1
Arte e Revolução na Rússia Bolchevique
por Patrícia Danza Greco1
Falar sobre o papel da arte nos períodos revolucionários exige um esforço que vai
além do próprio período. Um esforço que necessita olhar para o momento anterior,
percebendo quais as continuidades e as dissonâncias que se colocam entre a antiga ordem
que se finda e a nova que se pretende construir. E, com certeza, o estudo da Rússia
revolucionária não foge a essa regra, o que faz com que, necessariamente, essas palavras
iniciais se voltem para os séculos XVIII e XIX.
Desde a conversão da Rússia ao cristianismo no século X, a produção artística
esteve sempre muito associada à religião, visível nas igrejas, nos ícones e nos utensílios
eclesiásticos. Sem, em absoluto, desmerecer toda a atividade artística que também existia
ligada à vida campestre – decorações de casas, ovos coloridos de Páscoa, tecidos, cestas –,
foi no século XVIII que se intensificou o contato com o Ocidente, cujo desdobramento
para as artes foi a importação de estilos artísticos considerados “eruditos”. Isso porque
Pedro, O Grande (1682-1725), amante dos estudos técnicos e náuticos, foi o principal
responsável por considerar que o Ocidente era um paradigma de modernização que deveria
ser seguido pela Rússia. Dentre as inúmeras reformas empreendidas em vista de
modernizar esse país segundo o padrão ocidental, um marco importante foi a construção de
um modelo de cidade, que, à custa de milhares de vidas camponesas, se tornou a nova
capital do Império, São Petersburgo. Para essa edificação, artistas os mais diversos foram
trazidos da Europa, e acabaram conquistando um espaço significativo na formação de
jovens artistas russos, sejam eles arquitetos, pintores e escultores, a partir da fundação da
Academia de Belas Artes de São Petersburgo. Assim, palácios e mansões ao gosto europeu
foram construídos, e a Rússia começava, então, a conhecer uma arte muito diferente da
sobriedade dos ícones e da simplicidade – uma palavra utilizada aqui sem nenhuma
conotação pejorativa – dos utensílios domésticos produzidos pelos próprios camponeses.
Estilos como o Barroco, o Classicismo e o Romantismo invadiram a Rússia com o passar
dos anos, devendo-se ressaltar que eles foram reverenciados com obras de verdadeira
maestria pictórica.
1
Mestre em História pela UFF.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
2
Dessa maneira, as cenas históricas, as paisagens e os retratos típicos dessa “Arte de
Salão” passaram a conviver com a tradicional arte cristã, bem como, a partir dos anos 60
do século XIX, com um novo movimento artístico que se opunha justamente aos
embelezamentos conferidos pela Academia. Ao contrário de maquiar o mundo ou de
traduzir os encantos nele já existentes, o Realismo optava por retratar a vida da maneira
como ela se mostrava e, por isso, buscava, por vezes, um retrato psicológico de suas
personagens. Mais do que isso, o Realismo acreditava na necessidade de uma função social
para a arte e, sem sombra de dúvida, isso não pode ser compreendido sem relembrar as
idéias que a intelligentsia russa fazia circular na época.
Esta, assentada em valores como a igualdade e a solidariedade ainda presentes na
estrutura social da Comuna Rural, defendia uma modernização da Rússia que não
abdicasse dessa tradição, pois só assim essa nação não sofreria o deletério
desenvolvimento industrial característico do Ocidente, que trouxera, para seus países,
miséria e proletarização. A intelligentsia, no geral, defendia uma autenticidade no processo
de modernização russo, dito alternativo, já que a Rússia ainda dispunha de redutos com
valores sociais e culturais que não haviam sido destruídos. A disseminação deles por entre
a sociedade garantiria uma passagem direta da etapa atual para a socialista, sem com isso
abdicar da modernização do país. Se esses valores fossem preservados, estaria consolidada
nessa nação a possibilidade de uma via alternativa de modernidade; se as Comunas fossem
desacreditadas, boicotadas e corroídas, como vinham sendo ao longo do tempo, era o fim
da chance de construção do socialismo naquela nação. Em suma, a crença era basicamente
a mesma no interior dos intelligenti, mas as táticas para alcançar o fim desejado variavam
muito, e o Realismo na Rússia se apresentou exatamente como uma interpretação pictórica
dessas idéias em circulação, sentindo que a arte tinha um papel social a cumprir,
denunciando as explorações, revelando os valores artístico-culturais dos russos e
auxiliando na educação e reeducação do povo.
