Modelagem da Liquefação de Solos por Carregamento Estático Jorge Luis Cardenas, Celso Romanel e Sérgio A. B. da Fontoura Departamento de Engenharia Civil, PUC-Rio, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. RESUMO: A história registra muitos casos de ruptura catastróficas de maciços de solos, com consideráveis prejuízos econômicos, perdas de vidas humanas e danos ao meio ambiente, causados pela liquefação de solos saturados. Quando liquefação ocorre, um súbito aumento da poropressão faz decrescer a resistência ao cisalhamento do solo e sua habilidade em suportar edifícios ou manter taludes estáveis. A liquefação de solos por carregamentos estáticos foi documentada em depósitos de solos naturais, aterros e depósitos de rejeitos de mineração. No Brasil, há evidências de rupturas de barragens de rejeitos por carregamento estático nas minas de Fernandinho e do Pico de São Luiz. Neste trabalho, a investigação do fluxo por liquefação estática foi feita considerando-se um modelo constitutivo simples proposto por Gutierrez e Verdugo (1995). Durante a implementação do mesmo, algumas modificações foram introduzidas na formulação original, permitindo aumentar sua capacidade de previsão da resposta não-drenada de solos saturados. PALAVRAS-CHAVE: Liquefação Estática, Carregamento Não-Drenado, Modelo Constitutivo. 1. INTRODUÇÃO poropressão, enquanto que solos de granulometria grossa foram considerados muito permeáveis para manter acréscimos de poropressão por um tempo suficientemente longo. Mais recentemente, os critérios baseados apenas na granulometria do solo tiveram seus limites expandidos. Liquefação de siltes não plásticos foi observada (Ishihara, 1985), tanto em laboratório como em campo. De acordo com Wang (1979), solos finos que satisfazem as condições do “critério chinês” podem ser considerados suscetíveis à liquefação: a) fração mais fina do que 5 µ ≤ 15%; b) limite de liquidez LL ≤ 35%; c) teor de umidade natural ω ≥ 0,9 LL . A U.S. Army Corps of Engineers modificou o “critério chinês” incorporando as seguintes recomendações: a) decréscimo da fração de finos em 5%; b) acréscimo do limite de liquidez em 1%; c) acréscimo do teor de umidade natural em 2%. Quanto a solos grossos, liquefação em pedregulhos também foi observada em campo (Yegian et al., 1994) e em laboratório (Evans e Seed, 1987). Quando a dissipação das propressões for impedida pela presença de camadas impermeáveis, podem então ser estabelecidas condições para a ocorrência de um carregamento não-drenado e, assim, propiciar a ocorrência de liquefação neste tipo de solo também. A história registra inúmeros casos de ruptura catastrófica de maciços de solo causados pela liquefação de areias saturadas. Quando liquefação ocorre, um súbito aumento da poropressão faz decrescer a resistência ao cisalhamento do solo e sua habilidade em suportar edifícios ou manter taludes estáveis é reduzida. Carregamentos estáticos ou dinâmicos podem iniciar a liquefação de solos. Sob carregamentos dinâmicos, além de fontes sísmicas, o fenômeno foi também constatado como resultado de vibrações causadas pela cravação de estacas, explosões, etc. Sob carregamentos estáticos a liquefação foi observada em depósitos de solos naturais (Kramer, 1988), aterros (Mitchell, 1984) e depósitos de rejeitos de mineração (Kleiner, 1976). No Brasil, também existem evidências de rupturas em barragens de rejeito que sugerem como causa provável o fluxo por liquefação nos acidentes das barragens de rejeito das minas de Fernandinho (Parra e Pereira, 1987) e do Pico de São Luiz (Parra e Ramos, 1987). Por muitos anos acreditou-se que liquefação estava restrita a depósitos de areia apenas. Solos de granulometria fina foram considerados incapazes de gerar altos valores de 1 A previsão do fenômeno da liquefação depende de uma representação adequada da resposta não-drenada de solos granulares saturados. Resultados de estudos experimentais de laboratório têm sido publicados por décadas na literatura e vários modelos para previsão de comportamento foram desenvolvidos com base em formulações elastoplásticas. Neste trabalho, a investigação do fluxo por liquefação de solos sob carregamento estático foi feita considerando-se um modelo constitutivo simples proposto por Gutierrez e Verdugo (1995). Na implementação do mesmo, algumas modificações foram introduzidas pelos presentes autores na formulação original, o que permitiu aumentar a aplicabilidade do modelo conservando porém a relativa simplicidade da formulação matemática. 