fazer presente em
um contexto de desejos opostos: estar solitário e estar em contato com pessoas.
O artista sabe, por um lado, que ‘o homem solitário pode preparar
muitas coisas futuras, pois suas mãos erram menos’, talvez porque
seja fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas
explosões e suas façanhas. No entanto, ele aprende também que
solidão não significa recusa ao mundo. A artista precisa de sua torre
de observação. (SALLES, 1998, p. 81)
O prazer e o desprazer também fazem parte do contexto das marcas
psicológicas que o criador de moda carrega. É o momento em que ele encontra ao
longo de todo seu trajeto, enigmas, preocupações, desesperos e inúmeros
obstáculos que mantém a vitalidade da obra.
Esses elementos se fazem presente devido a necessidade do estilista buscar a
perfeição e a obra vai se formando em meio a um turbilhão de sensações.Todas as
dificuldades que ele deve enfrentar, geram angustia e essa angustia leva à criação.
O prazer que leva o estilista a continuar criando vai além do armazenamento de
energia que o mesmo carrega e o anseio de ver seu projeto bem encaminhado. O
processo criativo oferece ao criador um mundo de encantamentos. O estado de
tensão e encantamento levam o estilista a se perder inúmeras vezes e continuar
suas experimentações, e Alice conversa consigo mesma: “-e se no fim das contas
ela estiver freneticamente louca? Chego quase a desejar ter ido visitar o chapeleiro.”
(CARROLL, 2009, p. 79)
28
Tanto os momentos de prazer como os de desprazer podem proporcionar
seguimento à obra e está ligado a uma rede de pensamentos e relações, tais como:
cenas, filmes assistidos, emoções adquiridas que fazem o estilista aderir o acaso a
sua obra.
A coleção vai se desenvolvendo a partir dessa rede em processo, e é o estilista
o responsável por atuar em cada meio. Ele é o responsável por atuar em cada meio
e suas ações abrem caminhos até chegar ao produto final.
A pesquisa é o que vai conduzir o estilista no desenvolvimento da criação,
permitindo o desenvolvimento do tema até chegar ao real conceito da criação. Há
vários caminhos e possibilidades, e durante o trajeto, o projeto vai recebendo forma,
e refinando-se até de fato ter um foco principal, uma vez que o processo criativo não
possui linearidade.
Primeiro traçou uma pista de corrida, uma espécie de circulo ( a
forma exata não tem importância, ele disse) e depois todo o grupo foi
espalhado pela pista aqui e ali. Não houve “um, dois, três e já:
começaram a correr quando bem entenderam e pararam também
quando bem entenderam, de modo que não foi fácil saber quando a
corrida havia terminado (CARROLL, 2009, p. 36)
A criação é um processo instável, está sempre se renovando, sofrendo
modificações, uma corrida interminável, ou no mínimo difícil de saber ao certo o fim.
Isto ocorre devido os pensamentos do criador. Suas ideias geram uma rede de
informações que vão se acumulando, o que acaba configurando seu projeto.
Todo projeto tem um conceito. Muitas vezes, este é passado em
forma de briefing, mas, em moda, isso quase nunca acontece. Como
o sistema de moda pede renovação (usualmente adotada a cada
nova estação do ano), o designer necessita de um caminho para
criar e desenvolver seus produtos, e a este caminho damos o nome
de conceito de criação. Ele, na verdade, é a ideia que pautará,
juntamente com a definição do publico alvo/usuários,toda criação e o
desenvolvimento de produtos.(FARIA, 2012, p.51)
O conceito da coleção é definido a partir dos processos de classificação e
organização dos pensamentos que tornam possível o processo criativo para a
obtenção de resultados. Após coletar as informações necessárias para gerar um
conceito, deve-se lapidar até, de fato chegar ao tema da coleção, uma vez que, os
elementos coletados servirão como guia para a construção da coleção.
29
As etapas iniciais do projeto de moda, predominantemente de
pesquisa, servem para fundamentar o processo de criação,
entrelaçar valores sociais, culturais, tecnológicos e artísticos, a fim de
definir os princípios que irão orientar e reger as formas e os volumes
da coleção de moda. (FARIA, 2012, p. 15)
A criação é um processo que acontece em meio às ações do estilista e,
muitas vezes está ligada ao acaso. O acaso é gerado através da tendência e está
inserido nos momentos de desvio que o estilista estabelece, e, assim seu projeto se
encontra em constante mudança. Salles (1998, p. 33-34) afirma que “o artista acolhe
o acaso [...]. Depois desse acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo
no instante em que foi interrompido”. Alice ao encontrar a lagarta azul, questiona
sobre a metamorfose do animal: “-Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso, mas
quando tiver de virar uma crisálida... Vai acontecer um dia, sabe... E mais tarde uma
borboleta, diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?” (CARROLL, 2009,
p. 57)
Durante o percurso criativo, aquilo que já é existente recebe novas formas
através do acaso e do próprio criador. Tudo se renova a cada dia através do olhar
subjetivo do estilista. “O novo é uma inflexão de uma forma anterior; a novidade é,
portanto, sempre uma variação do passado”(FUENTES, 1989 apud SALLES, 1998,
p. 112)
Assim como Alice, estilistas constroem seus próprios mundos. Movidos por sua
curiosidade, vão tornando possível a obra através de um processo inacabado. O
processo criativo trata de uma colagem em etapas que os criadores de moda vão
desenvolvendo a partir de suas pesquisas. “Tudo que sei é que para mim isso
parecia muito esquisito.” (CARROLL, 2009, p.57)
3. CRIAÇÃO EM PROCESSO NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele, sem nem pensar de
que jeito conseguiria sair depois. Por um trecho, a toca de coelho
seguia na horizontal. Como um túnel, depois se afundava de repente,
tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar
antes de se ver despencando num poço muito fundo.
30
Ou o poço era muito fundo, ou ela caia muito devagar, porque
enquanto caía teve tempo de sobra para olhar a sua volta e imaginar
o que iria acontecer em seguida. (CARROLL, 2009, p 14)
O processo criativo consiste em dar uma nova forma a algo, inovar,
experimentar e chegar a novas conclusões. Buscar soluções através de constantes
buscas. Tal processo é um longo percurso a ser trilhado pelo estilista e este, por sua
vez deve estar apto a refletir, perceber, e buscar inspiração através de suas
memórias para, desta forma, dar um novo sentido a algo já existente, formando o
novo.
Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo.
Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’,
de novas coerências que se estabelecem para a mente humana,
fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos
novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de
compreender, esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar,
significar. (OSTROWER, 1987, p.9)
No mundo da moda, quando se trata de processo de criação, é necessário
compreender o estilista. Antes mesmo de desfilar seu projeto final, passa por
inúmeras experimentações sempre em busca de respostas até chegar ao conceito
que será seu tema de coleção. O processo de criação é um momento de inteira
reflexão para o estilista, como para Alice “-Pois eu mesma não consigo entender,
para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador”
(CARROLL, 2009, p. 55-57)
O processo criativo é palco de uma relação densa entre o artista e os
meios por ele selecionados, que envolve resistência, flexibilidade e
domínio. Isso significa uma troca recíproca de influências. Esse
diálogo entre artista e matéria exige uma negociação que assume a
forma de obediência criadora. (SALLES, 1998, p.72)
Tal processo consiste em buscar respostas para os problemas enfrentados pelo
estilista, sendo realizado através de muitas pesquisas e combinações. O primeiro
passo é obter uma inspiração, um direcionamento para suas pesquisas para depois
colocar as outras ideias no papel.
Não podemos dizer especificamente como é o processo criador, mas
podemos dizer de coisas que ajudam o desenvolvimento do
processo. Sempre se inicia sua descrição a partir do desafio e do
incômodo, que normalmente são muito pessoais. Existem alguns
momentos, independente das fases de criação. O momento sensível,
normalmente, aciona os mecanismos de percepção, que fazem com
31
que cada indivíduo estabeleça uma relação com o mundo exterior.
