O NEGRO NO MERCADO DE TRABALHO PELA
CULTURA HIP HOP
Márcia Aparecida da Silva Leão
1
Palavras-chave:
Afrodescendente; Cultura; Trabalho
Resumo
Este trabalho tem por objetivo mostrar que após a Abolição da Escravatura o
afrodescendente perdeu identidade, e sem estrutura social não desenvolveu interrelações na comunidade. Como problema para esta questão está uma sociedade que
nega o direito à cidadania para o indivíduo preto (classificação do IBGE). Considero
que o afro-brasileiro para se auto-defender passou a negar sua origem e se autoidentificar como indivíduo branco, e em algumas situações assumiu a invisibilidade que
a sociedade lhe impôs, passou a incorporar a cultura européia como um modo de vidapadrão e foi se esquecendo, ou mesmo nunca recebeu informações sobre a cultura do
negro na sociedade brasileira. As comunidades negras que vivem em favelas em sua
maioria, não têm perspectivas de vida porque perderam oportunidades para estudar e
adquirir conhecimentos. Sofrem o ônus do conceito Minoria e a falta de
representatividade política e social. A marginalização do negro como cidadão cresceu
na medida em que brasileiros, incluindo o próprio afro-brasileiro, acreditavam na
chamada Democracia Racial. Uma cordialidade irreal que sempre colocou homens e
mulheres afrodescendentes no campo da inferioridade. Todo este processo de
convivência cordial disfarçando o preconceito e a discriminação causou muito
sofrimento ao negro que, aos poucos, foi perdendo sua identidade e esquecendo seus
valores étnicos de origem. Portanto, pela cultura Hip Hop, atividade cultural que
envolve a arte de rua, não só afro-brasileiros, como também moradores pobres de
periferia encontraram uma forma de reagir à opressão que sofrem, e tentam sair da
marginalidade social criando postos de trabalho em oficinas oferecidas em centros
culturais. Com esta iniciativa muitos negros resgatam a cultura africana e a do afrobrasileiro. Pela grande presença de jovens afrodescendentes nas favelas ou bairros
carentes, o movimento Hip Hop é antes de qualquer coisa a possibilidade de ajudar o
negro na construção de uma nova identidade, na reconquista da auto-estima e na
construção de valores próprios do afrodescendente no contexto do desenvolvimento
gerado pela globalização.
1
Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu –
MG – Brasil, de 18 à 22 de setembro de 2006.
Faculdade Diadema - SP
O NEGRO NO MERCADO DE TRABALHO PELA
CULTURA HIP HOP
Márcia Aparecida da Silva Leão
Introdução
O século XIX foi marcado pelo intenso processo imperialista de países da
Europa. Estima-se que a partir de 1870, observou-se a maior consolidação de
exploração do interior dos territórios africano. Dividiram o continente, surgiram
disparidades do ponto de vista físico e cultural. Ao estabelecer domínio sobre o
continente africano, os europeus agiam de diversas formas, conforme a organização
social que encontravam e quando se deparavam com um Estado organizado em forma
de monarquia, estabeleciam o protetorado, mantendo a administração pré-colonial.
Nações européias cooptavam a classe dirigente e controlavam a exploração de recursos
naturais mais importantes, como também ocupavam pontos militares de maior valor
estratégico para garantir o uso do espaço africano sem muitos problemas.
Atualmente, a condição do indivíduo afro-brasileiro não sofreu muita alteração.
Desde a Abolição da Escravatura, no século XIX, o afrodescendente vem lutando para que a
sociedade reconheça sua cidadania e lhe proporcione oportunidades de trabalho e
independência econômica. Mas esta tem sido uma luta quase em vão visto que, desde o
Brasil Império os governos brasileiros incentivaram a chegada de imigrantes europeus ao
País, o que piorou mais ainda a estrutura social do negro. Esse processo continuou no século
XX, quando o trabalhador negro foi substituído por trabalhadores imigrantes nas lavouras
de café, e não tendo muito que fazer com a liberdade conquistada perdeu ocupação e
dignidade. Livre, porém sem emprego garantido, sem lugar para viver, sem uma estrutura
de vida estabelecida, a possibilidade do negro se firmar numa identidade social foi
gradativamente prejudicada. É fato que, antes do decreto abolicionista que deu ao negro a
tão sonhada liberdade, homens e mulheres negros eram reconhecidos na sociedade como
elementos submissos, prontos para servir, nada mais além disso.
Analisar o processo de construção da identidade social do negro através do
movimento hip hop é o objetivo principal deste trabalho, sendo objeto de investigação a
conquista de auto-estima e cidadania pelo talento e pela arte de rua que o afro-brasileiro
expressa. Sob a hipótese de que o afro-brasileiro, ainda sente o ônus do racismo, a falta de
políticas públicas voltadas para a Ação firmativa e por causa disto se distancia de sua raiz
cultural e desconhece muito pouco sobre a história da África e do afrodescendente. Refugiase na periferia num modo de vida simples e sofrido e espera em Deus a solução para seus
problemas. A cidade de Diadema há quatro anos desenvolve o projeto Cultura Hip Hop por
intermédio da ONG Zulu Nation Brasil, na Casa de Cultura Canhema. Da arte de rua
reuniu o grafite estilo de pintura e desenho nos muros e paredes urbanas, a
discotecagem ou música eletrônica, o break arte de dançar lançando o corpo em
movimentos circulares simultâneos a saltos e manobras e por fim a arte de compor e
cantar em rimas situações do cotidiano afro-brasileiro ou de moradores de favelas, o
rap. Uma experiência positiva cuja parceria com a prefeitura municipal da cidade dá aos
jovens a possibilidade de conquistar oportunidades de trabalho mediante ao que aprendeu
nas oficinas oferecidas, gratuitamente.2
2
Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu –
MG – Brasil, de 18 à 22 de setembro de 2006.
Faculdade Diadema - SP
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O NEGRO NO MERCADO DE TRABALHO PELA CULTURA HIP HOP
Os dedos não são iguais.
Provérbio nagô
O Comércio internacional, embasado pela concorrência capitalista, foi gerando barreiras e
marginalizando sociedades. Destas sociedades, a africana foi a mais penalizada, assim como
seus representantes.
Os negros foram se espalhando pelo mundo numa condição inferior e foram sendo
segregados. No caso do Brasil, que utilizou maciçamente a mão-de-obra escrava para
desenvolver sua economia agrária do século XVI ao XIX, não houve radicalmente
processos de segregação, mas sim grande tendência para a miscigenação, o que originou
mais tarde, com a Abolição da Escravatura, e mesmo antes de ela acontecer, a falsa idéia de
que no País havia uma verdadeira democracia racial.
A miscigenação aconteceu, o Brasil passou a ter indefinição étnica3 e tornou-se
indiferente a qualquer indivíduo classificado como afrodescendente ou afro-brasileiro4.
Numa cortesia falsa, o negro foi sendo deixado de lado, sobrevivente nas periferias, sem
oportunidades e mascarando estigmas sociais a ele auferidos. Para provar sua capacidade
intelectual e expressar suas habilidades, muitos negros buscaram numa ação coletiva, a
solução para resolver ou amenizar a discriminação racial existente. Diversas tentativas
foram empreendidas, mas duas tiveram grande destaque porque além de lutar pela cidadania
do negro em comunidade, também se transformaram em instrumento político. Foram: a
Frente Negra Brasileira, criada em 1931, e o Teatro Experimental do Negro, inaugurado em
1944. Na história de luta dos afrodescendentes surgiram muitas entidades voltadas a
defender o negro de qualquer injustiça social; ademais, o que fez dar certo o objetivo dos
dois movimentos foi a necessidade de impor à sociedade a verdadeira face do negro, sua
identidade, capacidades e habilidades. Poderemos observar que o estimulo à arte (música,
dança, composição, canto, representação) fez muita diferença. Em meio aos recursos
pedagógicos oferecidos aos participantes estava o intuito de desenvolver a criatividade do
afro-brasileiro, e através dela expressar manifestações sobre o racismo e a desigualdade no
Brasil. Atualmente, certos comportamentos dos jovens de periferias e de regiões de classe
média têm chamado a atenção: o modo de vestir, o vocabulário, o cabelo e a música
deixavam todos numa atmosfera comunicativa que nenhum outro grupo conseguia penetrar.
Observa-se também que os grupos estabelecem pontos de encontro, ao que parece,
assustadores (formação de gangs), quando revelam trocas de experiências e
confraternização. É o momento dos grupos se apresentarem em “batalhas” para exibir a arte
em forma de pintura, dança canto e discotecagem, com destaque para o movimento Hip
Hop cujo objetivo principal de certa maneira corresponde ao que foi a FNB e o TEN.
