ISBN 978-85-232-1127-1
9 788523 211271
Capa_CasadasMulheres_curvas.indd 1
3/25/14 7:26 PM
maria gabriela hita
A Casa das mulheres
n’outro terreiro
famílias matriarcais em Salvador
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
REITORA
Dora Leal Rosa
VICE-REITOR
Luiz Rogério Bastos Leal
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
DIRETORA
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
CONSELHO EDITORIAL
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria Vidal de Negreiros Camargo
APOIO
maria gabriela hita
A Casa das mulheres
n’outro terreiro
famílias matriarcais em Salvador
Salvador
EDUFBA
2014
2014, Maria Gabriela Hita
Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA.
Feito o Depósito Legal.
Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
em vigor no Brasil desde 2009
PROJETO GRÁFICO
Amanda Carrilho e Gabriela Nascimento
EDITORAÇÃO E ARTE FINAL
Amanda Carrilho e Gabriela Nascimento
REVISÃO E NORMALIZAÇÃO
Maria das Graças Meirelles
SISTEMAS DE BIBLIOTECAS - UFBA
Hita, Maria Gabriela.
A casa das mulheres n’outro terreiro : famílias matriarcais em Salvador / Maria Gabriela Hita ;
prefácio, Claudia Fonseca. - Salvador : EDUFBA, 2014.
513 p.
Originalmente apresentada como tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
2004.
ISBN 978-85-232-1127-1
1. Famílias negras - Salvador (BA). 2. Parentesco. 3. Parentesco - Aspectos sociais Salvador (BA). 4. Etnologia. I. Fonseca, Claudia. II. Título.
CDD - 305.8968142
Editora filiada à:
EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina
Salvador - Bahia CEP: 40170-115 Tel/Fax: (71) 3283-6164
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[email protected]
À minha mãe, Magda, e a Camila,
minha filha, relações que expressam a
díade Mãe-Filhos tratada neste livro.
E a meu pai Carlos (in memoriam),
com saudades.
Agradecimentos
A Casa das mães n’outro terreiro: etnografia de famílias negras matriarcais
em Salvador é um estudo descritivo e longitudinal, parte de pesquisas realizadas entre os anos de 1992 e 2003, em duas extensas redes de parentesco
matriarcais chefiadas por duas avós. Resultados dessa pesquisa foram originalmente apresentados, no formato de tese de doutorado na Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2004, orientada por Mariza Corrêa,
a quem agradeço o apoio que fez a pesquisa amadurecer naquele momento.
Também desejo agradecer as valiosas apreciações e estímulos recebidos de
membros da banca de defesa e de outros colegas, em diferentes eventos ou
situações profissionais, com quem tenho discutido, ao longo dos anos resultados desta pesquisa. Dentre os quais cabe mencionar Parry Scott, Maria
Coletta de Oliveira e Antônio Sérgio Guimarães, na banca, Claudia Fonseca,
Lívio Sansone, Elza Berquó, Aníbal Faúndes, Gabriel Cohn, Robert Slenes,
Guita Grin Debert, Maria Filomena Gregori e Peter Wade.
Este livro não teria sido possível sem os diferentes apoios recebidos da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ao
longo dos anos desde que se iniciou a pesquisa, no doutorado; e posteriormente para estágios pós-doutorais, a partir dos quais tive tempo disponível
para retomar e aprofundar algumas destas ideias. Agradeço ainda ao apoio
financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB)
sem o qual não teria logrado fazer esta obra chegar ao público com a qualidade final alcançada.
Um emocionado e profundo agradecimentos dirijo-o aos integrantes das
duas famílias sobre as quais versa este livro, pelo carinho e riqueza de informações recebidas ao longo de tantos anos de contatos. E ainda pelo entusiasmo com que abraçaram a ideia de publicar parte de suas vidas e fotos,
esperando que o meu intento de devolução em forma de livro esteja à altura
de tudo o que deles recebi. De modo mais especial, desejo agradecer a Mãe
Dialunda, Dalva, D. Cida (in memoriam), Dina e Neneca.
Este livro é versão mais amadurecida da tese, que tanto se beneficiou e
cresceu pelos ricos debates e possibilidade de testar algumas ideias com
diversas turmas de alunos de graduação e pós-graduação e bolsistas na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), com os que discuti e refleti sobre as
pesquisas presentes neste livro. Não sendo possível lembrar e nomear a todos,
desejo que se sintam representados no agradecimento aos mais próximos
como Murilo Souza Arruda; Orlando Almeida dos Santos; Cláudia Pons
Cardoso; Sílvia Barbosa, Cremildes Alves, Suely Mêsseder, Adriana Prates,
Ângelo Sampaio; Cláudio Roberto dos S. Almeida e Paula da Luz Galrão.
Aos amigos, companheiros de trajetória e demais membros do grupo de
pesquisa em que atuo, o Grupo de Estudos em Ciências Sociais, Ambiente e
Saúde (ECSAS), agradeço pela riqueza das discussões em fenomenologia que
tive oportunidade de compartilhar durante meu trilhar nesta seleta comunidade que promove o livre pensar, e que tanto tem contribuído ao longo
dos nossos 20 anos juntos no meu modo de refletir e produzir. Compartilhar
ideias neste grupo tem sido privilégio, alegria e parte importante do meu trilhar: um espaço de trabalho rigoroso onde se compartilha muito mais do que
risadas e bons momentos. No que concerne a esta pesquisa, parte das bases
de dados utilizadas foram construídas em pesquisas conjuntas do ECSAS,
em projetos dos quais participei com Miriam C. Rabelo, Paulo C. Alves e
Iara Souza. Parte importante da minha reflexão neste livro é fruto daqueles
anos de produção coletiva tanto na coleta quanto nas análises de muitos dos
dados aqui reunidos, e que deixam marcas e rastros nesta obra.
Por fim, mas não por último, o meu agradecimento e toda admiração ao
meu amigo e marido, Prof. John Gledhill, pelo papel que teve sua competente e detalhada revisão da obra, com propostas de caminhos possíveis de
editoração a desenvolver no intuito de clarear pontos cegos, mas cujas limitações e lacunas restantes são da minha única responsabilidade. Ele foi
quem mais me encorajou e cobrou a publicá-lo. E seus valiosos conselhos,
um dos meus principais estímulos. Também agradeço a Camila e Magda pelo
lugar ocupado na minha vida e durante o processo desta produção, operando
como um contraponto oculto relevante em algumas de minhas reflexões.
Por fim, desejo agradecer a cuidadosa revisão do texto realizada por Maria
das Graças Meirelles e à EDUFBA, no nome de sua diretora, Flávia Goulart
Garcia Rosa, pela produção do livro. A Emilly Mascarenhas e Umerú Bahia
pelas fotos atualizadas das Famílias que integram este estudo.
Prefácio
Não há dúvida quanto à atualidade do tema “mulheres chefes-de-família”,
fenômeno que, segundo os dados do IBGE, aumentou ao longo da década
de 1990 para, em 2000, alcançar entre um quarto e um terço dos domicílios
brasileiros. Neste livro, a partir de pesquisa no bairro de Nordeste Amaralina
(Salvador, Bahia), Maria Gabriela Hita propõe detalhar a existência de uma
das múltiplas formas dessa categoria: a da família chefiada por mulheres idosas que demonstram surpreendente talento (apoiado em uma “força simbólica circulante”) para cuidar e coordenar o cotidiano dos inúmeros parentes e
agregados que passam por suas vidas.
A autora realiza seu propósito narrando a saga de duas senhoras afrodescendentes – Mãe Dialunda (vendedora de acarajé no largo da comunidade e
líder de um terreiro de Candomblé) e Dona Cida (parteira tradicional e frequentadora – entre outras – de igreja evangélica). Tece a história dessas duas
“casas” como se estivesse apresentando personagens em um drama de teatro,
relatando os eventos em uma série de “atos”. Dessa maneira, convida-nos a
adentrar as agruras e alegrias que acompanham a lenta ascensão socioeconômica dessas famílias que passam por obstáculos de viuvez, desemprego, violência doméstica e – no caso das gerações mais jovens – as tentações do tráfico
de drogas. No confronto a esses desafios, emerge uma vasta rede de solidariedade – rede essa que passa a existir graças à capacidade das mulheres em
animá-la. É através do trabalho destas mulheres que se constituem os valores
básicos que guiam as manifestações de reciprocidade: os de “casa”, “consanguinidade” e “consideração”. Atentando para as sucessivas gerações do ciclo
doméstico e as modificações na própria arquitetura da casa, Hita nos leva a
ver a diversificação dessas redes no tempo e a recomposição delas no espaço.
As descrições das personagens são formuladas ao longo do livro em diálogo com outros antropólogos que observaram formas semelhantes de organização familiar entre grupos populares brasileiros – desde autores clássicos tais como Ruth Landes e Klaas Woortman até os mais recentes tais
como Cynthia Sarti e Louis Marcelin. Ao mesmo tempo, a autora se investe
contra teses evolucionistas ultrapassadas que, durante as últimas décadas do
século XX, viam o “matriarcado” de famílias pobres como fonte de patologia
social. Esforçando-se para ressaltar a especificidade histórica de certo padrão familiar sem incorrer em conotações negativas, desenvolve a noção de
“matriarcalidade” com ênfase na centralidade da figura feminina idosa para
a organização doméstica e para os cálculos de pertencimento, herança e descendência do grupo familiar.
Em suma, nessas páginas, o leitor encontrará uma densa etnografia da
vida dos grupos populares do Nordeste brasileiro durante os anos 90. Hita,
através de minuciosa descrição de sucessivas gerações das duas famílias, suscita um debate acadêmico sobre parentesco, gênero e territorialidade e, ao
mesmo tempo, provoca reflexões sobre políticas públicas no bojo de matrizes
coloniais e pós-coloniais. Sua convivência com os moradores de Amaralina
lhe permite um estudo de caso longitudinal que fala não só das duras condições estruturais enfrentadas por seus interlocutores – altos e baixos no mercado de emprego, discriminação racial, habitação precária –, mas também da
intensidade de experiência – amor, raiva, luta, esperança – e a criatividade
das estratégias forjadas para enfrentá-las. Desses ricos detalhes da vida cotidiana, emergem os argumentos mais convincentes da autora, e sua contribuição mais duradoura para a reflexão antropológica sobre as múltiplas
formas familiares no mundo contemporâneo.