É claro que não se pode esquecer que o Realismo também grassava na Europa
desde fins da primeira metade do século XIX e, na Rússia, existiam vários meios que
promoviam esse intercâmbio artístico, como revistas, colecionadores de arte russos e
artistas que viajavam interessados em descobrir o que o Ocidente desenvolvia de novo. É
preciso observar que, em momento nenhum, a Rússia foi uma extensão artística do
Ocidente. Muitas influências chegaram até ela, mas sempre trabalhadas de acordo com as
necessidades específicas daquela sociedade, principalmente após o nacionalismo
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
3
apregoado pelos pintores realistas, por meio da valorização daquilo que eles consideravam
autêntico da cultura russa.
Nesse vaivém, a música, o teatro e as artes plásticas abrilhantaram o cenário
artístico russo e, em se tratando dessa última, nada menos do que o desenvolvimento da
arte abstrata se deve a um moscovita, Vassíli Kandínski, e a um ucraniano, Kazimir
Malievitch. O primeiro, estudando e trabalhando na Alemanha, seguiu a vertente da
abstração lírica, também conhecida como informal; o segundo, na Rússia, escolheu as
formas geométricas como meio de representação de um mundo novo.
O Suprematismo, nome dado à teoria desenvolvida que justificava a pintura
geométrica, era a libertação da pintura para ela ser ela mesma. Aparentemente uma simples
justificação da pintura enquanto pintura. Contudo, o Suprematismo propunha um novo
mundo, no qual as relações com o objeto se dariam intuitivamente. Isto é, a sua totalidade,
as imbricações pictóricas geradas pelos elementos constituintes do objeto só poderiam ser
inferidas de maneira intuitiva, e a concretização desse novo mundo se daria no plano
plástico da tela. É a supremacia de um mundo regido pela sensibilidade, pela capacidade
criativa e cognitiva do homem. Uma verdadeira arte moderna para um mundo moderno.
Em outras palavras, se o Realismo incorporara a realidade da segunda metade do século
XIX na Rússia, o Suprematismo representava bem o sonho de libertação por que lutaria o
povo russo mais incisivamente e coletivamente em 1917. O Suprematismo era a arte da
revolução porque consistia na própria revolução da arte. O sentido de libertação
condensado pelo quadrado, que dava uma solução para a busca interminável da arte
moderna de conferir autonomia ao espaço pictórico, era o mesmo que movera o povo em
fevereiro e em outubro do ano vermelho.
No filme, de Dziga Vertov, Réquiem a Lenin, uma camponesa depõe afirmando
saber agora o que os líderes dizem, palavras valiosas que ela então compreende e
memoriza, para contar aos outros quando da sua volta para casa. Ela diz ter havido um
tempo de miséria, mas que, agora, este já faz parte do passado. É preciso lembrar que,
àquela altura, o povo russo estava faminto e atormentado pelos desastres da Primeira
Guerra Mundial – se não morria no front de batalha, chorava pelos que lá perdia. A
revolução era um aceno de esperança de fim daqueles horrores.
Assim, o povo estava realmente comprometido com a revolução, aspirava novos
tempos, tempos de igualdade e liberdade, que pareciam se iniciar com os primeiros
decretos do Governo. Lenin, presidindo o Conselho dos Comissários do Povo e, portanto,
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
4
maior representante daqueles desejos ardentes, bem poderia ter assumido o quadrado
vermelho de Malievitch como bandeira que anunciava essa nova era. O vermelho, símbolo
de poder e de revolução, tendo na sua palavra correlata russa krasni também o significado
de belo, feliz, constituía o sentido que movia aquela sociedade, sentido esse que estava
expresso na forma quadrangular que libertava a arte. No quadro Quadrado Vermelho.