2.1 2. dε pvp = De acordo com a hipótese b) mencionada anteriormente, o incremento da deformação volumétrica plástica dε vp é obtido pela superposição de duas componentes obtidas de forma isolada. A primeira componente dε vpp é determinada assumindo-se uma relação constitutiva linear entre incrementos de deformação volumétrica e de tensão média efetiva dp′ , ou seja, dε pvp = dε = dε + 2dε p v ( p a p r dε sp = 23 dε ap − dε rp η = q p′ ) B (2) (3) β (4) onde β é um parâmetro do material e B0 um valor constante do módulo de deformação volumétrica para a condição inicial p′ = σ 3′ . Neste trabalho, utilizou-se da expressão empírica proposta por Janbu (1963) para incorporar a influência da tensão de confinamento no valor de B0 , seguindo-se o mesmo procedimento adotado no conhecido modelo hiperbólico (Duncan et al., 1980): (1a) (1b) q = σ ′a − σ ′r (dσ′a + 2dσ′r ) 1 d(σ′a − σ′r ) dq = 3 B 3B σ′ B = B0 3 p′ plástica cisalhante dε sp , assim definidos (σ′a + 2σ′r ) 1 3 Da observação dos resultados de ensaios experimentais, sabe-se que existe uma dependência do módulo de deformação volumétrica B em relação aos valores da tensão efetiva média p’, representada por Gutierrez e Verdugo (1995) através da seguinte relação O modelo de Gutierrez e Verdugo (1995) é baseado nas seguintes três hipóteses: a) as componentes de deformação são exclusivamente plásticas; b) o incremento de deformação volumétrica plástica dε vp é constituída por duas parcelas devidas à variação da tensão efetiva média dp′ e à dilatância plástica durante cisalhamento; c) a relação tensão-deformação do solo é representada por uma formulação hiperbólica que modifica os valores dos módulos de deformação com o estado das tensões efetivas. O modelo é formulado no plano triaxial em termos das medidas de tensão p′ : q , da razão de tensões η e dos incrementos de deformação plástica volumétrica dε vp e da deformação 1 3 dp ′ = B onde B é o módulo de deformação volumétrica. Pelo fato de que dσ r′ = 0 no ensaio triaxial de compressão convencional, tem-se MODELO CONSTITUTIVO p′ = Deformação Volumétrica Plástica σ′ B 0 = Bs p a 3 pa (1c) (1d) (1e) s (5) onde Bs e s são parâmetros do material e pa a pressão atmosférica de referência. Introduzindo-se a equação (5) em (4) obtém-se então a expressão final para a variação do módulo de deformação volumétrica com o estado de tensões efetivas, onde ε ap representa a deformação plástica axial, ε rp a deformação plástica radial, σ a′ a tensão efetiva axial e σ r′ a tensão efetiva radial 2 s σ′ σ′ B = B s .p a 3 3 p a p′ dp são relacionados pelo princípio das tensões efetivas para solos saturados: β (6) du = dp − dp ′ A segunda componente da variação da deformação volumétrica plástica dε vdp é devida ao fenômeno da dilatância do solo sob cisalhamento. Nos modelos constitutivos baseados em conceitos do estado crítico (modelo Cam Clay, por exemplo) é usual empregar-se uma relação tensão-deformação volumétrica dilatante do tipo dε pvd dε sp = ηcr − η Da equação (1e), dq = ηdp′ + p′dη (7) du = p′ η f = η cr cr' p m com η cr = 6 sin φ cr 3 − sin φ cr (14) onde φcr é o ângulo de atrito do solo no estado permanente (crítico) e p′cr a tensão efetiva média no estado permanente. Nota-se da equação acima que p′ → p′cr quando η f → ηcr , i.e, quando a tensão efetiva média p ′ atingir a tensão efetiva na