Claudia Fonseca
Professora de Antropologia Social
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Sumário
t
17 Introdução
Casa matriarcal, arranjo familiar extenso chefiado por mulher idosa
35 Capítulo I
Parentesco e Casa em Família(s) Negra(s) Afro-Americanas
Conceito de Casa e Família 39
Família(s), Representações e Práticas 44
Papel sexual e geracional no modelo nuclear hierárquico
de classe trabalhadora 51
Consanguinidade, afinidade, consideração e corresidência 56
Matriarcado, matrifocalidade ou matriarcalidade? 60
77 Capitulo II
Organização doméstica em contexto de pobreza urbana: o Nordeste
de Amaralina na cidade de Salvador-Bahia
Breve histórico da ocupação urbana em Salvador 81
Perfil socioespacial do Nordeste de Amaralina 85
Tipos de organização doméstica encontrados
no Nordeste de Amaralina 93
O modo extenso de organização familiar 100
Famílias chefiadas por mulheres 102
115 Capítulo III
Identidades, Violência e Vida Cotidiana no Nordeste de Amaralina
Identidades, Diferenças e Sociabilidade
no Nordeste de Amaralina 118
A Violência no Nordeste de Amaralina 127
Violência policial e do tráfico de drogas 127
Violência na vizinhança 134
Violência na vida familiar e conjugal 136
149 Capítulo IV
Mãe-vó-bisa na casa de Mãe Dialunda: chefia feminina em arranjo
matriarcal extenso
Apresentação do cenário 153
Atos e principais personagens desta saga familiar 163
Primeiro ato: Vida de Mãe Dialunda no passado 163
Primeira personagem central: Mãe Dialunda 169
a) Antes do Candomblé 172
b) A Vida de Santo como modelo cultural de sua
matriarcalidade 178
Segundo ato: vida de Mãe Dialunda e Dalva - passado recente 194
Segunda personagem central: Dalva 199
Terceiro ato: desfecho familiar no presente 217
223 Capítulo V
“Só eu que sou avó, mãe e pai” um outro modo de ser matriarca
na casa de D. Cida parteira
Apresentação do cenário 230
Atos e principais personagens desta saga familiar 242
Primeira personagem central: Dona Cida 242
Primeiro ato: Neneca e Dina no passado 260
Segunda personagem central: Neneca 270
Segundo ato: Neneca e Dina em passado recente 285
A circulação de bens 294
Terceira personagem central: Dina 305
Terceiro ato: os netos de D. Cida: nova fase do conflito 329
345 Capítulo VI
A casa na reprodução da vida e do espaço: lugar e ethos de famílias
matriarcais extensas
Descrição espacial de uma casa em meio popular na Bahia 351
Casa de Mãe Dialunda 365
Breve história da casa com suas principais transformações
espaciais 365
Circulação de pessoas no uso da casa: idas e vindas
de moradores 374
Novas casas no tempo: estabelecidos e excluídos 379
Negociação Branca (B) – Etan (E) 395
Casa de Dona Cida Parteira 401
Breve história e descrição da planta original da casa 401
Circulação de pessoas no uso da casa: idas e vindas
de moradores 408
Principais transformações espaciais
e surgimento de novas casas 413
455 Conclusão
Lugar de homens e mulheres em famílias matriarcais
471 Referências
485 Apêndices
Apêndice A: Genograma Familiar Casa de Mãe Dialunda 487
Apêndice B: Moradores da Casa de Mãe Dialunda em 1997 488
Apêndice C: Genograma Familiar da Casa de D. Cida 489
Apêndice D: Genograma do Sub-grupo familiar
de Carlão – Filho de Dialunda 490
Apêndice E: Genograma filhos de primeiras uniões
de Mãe Dialunda 491
Apêndice F: Cronologias resumidas
da Casa de Mãe Dialunda 493
Apêndice G: Cronologias resumidas da Casa de D. Cida 497
499 Anexos
Anexo A: Mapa da localização do Nordeste de Amaralina 501
Anexo B: Mãe Dialunda e Dalva trabalhando 502
Anexo C: Família de Mãe Dialunda 504
Anexo D: Família de D. Cida 506
Anexo E: Salas da casa de Dina 508
Anexo F: Família de Dialunda em 2013 510
Anexo G: Família de D. Cida em 2013 512
Introdução
CASA MATRIARCAL: ARRANJO FAMILIAR
EXTENSO CHEFIADO POR MULHER IDOSA
p
Na América Latina, a significativa presença de lares extensos e pobres tem
sido correlacionados à falta de políticas habitacionais adequadas e ao impacto do acelerado e desordenado crescimento das cidades. Tais processos
– resultantes de ocupação e apropriação de terrenos vazios por amplos contingentes de migrantes rurais ou sem teto – são identificados no Brasil pelo
nome de invasões ou favelas; os agentes desses processos têm colonizado as
cidades usando práticas de auto construção de moradias. Incipientes programas habitacionais com apoios do banco mundial foram iniciados no Brasil
na década de 1990 e, desde então, foram ampliados processos de requalificação e urbanização de favelas. Foi justamente entre 1992 e 2003 que analisei
o modo de reprodução de um tipo de organização doméstica extensa matrifocal na cidade de Salvador: o matriarcal. Esse foi um estudo de tipo longitudinal realizado no Nordeste de Amaralina, resultante de várias pesquisas,
especialmente o da minha tese de doutorado sobre famílias matriarcais.
Entendo esse tipo de organização doméstica como resultante tanto da ausência de políticas habitacionais adequadas até um passado recente, como
também, no contexto estudado, expressão de uma matriz cultural negra
que se desenvolveu em Salvador e Recôncavo Baiano desde a época colonial. Entretanto, o modelo é recorrente em todo Nordeste brasileiro e muito
se aproxima de experiências similares no Caribe e América do Norte, locais
que também receberam contingentes expressivos de população negra escravizada proveniente do continente africano.
A escravidão no Brasil – e seu prolongamento até finais do século XIX
(1888) – teve um efeito profundo em todas as relações sociais do país, deixando como legado uma tradição e cultura negra, assim como uma perversa
correlação entre racismo e pobreza. A discriminação racial se manifesta de
a casa das mulheres 17
diversos modos, mas o reconhecimento da herança cultural africana se inicia
ao redor dos anos trinta e quarenta do século XX, era do Estado Novo de
Getúlio Vargas e da hegemonia de teorias sobre democracia racial brasileira,
quando, então, ocorre importante virada no pensamento científico racialista
dominante do século XIX. Nesse momento, a presença do elemento negro
na conformação da identidade nacional começou a ser valorizada e reconhecida. (Freyre, 1992 [1933])
As identidades raciais são vistas hoje de um modo bastante similar ao das
étnicas: como construções sociais, contextuais, situacionais e multívocas.
Alguns antropólogos optam pelo uso do conceito de etnicidade, já que o de
raça tem um peso histórico e moral de discriminação do qual desejaram se
distanciar. Outros sociólogos, como Antônio Sérgio Guimarães (2003), resgatam o conceito de raça como categoria analítica e classificatória importante que o senso comum continua usando. Para Peter Wade (1997) a “raça”
está associada em maior medida ao sangue, enquanto a etnicidade se vincula
a um origem cultural geográfico, onde a cultura de um lugar é incorporada
pelas pessoas. Esses dois conceitos, apesar de serem diferentes, confluem
entre si. A partir destas colocações, considero ser a Bahia um estado Negro,
associado à grande presença de afrodescendentes na sua composição populacional, por um lado, como à representatividade que uma matriz cultural
associada a populações negras tem na formação da identidade local e nacional. A noção de negritude tem sido muito utilizada no Brasil das últimas
décadas, e tem sido influenciada por posturas multiculturalistas antiracialistas e de reafricanização que lutam por maior reconhecimento. (SANTOS,
2005; PARES, 2012) Por sua vez, o ser negro, ou se reconhecer como parte da
cultura negra, como colocado por Lívio Sansone (2004), antes do que nos remeter à cor da pele, sugere uma pertença, política e afirmativa, a um grupo
racializado que se encontra em processo de emancipação.
Ao privilegiar na minha análise a emergência destes processos e movimentos de reconhecimento, não nego a importância que a reprodução de
variados modos de discriminação racial (direta e institucionalizada) exercem
na realidade estudada, incluso dentro das relações familiares e de gênero observadas. São abundantes os estudos no Brasil que analisam a inegável correlação entre pobreza e negritude no país, entre outros, Hasenbalg (1998) e
Maggie, (1998), pois a integração do negro na sociedade brasileira tem sido
sempre perversa e assimétrica: os afrodescendentes ocupam os piores lugares
18 maria gabriela hita
na estrutura social, com mais baixos salários, piores índices de educação,
ocupações menos reconhecidas, com menor acesso aos serviços de Saúde,
etc. Por outro lado, e apesar da crescente importância que se tem dado à cultura negra na formação de uma nação distinta, em si mesma e por meio da
mestiçagem biológica e cultural, pouco se tem escrito no Brasil sobre o tema
da família negra até o momento, especialmente antes de 1970, quando um
novo olhar sobre a história destaca o papel do negro como agente criativo e
sujeito da história.