Realismo Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões, estava estampado o
significado daquele novo tempo, traduzido por aquela forma geométrica vermelha
irregular, que rompia com toda a rigidez das imposições do passado e prenunciava a sua
libertação. Era a irregularidade da forma banhada pelo sangue da revolução. Revolução na
arte e na política que alimentavam aquela população.
O Suprematismo representa uma concepção para um novo mundo, como aquele que
se pretendia construir na Rússia a partir de 1917. Um mundo que não limita a relação entre
homem e objeto à sua necessidade material; um mundo que multiplica as relações e
identidades com o objeto, que o concebe apenas em estímulos, sensações e intuições; um
mundo que se torna realidade no plano pictórico, que através da pintura tem essas
sensações rítmicas traduzidas; um mundo em que a pintura se justifica enquanto pintura
porque é ela que transmuta a sensibilidade em formas dinâmicas, flutuantes e libertas.
O quadrado era para o artista a forma zero, isto é, a forma da qual todas as demais
derivam. Zero não de fim, mas de recomeço, assim como se concebia a Rússia
bolchevique. Além disso, é uma forma que não existe na natureza e que, portanto, não
pode ser associada a ela. Uma forma puramente mental, de criação do homem, um
verdadeiro ícone de uma arte do mundo das idéias, das sensações, das intuições. Com ela,
dentre tantas transformações que a acompanham, uma é particularmente democráticosocial: a arte, agora, era cosa mentale, como disse Leonardo da Vinci, era muito mais a
elaboração de um conceito do que a habilidade técnica do artista. Ser artista era ser um
pensador e não um especialista na capacidade de desenhar, na capacidade de representar a
realidade precisamente, e isso tinha total conexão com a construção de uma nova sociedade
que cria no trabalho e na necessidade de educação e de instrução do povo. E talvez resida
exatamente aí o motivo que fez com que tantos artistas apoiassem a Revolução: a
esperança de se construir uma sociedade distante dos moldes teocráticos e opressores que
caracterizavam o Tzarismo. Uma nova realidade mais justa e mais igualitária, distante dos
academismos e de suas regras e distinções artístico-sociais. É preciso ter em mente que ser
um vanguardista significava estar, muitas vezes, à margem dos salões expositivos oficiais,
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
5
bem como ser foco da crítica artística mais ferrenha. Na revolução, eles viram a
possibilidade de construção de uma nova sociedade, menos autocrática. A revolução, por
sua vez, via nesses artistas sua principal base de apoio, artisticamente falando, como se o
novo sistema político, econômico e social que se almejava construir na Rússia exigisse
também novos alicerces artísticos.
Assim, desde que tomou o poder em outubro, o novo governo sabia bem que
precisava de artistas para construir e consolidar o sonho do socialismo. Além do interesse
da vinculação da arte à propaganda, já que muito da “instrução” do povo se daria pela
imagem, existia também, não se pode negar, uma idéia de que a revolução cultural era
condição premente para a sobrevivência da revolução político-econômica. Assim, logo de
início, o governo se preocupou com a questão do analfabetismo. Em 1918, foi assinado o
decreto Sobre a Mobilização, que instituía que todos os cidadãos deveriam aprender a ler e
a escrever. Em 1919, um outro, denominado A Liquidação do Analfabetismo, reforçou o
anterior, obrigando a alfabetização do povo, com faixa etária entre oito e cinqüenta anos,
em língua russa ou em língua materna, sendo que aos empregados seriam cedidas duas
horas do trabalho sem desconto de salário. Além de cuidar da educação num sentido
restrito da palavra, o Narkompros, Comissariado do Povo para a Instrução Pública,
responsabilizava-se também pelas artes, pelo seu estímulo e conservação. Como já dito, o
incentivo à produção artística era crucial, já que, com uma ampla população analfabeta, a
imagem constituía ferramenta necessária para a instrução e para aglutinação do povo em
torno da Revolução.
