A nova divisão social entre academia e corporação na construção do
conhecimento
Ricardo Young*
*Especialista, Presidente Executivo do UniEthos e do Conselho Deliberativo do Instituto Ethos
O tema da Educação Corporativa no Brasil é de algum modo recente, bastante rico em
profundidade de reflexões e continuamente fértil em discussões que se aproximam mais da luz
filosófica do que do calor de opiniões divergentes. É necessário pensá-lo a partir dos fatos,
primeiramente, para que possamos compreender o alcance desse conceito.
Foi em 1992 que se adotou pela primeira vez no Brasil o conceito de Educação Corporativa,
com a experiência da Academia Accor, em Campinas, interior de São Paulo.1 Hoje, como
lembra a doutora Marisa Eboli, da FEA/USP, são mais de uma centena de organizações
brasileiras e multinacionais, tanto na esfera pública quanto privada, que já implementaram
sistemas educacionais pautados pelos princípios e práticas de Universidade Corporativa.
Nesse contexto, o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior coordena desde
2003/2004 oficinas para discutir essa nova realidade, das quais participam não apenas
representantes do governo, representado por diversos ministérios, que incluem o de Educação
e Cultura, Ciência e Tecnologia e do Trabalho, mas também dirigentes do Serviço Nacional da
Indústria (SNI) e de empresas que já implementaram suas próprias universidades corporativas.
Cenário em que nasceu, em 2004, a Associação Brasileira de Educação Corporativa (Abec),
com a missão de “compartilhar, disseminar, desenvolver e monitorar práticas de excelência em
educação corporativa”2.
O fato é que o movimento em favor da educação corporativa cresce no país, e, como é comum
ocorrer nos momentos em que surgem novas idéias sinalizando mudanças de valores, sociais e
1 Como lembra a doutora em Administração, Marisa Eboli, da Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), no artigo “Educação Corporativa no Brasil: Novos
Movimentos”, “depois vieram a Universidade Brahma em 1995, a Universidade do Hamburguer, do McDonald´s em
1997, o Visa Training da Visa criado em 1997 que na sua evolução deu origem à Universidade Visa lançada
oficialmente em 2001, a Universidade Martins do Varejo, do Grupo Martins, a Universidade Algar, a Alcatel
University e o Siemens Management Learning em 1998, a Boston School do Bank Boston e a Universidade Datasul
implantadas em 1999”.
2 www.abecbrasil.com.br
culturais, vale a pena repensar alguns pontos a respeito do que significa essa possível
transformação.
Acredito que um dos aspectos mais inovadores e mais surpreendentes da Era do
Conhecimento, dessa revolução tecnológica que hoje
vivenciamos, é que a produção dos
saberes passa a ocorrer de modo disperso na sociedade. Não existe mais um locus onde a
produção do saber acontece. Tradicionalmente, esse locus se confundia com a academia. Até
as últimas décadas do século XX, a produção do saber não era considerada seriamente na
empresa nem no governo, nem em outras instituições que não fossem a academia. O que se
poderia gerar nesses locais parecia ser irrelevante diante do papel estratégico que a academia
ocupava.
Com a revolução tecnológica, essa situação muda completamente, ocorrendo a produção de
conhecimento em diversas dimensões. Hoje, existe uma sociedade civil muito mais ativa, que se
organiza em torno de vários temas e lutas, produzindo conhecimento na medida de suas
organizações e reivindicações. As empresas, pressionadas pela competitividade, acabam se
tornando centro de produção de pesquisa e de saber. Quanto mais avançada na pirâmide
tecnológica, mais produtora de saber a empresa se torna. Da mesma forma, os institutos de
pesquisa, sejam governamentais ou não, movimentam-se em torno de interesses difusos devido
a pressões de mercado ou de governo. A verdade é que ocorre uma proliferação de saberes
não-acadêmicos de extrema consistência e que independem do processo da academia.
Outro aspecto que merece reflexão é o fato de que a academia tem perdido, em alguns setores,
a corrida em relação à tecnologia. É preciso pensar e repensar a produção do saber científico
na realidade de nossa sociedade, como a produção desse conhecimento pode, muitas vezes,
tornar-se distante do dia-a-dia das comunidades e a própria necessidade da dinâmica do
mercado. Isso não quer dizer que o mercado deva ditar a produção do saber – isso jamais seria
aceitável em qualquer sociedade democrática –, mas significa que a academia não pode
confundir a produção do conhecimento como uma demanda apenas acadêmica. Deve-se
enxergar toda a nova realidade do mercado e da Era do Conhecimento.