(GALVAO, 1999, p.19)
A história fantástica de Alice, por exemplo, se inicia quando ela começa a se
cansar de ficar sentada ao lado de sua irmã na beira de um riacho com sua gatinha
de estimação Dinah. Por uma ou duas vezes olhou o livro sem gravuras que sua
irmã mais velha estava lendo. Então, Alice pensou consigo mesma: “-E para que
serve um livro sem gravuras nem conversas?”. (CARROLL, 2009, p.13)
A partir do incômodo de Alice é possível começar a fragmentar o universo
criativo com base nos capítulos mais importantes de Alice no País das Maravilhas,
tendo em mente que o processo criativo é um percurso contínuo, sem linearidade,
sendo assim subjetivo ao criador. A ilusão é o que mantém a obra em movimento e
gera um desejo no criador de ver o objeto pronto, uma vez que o objeto acabado
pertence ao processo inacabado (SALLES, 1998)
O processo de criação, com o auxilio da semiótica peirciana, pode
ser descrito como um movimento falível com tendências sutentado
pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e
abrindo espaço para a introdução de ideias novas.Um processo no
qual não se consegue determinar um ponto inicial nem
final.(SALLES,1978)
Tal processo opera no universo da incerteza, da mutabilidade, da imprecisão e
do inacabamento (SALLES, 1998). É um processo sem precisão e previsão
totalmente marcado por dúvidas, com muitos desejos vagos deixados pelo caminho,
esse desafio move o criador em busca da satisfação pessoal. Assim como Alice, o
estilista se aventura por um “mundo” desconhecido com vários caminhos e
incerteza, então, cabe ao criador escolher por onde deseja começar.
[...] parece que estamos seguindo uma rotina parecida com uma
estrada circular, de tal forma viciada, que, quando se pensa em lidar
com as pressões, a primeira coisa que nos ocorre é a copia, ou seja,
achar o que já está feito. Portanto, não precisamos nos dar o
trabalho de pensar. Outras vezes, percebemos a tendência de tentar
melhorar o que já existe. (GALVAO, 1999, p.19)
É necessário que, o estilista seja sensível a essas percepções, seja cultural e
seja consciente em relação ao seu inconsciente, fazendo as mais profundas
pesquisas através de suas memórias. O ato criativo acontece em primeiro momento
na mente do estilista, no âmbito da intuição. (OSTROWER, 1978)
32
No que diz respeito ao processo de criação, vale ressaltar que para criar é
preciso estar atento ao que se quer fazer e se deixar levar pela liberdade da mente.
O criador de moda embora não tenha total liberdade, pois está inserido em uma
lógica de mercado, possui certos limites como o tempo para criar, tempo para
entregar a coleção. No momento da criação o estilista cria seu próprio mundo onde
só ele tem a capacidade de permitir o que está inserido. Alice indaga: “Tenho o
direito de pensar” (CARROLL, 2009, p.107), levando em consideração que:
Criar livremente não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer
momento, em quaisquer circunstâncias e de qualquer maneira. As
delimitações são como as margens de um rio pelo qual o individuo se
aventura no desconhecido. Vemos o ser livre como uma condição
seletiva, sempre vinculada a uma intencionalidade presente, embora
talvez inconsciente e a valores individuais e sociais de um tempo
“(OSTROWER, 1978, p.64)
A criação acontece em meio à tensão. Salles (1998, p.63), “poderíamos
afirmar, em termos bastantes gerais, que a criação realiza-se na tensão entre limite
e liberdade: liberdade significa possibilidade infinita e limite está associado a
enfrentamento de leis”. As inúmeras batalhas psicológicas mantém firme o processo
de construção da obra, uma vez que as mesmas aparecem nas emoções do criador.
Todas as dificuldades geram angústia e essa leva a criação. (SALLES, 1998)
No ato criador, o estilista imprime em sua coleção, marcas de seu trajeto, suas
emoções, suas expectativas. Tais elementos funcionam como alimento para a partir
de então a criação se tornar possível. É necessário navegar e beber das águas que
cercam a ilha, uma vez que o criador tem um mundo em suas mãos.
É somente pelos limites que se chega ao ilimitado; o ilimitado é que
exige limites. A capacidade de estabelecer limites é a maior prova de
liberdade. O artista é um livre criador de limites, do cumprimento ou
da superação desses elementos. O artista é um criador de leis
infinitas (ACCIOLLY, 1977 apud SALLES, 1998, p.66)
No processo criativo, alguns estilistas, no auge de seu prazer, deixam seu
projeto fluir naturalmente. É chegada a hora em que o mesmo colocará em ordem
todos os elementos colhidos de diversas fontes e criará uma “linha”, um caminho a
seguir.
A criação pertence ao mundo do prazer e ao universo lúdico: um
mundo que se mostra um jogo sem regras. Se estas existem, são
estipuladas pelo artista, o leitor não as conhece. Jogar é sempre
estar na aventura com palavras, formas, cores, movimentos. O artista
33
vê-se diante das possibilidades lúdicas de sua matéria (SALLES,
1978, p.85)
A obra vai se desenvolvendo em meio a angústias, juntamente com prazeres
e desprazeres. Alice, após passar por tais sensações no meio de sua aventura,
reflete: “-Parece que vou ser castigada por isso agora, afogando-me nas minhas
próprias lágrimas! Vai ser uma coisa esquisita, lá isso vai! Mas está tudo tão
esquisito hoje.” (CARROLL, 2009, p. 28)
O criar só pode ser visto em sentido global, o criador precisa enxergar além
da roupa, uma vez que todo o seu processo será estampado numa roupa e em toda
coleção. É o momento em que o criador não termina sua coleção e sim dará
continuidade nas próximas coleções. O processo criativo está em constante
movimento. “Na maioria das vezes, o que amarra uma coleção a outra é a colagem
caleidoscópica de distintos elementos da cultura.” (GARCIA, 2012, p.70)
É importante o estilista saber coletar as informações e lapidar as ideias até
chegar ao seu principal objetivo dentro de uma coleção que tem data para ser
lançada. “Individualidade é coisa medida com rigor pelos críticos e compradores. E
para deixar essa fonte de criatividade sempre na ativa, o melhor caminho é passear
entre mundos. Interligar áreas afins e somar um olhar curioso sobre coisas distintas.”
(HERCHCOVITCH, 2007, p.51)
Como se estivesse em um bosque, o estilista se vê na condição de traçar seus
caminhos e decidir quais elementos utilizará para chegar a seu objetivo, levando em
consideração suas ideias que acontecem no âmbito da intuição. O estilista diante de
várias possibilidades precisa escolher apenas uma e seguir com ela até seu destino
final, tendo em mente que, aquilo que o prende é a liberdade.
Só se pode agir livremente sacrificando constantemente outras
possibilidades de liberdade; a liberdade constitui-se tanto das
escolhas que se deixa de fazer ou que não se pode fazer quanto das
escolhas que efetivamente acontecem. O artista é incitado a vencer
os limites estabelecidos por ele mesmo ou por fatores externos,
como data de entrega, orçamento ou delimitação de espaço.
(SALLES, 1998, p.64)
Então, certas etapas fundamentais vão se fazendo presente tais como
Marcelo Galvão (1999) diz: “Familiarização com o problema, questionamento do
34
problema, tempo de digestão, bolação ou sacação e transpiração, teste das ideias,
desenvolvimento e concretização.”
O processo de criação possui inúmeras trilhas a serem seguidas, uma vez que
é o estilista quem decide quais seguir. Caminhos indefinidos que se bifurcam e se
entrelaçam, assim como Alice no meio do bosque encontra o Gato de Cheshire e
pergunta:
-“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”
- “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
- “Não me importa muito para onde”, disse Alice.
- “Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.
- “Contanto que chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação.