condição de estado permanente p cr′ , a relação de tensão η f = η cr é mantida constante para qualquer valor de m, simulando a deformação do material com valor de tensão efetiva média constante. A partir de resultados de ensaios de compressão triaxial convencional, Gutierrez e Verdugo (1995) também concluíram que a variação da razão de tensão η com a (9) Considerando as equações (2), (6) e (8), resulta finalmente em s (13) Gutierrez e Verdugo (1995) consideraram que a razão de tensão no pico da resistência não drenada η f é função da tensão efetiva média de acordo com Durante um carregamento não-drenado, será nulo o incremento de deformação volumétrica total (equivalente ao incremento de deformação volumétrica plástica somente, de acordo com a hipótese a), i.e. β σ′ σ′ η (ηcr − η).dε ps dp′ = −B s .p a 3 3 ′ p p η a f 1 [dp′(η − 1) + p ′dη] 3 2.3 Variação da Razão de Tensão com a Deformação Cisalhante Plástica Variação da Poropressão dε pv = dε pvp + dε pvd = 0 (12) e se considerarmos, das equações (2) e (3), que dp ' = dq 3 , então o incremento da poropressão pode ser escrito como, onde η cr é a razão de tensão (η = q p′ ) no estado crítico ou permanente. Gutierrez e Verdugo (1995), argumentando que a equação (7) produz resultados pouco precisos para areias sob baixos valores da razão de tensão η , adotaram a seguinte relação, η dε pvd = (ηcr − η).dε sp (8) ηf onde η f indica a razão de tensão na resistência de pico. Observe-se que o incremento de deformação volumétrica plástica dε vdp é nulo para as condições η = 0 ou η = ηcr . 2.2 (11) deformação cisalhante plástica ε sp pode ser representada por uma formulação hiperbólica, (10) O incremento da poropressão du , em termos dos incrementos de tensão efetiva média, dp′ , e dos incrementos da tensão total η= ε sp a + bε sp (15a) onde os valores das constantes a , b correspondem respectivamente a 3 ηf = Gi = ε sp a + bε sp d dε sp = ε ps →∞ ε sp a + bε p s 1 b 1 = εsp =0 a (15b) Introduzindo-se a equação (21) em (20) resulta em (15c) σ′ σ ′ Gi = G r 3 3 p a p′ r ηf G i ε ps ηf + r σ′ σ′ dη = G r 3 3 p a p′ e derivada para obtenção da variação da razão de tensões dη em função da deformação cisalhante plástica dε sp dη = (η G i η 2f f + ) 2 G i ε sp dε sp (17) O valor de ε sp = ∫ dε sp pode ser expresso com base na equação (16) como ε sp = 1 Gi η 1− (18) η ηf 2.4 2 (19) No modelo original de Gutierrez e Verdugo (1995), a inclinação da tangente inicial G i foi considerada dependente da tensão efetiva média de acordo com σ′ Gi = G0 3 p′ α (20) onde α é um parâmetro do material e G0 um valor constante da inclinação da tangente para a condição inicial p′ = σ 3′ . De maneira similar ao procedimento para incorporação da influência da tensão efetiva média no módulo de deformação volumétrica inicial B0 , considerou-se neste trabalho a seguinte representação para o parâmetro G0 a partir da formulação empírica de Janbu (1963), σ′ G0 = Gr 3 pa 2 ηf − η dε sp η f (23) Procedimento Geral da Modelagem Assumindo um incremento da deformação cisalhante triaxial plástica dε sp são determinados o incremento da razão de tensão dη (eq. 23) e do incremento da tensão efetiva média d p ′ (eq. 10). Os valores dos parâmetros do material B (equação 6) e G (eq. 22), bem como da tensão efetiva média p′ e da razão de tensão η , são atualizados para cada incremento de deformação imposto dε sp . Quando o solo atingir a condição de estado permanente, com η = η cr e p′ = pcr′ (eq. 14), variações de tensão não mais acontecem ( dp′ = 0 ou dη = 0 ) mas o material continua a se deformar sob estado de tensões efetivas constante. que, substituído na equação (17), produz η −η dε sp dη = G i f η f ε Neste ponto completa-se a formulação do modelo de Gutierrez e Verdugo, na versão original de 1995 e na versão atual, modificada pelos presentes autores com a introdução das equações (5) e (21) na formulação básica. São portanto necessários 9 parâmetros do material