MOVIMENTO HIP HOP E EDUCAÇÃO: POSSIBILIDADES DE
CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO
IOLANDA MACEDO*
RESUMO: O movimento hip hop tomou proporções extremamente expressivas no
Brasil nos últimos anos, acupando cada dia mais espaço nas cidades, na mídia, nas
escolas. Além disso, possivelmente nenhuma outra corrente da música, dança ou poesia
significa tanto para tantos jovens, sobretudo os das periferias brasileiras, na forma de
danças, de vestir, de fazer musica, de falar, entre tantos outros aspectos. Também é
imprescindível considerar que este movimento produz uma representação étnica sobre o
afro-descendente no sentido de resistir ao racismo e a proclamar uma auto-afirmação do
negro, da cultura negra, da história do negro no Brasil. A partir dos vários exemplos que
temos na história do Brasil os hip hopers não são os primeiros grupos culturais ou
sociais a lutar por estes ideais, até mesmo porque o hip hop surge destes movimentos,
como por exemplo, o Movimento Black, nos anos 70, Movimento Negro, entre outros.
Neste sentido, este artigo pretende discutir a possibilidade de pesquisar esta
representação do negro no movimento hip hop, enquanto uma forma de conhecimento,
levando em consideração a popularidade deste movimento entre os jovens e
adolescentes.
Palavras – chave: Hip Hop; Conhecimento; Afro-descendente.
*
Graduada em História pela UNIOESTE, aluna regular do Programa de Mestrado em Educação
(UNIOESTE)
Este artigo é proveniente do projeto de mestrado a ser desenvolvido no
Programa de Mestrado em Educação (UNIOESTE) e tem como objetivo discutir a
problemática delimitada para a pesquisa em questão, que leva em consideração a
representação do negro no movimento hip hop que é conflitante a representada e
discutida nas escolas (sobre a história do negro no Brasil), pautada nos livros didáticos,
que na maioria das vezes desconsidera o negro considerado escravo como sujeito social,
autônomo e que resistiu a condição cativa.
Neste sentido, mesmo que inúmeros historiadores e educadores já contestaram
tal visão, entretanto, em nossos dias o racismo ainda é presente, nas relações sociais, na
maioria das vezes está relacionado a sentimentos compassivos e a necessidade de suprir
uma dívida pelo advento da escravidão, e os livros didáticos na maioria das vezes trata o
assunto de maneira superficialmente.
Entretanto, no hip hop a origem histórica que é evidenciada para contar a
história do negro no Brasil não é aquela pautada na idéia de “descobrimento”,
colonização européia, mas aquela ligada a história dos africanos em nosso país como
sujeitos sociais, história da escravidão, do preconceito, mas também da resistência, da
luta, da cultura, da valorização de suas ações.
Diante de todas estas questões, e principalmente a importância do movimento
hip hop e de tantos outros movimentos sociais e culturais que fazem parte da vida de
grande parte dos jovens e adolescentes, em nossos dias, a escola precisa estar atenta, e
principalmente estabelecer um diálogo com estes movimentos para principalmente
considerar aquilo que seus alunos já trazem de conhecimento e experiência, a partir de
sua realidade concreta.
Neste sentido, Juarez Dayrell, pesquisador que considera os jovens como
sujeitos sociais, “hoje, tenho a consciência de que a cultura é a grande linguagem que
articula a juventude [...] os jovens já estão mobilizados para a dimensão cultural, por
que não aproveitar esses estímulos já existentes e fazer disso um espaço de ampliação
de conhecimento.” (DAYRELL, 2003).
A partir destas questões, o presente artigo pretende discutir algumas questões
que ilustram a pertinência da problemática indicada, principalmente levando em
consideração a relação do hip hop com a cultura negra e a representações afrodescendente construída pelo movimento, principalmente nas canções.