- “Oh, isso certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante.”
(CARROLL, 2009, p. 76-77)
Para um estilista começar a criar é necessário obter um ponto de partida, isso
significa que, ele deve escolher por onde quer começar seu trabalho. O processo de
criação pode variar de estilista para estilista, mas as etapas que o mesmo vivencia
são, em grande parte, as mesmas. O momento inicial é para refletir sobre o mundo
juntamente com sua angústia e inquietude. “Naquele instante mergulhei nessa
viagem, totalmente desvencilhado dos limites, das regras e convenções. Lá
encontrei uma ideia bruta que emergiu como a síntese pura da metáfora necessária:
uma coleção de papel” (NAKAO, 2005, p. 12). Fala de Jum Nakao sobre o momento
inicial do desenvolvimento da sua última coleção A Costura do Invisível.
A reflexão dentro do processo criativo é fundamental. É o momento em que o
estilista se conhece melhor, redescobre o seu cotidiano, e se perde num mundo
particular, encontrando sentidos que até o momento estavam ocultos. O momento
da reflexão é necessário para perder-se sem medo, mergulhar fundo, mesmo
estando diante de inúmeras incertezas. O estilista é capaz de criar o seu próprio
mapa em meio a um bosque onde não existem trilhas bem definidas, todos poderiam
traçar seu próprio caminho, optando, a cada novo personagem, por uma nova
direção. (NAKAO, 2005, p. 13).
O processo de criação é autocatalisador, e cada vez mais as
transformações se processam de forma mais acelerada. A produção
do conhecimento altera as dimensões dos problemas bem como
coloca novos recursos a disposição da sociedade. A criatividade
passa a se constituir o instrumento mais poderoso do homem para se
adaptar ativamente as transformações que se operam no meio
35
ambiente,
seja
em
termos
científicos.(GALVÃO,1999, p.5 )
sociais,
tecnológicos
ou
Levando em consideração todo o processo criativo de um estilista juntamente
com todos os seus obstáculos a serem enfrentados, é possível embarcar em uma
“fantástica aventura” pela toca do coelho, fazendo alusão ao fantástico mundo de
Alice no País das Maravilhas. Obra fragmentada com recortes de histórias inseridas
uma dentro da outra.
Redescobrimos a fundamental participação ativa do espectador na
obra, o uso preciso do vago, o principio de que o que à primeira vista
parece caótico e interminável gradativamente pode dar sinais de que
conduz a algum lugar, que é preciso repetir, repetir, repetir, repetir
até ficar diferente, que é bom saber incorporar o acaso à criação
artística.” (NAKAO, 2005, p.19)
No primeiro capítulo do livro de Lewis Carroll, denominado “Pela toca do
Coelho”, a sequência de aventuras se inicia quando Alice se encontra com sua irmã
que lhe conta uma história de um livro e aos poucos ela vai se sentindo cansada. No
auge do seu cansaço Alice vê um coelho branco (Ver ilustração 5), e segue-o até
cair na sua toca. “Ardendo de curiosidade, correu pela campina atrás dele, ainda a
tempo de vê-lo se meter a toda a pressa numa grande toca de coelho debaixo da
cerca” (CARROLL, 2009, p. 14)
Ilustração 5 – Ilustração de John Tenniel do Coelho Branco
Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br>
36
Durante a queda, Alice percebe quão profundo é aquele local. “-Bem! Depois
de uma queda desta, não vou me importar nada de levar um trambolhão na escada!
Como vão me achar corajosa lá em casa! Ora, eu não diria nadinha, mesmo que
caísse do topo da casa!” (CARROLL, 2009, p. 15)
Alice precisa pegar a pequena chave para abrir a pequena porta (Ver
ilustração 6) que leva ao jardim secreto, bebe um líquido e come um bolo e, assim,
aumenta e diminui de tamanho. “Pois vejam bem, havia acontecido tanta coisa
esquisita ultimamente que Alice tinha começado a pensar que raríssimas coisas
eram realmente impossíveis” (CARROLL, 2009, p. 18)
Ilustração 6 – Alice abrindo a pequena porta
Fonte - <eduardolamas.blogspot.com.br>
A não linearidade, os fragmentos, a combinação, registros, percepção,
transformação, memória, tensão, angústias, pensamentos e imaginação estão
inseridos no contexto criativo de modo a formar uma rede de conexões e um
processo contínuo. É importante não se fechar apenas para o mundo imaginário
Se a realidade é uma grande ilusão, que vemos emprestados da
cultura, podemos construir o nosso mundo e emprestar os nossos
olhos para a cultura, desde que não fiquemos só na fantasia ou na
negação dos fatos. Não negar a realidade, mas também não deixa
de viver nela para somente viver no mundo do sonho
acordado(GALVÃO, 1999, p. 06)
O estilista constrói um mundo fictício a partir da coleta de ideias ao seu redor,
uma vez que nesse “mundo próprio” a realidade vai ser fantasiada a partir do olhar
37
do estilista. Vale ressaltar que a criação não depende apenas da ilusão. Os fatos
constroem esse mundo e a realidade é o que forma o “mundo imaginário”.
2.1. A Pesquisa
Para criar é necessário pesquisar. O estilista sai em busca de novos
conhecimentos e ideias para seu repertório criativo. A necessidade de obtenção de
repertório leva o estilista a estar sempre em busca de fatos novos. A coleção será
baseada nessas pesquisas.
Hemingway é sempre lembrado, por muitos criadores, por sua
constatação de que um conto é como um iceberg que deve ser
sustentado, na parte que não se vê, pelo estudo e reflexão sobre
material reunido e não utilizado diretamente na obra. (SALLES, 1998,
p.126)
Assim como o iceberg, as fontes de pesquisa de um estilista (livros, revistas,
jornais e outros) são também uma forma de registro acerca do estilista como pessoa
e revelam aquilo pelo qual ele desenvolve certo interesse e como tudo aquilo que foi
coletado vai ser transformado através de um novo significado atribuído por ele. O
estilista vai à busca de daquilo que lhe chama atenção.
Para inventar eu necessito sempre partir da realidade concreta.
É por isso que geralmente em documento, visito os lugares onde
ocorrem as histórias, mas nunca com a ideia ou simplesmente
reproduzir uma realidade, mesmo porque sei que isso não é possível,
que ainda que quisesse fazê-lo não daria resultado – resultaria em
algo muito diferente. (LLOSA, 1986, p.57-8 apud SALLES, 1998,
p.126-7).
A pesquisa pode ser entendida como a constante busca por referências para
se criar. Nela estão inseridos valores sociais, culturais contemporâneos que o
estilista passa a observar com seu olhar perceptivo durante a trajetória do processo
criativo. É o momento no qual o estilista olha para tudo aquilo que deve focar em sua
coleção. Sendo assim, a pesquisa é a acumulação e a organização de ideias para
gerar a maturação e a fundamentação de um conceito.
Ao se realizar uma pesquisa durante o desenvolvimento de um
produto de moda, é necessário verificar a relevância das fontes
pesquisadas, e somente as referencias realmente utilizadas devem
ser inseridas e apresentadas no Memorial Descritivo ou Relatório de
Projeto. A fundamentação teórica deve sempre ser baseada em
autores e centros que sejam considerados uma referência no
assunto; (p.50)
38
Na pesquisa de moda é necessário explorar diversas referências a fim de
definir o tema de estudo, aquilo que será abordado como foco principal numa
coleção através do desenvolvimento de um conceito para a criação. E como já foi
mencionado, deve-se estipular e atender o determinado público-alvo.
Assim como Alice, o estilista começa a refletir em seu íntimo e segue sua
imaginação. Ele começa então sua viagem ao interior de sua mente buscando
soluções e respostas, e é preciso adentrar cada vez mais em seu inconsciente para
conhecer seu “Jardim secreto”. É o momento em que o estilista segue sua
imaginação e sua curiosidade que o leva a novos rumos. Cai em um buraco e
começa a se aventurar no desconhecido.