O que acontece hoje, nesse sentido? Vive-se um paradoxo. A academia tende a produzir
conhecimento para uma realidade que, em muitos casos, não se aplica ou porque sua produção
está mais preocupada em atender a ritos meritórios que se referem à titulação acadêmica ou
porque a produção do conhecimento está ligada a sua própria dinâmica atemporal. Do mesmo
modo, não seria inconveniente afirmar que a academia apresenta dificuldades de antecipar
tendências nos diversos campos do saber, mormente àqueles frutos da revolução tecnológica.
Outro ponto a considerar é que, em alguns campos do conhecimento, a academia chega a
formar jovens para profissões que desaparecerão em breve, enquanto outras carreiras, que já
se sabe serão necessárias no futuro, muitas vezes, acabam sendo ignoradas ou são raras na
universidade. Também não é exagero dizer que a universidade corre o risco de obsolescência
ao não se perceber como parte de um processo muito mais complexo de produção de saberes
atualmente imposta.
Cabe, ainda, refletir sobre os atuais significados dos programas de extensão universitária, que
nasceram e foram inspirados na necessidade de articular a universidade com a comunidade e
beneficiar esta última por meio da dinâmica da academia. A idéia era que houvesse uma grande
oxigenação entre uma e outra, o que geraria benefícios de ambos os lados, ou seja, a
comunidade se beneficiaria da academia e vice-versa.
Contudo, os programas de extensão não têm conseguido cumprir seu primeiro e verdadeiro
papel. Sua iniciativa tem se restringido, muitas vezes, à ação social – profundamente
necessária, mas longe de ser a missão isolada de qualquer um desses programas – e a projetos
que têm muito mais interesse mercantil do que necessariamente de formação e disseminação
de novos saberes.
Outro aspecto que não pode ser ignorado é a atual proliferação de escolas e institutos de ensino
superior particulares. Esse crescimento desordenado obedece a uma dinâmica perversa:
enquanto as instituições públicas existentes no país atendem a uma população de alta renda,
que têm acesso assim ao melhor ensino, as particulares atendem à população de baixa renda,
que trabalha de dia e paga seu curso universitário à noite. Apesar das muitas e honrosas
exceções, isso tem levado a universidade particular, em geral, a um pragmatismo comercial que
a afasta ainda mais da necessidade ou da demanda da produção de novos saberes.
É certo que a proliferação de universidades, institutos de ensino particulares com concentração
principalmente em cursos de Direito, Administração, Marketing e Propaganda, enfim, em
carreiras tradicionais de mercado, tem diminuído muito o envolvimento da universidade
particular com a produção de novos saberes. Se Junta a isso o fato de que os institutos de
educação superior privados, em função de custos, têm até mesmo substituído em seu corpo
docente doutores por mestres, tendendo a reduzir ainda mais sua capacidade de produção de
pesquisa.
Ressalvo em alguns aspectos citados acima, esse quadro mostra que a universidade pública
ainda mantém uma qualidade de educação relativamente boa, com institutos de pesquisa que
funcionam principalmente nas áreas de tecnologia científica e biomédica, enquanto a grande
maioria das universidades particulares não investe em pesquisa e não produz.
Todo esse quadro de dificuldades e desencontros entre o que se espera de uma universidade e
o que a sociedade demanda dela produz inevitavelmente uma reação dos que necessitam
urgentemente do saber no mundo globalizado de hoje. O fato é que as empresas – premidas
pela competitividade, por um processo de obsolescência tecnológica acelerada e por um
pragmatismo muito mais objetivado pelo mercado que por qualquer circunstância acadêmica –
começaram a produzir não apenas saberes, mas também capacitação.
Desse modo, verificamos o surgimento de parcerias entre empresas e fundações em busca da
produção de saberes, chegando, muitas vezes, a se consolidar na forma de universidades
corporativas.
Há diversos exemplos de parcerias muito bem sucedidas, como a realizada entre a União da
Indústria Agrocanavieira de São Paulo (Única) com a Copersucar e com a Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), para a investigação do genoma da cana.