Estudos sobre forma de habitar casas e sobre a importância do passado
escravo no Brasil contemporâneo explicam algumas das principais características dessa matriz cultural da pobreza brasileira em regiões de Recôncavo
Baiano, onde a cultura afro-brasileira é hegemônica e marcante. (AGIER, 1990;
FREYRE, 1992; HARDING, 2000; LANDES, 1967; LIMA, 2003; MARCELIN,
1996; WOORTMANN, 1987; 1990). Neste contexto, lares matriarcais (e/ou matrifocais) são comuns e mais reconhecidos em suas respectivas comunidades
do que se costuma supor e não discriminados ou de menor valor social do que
outros considerados hegemônicos, adquirindo visível legitimidade e convivendo como mais um modo de organização familiar ao lado de outros modos
de organização doméstica com os que também socializam e convivem, sem
sofrerem preconceitos dos vizinhos. A partir da observação das formas de habitar em meio popular é possível afirmar que os indivíduos vivendo em condições de pobreza não se distribuem nestas estruturas com a mesma constância
no decorrer da vida. A circulação de pessoas entre distintas casas de uma rede
de parentesco é intensa e marcada principalmente no período da infância por
práticas como a da circulação de crianças, quer sejam filhos biológicos ou não.
A circulação de crianças difere da prática da de criar o filho de outrem,
embora ambas possam acontecer simultaneamente em um mesmo lar e período, conforme exemplos analisados neste livro. A circulação da criança
(associada à elevada mobilidade de pessoas entre diferentes casas) não renega a paternidade biológica e, em geral, ocorre entre consanguíneos. Neste
caso, a criança tende a manter a identidade dos pais biológicos, e aquela dos
que a recebem pode ser adicionada à anterior. Desta perspectiva é possível
considerar que uma criança pode ter mais de uma mãe ou responsável(is)
por sua criação; indicando que a relação entre a mãe adotiva e genética não
é, necessariamente, excludente. Por sua vez, a prática da criação de filhos
alheios costuma ocorrer nos casos daquelas crianças sem laços de paren-
a casa das mulheres 19
tesco, a priori, ou os que não são reconhecidas como descendentes consanguíneos do lar que os recebe: estas crianças tendem a ser incorporadas ao
novo lar como um tipo de adoção. Como bem o apontam estudos de Claudia
Fonseca sobre estas duas práticas – ao contrário do que se pensa em errônea
representação ocidentalizada sobre maternidade – a circulação e criação de
crianças ocorrem muitas vezes porque elas são desejadas e queridas e representam um valor para estas famílias. (FONSECA, 1995, 2000)
Nestas modalidades, Fonseca distingue dois tipos de situação nas quais os
indivíduos são integrados nestes lares: a primeira considera a criança como
dádiva, desejada e até disputada com respectivos pais biológicos ou outros
membros da parentela ou rede; na segunda é vista como fardo, recebida pelas
circunstâncias, sendo identificada com discriminação e mais associadas a
fonte de problemas. Estas situações poderão permanecer ou variar ao longo
de trajetórias e experiências dos sujeitos e curso de vida destes lares que não
são constantes ou fixos. Tais processos indicam dinamicidade e mobilidade
das posições que diferentes indivíduos ocupam e podem ocupar na rede de
relações das casas onde foram inseridos ou pelas quais circularam.
Devido à elevada mobilidade, ilustrada nos capítulos etnográficos adiante,
uma característica marcante da forma de residir em setores populares é a dificuldade em circunscrever certos agentes familiares em uma unidade doméstica específica, já que alguns deles circulam entre várias outras unidades de
uma mesma rede de parentesco, vizinhança ou configuração de casas. Por este
motivo, a casa precisa ser pensada e analisada a partir das inter-relações que as
pessoas estabelecem entre si e com outras casas que também participam de sua
construção e rede de parentesco, tal como sugerido nos estudos de Marcelin
(1996). Os elementos que expressam a mobilidade das pessoas nas casas, associados também ao exercício de práticas de consideração, discutidas adiante,
são elementos centrais e constitutivos do que denomino por matriarcalidade.
A noção de matriarcalidade – diferenciada a seguir da de matrifocalidade
e matriarcado negro – refere-se a um conjunto de relações domésticas e de
parentesco centralizado na figura de uma mãe-avó (matriarca), centro das interações da rede consanguínea, e lócus de descendência e herança da família.
Esta figura feminina idosa, ou de mulher madura, é a da chefe da casa e da
família, aquela que exerce poder sobre a casa e sua parentela e que é importante foco-difusor a partir do qual se multiplicam relações entre todos os demais membros da rede, extrapolando, por vezes, os limites físicos dessa casa
20 maria gabriela hita
enquanto local específico de residência (uma só casa), podendo operar na
conjunção e coparticipação de várias casas em uma mesma rede de parentesco. Neste tipo de configuração familiar e de organização doméstica, o papel
das mulheres é imprescindível para a sobrevivência grupal. Diferencia-se do
modo de ser e estar no mundo1 de outras disposições e papéis desempenhados
por mulheres em modelos patriarcais tradicionais ou nucleares de tipo mais
igualitários. Ser proprietária da casa é outro requisito indispensável para o desempenho do que denomino matriarcalidade, pois é principalmente através
desse recurso que elas a exercem e manifestam poder.
Pensar na matriarcalidade como forma de chefia feminina particular, sustentada pelas posses da casa, recursos e Força Simbólica Circulante (FSC)
aponta para a diferença e menor vulnerabilidade deste tipo de arranjo quando
comparado a lares chefiados por mulheres que se viram simplesmente abandonadas pelos companheiros (ou que nunca os tiveram) e parecem dispor de
menos recursos para enfrentar adversidades da condição de chefia, em situação de maior desamparo. A chefia matriarcal, ao contrário, tem o poder de
criar os próprios filhos e os de outras mulheres, o que lhe outorga prestígio e
maior força, elevando o papel de mãe ao de mãe-de-todos, com um paralelo similar ao de família de santo, no Candomblé. A família de santo (ou dos orixás)
refere a um modo de organização religiosa altamente hierarquizado nesta religião afro-brasileira (LIMA, 2003). Como nos estudos de Landes (1967), Lima
(2003), Woortmann (1987) e Marcelin (1996), parto do suposto da existência de
forte correlação entre a matriz cultural afro-americana pós-colonial2 descrita
em pesquisas de religião e estudiosos do Candomblé, com uma série de valores, crenças, sentimentos e princípios organizacionais também encontrados
no estudo destas Casas extensas matriarcais.
Os estudos de terreiros de Candomblé liderados por mães de santo revelam
que nestes locais é onde melhor se evidencia a presença do que denomino
princípio relacional de matrifocalidade, baseado na força e centralidade dessas
sacerdotisas e matriarcas que são mães-de-todos. Toda mãe de santo, afirma
Silverstein (1979), é representante e símbolo da religião na Bahia e da figura
materna, que é a Mãe Preta, considerada a mãe-de-todo-mundo, a principal
1
Conceito da fenomenologia, ver ao respeito Merleau Ponty (1994).
2
Sobre os efeitos desta matriz cultural negra americana pós-colonial na formação de famílias extensas e matrifocais no Caribe e Estados Unidos, ver também Smith (1956; 1973; 1996); Clarke,
(1972); Stack, (1974); Gonzalez, (1979).
a casa das mulheres 21
responsável pela produção e reprodução do seu terreiro – casa de Candomblé.
Assim como na estrutura hierárquica dos terreiros de Candomblé, no mundo
do parentesco consanguíneo, os membros destas Casas ocupam posições determinadas. Na Bahia, ser mãe de santo significa ser uma mulher escolhida
pelos Orixás (deuses), permitindo-lhes, pois, se erguerem como autoridade
máxima em seu terreiro (ou o pai de santo nos terreiros liderados por homens).
Ela é uma herdeira inata dessa posição porque desenvolveu certas características de personalidade – carisma, determinação, inteligência aguda, autoridade, sensibilidade, capacidade de mando – para dirigir o terreiro e manter
relações com os Orixás.
Este livro se inspira em reflexões de estudos sobre matrifocalidade na
Bahia inaugurados por Ruth Landes, em pesquisa dos anos 40, expresso
na conhecida obra: A cidade das Mulheres. Alguns pressupostos de Landes
foram retomados quarenta e sete anos depois na obra de Klass Woortmann,
também em Salvador, na região do antigo Alagados: A Família das mulheres.
Dois clássicos dos estudos sobre matrifocalidade na Bahia que são fundantes
na argumentação desenvolvida aqui e, desde logo, aludido no título: A Casa
das mulheres n’outro terreiro. O termo Casa é sinônimo do que entendo por família. Por isto A Casa (família) das mulheres n’outro terreiro, é uma recriação e
alusão ao objeto de estudo das obras citadas, fazendo nesse título uma dupla
alusão: à noção de terreiros de Candomblé e também ao do parentesco consanguíneo. Ao mencionar que estas Casas ocorrem n’outro terreiro, remeto
o leitor ao objeto de estudo tratado nesta pesquisa: o de um outro domínio
de parentesco, o doméstico; o do parentesco e domínio da consanguinidade
que não alude, necessariamente, ao parentesco religioso ou espiritual aludido na noção de terreiro de Candomblé, isto é, aquele que corresponderia a
uma família de santo.
Com isto procuro conectar o modo de vida e organização doméstico de
grupos matriarcais estudados ao campo simbólico e valores mais amplos de
uma matriz cultural afro-americana fortemente compartilhada neste contexto. Das duas casas analisadas, uma delas era chefiada por uma mãe de santo.
Mas não é preciso ser do Candomblé para compartilhar este modo de ser e
viver, como demonstrarei no curso do livro. Cabe esclarecer que não era objeto desta pesquisa tratar questões mais específicas sobre o Candomblé, usei
estudos sobre o tema para sustentar que este modo de organização doméstica
não pode ser compreendido, neste contexto de estudo, sem uma referência
22 maria gabriela hita
ao campo simbólico e de pertença histórico-racial que o constitui. Desta maneira, compreendo que o Candomblé espraia a configuração de um modo de
viver e habitar de afrodescendentes pobres que foram sendo forjados e construídos em complexos processos de sincretismos e recriação de mitos e tradições ao longo dos séculos. Processos que deixaram marcas e experiências diferenciadas ao de outros grupos populacionais manifestos em distintos modos
de ser e viver, em outros contextos, no caso específico, na cidade de Salvador,
capital da Bahia. Por isto, cabe assinalar, que a matriarcalidade não ocorre exclusivamente em grupos ou pessoas atreladas ao culto do Candomblé, mas que
os princípios de organização de casas de santo são uma expressão dessa matriz cultural de destacado valor simbólico, sem os quais não se consegue compreender satisfatoriamente a matriz na qual se insere o modo de organização
doméstico matriarcal analisado.