O nosso inconsciente é o local onde ocorrem os fatos mais antigos,
únicos e surpreendentes. O conteúdo do inconsciente é, ao mesmo
tempo, o mais oculto e o mais familiar, o mais obscuro e o mais
limitador: Cria ansiedade e esperança. Não está limitado por um
tempo, localização ou sequencia lógica de eventos específicos, como
definido por nossa racionalidade. Sem nos darmos conta, o
inconsciente nos leva de volta aos tempos mais remotos de nossas
vidas. Os lugares mais estranhos, mais antigos, mais distantes, e, ao
mesmo tempo, mais familiares de que fala um conto de fadas,
sugerem uma viagem ao interior de nossa mente, nos domínios da
inconsciência e do inconsciente. (BETTELHEIM apud NAKAO,
2005,p.38-39)
Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição [...] Toda experiência
possível ao indivíduo também a racional, trata-se de processos essencialmente
intuitivos (OSTROWER, 1978). Criar significa buscar soluções para os problemas
que surgirão no meio do trajeto. “Ah, como gostaria de poder me fechar como um
telescópio! Acho que conseguiria, se soubesse pelo menos começar”. Diz Alice
tentando achar uma solução para passar através da pequena porta. (CARROLL,
2009, p.18)
O coelho representa a curiosidade e o tempo a se seguir. O estilista vai seguir
sua imaginação até adentrar o mais profundo “buraco” (seu inconsciente) e neste
mesmo buraco há um salão com uma pequena porta que significa que o criador
precisa se adaptar a quaisquer circunstâncias durante o percurso criativo, como a
porta é pequena Alice deve encolher para chegar ao mais lindo “Jardim Secreto”.
Cada vez mais o estilista se aprofunda em sua pesquisa que o leva aos seus
devaneios e que o faze criar.
39
A criação se dá a partir das pesquisas que o estilista realiza e assim passa a
obter conhecimento daquilo que lhe atrai ao seu redor. Aquilo que está em suas
anotações e registros é relativo à sua percepção e seleção. “A percepção é portanto,
uma possibilidade de aquisição de informações, consequentemente, de obtenção de
conhecimento.”(SALLES, p.122)
O estilista deve ir experimentado e moldando suas pesquisas do modo que lhe
agrada, sem medo de errar e, acrescentando ao seu processo criativo, no inicio tudo
acorre na sua mente. Sua ideia deve ser lapidada até se chegar ao conceito. Assim
como Alice ao realizar experimentações antes de comer o pequeno bolo, pensa: “Se me fizer crescer, posso alcançar a chave; se me fizer diminuir, posso me
esgueirar por baixo da porta; assim, de uma maneira ou de outra vou conseguir
chegar ao jardim; para mim tanto faz!” (CARROLL, 2009, p. 21)
No capítulo “A lagoa de lágrimas” Alice atinge 9 metros de altura e, portanto,
fica muito triste e chora por não conseguir passar pela porta para entrar no jardim.
Suas lágrimas bastaram para formar uma lagoa. “Pobre Alice! o máximo que
conseguiu deitada de lado foi olhar para o jardim com um olho só; chegar lá estava
mais impossível que nunca: sentou-se e começou a chorar de novo.” (CARROLL,
2009, p. 24)
Alice, em seguida, começa a se abanar por estar com calor, diminui de tamanho
novamente e acaba mergulhando na lagoa que ela mesma criou, e desse modo,
atravessa o lago na companhia de um rato e do outro lado encontra vários animais
molhados. (Ver ilustração 7)
Ilustração 7 – Alice nadando na Lagoa de Lágrimas com o rato
Fonte: <pelatocadocoelho.wordpress.com>
40
Tensões e marcas psicológicas também compõem o processo criativo, e se
inserem na etapa de Trajeto com Tendência. Nesse momento o estilista se faz
perceptivo, as tensões o perturbam o suficiente para criar um lago ao seu redor onde
ele vai ter de navegar nesse “oceano de incerteza em meio a arquipélagos de
certeza” (MORIN, 2003). Alice cansada e confusa no meio de sua lagoa diz: “Ó
camundongo, sabe como se faz para sair desta lagoa? Estou muito cansada de ficar
nadando para todo lado, ó camundongo” (CARROLL, 2009, p. 29)
2.2. Trajeto com Tendência
É a tensão entre o que se quer dizer e aquilo que se está dizendo [...]
A vagueza da tendência leva ao ambiente de imprecisão relutante. O
processo de criação dá-se na relação entre essa tendência e a
mobilidade do percurso que está, necessariamente, inserido no fluxo
da continuidade. (SALLES, 1998, p. 63)
O estilista, após estar perdido em um caos de ideias, vai passar a se encontrar
aos poucos em suas pesquisas. A lagoa representa as tensões que o criador
acumula em si e assim transforma-se em marcas psicológicas inseridos no percurso
criativo e se fazem presentes no produto final. Segundo Caldas (2004, p. 22) “o
conceito de tendência que se generalizou na sociedade contemporânea foi
construído com base nas ideias de movimento, mudança, representação de futuro,
evolução e sobre critérios quantitativos.”.
[...] Continuou derramando galões de lágrimas, até que a sua volta se
formou uma grande lagoa, com cerca de meio palmo de
profundidade e se estendendo até a metade do salão. Passado
algum tempo, ouviu uns passarinhos a distancia e enxugou as
lagrimas mais que depressa para ver o que estava chegando.
(CARROLL, 2009, p.24-25)
Cabe considerar aqui que este capítulo traz à tona as mudanças repentinas que
Alice sofre e as consequências que isto trouxe. O estilista também possui momentos
como este em que Alice se sente confusa a respeito de si: “-Afinal de contas quem
sou eu? Ah, este é o grande enigma!” (CARROLL, 2009, p. 25).
Lá não se ficava sempre crescendo e diminuindo, e recebendo
ordens aqui e acolá de camundongos e coelhos. Chego quase a
desejar não ter crescido por aquela toca de coelho...no entanto...no
entanto é bastante interessante este tipo de vida! Realmente me
pergunto o que pode ter acontecido comigo! Quando lia contos de
fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora
cá estou eu no meio de um. (CARROLL, 2009, p.46).
41
Assim como Alice, o estilista passará por constantes mudanças, se fará grande
e pequeno inúmeras vezes, o processo criativo também é um meio de fazer com que
ele se encontre de modo que suas pesquisas também falam por si. Alice indaga: “cada vez mais estranhíssimo! Agora estou espichando como o maior telescópio que
já existiu” (CARROLL, 2009, p.23).
Cada projeto possui um conceito específico, e esse é obtido através de uma
síntese das pesquisas realizadas pelo estilista, uma vez que na moda, cada coleção
pede renovação e inovação. “O designer necessita de um caminho para criar e
desenvolver seus produtos, e a este caminho damos o nome de conceito de criação”
(MARTINEZ; MARTUCHELLI; CANTO; NAVALON; LIMA; FARIA; GRAGNATO;
RONCOLETTA;
LEVINBOOK;
MEDEIROS;
GUILLEN;
CURCE;
BARBOSA;
NASCIMENTO, 2012, p.51). Através do conceito a coleção é gerada, sendo definido
o público-alvo o qual a coleção será destinada, silhueta das peças, cartela de cores
e outros.
As interações são norteadas por tendências, rumos ou desejos
vagos. O artista impulsionado a vencer o desafio, sai em busca da
satisfação de sua necessidade, seduzido pela concretização desse
desejo que por ser operante, o leva à ação, ou seja, à construção de
suas obras. A tendência é indefinida, mas o artista é fiel a esta
vagueza. – As construções de novas realidades, pelas quais o
processo criador é responsável, se dão, portanto por meio de um
percurso de transformações que envolvem seleções e combinações.