Trocando a militância por manifestação musical, os rappers começaram a criar
letras que contam o cotidiano do afro-brasileiro na periferia, e utilizando ainda a dança e
movimentos com o corpo. Em resposta ao intenso crescimento urbano de muitas metrópoles
nasceu a chamada cultura de rua, ou cultura Hip Hop. A expressão cultura caracteriza o
conhecimento popular e informal dos participantes que estão numa situação de autodidatas,
3
Uma proposta de viagem sobre o cotidiano dos afro-brasileiros pode ser vista em: Santos, Hélio. A Busca de
um caminho para o Brasil, a trilha do círculo vicioso. São Paulo: Senac, 2001, pp. 452-453.
4
As razões fenotípicas foram responsáveis por esta classificação.
3
pois não há princípios formais de conhecimento científico que justifiquem o talento
expressivo dos jovens de periferia.
1 – História do Hip Hop
Muitas nações no mundo segregaram elementos étnicos diferentes. Assim como nos
Estados Unidos e até mesmo na África do Sul, de Nelson Mandela, com o Apartheid,
chamou a atenção do mundo. Os negros norte-americanos também foram vítimas da
escravidão e uso da mão-de-obra barata. Como potência econômica não era viável ao país
manter um regime de escravidão, porquanto este fato impedia suas transações comerciais
com a Europa. Ainda na primeira metade do século XIX, os norte-americanos criaram um
espaço na própria África para fazer retornar os escravos negros libertados. Tratava-se da
Libéria, um país de porte médio no continente5. Mas havia os escravos que nasceram na
própria América, e também os negros que não desejavam voltar, aproveitando-se do sonho
de prosperar na América, como já ocorria com outros imigrantes.
Nenhuma nação do mundo recebeu tantos imigrantes quanto os Estados Unidos.
Segundo estimativas, entre 1800 e 1930 desembarcaram em seus portos mais de 35 milhões
de pessoas das mais diversas nacionalidades. Este enorme contingente de estrangeiros foi
atraído pela possibilidade de cultivar um pedaço de terra próprio ou de conseguir um bom
emprego e, conseqüentemente, de ascender economicamente, oportunidades oferecidas
pelos EUA a quem se dispusesse a viver em seu território. Até a primeira metade do século
XIX, os milhares de estrangeiros que entraram no país foram beneficiados por uma política
oficial de distribuição de terras a imigrantes. A partir de 1850, o extraordinário surto
industrial nos grandes centros urbanos do Nordeste americano e a crescente oferta de
empregos atraíam grandes levas imigratórias.
A esmagadora maioria dos imigrantes que entrou nos Estados Unidos até o final do
século XIX era de origem britânica (ingleses e irlandeses), germânica (alemães) e
escandinava (suecos). Nas décadas de 1920 e 1930, esse forte fluxo imigratório sofreu
grandes restrições devido a medidas adotadas pelo governo americano. As autoridades
estavam sendo muito pressionadas por setores sociais mais conservadores, para os quais a
entrada de eslavos e latinos punha em risco a unidade anglo-saxã no país, como também por
sindicatos trabalhistas que viam esses imigrantes como poderosos concorrentes no mercado
de trabalho, constituindo, portanto, uma ameaça aos trabalhadores norte-americanos.
Estabeleceu-se, então, que seriam recebidos apenas 150 mil imigrantes por ano, divididos
em cotas de nacionalidades proporcionais ao número de estrangeiros que já viviam naquela
nação.
As restrições estavam ocorrendo também em função da grande crise econômica que
se estabelecia nos Estados Unidos em 1929. Esta crise gerou a exposição maciça de muitos
desempregados nas ruas de Nova york, o local mais rico em produção industrial e financeira
dos norte-americanos. Haviam desempregados músicos, por exemplo, que tocavam nas ruas
para ganhar alguns trocados. Esta atitude foi considerada um protótipo do Hip Hop.
Os negros que tinham vindo como escravos, ao receberem a liberdade formaram
guetos em locais distantes dos centros urbano, pois lhes era proibido circular nos mesmos
lugares utilizados por brancos. Castells explica essa situação:
(...) os negros nos Estados Unidos são precisamente africanos e
americanos. Sua identidade foi constituída a partir de um povo
5
Para saber mais sobre os países do continente africano: Andrade, Manuel Correia de. O Brasil e a África. São
Paulo: Contexto, repensando a Geografia, 2001, p. 29.
4
seqüestrado e escravizado, sob controle da sociedade mais livre da
época. Assim, para que pudesse conciliar a evidente contradição entre
os ideais de liberdade e a economia escravocrata, os Estados Unidos
tiveram de negar a condição humana dos negros, pois em uma
sociedade fundada nos princípios de que ‘todos os homens são iguais’ ,
a liberdade somente poderia ser negada aos não-humanos... portanto, a
cultura negra teve de aprender a conviver com essa negação sem que se
permitisse cair na auto-aniquilação. Conseguiu. Das canções às artes,
das igrejas da comunidades às irmandades, a sociedade negra emergiu,
imbuída de uma profunda noção de significado coletivo, que não se
perdeu durante o êxodo rural maciço para os guetos do Norte, trazida
em uma extraordinária criatividade nas artes, na música e na literatura,
e em movimento político poderoso e multifacetado, cujos sonhos e
potenciais foram personificados em Martin Luther King Jr. nos anos 60
6
.
Os negros norte-americanos tinham algo que lhes elevava a auto-estima: estavam
sempre unidos, a começar pelas famílias cuja separação não ocorreu como no Brasil,
durante a escravidão. A união para lutar e conquistar a cidadania era o orgulho maior dos
afro-americanos. Como foi citado na introdução deste capítulo, o continente africano foi o
mais penalizado no que concerne à marginalização nacional e cultural; aliás, em qualquer
canto do mundo onde houver a presença de negros, haverá também a discriminação racial, e
é desta forma que o Hip Hop foi concebido, gerado, e ao nascer nos Estados Unidos
possibilitou identidades aos norte-americanos dos guetos.
Começou pelo gênero musical que veio da Jamaica em duas influências essenciais
para que o rap surgisse. A primeira é o toast, uma modalidade vocal existente na ilha desde
os anos 50, que usava rimas improvisadas com uma base instrumental, algo semelhante ao
repente nordestino. Geralmente os toasters eram os próprios Djs7 que comandavam os
sound systems (aparelhagem de som móvel) em festas organizadas nas ruas. Percebeu-se
que este tipo de música atraía muito mais os jamaicanos do que as músicas tocadas nas
rádios. Os moradores de guetos e favelas se identificavam com as músicas trazidas pelos
jamaicanos. A tradição da fala suingada e cheia de gíria dos afro-americanos nasceu da
influência dos imigrantes jamaicanos que se deslocaram para os guetos de Nova York, se
adaptaram ao sotaque inglês e à realidade da periferia de lugares como o Bronx, o Harlem,o
Queens e o Brooklyn, por volta de 1973.
Os jovens faziam o rap com trechos de discos mixados, os break beats8, e dançavam
nas ruas e parques, competindo entre si. O DJ jamaicano Kool Herc começou a organizar
festas nas ruas do bairro novaiorquino do Bronx. Nessas festas os jovens do bairro
começavam a dançar e ficaram conhecidos como b.boys (break boys ou boogie boys). O
break é um resgate de várias culturas, como a capoeira brasileira, as artes marciais orientais,
a mímica e o sapateado americano e a dança indiana. Esta fusão de expressões corporais
abriu uma margem enorme de aproximação com diversos grupos etnicamente diferentes. Na
sua origem, em Nova York, foram criados o top rock, o freezes foot work e o up rock, e na
mesma época, na Califórnia foram desenvolvidos o popping (o dançarino imita os
movimentos de um robô) e o locking (o dançarino realiza seus movimentos como se
estivesse em câmera lenta). Essas danças foram manifestações de rua geradas para chamar a
atenção do poder público sobre a situação do afro-americano em relação ao seu modo de
sobrevivência. Portanto, tinham intenção política e não artística. A maior influência que
esses garotos encontraram foi no estilo musical/dançante do cantor James Brown.
Os pioneiros referiam-se a essa dança em sua terminologia original – o b. boying,
que vem de b. boys, mas a mídia popularizou-a como break dance. Spin revela:
6
Castells, Manuel. O Poder... op. cit., p.74.
Pessoa responsável pela música e por toda a performance rítmica.
8
Eram trechos de músicas instrumentais de diversos ritmos, como soul, rock, funk, jazz e outros.
7
5
(...) a dança quase acabou devido a esta coisa do break comercial.