A Casa das mulheres n’outro terreiro é um estudo etnográfico longitudinal
– realizado entre os anos de 1992 e 2003 – em duas extensas redes de parentesco matriarcal chefiadas por duas avós, vivendo em contexto de pobreza
urbana. Esta etnografia familiar foi desenvolvida pela interpretação hermenêutica das múltiplas narrativas elaboradas pelos distintos membros de duas
redes matriarcais, pela justaposição de trechos de entrevistas coletadas, de
observações das relações intra-grupais e das transformações impressas no
próprio espaço das respectivas casas. Casa, como em Levi-Strauss (1991),3 é
entendida aqui como espaço físico e geográfico (casa), mas também como
categoria social, isto é, como identidade grupal (Casa), pois a casa (e/ou Casa)
é o lugar por excelência onde se constroem e posicionam os distintos corpos
que a ocupam e fundam. Com e através da Casa os indivíduos constroem
representações de si e do mundo, mediante a relação que estabelecem com
outros, dentro e fora dela. Neste livro, sugiro abordar casa (espaço físico) e
Casa (grupo doméstico) não como realidades distintas mesmo que inter-relacionadas – uma, matéria inerte, a outra, os significados sobrepostos a ela
pelas pessoas, suas relações e/ou práticas – mas como uma só e mesma coisa
expressas na noção de Casa (Família e domicílio). Ainda que para efeitos analíticos, as definições são distinguidas para explicitar quando se trata apenas
3
O uso do termo casa (em minúsculas) refere ao espaço físico do domicilio, o termo Casa (em
maiúsculas e itálico) abarca ambos os sentidos, tanto o de casa em sentido físico-domicílio,
como o de sinônimo da ideia de família ou identidade grupal. Para fins mais analíticos em geral
estarei usando este segundo termo com um substituto da ideia de “Família”.
a casa das mulheres 23
do lar como espaço físico geográfico/ edificação (casa) daquele mais amplo
que engloba o primeiro e nos remete à ideia de Família associada a um domicílio ou Rede de parentesco (Casa).
Uma Casa matriarcal pode funcionar em um único domicílio (casa) ou em
vários distintos (configuração de casas). E uma mesma casa (domicílio) pode
agrupar mais de um subgrupo familiar distribuído em distintos espaços da
casa, mas em relações de dependência com o núcleo matriarcal. A noção de
Casa adotada se aproxima muito da noção de rede de parentesco, à qual por
vezes, também se sobrepõe.
Neste estudo do modo de organização familiar e doméstico do tipo de domicílio extenso e matriarcal me interessou especialmente compreender a modalidade da chefia feminina aí presente. Tal propósito o direcionei a reatualizar o conceito de matriarcado negro através da ideia de matriarcalidade, que
entendo como uma das formas adotadas pela matrifocalidade. A nova ideia de
matriarcalidade que proponho se refere a um conjunto de relações domésticas
e de parentesco centralizadas na figura de uma mãe-avó (matriarca), o centro
das interações da sua rede consanguínea, e lócus de descendência e herança
da família. Ela é quem exerce o poder sobre a casa e sua parentela, e é um importante foco-difusor a partir do qual se multiplicam relações entre demais
membros da rede, extrapolando, por vezes, os limites físicos da casa enquanto
local específico de residência (uma só casa). Neste tipo de configuração familiar, o papel destas mulheres é imprescindível para a sobrevivência grupal, e
a centralidade do seu papel diferencia este modo de ser e estar no mundo do
daquelas outras disposições e papéis desempenhados por mulheres em modelos patriarcais tradicionais ou nucleares de tipo mais igualitários. No corpo
deste livro, realizo dois tipos de análise etnográfica, o das famílias e suas histórias, e o do próprio espaço ocupado por distintos grupos familiares ao longo
dos anos. Através deles, demonstro a interconexão profunda entre essas duas
esferas que se definem atravessando-se mutuamente, de modo indissociável.
Para autores como Woortmann (1987) e Marcelin (1996), e entre grupos
populares como o estudado, o parentesco entre dois indivíduos passa, principalmente, pelas mulheres, pelo ventre materno. O cordão umbilical é
para estes grupos símbolo que une os iguais e constrói o outro como irmão,
através da mãe. É por intermédio da mãe, afirma Marcelin, que o parentesco
entra no mundo e configura o novo indivíduo. A mãe é nesta matriz cultural
uma junção entre a casa e as redes de parentesco que ao redor dela vão se
24 maria gabriela hita
construindo. No arranjo estudado, a mãe é vista como aquela que ocupa esse
lugar privilegiado, e a principal pessoa através da qual se ingressa a um grupo
de parentesco. A mãe é para o indivíduo, diz Marcelin (1996), o que a casa é
para a família. Assim, o que caracteriza o arranjo matriarcal é essa força centrípeta assentada na centralidade do lugar ocupado pela Mãe. A essência da
Matriarcalidade é definida nesta pesquisa, basicamente, pela centralidade da
relação Mãe-filhos. Reconhecer a centralidade da mãe e das redes de parentesco produzidas através dela não significa, entretanto, afirmar que nas famílias como as estudadas exista ausência de homens e abundância de mães.
Os homens existem e ocupam posição privilegiada neste modelo: a de filhos,
como parte desse outro lado que explica o outro elemento da díade. Esta discussão será retomada adiante nos exemplos empíricos dos capítulos etnográficos das duas redes de parentesco e na conclusão do livro.
Nestes termos, a análise deste estudo se concentrou especialmente em
compreender e descrever as relações dessa díade; suas respectivas variações de gênero e geracionais, em que o foco central da análise recaiu sobre o
papel de mães e avós e nas relações destas com filhos, netos e bisnetos. Para
isso, foi preciso observar como estas relações se traduziram na circulação
constante de pessoas pelas distintas casas das redes de parentesco e como os
distintos movimentos estruturais e físicos das próprias casas imprimiram e
marcaram a presença do princípio que atua sobre a vida dos membros destas
casas. Esse principio, que o denomino princípio relacional de matrifocalidade é fundamental na constituição da identidade e no curso de vida de cada
uma das duas redes de parentesco descritas neste livro. Noções como matriarcalidade, matrifocalidade ou princípios organizacionais da matrifocalidade irão se aclarando à medida que a etnografia de ambas as Casas são
ilustradas através de análises de experiências e exemplos concretos. O modo
de organização familiar matriarcal é apenas um dentre outros dos arranjos
empíricos que se encontraram na realidade estudada. Ele é o locus por excelência onde se atualiza, ou melhor, se visualiza a presença e atuação do
princípio relacional da matrifocalidade, o qual é compreendido, a partir de
Woortmann (1987), como um princípio ideológico mais amplo e que poderá
estar subjacente – ou não – a um conjunto variado de arranjos familiares,
entre os quais, conforme aqui destacado, os matriarcais.
A definição de matrifocalidade adotada remete à ideia de um sistema onde
as mulheres, e mães em particular, são os pontos focais do sistema de paren-
a casa das mulheres 25
tesco. Portanto, considero a matrifocalidade como princípio de organização
de relações de parentesco amplamente compartilhado e interiorizado no imaginário popular baiano e de outras regiões do país e do mundo, mas um que
não é exclusivo unicamente de arranjos matriarcais. Busco explicar e ilustrar
a especificidade de significados e modo de operar deste sistema em um contexto e matriz cultural de grupos de afrodescendentes, em um país marcado
por longa tradição escravocrata. Se há elementos similares aos modos de organização doméstica de muitos outros grupos em diversos contextos culturais, há também diferenças e características que lhe são próprias, as quais
podem ser compreendidas dentro dos significados e valores da matriz cultural da qual fazem parte. Nesta direção, é preciso usar com maior rigor este
conjunto de conceitos, sempre precisando e identificando os elementos contextuais que lhes imprimem diferentes sentido em contextos específicos.
Para identificar e explicar as principais características do princípio relacional da matrifocalidade, entender como opera, que tipo de pessoas produz
e como se reproduz no cotidiano dos membros das redes domésticas na qual
está inserido, escolhi dois grupos (redes) de parentesco extenso matriarcal
para estudá-los em profundidade. Estas famílias são tomadas como exemplares para a análise da matriarcalidade, e que, por suas características e presença explícita da figura matriarcal, eram idôneas para compreender como
opera o princípio relacional da matrifocalidade. Como já dito, identifico por
princípio relacional de matrifocalidade o conjunto de valores, representações simbólicas (ou ideologia subjacente) de arranjos e práticas familiares
que existem no contexto de estudo, princípios que podem também estar presentes em arranjos familiares não matriarcais da sociedade baiana. Não ter
como mensurar a representatividade estatística deste princípio não significa desconhecer sua importância, nem assumir que seja impossível tentar
explorar como opera; apesar de se tratar de um conceito difuso e de difícil
operacionalização. Assim, busquei esclarecer como ele opera nas redes estudadas: esse foi um dos principais desafios e objetivos deste estudo.
Além da centralidade da díade Mãe-filhos, três outros elementos são fundamentais para entender os arranjos familiares matriarcais: a primazia do
princípio da consanguinidade sobre o da afinidade; segundo, associado ao
anterior, a elevada instabilidade conjugal de relações de afinidade; terceiro,
como já mencionado, a centralidade do papel da figura feminina desempenhada pela mãe-avó (matriarca) nesta configuração. A força e autonomia das
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mulheres, por um lado e a instabilidade conjugal ou procriação (de filhos) de
distintos parceiros(as) por outro são características marcantes na história dos
membros de ambas as redes matriarcais estudadas. A relação monogâmica,
como observado, tende a ocorrer de maneira temporária e circunstancial.