(SALLES, 2008, p.33)
Em “Uma corrida de comitê e uma história comprida”, o personagem Dodô
decide que todos devem ser secos através de uma Corrida Eleitoral (Ver ilustração
8), na qual a única regra é correr apenas em círculos. Meia hora depois a corrida
acaba e todos ganham. Como prêmio, Alice dispõe os doces que estavam em seu
bolso e seu prêmio é um dedal. O rato conta sua história acerca da origem de seu
ódio por cães e gatos. O capítulo termina quando Alice deixa finalmente os
corredores do átrio.
42
Ilustração 8 – Alice e o Dodô premiação da corrida
Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br>
É o processo de conhecimento de si e da obra. Na moda há grupos de criação
que ajudam o diretor de criação de uma empresa durante o processo criativo e cada
uma dessas pessoas que compõem o grupo vivencia particularmente a criatividade.
“Pareciam mesmo um grupo estrambótico o que se reuniu na margem” (CARROLL,
2009, p.33) O grupo de pesquisa auxilia o estilista no que diz respeito aos detalhes
de uma coleção, ajuda a pensar e buscar soluções sendo que cada uma dessas
pessoas vive individualmente o processo criativo.
Segundo Marcelo Galvão (1999), “O grupo ajuda muito a criar a
nebulosidade; cada fato ocorrido no grupo modifica o pensamento das pessoas e
contribui muito para a internalização da realidade de uma forma mais universal.”. A
obra vai se desenvolvendo através das ideias obtidas que até certo momento se faz
presente no interior. Ao se concretizar no externo, é possível perceber o processo
criativo.
Mas normalmente a criatividade ocorre sem muita explicação,
de uma forma paralela ao consciente; depois, as pessoas
manifestam e se complementam no grupo [...] As pessoas buscam os
grupos justamente para sair da impessoalidade e poder ocupar o seu
lugar em algum contexto que permita colocar as suas
potencialidades a serviço dos seus ideais. (GALVÃO, 1999, p. 17)
43
2.3. Público-Alvo
A cada coleção de moda, lançada a cada semestre, os elementos se
renovam, é o que faz parte da inovação, que é a essência da moda, e a partir disso
é necessário compreender o público-alvo o qual a coleção será destinada. Através
da pesquisa e do conceito é possível observar o público-alvo para coletar as devidas
informações acerca do mesmo e agregar ao produto.
Nesse processo é necessário compreender e refletir aquilo que está presente
no cotidiano do estilista. Ele obtém um novo olhar perceptivo e armazena as ideias
na sua memória. A roupa caracteriza o individuo e o meio social o qual o mesmo
está inserido, assim é possível conhecer o seu público-alvo.
O público-alvo é o que dá alicerce na pesquisa de criação de moda, apresenta
proporções, aceita e entende as ideias, o conceito da coleção, tendo em mente que
o público-alvo não é o que prende o estilista no meio do processo, o publico apenas
direciona suas ideias para tornar real a coleção.
Conhecendo o público, é possível surpreendê-lo e encantá-lo. É o momento no
qual o estilista abre mundos e o convida para adentrar e explorar tudo o que há nele.
É possível brincar com formas, estruturas e cores. Sendo assim, o público-alvo pode
interferir nas escolhas do estilista no decorrer do processo criativo.
O produto é criado para atender as necessidades do público-alvo, e o estilista
se dedica a isso. A cada detalhe ele atribui um significado, porém o produto se
apresenta sempre incompleto. “O objeto ‘acabado’ pertence, portanto, a um
processo inacabado.” (SALLES, 1998, p.78)
O objeto considerado acabado representa, também de forma
potencial, uma forma inacabada. A própria obra entregue ao público
pode ser retrabalhada ou algum de seus aspectos – um tema, um
personagem, uma forma específica de agir sobre a matéria – pode
ser retomado. (SALLES, 1998, p. 80)
2.4. Documentos de Processo: Armazenamento e Experimentação
Para que a obra ganhe vida, a pesquisa do estilista deve conter suas
experimentações e seu armazenamento de ideias. Os documentos de processo
servem de rascunho e esboço para registrar tudo aquilo que se passa na cabeça do
44
criador de moda. Ao armazenar esses pensamentos é possível fazer novas
experimentações até chegar aonde se deseja.
Pode-se dizer que esses documentos, independentemente de
sua materialidade, contém sempre a ideia de registro. Há, por parte
do artista, uma necessidade de reter alguns elementos, que podem
ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa
concretização. (SALLES, 1998, p. 17)
Os documentos registram o processo da criatividade do estilista, não
enfatizam a materialização de tudo aquilo que o estilista está pensando, mas são a
forma que ele encontra de registrar suas ideias mesmo que não as concretize. Não é
possível obter a construção do pensamento do estilista e sim apenas alguns
vestígios de sua construção de uma criação em etapas. “A ação do artista é levada e
leva a aquisição de informações e a organização desses dados apreendidos. É,
assim estabelecido o elo entre pensamento e fazer.”(Jardim, 1993)
Alice admite sua crise de identidade (Ver ilustração 9), no capítulo “Conselhos
de uma Lagarta”, causada pelas constantes transformações no tamanho, numa
conversa com a Lagarta Azul e assim chega à conclusão de que não sabe mais
quem é já que cresceu e diminuiu inúmeras vezes.
Ilustração 9 – Alice e a Lagarta
Fonte: <claudia-pequenosmomentos.blogspot.com.br>
45
Então, a Lagarta lhe revela que um dos lados do cogumelo faz crescer e o
outro diminuir. Sozinha, Alice tenta primeiro o lado direito e diminui de altura; em
seguida experimenta o lado esquerdo e cresce tanto que atinge o ninho de um
pombo na copa da árvore.
O estilista no percurso vai modificando as construções de si e já não sabe
quem é exatamente, após tantas mudanças pelo caminho. Um lado do “cogumelo”
leva a um caminho e o outro lado o conduz por um caminho diferente, cabe ao
criador escolher ou experimentar ambos os lados, uma vez que não há certeza de
nada.Talvez o segredo seja misturar ambos os lados.
Consequentemente, a Lagarta Azul representa a metamorfose, mudança que
ocorre tanto no estilista quanto no seu processo criativo que dialoga com Alice
(estilista) a respeito dessas transformações e orienta a buscar soluções para seus
problemas. “Ficou bastante assustada com essa mudança súbita, mas lhe parecia
que não havia tempo a perder, pois estava encolhendo rapidamente; assim, tratou
logo de comer um pouco do outro pedaço.” (CARROLL, 2009, p.62). O projeto
durante o processo criativo tende a sofrer inúmeras mudanças em decorrência do
acaso. O produto vai ganhando novas formas.
A necessidade de expressar as ideias leva o criador de moda a apresentar
novas formas ao seu projeto, levando em consideração que a forma que a coleção
vai ganhando não se trata apenas da concretização da mesma e sim de uma parte
do estilista que se insere no processo criativo. Portanto, forma é a maneira a qual o
estilista tem domínio sobre seu projeto.
2.5. Expressão do Produto: Conteúdo e Forma
O projeto de moda vai ganhando forma a partir dos rascunhos, anotações e
esboços que formam o repertório de registro documentado pelo criador. A obra vai
se desenvolvendo em constante mudança, sofrendo diversas alterações a partir das
experimentações.
A roupa vai surgindo através do conceito que a coleção possui, cada detalhe
tem um significado. O estilista vai produzindo através de formas e através de uma
peça, o criador diz aquilo que quer transmitir na coleção.
46
No entanto, o que se percebe é que nem a tendência do processo é
desprovida de matéria: o que se quer dizer, aquilo que surge como
uma vaga tendência, já é carregado da matéria que será amoldada,
para que isso seja dito. Durante todo o processo, forma e conteúdo
estão sempre em relação de interdependência. (SALLES, 1998, p.
