A nova divisão social entre academia e corporação na construção do conhecimento Ricardo Young* *Especialista, Presidente Executivo do UniEthos e do Conselho Deliberativo do Instituto Ethos O tema da Educação Corporativa no Brasil é de algum modo recente, bastante rico em profundidade de reflexões e continuamente fértil em discussões que se aproximam mais da luz filosófica do que do calor de opiniões divergentes. É necessário pensá-lo a partir dos fatos, primeiramente, para que possamos compreender o alcance desse conceito. Foi em 1992 que se adotou pela primeira vez no Brasil o conceito de Educação Corporativa, com a experiência da Academia Accor, em Campinas, interior de São Paulo.1 Hoje, como lembra a doutora Marisa Eboli, da FEA/USP, são mais de uma centena de organizações brasileiras e multinacionais, tanto na esfera pública quanto privada, que já implementaram sistemas educacionais pautados pelos princípios e práticas de Universidade Corporativa. Nesse contexto, o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior coordena desde 2003/2004 oficinas para discutir essa nova realidade, das quais participam não apenas representantes do governo, representado por diversos ministérios, que incluem o de Educação e Cultura, Ciência e Tecnologia e do Trabalho, mas também dirigentes do Serviço Nacional da Indústria (SNI) e de empresas que já implementaram suas próprias universidades corporativas. Cenário em que nasceu, em 2004, a Associação Brasileira de Educação Corporativa (Abec), com a missão de “compartilhar, disseminar, desenvolver e monitorar práticas de excelência em educação corporativa”2. O fato é que o movimento em favor da educação corporativa cresce no país, e, como é comum ocorrer nos momentos em que surgem novas idéias sinalizando mudanças de valores, sociais e 1 Como lembra a doutora em Administração, Marisa Eboli, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), no artigo “Educação Corporativa no Brasil: Novos Movimentos”, “depois vieram a Universidade Brahma em 1995, a Universidade do Hamburguer, do McDonald´s em 1997, o Visa Training da Visa criado em 1997 que na sua evolução deu origem à Universidade Visa lançada oficialmente em 2001, a Universidade Martins do Varejo, do Grupo Martins, a Universidade Algar, a Alcatel University e o Siemens Management Learning em 1998, a Boston School do Bank Boston e a Universidade Datasul implantadas em 1999”. 2 www.abecbrasil.com.br culturais, vale a pena repensar alguns pontos a respeito do que significa essa possível transformação. Acredito que um dos aspectos mais inovadores e mais surpreendentes da Era do Conhecimento, dessa revolução tecnológica que hoje vivenciamos, é que a produção dos saberes passa a ocorrer de modo disperso na sociedade. Não existe mais um locus onde a produção do saber acontece. Tradicionalmente, esse locus se confundia com a academia. Até as últimas décadas do século XX, a produção do saber não era considerada seriamente na empresa nem no governo, nem em outras instituições que não fossem a academia. O que se poderia gerar nesses locais parecia ser irrelevante diante do papel estratégico que a academia ocupava. Com a revolução tecnológica, essa situação muda completamente, ocorrendo a produção de conhecimento em diversas dimensões. Hoje, existe uma sociedade civil muito mais ativa, que se organiza em torno de vários temas e lutas, produzindo conhecimento na medida de suas organizações e reivindicações. As empresas, pressionadas pela competitividade, acabam se tornando centro de produção de pesquisa e de saber. Quanto mais avançada na pirâmide tecnológica, mais produtora de saber a empresa se torna. Da mesma forma, os institutos de pesquisa, sejam governamentais ou não, movimentam-se em torno de interesses difusos devido a pressões de mercado ou de governo. A verdade é que ocorre uma proliferação de saberes não-acadêmicos de extrema consistência e que independem do processo da academia. Outro aspecto que merece reflexão é o fato de que a academia tem perdido, em alguns setores, a corrida em relação à tecnologia. É preciso pensar e repensar a produção do saber científico na realidade de nossa sociedade, como a produção desse conhecimento pode, muitas vezes, tornar-se distante do dia-a-dia das comunidades e a própria necessidade da dinâmica do mercado. Isso não quer dizer que o mercado deva ditar a produção do saber – isso jamais seria aceitável em qualquer