Sobre o sistema propagandista, sua presença sempre lembrava o russo do campo, da
cidade ou do front que a consolidação do processo revolucionário era a saída para todos os
males. Para essa propaganda revolucionária não existia superfície que não pudesse ser
trabalhada: barcas, trens, edifícios, utensílios domésticos, todos serviam de instrumento de
contínua reiteração dos valores da revolução, sendo o trabalho e o serviço militar temas
bastante difundidos nos cartazes durante os penosos anos de Guerra Civil. Em relação aos
affiches (cartazes), a arte gráfica foi sempre uma tônica na Rússia e, após a revolução,
encontrou ainda mais espaço, já que, através dela, o novo governo propagava e reavivava a
ideologia revolucionária em todos os russos. Vale lembrar que a utilização maciça dos
cartazes como veículos de propaganda durante o governo bolchevique supria a ausência de
outros meios de comunicação de massa.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
6
Nesse sentido, os artistas tiveram seu lugar assegurado nessa sociedade, não
importando, nesse primeiro momento, se eram figurativos ou abstratos, já que o
fundamental é que todos contribuíssem para sedimentar os alicerces da revolução, seja
colaborando nos trens e embarcações de propaganda, nos cartazes, nas decorações de rua
durante os festejos revolucionários ou nas exposições estatais.
Com Anatoli Lunatcharski à frente do Narkompros, a individualidade, a
criatividade e a coletividade eram encorajadas. Anatoli trabalhava no sentido de resguardar
o patrimônio já existente, mas também de estimular as novas tendências artísticas. E,
assim, esse Comissariado possibilitou a reformulação de todo o sistema oficial de ensino
das artes, visando atender todos os grupos de artistas, desde o incentivo a correntes mais
tradicionalistas até o apoio à arte vanguardista. Dessa nova concepção de ensino, esperavase criar meios de levar a arte a um maior número de pessoas (pela questão,
fundamentalmente, da necessidade de instrução do povo) e fomentar o trabalho artístico de
quem tivesse interesse em desenvolvê-lo, não havendo mais prova para ingresso nas
escolas de arte. Em outras palavras, promovia-se, por exemplo, novos tipos de propaganda
e de decorações de rua com base nas vanguardas, mas não se deixava de integrar a velha
intelectualidade russa à nova realidade vanguardista. Com isso, o Narkompros não tendia
nem para o radicalismo dos que almejavam a implantação de uma imediata cultura
proletária, nem para a simples aceitação de uma cultura burguesa. Seu intuito era o de
conciliar, ainda que temporariamente, ambas as correntes, sendo o mediador o Partido
Comunista no poder.
No interior da IZO, seção de artes plásticas do Narkompros, além das diferenças
estéticas, sejam elas figurativas ou abstratas, vanguardistas ou tradicionalistas, os artistas
se dividiam em duas tendências basicamente: uma que associava as artes ao Estado, seu
mais novo subsidiário depois da nacionalização das coleções particulares, e outra que
achava que as artes deveriam ser concentradas num órgão autônomo, que faria a ponte com
artistas de outros países. Muito embora houvesse espaço para o desenvolvimento de ambas
as correntes, o governo demonstrava uma certa predileção pela primeira, no sentido de que
toda aquela efervescência artística que se desenrolava no cenário russo desde 1910 seria
mais bem vista se atrelada à propaganda revolucionária – até porque, é preciso lembrar, a
Guerra Civil já começara e, em seu início, ela aparentava muito mais uma vitória dos
Brancos do que dos Vermelhos.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
7
No entanto, embora essa determinação fosse verdadeira, ainda havia espaço para a
segunda das correntes, que prezava a liberdade de criação em si mesma, principalmente
após a substituição, em 1918, da Academia de Belas Artes de São Petersburgo, da Escola
de Artes Aplicadas de Stroganov e da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de
Moscou pelos Ateliês Artísticos Livres (Svomas), os quais não possuíam exame de
admissão, bem como promoviam suas exposições nas ruas.
