A MARgem evista Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes · ISSN 2175-2516 O UNIVERSAL E A HETEROGENEIDADE NO POEMA “TODAS AS VIDAS”, DE CORA CORALINA O Lucas Martins Gama Khalil (IC-FAPEMIG/UFU)[1] presente texto objetiva realizar algumas reflexões sobre a constituição da instância autoral em textos perpassados por atravessamentos autobiográficos. Considerando o arcabouço teórico utilizado na produção desse trabalho – a Análise do Discurso –, concebe-se o autor de obras literárias como uma categoria de sujeito e, por isso, trabalha-se com noções referentes a essa problemática, principalmente no que diz respeito à heterogeneidade constitutiva do sujeito. Tendo como objeto específico um texto de origem literária, o poema Todas as vidas, da escritora goiana Cora Coralina, faz-se recorrentes referências à Teoria da Literatura, não como ferramenta para aplicação, mas sim como um terreno de possíveis questionamentos. É a partir justamente de conceitos um tanto “estabilizados” em algumas formulações, exemplificadas no decorrer do texto, dentro do que se define Teoria da Literatura Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 que serão desenvolvidas algumas indagações. Os enunciados relativos às noções de particular e de universal, por exemplo, são reproduzidos e reformulados desde a Poética de Aristóteles e parecem constituir um conjunto de enunciados recorrente em se tratando do estudo do texto literário. Ao se falar de textos com atravessamentos biográficos, ou seja, que remetem a certa “empiricidade” vivenciada, tais noções se confundem, perdendo sua força discriminatória. Em textos cujo autor deixa transparecer elementos autobiográficos, a escrita da literatura e a escrita da história, duas formas aparentemente imiscíveis, são fadadas a 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 171 coexistir em um mesmo espaço de construção de sentidos. Consequentemente, a função-autor se insere nessas fronteiras já disformes, trazendo à tona a possível relação de identidade ou de afastamento entre o sujeito autor e o sujeito representado na obra. Recorre-se, durante esse percurso, a reflexões teóricas de estudiosos como Michel Foucault, Michel Pêcheux e Mikhail Bakhtin a fim de entender, de forma geral, como se dá o funcionamento do sujeito em suas características fundamentais. Abaixo, encontra-se o texto a partir do qual serão desenvolvidas as discussões propostas no presente estudo: TODAS AS VIDAS Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo... Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho, Seu cheiro gostoso d’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano. 172 Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. 1960 2010 ILEEL 50 ANOS Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada. Vive dentro de mim a mulher roceira. – Enxerto da terra, meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos. Seus vinte netos. Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo alegre seu triste fado. 1960 2010 ILEEL 50 ANOS Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a vida mera das obscuras. O sujeito autobiográfico: a obra coralineana entre o universal e o particular 173 A produção literária da escritora goiana Cora Coralina faz um constante percurso de oscilação entre o escrever sobre si mesmo e, nas palavras da própria escritora, o escrever “que possa sobreviver à Autora” (CORALINA, 2001, p. 24). Com a análise do poema Todas as vidas, busca-se refletir sobre essa figura movente da autoria e, sobretudo, acerca da constituição do sujeito nos variados entre-lugares em que ele se inscreve. Em diversos enunciados relativos à Crítica ou à Teoria da Literatura, como será demonstrado, a relação do “sujeito representado” com os “sujeitos do mundo” é fundamentada pela dicotomia particular/universal, fator que implica inclusive o caráter literário de uma obra. Questiona-se, então, a aplicação de tal dicotomia na obra de Cora Coralina a partir do lugar teórico da Análise do Discurso, ou seja, concebendo o sujeito como heterogêneo, coletivo e ideológico. Na medida em que se desenvolve a problemática acima proposta, o cerne da discussão perpassa constantemente a questão kantiana “Quem somos nós?”, dirigida por Foucault à esfera do sujeito. O conhecimento sobre o ser do sujeito, principalmente no que se refere à sua unidade em relação a outros sujeitos, é articulado de diversas formas nas