sociedade democrática –, mas significa que a academia não pode confundir a produção do conhecimento como uma demanda apenas acadêmica. Deve-se enxergar toda a nova realidade do mercado e da Era do Conhecimento. O que acontece hoje, nesse sentido? Vive-se um paradoxo. A academia tende a produzir conhecimento para uma realidade que, em muitos casos, não se aplica ou porque sua produção está mais preocupada em atender a ritos meritórios que se referem à titulação acadêmica ou porque a produção do conhecimento está ligada a sua própria dinâmica atemporal. Do mesmo modo, não seria inconveniente afirmar que a academia apresenta dificuldades de antecipar tendências nos diversos campos do saber, mormente àqueles frutos da revolução tecnológica. Outro ponto a considerar é que, em alguns campos do conhecimento, a academia chega a formar jovens para profissões que desaparecerão em breve, enquanto outras carreiras, que já se sabe serão necessárias no futuro, muitas vezes, acabam sendo ignoradas ou são raras na universidade. Também não é exagero dizer que a universidade corre o risco de obsolescência ao não se perceber como parte de um processo muito mais complexo de produção de saberes atualmente imposta. Cabe, ainda, refletir sobre os atuais significados dos programas de extensão universitária, que nasceram e foram inspirados na necessidade de articular a universidade com a comunidade e beneficiar esta última por meio da dinâmica da academia. A idéia era que houvesse uma grande oxigenação entre uma e outra, o que geraria benefícios de ambos os lados, ou seja, a comunidade se beneficiaria da academia e vice-versa. Contudo, os programas de extensão não têm conseguido cumprir seu primeiro e verdadeiro papel. Sua iniciativa tem se restringido, muitas vezes, à ação social – profundamente necessária, mas longe de ser a missão isolada de qualquer um desses programas – e a projetos que têm muito mais interesse mercantil do que necessariamente de formação e disseminação de novos saberes. Outro aspecto que não pode ser ignorado é a atual proliferação de escolas e institutos de ensino superior particulares. Esse crescimento desordenado obedece a uma dinâmica perversa: enquanto as instituições públicas existentes no país atendem a uma população de alta renda, que têm acesso assim ao melhor ensino, as particulares atendem à população de baixa renda, que trabalha de dia e paga seu curso universitário à noite. Apesar das muitas e honrosas exceções, isso tem levado a universidade particular, em geral, a um pragmatismo comercial que a afasta ainda mais da necessidade ou da demanda da produção de novos saberes. É certo que a proliferação de universidades, institutos de ensino particulares com concentração principalmente em cursos de Direito, Administração, Marketing e Propaganda, enfim, em carreiras tradicionais de mercado, tem diminuído muito o envolvimento da universidade particular com a produção de novos saberes. Se Junta a isso o fato de que os institutos de educação superior privados, em função de custos, têm até mesmo substituído em seu corpo docente doutores por mestres, tendendo a reduzir ainda mais sua capacidade de produção de pesquisa. Ressalvo em alguns aspectos citados acima, esse quadro mostra que a universidade pública ainda mantém uma qualidade de educação relativamente boa, com institutos de pesquisa que funcionam principalmente nas áreas de tecnologia científica e biomédica, enquanto a grande maioria das universidades particulares não investe em pesquisa e não produz. Todo esse quadro de dificuldades e desencontros entre o que se espera de uma universidade e o que a sociedade demanda dela produz inevitavelmente uma reação dos que necessitam urgentemente do saber no mundo globalizado de hoje. O fato é que as empresas – premidas pela competitividade, por um processo de obsolescência tecnológica acelerada e por um pragmatismo muito mais objetivado pelo mercado que por qualquer circunstância acadêmica – começaram a produzir não apenas saberes, mas também capacitação. Desse modo, verificamos o surgimento de parcerias entre empresas e fundações em busca da produção de saberes, chegando, muitas vezes, a se consolidar na forma de universidades corporativas. Há diversos exemplos de parcerias muito bem sucedidas, como a realizada entre a União da Indústria Agrocanavieira de São Paulo (Única) com a Copersucar e com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), para