Homens abandonam companheiras e filhos, mulheres expulsam parceiros
de suas casas, mas os filhos, mesmo quando deixam a casa materna, sempre
voltam a ela, seja em fases mais críticas de suas vidas ou não. Adultos ou casados estarão sempre perto de sua rede de parentesco, pela dívida eterna que
os une às mães ou famílias de origem. Assim, a família se origina e pareceria
permanecer bastante estável ao longo do tempo, neste tipo de arranjo, pelos
dois elementos constitutivos e o desenvolvimento da relação desses dois elementos da díade Mãe-filhos: a Mãe, por um lado, e os/as filhos/as pelo outro.
Nestas Casas (no sentido de família), o pai pode ou não participar, pois a paternidade, fundamental para a procriação e modo igualmente privilegiado de
entrar no parentesco, não tem lugar tão ativo, nesta díade.
Entretanto, a possibilidade de uma mulher vir a se tornar matriarca em
seu grupo de parentesco dependerá da força e importância simbólica que
sua Casa (sinônimo de grupo familiar e domicílio) logre conquistar entre a
parentela e comunidade. Além disso, depende também dos bens materiais
e simbólicos que ela (mais que outros membros da sua rede) conseguir acumular em sua trajetória de vida. Isto está diretamente relacionado com a autonomia e força que estas mulheres desenvolvem na lida com adversidades
da vida. Tais características são resultantes do temperamento e da precoce
exposição e disposição para o trabalho que pode destacá-las em relação a outras mulheres da mesma rede de parentesco ou contexto.
A força que estas matriarcas têm sobre filhos, netos e outros membros de
seus domicílios depende também do poder simbólico da Casa e da autoridade que exercem sobre os outros. A esta força (um tipo de axé) da matriarca
denominei Força Simbólica Circulante (FSC), como metáfora analítica da
ideia de mãe-de-todos baseado em ideias afro-brasileiras, aludindo à noção
de hau, de Mauss (1988). Por isso, para analisar o princípio de matrifocalidade, parti do suposto que seria necessário estudar a trajetória de Casas matriarcais, pois sustentam a matriarcalidade no contexto de pobreza urbana
observado. As Casas matriarcais descritas neste livro se caracterizaram por
serem as de domicílios extensos chefiados por mulheres maduras.
a casa das mulheres 27
Vejo estas Casas como produto de certas trajetórias de vida e experiências
específicas (não como característica a priori, étnica ou de classe deste tipo
de lares). Apenas quando compreendida em sua complexidade e dinamicidade, expressam a alteridade e reconhecimento deste tipo de composição
familiar em contextos de pobreza, quando comparado a outros modelos e
àquele considerado padrão (o nuclear ocidental ou elementar). Mas, acima
de tudo, os lares matriarcais, entendo-os como produto do contexto histórico regional pós-escravidão que caracteriza esta área do Nordeste brasileiro.
Nestes lares se desenvolvem práticas coloniais e pós-coloniais de parentesco,
onde a presença das redes de parentesco e centralidade da díade Mãe-filhos
tem sido constante. Muitas mulheres se ergueram como pilar de seus grupos
familiares, apoiadas pelas redes de parentesco, enfrentando adversidades, ao
longo da vida, o que pode ser melhor visualizado em fatos como: a importância dos recursos conquistados (salários, pensões, posse de uma ou mais
casas para herdeiros), a possibilidade de criar filhos próprios e de outras mulheres (criação de filhos e circulação de crianças) e que, em contexto de pobreza, tenderam a se converter em uma configuração de arranjo familiar
extenso chefiado por avós. Para uma mulher tornar-se matriarca neste contexto, é necessário: 1) ser a chefe da família; 2) ter propriedade da casa (entendida como bem material ou o domicílio); 3) recursos materiais para prover
ampla rede de parentesco; e 4) força, autonomia e determinação que se elucida e aparece como elemento chave nas respectivas trajetórias.
Nas duas Casas extensas chefiadas por mães-avós analisadas em Hita
(2004),4 as matriarcas tiveram relação precoce com o mundo do trabalho e
passaram por transformações profissionais marcantes em um momento de
suas vidas; ambas desenvolvendo atividades profissionais consideradas mais
prestigiosas no contexto de sua comunidade quando comparado ao de outras mulheres: uma como mãe de santo e baiana de acarajé, a outra como
parteira empírica associada a rede de hospitais da cidade.
Prestígio, poder e posses alcançadas por estas mulheres não as excluem de
serem classificadas como pertencentes aos estratos mais baixos e carentes da
sociedade baiana. Muito pelo contrário, suas trajetórias e o modo de vida dos
distintos membros do seu grupo doméstico são forte indicativo das graves
restrições econômicas e sociais por elas sofridas na infância e principalmente
4
Algumas das ideias desta obra já foram publicadas em artigos ou apresentadas em diversos eventos, contudo dados mais detalhados e a etnografia completa aqui apresentadas são inéditas.
28 maria gabriela hita
na velhice, quando foi realizado o estudo. Elas pertencem ao conjunto de famílias nordestinas de baixa renda que se encontram em condições de existência bem abaixo das faixas normais de pobreza. Mas, no contexto de estudo,
distam de ser os lares mais fracos e vulneráveis. Pois é também o prestígio que
alcançam dentro da comunidade e a condição de certa autonomia econômica
por elas conquistada o que lhes concede posição de destaque entre os seus e a
vizinhança. Esta posição é o que denomino neste estudo por Força Simbólica
Circulante (FSC).
As duas matriarcas estudadas são as principais depositárias dessa FSC
que pode ser traduzida em vários elementos como o bem e posse da casa, o
nome da casa ou grupo familiar, o prestígio e status como membros desta
estirpe, etc. Mas esta FSC é uma riqueza, individual e coletiva da qual todo
seu grupo de parentesco se beneficia, mesmo quando pode estar concentrada nas mãos destas matriarcas, quando vivas, e seja em boa medida controlada e distribuída por elas, dado terem sido elas, por meio de esforço individual e trabalho, nas suas bem-sucedidas trajetórias de vida (apoiadas por
alguns de seus respectivos maridos ou companheiros) as principais criadoras
desse bem. A FSC é, portanto, um bem coletivo e um legado que sua descendência se ocupará em reproduzir e manter (e como o dom em Mauss, algo
que também circula, o axé da Casa). A FSC de um grupo doméstico ou de
parentesco é aquilo que identifica o grupo e indica o pertencimento de seus
membros a ele: é o próprio nome de cada Casa. Ser filho, neto ou alguém da
família de tal ou qual Casa (i.e. estirpe, mãe, ou determinado nome de família). Este conjunto de elementos identificadores é manifestação do que
chamo de força simbólica circulante, que é desigualmente distribuída por
estas matriarcas entre seus descendentes, disputada por eles nas relações cotidianas e negociada com as respectivas matriarcas, ainda em vida, mediante
o sentido dado a suas trajetórias e pelas interações estabelecidas com elas, se
aproximando ou afastando de suas expectativas, ganhando ou perdendo o
direito à parte maior ou menor do legado matriarcal.
A pesquisa em amostra reduzida (duas redes de parentesco) permitiu aprofundar a observação e tratamento de questões que, em uma amostragem mais
extensa, poderiam não ser detectadas. Somente pelo estudo intenso das práticas familiares destes grupos foi possível apreender, a partir dos discursos
dos agentes sobre suas experiências e pela observação participante da cotidianidade dos processos de construção, transmissão e reprodução de hábitos
a casa das mulheres 29
destes dois arranjos familiares matriarcais. Isto é, o estudo apurado de ambas
as redes permitiu perceber como operam as relações de poder e de desigualdade no domínio familiar, a construção de gêneros e gerações que lhes é particular; assim como a importância das redes sociais centradas ao redor de certas
figuras femininas.
No período de aproximadamente uma década,5 em que foi estabelecido
contato com estas Casas, foi possível apreender e acompanhar parte da história, dos projetos, discursos e expectativas de vários dos seus integrantes
identificados como parte de um contínuo temporal que auxiliou na extensa
organização da base de dados criada. Alguns destes dados – após cuidadoso
trabalho de seleção, organização, sistematização – estão aqui apresentados
e mostram como ambos os lares, e os lares matrizes (de ego, ou matriarcas
nestas redes) de modo especial, transitaram por distintos estágios e tipos de
configuração, passando por momentos de arranjos nucleares, nucleares incompletos, compostos, até chegarem aos dos arranjos extensos descritos.
Mostram ainda como se desfizeram para, a seguir, voltarem a adotar configuração extensa em fases novas e mais maduras dessa rede, já em novos ciclos
de reprodução destas redes, buscando iluminar por meio das analises apresentadas, como ocorrem processos de reprodução destas famílias especificamente e da sociedade, de modo mais geral. Como parti do pressuposto de que
é no tipo extenso matriarcal onde o princípio relacional de matrifocalidade
pode ser mais visível e operante, este foi o escolhido para este estudo, já que
este princípio dificilmente seria captado sem a adoção uma estratégia metodológica qualitativa, longitudinal e etnográfica, como a que privilegiei neste
livro: o tipo de descrição densa e detalhada inspirada em metodologias de estudos situacionais e de estudos de caso detalhados (ou extendidos) da escola
de Manchester, especialmente os desenvolvidos em contextos africanos.
O estudo que apresento a seguir associa o olhar diacrônico ao sincrônico na
observação das vidas e trajetórias destes dois grupos de parentesco ou Casas.
Assim, para entender o processo constitutivo de cada Casa, detectar alguns
valores que conformaram a identidade dos distintos integrantes e identificar
a forma específica de ser de cada grupo doméstico foi preciso combinar distintas técnicas metodológicas bem como alguns anos de pesquisa. O ponto
5
Esse foi o período da pesquisa até a defesa da tese. Como a publicação durou quase outros 10
anos, quando voltei a visitar ambas as Casas e alguns dados atualizados se pode considerar um
lapso de 20 anos de contatos e histórias de vidas.
