1 HIP-HOP E RELIGIÃO NA CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DO ESPAÇO CONFORMADO A PARTIR DA RELAÇÃO NÓS-EU Dalvani Fernandes Doutorando do PPGG/UFPR Professor do Instituto Federal do Paraná – Campus Curitiba [email protected] RESUMO Este trabalho faz parte das bases teóricas de uma tese em andamento. Procuramos discutir a relação de equilíbrio Nós-Eu, conforme proposta pelo sociólogo Norbert Elias (1897-1990) e a noção de formas simbólicas defendida pelo filósofo Ernst Cassirer (1874-1945). Esse esforço intelectual se debruça na compreensão da relação que envolve Hip-Hop e Religião no mundo de alguns jovens curitibanos. Através desses dois pensadores procuramos discutir as bases da construção simbólica do espaço conformado a partir da relação Nós-Eu. Palavras-chave: Religião; Hip-hop; forma simbólica; espaço. 1. INTRODUÇÃO A intenção deste trabalho é apresentar um prelúdio de um diálogo entre Ernst Cassirer (filósofo) e Norbert Elias (sociólogo), objetivando apresentar aos leitores(as) um caminho possível para se fazer Geografia a partir da contribuição desses pensadores de áreas tão distintas. Como base empírica nos pautamos sobre dois universos culturais juvenis que chamamos de Formas Simbólicas, sendo eles: a religião e o hip-hop. A problemática que impulsiona nossos esforços está ligada com uma preocupação em compreender como o espaço é conformado a partir de uma relação tensa e necessária que envolve indivíduos e comunidade. Nesse jogo temos a religião se apropriando e modificando os conteúdos do hip-hop, utilizando-o como estratégia de evangelização para jovens. O hip-hop, por sua vez, também altera a 2 religião, pois em sua forma se apresenta preocupado com questões sociais, culturais e políticas. Cassirer (2005) nos oferece a noção de forma simbólica, na qual os mundos linguísticos da religião, ciência, artes e mito se equivalem – ambos têm como função dar sentido ao mundo. Pensamos a cultura hip-hop como uma forma simbólica também, em sua forma apresenta os quatro elementos: Break, Dj, Mc e Graffiti. Os conteúdos dessa forma podem variar, por essa razão observamos, por exemplo, Rap (Mc e Dj) com letras gangsta (em geral violentas), de cunho crítico social, afetivas e gospel. Elias em seu A sociedade dos indivíduos (1993), nos ajuda a compreender que nessa relação – religião e hip-hop – há um peso que pende hora na figura do indivíduo, hora no conjunto comunidade. Nessa relação se percebe que indivíduo e comunidade são indivisíveis e que um interfere no outro constantemente. Pensando os(as) jovens, a religião e o hip-hop chegamos a alguns questionamentos: a) Como fica, na concepção dos(as) jovens, a relação deles(as) com o mundo nessa encruzilhada cultural? b) Que religião temos a partir desse encontro? c) Que tipo de hip-hop brota nesse solo? d) Como o espaço passa a ser conformado, isto é, como é investido de sentido dentro da representação juvenil? e) Como é a relação indivíduo-comunidade nesse contexto? Por razão dessas perguntas é que nos lançamos nesse trabalho teórico que busca discutir as bases da construção simbólica do espaço conformado a partir da relação Nós-Eu. Nas próximas páginas demonstramos como esse pode ser um caminho possível. 2. BREVES NOTAS SOBRE ERNST CASSIRER E NORBERT ELIAS Como já disponibilizamos algum tempo e linhas em outros textos 1 falando de Ernst Cassirer, daremos maior ênfase nesse momento para Norbert Elias, trazendo apenas as ideias-força da filosofia cassireriana. Para uma leitura mais detalhada sobre o tema sugerimos o artigo disponibilizado on-line: “Geografia em Cassirer: perspectivas para Geografia da Religião” (FERNANDES E GIL FILHO, 2011). 