74)
A expressão do produto em desenvolvimento se dá através da mistura da
forma e do conteúdo, e o estilista está também inserido nesses dois elementos que
agem um sobre o outro. Assim o estilista tem controle sobre o desenvolvimento do
produto e o processo de criação revela o produto final do estilista em partes como
uma colagem de fragmentos.
Após tal questionamento, Alice se convida para a festa do chá maluco (Ver
ilustração 10) no qual estarão presentes o Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março e o
Arganaz que permanece adormecido durante uma grande parte da festa. O
Chapeleiro Maluco revela que está perpetuamente destinado a beber chá, porque o
tempo o puniu em vingança, parando assim o tempo às 6 da tarde, a hora do chá.
Com tantos enigmas e charadas Alice sente-se insultada e sai imediatamente e
assim entra no desejado jardim.
Uma memória criadora em ação que também deve ser vista nessa
perspectiva da mobilidade: Não como um local de armazenamento
de informações, mas um processo dinâmico que se modifica com o
tempo. Novas percepções sensíveis de um olhar, que não conhece
fixidez, impõem modificações e novas conexões (SALLES, 2008, p.
19).
Ilustração 10 – Um chá de Loucos
47
Fonte: <universofantastico.wordpress.com>
O estilista entra em conflito com os frutos de sua imaginação e percebe que o
tempo é muito rígido, podendo punir em vingança e tudo acontece ao mesmo tempo.
As relações tensionais, que mantém a vitalidade do processo de
construção da obra, aparecem também nas emoções do criador. As
marcas psicológicas do gesto criador carregam sentimentos opostos
que, na medida em que atuam um sobre o outro, tornam a criação
possível (SALLES, 1998, p. 81)
No momento da reflexão acerca de suas ideias, o desejo do estilista de ver
seus devaneios e seus pensamentos armazenados se tornando reais vão gerando
um diálogo interno, que fazem parte do processo criativo também. O estilista dialoga
com seu repertório de ideias registrado em anotações.
No calendário da moda, as coleções são lançadas, no mínimo, a cada seis
meses e o estilista deve cumprir esse tempo para apresentar o produto ao seu
público. Alice diz: “-Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o
tempo do que gastá-lo com adivinhações que não tem resposta” (CARROLL, 2009,
p. 84). Nesse intervalo que acontece o processo criativo, o estilista vai
aperfeiçoando sua obra até onde ele achar que se deve parar ou que esteja dentro
de um cronograma que permita a produção da coleção no tempo do lançamento.
‘’Que dia do mês é hoje? Disse o chapeleiro voltando-se para Alice.
Tinha tirado seu relógio da algibeira e estava olhando para ele com
apreensão, dando-lhe umas sacudidelas vez por outra e levando-o
ao ouvido
Alice pensou um pouco e disse “dia quatro”
“dois dias de atraso! suspirou o Chapeleiro” (CARROLL, 2009, p. 8283)
É necessário se fazer atento ao tempo, pois ele conduz todo o processo e o
estilista precisa entregar a coleção dentro de um determinado tempo que é marcado
a cada seis meses. Nesse intervalo ele realiza suas pesquisas e cria o conceito e
produz a próxima coleção. Como diria o Chapeleiro: “-[...] Agora são sempre seis
horas.” (CARROLL, 2009, p.86)
Embora exista um tempo determinado para se apresentar uma coleção em
cada desfile, a moda continua como uma tendência por vários anos seguidos e tudo
volta. De uma forma inovadora a moda se repete, e como diria o Chapeleiro: “-mas é
porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo seguido” (CARROLL, 2009, p.
83).
48
2.6. Projeto Acabado
No “depoimento de Alice”, (Ver ilustração 11) é provocada assim uma
discussão de Alice com o Rei e com a Rainha de Copas, enfatizando as atitudes
ridículas cometidas durante todo julgamento. A Rainha ordena “Cortem-lhe a
cabeça!”, mas Alice não tem medo, por ser agora muito alta diante de cartas de um
baralho. De repente a irmã de Alice faz-lhe acordar para ir tomar um chá, tirando do
seu rosto folhas que caíram e não uma chuva de cartas de jogar. Alice percebe que
tudo não passou de um sonho e então conta tudo e volta pra casa, deixando a irmã,
que ficou a sonhar o sonho de infância das Maravilhas de Alice.
Ao longo de todo o percurso, problemas infinitos, conflitos sem fim,
provas, enigmas, preocupações e mesmo desesperos que fazem o
“oficio do poeta um dos mais incertos e cansativos que possa existir”.
Valéry (1984) fala de dificuldades que são, na verdade, de toda
ordem: desconforto de decidir, resistência dos limites ou busca da
palavra
certa.
(SALLES,
1978,
p.
82)
Ilustração 11 – Alice e as cartas no julgamento
Fonte: <clubecetico.org>
É o momento de comunicar o resultado da obra acabada de um processo
inacabado. O estilista circula por seus mundos e os deixa abertos para seu público
conhecer e assim parte para mapear novos horizontes sem rumo sempre com olhar
49
de viajante. A coleção não se resume apenas ao estilista, o publico será o receptor
desta obra de tal modo é convidado a participar e conhecer o mundo subjetivo criado
pelo estilista. A imprensa, os formadores de opinião e o publico são os atores que
criam a crença da magia dos produtos finais através de sua percepção.
O estilista abre mundos e convida o público a explorar esse mundo subjetivo
criado a partir de seu olhar, e, portanto, a criação é uma forma de comunicação para
com o outro. Carlos Fuentes (1999, apud SALLES, 1998, p.41) afirma que “o
processo de criação mostra-se, também, como uma tendência para o outro. Está em
sua própria essência a necessidade de seu produto ser compartilhado.”. A obra
também se comunica com o global, com o passado, presente e futuro. Está ligada à
tradição, memória e olhar.
Muitos críticos e criadores discutem a questão de que não há criação
sem tradição: Uma obra não pode viver nos séculos futuros se não
se nutriu dos séculos passados. Nenhum artista, de nenhuma arte,
tem seu significado completo sozinho. Assim como o projeto
individual de cada artista insere-se na tradição, é, também,
dependente do momento de uma obra no percurso da criação
daquele artista especifico: Uma obra em relação a todas as outras já
por ele feitas e aquelas por fazer. (SALLES, 1998, p.42-43)
A coleção vai sendo moldada pelo estilista, e dialogando internamente com ele
mesmo e sua obra como um todo, uma vez que o estilista é o primeiro receptor de
sua coleção. Desse modo, o criador como seu primeiro receptor, julga sua obra e
assim vai interferindo no decorrer do percurso criativo, fazendo o que acha
necessário, e assim dando nova forma ao produto. “Ele é agente e testemunha do
ato criador” (SALLES, 1998, p.43)
Levando em consideração que o processo criativo é uma “trajetória de
experimentações”, o estilista dialoga também com sua obra, no caso, sua coleção e
em meio a tantas emoções produzidas. Ele percebe, assim que está criando para
sua própria obra. “O publico estabelece o contrato entre a obra de arte e o mundo
exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma,
acrescenta sua contribuição ao ato criador” (DUCHAMP, 1986 apud SALLES, 1998,
p.47).
50
O processo criativo apresenta em si a necessidade de ser compartilhado com
o público e isso revela que o processo de criação também é comunicativo. Cada
estilista possui um olhar único que insere e influencia o ato de criar sua coleção.
Sendo assim, o estilista tem em mente que seu produto faz parte de um
processo que não termina. A cada coleção ele realiza as pesquisas até obter um
conceito para assim seguir seu processo e no final de cada coleção ele parte em
rumo de novas pesquisas para outras novas coleções. O desfile se encerra, mas o
processo continua. Alice conclui: “Então ficam mudando de um lugar para outro em
círculos, não é? Disse Alice.(CARROLL, 2009, p.86) “Mas o que acontece quando
chegam de novo ao começo?”Alice se aventurou a perguntar”.