situações discursivas. No senso comum, por exemplo, são recorrentes enunciados do tipo: “Todos nós somos iguais” ou, de maneira inversa, “Você é único”, “As pessoas são diferentes, especiais”. As variações são muitas, cada uma delas adequada a uma situação, na maioria das vezes com tom moralizante ou de sentido compensatório. Na literatura, a busca constante por uma unidade dos sujeitos é verificada principalmente nas proposições que apóiam a “transcendência em relação ao individual”, o “alcance do universal”, proposições essas que não poucas vezes atuam como verdadeiros dogmas na construção do Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 modelo da “verdadeira” literatura. O poema introdutório do livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, por exemplo, suscita inclusive um questionamento sobre o lugar da literatura como instituição: “Este livro/ Versos... Não/ Poesia... Não/ Um modo diferente de contar velhas estórias” (CORALINA, 2001, p. 27). Ainda no poema introdutório do livro, chamado Ressalva, a escritora goiana explicita o caráter biográfico que atravessa a sua obra: “Este livro foi escrito/ por uma mulher/ que no tarde da Vida/ recria e poetiza sua própria/ Vida” (CORALINA, 2001, p. 27, grifos nossos). Ao mesmo tempo em que o “pano de fundo” de sua criação poética torna-se cada vez mais evidente, ela começa a elaborar um caminho inverso, isto 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 174 é, mostrar que a sua obra não se fecha em si mesma e na figura de um Autor empírico. O excerto “Este livro pertence mais aos leitores do que a quem o escreveu”, para citar um exemplo, denota justamente a abertura da obra literária no processo não só de produção, mas também de circulação e recepção de sentidos vários. A escrita autobiográfica não é, na perspectiva teórica adotada, uma prática que gira em torno de um sujeito individualizante, mesmo porque a noção de autor para a Análise do Discurso retorna necessariamente à questão do descentramento do sujeito. De acordo com Michel Pêcheux (1997), o sujeito tem a ilusão de ser a origem e o centro do seu dizer, desconsiderando as práticas exteriores a si, assim como a relação de alteridade inerente às situações discursivas. Essa presença do outro na “escrita de si” é focalizada por Michel Foucault quando conclui que “escrever é, portanto, se mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (FOUCAULT, 2006, p. 156). Isto é, o sujeito construído pela obra autobiográfica marca seu lugar não de forma isolada, mas sim em relação a um grande complexo de diferentes construções identitárias. Cora Coralina constrói o poema em análise focalizando características de diferentes posições-sujeito, como se pode observar no seguinte trecho: “Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado/ acocorada ao pé do borralho/ olhando para o fogo”; “Vive dentro de mim/ a lavadeira do Rio Vermelho/ Seu cheiro gostoso/ d’água e sabão” (CORALINA, 2001, p. 31). A cada estrofe, as identidades postas são reforçadas por meio de atributos e ações descritas pela autora em uma escrita de “fragmentos”, na qual o conteúdo imagético sobrepõe-se à linearidade de uma Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 sequência lógica referencial (“Pimenta e cebola. / Quitute bem feito. / Panela de barro. / Taipa de lenha.”). Ao realçar bem as práticas e características de cada uma de suas “facetas”, o texto alerta-nos para uma constituição necessariamente heterogênea do sujeito. O conceito de heterogeneidade contrapõe-se à visão de sujeito homogêneo, no interior do qual não existem contradições, dominâncias, subordinações originárias do interdiscurso. Authier-Revuz (2004) descreve da seguinte forma alguns tópicos constituintes do funcionamento da heterogeneidade: 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 175 O pertencer das palavras e das sequências de palavras ao discurso em curso; em todas as formas de remissão a outro discurso já dito, campo muito vasto de citação integrada, da alusão, do estereótipo, da reminiscência, quando esses fragmentos são designados como 'vindos de outro lugar'. (AUTHIERREVUZ, 2004, p. 16-7) A afirmação de uma exterioridade constitutiva do sujeito é atravessada por esses retornos ao já-dito, alusões, pré-construídos etc, fatores que negam a idéia de sujeito como centro de seu dizer. É importante citar a função do estereótipo, citada no trecho acima