a investigação do genoma da cana. Outras parcerias são bem-vindas ao desenvolvimento profissional e do conhecimento, como a já consolidada entre a Serasa e a Fundação Getúlio Vargas: um acordo de cooperação educacional entre as duas instituições que fez surgir o Centro de Estudos Serasa – FGV, um núcleo de excelência empresarial que alia o conhecimento acadêmico da Fundação com a experiência prática da empresa, tornando possível a criação de técnicas e instrumentos para o desenvolvimento da Gestão Financeira. A Serasa ainda apresenta outras parcerias de sucesso, como com a Escola Superior de Propaganda e Marketing, que possibilita o desenvolvimento do curso de MBA em Gestão Financeira, especialmente no módulo de Modelagem de Crédito. E a parceria com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) enriquecendo a pesquisa dos alunos da Faculdade de Direito em temas jurídicos por meio de um Centro de Estudos e Cooperação Técnica Serasa – PUC-SP. A troca de tecnologia e a cooperação nacional e internacional em áreas de atuação da empresa e da escola, e o estímulo a atividades relacionadas à formação técnica e profissional dos alunos são alguns dos benefícios que se constatam nesses acordos. Conforme posto anteriormente, vale lembrar um fato que, dentro desse contexto de maior competitividade em que as empresas estão expostas, elas acabam criando suas próprias universidades. O resultado é que vivemos, hoje, uma situação peculiar: as pessoas que cuidam das universidades corporativas são doutores, mestres, profissionais da educação que encontram na empresa condições melhores de trabalho e muitas vezes desenvolvem na organização programas e capacitação com um rigor técnico semelhante ao da própria academia. Aqui chegamos a outro ponto fundamental da questão. A partir da proposta da reforma do ensino superior3, apresentada como anteprojeto de lei pelo ex-ministro da Educação, Tarso Genro, as universidades corporativas almejam o reconhecimento do Ministério da Educação para que possam ter e oferecer sua própria certificação. Defendem que são capazes de produzir programas com a mesma competência ou até mesmo maior que as academias. Argumentam que, se a produção desse conhecimento está atrelada à prática empresarial, nada mais justo que a própria organização possa certificar. Lembram que é socialmente desejável essa certificação, porque enquanto o funcionário muitas vezes não tem tempo para poder fazer uma segunda jornada de formação acadêmica, a empresa pode propiciar essa formação em seu ambiente de trabalho. Enfim, a empresa executa, neste caso, essa importante função social 3 O projeto da reforma universitária a ser discutido no Congresso propõe que haja uma prestação de contas permanente entre universidade e sociedade, cria uma nova moldura para a universidade comunitária, afastada da visão mercantil, e defende o papel social da universidade pública, entre outros pontos. oferecendo a seu funcionário uma formação técnica de nível superior sem que ele saia de seu ambiente de trabalho, e com o que há de melhor em termos de conhecimento. Vale lembrar outro forte argumento defendido pelas organizações em favor da universidade corporativa: se tantas faculdades particulares são constituídas sem o rigor e a seriedade com que uma universidade corporativa se forma, por que essas instituições podem certificar e as empresas não? Este é o ponto de vista defendido pelas empresas. Do lado oposto, a academia mostra que se as universidades corporativas forem autorizadas a emitir diplomas certificados pelo Ministério da Educação, pode haver não apenas uma privatização, mas um utilitarismo na produção do conhecimento. Em outras palavras, só seria produzido o conhecimento que o mercado conceder que se produza; o conhecimento que não tiver uma funcionalidade, uma utilidade de mercado, seria perdido. A academia também afirma que se o Ministério da Educação se definir em favor da universidade corporativa estará sancionando um desvirtuamento da produção do conhecimento na sociedade, além de tornar obsoleta a própria academia que seria, segundo os acadêmicos, o último reduto da produção isenta do saber. Em resposta, as empresas retrucam que a universidade não é menos vítima das mudanças do mercado e, como uma inversão das situações expostas acima, lembram que algumas profissões que hoje são absolutamente necessárias para as empresas não existem mais enquanto