para completamente descrever o modelo, a saber: β , Bs , s (equação 6), φcr′ , pcr′ , m (equações 14a e 14b), α , Gr , r (equação 22) os quais devem ser estimados a partir dos resultados de ensaios triaxiais convencionais. (16) G i ε sp (22) que permite reescrever a equação (19) como com G i representando a inclinação da tangente inicial à curva η versus ε s . A equação (15a) pode então ser reescrita, η= α 3. MODELAGEM EM REJEITOS DE MINERAÇÃO 3.1 Características do Material r (21) O material em estudo corresponde a amostras de rejeito de ferro, submetida ao ensaio convencional de compressão triaxial na condição não-drenada (Gomes et al. 2002), com onde Gr e r são parâmetros do material e pa é a pressão atmosférica de referência.. 4 velocidade de cisalhamento de 0,09 mm/min e tensões de confinamento σ 3′ = 0,05; 0,30 e 0,60 MPa. A Tabela 1, apresenta os valores dos parâmetros do material, determinados dos resultados destes ensaios, e necessários para simulação do comportamento tensãodeformação através da versão modificada do modelo de Gutierrez e Verdugo: 4. O modelo constitutivo utilizado apresenta habilidades para descrever o comportamento de fluxo por liquefação causado por carregamentos estáticos. Sua implementação é simples, baseada nos resultados de ensaios triaxiais CU e CD. A adaptação introduzida neste trabalho no modelo original de Gutierrez e Verdugo (1995) aumenta a potencialidade da sua aplicação, permitindo previsões de comportamento para vários valores da tensão de confinamento. A formulação adaptada também permite a representação de trechos de amolecimento da curva tensão – deformação. O modelo pode ser classificado como um modelo de módulos variáveis e conserva ainda as desvantagens clássicas de seus congêneres como a inexistência de um critério racional de descarregamento, desempenho final dependente das trajetórias de tensão, além de ignorar a ocorrência de deformações elásticas. Tabela 1 – Valores dos parâmetros do material. Parâmetro φcr′ (°) m Gr r α Bs s β pcr′ (MPa) CONCLUSÃO Valor 33,7 0,007 105,43 0,0013 0,20 135,42 0,09 0,20 0,60 Em seguida, o modelo foi aplicado para retroanálise das respostas das amostras de rejeito de ferro, conforme mostram as curvas tensão x deformação da Figura 1, e de onde pode-se observar que o modelo conseguiu representar o comportamento de amolecimento do material à medida que as tensões tendem a um valor constante na condição permanente. Resultados experimentais e previstos, com boa concordância entre ambos os conjuntos de valores, estão também comparados na Figura 2, em termos do desenvolvimento de poropressões durante cisalhamento das amostras, e na Figura 3, em termos das trajetórias das tensões efetivas. A Figura 4 estende os resultados mostrados na Figura 3, fazendo a previsão das trajetórias das tensões efetivas para vários valores da tensão de confinamento entre 0,3 e 0,6 MPa. Em geral, pode-se afirmar que o modelo conseguiu representar com boa aproximação as respostas do material na condição não-drenada, tanto em termos das curvas tensão-deformação quanto da variação das poropressões e das trajetórias de tensões efetivas. O modelo tem formulação simples, de fácil implementação numérica e com parâmetros do material que podem ser determinados facilmente dos resultados de ensaios triaxiais convencionais. Figura 1 - Retroanálise do comportamento tensão x deformação da amostra de rejeito para tensões de confinamento σ 3′ = 0,30 e 0,60 MPa. Figura 2 – Retroanálises das poropressões desenvolvidas durante cisalhamento das amostras ( σ 3′ = 0,30 e 0,60 MPa). 5 de Mineração. Anais do III SBMR – Simpósio Brasileiro de Mecânica das Rochas, São Paulo – SP, outubro, pp. 91-101. Gutierrez, M. e Verdugo, R., 1995. Analysis of Flow and Liquefaction of Sand Via a Simple Model. Earthquake Geotechnical Engineering, ed. Ishihara, Balkema, Rotterdam, pp. 893-898. 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