Assim, a IZO conseguiu atender a todos os gostos, tanto no sentido de conservar o
que de valor o passado trazia e o que de novo o século XX apresentava quanto no sentido
de atrelar a arte à propaganda e de dar liberdade de criação aos que mais contundentemente
a desejavam. Cooptando e tentando equilibrar todas as tendências artísticas, Lunatcharski
estimulou sua produção imensamente, tornando a Rússia palco de inspiração não só no
terreno da revolução política como também da revolução artística. E uma das propostas
que comprovava a tentativa de conciliação de todas as tendências era a eliminação do júri
que julgava a entrada de obras de arte nas exposições, chamadas de Exibições Livres
Estatais, com o objetivo de tornar a arte livre para qualquer cidadão russo.
Com o passar do tempo, o Narkompros foi se estruturando a partir de um número
enorme de órgãos, departamentos, seções, instituições etc., que deveriam cuidar das artes e
da educação desde o nível mais básico até o superior e o técnico-profissionalizante.
Tamanha abrangência em suas funções acabou, de alguma forma, prejudicando seu
trabalho, até porque o orçamento que dispunha estava muito aquém das suas necessidades.
Como se não fosse suficiente, com a instituição da NEP, a verba repassada para esse
comissariado passou a ser muito inferior a dos anos anteriores: em 1918, o Narkompros
dispôs de 11,5% dos recursos totais do governo; em 1919, de 15,5%; em 1920, de 9,4%;
em 1921, de 2,2%; e nos dois anos seguintes, algo em torno de 2 a 4%. Mesmo assim, ele
continuou bastante ativo durante a primeira metade da década de 20, mas encontrou um
grande problema a ser enfrentado: uma insistência maior por parte do Partido de controlar
mais incisivamente todas aquelas seções que se multiplicaram no interior desse
Comissariado.
Mesmo não pertencendo ao Narkompros, o Proletkult, responsável por estimular a
criação de uma cultura proletária que fosse construída pelos próprios operários, foi um dos
primeiros organismos a sofrer com uma conduta mais repressora por parte do Partido.
Segundo Lunatcharski, um dos fundadores do Proletkult, Lenin nunca viu com bons olhos
a sua organização, já que antipatizava com esse afastamento dos operários do aprendizado
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
8
das ciências e da cultura já existentes. Além disso, e talvez principalmente por isso, outro
fundador desse órgão foi Alexandre Bogdanov, cujas concepções políticas divergiam
bastante de Lenin, o que fazia com que este temesse o surgimento de um desvio político no
interior do Proletkult. Assim, em 1920, Lenin recomendou a Anatoli que ele deveria fazer
a vinculação dessa organização ao Narkompros e, conseqüentemente, ao Partido, já que,
agora, esse Comissariado se reorganizava sob considerável vigilância.
Assim, quando foi necessário uma contenção significativa das despesas do Estado
organizada em torno da NEP em 1921, obviamente não foram as vanguardas que pregavam
a autonomia da arte que receberam a verba disponível. A NEP, então, embora indicasse
tempos de maior liberdade para os camponeses e suas comercializações, com certeza não
trazia boas novas para o desenvolvimento cultural. Embora ele continuasse a ser uma
preocupação, as poucas somas eram direcionadas para tendências artísticas mais
condizentes com a velha idéia de representação naturalista, fazendo com que aquela
política conciliatória de todos os movimentos artísticos passasse a enfraquecer mais e mais
a cada ano.
Durante esse período, por exemplo, ganhou importância uma corrente produtivista
que associava arte e vida. Para Tátlin, maior expoente do Construtivismo russo, a
verdadeira importância da arte estava no cumprimento de um papel político-social no
mundo e, por esse pensamento, é fácil compreender o porque do movimento construtivista
ter se voltado para uma arte funcional, comprometida tanto com a propaganda política
quanto com uma nova estética, a qual permearia a vida cotidiana através da sua
aplicabilidade na indústria – característica essa que foi absorvida e propagada
fundamentalmente pela Bauhaus, escola alemã de design e de arquitetura, fundada por
Walter Gropius em Weimar em 1919, cujo slogan era “arte e tecnologia – uma nova
unidade”.