30 maria gabriela hita
de partida da reflexão proposta sobre famílias e unidades domésticas em setores populares urbanos foi a elaboração, em 1992, de um extenso survey sociodemográfico aplicado a 120 domicílios em um bairro popular da cidade de
Salvador (entre os quais os das duas famílias aqui selecionadas) e estudos etnográficos desse bairro. Contudo, a principal fonte de informação deste livro
foi resultado do processo de observação etnográfica mais minuciosa e sistemática e, em alguns dos momentos, de modo quase cotidiano na observação
das interações entre os distintos membros que compunham cada um destes
dois grupos domésticos e suas respectivas configurações de casas. Estas observações foram realizadas mediante inúmeras visitas aos domicílios em períodos distintos, quer sejam em marcação anual, mensal, semanal ou mesmo
de turnos distintos de um mesmo dia. Desde o primeiro contato em 1992, e de
forma mais sistemática ou constante após 1997, quando passaram a ser registradas em distintos cadernos de campo.
O caráter socioantropológico (e interdisciplinar) deste livro é, pois, resultado
de vários anos de pesquisa e interesses anteriores ao doutorado que resultou
em tese defendida em 2004. Os temas propostos na tese continuam sendo desenvolvidos e reatualizados em novas pesquisas sobre a Pobreza em Salvador
posteriores a esta, assim como pude debatê-los junto às diversas turmas de
graduação e pós-graduação sistematicamente oferecidas no departamento
de sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade
Federal da Bahia, desde 2005, sob distintas nomenclaturas de disciplinas.
Neste livro me aproximo e discuto categorias como as de cultura da pobreza, matrifocalidade e matriarcado negro, propondo uma nova terminologia, a de matriarcalidade, buscando contribuir, no campo de estudos da família, para uma classificação mais precisa de fenômenos próximos e distintos
que muitas vezes se confundem. Acredito que a noção de matriarcalidade
ilumina com maior precisão fenômenos invisíveis ao campo da sociologia
da família, ainda que remeta a uma realidade tão conhecida na experiência
de afrodescendentes pobres ao longo de alguns séculos desde a colonização
europeia. As experiências apresentadas apontam, pois, para um conjunto de
especificidades históricas, regionais, econômicas e culturais no que refere a
um modo de organização familiar e divisão de trabalho entre sexos: o tipo de
arranjo familiar que denomino de matriarcal, em famílias negras no Brasil,
especialmente as localizadas em Salvador e Recôncavo Baiano. Numa época
onde políticas afirmativas são tão enfaticamente promovidas e debatidas, o
a casa das mulheres 31
conteúdo desta obra pode oferecer insumos para se continuar avançando na
reflexão sobre desigualdades sociais, de gênero, classe e raciais.
No estudo dos dois arranjos matriarcais extensos, analiso não apenas o
modo como os mais pobres vivem e colonizam as cidades, tratando de problemas habitacionais e do uso do espaço urbano, mas, sobretudo, mostro
como se relacionam distintas casas entre si e como se constroem estas redes
de sociabilidade, apoios mútuos, assim como muitos conflitos que caracterizam microespaços densamente povoados. Nesta obra, são exploradas
ainda especificidades que certas matrizes culturais africanas e pós-coloniais
adotam nesta região do mundo, destacando a necessidade de investir mais
em análises comparativas com outros contextos, resgatando semelhanças e
diferenças com as experiências de pobreza desta e de outras matrizes culturais, em diversos contextos sociais das Américas, África e no mundo, em
torno ao tema da chefia feminina e de famílias extensas matriarcais, especialmente entre populações de afrodescendentes.
A descrição densa e detalhada das duas etnografias familiares e das respectivas casas lançam novo olhar e compreensão sobre famílias matrifocais
e pobres e que ainda tendem a ser vistas, por muitos, como modos de desorganização familiar, visão que, infelizmente, ainda subjaz na concepção de
legisladores que formulam políticas de combate à pobreza, à violência domestica e também de algumas políticas habitacionais vigentes no Brasil contemporâneo. De modo mais concreto, o estudo etnográfico realizado lança
um conjunto de indagações de pesquisa sobre o fenômeno da pobreza outrora conhecido ou qualificado como característica do matriarcado negro.
Ao problematizar nesta obra alguns dos fundamentos teóricos e empíricos
de ultrapassados pressupostos evolucionistas em estudos de família, termino
por evidenciar possíveis motivos dos fracassos de tantas políticas e ações para
combater a pobreza, apesar dos esforços e capital gastos para revertê-las.
Acredito que algumas ações de políticas públicas fracassam devido a visões
etnocêntricas e errôneas do que seja e significa ser pobre e viver na pobreza
em um contexto urbano. Considero, portanto que acessar outra visão do que
seja esta realidade é uma necessidade premente, para o que esta obra busca,
modestamente, contribuir.
Em esforço articulado de triangulação metodológica para compor quadro
mais completo do contexto e tipo de famílias estudadas, utilizei técnicas
quantitativas e qualitativas de pesquisa. Por meio das densas narrativas da et-
32 maria gabriela hita
nografia familiar selecionadas, visei a apresentar diferentes vozes sobre um
mesmo fato para melhor iluminar a construção processual e multivocal de
certos problemas, resgatando, através das narrativas de conflitos, alianças e
distintos lugares ocupados pelos membros do grupo do lugar onde eles se posicionam. Associado à observação etnográfica, apliquei a técnica de reconstruções de histórias de vida, com entrevistas em profundidade, gravadas e criteriosamente transcritas, assim como a realização de entrevistas focalizadas em
temas específicos, quando emergiam do contato com membros de cada casa.
Se alguns dados apresentados adiante com longas falas de entrevistados
podem parecer repetidos a um leitor desinteressado, o sentido de os apresentar foi o de poder trazer diferentes vozes sobre um mesmo fato ou evento,
e com isso o de justamente iluminar essa construção múltipla e multivocal,
resgatando os distintos pontos de vistas e lugares onde os membros de cada
rede falam. Um estudo assim desenhado ganha em profundidade de informação. Se tivesse optado por trabalhar com vários grupos familiares, o
resultado e objetivos seriam outros, e com essa outra estratégia teria sido
impossível, pelo tempo exigido e diversidade de perspectivas e sujeitos a
acompanhar, o aprofundamento e detalhamento de informação sobre intimidade e práticas desses grupos aqui logrado. Para tornar mais ágil a apresentação e organização da informação recolhida nos dois capítulos etnográficos, usei o formato de peça teatral, intercalando cenas (descritas seguindo
o critério temporal das histórias: passado, presente e/ou futuro), às quais se
intercalam descrição mais detalhada de algumas das personagens principais
em cada grupo familiar.
Assim, a partir desse esforço articulado de triangulação metodológica sucintamente descrita, o Capítulo 1 apresenta alguns dos principais pressupostos da pesquisa e debates em torno de teorias do parentesco e da família,
especialmente a de classe trabalhadora no Brasil, que melhor situam o recorte do objeto de estudo escolhido e maior fundamentação da definição de
matriarcalidade adotada.
Os capítulos 2 e 3 trazem uma visão do contexto em que estão inseridos
os dois grupos de parentesco estudados e apresentam dados quantitativos e
qualitativos sobre a cidade, o bairro, a vida cotidiana e social de famílias do
bairro e as respectivas visões sobre violência em contexto de pobreza, dando
especial destaque à temática da chefia feminina na sociedade brasileira.
a casa das mulheres 33
Nos capítulos 4 e 5, configurados propriamente como etnografias familiares, o modelo matriarcal é demonstrado na descrição das distintas personagens e suas interações com a chefa do lar nas duas redes de parentesco
escolhidas para este fim. Descrevem-se os personagens centrais da trama e
suas relações para resgatar o curso de vida de cada grupo familiar, a fim de
caracterizar cada grupo e a forma de manifestação da matriarcalidade que é
específica a cada um deles ao longo do tempo.
O Capítulo 6, também de teor etnográfico, sintetiza uma série de questões
desta pesquisa. Desenvolve o argumento de que o exercício da matriarcalidade
está diretamente atrelado aos usos e transformações do próprio espaço físico,
a casa, ao longo do tempo, ilustrado através de distintos mapas das diversas estruturas e modos de ocupações espaciais. Aqui se retomam, em parte, as histórias descritas nos capítulos anteriores desde o olhar da trajetória espacial e são
introduzidos novos personagens secundários de ambos os grupos, revelando
multifacetadas relações pela posse de um lugar na casa e na família.
A Conclusão retoma elementos centrais abordados ao longo dos capítulos
etnográficos sobre a especificidade e particularidade deste tipo de modelo
matriarcal descrito, voltando a explicitar elementos para sua definição; são
lançadas algumas indagações que emergiram a partir do estudo sobre o lugar
que nele ocupariam homens e mulheres, especialmente no papel de filhos/
filhas da matriarca.
34 maria gabriela hita
m
Capítulo I
parentesco e casa
em família(s) negra(s)
afro-americanas
O estudo da cultura, sistemas simbólicos e sentidos que preocupam à antropologia passa pelo estudo de termos fundamentais através dos quais as sociedades se veem, pensam e se situam no mundo. Por isso conceitos como família, parentesco, casa, grupo doméstico, por citar alguns deles, só fazem sentido
ao darem conta das significações que carregam nas relações sociais dos seus
portadores. E é deste postulado mais amplo que partiu minha pesquisa.
Família e relações de parentesco são considerados importantes princípios
organizadores em quase todas as sociedades. Na brasileira, em particular, os
termos são comumente associados à noção de casa (DAMATTA, 1978, 1985,
1987b; FREYRE, 1992 [1933]; MARCELIN, 1996, 1999; WOORTMANN, 1987),
dado que uma família ou rede de parentesco se define muitas vezes pela correlação com a residência. No Ocidente, as palavras casa (maison), grupo doméstico (maisonnée ou household),1 lar (demeure ou home), família, entre outras, têm sido frequentemente tratadas como sinônimos, para dar conta da
diversidade de experiências sociais referentes ao tipo de interações íntimas e
domésticas que ocorrem em variadas sociedades humanas. Além do critério da
corresidência, também aqueles de consanguinidade, afinidade e o de consideração são utilizados para definir parentesco. Todos esses termos são categorias
culturais e analíticas e como tais são polissêmicos, portanto as respectivas significações e modos de mensurá-los variam dependendo da utilização e formas
1
O termo household consagrou estudos associados às ideias de grupos de pertença, ciclo de desenvolvimento, consumo e produção de grupos domésticos e é muito utilizado em abordagens
demográficas. Tende a associar estudos de parentesco e famílias ao critério de corresidência.