Quando a dança foi tratada como aeróbica, uma modinha que todos
podem imitar perdeu sua força, sua raiz. O b. boiyng não é algo que
todos podem fazer, é preciso prática e técnica. Quem entra nessa pela
moda logo se desencanta. Algumas pessoas com o propósito de
chamar a atenção, enfocaram o aspecto marginal, agressivo e violento
da dança. Quem realmente entende a cultura, sabe que ela é bastante
competitiva e são as batalhas (rachas) entre as crews (turmas) que
estimula os b. boys a se superar e inventar novos passos. É muito
importante que cada b. boy desenvolva seu próprio estilo e com isso
conquistará mais respeito e destaque no Movimento 9.
Aos poucos o break foi estimulando o lado da habilidade artística de cada indivíduo,
mas a situação política continuava a mesma. A discriminação racial norte-americana deixou
os negros, os imigrantes hispânicos e orientais à margem da sociedade, e este fator, somado
às conseqüências do fundamentalismo religioso10 e à ausência de perspectivas profissionais
e educacionais, principalmente para os negros, estava gerando verdadeiros conflitos entre
membros da comunidade negra. A falta de ocupação era o que impulsionava as guerrilhas
entre as chamadas gangs. Quando grupos de bairros diferentes se encontravam, iniciavam
um confronto entre si. Anterior a isto, houve registros da forte atuação de movimentos
como o dos Blacks Panters (Panteras Negras), cujo objetivo principal era a repressão contra
policiais ou qualquer tipo de opressão e discriminação racial. O partido dos Blacks Panters
foi idealizado por Huey Newton e envolveu amigos, incluindo Bobby Seale e David
Hilliard, desenvolvendo um perfil marxista para centralizar-se na organização. O animal
pantera negra era usado como símbolo para a autodefesa e para representar a luta pela real
liberdade do negro e seus direitos civis. Considerada uma organização violenta, por isto era
duramente perseguida. No movimento Black Power (Poder Negro) havia contestação, mas
não agiam com repressão. Mesmo assim eram também perseguidos. Realizavam
manifestações pelo direito à igualdade social e gritavam contra o racismo. Mas foi na
música que muitos protestos começaram a acontecer, principalmente pelo swing e a
musicalidade de James Brown11 .
Malcolm X teve uma história peculiar, mas não difere da maioria negra norteamericana. Nasceu em 19 de maio de 1925, em Omaha, Nebraska (EUA), filho de Earl
Little, ministro batista, um devotado militante da UNIa (Universal Negro Improvement
Association), organização criada por Marcus Garvey e Louise Little. Passou por
descaminhos trilhados pela maioria dos destituídos, dos marginalizados e discriminados,
mudou de religião e até mesmo de comportamento. Foi assaltante e viciado em drogas.
Preso, converteu-se ao islamismo em 1952, justificando o “X” de seu nome como
manifestação de protesto simbolizando o nome da família africana desconhecida, cuja
identificação foi extirpada pelos colonizadores ao trazê-la da África, juntamente com todos
9
Marcelinho Back Spin é membro da Casa do Hip Hop em Diadema e um dos colaboradores atuantes do
projeto nessa cidade. Atualmente é um orientador de dança.
10
Vale lembrar o papel aterrorizante que foi a Ku Klux Klan (entidade pseudocristã que pregava a segregação
contra homossexuais, judeus e negros nos Estados Unidos), que de certa forma acentuou a discriminação racial
norte-americana e provocou a origem de personagens importantes na luta contra o racismo, como foi o caso de
Malcom X, ativista negro da década de 1960.
11
Nos anos 60 o ritmo do soul ganhou as ruas, e em particular a frase que James Brown sempre gritava nas
suas músicas: “ Say it loud: I’m black and proud!” (Diga bem alto: Sou negro e orgulhoso!”). Na verdade, foi
uma frase levantada por Steve Biko, militante negro sul-africano, que pelo sucesso e intensidade do seu
significado foi adotada por James Brown.
6
os seus membros como escravos para a diáspora negra. Lutou contra o racismo e suas
ramificações discriminatórias e preconceituosas. Organizou inúmeros templos para a nação
do Islã. Sempre ativo em defesa da população carente, seus discursos incomodavam, e por
isto em 21 de fevereiro de 1965 foi assassinado.
Em 15 de janeiro de 1929 nascia em Atlanta, Geórgia, Martin Luther King. Filho de
um pastor batista, recebeu o mesmo nome do pai. Foi criado no sul dos Estados Unidos e
conviveu dia após dia com o racismo, injustiças sociais e discriminação. Inspirado em
Gandhi (líder indiano), em 1955 Martin foi para a linha de frente em defesa dos negros
norte-americanos que lutavam por direitos civis. Este fato se deu quando resolveu tornar-se
porta-voz dos negros em discurso de protesto em Montgomery, Alabama. Durante os treze
anos seguintes pregou amor e perdão, mesmo quando encarcerado e ameaçado de morte.
Apelou para a consciência de liberdade e instilou no povo negro a coragem de lutar pela
igualdade e por seus direitos como cidadãos livres. Durante toda a sua vida pregou contra a
desumanidade do homem em relação ao próprio homem, contra a guerra e a pobreza. Seus
discursos, como os de Malcolm X, incomodavam o poder dos brancos, que também o
assassinaram em 4 de abril de 1968.
Aconteciam muitos casos de racismo nos Estados Unidos, que estimulavam os
discursos de Malcolm X e de Mather Luther. Como exemplo, no dia 15 de setembro de
1963, um atentado a bomba destruiu uma igreja batista na cidade de Birmingham, no
Estado do Alabama, provocando a morte de Cynthia Wesley, Carole Robertson, Addie
Mãe Collins e Denise McNair. Eram quatro meninas negras entre 11 e 14 anos de idade.
O fato, considerado um dos crimes mais chocantes da história dos Estados Unidos,
também provocou ferimentos em mais de 20 pessoas que estavam reunidas no local,
conhecido por ser um dos principais centros de militantes da causa negra na cidade.
Naquela época as autoridades eram facilmente corrompidas pelas famílias brancas mais
reacionárias, que manipulavam e camuflavam as investigações, já que estavam
articuladas em grupos racistas que lutavam pela supremacia branca, como a Ku Klux
Klan12. Inclusive, o caso não foi julgado antes porque as autoridades, incluindo um exdiretor do FBI, não acreditavam que Thomas Blanton pudesse ser condenado por um
júri do Alabama.
A morte dos dois líderes da luta contra o racismo nos Estados Unidos, ao contrário
do que se esperava, não gerou o nascimento de outro defensor, porém as manifestações
continuaram, só que no contexto de grupos13. Algumas manifestações eram altamente
agressivas, como as pichações e as letras de rap que conclamavam os afro-americanos a
saírem em luta armada contra os racistas. Afrika Bambaataa,14 percebendo a grande
catástrofe que esta atitude poderia causar, iniciou um trabalho de conscientização entre os
jovens da periferia. Propôs que cada grupo, dentro do melhor que poderia fazer, unisse seus
talentos para realizar uma grande festa em nome do povo negro, das origens africanas.
Nessa festa, que reuniu o talento do break com o rap, os pichadores aprenderam a arte do
grafite, e sempre havia alguém para animar o grupo gritando, entre uma música e outra,
“salte! (hip)”, “ mexa os quadris! (hop)”era a figura do MC (mestre de cerimônias). Com
isto, Bambaataa apresentou um projeto para criar uma organização em que os quatro
elementos do Hip Hop estariam juntos numa única festa para resgatar a auto-estima do
12
Grupo que lutava para banir a etnia negra dos Estados Unidos e foi perseguido por agentes do FBI sob
as ordens do presidente Kennedy.
13
A história do Hip Hop está ligada, desde a sua origem, às lutas e conquistas políticas dos negros norteamericanos nos anos 1960, culminando com a morte dos dois líderes, como lembra o jornalista Spency
Pimentel, em trabalho de conclusão de curso O livro vermelho do Hip Hop,.
14
Foi o precursor do Hip Hop nos Estados Unidos a partir dos anos 1970.
7
negro, para denunciar o racismo e manifestar talentos no mundo todo. Estavam formando
uma organização intitulada Zulu Nation (Nação Zulu)15.
Os quatro elementos do hip hop são os seguintes:
a)
B. boys ou breaking boys, são os garotos que dançam saltando,
mexendo os quadris no ritmo da música, criando performance própria. Realizam
verdadeiras técnicas de dança. O ritmo da música dá aos movimentos a velocidade
de que precisam para realizar uma impressionante expressão corporal. Os
participantes do projeto cultural Hip Hop têm aulas de dança e anatomia para
conhecer todas as possibilidades de movimentos que o corpo pode executar. A
maioria dos dançarinos cria e desenha em seus movimentos coreografias
desafiadoras. Os participantes são na maioria descendentes afros e combinam as
batidas fortes da música tocada pelo Dj com os movimentos longos e circulatórios,
deixando no imaginário de quem assiste a impressão de agressividade.