Em relação à pintura, por exemplo, a 47ª Exposição dos Ambulantes, aberta ao
público em 1922, transformou-se na menina dos olhos do governo, incitando os desejos
mais adormecidos nos membros do Partido, que desejavam voltar a ver na pintura os
politicamente engajados temas realistas. A partir dessa exposição, nasceu a Associação dos
Artistas da Rússia Revolucionária (Akhrr), que empreendeu inúmeros embates públicos
com a vanguarda soviética.
Não se pode nunca esquecer que a imposição do Realismo Socialista que se
consolidou nos anos 1930 não foi obra exclusiva de revolucionários que estavam no poder
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
9
e que precisavam utilizar-se da arte como ferramenta de manipulação e de convencimento
do povo em meio àqueles tempos difíceis de coletivização dos campos. Sem dúvida, a
receptividade da sociedade era bastante amigável diante daquelas temáticas tão claramente
identificáveis. A própria Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária comprova
como não havia nenhum consenso também entre os artistas quanto ao papel que deveria
desempenhar a arte num período revolucionário. Além disso, o Estado, sem nenhuma
dúvida, queria o melhor para o povo, mas isolou-se naquilo que ele considerava melhor,
sem perceber que com isso condenava-o a muitas privações. Por vezes, ouvia os gritos
desesperados dos mujiks e concedia-lhes benefícios atenuantes daquela realidade.
Entretanto, no geral, estava embebido pelo Marxismo da II Internacional e tomava decisões
respaldado por ele, afinal, a história estava a favor da revolução. Por isso, ao utilizar as
artes como instrumento propagandista, o governo não pretendia puramente tornar a
sociedade uma massa facilmente manipulável; ele pretendia instruir, para que um dia todos
pudessem ver o mundo do mesmo modo que ele, pensamento que constitui o grande
equívoco de todo regime ditatorial.
Assim, entre 1917 e 1922, uma cultura modernista acabou se consolidando, em
geral vanguardista, coletivista e difundida. Dentre suas expressões mais notáveis estavam o
cinema revolucionário, o teatro político, os grandes projetos urbanísticos modernos, as
artes gráficas, o Construtivismo, com sua crença na utilização de formas artísticas para fins
utilitários, e o Suprematismo. Entretanto, tão-logo a governo viu-se forte e sozinho no
poder, a liberdade que fora a tônica que regera os últimos anos deu lugar à suspensão dos
subsídios à boa parte das escolas de arte, que haviam se multiplicado. Em primeiro lugar
porque os tempos de escassez urgiam pela contenção de despesas. Em segundo porque,
diante de uma obra realista e de uma abstrata, os pensamentos mais conservadores
prevaleceram – tanto do governo quanto da sociedade –, e os parcos recursos foram
direcionados para as produções realísticas. A partir da morte de Lenin, em 1924, a situação
agravou-se ainda mais e tornou-se insustentável depois da renúncia de Lunatcharski de seu
cargo como comissário do Narkompros. Com Litkens ocupando o lugar de Anatoli, as
antigas aspirações tornaram-se ilusões e tanto o movimento por uma cultura proletária
como por uma linguagem de vanguarda para as artes foram extirpados do cenário cultural
soviético.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
10
Karl Briullov, O último dia de Pompéia, 1830-33.
Iliá Riépin, Os rebocadores do Volga, 1870-73.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
11
Detalhe da obra anterior.
Kazimir Malievitch, Quadrado vermelho. Realismo pictórico de uma camponesa em duas
dimensões, 1915.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
12
Vassili Kandinski, A voz desconhecida, 1916.
Embarcação de propaganda chamada a estrela vermelha, 1920.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
13
UNOVIS, Decoração em Vítebski, 1920.