1 3 Cassirer e Elias são conterrâneos, nascem no século XIX na cidade de Breslau (então Alemanha, hoje atual Wroclaw na Polônia). Ambos de família judaica fogem da Alemanha nazista. Elias passa grande parte da vida exilado na Inglaterra. Cassirer depois de migrar para alguns países fixa morada nos Estados Unidos. Elias nasce em 1897, quando Cassirer já tinha 23 anos, morre em 1990 (93 anos), Cassirer, por sua vez, falece em 1945 (71 anos). Os dois intelectuais viveram durante os horrores da Primeira e Segunda Guerra Mundial, e o pensar de ambos foi influenciado por esse gosto amargo da guerra. Elias, contudo, pôde observar a reconstrução do mundo pós-guerra, viu uma nova realidade se erguer, observou uma nova ordem global ser construída tendo como forte alicerce as redes sociais, conceito presente de forma significativa em seu pensamento. Nenhum deles lecionou longos anos em universidades consideradas conceituadas para a época. Elias ficou à margem do que era considerado discussões centrais na academia, fato que resulta como ponto chave para a construção de um pensamento inovador baseado em referências diferentes dos grandes debates então correntes, seu pensamento é definido por Malerba como “sistêmico e inovador – dentro os mais importantes do século XX” (1996, p. 73). Norbert torna-se professor em 1954 (57 anos de idade) na Universidade de Leicester. Seu trabalho ganhou reconhecimento após uma geração de teóricos dos anos de 1970 o redescobrirem incluindo nomes de peso como do historiador Roger Chartier, tornando-o um dos mais influentes sociólogos até hoje. A sua concepção de grandes redes sociais pode ter ajudado nesse reconhecimento tardio, uma vez que era um conceito que ajudava a compreender os “novos tempos”, chamados por alguns como pós-modernidade. Para Elias, nas redes sociais ou configurações sociais, a presença da ação individual não pode ser negligenciada. Essa postura batia de frente com o paradigma então aceito que focava demasiada ênfase na estrutura sobre o indivíduo. Elias se interessou por diversas áreas do saber, fato que tem relação com sua formação, que passou por medicina e ciências sociais. Suas obras focaram muitos temas, entre eles: poder, comportamento, emoção, conhecimento, esporte, linguagem, política, método científico, sociedade, indivíduo, para citar alguns. Seu 4 legado bibliográfico soma ao todo 22 obras. Para Pontes (1999), a característica interdisciplinar do trabalho desse sociólogo está implicita, sendo que seus trabalhos atualmente são apropriados por diferentes áreas, Extrapolando a agenda intelectual da sociologia, as questões analisadas por Elias vêm sendo discutidas e tetrabalhadas pelos psicanalistas interessados nas conexões da cultura com o inconsciente, pelos antropólogos que estudam as dimensões simbólicas das sociedades ocidentais, pelos historiadores atentos às engrenagens do cotidiano e, principalmente, pelos pesquisadores que se dedicam à história das idéias e à sociologia da vida intelectual (PONTES, 1999, p. 19-20). Podemos dizer que a Geografia também pode ganhar com a leitura dos trabalhos eliasianos, uma vez que os geógrafos se preocupam com as questões culturais, sociais e interdisciplinares envolvendo o ser humano e seu cotidiano. Nesse trabalho em específico o foco na dimensão simbólica da vida do indivíduo e da comunidade nos é caro. Para Richard Kilminster (2007), a questão da filosofia em Norbert Elias é complexa, pois “for Elias, philosophy was part of the problem, not part of the solution” (p. 13). Segundo o autor o trabalho de Elias propõe um afastamento metódico da filosofia na busca de uma sociologia empírica. Assim, de certo modo, Elias poderia ser pensado como anti-filosófico, para Kilminster essa não seria uma atitude revolucionária mas uma continuação do que havia sido proposto pelos fundadores da sociologia. Essa posição de Elias, segundo o autor em foco, veio de suas observações sobre o campo de pesquisas nas universidades alemãs (século XX) onde predominavam os estudos neokantianos, preocupados com questões que envolviam o conhecimento e o pensamento. Nesse ponto, podemos observar algo em comum entre Elias e Cassirer, This [Neo-Kantianism] was the philosophy Elias came to oppose, and which he continued to attack during the rest of his life. In his opposition he was not alone. Neo-Kantianism itself moved in the direction of a more historical and ‘relational’ approach, particularly in the work of Ernst Cassirer. Besides, there was a sharp revolt against neo-Kantianism among younger philosophers such as Edmund