Existe nesses movimentos muita familiaridade com a capoeira e com o
16
jongo , instrumentos culturais do folclore brasileiro. Herança afro-brasileira, o
jongo a princípio de intenção religiosa fetichista, estabelecia na roda movimentos ao
som de tambores e cantos repetitivos cujo desafio era para criar o ponto, enigma
lingüístico, cujos participantes tendem a “desamarrar”, ou seja, desvendar o seu
segredo. Era uma diversão, porém os participantes aproveitavam-se do momento
para invocar espíritos e desenvolver mistérios e magias da religião africana. Hoje, o
jongo tornou-se uma simples dança para divertimento. A comparação com à dança
dos b.boys inevitavelmente aparece porque existem movimentos coreografados,
realizados em roda, assim como no ponto do jongo e no break. São giros e saltos
muito parecidos executados durante as batidas fortes da música, quando o desafio
surge mediante as mais divertidas e diferentes posturas de seus participantes. Cada
componernte, isolado ou em grupo, invoca o desafiante a realizar performance igual
ou melhor que ele (s)17.
. Esses movimentos significam o máximo da dança, percebendo-se a
emoção e as expectativas do público assistente, que, começa a se expressar em forma de
gritos, palmas e incentivo verbais conforme a criatividade do dançarino o surpreende. Por
sinal, em todos os locais em que essa cultura está sendo apreciada, seus admiradores dizem
que o estilo e os movimentos do corpo e da dança são de influência soul, de James Brown,
dos Estados Unidos, e como conseqüência, do soul de Toni Tornado, no Brasil. A expansão
dessa cultura hoje tem atingido também o universo feminino, em especial com as b. girls,
que vem desenvolvendo excelentes trabalhos na mídia e fora dela. As mulheres mostraram
que expressam técnicas e movimentos tão bem quanto os homens. Em batalha ainda não se
misturaram porque alguns movimentos masculinos são bem mais agressivos (fortes) do que
os delas, porém no conjunto há garotas do break ganhando a vida com shows e
apresentações na mídia.
15
Afrika Bambaataa fundou a The Universal Zulu Nation em 12/11/1973 para fazer um trabalho de inclusão
social das comunidades negras latinas, que viviam nas ruas de Nova York. Em 12/11/1974 ele uniu os quatro
elementos (DJ, grafite, rap, break) e acrescentou-lhes o 5º elemento como sendo conhecimento e sabedoria,
pois nos anos 80 a indústria e a mídia ajudaram no sentido de tratar como sinônimos os termos Hip Hop e rap,
deixando de lado os outros elementos que compõem essa cultura. Como conseqüência, a Zulu Nation passou a
promover no Hip Hop esse 5º elemento.
16
Foi considerado um precursor da capoeira. Movimentos e lutas inicialmente executadas nas senzalas,
enquanto os negros, em códigos lingüísticos combinavam fugas ou simplesmente conversavam entre si, para
que não houvesse compreensão por parte do capataz, capitão do mato e do próprio senhor de escravos. A luta
da capoeira em combinação com os movimentos do jongo influenciou bastante no trabalho do B. boy.Ver sobre
o assunto: Ribeiro, Maria de Lourdes Borges. O Jongo. São Paulo: Secretaria da Educação e Cultura, Revista
do Arquivo Municipal, 1968, p.168.
17
O (s) foi acrescentado ao final do parágrafo porque, em muitos danças, o participante está em grupo e
dificilmente se apresenta isolado.
8
b)
DJ ou disc-jóquei é aquele que lida com o som, com a música
ritmada. O Dj é o responsável por criar técnicas eletrônicas nas músicas, portanto a
tecnologia e o conhecimento de vários recursos técnicos são necessários. Pode usar
diversos tipos de músicas para fazer a base do rap tocado (a música de fundo),
enriquecendo assim o próprio universo musical. O Dj deve ser eclético, ouvir e
pesquisar muitos estilos musicais. Executa movimentos de vaivem com o disco,
gerando um efeito eletrônico bastante aceito e estimulante para os dançarinos e
ouvintes do break e para quem não é profissional.
O trabalho de um Dj representa a arte de “brincar” com a música,
criar novos sons e ritmos em um estilo musical que esteja em moda ou não.
Atualmente é a profissão mais cara e a mais cobiçada no mercado de trabalho ligado
à música. Tocar ou brincar tem servido como uma espécie de terapia para
indivíduos de muitas faixas etárias. Usando as mãos e também a criatividade,
muitos disc-jóqueis elaboram manobras e performances interessantes, e o que
parecia uma simples execução de música em CD ou long play (LP), carinhosamente
chamado pelos DJs de “bolachão”, vira um verdadeiro espetáculo sonoro,
arrancando aplausos e gritos emocionados dos ouvintes. Dj Zocrinho (16 anos), exparticipante do projeto Hip Hop, em Diadema, hoje ganha seu próprio dinheiro
fazendo festas e eventos culturais. Ele relata,
todo Dj antes de fazer uma mixagem, aprende três princípios do som:
1 – o bumbo que é a batida mais forte da música, 2 – a caixa é a
batida intermediária, vem no contratempo do bumbo e 3 – o timbal,
que é um tipo de chocalho que completa o som. Esses três princípios
dão ao Dj a condição de controlar e contar, pelas batidas, o tempo e o
ritmo da música. Para mixar, o Dj necessita de uma aparelhagem que
lhe dê a condição para realizar os efeitos eletrônicos, portanto,
precisa de um mixer, dois tocadiscos ou CDJs (tocador de cd), um
amplificador e duas ou mais caixas. No mixer existe um tipo de
alavanca -“chave” que permite passar de uma música para outra. Esse
efeito é conhecido como crosstader. É o efeito que mistura as
músicas, dando ao Dj a possibilidade de usar sua criatividade para
brincar com as músicas e fazer montagens18.
A imagem abaixo representa um Dj marcando a dança dos b.boys com as
batidas eletrônicas e a segunda imagem, ainda no campo da comparação com o
jongo, mostra os tocadores de tambor, no Rio de Janeiro (Escola de Jongo da
Serrinha). No jongo, a dança é motivada pelos tambores, pela puíta (instrumento
hoje conhecido como cuíca) e guaiás ou chocalhos. Assim como relatou o Dj
Zócrinho, para um Dj o bumbo, a caixa e o timbal são indispensáveis. Há
semelhanças entre o Hip Hop e a herança dos negros escravos das fazendas, pois
ambos necessitam de marcação e de batidas fortes na música.
Não esquecendo o papel dos músicos, no caso do Dj e dos tocadores de tambores, é
o de animar a roda e os desafiantes, e ainda com a responsabilidade de gerar uma
grande concentração dos participantes pelas batidas da música, que resultará num
espetáculo belíssimo de dança e de movimentos muito interessantes para estudiosos
da antropologia social.19
18
O Dj zócrinho começou sua oficina na Casa do Hip Hop em fevereiro de 2004, gratuitamente, e o curso teve
duração de 6 meses, com direito a seguir com as oficinas para aprimoramentos. Todo o recurso do curso foi
assegurado pela Prefeitura de Diadema, em parceria com o projeto.
19
Ciência voltada ao estudo de comportamentos de indivíduos, nos mais diversos grupos, em sua primitividade,
funcionalismo e estruturalismo.
9
c)
O MC mestre de cerimônias é aquele que fica animando a festa e não
deixa os participantes desanimarem, portanto, tem que ser criativo e comunicativo.
Entre uma música e outra chama a atenção da platéia com gritos e palavras de
incentivos. Mas o papel principal do MC é a capacidade de criar letras compostas
ou improvisadas nas rodas de rappers. O improviso em geral é no intuito de
desafiar, e se inspirando em cenas do cotidiano ou em manifestações pessoais gera o
free style (capacidade de rimar no improviso). O público que assiste às batalhas de
MCs ou mesmo de outras manifestações da arte de rua, vai ao delírio a cada desafio
e improvisação criativa. Em geral, os participantes preferem assuntos políticos e da
atualidade ou então se insultam, só para poder rimar. O MC é acompanhado por
outra pessoa que faz o beat box, som com a boca imitando instrumentos eletrônicos.
No projeto Hip Hop o MC recebe orientações e acompanhamento de músicos e
profissionais da área, conforme notícia do informativo interno da Casa do Hip Hop:
O trabalho com os grupos de rap já está caminhando aqui na Casa
do Hip Hop. Mais de vinte grupos inscritos estão freqüentando a
aula de técnica vocal, aos sábados, com o músico Alexander
Pereira. A intenção do projeto é trazer muita informação e técnica
para a rapaziada, que até o final do ano estará mostrando suas
produções. O projeto conta com a colaboração do MC Thaíde e do
pesquisador do movimento Nino Brown20.