pela teórica francesa, dentro do poema em análise. Cora Coralina utiliza as imagens estereotipadas para delinear a figura de cada uma de suas posições-sujeito postas durante o poema. Aliada à noção de descentramento do sujeito, faz-se presente o fundamental papel da heterogeneidade, visto que “o jogo complexo das fronteiras móveis, que constituem, atravessando-as esses “falares”, é o de práticas linguageiras socialmente diversificas e contraditórias, inscritas historicamente” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 30). É importante salientar que, ao posicionar-se em certas formações discursivas, o sujeito deixa de participar de algumas outras formações discursivas. Ou seja, no processo de formação de subjetividade, destaca-se a seleção de lugares dos quais o sujeito pode ou não dizer algo em uma determinada situação espaço-temporal. No poema em análise, por exemplo, a questão do gênero é de grande importância, visto que um lugar comum entre as tantas posições ocupadas pelo sujeito autobiográfico é o lugar da mulher: a cabocla velha, a lavadeira do Rio Vermelho, a mulher cozinheira, a mulher do povo, a mulher roceira, a mulher da vida. Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 Na última estrofe do poema (“Todas as vidas dentro da minha/ Na minha vida – / a vida mera das obscuras”), percebe-se também como ponto de intersecção entre as posições-sujeito acima citadas o discurso de uma classe desfavorecida, oprimida. As palavras “mera” e “obscuras”, por exemplo, fazem forte alusão a fatores de condição social. Quanto à relação da instância autoral com o sujeito constituído na obra literária, depara-se novamente com a dicotomia particular/ universal. O conceito de particular usado no contexto de tal oposição provém da noção de autor como marca da individualidade; já o conceito de universal é proveniente do pensamento clássico, no qual uma obra se torna literária se o autor usar artifícios para sua obra alcançar o 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 176 homem como totalidade, tendo em vista três preceitos básicos: beleza, bondade, verdade (SILVA, 1988). A chamada “ruptura” do padrão clássico não deve ser entendida como uma súbita troca de valores, mas sim como um fato descontínuo, do qual ainda restam resquícios na constituição dos conceitos em parte das teorias acerca da literatura. Um desses resquícios é justamente o papel da universalização como fator de literariedade. Ao se falar de autobiografia, como na obra de Cora Coralina, tende-se na maioria das vezes a “optar” por um juízo de valor ligado ao particular e, consequentemente, marcado pela diminuição da literariedade. Entretanto, utilizar-se-á aqui as noções de autoria para a Análise do Discurso, com o intuito de refletir tal dicotomia instituída antes de retornarmos à análise do poema em si. Um dos preceitos básicos para esse percurso ser realizado é abandonar a concepção de autor como entidade empírica, passando a entendê-lo como um sujeito, inscrito em determinados contextos e interpelado por formações discursivas e ideológicas. O nome do autor, característica de sua individualidade, tem praticamente uma função classificatória: permite reagrupar e demarcar um conjunto de textos: O nome como marca individual não é suficiente quando se refere à tradição textual. Como, pois, atribuir vários discursos a um único e mesmo autor? Como fazer atuar a função autor para saber se se trata de um ou de vários indivíduos? (FOUCAULT, 2001, p. 277) 1960 2010 ILEEL 50 ANOS Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 Outra consideração importante para se entender a autobiografia dentro do lugar teórico adotado é a noção de memória discursiva. Para a Análise do Discurso, a memória não é vista como as lembranças de um ser individual, mas sim como elementos que se constituem historicamente e são solidificados por meio das relações enunciativas. Na autobiografia, a concepção da individualidade parte principalmente do princípio de transposição da memória de um sujeito empírico. Em contrapartida, quando se fala em memória discursiva, pensa-se em um sujeito plural, fator que reafirma a cisão da identidadeespelho entre autor e obra. É também relevante incluirmos no nosso horizonte teórico o conceito de 177 exotopia, formulado por Mikhail Bakhtin. Segundo Bakhtin, não se encontra na escrita a transcrição literal do “real”, mas sim a criação de algo novo, fora