Algumas considerações sobre as origens musicais do hip hop
As manifestações do movimento hip hop são produzidas, num primeiro
momento, nas periferias de Nova York, por afro - descendentes e latinos, no início da
década de 70, entretanto, ao longo de sua trajetória tomou proporções em todo o globo,
incorporando elementos regionais em muitos países. O movimento é formado por cinco
elementos: o break, dança de passos descompassados; o grafite, pintura feita com spray,
aplicada em muros e em outros espaços da cidade; o DJ (disc-jóquei), que cria as bases
musicais eletrônicas; e o MC (mestre de cerimônias), que canta as letras. As junções dos
últimos elementos formam o rap, “ritmo e poesia” em inglês, que é o canto falado em
forma de poesia. Já o quinto elemento, é caracterizado pela conscientização, ou
conhecimento que o hip hop traz juntamente com as manifestações artísticas.
Pode-se dizer que o rap (a música do movimento hip hop, o elemento mais
conhecido) é uma das vertentes da música negra, portanto para entendê-la e
compreender sua origem é preciso retomar os ritmos originários, como também o
contexto em que estava inserido. Contudo, durante as décadas de 60 e 70 nos Estados
Unidos, e parte do mundo, estavam vivendo os embalos do rock’n roll. Entretanto, para
os afro - descendentes, moradores dos guetos americanos, não era este o ritmo que fazia
parte do cotidiano daquelas pessoas, mas o funk e o soul, vertentes do jazz e do blues,
que naquele momento eram muito importantes para a conscientização da comunidade
negra.
Neste período, James Brown6 já fazia sucesso cantando: “Say it loud: Im black
and proud” (Diga bem alto: sou negro e orgulhoso), famosa frase de um sul-africano.
Desta forma, o funk que surge radicalizando a sociedade americana com sua batida forte
e influente, e o soul valorizavam a cultura negra, promovendo o desenvolvimento da
auto-estima e a consciência coletiva, além de possibilitar o conhecimento da realidade e
da história dos afro -descendentes. Neste sentido,
O povo negro norte-americano desencadeou um processo no qual a diversão
nos bailes blacks dos anos 70 só se completava se fosse transformada em
espaço de conscientização. Esse foi o período dos cabelos afro e black
power, dos sapatos conhecidos como pisantes (solas altas e multicoloridos),
6
James Brown (nascido em 3 de Maio de 1933) cantor, compositor e produtor musical, afro –
descendente americano reconhecido como uma das figuras mais influentes do século XX na música.
Letrista e produtor musical, foi o principal impulsionador da evolução do gospel e do rhythm and blues
para o soul e o funk. Também deixou sua marca em outros gêneros musicais, incluindo rock, jazz, reggae,
disco', no hip-hop e na música dançante e eletrônica em geral.
das calças boca larga, das danças de James Brown, tudo mais ou menos
ligado às expressões: Black is Beautiful ou O Negro é Lindo. Segundo
Hermano Viana, [...] os bailes mesclavam internacionalismo com raízes,
moda e consciência [...] (TELLA, 1999, p. 58.).
É importante destacar que o funk e soul se estabeleceram como uma forte
influência na constituição da cultura hip hop, como influências musicais, juntamente
com trajetória de luta política por diretos, envolvidos pelos ideais de Martin Luther
King, Malcolm X e dos Panteras Negras, contudo, cada vez mais os afro-americanos
cantavam idéias de mudança, de protesto em relação à situação em que se encontravam.
Pode-se falar que as características do rap em ser contestatório fazem parte do
perfil de resistência da música negra norte-americana7, que desde os works songs8, e os
spirituais9, tentam preservar e manifestar sua cultura (TELLA, 1999, p. 55). Neste
sentido, Spency Pimentel (2002, p. 19), também destaca que é no processo de captura
dos africanos, para serem escravos na América que começa todo protesto, toda revolta
da música norte-americana. Contudo, as works songs eram uma forma dos africanos,
considerados escravos, expressarem suas emoções nos campos de trabalho. Mesmo
depois da abolição nos EUA, em 1865, essas canções sobreviveram. O que mudou foi a
sua temática, já que livres, em vez de enfrentarem a crueldade dos senhores, os negros
passaram à marginalização, o desemprego, os baixos salários.
Após a abolição da escravatura, a incorporação das canções de trabalho com os
acordes dos hinos religiosos originou blues, a primeira manifestação individual dos
cativos libertos, que expressava basicamente as angustias e a dor do homem negro
“liberto, antes escravo, agora marginal” (PIMENTEL, 2002, pp. 20-21).
