errada
Tammy Luciano
IMPRIMATUR
Deus sabe, o que eu quis foi te proteger
do perigo maior que é você.
Do Sétimo Andar, de Rodrigo Amarante
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Aquela foi a primeira das muitas vezes em que eu quis me enganar achando que nunca mais pensaria nele, meu ex-namorado. Merda. Era como
um vício. Mesmo que eu não quisesse, ele estaria dentro de mim, colado
nas paredes da minha alma, indo e voltando como em nossa última
transa. Seria a última vez que eu o encontraria, antes dele implorar para
voltar. Eu sonhava com esse dia. Olhava todas as fotos e tinha vontade
de telefonar. Sentia saudades dos nossos jogos de ofensa, dependência e
ataque mental, nosso inferno de muitas faces. Inferno que se prolongou
durante meses seguidos. Éramos felizes nos fazendo mal.
Nosso envolvimento começou sem que a gente percebesse. De repente, ele estava dentro da minha vida, querendo as mesmas coisas que
eu, falando sobre os mesmos assuntos. Tínhamos amigos em comum
que acabaram acreditando que a gente podia se dar bem. Começamos
trocando e-mails, falando algumas vezes ao dia por telefone, mandando
algumas mensagens pelo celular e achando aquilo bom, apenas bom.
Tudo sem nenhuma pretensão, um início de encontro bobo, sem nenhuma indicação do quanto aquilo seria enorme na minha vida.
O primeiro encontro real aconteceu durante um show do nosso
cantor preferido. Um grupo de amigos marcou uma noitada sem fim
que começou na apresentação do artista. Depois, sairíamos para beber,
para dançar, para se estragar, para esquecer o dia a dia que era uma
chatice.
Na hora marcada, estávamos na porta do Canecão, uma gritaria
só, um abraçando o outro. Loucos para assistir ao show e eu louca para
encontrá-lo. Ele foi o último a chegar. Eu já estava achando que tinha
blefado e me deixaria sozinha. Quando ele chegou, a intimidade dos
e-mails e dos telefonemas parecia não existir. Eu estava nervosa, sem
graça e ele também parecia ter travado o corpo. Nossos amigos fizeram
festa, soltaram piadinhas, todo mundo acabou rindo e entramos na
brincadeira.
Conversamos pouco, como é normal em um show onde não queremos perder detalhes. Cantamos juntos, demos as mãos ao ouvir uma
das melodias mais românticas. Ali, ficou claro que muito aconteceria.
Meu coração deu sua primeira disparada na nossa história, minha
cabeça ficou meio zonza e ele apertou minha mão, parecendo sentir a
minha euforia neurológica. Aquele foi o melhor show da minha vida.
Enquanto nos beijávamos, me vi pela última vez mentalmente saudável.
Eu não sabia, mas enquanto me apresentava para ele, abria todas as
portas das loucuras que guardava dentro de mim.
Depois do show, saímos para beber. Meus amigos eram engraçados
e a gente se reunia vez por outra para contar o que cada um viveu nas
últimas semanas. Algumas histórias, a gente contava e recontava, rindo
como na primeira vez. Falamos do show para guardar o maior número
de informações possíveis. O cantor cortou um pouco o cabelo? Aquela
guitarra não era usada há séculos! Quem era aquele cara que estava na
entrada, é novo na produção? Todos na mesa eram fãs do cantor, então
nosso olhar no espetáculo era sempre mais profundo.
Tentei fugir da conversa e travar com ele um papo paralelo. A
conversa começou monossilábica, mas depois já estávamos falando de
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todas as nossas diversidades mentais, contando um pouco de nossas
vidas e aquelas informações básicas que o tempo comprova ou não.
Expliquei que era filha única, ele falou da irmã, eu contei da minha
faculdade de Letras...
Saímos do bar às quatro da manhã. Eu estava eufórica, querendo
que chegasse logo o dia seguinte e ele me ligasse novamente.
Ele ligaria.
Quando nos despedimos, me olhou nos olhos, mostrando um
envolvimento declarado e falou que telefonaria para marcarmos uma
nova saída. Fui para casa me sentindo a mais vitoriosa de todas.