Husserl and Martin Heidegger, who substituted ontology for epistemology and pointed out that the world of lived experience was 5 very different from the Kantian categories (WILTERDINK, 2008, p. 6, grifo nosso) of the mind. 2 Nery (2007) explica que “além de concordar com Cassirer quanto ao caráter simbólico do conhecimento humano”, Elias é pontual ao adotar deste autor “a ideia central de que os estudos devem focar atenção na explicitação das relações, e não na busca por substâncias” (p. 159). Kilminster especula que esses filófofos devem ter deixado uma impressão forte no ainda jovem Elias, favorecendo que sua sociologia se pautasse mais em bases empíricas do que abstratas. No entanto, tendo como plano de fundo o conceito de sociedade, a maior influência no pensamento eliasiano vem de Karl Mannheim (Sociologia do Conhecimento), além de amigo, Elias foi assistente dele entre os anos 1930 e 1933 na Universidade de Frankfurt. Focando na esfera do indivíduo, Freud aparece como uma base forte nas interpretações eliasianas (KILMINSTER, 2007). Dessas relações acadêmicas Elias desenvolveu um par conceitual: “envolvimento” e “distanciamento”3, através dele pretendia superar a filosófica dicotomia kantiana sujeito x objeto e fatos x valores, e revisar a prescrição de Weber de valor-liberdade científica baseado nestas dicotomias. Elias os substitui por uma visão sociológica dinâmica na qual grupos de pessoas variam no grau para o qual a percepção delas do mundo está “envolvida” (emoção-carregada, sujeito-centrado) ou “separada” (emocionalmente controlado, objeto-centrado). Não poderíamos deixar de falar no símbolo. Na concepção de Elias, os símbolos, enquanto um núcleo de um nível novo de realidade (o mundo sociocultural humano), simplesmente não é imaterial, eles também são “padrões tangíveis de 2 Tradução nossa: Esta era a filosofia que Elias veio opor, e a qual continuou atacando durante o resto de sua vida. Na oposição não estava só. O próprio Neokantismo moveu-se na direção de uma aproximação mais histórica e relacional, particularmente no trabalho de Ernst Cassirer. Além disso, havia uma revolta afiada contra Neokantismo entre filósofos mais jovens como Edmund Husserl e Martin Heidegger, que substituíram ontologia por epistemologia e pontuaram que fora do mundo da experiência vivida eram muito diferentes as categorias Kantianas da mente. 3 Para Elias a ciência exige um tipo diferente de envolvimento que ele vai chamar de envolvimento secundário, defendendo a tese de que a ciência humana, mais especificamente deve ser feita através de um “envolvimento distanciado”. Para maior aprofundamento recomendamos a consulta de ELIAS, 1997. 6 comunicação humana” (KILMINSTER, 2007, p.140). Esta opção de Elias visa superar as dicotomias entre natureza e sociedade, idealismo e materialismo, embora o trabalho dele geralmente possua uma afinidade com o materialismo, aponta Kilminster. A grande contribuição de Elias para a sociologia consiste em um insight básico de que os indivíduos humanos são parte de e dependentes de figurações sociais que nenhum deles pode controlar (WILTERDINK, 2008). Elias shares his basic insight with many others before or after him, though we could perhaps say that he is more explicit, radical and consistent in his critique of the illusions of individual autonomy than anyone else. This leads to a final question: How unique and exclusive is Elias’s sociology? And how should it be used – in an exclusivist or a more eclectic way? (WILTERDINK, 2008, p.8)4 Responder a essas questões levantas diferentes posições: Kilminster prefere o exclusivismo, Wilterdink a via mais eclética. Nós, com a pretensão de trabalhar com Cassirer e Elias, não poderíamos deixar de optar pela ecleticidade, seguindo os passos de Wilterdink que aponta, This does not mean that one should reject or abandon ‘whole disciplines’, not even philosophy. Rather than isolating itself from other disciplines or other sociological perspectives, figurational sociology should stay in an open relation to them […] (WILTERDINK, 2008, p. 8)5 Outro ponto que consideramos positivo no trabalho de Elias é nos provocar a reflexão: "Como chegamos ao conhecimento de idéias, crenças, valores, ideologias e teorias com a pretensão de sermos imunes a elas?" (SALLAS, s/d, p. 32), somos uma sociedade composta por indivíduos e sempre à interação de um com o outro. 