Analisando a técnica desenvolvida por um MC pode-se verificar que a
ligação com o trabalho do repente nordestino é bem intensa. Na verdade, muitos oficineiros
afirmaram que buscam a didática nordestina para ensinar rima e composição no projeto Hip
Hop. Independentemente da improvisação, os alunos também têm aulas de literatura,
literatura de cordel, principalmente de poesia, e aprendem a metrificar os versos compostos
por eles. Discutem muito sobre cidadania e direitos civis e reafirmam a identidade do afrobrasileiro nesse contexto. Os participantes da oficina, de certa forma, desenvolveram grande
habilidade para falar, e em muitos casos, jovens de fala truncada e codificada admitiram que
antes desse trabalho tinham enorme dificuldade para se expressar, falar em público e usar
um microfone. Atualmente ocorre o oposto. Falam muito bem, sobretudo quando se reúnem
periodicamente21 na Casa do Hip Hop para debater algum tema voltado às questões sociais
do afro-brasileiro.
Assim como no repente nordestino não há tempo predeterminado para
acabar um desafio lingüístico entre uma rima e outra, no free style também não há, portanto,
quanto maior a desenvoltura criativa para rimar, melhor será a exibição e o espetáculo. O
brasileiro aprendeu a desenvolver o projeto Hip Hop à sua maneira, afastando-se um pouco
do modelo norte americano e constituindo recursos com a cara do País. Daí a aproximação
com elementos da cultura brasileira. Há sites e matérias de revistas especializadas que
explicam o que significa o Hip Hop com as características do Brasil, no sentido de reforçar
que a intenção dos brasileiros está voltada para o valor à arte, à conquista da auto-estima do
jovem de periferia e não radicaliza, como nos Estados Unidos, a menção de protesto.
A base para a improvisação do MC está ou não no acompanhamento
da música eletrônica. Usa como instrumento o microfone, enquanto os repentistas
dependem da viola para realizar o desafio. É claro que ambos os estilos precisam
também da habilidade verbal e de conhecimentos gerais. Mesmo assim, qualquer
20
Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop nº 3 – maio, 2000 – 4.000 exemplares.
Todo último sábado de cada mês, alunos, professores, profissionais e admiradores da cultura de rua se
reúnem na Casa do Hip Hop, em Diadema, para exibir seus talentos e trocar informações.
21
10
documento ou registro do projeto Hip Hop associa a arte de rua com o movimento
dos Estados Unidos e com a ideologia de Afrika Bambaataa. O jeito de andar, o
falar, os movimentos, em sua maioria estão de alguma forma associados ao modelo
norte-americano dos rappers, criados nos bairros ou guetos onde afro-americanos
aprenderam a reivindicar seus direitos civis. No Brasil não foi tão diferente, e a
população da periferia encontrou na arte de rua a possibilidade de denunciar o
abandono do governo, o sofrimento das comunidades, e principalmente a falta de
oportunidades para quem nunca teve nada na vida, nem identidade e muito menos
auto-estima.
d) Nos locais onde o Hip Hop acontece sempre há um espaço para o grafite. Da
pichação à grafitagem, assim formaram-se os jovens com capacidade
criativa de expressar sua arte. O nome grafite é explicado por usarem spray
para construir um tema, que em geral está ligado a questões raciais e à
periferia. É preciso aprender a lidar com artes plásticas e visitar inúmeras
exposições para lidar com o grafite. Esta arte só teve reconhecimento depois
que foi inserida no Hip Hop, as pessoas que desenvolviam este trabalho não
conseguiam sequer alguma atividade que envolvesse esse tipo pintura. A
combinação de um tipo de letra e desenhos com cores diversas foi iniciada
com a Phase Two. O uso do spray foi desenvolvido primeiramente por
Alex Vallauri22, considerado mestre do desenho, usando esta técnica. O
almanaque Brasil de Cultura Popular assim se refere ao trabalho de Vallauri:
Criava desenhos com humorada crítica social em São Paulo e acreditam ser
ele, o influenciador dos grafiteiros do Brasil todo. Em Nova York, onde
viveu, a prefeitura transformou em cartão-postal um de seus grafites, que
retratava a ilha de Manhattan. Era gravador profissional, quando vivia em
Santos, litoral paulista. Retratou estivadores, prostitutas e outros personagens
do porto. Formado em comunicação visual, especializou-se em litografia no
Litho Art Center de Estocolmo, na Suécia. Cursou desenho no Pratt Institute,
de Nova York. Atraído por temas políticos, em 1970 pintou mulheres com as
bocas fechadas por alfinetes: crítica à ditadura. Na 18ª Bienal Internacional de
São Paulo, em 1985, seu grafite A Festa na Casa da Rainha do Frango
Assado foi considerado um dos grandes trabalhos da arte latino-americana do
século 20. Morreu em 1987, de Aids e a data de sua morte, 27 de março,
passou a ser considerada o Dia Nacional do Grafite. Defensor da “arte para
todos”, Alex Vallauri queria enfeitar a cidade para transformar o urbano em
arte viva, da qual as pessoas participem23.
A arte de Vallauri teve êxito por ter sido ele uma personagem estrangeiro, viajado e
com conhecimentos do mundo. Daí o fato de perceber no grafite, uma arte popular que
ninguém deva pagar para apreciar. Porém, quando a mesma proposta chegou às periferias,
os preconceitos foram e ainda são muitos. Da pichação veio a necessidade de grafitar,
desenhar os problemas urbanos e o modo de vida na periferia. A iniciativa elevou o respeito
entre grupos a tal ponto, que se tornou estratégia de comerciantes e governos que sofriam
com as pichações. Criou-se um código de ética entre os grafiteiros. Contratados por
empresários, grafitam os lugares antes pichados, e esta marca não poderá ser alterada em
respeito à assinatura dos grafiteiros. Foi realmente uma solução para acabar com o aspecto
feio e agressivo que alguns pichadores provocavam nos edifícios e construções das cidades.
Os pichadores desafiavam-se o tempo todo, rabiscando nos lugares mais inusitados que se
possa imaginar. Nada escapava: fachadas de prédios, portas, paredes, pontes recém22
Nascido na Etiópia em 1949, viveu na Itália, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos e Argentina. Chegou ao
Brasil em 1965, onde se naturalizou brasileiro.
23
Matéria da revista: Almanaque Brasil de Cultura Popular, nº 48, ano 4, março/2003, p. 13.
11
inauguradas, monumentos, e a partir da substituição dos riscos por desenhos houve respeito.
A conquista do grafite aconteceu por dois fortes motivos: primeiro porque os grafiteiros
marcavam territórios, e quando este espaço era invadido havia acerto de contas entre os
grupos24, segundo porque para quem aprendeu a arte dentro do projeto Hip Hop, aprendeu
que o respeito à cidadania é o preço maior que se tem que pagar para conquistar o respeito
do público e de outros artistas. Fica fácil distinguir quando a pintura é um grafite ou uma
pixação, como mostram as fotos a seguir. Na foto 20, que representa a pichação, a
agressividade é expressiva, o que torna o espaço feio e degradado, enquanto que na foto 21,
representando o grafite, há a presença da arte nos traços e na mensagem transmitida.
As cores também estabelecem a diferença. Ainda no campo da comparação, ao se
observar as gravuras desenvolvidas nos cartões da literatura de cordel, serão encontrados
traços e desenhos que contam o cotidiano do sertão e de outras regiões, assim como no
grafite, que passam mensagens e imagens do imaginário no espaço da periferia.
Talvez não seja coincidência a semelhança entre algumas artes do movimento Hip
Hop com outras manifestações nordestinas. Afinal, o Nordeste foi um lugar do Brasil em
que a atividade escravocrata foi bastante difundida. Lá também se originou boa parte da
sociedade brasileira, trabalhadores da roça, da enxada, e que mais tarde procuraram abrigo
em São Paulo por intermédio da migração. Outra observação a ser feita é que esses
migrantes nordestinos, quando no Sudeste, foram viver em cortiços e nas periferias, assim
como os afrodescendentes. Embalados pela a paisagem urbana economicamente desigual, e
através da união dos quatro elementos da arte de rua, vislumbraram oportunidades para
melhorar a vida de muitos afro-americanos e afro-brasileiros. Com efeito, o propósito maior
do movimento Hip Hop é formar consciências sobre a situação do negro, promover a paz
entre os jovens e gerar auto-estima para que o indivíduo possa buscar sobrevivência
econômica sem temer discriminação, mas também que possa construir habilidades e ter a
chance de usá-las como modo de vida. A ideologia do projeto Hip Hop resumi-se em reunir
os quatro elementos da arte de rua a um quinto componente, que é o trabalho de
conscientização e luta pelos direitos civis.