O sono não veio. Fiquei horas pensando. Eram muitas informações
para uma noite só: aquele show, o clima de vida perfeita, o olhar dele,
o perfume que ficou, o encontro que adorei, o telefonema que ainda
aconteceria. Deitada na cama, minha vida parecia ter rumo novo e
imediatamente percebi que estava apaixonada. Uma vontade enorme de
encontrá-lo, mesmo que tivéssemos acabado de nos ver. Pensamentos
e mais pensamentos. Onde ele andou esse tempo todo? Por que não
chegou antes na minha vida? Por que o destino sempre demora a nos
fazer encontrar quem queremos?
Senti no ar que a mesma surpresa boa tinha acontecido para ele.
Já havíamos falado bastante por Internet e o encontro tinha sido uma
espécie de confirmação de que nos daríamos bem, que seria bom e que
a atração virtual era real. E eu quis mentalmente acelerar o tempo, fazer
passar uns meses só para me fazer entender que ele era sim o amor
da minha vida, o homem mais especial de todos e eu jamais queria
esquecê-lo. Era cedo para ficar na cama dizendo todas aquelas coisas,
mas eu o queria demais, a noite tinha sido especialmente perfeita e
dormi pedindo que ele tivesse sentido o mesmo.
Acordei no dia seguinte mais bonita. Há tempos isso não acontecia.
Impressiona o poder que as paixões têm na nossa vida. A minha rua,
que eu achava feia, com casas estranhas, estava simplesmente linda,
com flores por todos os lados, parecendo uma daquelas românticas ruas
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de Paris. Se havia mesmo flores, não sei. Tudo estava lindo, eu estava
apaixonada e a visão que tinha era aquela e pronto. Imagina se eu ia
discutir quando tudo parecia estar acontecendo da melhor maneira? Se
fosse um dia de sol, estaria o dia mais lindo de todos. Se fosse um dia de
chuva, seria a chuva mais doce de todos os tempos. Eu mudava como
um camaleão de acordo com as mudanças da minha vida. Não existia
razão nos meus dias, somente emoção. Eu estava ótima e fiquei melhor
ainda quando vi que ele tinha me mandado um e-mail: “Adorei o show
ontem. Encontrar você foi um sonho. Adorei um monte de coisas. Esse
é o perigo. Demorei a dormir, pensando em você!”
Não existe nada melhor do que a pessoa se entregar quando você
também se entrega. O adorei falado no e-mail me fez entender que ele
queria me encontrar novamente. Fiquei eufórica. De repente, minha
vida inteira, minha faculdade, minha família, meus amigos, meu
passado, tudo passou a não ter importância. Eu só queria pensar nele.
Minha mãe falava comigo e eu simplesmente não escutava. Nunca a
escutei de verdade. Agora, não a escutava nem mentindo. Fui chamada
de idiota por ela, que me perguntava as coisas enquanto eu saía sem dar
resposta alguma. Essa menina tá maluca! Escutava de longe o que as
pessoas diziam, enquanto me trancava no quarto para pensar no que
estava acontecendo. Só pensava nele, ficava repetindo milhões de vezes
as mesmas cenas, tentando descobrir algo em que não tinha reparado.
Era o mesmo que eu fazia depois do show do cantor, repassar tudo para
detectar algo além. Ali, vi que o estava colocando no mesmo grau de
importância do cantor que virou trilha sonora das minhas reflexões.
A única coisa que me fazia não pensar nele eram as compras.
Eu era profissional em sair com minhas amigas para gastar dinheiro
e não tinha culpa de ter nascido rica, em uma casa em que dinheiro
simplesmente não era uma preocupação. Gostava da minha vidinha
fútil de poder gastar como quisesse. Até sofria com as reclamações da
minha mãe e as ameaças de que perderia meu cartão de crédito, mas
isso nunca acontecia de verdade. O certo é que a boa grana que meus
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pais me davam para a diversão pouca diferença fazia na vida deles. A
empresa do meu pai me dava dinheiro sem que ele se lembrasse disso
ou precisasse fazer contas me incluindo como despesa.
Para comemorar meu momento feliz, fui ao shopping comprar
roupas, sapatos e uma bolsa maravilhosa. Depois das compras, respondi
o e-mail, tentando ser superficial, natural, simples e básica nas palavras.