7
Esta característica é encontrada no rap até os 90, porque posteriormente a partir da influência do
movimento gangster, originou uma vertente do hip hop, intitulada gangsta rap, de conteúdo misógino,
com apelos sexuais e que trata basicamente de criminalidade e do cotidiano das gangues dos subúrbios
norte-americanos, além de evidenciar um modo de vida baseado na ostentação de dinheiro e de mulheres.
Contudo, esta vertente do rap, muito forte nos Estados Unidos e no Brasil.
8
Os negros que foram levados ao sul dos Estados Unidos vinham da África Ocidental. Estes povos não
possuíam escrita, então a musica para eles não era apenas uma forma de arte, mas uma maneira de
preservar sua cultura, história, tradições e leis, e também cantavam em qualquer ocasião. Essa forma
musical que falava a emoção e a razão deu origem as canções de trabalho, ou work songs, que eram frases
curtas e ritmadas com um puxador e um coro que o respondia, que cantavam enquanto
trabalhavam. Algumas work songs foram trazidas do continente africano e outras inventadas
nos Estados Unidos mesmo, no dia-a-dia dos escravos daquele país.
9
Após a independência dos Estados Unidos, no final do século XVII, missionários protestantes se
espalharam por todo o país, religiões desse cunho foram introduzidas nas fazendas para os escravos.
Neste sentido vão surgir cânticos religiosos em coro, com letras reflexivas que misturam elementos
musicais africanos e europeus. Essas músicas de estilo espiritual refletiam a condição dos negros
escravos. Segundo Spency Pimetal foi nos spirituals que os negros puderam soltar a voz que estava
presa no peito livremente, agora louvando o Cristo libertador.
Neste sentido, o blues marca uma evolução não só musical, mas social da
música negra: o surgimento de uma forma particular de canção individual que fala sobre
a vida cotidiana. Contudo, o blues contribuíra com o hip hop em muitos sentidos, e um
deles é atitude, embora a matéria bruta do blues seja o medo, a desgraça, a má sorte e os
amores fracassados, os músicos e cantores freqüentemente expressam seus sentimentos
numa inteligência humanística como fazem alguns rappers (MARTINS, 2005, p.16).
O jazz, que também esta presente na trajetória da música negra, e igualmente
procedente do contexto escravocrata norte-americano, surgiu em Nova Orleans, cidade
colonizada por franceses. Nessas colônias encontravam-se os crioles10 que
possivelmente não eram tão discriminados pelos seus pais “brancos”, contudo,
possuíam alguns privilégios, como freqüentar escolas e aprender a tocar instrumentos
clássicos, como violino, piano, saxofone. No entanto, após a abolição da escravatura e
as leis de segregação racial na maioria dos estados americanos, transportaram os crioles
á marginalização tanto quanto os escravos libertos, esta proximidade, entre crioles e exescravos, resultou na troca de experiências musicais, surgindo o jazz,
Iniciado em Nova Orleans, o jazz se espalhou pelos EUA quando o
crescimento industrial em cidades do norte, como Nova York, Chicago e
Detroit, ofereceu a possibilidade de empregos abundantes. Tentando
melhores oportunidades de vida, os negros do Sul migraram em massa para
essas cidades, levando consigo sua tradição musical. Do mesmo jeito que no
Brasil surgiram as favelas nas periferias de Rio e São Paulo logo após a
abolição (PIMENTEL, 2002, p. 21).