51
4. COLEÇÃO WONDERLAND TEA
“Se eu tivesse um mundo próprio tudo seria sentido. Nada seria o
que é, porque tudo seria o que não é.” (CARROLL, 1864)
A coleção Wonderland Tea é um pedaço do mundo fantástico de Alice em
seu País das Maravilhas, onde seus devaneios vão dando forma a um roteiro
embalado por ilusões, loucuras e alucinações. A coleção revela as loucuras e
dúvidas vindas de Alice e Chapeleiro Louco na hora do chá das 6h. “tudo tem uma
moral, é questão de saber encontrá-la” (CARROLL, 2009, p. 105)
Wonderland Tea tem como principal inspiração o capitulo 7 do livro de Lewis
Carroll, “Um chá maluco”, no qual Alice se encontra com um Chapeleiro Louco, uma
Lebre de Março e um Caxinguelê que está em constante sono (Ver ilustração 12).
Nele, o Chapeleiro afirma que foi castigado contra o tempo e por isso seu relógio
marca sempre seis da tarde, que por sinal é a hora do chá.
Ilustração 12- Personagens no Chá Maluco
Fonte: < attemptedbloggery.blogspot.com>
Os três personagens circulavam constantemente a mesa para tomar chá, pois
não tem tempo para lavar a louça durante os intervalos, uma vez que o relógio
52
marca sempre a mesma hora. O chapeleiro, representando a loucura, propõe alguns
enigmas endossados pela Lebre de Março, sem sentido para Alice tentar descobrir e
eles nunca concluem uma conversa, fica sempre inacabada. Tudo se fazia confuso
durante aquele chá. Nesse capítulo é relatado o auge da loucura de Alice que é
representada pelo Chapeleiro Louco
Entrelaçando o tema processo de criação em moda e o livro Alice no País das
Maravilhas, é possível mergulhar em múltiplas ideias e conceitos, entre os quais, o
lúdico, os sonhos, as memórias, a criatividade e a imaginação. É possível relacionar,
ainda, ambos os universos comparando as inquietudes e dúvidas do estilista com as
aventuras tensivas imaginárias de Alice.
O nosso inconsciente é o local onde ocorrem os fatos mais antigos,
únicos e surpreendentes [...] Não está limitado por um tempo,
localização ou sequência lógica de eventos específicos, como
definidos por nossa racionalidade. Sem nos darmos conta, nosso
inconsciente nos leva de volta aos tempos mais remotos de nossas
vidas. Os lugares mais estranhos, mais antigos, mais distantes e, ao
mesmo tempo, mais familiares de que fala um conto de fadas,
sugerem uma viagem ao interior de nossa mente, nos domínios da
inconsciência e do inconsciente. (BETTELHEIM, 1979, p.79 apud
NAKAO, 2005, p.38)
Em Wonderland Tea o mundo imaginário de Alice fica em evidência. O País
das Maravilhas é seu mundo particular e lá é possível se aventurar em meio as suas
próprias alucinações. Nada tem sentido. É necessário mergulhar fundo, mesmo
estando diante de inúmeras incertezas.
A coleção, então, retrata esse mergulho no universo fantástico que valoriza a
arte do sonho e da fantasia através de uma colagem de fragmentos da história de
Lewis Carroll, evidenciando a criatividade do indivíduo e a imaginação. Possui uma
estética romântica3 e ao mesmo tempo surrealista4 no que diz respeito a modelagem
das peças, com formas pontiagudas e curvas.
3
O movimento estético Romantico,ou,Romantismo,surgiu nas ultimas décadas do século XVIII e perdurou por
um longo período do século XIX.Está ligado a arte do sonho e da fantasia,evidencia a criatividade e a
imaginação do individuo,e baseia-se na inspiração fugaz dos momentos fortes da vida subjetivaa.Refere-se a
uma tendencia edealista ou poética de alguém que carece de sentido objetivo.
4
O surrealismo foi um movimento artistisco e literário, nascido em Paris na década de 20.Enfatiza o papel do
inconsciente na atividade criativa.(Conceitos disponiveis em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Romantismo> e
http://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo. Acesso em: 29 de maio de 2012)
53
As peças trazem em sua essência romântica o clássico inglês com os coletes e
blazers de lordes da época vitoriana da Inglaterra (Ver ilustração 13), presente
também no livro de Lewis Carroll, sendo utilizado pelo coelho branco. Tudo sendo
lembrado em forma de vestidos estruturados. O surrealismo fica por conta da
utilização do espelhamento entre as peças (inversão de ordem) de silhuetas
volumosas, e armadas com camadas, sobreposições, sendo lembrado pelas louças
do chá maluco. Cada peça traz a repetição de elementos, como uma forma de
enigmas e ao mesmo tempo lembrando-se de um produto acabado de um processo
inacabado.
Ilustração 13 – Blazer e Colete da Época Vitoriana
Fonte: <modaparavestir.com.br>
As peças trazem silhuetas e formas que remetem aos elementos encontrados
na aventura de Alice como o Coelho Branco de colete, Chapeleiro e a própria louça
do chá maluco. Assim os pedaços das peças recebem nomes como: “Manga
Coelho”, pois se trata de uma manga bufante estruturada (pontiaguda) com franzido
na cava; “Saia Xícara”, que recebe este nome por ser uma saia estruturada com
silhueta como uma xícara da louça do chá do Chapeleiro Louco; “Saia Cogumelo” e
o colete do coelho, recebe uma releitura podendo ser inacabado com costuras mal
feitas e sendo facilmente mudado de lugar, passando a ser na cintura como um
espartilho.
A coleção é voltada ao público jovem feminino entre 17 – 26 anos que está
sempre conectado com o mundo através da tecnologia e redes sociais, buscando
novas tendências para transformar em uma moda única através de adornos ou
detalhes. Mas que, ao mesmo tempo carrega os sonhos de infância de uma menina
54
aliados a certa dose de loucura formada pela imaginação. Wonderland Tea traz em
sua essência as memórias juntamente ao nonsense5 e ao lúdico.
As Alices que integram o público-alvo trazem dentro de si o romantismo de
uma época, memórias que marcaram uma fase de sua vida e retomam esse
momento de nostalgia ouvindo musicas de bandas como Coldplay, Oasis e The
Beatles. Adoram ler livros fantásticos como Alice no País das Maravilhas, O
Pequeno Príncipe, Peter Pan e O Mágico de Oz. Gostam de sair para se divertir em
locais como cinemas, pois são amantes de um bom filme clássico. Andam de
bicicleta pelo parque durante o fim da tarde e por lá fazem fotografias para
armazenar em seu repertório de criação e inspiração. Colecionam novas sensações
num parque de diversões com algumas amigas e na noite optam por ficar em casa
refletindo em seu quarto lendo um bom livro para no dia seguinte ir a busca de
novas aventuras.
Assim, Wonderland Tea conta uma história sem linearidade, como um sonho
que não possui roteiro definido, usando elementos do próprio livro de Lewis Carroll
e, assim, obtendo uma nova visão cheia de cores e formas, da cena do Chá Maluco.
Tons vivos como “Vermelho Colete”, “Verde Chapeleiro”, “Amarelo Relógio”,
“Preto Buraco” e tons pastéis como “Branco Coelho”, “Rosa Chá das 6” e “Azul Alice”
formam a cartela de cores que remetem ao constante movimento em que os fatos
ocorrem nos sonhos e, concomitantemente a isso, remetem às cores dos objetos
encontrados na cena do Chá Maluco e no País das Maravilhas, à loucura do
surrealismo.
Os tecidos como a como organza, seda, musseline, e renda, possuem a
fluidez que faz alusão aos sonhos, coisas abstratas e a suavidade. O veludo, por ser
um tecido pesado e grosso faz alusão a alfaiataria da época vitoriana. Na coleção s
trajes do Chapeleiro e o colete do Coelho recebem uma estética “desordenada”
ilustrando o tempo corrido do relógio do Coelho e a algo que nunca se conclui, com
peças inacabadas.