4 Tradução nossa: Elias compartilha esse insight básico com muitos outros antes dele ou, entretanto depois dele, poderíamos dizer nós talvez que ele é mais explícito, radical e consistente em sua crítica das ilusões de autonomia individual que qualquer outro. Isto conduz a uma pergunta final: Como sem igual e exclusiva é a sociologia de Elias? E como deveria ser usada: exclusivista ou de um modo mais eclético? 5 Tradução nossa: Isto não significa que deveria rejeitar ou abandonar "disciplinas inteiras", nem mesmo a filosofia. Em lugar de se isolar de outras disciplinas ou outras perspectivas sociológicas, a sociologia figuracional deveria ficar em uma relação aberta a elas [...] 7 3. PENSANDO A TESE A PARTIR DAS NOÇÕES DE FORMA SIMBÓLICA E RELAÇÃO DE EQUÍLIBRIO NÓS-EU Somando conceitos de Elias (1993), Cassirer (2005) e Gil Filho (2008), chegamos a algumas perguntas para a tese que considero importantes, tentarei desenvolvê-las. Qual a ligação (se é que existe) entre RELIGIÃO e a cultura HIP-HOP? Hipótese: Os espaços organizados em torno do Hip-Hop dão condições para que se formem estruturas de consciência que colocam em destaque o NÓS, na relação de equilíbrio Nós-Eu. Talvez esse seja o ponto de aproximação entre a Religião e o HipHop. Ambos dão sentido de COMUNIDADE e PERTENCIMENTO aos jovens. Cabe salientar que falamos da religião cristã, mais particularmente da Comunidade neopentecostal Sara Nossa Terra, sempre preocupada em agregar novos(as) jovens a sua membresia. Assim temos uma comunidade hierarquizada e normatizada (Igreja) abrindo espaço para que indivíduos que partilham outros símbolos, ética, estilo (Hip-Hop) entrem e se apropriem da sua linguagem. No encontro dessas duas formas simbólicas fica evidente a necessidade de compreender melhor o papel do indivíduo e da comunidade na reorganização do mundo daqueles que vivem esse espaço híbrido. Para isso, na sequência do texto, teremos um olhar mais atento à ideia do equilíbrio na relação Nós-Eu. 3.1. O equilíbrio Nós-Eu Norbert Elias cunhou muitos conceitos e questionou algumas posições então clássicas na ciência, entre elas a questão da dualidade natureza-sociedade e sociedade-indivíduo. Vamos nos concentrar nesse segundo ponto apresentado na obra A Sociedade dos Indivíduos (ELIAS, 1993). Antes de debatermos essa 8 questão, é preciso conhecer a história da formação do que chamamos de indivíduo moderno. Segundo Elias, o indivíduo moderno é fruto de um processo civilizatório (ELIAS, 1990), onde a civilização representa o controle externo que força o ser humano ao autocontrole (emoções, paixões, afetos), através de uma ordem social que confere limites e liberdade aos indivíduos. O ato de civilizar-se é realizado através do Estado e do monopólio da violência legitimada seja ela física ou simbólica. O Estado protege os indivíduos, que por sua vez não podem se agredir, ou serão sancionados. Os indivíduos modernos aprenderam ao longo do tempo a controlar suas emoções. A emoção se revela dentro do indivíduo, e não mais entre os indivíduos. Aqui temos a marca da nossa civilização, o paradoxo, pois, apesar do isolamento emocional, o indivíduo moderno é marcado pela extensão e alto nível de interdependência6. A maior integração entre os grupos e sociedades tornou, na opinião de Elias, o conceito de sociedade como algo estático, assemelhando-se ao de sistema. Procurando fazer emergir o caráter dinâmico das sociedades que expressasse os vínculos entre grupos, classes e indivíduos, Elias então propõe os termos configuração social, que podem ser encontrados, dependendo da tradução como figuração e formação social. Para Elias não podemos nos prender nas individualidades, mas ir além, compreender as inter-relações dos/nos grupos. A construção do Eu, como uma identidade particular que nos distingue um dos outros é uma característica das