O jazz, por muito tempo, dominou a indústria fonográfica americana, até meados
dos anos 50, no entanto, durante os anos trinta o estilo musical passou por uma
transformação. Como se tornou muito famoso, nos Estados Unidos, o jazz acabou
perdendo a especialidade original, de expressar a revolta do negro diante a condição de
marginal e também a alegria da comunidade negra. Apesar disso, nos anos 40, uma
corrente do jazz paralela a essa arrebatada pela indústria fonográfica, promoveu uma
renovação no estilo. Com isso, assumiram uma postura revolucionária diante o
“american way of life”, o estilo de vida americano. Não assumiam isso apenas na
música, mas também no modo de vestir, de falar, de agir, faziam o que queriam e não se
preocupavam com visão da mídia em relação a eles. Neste sentido, essa maneira de
viver e fazer música solidificaram a postura do negro consciente das injustiças feitas a
eles próprios e aos seus antepassados. Embora, mesmo que nos anos 60 o jazz tenha
10
Filhos de europeus com escravas africanas, designados como mestiços
deixado de ser a grande sacada da indústria fonográfica, passando o posto para o rock, o
jazz renovado, a partir da década de 40, conquistou seu espaço não só na população das
periferias americanas, e foi a partir do jazz, que os músicos, além de cantar as músicas,
procuravam expressar sua personalidade, sentimentos, idéias, por meio da
improvisação. Logo os músicos não são apenas cantores, mas se tornam intérpretes,
criadores das canções, “que podem tocar infinitas vezes o mesmo tema, mas sempre de
maneira diferente” (MARTINS, 2005, p.16). Contudo, durante os anos 60, nas periferias
americanas, conhecidas como guetos, nas festas de ruas embaladas pelo soul e pelo
funk, ritmos que originaram do blues e do jazz, que vai se constituir no contexto, tanto
musical quanto social, que posteriormente, no início da década de 70, surgira o rap, e as
manifestações culturais do movimento hip hop.
O rap enquanto estilo musical expressa oralidades, narrativas textuais e uma
musicalidade específica, que permitem resgatar e explorar histórias comuns, que se
perdem nos acontecimentos cotidianos. Histórias essas, muitas vezes invisíveis, mas que
são salvas pelas narrativas dos rappers. Ou seja, “No rap ter história é um direito
conquistado e a conquista cotidianamente numa luta sem quartel e que nunca cessa”
(AZEVEDO, 2001, p. 374).
Esse resgate do cotidiano, as várias historias do dia-a-dia, as lutas, as conquistas
transformadas em poesia e em música, nos remete a tradição dos “griots” africanos, que,
nas tribos daquele continente, eram contadores de histórias, poetas e músicos que
descreviam suas condições de vida e de seu povo, preservando a cultura do seu povo
transmitindo as técnicas em versos de pai para filho.
Nas periferias americanas esta tradição era resgatada numa espécie de “desafio
de rimas”11, antes mesmo de surgir o rap. Os jovens americanos, normalmente diziam
versos usando gírias. Essa técnica envolvia memorização e improviso, que
posteriormente vai se transformar no rap improvisado, muito difundido atualmente no
Brasil, e que no início dos anos 70, muitos americanos usavam a tradição dos griots e as
rimas em prol de lutas políticas, alem do soul e do funk.
Entretanto, a história do hip hop, além de nos remeter a tradição dos girots
africanos, nos transporta também a outra herança africana o drum12, que também teve
11
Este desafio de rimas é muito parecido com que conhecemos hoje, em que um mc inicia uma rima e
outro precisa continuar desta forma sucessivamente, ganha o mc que tiver a melhor capacidade de
improvisar rimas.
12
Drum é um ritmo africano que simboliza a batida do coração, é também sinônimo de tambor, o principal
meio de expressão do africano, ou seja, é uma vital ferramenta de comunicação, que também possui uma
um papel importante na constituição da oralidade e musicalidade do rap. O drum, assim
como os sons instrumentais na África, possuem muita importância, considerado como
tendo uma existência humana, uma importância além de musical, faz parte das tradições
da cultura africana, as músicas e os sons africanos, além de divertir e proporcionar
momentos de descontração são usados para transmitir mensagens, inserir conceitos
morais, ensinamentos, difundir leis, e preservar as histórias dos ancestrais. Com o
surgimento do rap, em 1970, os primeiros hip-hoppers, recriaram o drum, nas bases
musicais do rap. O dj, dos tempos atuais, é considerado como um drummer urbano, isto,
é recria por intermédio do drum machines13 as batidas eletrônicas por mixagem14 e
scracting15 (MARTINS, 2005, p.14).