Outras parcerias são bem-vindas ao desenvolvimento profissional e do conhecimento, como a já
consolidada entre a Serasa e a Fundação Getúlio Vargas: um acordo de cooperação
educacional entre as duas instituições que fez surgir o Centro de Estudos Serasa – FGV, um
núcleo de excelência empresarial que alia o conhecimento acadêmico da Fundação com a
experiência prática da empresa, tornando possível a criação de técnicas e instrumentos para o
desenvolvimento da Gestão Financeira.
A Serasa ainda apresenta outras parcerias de sucesso, como com a Escola Superior de
Propaganda e Marketing, que possibilita o desenvolvimento do curso de MBA em Gestão
Financeira, especialmente no módulo de Modelagem de Crédito. E a parceria com a Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) enriquecendo a pesquisa dos alunos da
Faculdade de Direito em temas jurídicos por meio de um Centro de Estudos e Cooperação
Técnica Serasa – PUC-SP. A troca de tecnologia e a cooperação nacional e internacional em
áreas de atuação da empresa e da escola, e o estímulo a atividades relacionadas à formação
técnica e profissional dos alunos são alguns dos benefícios que se constatam nesses acordos.
Conforme posto anteriormente, vale lembrar um fato que, dentro desse contexto de maior
competitividade em que as empresas estão expostas, elas acabam criando suas próprias
universidades. O resultado é que vivemos, hoje, uma situação peculiar: as pessoas que cuidam
das universidades corporativas são doutores, mestres, profissionais da educação que
encontram na empresa condições melhores de trabalho e muitas vezes desenvolvem na
organização programas e capacitação com um rigor técnico semelhante ao da própria
academia.
Aqui chegamos a outro ponto fundamental da questão. A partir da proposta da reforma do
ensino superior3, apresentada como anteprojeto de lei pelo ex-ministro da Educação, Tarso
Genro, as universidades corporativas almejam o reconhecimento do Ministério da Educação
para que possam ter e oferecer sua própria certificação. Defendem que são capazes de produzir
programas com a mesma competência ou até mesmo maior que as academias. Argumentam
que, se a produção desse conhecimento está atrelada à prática empresarial, nada mais justo
que a própria organização possa certificar. Lembram que é socialmente desejável essa
certificação, porque enquanto o funcionário muitas vezes não tem tempo para poder fazer uma
segunda jornada de formação acadêmica, a empresa pode propiciar essa formação em seu
ambiente de trabalho. Enfim, a empresa executa, neste caso, essa importante função social
3 O projeto da reforma universitária a ser discutido no Congresso propõe que haja uma prestação de contas
permanente entre universidade e sociedade, cria uma nova moldura para a universidade comunitária, afastada da
visão mercantil, e defende o papel social da universidade pública, entre outros pontos.
oferecendo a seu funcionário uma formação técnica de nível superior sem que ele saia de seu
ambiente de trabalho, e com o que há de melhor em termos de conhecimento.
Vale lembrar outro forte argumento defendido pelas organizações em favor da universidade
corporativa: se tantas faculdades particulares são constituídas sem o rigor e a seriedade com
que uma universidade corporativa se forma, por que essas instituições podem certificar e as
empresas não?
Este é o ponto de vista defendido pelas empresas. Do lado oposto, a academia mostra que se
as universidades corporativas forem autorizadas a emitir diplomas certificados pelo Ministério da
Educação, pode haver não apenas uma privatização, mas um utilitarismo na produção do
conhecimento. Em outras palavras, só seria produzido o conhecimento que o mercado conceder
que se produza; o conhecimento que não tiver uma funcionalidade, uma utilidade de mercado,
seria perdido.
A academia também afirma que se o Ministério da Educação se definir em favor da universidade
corporativa estará sancionando um desvirtuamento da produção do conhecimento na
sociedade, além de tornar obsoleta a própria academia que seria, segundo os acadêmicos, o
último reduto da produção isenta do saber.