5
Nonsense (“sem sentido” em inglês) é uma expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo. A
expressão é utilizada para denotar um estilo característico de humor perturbado e sem sentido, que pode
aparecer em diversas artes. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nonsense>. Acesso em: 3 de
dezembro de 2012
55
Aviamentos como botões dourados, fitas de cetim e viés preto remetem ao
tempo, simbolizado pelo relógio do coelho branco de colete na história, e as fitas nos
revelam os diversos caminhos a serem traçados e escolhidos para chegar a um
destino. O viés nos remete ao acabamento perfeito, sendo assim possível realizar
um jogo entre o acabado e o inacabado, representado por bainhas imperfeitas e
desfiadas nos vestidos.
Com Wonderland Tea é possível revelar os segredos mais ocultos do nosso
imaginário, e atravessar as fronteiras do inconsciente. Cada um de nós carrega uma
Alice dentro de si, porém, é preciso perder-se para a partir de então encontrar-se.
No País das Maravilhas, há inúmeros caminhos a serem seguidos, cabe a cada um
escolher apenas uma e assim seguir em frente. É necessário arrumar as malas e
adentrar na toca do coelho para vivenciar cada etapa da aventura. Às vezes o eterno
dura apenas um segundo.
56
4.1.Painéis
57
4.1.1. Lifestyle
58
4.1.2. Release
59
4.1.3. Ambiência
60
4.1.4. Cartela de cores
61
4.1.5. Materiais
62
4.1.6. Painel de estilo
63
4.1.7.Coleção
64
65
4.1.8. Look conceito
66
5.CONCLUSÃO
Esta pesquisa demonstrou o processo criativo de moda através de uma
relação com os capítulos mais importantes do livro “Alice no País das Maravilhas” de
Lewis Carroll. Essa relação envolve uma costura de fragmentos do livro no qual
cada elemento presente recebe um significado ligado à criação na moda.
A partir da não linearidade do processo criativo é possível associar um conto
construído por colagens de episódios como nos sonhos, nos quais não há um roteiro
exato para os fatos, revelando que a moda é um campo no qual estilistas atuam
também através de sua imaginação
A personagem Alice representa os estilistas que ao caírem na “toca do coelho”
se perdem em suas imaginações enfrentando os obstáculos que se fazem presentes
durante o percurso criativo. Mesmo assim, é importante ressaltar que o tempo da
criação na Moda é rígido, pois obedece a datas do calendário de lançamento das
coleções.
Alguns estilistas como Jum Nakao, Ronaldo Fraga e Hussein Chalayan
dialogam com a história de Alice para exemplificar e justificar o processo criativo no
que diz respeito à subjetividade do mesmo, levando em consideração que não há
uma fórmula exata para criar e a inspiração surge a partir do olhar perceptivo que o
estilista possui com se fazendo estrangeiro aos seus pensamentos e aquilo que o
cerca. Algumas falas de Alice, retiradas do livro, se cruzam com os pensamentos do
estilista abordado no texto.
Assim, esta pesquisa possibilitou uma visão diferente acerca do processo
criativo na moda, utilizando um elemento da literatura nonsense britânica como
exemplo para ilustrar as aventuras de um estilista em seu mundo particular, para
gerar um desfile com produtos acabados em um processo inacabado.
“Acorde, Alice querida! Disse a sua irmã ‘’mas que sono
comprido você dormiu.
Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar
no país das maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e
tudo se transformaria em insípida realidade...a relva só farfalharia ao
vento, e as águas da lagoa só se encrespariam ao ondular dos
juncos...as xícaras de chá tintilantes se transformariam no tinir dos
sinos das ovelhas, e os gritos agudos da rainha na voz do
pastorzinho...e os espirros do bebe, o guincho do grifo, e todos os
67
outros barulhos esquisitos se converteriam (ela sabia) no alarido do
movimentado terreiro da fazenda...enquanto os mugidos do gado a
distancia iriam tomar o lugar dos soluços tristes da tartaruga falsa.
Por fim imaginou como seria essa mesma irmãzinha quando,
no futuro, fosse uma mulher adulta; e como conservaria, em seus
anos maduros, o coração simples e amoroso de sua infância; e como
iria reunir outras criancinhas a sua volta e tornar os olhos delas
brilhantes e impacientes com muitas histórias estranhas, talvez até
com o sonho do país das maravilhas de tanto tempo atrás; e como
iria sofrer com todas as mágoas simples dessas crianças, e
encontrar prazer em todas as alegrias simples delas, lembrando sua
própria vida de criança, e os dias felizes de verão’’ (CARROLL, 2009,
p. 149)
Assim como no mundo particular de Alice, o estilista vê um sentido em tudo
que lhe atrai. como diria a Duquesa: “-tudo tem uma moral, é questão de saber
encontrá-la” (CARROLL, 2009, p.105). Assim, dando um novo significado a qualquer
objeto seguindo sua curiosidade para ser levado a outra dimensão através de uma
pequena porta. Sempre vai haver um Jardim Secreto, o mais bonito. O estilista é
assim, cria mundos e sempre convida o público a entrar e fazer uma visita, levando
em consideração que o processo criativo não tem fim. Depois de uma coleção outra
vem logo em seguida como uma colagem, uma costura em ziguezague seja no
processo, seja no produto.
68
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Regina; CANTO, Cristine de bem e; CURCE, Priscila;FARIA, José Neto
de; GRAGNATO, Luciana; GUILLEN;
LEVINBOOK, Miriam; LIMA, Geraldo;
MARTINEZ, Adriana; MARTUCHELLI, Allan; MEDEIROS, Mitiki; NASCIMENTO,
Veniza; NAVALON, Eloize; RONCOLETTA, Mariana Rachel. Interagindo: Design
de moda. São Paulo. Editora Esfera, 2012.
CAMPOS, Amanda Queiróz; RECH, Sandra Regina. Como se faz tendência? O
desenvolvimento de um modelo conceitual para a pesquisa prospectiva.
Revista
da
Pesquisa.
Santa
Catarina,
2009.
Disponível
em:
<http://www.ceart.udesc.br>. Acesso em: 03 de dezembro de 2012
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e através do
espelho e o que Alice encontrou por lá. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
GARCIA, Carol. Coleção moda brasileira – Ronaldo Fraga. v. 4. São Paulo. Cosac
Naify Editora, 2008.
GALVÃO, Marcelo. Criativamente. 2ed. Rio de Janeiro RJ: Editora Qualitymark,
1999.
HERCHCOVITCH, Alexandre. Cartas a um jovem estilista (a moda como
profissão). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2007.
LOVINSKI, Noel Palomo. Os estilistas de moda mais influentes do mundo: A
história e influência dos esternos ícones da moda. 1ed. Barueri, SP. Editora
Girassol, 2010.
MESQUITA, Cristiane. Moda em ziguezage: Interfaces e expansões. São Paulo:
Editora Estação das Letras e das Cores, 2011.
NAKAO, Jum. A Costura do Invisível. Rio de Janeiro: Editora Senac Nacional; São
Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.
69
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 16 ed. Petrópolis-RJ:
Editora Vozes, 1997.
PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade – Sujeito e escritura
em processo. 1ed. Porto Alegre. Sulina Editora da UFRGS, 2010.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado – Processo de criação artística. 3 ed.
São Paulo: Editora Fapesp, 1998.
_______.Redes de criação – Construção da obra de arte. 2ed. São Paulo: Editora
Horizonte, 2006.
SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro, 2010.
70
ANEXO – Editorial Alice in Wonderland6
6
Editorial de Annie Leibovitz para a revista Vogue disponível em < WWW.trendlad.com >
71
72
APÊNDICE – FICHAS TÉCNICAS
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
Download

costura em ziguezague entre processo de criação em