programa de graduação nas universidades. Há um exemplo concreto, nesse sentido: o da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)4, que ao investir em novas vias de escoamento na forma de ferrovias, precisa de engenheiros ferroviários. Mas a universidade, no Brasil, não forma mais engenheiros ferroviários em razão da obsolescência a que chegaram as ferrovias no Brasil. Então, se a CVRD precisa desses profissionais e eles não saem formados da academia, vê-se, assim, obrigada a fazer uma escola de engenheiros ferroviários dentro da Vale. As empresas também lembram um fato já citado aqui: existem alguns campos do conhecimento necessários ao mercado que as universidades ainda não produzem saberes, como, por 4 www.cvrd.com.br exemplo, um caso da pesquisa genética no setor agrícola, em que, a maioria das pesquisas vem do setor empresarial, vide a parceria formada entre Monsanto do Brasil e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa, que não é uma academia, mas um instituto vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento 5. Pergunta-se: onde está a academia nessa discussão? Por que a universidade brasileira não tem sido mais ativa na pesquisa de engenharia genética com fins de competitividade? Por que isso está sendo feito por um centro de pesquisa governamental e qual a sua articulação com a universidade pública? Como qualquer debate nascido de questões que podem interferir nos rumos de diversos segmentos da sociedade, estes é extenso e requer cuidado e reflexão. Além dos argumentos citados, é preciso lembrar que há um outro aspecto, um fenômeno da maior importância que, queira a empresa ou não, queira a universidade ou não, existe e precisa ser contemplado: a responsabilidade social. O campo do desenvolvimento social e do desenvolvimento sustentável impõe uma nova visão de mundo, que traz o conceito de múltiplos públicos relacionados, rediscutindo o papel da ética e da transparência na prática empresarial e em sua relação com o mercado, alterando a própria cultura organizacional e a lógica intrínseca de business, ao mesmo tempo, projetando a necessidade de um repensar não apenas da gestão, mas um modelo de desenvolvimento o qual implica um alto grau de inovação. O que acontece hoje é que esses saberes referentes à responsabilidade social e ao desenvolvimento sustentável vêm sendo gestados por organizações não-governamentais e por organismos multilaterais, nacionais e internacionais, como o Global Compact6, por exemplo, assim como por empresas transnacionais. Estamos presenciando um fenômeno no qual essas organizações estão na fronteira do desenvolvimento desses saberes. Não me refiro, aqui, nem aos saberes produzidos dentro da empresa para atender a uma demanda de mercado, nem aos saberes produzidos dentro da universidade para atender a uma demanda da organização ou até mesmo do mercado, nem aos saberes produzidos no âmbito governamental. Refiro-me à natureza de um conhecimento que está intrinsecamente ligado à 5 www21.sede.embrapa.br 6 www.unglobalcompact.org dinâmica da globalização e das próprias ameaças de riscos e oportunidades que esse processo impõe. Muitas empresas estão cada vez mais preocupadas em internalizar esse conhecimento, como fica claro ao observarmos que o número de universidades corporativas procurando o UniEthos7 é cada vez maior. A academia, por outro lado, deveria estar tratando desses temas na formação até mesmo dos gestores das organizações do futuro. Mas o que acontece hoje nas universidades? A maioria das instituições de ensino superior que tratam desses temas o faz ou como extensão, como faz a UFBA (Universidade Federal da Bahia) ou por meio de centros específicos de conhecimento, vide o caso do Centro de Desenvolvimento Sustentável da FGV (Fundação Getúlio Vargas) ou o Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da FIA – USP (Universidade de São Paulo), o Ceats, que, não raramente, são frutos de iniciativa pessoal de professores, e não das instituições universitárias. Não deixa de ser estranho que esse tipo de conhecimento, gerado fora da academia e formado, na verdade, por uma dinâmica de empresas em diálogo com a sociedade e com organismos multilaterais seja apropriado pelas universidades somente de forma superficial – nos cursos de extensão, ou nos centros formados por iniciativa dos professores. Isso mostra, mais uma vez, o enorme descompasso existente entre a academia e a produção dos saberes. Isso não ocorre apenas no Brasil. A Rede Interamericana de Responsabilidade Social, da qual o UniEthos faz parte, mostra que essa é uma questão colocada por todo o continente americano, de norte a sul. Contudo, existem algumas diferenças, como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a universidade acaba tendo uma relação muito mais parceira com a iniciativa privada, por tradição e pela busca da sustentabilidade, tal qual o emblemático caso na área de responsabilidade social que é o trabalho do Boston College8. 