El Lissítski, Derrotem os brancos com a cunha vermelha, 1919.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
14
V. N. Deni, Camarada Lenin livra a Terra de todo lixo, 1920.
S. Tchekhonine, O reinado dos operários e dos camponeses é sem fim, 1920.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
15
Grígori Chegal, Líder, professor e amigo, 1937.
Referências bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BABURINA, N. Russia 20th Century: history of the country in poster. Moscou:
Panorama, 2000.
BERLIN, Isaiah. Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
BRITT, David. Art and Power; Europe under the Dictators, 1930-45. Eds. Londres:
Hayward Gallery, 1995.
DOUGLAS, Charlotte. Kazimir Malevich. Nova Iorque: Harry N. Abrams, Inc., 1994.
DRUTT, Matthew (org.). Kazimir Malevich: Suprematism. Nova Iorque: Guggenheim
Museum Publications, 2003. Catálogo de Exposição.
DUNAEVA, Cristina Antonioevna. De Sistemas Novos na Arte de Kazímir Maliévitch;
da história da arte à análise da linguagem artística. Campinas, 2005. Dissertação (Mestrado
em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
16
FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 2004.
GOMES, Oziel. Lenin e a Revolução Russa. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
Hudson, 1986.
GRAY, Camilla. The Russian Experiment in Art; 1863-1922. Nova Iorque: Thames y
HOBSBAWN, E. História do Marxismo; o marxismo na época da Terceira Internacional:
problemas da cultura e da ideologia. São Paulo: Paz e Terra, 1987. v. 9.
KAZIMIR MALEVICH; 1878-1835. Los Angeles: The Armand Hammer Museum of Art
and Cultural Center, 1990. Catálogo de Exposição.
LENIN, V. I. Cultura e Revolução Cultural. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasiliense,
1968.
LEWIN, M. The Making of the Soviet System; essays in the social history of interwar
Russia. Nova Iorque: Pantheon Books, 1985.
MALIÉVITCH, K. S. Dos Novos Sistemas na Arte. São Paulo: Hedra, 2007.
__________. The Non-Objective World: the manifesto of Suprematism. Nova Iorque:
Dover Publication, 2003.
MIGUEL, Jair Diniz. Arte, ensino, utopia e revolução; os ateliês artísticos
Vkhutemas/Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em
História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo.
NÉRET, Gilles. Kazimir Malevitch e o Suprematismo. Köln: Taschen, 2003.
PETROVA, Ievguénia. 500 Anos de Arte Russa. São Petersburgo: Palace Editions, 2002.
__________. New Art for a New Era; Malevich’s vision of the russian avant-garde.
Londres: Booth-Clibborn Editions, 1999. Catálogo de Exposição.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A Aventura Socialista no Século XX. São Paulo: Atual,
1999.
__________. Os Intelectuais Russos e a Formulação de Modernidades Alternativas:
um caso paradigmático? Disponível em < http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/
reggen/pp16.pdf>.
__________. À Procura de Modernidades Alternativas: a aventura política dos
intelectocratas russos em meados do século XIX. In: RIDENTI, Marcelo & ROLLAND,
Denis (orgs.). Intelectuais e Estado. São Paulo: Unicamp & Paris: Harmatan, 2004. [no
prelo].
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
17
__________. A Revolução Russa; 1917-1921. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1999. (Coleção
Tudo é História).
__________. As Revoluções Russas e o Socialismo Soviético. São Paulo: Ed. UNESP,
2003. (Coleção Revoluções do Século XX).
__________. Uma Revolução Perdida; a história do socialismo soviético. São Paulo: Ed.
Fundação Perseu Abramo, 1997.
TOLSTOÏ, Vladimir. Art Decoratif Sovietique 1917-1937. Paris: Édtions du Regard,
1989.
WALICKI, Adrzej. A History of Russian Thought; from the enlightenment to marxism.
Stanford: Stanford University Press, 1979.
Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.
Download

1 Arte e Revolução na Rússia Bolchevique por Patrícia Danza