Hip Hop no Brasil
O movimento hip hop, assim como rap, se constituem como uma manifestação
cultural que tomou proporções bastante expressivas nos últimos anos no Brasil. Como
já destacado estas manifestações são produzidas num primeiro momento nas periferias
de Nova York, por afro - descendentes e latinos, mas que ao longo de sua trajetória
toma extensão em várias partes do globo, assim como no Brasil. Contudo, mesmo que
igualmente nas periferias que o hip hop se construiu no Brasil, é importante salientar,
que ele se configura a partir de elementos próprios da realidade brasileira, assim toam
como referências artistas que já expressavam revolta e denunciavam a exclusão social e
étnica em nosso país, como o samba e o funk dos anos 70, que já traziam letras dotadas
de uma visão de mundo de acordo com as vivências dos moradores das favelas
brasileiras. Contudo,
a cultura hip hop não pode ser totalmente entendida apenas com o estudo
dela mesma. O rap é só um dos galhos da grande árvore da música negra. É
filho do funk, neto do soul, bisneto do spiritual e do blues [...] Irmão do
rock, primo do reggae, do samba, do maracatu, da embolada [...]
(PIMENTEL, 2002, p. 18).
função social, a transmissão de mensagens entre as tribos. Em muitas localidades da África, em certas
religiões locais, o drum chega a ser considerado sagrado, pois acreditam que os deuses se comunicam
através dessa manifestação musical.
13
Equipamento eletrônico que recria o timbre do drum, ou seja, o som de tambores.
14
Processo de mesclagem de duas ou mais fontes diferentes de áudio. Ou também, é a arte dos DJs de
passar de uma música para outra sem que se caia o ritmo da pista de dança. Quando perfeita, os
dançarinos nem percebem que já mudou de música.
15
Efeitos sonoros produzidos pelo atrito entre a agulha do toca-discos e o próprio disco.
Além disso, ritmos regionais foram incorporados ao rap, como o maracatu,
embolada no nordeste, os ritmos gaúchos no sul, ou o samba no Rio de Janeiro, como
podemos observar a mistura de rap com samba, que o cantor Marcelo D2 faz, que
contribuíram para a constituição de ritmos característicos e que contribuem também
para a valorização de especificidades brasileiras, e a construção de um rap brasileiro que
não é apenas a transposição de uma cultura norte-americana.
Indícios do hip hop surgem no Brasil no início dos anos 80, porém
contraditoriamente, por meio de pessoas que tinham uma condição econômica que as
possibilitassem de viajar aos Estados Unidos, e trazer de lá o break, o intermediário do
hip hop em nosso país. Algum tempo depois que a dança ficou conhecida, através da
mídia, e principalmente pelos videoclipes do Michael Jackson.
Contudo, a idéia de valorização da cultura afro - descendente já era presente no
Brasil, por intermédio do movimento Black Power, e os bailes blacks embalavam os
jovens com samba-rock, soul e o funk. Neste sentido, Nelson Triunfo 45 anos, um dos
precursores do break no país, diz:
eu dançava soul, e como o hip hop tem sua origem no próprio soul, dançar
break foi apenas um passo pra mim, [...] Percebia que algumas batidas nas
músicas estavam mudando e que os clipes que chegavam ao Brasil traziam
novos passos. Eu já dançava como robô, mas não sabia que isso era parte do
break. Depois que descobri, foi só me aperfeiçoar [...] (DOMENICH;
CASSEANO; ROCHA, 2001, pp. 45-46).
Após Triunfo ter criado o grupo de Funk e Cia, e se apresentar por volta de um
ano na discoteca Fantasy em Moema, São Paulo, ele levou a dança para rua, “Pensei
como era importante levar tudo aquilo que acontecia na Fantasy para o seu verdadeiro
lugar, as ruas, como no Bronx, em Nova York” (DOMENICH; CASSEANO; ROCHA,
2001, p. 47). Logo o break conquistou as ruas, através de agrupamentos e bailes,
primeiramente na Praça Ramos, em frente ao Teatro Municipal, e algum tempo depois,
nas proximidades da galeria 24 de maio, esquina com a Rua Dom José de Barros.
Contudo, neste momento os adeptos do breakdance no Brasil, não tinham muita
noção do que era o hip hop, “Como os outros jovens que dançaram os primeiros passos
de break no centro de São Paulo, ele apenas dançava para se divertir, mas não tinha a
percepção do hip hop como movimento social” (DOMENICH; CASSEANO; ROCHA,
2001, p. 47). Porém, Silva ressalta a importância que teve essas primeiras manifestações
direcionadas para o movimento hip hop: “dentro do contexto da breakdance nacional, a
experiência do Funk e Cia foi fundamental para a formação das primeiras equipes e da
difusão do movimento hip hop” (SILVA Apud DOMENICH; CASSEANO; ROCHA,
2001, p. 50).