Em resposta, as empresas retrucam que a universidade não é menos vítima das mudanças do
mercado e, como uma inversão das situações expostas acima, lembram que algumas
profissões que hoje são absolutamente necessárias para as empresas não existem mais
enquanto programa de graduação nas universidades. Há um exemplo concreto, nesse sentido:
o da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)4, que ao investir em novas vias de escoamento na
forma de ferrovias, precisa de engenheiros ferroviários. Mas a universidade, no Brasil, não
forma mais engenheiros ferroviários em razão da obsolescência a que chegaram as ferrovias no
Brasil. Então, se a CVRD precisa desses profissionais e eles não saem formados da academia,
vê-se, assim, obrigada a fazer uma escola de engenheiros ferroviários dentro da Vale.
As empresas também lembram um fato já citado aqui: existem alguns campos do conhecimento
necessários ao mercado que as universidades ainda não produzem saberes, como, por
4 www.cvrd.com.br
exemplo, um caso da pesquisa genética no setor agrícola, em que, a maioria das pesquisas
vem do setor empresarial, vide a parceria formada entre Monsanto do Brasil e a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa, que não é uma academia, mas um instituto
vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento 5. Pergunta-se: onde está a
academia nessa discussão? Por que a universidade brasileira não tem sido mais ativa na
pesquisa de engenharia genética com fins de competitividade? Por que isso está sendo feito por
um centro de pesquisa governamental e qual a sua articulação com a universidade pública?
Como qualquer debate nascido de questões que podem interferir nos rumos de diversos
segmentos da sociedade, estes é extenso e requer cuidado e reflexão. Além dos argumentos
citados, é preciso lembrar que há um outro aspecto, um fenômeno da maior importância que,
queira a empresa ou não, queira a universidade ou não, existe e precisa ser contemplado: a
responsabilidade social.
O campo do desenvolvimento social e do desenvolvimento sustentável impõe uma nova visão
de mundo, que traz o conceito de múltiplos públicos relacionados, rediscutindo o papel da ética
e da transparência na prática empresarial e em sua relação com o mercado, alterando a própria
cultura organizacional e a lógica intrínseca de business, ao mesmo tempo, projetando a
necessidade de um repensar não apenas da gestão, mas um modelo de desenvolvimento o
qual implica um alto grau de inovação.
O que acontece hoje é que esses saberes referentes à responsabilidade social e ao
desenvolvimento sustentável vêm sendo gestados por organizações não-governamentais e por
organismos multilaterais, nacionais e internacionais, como o Global Compact6, por exemplo,
assim como por empresas transnacionais. Estamos presenciando um fenômeno no qual essas
organizações estão na fronteira do desenvolvimento desses saberes.
Não me refiro, aqui, nem aos saberes produzidos dentro da empresa para atender a uma
demanda de mercado, nem aos saberes produzidos dentro da universidade para atender a uma
demanda da organização ou até mesmo do mercado, nem aos saberes produzidos no âmbito
governamental. Refiro-me à natureza de um conhecimento que está intrinsecamente ligado à
5 www21.sede.embrapa.br
6 www.unglobalcompact.org
dinâmica da globalização e das próprias ameaças de riscos e oportunidades que esse processo
impõe.
Muitas empresas estão cada vez mais preocupadas em internalizar esse conhecimento, como
fica claro ao observarmos que o número de universidades corporativas procurando o UniEthos7
é cada vez maior.
A academia, por outro lado, deveria estar tratando desses temas na formação até mesmo dos
gestores das organizações do futuro. Mas o que acontece hoje nas universidades? A maioria
das instituições de ensino superior que tratam desses temas o faz ou como extensão, como faz
a UFBA (Universidade Federal da Bahia) ou por meio de centros específicos de conhecimento,
vide o caso do Centro de Desenvolvimento Sustentável da FGV (Fundação Getúlio Vargas) ou o
Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da FIA – USP
(Universidade de São Paulo), o Ceats, que, não raramente, são frutos de iniciativa pessoal de
professores, e não das instituições universitárias.
Não deixa de ser estranho que esse tipo de conhecimento, gerado fora da academia e formado,
na verdade, por uma dinâmica de empresas em diálogo com a sociedade e com organismos
multilaterais seja apropriado pelas universidades somente de forma superficial – nos cursos de
extensão, ou nos centros formados por iniciativa dos professores. Isso mostra, mais uma vez, o
enorme descompasso existente entre a academia e a produção dos saberes.