do tempo e do espaço relativo ao acontecimento exterior: Se narro (ou relato por escrito) um acontecimento que me acaba de acontecer, já me encontro, enquanto narrador (ou escritor), fora do tempo e do espaço onde o episódio ocorreu. A identidade absoluta do meu “eu” com o “eu” de que falo é tão impossível quanto suspender-se a si próprio pelos cabelos. Por mais verídico, por mais realista que seja o mundo representado, ele não pode nunca ser idêntico, do ponto de vista espaço-temporal, ao mundo real, àquele que representa, àquele onde se encontra o autor que criou essa imagem. (BAKHTIN apud AMORIM, 2006, p. 105) A constituição de um sujeito “outro” por meio da aparente via do “mesmo” explicita a alteridade constitutiva do sujeito, que se materializa na relação descontínua entre o fato empírico e o conteúdo da escrita. No poema Todas as vidas, a construção poética de Cora Coralina é direcionada para uma multiplicidade de constituições subjetivas, como se pode visualizar na análise da estrofe transcrita a seguir: “Vive dentro de mim / a mulher roceira. / - Enxerto da terra, / meio casmurra. / Trabalhadeira. / Madrugadeira / Analfabeta. / De pé no chão. / Bem parideira. / Bem criadeira. / Seus doze filhos, / Seus vinte netos” (CORALINA, 2001, p. 33). O verso inicial da maioria das estrofes (“Vive dentro de mim”), especialmente a palavra “mim”, funciona de maneira análoga a um dêitico, na Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 medida em que localiza o leitor num ambiente inicialmente autobiográfico. A leitura dos versos seguintes, por sua vez, desloca a constituição do sujeito dentro do poema, visto que as características dadas a cada posição-sujeito funcionam como marcadores de pluralidade. Expressões como “trabalhadeira”, “analfabeta”, “meio casmurra”, têm caráter essencialmente plural em se falando da “mulher roceira”. Recorre-se então à distinção entre a proposição relativa explicativa e a proposição relativa determinativa, um dos pontos de partida de Michel Pêcheux no livro Semântica e Discurso. “A relação explicativa... intervém como uma incidência do pensamento sobre a ordem das essências” (PÊCHEUX, 1997, p. 44), isto é, diferentemente da relativa determinativa, que individualiza um objeto, a relativa explicativa toma o objeto nas suas características de 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 178 conhecimento comum. Esses conceitos da gramática de Port-Royal são refletidos por Michel Pêcheux quando da formulação do conceito de pré-construído. Cora Coralina, no poema Todas as vidas, trabalha as diversas posições-sujeito com base justamente no pré-construído, ou seja, o “sempre-já-aí da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalização” (PÊCHEUX, 1997, p. 164). Isso significa que a imagem da cabocla velha – “Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado/ acocorada ao pé do borralho/ olhando para o fogo. Benze quebranto/ Bota feitiço/ Ogum. Orixá/ Macumba, terreiro/ Ogã, pai-de-santo” - , por exemplo, sempre está ligada a outras palavras, enunciados, sentidos; por isso, a apresentação da cabocla velha do poema é seguida de versos-imagens como “Macumba, terreiro.”; “Ogum. Orixá.”; “Ogã, pai-desanto”. Portanto, segundo Pêcheux, toda articulação discursiva: Corresponde, ao mesmo tempo, a: “como dissemos” (evocação intradiscursiva); “como todo mundo sabe” (retorno ao Universal do sujeito); “como todo mundo pode ver” (universalidade implícita de toda situação “humana”). (PÊCHEUX, 1997, p. 171) Em se tratando de questões relativas ao préconstruído, o “universal”, no sentido usado por Pêcheux, torna-se bastante recorrente. No decorrer do poema, entretanto, depara-se com os seguintes versos: “Vive dentro de mim/ a lavadeira do Rio Vermelho”. A inclusão da relativa determinativa “do Rio Vermelho” faz avançar a nossa discussão. Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 É nesse ponto que se começa a problematizar o conceito de “universal” dentro de certas formulações teóricas acerca da Literatura, através das leituras acerca da noção de sujeito para a Análise do Discurso e também por meio da concepção de “universal” nos estudos de Pêcheux. Em algumas formulações de estudos abarcados pela Teoria Literária, o atributo “universal” é considerado recorrentemente parte essencial do texto literário, como se observa na seguinte proposição: 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 179 A transcendência e a acausalidade da escrita dispensam qualquer simulacro do autor, pois todo o fragmento textual é uma parcela atualizada do texto infinito que não cessa de se escrever, uma manifestação particular da escrita universal e ilimitada... (SILVA, 1988, p. 224) Ao afirmar o universal em detrimento do particular, Silva (1988) afasta fortemente o autor empírico e a obra. Os dois tornam-se, nessa perspectiva, incompatíveis, pois a obra apenas “abre-se” ao leitor quando tal entidade particular/individual (autor) deixa de “existir”. A articulação entre a noção de universalidade em Pêcheux (1997), a noção de autor em Foucault (2001) e em Bakhtin (2006) e a noção de autor/ universalização na literatura é tranquila e pouco conflituosa quando se trata do apagamento da idéia da individualidade, do fato particular. Essas concepções teóricas entram em tensão quando se depara com a questão da escrita literária específica, visto que a noção de universalização para parte considerável das vertentes da Teoria da Literatura (fundamentadas, em alguns aspectos, com base na Poética de Aristóteles) é característica determinantemente exclusiva do texto literário. Trabalha-se, desse modo, com essa tensão, procurando problematizar/ questionar a diferenciação entre o texto considerado literário e o texto considerado não-literário, entre o texto que se universaliza e o que supostamente não se universaliza. Aristóteles propõe a diferenciação entre Literatura e História no sentido de que a primeira caracteriza-se pela busca do universal através do particular e a segunda privilegia exclusivamente o particular, o fato empírico. Tal concepção, recorrente até hoje em alguns estudos da literatura, propõe uma divisão perfeita e fechada entre essas duas “formas” de escrita. Essa teoria dicotômica falha Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 principalmente quando se pensa numa Literatura isenta de atravessamentos históricos, assim como quando se concebe a História como a transposição literal de uma empiricidade indiscutivelmente verídica. As fronteiras que “separam” o particular e o universal, a História e a Literatura, tornam-se mais tênues ainda quando se trata de autobiografias, e mesmo de biografias em geral. Pergunta-se, então: toda e qualquer biografia, por se remeter a uma dada empiricidade “particularizante”, estaria fadada a ocupar um lugar fora do que se considera Literatura? Retornando ao poema de Cora Coralina, observa-se a figura do Rio Vermelho 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 180 (rio que banha o Estado de Goiás) como um marcador que diz respeito à autobiografia da autora, além de constituir uma proposição relativa determinativa, aparentemente deslocando o padrão universal do poema. Ao indagarmos o possível caráter particular de uma obra literária biográfica, muitas das repostas frequentemente postas, geralmente baseadas na dicotomia aristotélica supracitada, apresentam-se aparentemente indiscutíveis, mas trazem imprecisões em alguns aspectos. Antonio Tosta, em artigo sobre a escritora, afirma: “Cora universaliza o particular, possibilitando, a partir da base local de sua voz, a reflexão sobre alguns valores e condições que são comuns a todos os seres humanos” (TOSTA, 2006, p. 28). A afirmação do estudioso, apesar de descrever o resultado da universalização de maneira bastante eficiente, deixa de tocar numa questão fundamental: que fator permite ler textos de Cora Coralina sob um ponto de vista universalizante e ler uma biografia de Getúlio Vargas, por exemplo, de um ponto de vista particular (sendo que ambos os tipos de escrita apresentam “situações humanas”)? Sinteticamente, o que potencializa a tão requerida transcendência do sujeito representado face à sua individualidade? As verdades, para Michel Foucault, são nada mais que vontades de verdade, veiculadas em diferentes épocas, espaços, situações. Quando a(s) Teoria(s) da Literatura propôs constituir-se como ciência, foram estabelecidas algumas vontades de verdade. Na delineação do objeto, por exemplo, precisava-se “decantar” o texto literário e o texto nãoliterário. Desse modo, a “literariedade”, conjunto de fatores que “identificam” uma obra como literária, foi tomando formas cada vez mais acentuadas. É interessante salientar que mesmo as chamadas ciências não conseguem se manter fora da Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 ideologia, isto