A partir da propagação do break entre os jovens da cidade de São Paulo, os
outros elementos do hip hop também chegavam ao Brasil. Contudo, foi nos bailes em
que esses jovens conheceram o rap, pois, “nesse período de organização das equipes de
break e do surgimento do grafite, entre 1983 e 1988, o rap conquistava sutilmente a
juventude negra nos bailes blacks. Como os jovens não entendiam o inglês cantado nas
músicas, detendo-se apenas no ritmo [...] (DOMENICH; CASSEANO; ROCHA, 2001,
p. 51). Conseqüentemente, a partir das equipes de break, surgiu também os primeiros
rappers. Dentre eles, Thaíde e Dj Hum, Os Metralhas, DMN, Stylo Selvagem,
Personalidade negra e Doctors MC’s.
Com o passar dos anos, a consciência de movimento social foi se formando,
neste contexto surge o MH2O-SP (Movimento Hip Hop Organizado), considerado
marcador de águas entre a velha escola e a nova escola do hip hip, e que originou o
quinto elemento, a conscientização. Segundo Andrade, “a nova escola é formada por
garotos, em sua grande maioria negra, que ingressaram na comunidade hip hop no final
dos anos 80 começo de 90, organizados em posses” (ANDRADE Apud MARTINS,
2005, p. 51). No entanto, o rapper Thaíde, coloca que é um tanto duvidoso dividir o rap
entre velha e nova escola, pois:
[...] existe um lance da mistura porque a velha escola e a nova escola estão
juntas [...] existem muitos da velha escola como o Gog, Doctors MC’s, Ndee
,
Naldinho que estão coligados com a nova escola [...] porque o rap faz isso
pega as coisas velhas recicla elas pra que se torna uma coisa nova [...]
(MARTINS, 2005, p. 51).
Nas posses em que o próprio HM2O-SP incentivou, o rap se configura num
movimento de música de protesto, pois nelas os jovens tinham informação e debates
sobre questões étnicas, políticas e sociais.
A iniciativa de criar o Movimento Hip Hop Organizado partiu do produtor
musical Milton Sales, pois segundo ele, “a música é uma arma e está em todos os
lugares. Se ela tem o poder de mover esse sistema, ela tem também o poder de elucidar”
(CONTIER, 2005, p. 03). A partir deste contexto, posses foram surgindo e o rap, o
grafite e o break, ganhando território nas periferias, resultando na primeira coletânea de
rap, “Hip hop cultura de rua”, em 1988, seguido do primeiro disco do grupo Kaskata’s,
intitulado “O som das ruas”.
Hip Hop e a Representação Étnica: possibilidades da produção de um
conhecimento
Muitos educadores há tempos discutem o rap, e os elementos do movimento hip
hop, assim como suas manifestações como provedores de conhecimento, ou seja, como
um movimento em que as manifestações artísticas não se estabelecem apenas com o
objetivo de prover diversão ou espaços de sociabilidade, mas com elementos
pedagógicos, com espaços de discussão, de conscientização, oficinas técnicas, entre
outras. Sendo assim, também é preciso considerar as questões étnicas, pois o
movimento, participante de um contexto mais amplo, de acordo com sua origem e
desenvolvimento histórico, traz em suas manifestações uma história e memória sobre a
trajetória dos negros no Brasil, bastante expressiva, ou seja, presente em praticamente
todas suas manifestações, principalmente porque essas questões fazem parte de seu
cotidiano, na medida em que as estatísticas não escondem que a maioria dos moradores
das periferias brasileiras são afro-descendentes, e que convivem com a desigualdade e o
preconceito.
As origens históricas evidenciadas no hip hop também são representadas a partir
da resistência à condição de escravos que os negros formam colocados, também
denunciando a situação desigual, amparado pelo racismo, que os afro-descendentes
vivem no Brasil. Contudo,
no inicio dos anos 90 eclode na metrópole paulistana um movimento social
denominado hip hop, em que o rap é a figura central. Jovens de várias zonas da
Região Metropolitana articulavam-se para inaugurar um período de criação em
que uma arte juvenil transforma-se em prática política. Era a juventude negra
que, influenciada por sua ancestralidade, soube dar continuidade a formas
simbólicas de resistência. Soube apropriar-se dos recursos adivinhos de várias
culturas negras (como a música), transformando essa modalidade artística em
um discurso elaborado e consistente. Foi capaz de reivindicar direitos sociais,
apontar as dificuldades da vida na pobreza. Condenar as práticas de
discriminação étnica (ANDRADE, 1999, p. 09).