Isso não ocorre apenas no Brasil. A Rede Interamericana de Responsabilidade Social, da qual o
UniEthos faz parte, mostra que essa é uma questão colocada por todo o continente americano,
de norte a sul. Contudo, existem algumas diferenças, como, por exemplo, nos Estados Unidos,
onde a universidade acaba tendo uma relação muito mais parceira com a iniciativa privada, por
tradição e pela busca da sustentabilidade, tal qual o emblemático caso na área de
responsabilidade social que é o trabalho do Boston College8.
7 Criado pelo Instituto Ethos em resposta ao crescimento exponencial do movimento de responsabilidade social e
às novas demandas que ele tem gerado, o UniEthos é voltado para a capacitação, a pesquisa e a produção de
conhecimento. Atua de forma complementar ao Instituto Ethos, com ações e programas próprios, compatíveis com
suas missões específicas, e uma intersecção de interesses da gestão e disseminação de conhecimento relativo à
responsabilidade social empresarial.
8 www.bc.edu
Naquele país, existem grandes centros de pesquisa, como no Vale do Silício, em que a
Universidade Stanford foi peça-chave para o deslanchar de uma série de tecnologias que
depois foram adotadas pela indústria – isso em função dessa parceria da universidade com as
incubadoras e as empresas emergentes nos primórdios da revolução tecnológica. Sem dúvida
nenhuma o modelo americano é mais pragmático e atraente, mas não se pode ignorar uma
questão ética já citada anteriormente: até que ponto, em casos como este, a universidade
produz conhecimentos além do interesse específico de mercado?
Essa questão tem sido bastante discutida, como, por exemplo, em razão da dependência
crescente que os centros de pesquisa farmacêuticos das universidades têm em relação à
indústria farmacêutica – o que tem redundado nos últimos anos em algumas surpresas, como a
de remédios irem a mercado sem o devido tempo de maturação, sem que tenha sido esgotado
o seu ciclo de pesquisa, leitura e experimentação, o que normalmente se esperaria que uma
academia isenta fizesse. Essa é uma discussão polêmica até no Food and Drug Administration
(FDA)9.
Como resolver esses desafios, esses paradoxos? Acredito que a própria razão da geração
desses paradoxos guarda a solução deles. Isto é, sendo verdade que os saberes são hoje
produzidos pelos conjuntos da sociedade, e que devido à rapidez, profundidade e dinâmica da
produção deles é impossível qualquer agente da sociedade abarcar sozinho a totalidade desse
conhecimento e dessa dinâmica, só há uma forma de se estruturar harmonicamente a produção
dos saberes: a construção de redes de produtores desse conhecimento.
As redes podem se desenvolver por temas, setores, ou em torno de projetos. Então, será
irrelevante se os participantes dessa rede forem universidades, empresas, ONGs ,institutos
governamentais ou qualquer outro organismo da sociedade.
Farão parte dessas redes tantos quantos produtores existirem em uma área especifica. Ao
mesmo tempo, como a produção desse conhecimento neste caso se dá de forma coletiva, a
apropriação dele também se dá de forma coletiva, sem risco de sua privatização sob a forma de
9 O Food and Drug Administration é um órgão do Governo norte-americano que controla a qualidade dos
alimentos, cosméticos, medicamentos de modo a assegurar segurança e saúde aos consumidores e também a
animais. Assim, o FDA monitora a manufatura, a importação, o transporte, o armazenamento desses itens nos
Estados Unidos. Site: www.fda.gov
patentes e outros limitadores, do lado da empresa, ou pelos processos burocráticos e cartoriais
hoje existentes na universidade.
As redes produtoras de conhecimento devem ser validadas por seus próprios participantes e
sua dinâmica deve ser determinada pela relevância social, econômica ou ambiental que o tema
implicar.
O uso da tecnologia, como catalisador dessas redes de conhecimento, permitirá uma
convergência dos saberes hoje fragmentados nas diversas instâncias, numa realimentação
dinâmica que possibilitará uma produtividade exponencial muito maior.
Portanto, todo o debate entre universidade corporativa e o setor acadêmico, na verdade, se
transforma em uma falsa discussão se o consideramos sob a ótica das redes de conhecimento,
nas quais as universidades corporativas e as academias estarão vinculadas não por contratos
ou interesses comerciais, mas pelo interesse genuíno e legítimo do saber a ser construído e
aprofundado. Com isso, o melhor da experiência empresarial acadêmica e da sociedade civil
organizada pode ser otimizado.