Para Bender (1967), é inconveniente confundir ou tratar como sinônimos, noções de família,
grupo doméstico e household/maisonnée, úteis para fazer distinções de ordem analítica entre situações muito próximas. Para ele “Enquanto a noção de família remete aos laços de parentesco
estabelecidos entre seus membros, os de casa – household/maisonnée – (foco do Ancien Regime:
o governo da casa nas estatísticas modernas) remete ao reparto do lar e da residência em geral,
enquanto a noção de grupo doméstico designa todo o conjunto de indivíduos que cumprem de
modo comum e diariamente as tarefas de produção que são necessárias para sua sobrevivência
e que consomem juntos os produtos desse trabalho. Se trata de princípios de organização logicamente distintos que acabam, em numerosas sociedades estudadas por etnólogos, na constituição de diferentes unidades sociais em sua composição”. (BENDER, 1967 apud BENDER, 1991,
p. 313, tradução nossa)
a casa das mulheres 37
de interpretar dados pelas mais distintas disciplinas, autores ou vertentes teóricas, dificultando esforços de comparações equivalentes válidas.
Mas o que são exatamente relações de parentesco? Como se relacionam
com a noção de família e a de grupo doméstico? Podem ser tratadas como
campos próximos? Haverá alguma característica universal que identifique
o que seja a família no Ocidente e em culturas não ocidentais como o intentaram fazer, por exemplo, algumas das perspectivas estruturo-funcionalistas? Como definir objetivamente o que seja de fato “a” família no passado e na atualidade, se, muitas pesquisas socioantropológicas se deparam
com diversas composições e organizações domésticas, ao longo da história,
em todas as sociedades passadas e atuais? Perspectivas contemporâneas de
estudos sobre família e parentesco, como a apresentada neste livro, consideram útil falar de famílias no plural para evitar associação automática ou
inconscientemente ao de um arranjo particular, o de família nuclear moderna. Esta noção mais genérica de família é, por vezes, tratada ou confundida em estudos da área como modelo ou instituição universal.
Estas, entre outras, são preocupações que mobilizam estudos de parentesco desde a Antropologia Clássica ao observar estilos de vida de outras culturas, até os de disciplinas como Sociologia, História, Demografia ou áreas
correlatas.2 Não é objetivo neste livro buscar responder em maior profundidade cada uma das questões levantadas. Pretendo, apenas situar a complexidade de debates nos quais se insere o estudo em foco, reconhecendo algumas
das confusões e imprecisões que o uso variado de muitos destes termos produzem tanto em visões de senso comum quanto em estudos sobre o tema em
que são destacadas as perspectivas de sociedades contemporâneas.
2
Lasch (1991), Schneider (1984), Woortmann (1987) e Marcelin (1996) fazem um detalhado levantamento analítico sobre os estudos de parentesco aos que me associo, tratando algumas das suas
interfaces com estudos de família(s). Esforço similar com foco nos estudos de família ver na compilação de artigos de Ana Vera Estrada (2003), La familia y las ciencias Sociales, que reúne artigos
sobre diferentes abordagens de família no campo do Direito, Sociologia, História, Demografia e
Antropologia e também nos debates sobre famílias contemporâneas de Pierpaolo Donati (2011),
Família no Século XXI, especialmente o destaque sobre a dimensão relacional das famílias.
38 maria gabriela hita
CONCEITO DE CASA E FAMÍLIA
p
O termo Casa, neste livro, tem duplo significado e o utilizo, em geral, como
sinônimo de grupo doméstico ou família. Por isso, ao falar de Casas matriarcais, refiro-me a famílias ou arranjos domésticos de tipo matriarcal. A definição de família, pois, é próxima à noção de grupo doméstico, podendo formar
uma “unidade de produção”, ou não, mas sempre como sendo um âmbito
de reprodução social e de consumo, onde se estabelecem complexas e dinâmicas relações sociais entre os seus integrantes. O domicílio onde as famílias costumam se reunir indica ser esse um espaço de convivência de pessoas
ligadas por laços de parentesco ou dependência, estabelecendo relações de
afeto, solidariedade, tensão e conflito. Por isso é um espaço físico e social de
divisão social – sexual e geracional3 – do trabalho, no qual a vivência do jogo
de poder se cristaliza na distribuição de direitos e deveres de cada indivíduo.
Nessa concepção de família estão combinadas definições de sociólogas como
Bruschini (1990) e Jelin (1994), associadas ainda ao conceito de curso de vida,
desenvolvido por pesquisas sociodemográficas e sociológicas sobre família.
(GOLDANI, 1989; HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989)
Desta perspectiva, parto do pressuposto da existência de uma variedade
de arranjos familiares que extrapolam o modelo nuclear tradicional (ou elementar). E cada arranjo doméstico transversal o entendo, por sua vez, como
resultado de uma variedade de combinações e possibilidades de arranjos
que o antecede. Assim, um mesmo grupo familiar, ao longo da sua história,
passa por etapas diferentes de organização domésticas, que variam entre extensas, nucleares, incompletas ou compostas. Essa é, em suma, a ideia central do conceito “curso de vida” (HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989; GOLDANI,
1989) que se distingue do de “ciclo de desenvolvimento vital” desenvolvido
nos estudos de Meyer Fortes (1958), tão usado na demografia e estudos de
família. O esquema analítico proposto pelo conceito curso de vida acrescentaria ao de ciclos de desenvolvimentos da(s) família(s) a possibilidade de
3
E onde diferenças raciais, religiosas ou de outro tipo também podem ter expressões importantes.
a casa das mulheres 39
captar processos e informações de dinâmicas de unidades de análise tanto
familiares quanto pessoais, simultaneamente, ao poder captar dados sobre
o processo em curso ao longo do tempo dos diferentes momentos ou ciclos
domésticos (isto é, diferentes coortes transversais de grupos domésticos
em determinado momento do seu ciclo vital). Por isso a noção de curso de
vida é mais ampla e flexível que a anterior, ao incorporar ao modelo teórico anterior novas dimensões analíticas, tais como as de: a) temporalidade,
b) a variação na sequência de eventos que o caracterizam e c) informações
sobre as transições vitais essenciais pelas quais cada domicílio atravessa. Ao
adotar a perspectiva de estudo de cursos de vida, busco poder tratar das
trajetórias tanto individuais quanto coletivas no ciclo vital familiar de um
grupo ou rede, entendidos como processo, e não como momento estanque
ou congelado de um momento específico de suas trajetórias. Interessou-me
captar, nessa concepção, tanto a sincronia quanto diacronia dos domicílios,
e dos sujeitos que os compõem. Estas são as principais concepções sobre
família nas quais me apoio, e que, no curso deste livro, denominarei Casa.
Entretanto, cabe observar que esta relação sinonímica realizada entre família e Casa não visa a confundir as diferenças que também existem entre
ambos os conceitos.
Enquanto diversos autores usam o termo “família” para se referir a esse
conjunto de laços de consanguinidade (ascendência e descendência genealógicas, famílias de origem, etc. que tendem a viver em diferentes domicílios
e em geral estão unidos pelo vínculo do parentesco), eu prefiro identificar
essa ideia por terminologia mais ampla da antropologia social, a de “redes de
parentesco”, ou o que por momentos também identifico ou chamo de “redes
sociais” de diferentes grupos domésticos (aos que sim tento identificar com
a noção de casa ou “família” nesse sentido mais restrito, onde o critério da
corresidência tem papel central). Trata-se obviamente de terminologias bem
diferentes entre si, mas que se cruzam e interpenetram, e por momentos até
se confundem ou sobrepõem, como se verá na etnografia adiante.
Com a ideia de Casa (família) que aqui defendo, busco traduzir e expressar
nela tanto a ideia da(s) unidade(s) domiciliar(es) envolvida(s) (e que Marcelin
(1996) identifica por configurações de casas) como pelo de sua rede mais ampliada de relações, motivos pelo que nem sempre uma Casa, como se verá
adiante, pode ser reduzida ou entendida como sendo a de um único domicílio.
Muitas vezes o termo Casa também é neste estudo usado para identificar todo
40 maria gabriela hita
o grupo matriarcal que o compõe e que é também o que aqui estou aproximando aos das noções de rede de parentesco ou rede social.4
Dos dois significados do termo casa mencionados, o primeiro (casa)5 refiro-o à ideia concreta de espaço físico e geográfico onde habitam diferentes
pessoas. No segundo, assim como em Gilberto Freyre (1992 [1933]), DaMatta
(1985) e Lévi-Strauss (1991, 1992) – (Casa)6 – designo a ideia de grupo doméstico ou familiar, a vida de seus membros e as interações que os compõem; aproximando-o de noções como estirpe, clã e até mesmo da de família. Nesta direção, o uso do conceito Casa que propõem estudos de Janet
Carsten & Stephen Hugh-Jones (1995) e em contexto do Recôncavo baiano,
o de Louis-Herns Marcelin (1996; 1999), atualizam criticamente o conceito
de Casa lévi-straussiano, ao articulá-lo às dimensões como prática e processo, inspiradas em teorias de Pierre Bourdieu. Vale ressalvar que o uso do
signo Casa neste livro representa, de modo unitário e simultâneo, tanto a
ideia de casa – espaço físico – quanto o aspecto social – grupo doméstico,
pertença, família. Já o termo casa, refiro-o unicamente à noção de domicílio/ o espaço material e físico.