sociedades mais evoluídas, presentes em nosso tempo. Sociedades essas onde o equilíbrio Nós-Eu centra-se no Eu. Para Elias, 6 Vivemos um momento sem igual na história, somos empurrados a aprofundarmos nossa individualidade, no entanto, a necessidade de se viver em comunidade pulsa dentro de nós, esse conflito forja uma nova maneira de pensar a comunidade. Sennett (1988) em seu livro “O declínio do homem público” nos ajuda a refletir sobre como essa questão indivíduo-comunidade é complexa e merece nossa atenção. Para o autor, conceitos como fratricídio são marcas de nossos tempos, isto é, a morte de comunidades. Tomemos como exemplo as comunidades evangélicas no Brasil, que a cada ano tornam-se mais diversificadas e especializadas, a ponto de abrirem e fecharem sem nem mesmo constarem em relatórios ou sensos devido a sua efemeridade. Sennett nos provoca a pensar sobre o espaço e a função das comunidades hoje: a) Até que ponto essas divisões acontecerão? b) Quando haverá estabilidade nesse processo? c) Será que um dia veremos mini-igrejas formadas por micro-grupos? d) Seria esse um processo de individualização do coletivo? e) Ou então de coletivização da individualidade? Como a Geografia pode ajudar a responder essas reflexões também é uma questão importante. 9 indivíduo e sociedade estão intimamente conectados, não podendo ser pensados de forma separada, mas antes na compreensão do equilíbrio entre esses dois elementos. Para o autor, não há criação de conceitos isolados partindo de presumíveis homens singulares. Em suas palavras, O ser humano singular desenvolve os conceitos sempre a partir de um conjunto linguístico e conceptual socialmente existente, que adquiriu das outras pessoas. Se assim não fosse, o homem, ao desenvolver a linguagem existente, e, por conseguinte, os conceitos existentes, não poderia contar com a compreensão dos outros (ELIAS, 1993, p. 181). Uma contribuição individual, isolada, seria inútil. É preciso compreender que o individuo é o resultado de um processo evolutivo de uma sociedade, quanto mais complexa as configurações apresentadas pela sociedade, maior o nível de abstração e complexidade apresentadas pelos sujeitos que a habitam. É um processo de mão dupla. Contextualizando o equilíbrio existente entre indivíduo e sociedade em sua época, Elias foca na integração crescente que se processava entre as sociedades no século XX, já vislumbrando a possibilidade de uma integração em nível global. Nesse cenário é crescente a perda individual de poder e autonomia, o autocontrole pessoal passa a ser ditado por leis sociais criadas pelo poder legislativo do Estado. O equilíbrio indivíduo e sociedade é alterado com as mudanças sociais. 7 Segundo Elias “um novo tipo abrangente e mais complexo da organização humana é acompanhado de mais um período e de outro padrão de individualização” (1993, p. 190). É preciso um acesso processual-sociológico ao problema da relação sociedade e indivíduo para compreensão de seu equilíbrio, afirma Elias. Para compreender a relação Nós-Eu em outros períodos históricos Elias se apropria do conceito de evolução de uma forma singular. Diferencia sociedades menos e mais 7 Elias (1993) explica que ainda no Medievo a relação entre o Nós e o Eu, naquele momento histórico, eram favoráveis ao Nós. A maioria dos homens se organizava em grupos (ordens, corporações, confrarias) decorrentes da sua hereditariedade – nascia-se e morria-se nobre ou plebeu. O homem individual era interpretado como louco, visto com repulsa e indignação. 