Assim, pode-se concluir que não há dilema. Essa questão de academizar a universidade
corporativa ou tornar mais pragmática a instituição acadêmica não é, na realidade, um
problema. O necessário, hoje, é convocar esses dois produtores de saberes para se
relacionarem de uma forma inovadora, de modo a construir exponencial e sistemicamente ao
invés de disputarem a fragmentação do saber, como se vê atualmente na sociedade.
Cabe ressaltar que a Internet é o canal precioso que permite esse repensar dessas relações;
todas as experiências que têm sido feitas com essa concepção vêm sendo coroadas de
sucesso.
Para finalizar, cabe lembrar uma das diretrizes do Natural Step10 a respeito do desenvolvimento
sustentável, segundo a qual um dos movimentos importantes da indústria, na direção da
sustentabilidade, é substituir processos de produção por serviços. Por exemplo, em vez de
10
The Natural Step International for Social Sustainability é uma das mais importantes organizações internacionais
de consultoria e pesquisa, no apoio a empresas voltadas para o desenvolvimento sustentável. Atua com governos e
organizações no sentido de conscientizar e buscar soluções e ferramentas para alcançar a sustentabilidade global.
produzir máquinas de lavar roupa para as comercializar, o fabricante as aluga, e, de tempos em
tempos, as substitui por máquinas melhores. Com isso, a necessidade de produção diminui,
assim como a produção de resíduos sólidos e a necessidade de matéria prima. O empresário
ainda deixa de ter interesse na obsolescência planejada, não cria falsas necessidades de
consumo e pode satisfazer o consumidor mantendo o seu negócio rentável. Ou seja, a mudança
do eixo de produção para o eixo de serviços é um dos caminhos importantes e relevantes na
discussão de desenvolvimento sustentável.
É possível fazer uma leitura análoga no caso do saber. Hoje, este é entendido como uma
mercadoria, seja na forma de patentes, seja na forma de direitos autorais, seja na forma de
saberes acadêmicos guardados a sete chaves pelos especialistas e catedráticos. Há várias
formas de privatizar e mercantilizar o saber.
Ora, qual a possibilidade que as redes de conhecimento coletivas permitem? Por serem uma
construção coletiva, neste caso, acabam sendo muito menos importantes o conhecimento em si
e o processo contínuo de sua construção e muito mais importante a aplicação desses avanços
na realidade prática dos produtores desse conhecimento. Nas redes existem a empresa, as
ONGs, a universidade – todos discutindo e construindo uma temática importante para essas
múltiplas dimensões. Menos importante é quem é dono daquilo, e mais importante é quanto o
desenvolvimento daquela temática possibilita avanços e inovação na inserção social ou
econômica de cada uma das entidades envolvidas.
Quando o Uniethos constrói uma temática educacional e coloca essa temática educacional
numa rede de praticantes, estimula a produção do saber, as trocas e o benchmarking dentro
dessas redes. Menos importante é o direito autoral sobre isso e mais importante é o conjunto do
conhecimento de responsabilidade social e empresarial. Soluções que sejam efetivamente
relevantes para a realidade da empresa e para a formação do profissional importam muito mais
que a produção do conhecimento em si.
O fato é que a revolução tecnológica requer dos produtores de conhecimento menos
preocupação com a autoria sobre a produção do saber e mais a capacidade de transposição
desse saber construído para realidades práticas e inovadoras. Porque na nova divisão social
imposta pela Era do Conhecimento não há mais aquele que pensa e produz o conhecimento e
aquele que se apropria desse conhecimento e o aplica. Na verdade, todos são produtores de
conhecimento, de um lado, e, de outro, todos são executores.
É esta a nova natureza da função social dos diversos agentes que precisa ser compreendida
para as relações entre universidades e empresas serem redefinidas.
Acredito que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, como um
catalisador entre os diversos produtores de saberes e um articulador entre eles, possa ajudar
muito nesse sentido, criando condições tecnológicas para o desenvolvimento dessas redes de
modo a que se alcance uma nova e melhor realidade na produção e aplicação do
conhecimento.
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