é, as verdades difundidas pela ciência também são condicionadas por fatores sócio-históricos, como explica Michel Pêcheux: 1960 2010 ILEEL 50 ANOS O momento histórico do corte que inaugura uma ciência dada é acompanhado necessariamente de um questionamento da forma-sujeito e da evidência do sentido que nela se acha incluída. Em outros termos, a especificidade de todo corte é, parece-nos, a de inaugurar, num campo epistemológico particular, uma relação do “pensamento” com o real... (PÊCHEUX, 1997, p. 193) 181 Considerando que os conhecimentos científicos, tal como a universalização, são produzidos em sociedade e na história, pode-se desenvolver mais a fundo o questionamento sobre o conceito de universalização na obra de Cora Coralina. A parte inicial do livro Poemas dos becos de goiás e estórias mais é repleta de pequenos “prefácios” que antecedem a obra poética em si. Tais textos são comentários de outras pessoas (editores, estudiosos) e da própria Cora Coralina sobre o livro. É importante a análise desses outros textos porque a obra não se constitui de forma isolada, mas sim em relação com uma rede de enunciados anteriores e coexistentes. Isso quer dizer que os valores e sentidos atribuídos a um texto são decorrentes necessariamente do que lhe é exterior. Para Michel Foucault: As margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede... Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão; por mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra: sua unidade é variável e relativa. Assim que a questionamos, ela perde sua evidência; não se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de discursos. (FOUCAULT, 2000, p. 26) 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 182 Na introdução do livro Poemas dos becos de goiás e estórias mais (2001), feita pelos editores, é fortemente presente a idéia de uma poética voltada para a “ambiência Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 tipicamente goiana”, “uma moldura de terra-mãe de Cora Coralina”. Do mesmo modo, os outros “prefácios” também afirmam uma escrita que fala de certa “vivência empírica”. Simultaneamente, são encontrados outros tipos de enunciado que aparecem com o objetivo de sustentar a questão da universalização e, consequentemente, afirmar o caráter literário da obra que será lida. Alguns exemplos podem ser visualizados: “Este livro tem o horizonte humano sem fronteiras... o livro assume a dimensão do universal” – comentário dos editores (CORALINA, 2001, p. 8); “Com a mesma humildade meta-humana dos seres criados para povoar o infinito espacial” – comentário de J. B. Martins Ramos – (CORALINA, 2001, p. 9); “sem deixar... de restabelecer o tráfego com a universalidade do humano” – comentário de Oswaldino Marques (CORALINA, 2001, p. 15); “que possa ultrapassar as cidades”, “possa ser lido nas prisões e levar ao presidiário a última página deste livro num apelo de regeneração e na minha oferta de fraternidade humana” – comentário introdutório da própria autora (CORALINA, 2001, p. 23). Os textos citados acima constituem uma rede de enunciados na qual se esboça uma imagem sobre a obra poética de Cora Coralina. O leitor, instância essencial na reprodução e transformação de sentidos, depara-se com a obra de Coralina recorrendo a uma pré-construção imaginária, um complexo discursivo que gira em torno desse objeto. A leitura, portanto, passa de certa forma por um processo de determinação histórico-ideológica. É através dessa concepção de leitura como um grande emaranhado de sentidos produzidos pelo intradiscurso, funcionamento do discurso em relação a si mesmo (o que se diz, o que já foi dito e o que será dito dentro de uma determinada formação discursiva), ao lado do interdiscurso que se observa o processo pelo qual a instância da universalização é atribuída aos textos de Cora Coralina e da literatura stricto sensu de uma forma geral. A leitura literária, assim como a leitura jornalística, a leitura da História etc; são práticas específicas na medida em que se instituiu historicamente uma maneira de ler “adequada” a cada uma delas. Para entender tal processo, de funcionamento predominantemente inconsciente, utiliza-se aqui a denominação leituras “institucionalizadas”: conjunto de artifícios anteriores e exteriores ao ato de leitura que colaboram efetivamente na produção de sentidos. Não se objetiva negar que a escrita literária possui suas