7 Criado pelo Instituto Ethos em resposta ao crescimento exponencial do movimento de responsabilidade social e às novas demandas que ele tem gerado, o UniEthos é voltado para a capacitação, a pesquisa e a produção de conhecimento. Atua de forma complementar ao Instituto Ethos, com ações e programas próprios, compatíveis com suas missões específicas, e uma intersecção de interesses da gestão e disseminação de conhecimento relativo à responsabilidade social empresarial. 8 www.bc.edu Naquele país, existem grandes centros de pesquisa, como no Vale do Silício, em que a Universidade Stanford foi peça-chave para o deslanchar de uma série de tecnologias que depois foram adotadas pela indústria – isso em função dessa parceria da universidade com as incubadoras e as empresas emergentes nos primórdios da revolução tecnológica. Sem dúvida nenhuma o modelo americano é mais pragmático e atraente, mas não se pode ignorar uma questão ética já citada anteriormente: até que ponto, em casos como este, a universidade produz conhecimentos além do interesse específico de mercado? Essa questão tem sido bastante discutida, como, por exemplo, em razão da dependência crescente que os centros de pesquisa farmacêuticos das universidades têm em relação à indústria farmacêutica – o que tem redundado nos últimos anos em algumas surpresas, como a de remédios irem a mercado sem o devido tempo de maturação, sem que tenha sido esgotado o seu ciclo de pesquisa, leitura e experimentação, o que normalmente se esperaria que uma academia isenta fizesse. Essa é uma discussão polêmica até no Food and Drug Administration (FDA)9. Como resolver esses desafios, esses paradoxos? Acredito que a própria razão da geração desses paradoxos guarda a solução deles. Isto é, sendo verdade que os saberes são hoje produzidos pelos conjuntos da sociedade, e que devido à rapidez, profundidade e dinâmica da produção deles é impossível qualquer agente da sociedade abarcar sozinho a totalidade desse conhecimento e dessa dinâmica, só há uma forma de se estruturar harmonicamente a produção dos saberes: a construção de redes de produtores desse conhecimento. As redes podem se desenvolver por temas, setores, ou em torno de projetos. Então, será irrelevante se os participantes dessa rede forem universidades, empresas, ONGs ,institutos governamentais ou qualquer outro organismo da sociedade. Farão parte dessas redes tantos quantos produtores existirem em uma área especifica. Ao mesmo tempo, como a produção desse conhecimento neste caso se dá de forma coletiva, a apropriação dele também se dá de forma coletiva, sem risco de sua privatização sob a forma de 9 O Food and Drug Administration é um órgão do Governo norte-americano que controla a qualidade dos alimentos, cosméticos, medicamentos de modo a assegurar segurança e saúde aos consumidores e também a animais. Assim, o FDA monitora a manufatura, a importação, o transporte, o armazenamento desses itens nos Estados Unidos. Site: www.fda.gov patentes e outros limitadores, do lado da empresa, ou pelos processos burocráticos e cartoriais hoje existentes na universidade. As redes produtoras de conhecimento devem ser validadas por seus próprios participantes e sua dinâmica deve ser determinada pela relevância social, econômica ou ambiental que o tema implicar. O uso da tecnologia, como catalisador dessas redes de conhecimento, permitirá uma convergência dos saberes hoje fragmentados nas diversas instâncias, numa realimentação dinâmica que possibilitará uma produtividade exponencial muito maior. Portanto, todo o debate entre universidade corporativa e o setor acadêmico, na verdade, se transforma em uma falsa discussão se o consideramos sob a ótica das redes de conhecimento, nas quais as universidades corporativas e as academias estarão vinculadas não por contratos ou interesses comerciais, mas pelo interesse genuíno e legítimo do saber a