2 – O Hip Hop no Brasil e em Diadema
Não demorou muito para que o trabalho iniciado por Afrika Bambaataa nos Estados
Unidos chegasse ao Brasil, especificamente em São Paulo. Na Rua 24 de Maio, Centro, a
dança break ganhou espaço e identidade. Este local foi o primeiro ponto de encontro dos
b.boys brasileiros. Em 1984, influenciados por videoclipes e filmes de soul, blues e pelo
movimento black power americano, Nelson Triunfo25 e outros jovens que curtiam bailes na
noite criaram um grupo denominado Funk e Cia. Este grupo vinha se apresentando em
casas noturnas desde 1979. Das casas noturnas para as ruas o processo foi fácil, pois a 24 de
Maio era a rua onde os vendedores de discos com ritmo black se concentravam. No mesmo
local também havia grandes salões de cabeleireiros black os melhores cortes eram feitos lá.
Enfim, discos, cabelos, roupas e paqueras tinham seu lugar certo entre os jovens afrobrasileiros26 todos se encontravam no Centro e trocavam informações sobre possíveis bailes
e festas. Em meio à exibição de músicas recém-chegadas dos Estados Unidos, Nelson e Cia.
24
Assim como com qualquer artista, existem traços específicos de cada autor. Portanto, os grupos e
apreciadores da arte do grafite reconhecem pela linha, pela cor, pelo traçado, quem são os autores do desenho
ou desenhos.
25
Nelson Triunfo, migrante nordestino, adaptou-se facilmente com as dificuldades da periferia e associou-se ao
movimento black dos anos 70, a começar pelo cabelo black power, seu modo de vestir e a dança break. Em
1986 iniciou um trabalho de conscientização dos jovens afrodescendentes sobre cidadania e justiça social.
26
Em: Andrade, op. cit., p. 61.
12
iniciavam também a dança break. Muitas pessoas a caminho da 24 de Maio, na saída do
metrô, Estação São Bento, ligavam o som que carregavam nos ombros27 e iniciavam a
dança. O lugar tornou-se o espaço de maior divulgação do break, além dos salões de
festas28. Na maioria das vezes eram repreendidos por policiais ou acabavam presos sob
acusação de vabundagem, pertubação da ordem ou por serem do movimento black. O que
os policiais não entendiam é que o grupo estava agradando, gerando mobilização social, e
isto abria margens à socialização entre indivíduos. Era um processo associativo em que se
inseriam elementos das periferias de São Paulo no movimento ali iniciado.
É óbvio que o Centro funcionava como um ponto estratégico para a apresentação
dos break boys, pois ali estava concentrada e trabalhando a sua maioria como office-boys
garotos de diversas periferias da cidade de São Paulo. Estes jovens que passaram a se
socializar pelo funk e o break, levavam o que viam para seus locais de origem, e assim
começaram alguns bailes black em muitos municípios, inclusive em Diadema. A cidade na
década de 1970 era um dos locais mais temidos de São Paulo. Seu estigma de cidade
violenta por abrigar muitos jovens delinqüentes e sem perspectivas predomina até hoje.
Portanto, a exibição dos grupos nas Ruas 24 de Maio e São Bento influenciou de forma
positiva alguns indivíduos que viam na música negra, no balanço e no ritmo dançante a
possibilidade de ser felizes. Sodré aponta:
No modelo denominado “sociedade”, a imanência do grupo no
indivíduo é obscurecida por um tipo de desenvolvimento histórico
que acentua as diferenças singulares e apresenta o sujeito como
isolado ou autônomo. Há um “eu” e o outro separados. Aí o
indivíduo só se faz grupo nas formas (patológicas) da histeria ou da
obsessão, embora se verifique contemporaneamente entre os jovens
das grandes cidades uma busca de redefinição identitária por
intermédio de grupos ou “tribos urbanas”29.
A situação dos jovens de periferia estava cada vez mais ligada às questões marginais
do modo de viver. Quando formavam grupos, era no sentido negativo de acabar em assaltos
ou em outra forma de violência, no intuito de se reafirmarem diante dos outros. Éra como
Sodré diz: uma obsessão para provar uma dignidade oculta. A obscuridade está na história
estereotipada do negro na sociedade brasileira. Ao conversar com jovens afro-brasileiros
fica evidente a revolta sobre as injustiças contra eles cometidas, principalmente a repressão
vinda dos policiais. O crime desses jovens está na cor, na condição social, na falta de
oportunidades. Como uma comunidade, os afrodescendentes ainda estão à margem da
economia e politicamente privados dos seus direitos civis; são sempre os últimos índices
nas relações sociais e econômicas. Visando a mudar e inverter essa situação com o desejo
de participar da coletividade em Diadema e em outros municípios de São Paulo, a união do
rap (significa rhythm n’ poesy em inglês) com o grafite, os Djs e os trabalhos de MC fez a
diferença.
A história do Hip Hop em Diadema vem do início dos anos 1990, mas bem antes a
dança break já fazia parte do cotidiano dos jovens da cidade. Como sempre, garotos livres e
descompromissados com qualquer tipo de trabalho, ou não, e estudantes de escola pública, a
maioria vivendo o problema o universo da falta de professores, com inúmeras aulas vagas,
eram freqüentadores dos chamados bailes black, oferecidos nos finais de semana, a partir
27
Esta era a característica do b.boy norte-americano.
Foi na estação do metrô São Bento que o rapper Thaíde convidou Dj Hum para participar do movimento
soul que ali acontecia. Mais tarde, juntos, foram protagonistas de muitas festas das quais o grupo Funk e Cia,
de Nelson Triunfo, também participava. Entre as décadas de 1970 e 1980, esses artistas serviram de modelo aos
jovens da periferia.
29
Sodré, op. cit., p. 206.
28
13
das noites de quinta e sexta-feira. Durante a semana, quando não havia bailes, ficavam pelas
ruas reunidos.
Pelas conversas informais e debochadas, muitas vezes embaladas ao som do funk e
30
do rap , chamavam a atenção fazendo muito barulho, risadas, marcando presença, ou
mesmo pichando muros e fachadas com spray de tintas. Mas o que estes grupos mais
gostavam de fazer era reunir-se para treinar passos de dança e exibir-se nos bailes.
Preparavam-se para o que é hoje um princípio das atuais batalhas de b.boys. Nos bailes funk
davam verdadeiros shows nas pistas livres para exibições dos grupos. Este cenário nos
Estados Unidos recebeu o nome de soul trainer, e aqui no Brasil os jovens começaram a
seguir o mesmo modelo, ou seja, todas as pessoas do baile, que estivessem na pista, tinham
que abrir espaço para os dançarinos se exibirem. Este estilo de arte e diversão chegou ao
País pela chamada company soul ainda na década de 1970, e era a divulgação da dança de
James Brown que seria seguida pelos afrodescendentes nos salões de festas.
Os jovens integravam-se socialmente a grupos ou duplas e tomavam as pistas com
seus passos criativos. Muitos criavam seu próprio grupo, e uniformizados apresentavam-se
nos bailes black com passos marcados. A maioria apresentava passos ensaiados durante a
semana. Quem arrancasse mais aplausos e delírio do público saía vitorioso. Enquanto
ocorriam as apresentações, as pessoas se divertiam batendo palmas ao ritmo da música, e
mesmo sem se conhecerem acompanhavam ou criavam outros passos para iniciar uma
gigantesca manifestação popular.
Alguns jovens tinham em mãos, antes de entrar na festa, convites ou circulares
como os modelos abaixo. Muitas vezes, durante os bailes, representantes de equipes de
festas black iniciavam a distribuição desse material. Numa época sem Internet, msn e blogs,
esta atitude era sobremaneira eficiente, pois, quem recebia o convite tratava logo de
espalhar a notícia sobre o próximo baile. Em razão de muitos afrodescendentes cultuarem
personalidades como James Brown, Public Enemy, Marvin Gaye, Billy Paul, Aretha
Franklin, Dianna Ross, Gladis Knight e até mesmo Michael Jackson, e muitos outros
artistas negros norte-americanos na década de 1970, poucos valor se dava à música negra
brasileira, ou seja, a garotada ouvia com mais freqüência as músicas estrangeiras mas com o
surgimento de artistas brasileiros que cantavam versões destas músicas de fora, aos poucos
as preferências foram mudando. É importante lembrar que a música desempenhou um papel
fundamental na comunidade afro-brasileira e mesmo ouvindo músicas de outro país a
inspiração e influência africana não ficaram de fora. Sob a forma de samba, afoxé e músicas
folclóricas a chamada música negra foi se estruturando em ritmos conhecidos como funk,
charme (uma espécie de música romântica) e rap.