especificidades, Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 mas sim tratar a produção e a reprodução de sentidos, principalmente referente à universalização, como algo produzido pela exterioridade. Quando Cora Coralina “aproxima” o leitor para uma perspectiva autobiográfica (“Vive dentro de mim”) e mesmo quando “desloca” esse leitor para uma visão “universalizante” (“Todas as vidas dentro de mim”), não é o movimento intrínseco do texto que permite ao leitor “relacionar-se” com o texto de modo universal ou particular, mas sim um conjunto de regras que definem o lugar institucionalizado da literatura. Assim como no texto da História, no qual existem também situações humanas (lembrase que, para Pêcheux, toda situação humana contém uma “universalidade” implícita), a 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 183 leitura voltada para o particular é um fator essencialmente instituído. Em outras palavras, o atributo “literário”, concedido a um texto qualquer, estabelece a marcação de uma prática de leitura, uma construção específica de sentidos. Considerações finais Em decorrência das concepções de leitura adotadas e demonstradas no presente trabalho, observa-se que a inferência dos conceitos de universal e particular não parte de uma relação de identificação de certa forma idealizada entre leitor e obra. A constituição dos sentidos de um texto não é somente restrita ao chamado ato de leitura, mas é também proveniente de um complexo discursivo, de uma rede de enunciados que preexiste ao acontecimento discursivo. As conclusões desse trabalho são advindas de diversas afirmações e observações teóricas formadoras de um ambiente propício para a inferência destas. Parte-se do pressuposto de que as verdades são construídas historicamente e, em consequência disso, foi-nos permitido constatar o funcionamento das formas de leitura (no que diz respeito à questão da universalização) como um tipo de “institucionalização”. A grande alavanca dessa inferência localiza-se no fato de que toda situação humana, como diz Michel Pêcheux, é interpelada por uma universalidade implícita, permitindo-nos iniciar uma desconstrução da oposição particular/ universal. A consciência de um caráter ideológico, contraditório e relativo no processo de produção/ reprodução de conceitos Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 torna-se fundamental na medida em que foi possível analisar as descontinuidades existentes na separação entre História e Literatura, possibilitando assim deslocar tal visão dicotômica cristalizada quando se desenvolveu a análise do poema de Cora Coralina. É também de fundamental importância destacar o estudo de descrição do sujeito na obra coralineana tendo como ponto de referências as teorias sobre autor e sujeito na teoria da Análise do Discurso. Pôde-se concluir que as relações entre autor e instância subjetiva escrita no poema analisado são atravessadas pelas retomadas de préconstruído, pela constituição heterogênea do sujeito e por uma relação fundamentalmente exotópica, haja vista a construção disforme de uma imagem que é 1960 2010 ILEEL 50 ANOS 184 aparentemente única, homogênea e idêntica. REFERÊNCIAS: AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Trad. de Leci Borges Barbisan e Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPURCS, 2004. BARTHES, Roland. A Morte do Autor. Trad. Mario Laranjeira. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 20. ed. São Paulo: Global, 2001. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: MOTTA, Manoel de Barros da (Org.). Ética, sexualidade e política. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Coleção Ditos e Escritos, v. 5) FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: MOTTA, Manoel de Barros da (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Coleção Ditos e Escritos, v. 3) 1960 2010 ILEEL 50 ANOS PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 SILVA, Vítor Manuel Aguiar e. Teoria da literatura. 8. ed. Livraria Almedina: Coimbra, 1988. TOSTA, Antonio. Uma in(ter)venção da memória: a universalização do particular na poesia histórica de Cora Coralina. In: DENÓFRIO, Darcy França; CAMARGO, Goiandira Ortiz de (Orgs.). Cora Coralina: celebração da volta. Goiânia: Cânone Editorial, 2006. 185 [1] E-mail: [email protected] 1960 2010 ILEEL 50 ANOS Seção Estudos, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 171-186, jul./dez. 2009 186