ser construído e aprofundado. Com isso, o melhor da experiência empresarial acadêmica e da sociedade civil organizada pode ser otimizado. Assim, pode-se concluir que não há dilema. Essa questão de academizar a universidade corporativa ou tornar mais pragmática a instituição acadêmica não é, na realidade, um problema. O necessário, hoje, é convocar esses dois produtores de saberes para se relacionarem de uma forma inovadora, de modo a construir exponencial e sistemicamente ao invés de disputarem a fragmentação do saber, como se vê atualmente na sociedade. Cabe ressaltar que a Internet é o canal precioso que permite esse repensar dessas relações; todas as experiências que têm sido feitas com essa concepção vêm sendo coroadas de sucesso. Para finalizar, cabe lembrar uma das diretrizes do Natural Step10 a respeito do desenvolvimento sustentável, segundo a qual um dos movimentos importantes da indústria, na direção da sustentabilidade, é substituir processos de produção por serviços. Por exemplo, em vez de 10 The Natural Step International for Social Sustainability é uma das mais importantes organizações internacionais de consultoria e pesquisa, no apoio a empresas voltadas para o desenvolvimento sustentável. Atua com governos e organizações no sentido de conscientizar e buscar soluções e ferramentas para alcançar a sustentabilidade global. produzir máquinas de lavar roupa para as comercializar, o fabricante as aluga, e, de tempos em tempos, as substitui por máquinas melhores. Com isso, a necessidade de produção diminui, assim como a produção de resíduos sólidos e a necessidade de matéria prima. O empresário ainda deixa de ter interesse na obsolescência planejada, não cria falsas necessidades de consumo e pode satisfazer o consumidor mantendo o seu negócio rentável. Ou seja, a mudança do eixo de produção para o eixo de serviços é um dos caminhos importantes e relevantes na discussão de desenvolvimento sustentável. É possível fazer uma leitura análoga no caso do saber. Hoje, este é entendido como uma mercadoria, seja na forma de patentes, seja na forma de direitos autorais, seja na forma de saberes acadêmicos guardados a sete chaves pelos especialistas e catedráticos. Há várias formas de privatizar e mercantilizar o saber. Ora, qual a possibilidade que as redes de conhecimento coletivas permitem? Por serem uma construção coletiva, neste caso, acabam sendo muito menos importantes o conhecimento em si e o processo contínuo de sua construção e muito mais importante a aplicação desses avanços na realidade prática dos produtores desse conhecimento. Nas redes existem a empresa, as ONGs, a universidade – todos discutindo e construindo uma temática importante para essas múltiplas dimensões. Menos importante é quem é dono daquilo, e mais importante é quanto o desenvolvimento daquela temática possibilita avanços e inovação na inserção social ou econômica de cada uma das entidades envolvidas. Quando o Uniethos constrói uma temática educacional e coloca essa temática educacional numa rede de praticantes, estimula a produção do saber, as trocas e o benchmarking dentro dessas redes. Menos importante é o direito autoral sobre isso e mais importante é o conjunto do conhecimento de responsabilidade social e empresarial. Soluções que sejam efetivamente relevantes para a realidade da empresa e para a formação do profissional importam muito mais que a produção do conhecimento em si. O fato é que a revolução tecnológica requer dos produtores de conhecimento menos preocupação com a autoria sobre a produção do saber e mais a capacidade de transposição desse saber construído para realidades práticas e inovadoras. Porque na nova divisão social imposta pela Era do Conhecimento não há mais aquele que pensa e produz o conhecimento e aquele que se apropria desse conhecimento e o aplica. Na verdade, todos são produtores de conhecimento, de um lado, e, de outro, todos são executores. É esta a nova natureza da função social dos diversos agentes que precisa ser compreendida para as relações entre universidades e empresas serem redefinidas. Acredito que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, como um catalisador entre os diversos produtores de saberes e um articulador entre eles, possa ajudar muito nesse sentido, criando condições tecnológicas para o desenvolvimento dessas redes de modo a que se alcance uma nova e melhor realidade na produção e aplicação do conhecimento.