Neste sentido, é importante expor uma canção que evidencia muito bem todas
estas questões, a canção “Honra”, do rapper Pregador Luo, em que o negro descendente
deixa de aparecer como vitima, mas protagonistas de suas histórias e memórias
deixando de lado a visão de serem caracterizados como herdeiros da escravidão, mas
um povo que possui sua própria história:
Justiça, ancestrais, sangram em território branco, açoites,
correntes, troncos, quem nós somos?
Da onde viemos? Para onde vamos?.
Seus gemidos não os comovem,
pare de chorar vê se move,
O sonho de liberdade não se perdeu, muito sangue
negro escorreu e fez germinar a semente da esperança,
eu carrego vivo em mim a mudança,
já não tenho sede de vingança,
mas ela vira pois Deus vingará,
eu sou a continuidade do antigo escravo, porem graças aos rebeldes,
meus pulsos não estão algemados,
Pela honra dos ancestrais
é que eu guerreiro, sou orgulho do gueto
Sou contemporâneo, homem preto,
com os mesmos defeitos, porem com mais virtudes,
sou a águia que alcança grandes altitudes
Vejo de cima todos os meus inimigos lá em baixo,
largos, sujos,morreram pelos meu sucesso não pelo meu fracasso, sei que
ameaço, pois represento igualdade com minha mente ou com meu braço,
Dignifico o trabalho, cuspo, para os ósseos, não se deixe prejudicar,
Cuide de seus negócios, queime seu velho livro de história, pois ele mente
Homem negro você tem valor...
Honra ou vergonha (honra)
Você tem honra ou vergonha (honra,honra)
Honra ou vergonha (honra)
Você tem honra ou vergonha (honra,honra)
Eu me envergonho do negro que
trafica droga importada,
Escola repudia ação do homem forte que pede esmola,
vergonha é ver seu semelhante
Se humilhar por grana, [...]
Tanta coisa pra se envergonhar,
pouco pra se orgulhar, mudar, depende de quem me escutar,
pra vencer tem que lutar, torna-se sua vida
Rigorosa, não é querer muito é ser honrosa, torna descartável,
Faça seu nome honorável, brasileiros, negros, imigrantes,
nordestinos denominados latinos,
se orgulham do que fizemos e construímos,
tenho a honra de estar onde estou, assim como eu
será q você já se perguntou se
envergonhou ou se honrou, combate é duro mas vamos vencer, [...]
(SOUZA, R; LUO, P., 2004).
Esta canção salienta a trajetória dos africanos considerados escravos, e seus
descendentes no Brasil, quando o rapper questiona “quem nós somos? De onde viemos?
Para onde vamos?” Evidencia que este povo não surgiu do nada, e nem de nenhum
lugar, mas possui história, além de uma trajetória de luta por liberdade, no passado, e
contra o preconceito no presente. Desta forma, a canção propõe que o “pra onde
vamos”, depende de repudiar a caracterização de vítimas, e se orgulhar de ser negro
descendente.
Além disso, nesta canção nos deparamos com a figura do guerreiro, aquele que
lutou, que venceu, que se orgulha, e que nos nossos dias luta para mudar a realidade da
periferia, principalmente do negro descendente que mora nesta periferia, a partir das
lutas já iniciadas no passado, pelos ancestrais. Luta esta, que também está relacionada a
resgatar uma trajetória dos negros em que não é ensinado na escola, por exemplo, como
observamos, quando o autor menciona “queime seu velho livro de história, pois ele
mente”. Esta “mentira” pode ser considerada como valor do negro e de sua cultura, ou a
negação das concepções de inferioridade, do negro no período colonial ser visto apenas
das como escravo.
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TELLA, Marco A. P. Rap, memória e identidade. In: ANDRADE, Elaine Nunes de.
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