10 evoluídas no mundo, dizendo que a relação indivíduo e sociedade depende das configurações que os grupos sociais apresentam em determinado período da história. O termo evolução em ciências humanas pode causar algum estranhamento, tendo em vista sua longa repercussão pela biologia e antropologia. Por essa razão Elias explica: Assim, as pessoas evitam falar de “países menos evoluídos” para não ofenderem os seus membros e utilizam, em vez disso, expressões vagas e que encobrem os factos, tal como “países em vias de desenvolvimento”. Como se os países mais evoluídos não se encontrassem também em evolução e como se não fossem, por isso também países em desenvolvimento (ELIAS, 1993, p. 199-200). Com o termo evolução Elias procura destacar o processo ao invés dos acontecimentos isolados. Nada está pronto, acabado. Mesmo países ricos, são países em desenvolvimento. Essa diferença social no nível de evolução de cada país é identificada na mudança no equilíbrio Nós-Eu, pois em países em fase préestatal, mais ligados à família ou a tribo, o Nós supera o Eu. Já nas sociedades mais evoluídas, principalmente as ocidentais, apresentam em seus indivíduos estruturas de personalidade social cada vez mais voltadas para o individualismo. O Estado nivela a diferença entre os indivíduos. Somos transformados para o Estado em seres singulares despidos de personalidade, “o indivíduo é um número com um nome”, aponta Elias, que segue afirmando, “naquela que até agora é a sua última fase de evolução, o processo de formação de Estado contribui, em parte, para uma maciça individualização das massas” (1993, p. 203). O conceito de hábito social nos ajuda a compreender a íntima ligação entre o Nós e o Eu, a comunidade e o indivíduo. Habitus, ou habito social é o terreno do qual emergem características pessoais como a língua e a letra. É social, pois se aprende em grupo, é individual, pois possui características da personalidade. Nessa perspectiva o ser humano singular traz em si características do seu grupo. É um conceito que aparece em sociedades simples, do passado ou do presente, com uma 11 faceta apenas; no entanto, em sociedades mais evoluídas os indivíduos apresentam habitus multifacetados. 3.2. Do equilíbrio Nós-Eu às formas simbólicas O cerne da questão aqui é não perdermos de vista que somos seres individuais e sociais simultaneamente. [...] cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e a nada mais, que chamamos “sociedade” (ELIAS, 1993, p. 21, grifo nosso). Acreditamos que a forma simbólica (CASSIRER, 2005) articula, sustenta, conecta os indivíduos formando as comunidades e as redes. A linguagem, a fala é um ajustamento social, necessário para o ser humano viver e se socializar, o que estimula a linguagem do indivíduo é a sociedade em que ele cresce, então supomos, há uma força recíproca entre o indivíduo que transforma a linguagem e a linguagem que transforma o indivíduo. Nossa posição, partindo de Ernst Cassirer (2005) é que dessa relação temos uma enformação da realidade, isto é, uma conformação do espaço que vai variar dependendo da forma simbólica que se parte. Dessa balança Nós-Eu podemos tencionar para uma proposição comunidadeindivíduo, entendendo que a comunidade pode significar um universo simbólico que realiza conexões, é o espaço do Nós. Já o indivíduo é compreendido como o Eu, é onde se encontram as tramas da configuração social e o etéreo universo do simbólico. É a partir do sujeito que teremos uma dimensão do funcionamento da comunidade e de como as espacialidades se formam a partir dela. Por isso consideramos a fenomenologia importante, e defendemos as formas simbólicas 12 como um caminho importante a ser trilhado, uma vez que conecta o mundo dos fatos (configuração social) ao mundo dos símbolos (presente na linguagem). 4. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO SIMBÓLICO DO HIP-HOP DENTRO DA RELIGIÃO Em nosso trabalho a relação comunidade e indivíduo deverá ser apreendida no seu nível simbólico – daí a importância da filosofia da linguagem de Ernst Cassirer, que nos permite pensar o Hip-Hop como forma simbólica, o que nos dá respaldo para observações que foquem nesses dois ângulos: a) como o Hip-Hop funciona na vida do jovem (indivíduo, o EU); b) como funciona na vida da Igreja (comunidade, o NÓS). Essas compreensões serão possíveis se partimos da ideia de que Hip-Hop e Religião são elementos do mundo cultural capaz de “enformar” a realidade, são formas simbólicas que servem como caminho metodológico, aliadas a fenomenologia do sentido, para alcançar as espacialidades resultantes dessa interação. Pensando nossas ações metodológicas pretendemos buscar, através de letras de Rap e depoimento dos MC’s, observar