Todavia, artistas como Tim Maia, Cassiano e Jorge Benjor, que cantavam a beleza
da mulher negra e valorizavam o negro como ser cultural, eram apreciados pelos
adolescentes dessa época. Assim cantava, por exemplo, Jorge Benjor, num swing musical
que ele próprio batizou como samba-rock:
(Menina da pele preta – 19 82 )
Essa menina-mulher, da pele preta,
Dos olhos azuis, e sorriso branco,
Não está me deixando dormir sossegado.
Será que ela não sabe que eu fico acordado
Pensando nela, todo dia, toda hora,
Passando pela minha janela, todo dia, toda hora,
Sabendo que eu fico a olhar com malícia,
A sua pele preta, com malícia ,
Seus olhos azuis, com malícia ,
Seu sorriso branco, com malícia
30
Seguindo o modelo norte-americano, nos encontros sempre havia algum garoto com rádios ou toca-fitas.
14
Seu corpo todo enfim, com malícia
Com malícia...
E outros também, como Carlos da Fé, Bebeto, Paulo Diniz, Gerson King Combo,
Tony Tornado, Banda Black Rio, Trio Esperança, Sandra de Sá, e muitos mais que
pregavam o amor, a paz e a confraternização entre os irmãos de cor. Na década de 1990 os
artistas mudaram, e personalidades como Tupac, Ice Cube, Snoop-Dog, Dr. Dren, Eminen e
outros internacionais ganharam espaço no universo rap transformado em Hip Hop por
Afrika Bambaataa. No Brasil, grupos como Racionais MC, Thaíde e Dj Hum foram
conquistando o respeito nacional e ganhando adeptos para o mundo do rap. Com o som
mais eletrizante, menos romântico e caracterizando a realidade da periferia, esses artistas
desempenharam um papel fundamental no processo de conscientização da população afrobrasileira. Mesmo quando o artista era internacional, através dos clips havia a percepção de
uma realidade vinda dos guetos norte-americanos, por exemplo.
King Nino Brown, um assíduo freqüentador dos bailes de São Paulo e Diadema,
enxergou longe, viu nos grupos breaks e nos garotos as habilidades dos elementos de arte
do Hip Hop. Começando um trabalho de conscientização, a exemplo de Afrika Bambaataa,
o admirador Nino Brown, juntamente com outros seguidores, entre eles Marcelinho Spin,
Sueli Chan e Nelson Triunfo, Levy (secretário do Departamento de Cultura da Prefeitura de
Diadema), Mônica, Maria Laudia, coordenadoras do Centro Cultural Canhema, procuraram
o órgão competente da Prefeitura a fim de pedir emprestado o espaço dos centros culturais
para realizar ensaios, palestras e encontros. Esta aproximação teve início em 1993.
Passaram a instalar a partir daí, oficinas culturais e workshops específicos, mas desejavam
antes de tudo ter um lugar onde pudessem centralizar a filosofia Hip Hop e dar ao
movimento um teor educativo.
A aproximação do poder público com o movimento aconteceu em 1994. Foram
convidados: a iniciar as oficinas de break, Nelson Triunfo; para as oficinas de Dj, nada
menos que Dj Hum, hoje famoso no mundo artístico e na mídia; Marcelinho Back Spin
orientou as oficinas de MC e no grafite, os Gêmeos, que faziam sucesso em São Paulo por
transformarem a Avenida Paulista pichada em espaço da arte de rua.
O Centro Cultural Canhema (nome do bairro onde se localiza) constituiu-se
gradativamente em um ponto de encontro dos adeptos do Hip Hop da cidade. Por isto, em
31 de julho de 1999 foi lançado o projeto “Casa do Hip Hop”, aprofundando ainda mais o
espaço e a cultura de rua. Felizmente, essa cultura nascida na periferia tem se fortalecido
como alternativa para inúmeros jovens pobres, que quase não têm opções culturais e
profissionais. O projeto, em parceria com a Prefeitura de Diadema, possibilita ao
adolescente, no término da oficina a que compareceu tornar- se um oficineiro também ou
mesmo adquirir uma formação para trabalhar em outros centros culturais da cidade. Vale
dizer, será contratado pela própria Prefeitura para ser um repassador daquilo que aprendeu.
O jovem se torna um multiplicador do seu aprendizado e se compromete a repassar todo o
seu conhecimento a outros jovens, também da periferia, que não tiveram a oportunidade de
freqüentar as oficinas oferecidas nos centros culturais.
O projeto deu tão certo que o processo multiplicador rompeu fronteiras e chegou a
lugares, antes jamais imaginados como espaços para jovens da periferia, como se pode
constatar na publicação seguinte:
A junção de forma organizada de cultura e cidadania dá ao jovem a possibilidade de
criar, trocar e transmitir informações, numa convivência decente e digna. As noções de
respeito, reflexão e educação fazem com que os alunos atuem como conquistadores de
consciências, levando para outros locais a experiência adquirida. Isto permite o surgimento
de diversas iniciativas no interior de São Paulo e de outros Estados brasileiros, como Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, e Rio Grande do Sul.
15
A transformação dos jovens está sendo tão evidente que alguns profissionais da área
da educação tentam associar o fazer pedagógico da educação formal com o movimento31,
embora poucos sejam os registros, documentos e a bibliografia a respeito da cultura Hip
Hop. Por ser um fato recente na história desenvolvimentista do País e da América, é escassa
a literatura encontrada sobre o assunto. Quando muito, há alguns livros: Afro-brasileiros,
hoje (Selo Negro, 2000) ou Ser Negro no Brasil, Hoje (Ática, 1989), que reservam alguns
parágrafos para refletir sobre a cultura Hip Hop, mas nenhum capítulo contém uma análise
mais complexa, mesmo com toda a expansão dessa cultura nas periferias.
Para permanecer fortalecido, o movimento Hip Hop constituiu-se em posses. Tratase de uma organização ou um modelo simplificado de ação coletiva, semelhante às ONGs.
As posses funcionam como uma espécie de cooperativa para facilitar a expansão do
movimento e a divulgação de artistas e eventos. Elas nascem e sobrevivem dentro das
próprias comunidades periféricas. Em Diadema, King Nino Brown, em contato com Afrika
Bambaataa, conseguiu trazê-lo ao Brasil em novembro de 2001, quando discursou para os
jovens e divulgou sua frase mundialmente conhecida e que deu origem ao movimento nos
Estados Unidos: “Paz, amor, união e diversão.” O jovem da periferia aprende com isto a ser
consciente e a ter boa atitude, ser um bom cidadão. Com a cultura resgatando o
afrodescendente da violência, ele tem a oportunidade de aprender, valorizar o grupo e a
comunidade, e principalmente admitir que a transformação tenha que vir dele mesmo, e
para isto deve se reconhecer como afrodescendente, deve ter consciência da opressão da
sociedade e construir uma identidade. Para destacar a cultura institucionalizada e reafirmar
a luta contra o racismo, King Nino Brown fundou no Brasil uma Zulu Nation, como a que
Bambaataa criou nos Estado Unidos. Ela dá sustentação às posses e garante o grito de
liberdade dos afro-brasileiros através da auto-identificação. É uma ONG a Zulu Nation
Brasil. cujo representante é King Nino Brown. Ele informa,
em março de 1994 mandei uma carta para The Universal Zulu Nation32 para
saber mais a respeito do Hip Hop. Nesta época eu fazia parte da Posse de São
Bernardo do Campo; qual foi minha surpresa a Zulu Nation respondeu, mandou
uma ficha para preencher com 30 perguntas ao meu respeito, perguntando por
que que eu queria fazer parte da Zulu Nation? Era uma espécie de questionário.
Fiquei mantendo esse contato sozinho, pois algumas pessoas não davam muita
importância.
Em 2000 fui convidado pela Rosana (uma das coordenadoras do Centro Cultural
Canhema) e pelo Marcelinho Back Spin para fazer parte do quadro de trabalho
da Casa do Hip Hop de Diadema. Fundamos a Zulu Nation Brasil em junho de
2002 e temos um convênio com a Prefeitura de Diadema. Me tornei o primeiro
Zulu Nation Brasil33.
A Casa do Hip Hop já foi matéria dos programas Globo Repórter e do Record
Repórter, em 2004. As redes de TV tentaram mostrar a queda do índice de violência em
Diadema por causa do movimento que tirou muitos jovens da rua. Parece irônico que a
cultura de rua teve que ser institucionalizada para diminuir a violência. Mas em geral a
mídia não se importa com isso, e se no momento a moda black virou febre entre os jovens
de classe média34 é porque alguns personagens da black music romperam a barreira social
31
Experiências da aplicabilidade do Hip Hop em escolas de periferias podem ser analisadas nos registros de
Andrade, op. cit., e de Takara, Alexandre. Educação Inclusiva, movimento Hip Hop. São Paulo: Alpharrabio,
2003.