Ele me ligou logo após receber o e-mail, dizendo que estava feliz por
ter recebido minha resposta. A gente não tinha mais que fazer clima
de desencontro. Os dois queriam e está acabado.
Nosso segundo encontro foi desses simples, bem casual com
sorvete de chocolate para comemorar. Aquela simplicidade toda me
impressionava. Eu não me reconhecia, tudo estava tão plácido. Marquei nosso encontro no shopping, onde precisava trocar uma sandália.
Ele chegou primeiro e de longe nos vimos. Caminhamos olhando um
para o outro. Fiquei pensando milhões de coisas, enquanto me aproximava. Ele estava sentado perto de uma livraria. Ainda consegui ver
as pessoas folheando páginas de livros e antes que me distraísse com
aquela imagem, lembrei que ele estava ali e eu tinha que mostrar minha
alegria em reencontrá-lo. Ele sorriu levemente. Fiz o mesmo, embora
não gostasse muito de sorrir.
Queria acertar naquele namoro e já o considerava meu namorado.
Nós mulheres consideramos tudo antes. Homem só se entrega quando
está completamente dentro de uma relação. A gente já vai metendo os
pés pelas mãos, acreditando que eles são nossos quando eles, mesmo
com algum desejo, ainda estão cogitando possibilidades. Ao contrário
de nós, que abandonamos amigos e família, eles pensam muito mais
nos colegas, no cachorro e em tudo mais que podem perder.
Fomos andando pelo shopping, olhando as lojas, falando de mais
trivialidades, enquanto os pensamentos, ao contrário giravam em torno de seriedades, futuros e possibilidades. Ele comentou, por alto, do
show. Estranhamente, o cantor não tinha muita importância para mim
naquele instante. Queria que falássemos de nós. Mesmo assim, fingi
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estar interessada no assunto. Por um minuto, desejei estar em outro
lugar. Depois, me acalmei, imaginando que falar do show era apenas
um pretexto para se entregar a mim. Ele ia comentar sobre o cheiro de
atração que estava no ar ou só eu estava sentindo? Então por que ele
tinha ido me encontrar? Por que perder tempo com uma introdução
tão longa sobre o que achou do show? Era opinião demais para o meu
gosto. Depois, eu saberia que ele entendia de música e tinha mania
de avaliar shows como se fosse um crítico do assunto ou um desses
jornalistas da antiga.
Em determinado momento, caminhando pelas lojas, comecei a
anotar mentalmente o que compraria para mim assim que voltasse ao
shopping. Ele deve ter notado minha total cara de tédio, porque acabou
encerrando o assunto bruscamente, me perguntando sobre o que eu
gostaria de conversar. Fui bem direta e disse que o assunto preferido era
falar de nós. Ele riu, voltou a falar do cantor, uma frase meio ridícula
que não entendi, até que também se entregou:
– Eu queria muito te encontrar hoje. Acordei pensando em você!
Mila! Mila! Mila! Gosto do seu nome!
– Que bom! Você sempre acorda pensando em alguém?
– Nem sempre. Só quando a cabeça passou a noite sonhando com
essa pessoa...
– Isso é bom, imagino.
– Claro. Isso é bom sim, sinal de que você andou rondando minha
cabeça. Nem sempre isso acontece.
– Você não é de gostar fácil?
– Não. Minha mente não é obediente. Aliás, ela vive me desrespeitando. Peço a ela que goste de uma mocinha boazinha, mas ela nunca
faz isso por mim.
– Ué, mas eu sou uma mocinha boa. Boazinha até demais.
– É isso que estou estranhando. Pela primeira vez minha mente
encontra alguém para valer a pena. Tenho certeza de que não vou me decepcionar. Você realmente parece alguém do bem. Olha que coisa boa!
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Assim passamos a nos ver, escutar as músicas do cantor juntos, ir a
todos os seus shows, inclusive àqueles fora do Rio de Janeiro. Foi nessa
época que a gente decidiu montar uma banda. Eu adorava cantar, ele
adorava tocar instrumentos e entendia de música. Quando vi, nosso
namoro estava mais intenso do que nunca.
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