o papel do indivíduo (EU) rapper na comunidade religiosa. (Como são suas interações nessa configuração social?). Acompanhando os cultos e cursos de formação da Comunidade Sara Nossa Terra, pretendemos compreender o papel da comunidade (NÓS) na construção dos sujeitos ligados ao Hip-Hop. (Há espaço para os jovens interagirem através do HipHop na construção da comunidade?). Nós e Eu são inseparáveis. Portanto falamos de espacialidades distintas que na verdade somam uma só. O espaço nos possibilita compreendermos esse paradoxo, pois através dele o indivíduo (Eu) existe e “plasma” sua realidade e ao mesmo tempo compartilha elementos de universos culturais distintos (Nós/comunidade), dando condições para que pessoas diferentes “vejam” aspectos 13 da mesma realidade no espaço, constituindo assim a sensação de pertencimento do Eu a um Nós. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta teórico-metodológica apresentada nesse trabalho é resultado de uma caminhada na pós-graduação em Geografia, explicamos. Em nossa dissertação de mestrado intitulada “Geografia da Religião: um olhar sobre as espacialidades da Assembleia de Deus” (FERNANDES, 2012) os espaços conformados eram compreendidos sempre a partir dos indivíduos (Eu), de tal forma que cada indivíduo conforma o espaço de maneira única, partindo do mundo simbólico da comunidade (Nós). Fizemos a apresentação de três modos (individuais) de ver o mundo, representados pelo olhar de jovens que dividimos em três categorias: o jovem veterano, o jovem novo-convertido e o jovem desviado. Em nossos resultados expomos que foram três categorias ideais por questão de tempo e espaço, mas que dentro da Igreja as possibilidades de categorizar seriam múltiplas, isso pois nosso interesse fenomenológico estava restrito ao indivíduo. Nesse segundo momento, agora no doutorado, pensamos nos espaços conformados a partir dos indivíduos (EU) e sua RELAÇÃO com a comunidade (NÓS). Cada indivíduo conforma o espaço de maneira única, mesmo partindo do mesmo discurso (conforme constatado em nossa dissertação). Agora nos inquieta procurar saber como essa perspectiva de conformação do espaço interfere na construção do espaço simbólico da comunidade, uma vez que compreendemos que comunidade e indivíduo são inseparáveis e se interpenetram. Nossa hipótese é que tenhamos pela frente uma forma “específica e partilhada” de vivência que resulte na construção simbólica do espaço conformado a partir da relação Nós-Eu. REFERÊNCIAS 14 CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Trad. Mário Matos. Lisboa: Dom Quixote, 1993. _____. Envolvimento e distanciamento. Estudo sobre sociologia do conhecimento. Trad. Maria Lisa Cabaços Meliço. Lisboa: Dom Quixote, 1997. _____. Sugestões para uma teoria de processos civilizadores. In: _____. O processo civilizador. Formação do Estado e Civilização (vol. II). Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 193-274. FERNANDES, D.; GIL FILHO, S. F. Geografia em Cassirer: perspectivas para Geografia da Religião. Revista GeoTextos. Salvador, v. 07, n. 02, dez., 2011. FERNANDES, D. Geografia da Religião: um olhar sobre as espacialidades da Assembleia de Deus. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2012. 130f. GIL FILHO, F. S. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008. KILMINSTER, Richard. Norbert Elias: Post-philosophical Sociology. London: Routledge, 2007. MALERBA, J. A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas, SP: Papirus, 1996. NERY, Salete. Pontes: proximidades e distanciamentos entre as propostas de sociologia de Georg Simmel, Pierre Bourdieu e Norbert Elias. Revista Teoria & Pesquisa. Vol. XVI, n. 2, jul./dez. de 2007. p. 147-163. PONTES, Heloísa. Elias renovador da ciência social. In: WAIZBORT, Leopoldo (org) Dossiê Norbert Elias. São Paulo: Edusp, 1999, p. 115-127. SALLAS, A. L. F. Norbert Elias em perspectiva. Revista Vernáculo. S/D. p.32-40. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 15 WILTERDINK, Nico. Nico Wilterdink reviews Richard Kilminster. Figurations: newsletter of the Norbert Elias Foundation, n. 29, jun. 2008, p. 6-8.