32
Ong idealizada por Kevin Donovan no bairro do Bronx, em Nova York depois de conhecer o Hip Hop.
Como sempre gostou de estudar a história africana, descobriu nos livros o nome de um chefe Zulu do
século XIX e adotou o seu nome (Afrika Bambaataa).
33
Apesar de ter ingressado no projeto anos depois da fundação da Casa do Hip Hop, King Nino Brown tornouse um componente importante porque, pela sua aproximação com Afrika Bambaataa, ocorreu a expansão do
Hip Hop no município de Diadema. Esta cultura, hoje, compõe as inúmeras atividades culturais oferecidas pela
Prefeitura.
34
Como mostra matéria na revista Época nº 335, de 18 de outubro de 2004.
16
por terem acesso à elite, e divulgaram o som do rap, como é o caso de Marcelo D2, que em
suas academias de ginástica e musculação passou a usar essa música para a realização dos
exercícios (fitness35 ).
Esse foi o caminho de contato com a “playboyzada”, como se refere Mano Brown,
do grupo racionais MC, cujas músicas também são escutadas pelos jovens de classe média.
Entretanto soluções para resolver os problemas sociais das periferias ninguém aponta, a
mídia as esquece e prefere mostrar um mundo irreal como o da novela Malhação, exibida
na Rede TV Globo. A mídia apresenta a moda, com calças largas, bonés, camisetas amplas
e coloridas, bandanas, correntes e outros acessórios do universo Hip Hop, porém as
questões raciais, discriminatórias e preconceituosas são deixadas de lado. Na verdade, é um
estilo de rapper que chegou ao sucesso repentinamente, graças à mídia e à rapidez da fama,
ainda não levando muito a sério os investimentos, a economia e o futuro. Ostenta-se nas
telas a riqueza desse estilo com os jovens usando enormes cordões de ouro pendurados no
pescoço e correntes de ouro nos pulsos e grandes anéis também de ouro, em carros
conversíveis e em clips mostrando quartos de hotéis cinco estrelas alugados para a
realização de festas particulares com champanhe e prostitutas de luxo. Este cenário aparece
nos vídeos, Cds e DVds dos artistas rappers norte-americanos. Infelizmente, como são
imitados por jovens brasileiros36, a cena se repete na periferia, e quando os garotos não
conseguem com sacrifício os ornamentos de ouro, buscam o meio mais fácil de adquirí-los,
que é o roubo. Os artistas brasileiros, ao contrário, apesar de ganharem muito dinheiro com
a venda de seus discos, nos clipes que gravam aparecem na favela ou na prisão fumando
drogas ou assaltando.
Abaixo, título de reportagem sobre os rappers:
O rap tornou-se uma opção, ou mesmo um caminho para diminuir os problemas dos
jovens da periferia. Além de ser uma forma de ganhar dinheiro, também se constituiu em
instrumento de denúncia sobre o racismo e a discriminação. Os jovens começaram a
compor músicas agressivas, muitas vezes fazendo apologia do crime e do uso de drogas, já
que para o negro “não há saída”, como pensam algumas pessoas. E essas letras dividiram a
opinião dos jovens. Enquanto uma parcela entende que ganha oportunidades com o Hip
Hop, e que dentro do movimento está aprendendo muito mais do que a escola lhe oferece,
outra parte busca no rap agressivo um olhar de luta e resistência. Os rappers acreditam sem
hesitar no chamado ao protesto, gerando fora do movimento Hip Hop grupos e gangs
violentas. Alguns fazem da escola um local para traficar drogas e resolverem intrigas desses
grupos. É é justamente para lutar contra isso que a cultura Hip Hop cresceu na Casa de
Cultura, em Diadema. O sonho de King Nino Brown, assim como de Afrikaa Bambaataa é
o de expandir o sentido educacional do Hip Hop e com isto fazer com que os jovens deixem
de se espelhar no movimento rap e passem a acreditar na filosofia de combate ao racismo e
à violência através de uma forte identidade social. Mais uma reportagem ilustrada sobre o
Hip Hop em Diadema.
Com isso, poderemos observar que os jovens da periferia se dividem em dois
grupos. Um lado é o educacional, no qual a organização institucionalizada possibilita o
ingresso dos afrodescendentes na sociedade, ou mesmo dá-lhes condições de reunir forças
para se transformarem. De outro lado temos os jovens confusos e divididos entre seguir o
caminho da educação e o caminho da reação à opressão social, num contexto em que as
oportunidades são poucas, e ao se defrontarem com o incentivo ao uso de armas de fogo,
35
A mídia revela que na Espanha e em muitos lugares da Europa as academias ficam repletas de atletas
motivados pelo ritmo rap e pelo estilo Hip Hop.
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Tupac e 50´cent são exemplos de artistas muito apreciados pelos brasileiros da periferia que gostam de rap.
Ambos exibem a ostentação e valorizam o desprezo aos policiais e à classe média. Tupac morreu aos 21 anos
assassinado, e durante sua adolescência teve inúmeros processos por agressividade e por incentivar jovens à
violência e á vida criminosa.
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drogas e violência para acabar com a discriminação, como descrevem as letras de rap mais
agressivas, envolvem- se num mundo obscuro sem volta.
CONCLUSÕES
Com a expansão cultural do movimento Hip Hop e o teor político
desenvolvido nas músicas de rap, em que se conscientiza a sociedade da periferia
sobre a identidade negra, muitos afrodescendentes reconquistaram a auto-estima e
passaram a partir de então a valorizar o cabelo crespo, a cor da pele, e até mesmo seu
modo de vestir. No Hip Hop o trabalho de conscientização do negro sobre sua
situação social é muito forte, contudo dois fatores observados durante a pesquisa
mostraram-se fundamentais para ajudar na construção da identidade de quem vive na
situação de miséria e pobreza, como é o caso do negro: a vida em comunidade, cuja
cumplicidade entre os moradores de um mesmo bairro é constante, e as relações e
tratamentos individuais, que levam muitas pessoas a ter as mesmas experiências e
problemas semelhantes. Também o fato de que, no movimento, a palavra cultura
ganhou sentido quando permitiu a instrução de jovens e crianças, dando-lhes subsídios
para a obtenção de conhecimento e informação, assim como inclusão digital e
profissão.Especificamente em Diadema, os jovens são abrigados pela Prefeitura em
Centros Culturais para participar das oficinas que ensinam a arte ou cultura de rua,
cujo valor aparece na espontaneidade e criatividade de cada afrodescendente. Quando
terminam o curso, os ex-alunos são contratados pelo Departamento de Cultura da
cidade e tornam-se oficineiros, professores e repassadores do ofício aprendido. Por
isso há este nome, cultura de rua, que exprime também manifestações artísticas
conquistadas, a princípio pelo autoconhecimento e depois por intermédio das oficinas.
Esta cultura, especificada no trabalho, apresenta quatro elementos criativos: a dança
(break), a pintura (grafite), a composição (o rap) e a discotecagem (Dj). São
manifestações que surgiram dos encontros de grupos em seus bairros e permitiram ao
negro enxergar valores, talentos e conquistas. Apesar de ter sido comunicado ao
presidente Lula o sucesso desse trabalho cultural, nas periferias ainda consiste em um
esforço isolado porque se centraliza nos guetos de São Paulo e de outras cidades do
Brasil. Entre os artistas de rua envolvidos no processo de formação, qualquer arte que
esteja sendo apresentada fora do contexto dos cinco elementos, será considerada Hip
Hop, pois se considera a intenção pedagógica e resultados obtidos na aprendizagem.
Porém, sem o trabalho de conscientização, cultura e cidadania a cultura desaparece e
surge o movimento, a repressão, o que leva a sociedade de alguma forma acreditar que
rap é música de marginais, de bandidos. Felizmente, tem muitos artistas da periferia
vivendo da música rap e nem por isso é um bandido, pelo contrário, observei uma
ligação direta entre cantores famosos que ainda moram em seus lugares de origem e
praticam a Ação Afirmativa em suas comunidades. Realizam um trabalho social
isolado, sem a ajuda do governo, mas os resultados, lentos e quase imperceptíveis
aparecem. Crianças aprendem a valorizarem-se como cidadãs e não sentem vergonha
de mostrar ou dizer que são pobres e negras, pelo menos na comunidade em que
vivem. Por falta de espaço político ainda são poucos os jovens afro-brasileiros que
têm oportunidade no mercado de trabalho em função do Hip Hop, a maioria ainda se
envolve com a criminalidade. Não posso deixar de concluir neste momento da
dissertação que este tipo de cultura ajudou muito na redução de mortes entre os
afrodescendentes da cidade de Diadema e ainda, aumentou o sentido de comunidade
somando valores para o grupo e para indivíduos.
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o negro no mercado de trabalho pela cultura hip hop