Na definição de Lévi-Strauss (2007 [1991]), a Casa (Maison) designa unidades que não se deixam definir nem como famílias, nem como clãs ou
linhagens,7 pois, através da ideia de Casa, propõe articular noções debatidas
nas Ciências Sociais e nos estudos de parentesco. Para ele, que em alguns de
seus escritos se refere a Sociedades de casas:
A casa é: 1) uma pessoa moral, 2) detentora de um domínio, 3) composta de bens materiais e imateriais, e que, 4) se perpetua pela transmissão de seu nome, de sua fortuna e de seus títulos em linha real ou
fictícia, 5) tida como legítima, com a única condição que essa continuidade possa se exprimir na linguagem do parentesco ou da aliança
4
Valiosas contribuições sobre terminologias e dimensões de Redes Sociais em cidades africanas e
de outros contextos, constam em Mitchell (1969, 1987), Van Velsen (1987), Bott (1976) e Hannerz
(1980).
5
Em minúsculo e sem itálico.
6
Em itálico e com C maiúsculo.
7
Em suas palavras ele diz: “On ne peut ramener à aucune des catégories classiques de la théorie
ethnologique que: ce ne sont ni des clans, ni des steps, ni des gens, ni des lignages ou lignées, ni
exactement des familles” (LEVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 434)
a casa das mulheres 41
ou 6) dos dois juntos. (LÉVI-STRAUSS, 1984, apud MARCELIN, 1996,
p. 77).8 (LÉVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 435),
Lévi-Strauss recoloca assim a Casa no centro das discussões enquanto
realidade física e instituição social, combinando princípios contraditórios e
transcendendo-os. Por sua vez, Louis-Herns Marcelin (1996) recupera o conceito lévi-straussiano e o enriquece em estudo etnográfico sobre o Recôncavo
baiano ao investir em um conjunto novo de questões, para as quais faz uso
do esquema analítico de Bourdieu, lançando mão do seu rico e complexo
sistema de opostos nas suas descrições sobre o espaço. Em direção muito
próxima às perspectivas apresentadas no livro organizado por Janet Carsten
e Stephen Hugh-Jones (1995): About the House, que discutem e reatualizam
a ideia de Casa Levy-Straussiana, Marcelin (1996) utiliza novas dimensões
como a noção de prática e processo próprios da teoria de Bourdieu,9 que as
define como sendo um novo e peculiar modo de olhar e entender as relações
de parentesco em setores populares de uma perspectiva bem mais dinâmica
do que aquela que Lévi-Strauss conseguira de fato imprimir a este conceito.
O livro mencionado organizado por Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones
(1995) reúne resultados de pesquisas etnográficas no Sudeste asiático e entre
grupos indígenas sul americanos, no que se retoma, ora se apropriando, ora
criticando e propondo novas direções, conceitos de Casa e Sociedade de
Casas em Lévi-Strauss.10 De modo inovador, propõe-se a investir em uma
8
No Dicionário de Etnologia e Antropologia, organizado por Pierre Bonte e Michel Izard (2007
[1991]), onde Lévi-Strauss também define o conceito Maison, ele diz: “Par rapport au clan ou au
lignage, la maison possède don des caractères distintifs qu’on peut énumérer comme suit. La
maison est 1) une personne morale 2) détentrice d’un domaine 3) composé a la fois de biens matériels et immatériels, et qui 4) se perétue par la transmission de son nom, de sa fortune et de ses
titres en ligne réale ou fictive, 5) tenue pour légitime à la condition que cette continuité puisse se
traduire dans le langage de la parenté ou de l’alliance, ou 6) les plus souvent les deux ensamble”.
(LÉVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 435).
9
Certamente a ideia de habitus da visão bourdiana é essencial e catalisadora, pois combina diacronia e sincronia, ação e estrutura.
10
O conceito de “Sociedade de Casas” Lévi-Straussiano, dizem Carsten e Hugh-Jones (1995), “é
marcado pela tensão do peso morto de velhas categorias de parentesco e o esforço de as transcender pela integridade de formas sociais resistentes” (CARSTEN & HUGH-JONES, 1995, p. 20).
Lévi-Strauss teria prestado atenção para o fato de que, como uma instituição, a casa combina
um conjunto de séries de princípios opostos ou formas sociais como a filiação/residência, descendência patri-/matri-linear, hipergamia/hipogamia, casamento próximo/distante, onde a teoria tradicional do parentesco as trata com frequência como sendo mutuamente excludentes.
42 maria gabriela hita
abordagem mais culturalista e holista da casa, em que sejam melhor integradas perspectivas de análise tanto arquitetônicas, como simbólica e sociais,
visando a construir uma antropologia da arquitetura que esteja também articulada a outra antropologia do corpo. Desta perspectiva, o conceito de casa
é frutiferamente redirecionado para a relação existente entre edificações,
grupos de pessoas e categorias, com novos insights analíticos sobre o tempo
e processo, casa e suas principais associações, sobre a reprodução biológica e
a social, etc. A casa é tratada nesta perspectiva como idioma simbólico, esse
“locus de densas teias de significados, e modelo cognitivo para estruturar,
pensar e experimentar o mundo”. (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 3)
Vários artigos dessa coletânea exploram modos de conexão entre casas e
pessoas que as ocupam, combinando áreas da vida social que a Antropologia
tendeu a separar, ao enlaçar essa antropologia da casa com a do corpo. Deste
ponto é possível afirmar que a casa é uma extensão da pessoa, como se ela
fosse uma pele adicional, e portanto, associada à própria noção de pertencimento social. Nas palavras dos organizadores do livro:
E por isso as casas podem ser pensadas também como corpos, compartindo com eles uma anatomia comum e uma história de vida comum. Se as pessoas constroem casas e as fazem a sua imagem, é porque eles também usam suas casas e imagens delas para construir a si
mesmos como pessoas e grupos... A casa é uma extensão da pessoa e
de seu self. (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 3)
Tal como as pessoas, pode-se dizer que as casas também nascem, vivem,
desenvolvem-se, morrem ou declinam. E renascem. É por seu duplo significado como uma estrutura física e representação do grupo social ou família,
que é fundamental que se considerem suas características arquitetônicas, e
como um aspecto importante de sua importância como unidades sociais,
tanto na vida como no pensamento. Entender assim a casa é o mesmo que
vê-la como processo dinâmico.
Inspirada nesta perspectiva, penso que ir para além das formulações de
Lévi-Strauss sobre a casa implica considerar as casas e seus habitantes como
parte de um processo do próprio viver e experiência de seus agentes. Aspecto
inovador desta perspectiva que também me aproprio é o tratamento das
A casa logo, toma a aparência de unidade de princípios opostos que os torna mutuamente equivalentes” (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 8)
a casa das mulheres 43
relações de parentesco como algo processual e articulado à ideia de mobilidade em análise arquitetônicas e de espaço, metafórica ou literalmente
falando. A mobilidade espacial pode ser apreendida através da captura de
distintas imagens de um mesmo lugar ao longo do tempo, identificando
transformações espaciais ocorridas, como o faço ao analisar diferentes
plantas das casas matriarcais, adiante. Por sua vez, a etnografia de Janet
Carsten, em Pulay Langkawi, na Malasia, trata de um caso diferente, o movimento de casas do que trata essa autora é real. Como se a própria edificação
física tivesse pés e caminhasse para se instalar em um outro lugar: essa é a
imagem da foto que mostra vários homens carregando uma choupana para
outro local da tribo. Essa poderosa imagem da casa se movendo, metafórica
ou literalmente, expressa as qualidades de animação e movimento que estas
mesmas edificações podem sofrer. E uma que busco de modos distintos explorar no capítulo VI sobre as Casas Matriarcais e suas transformações, tanto
físico espaciais, quanto as de sua ocupação por distintos membros desses
lares, ao longo dos anos em que foram observados.
Por outro lado, a casa, como construção física, diz Marcelin (1996), não
pode ser separada dos corpos que a habitam e transitam, nem das relações
pessoais que a modelam. Como construção física (casa) e pela sua relação
com a Casa, enquanto instituição social total, constitui um dos melhores registros de momentos de articulação e de mobilização de alianças intra e inter
geracionais entre seus membros. Por isso, a descrição das transformações
espaciais da(s) casa(s) (propriedades), que abordarei no capítulo VI, também
tem mostrado ser um eficaz e dinâmico indicador no estudo dos cursos de
vida domésticos e de seus membros.
FAMÍLIA(S), REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS
p
A entrada do mundo ocidental na modernidade teria sido marcada por uma
crescente consolidação do individualismo sob o império de valores como o
da liberdade e igualdade; tal ideologia se atrela a determinada teoria sobre
44 maria gabriela hita
a noção de pessoa. Por outro lado, a difusão deste processo, assim como a
noção de pessoa se contrapondo à de indivíduo, teve manifestações diversas e específicas em contextos sociais e momentos históricos determinados,
mediante sua imbricação com processos e modelos preexistentes em diferentes contextos. (DAMATTA, 1978, 1987a; DUARTE, 1986). Nesta direção,
procurando mostrar como se consolida e particulariza a sociedade brasileira
no movimento ocidental geral. DaMatta (1978) afirma que é no âmbito da relacionalidade que se podem sintetizar as contradições de uma prática duplamente orientada que combinaria, de uma forma específica e concomitante,
elementos de um individualismo e igualitarismo da vertente liberal com os
de uma matriz fortemente hierarquizada e tutelar, indicando faceta profundamente hierárquica e complementar da sociedade brasileira.
Nesta direção caminham muitos dos trabalhos produzidos na Antropologia
e na História no Brasil, priorizando o campo simbólico, ao destacar aspectos
simbólicos e morais das famílias brasileiras. Com distintas ênfases e matizes,
tais trabalhos balizam a existência de um tipo de identidade nacional própria
(nacional ou de classes) que se distinguiria e seria relativamente autônoma
dos modelos estrangeiros importados, fazendo uma boa e criativa adaptação
daqueles à realidade autóctone. São extensas as referências que descrevem e
argumentam em favor do surgimento de uma identidade nacional como resultado desse processo particular de articulação entre a ordem capitalista industrial atual e um passado escravocrata e patriarcal da sociedade brasileira.
Tal imbricação tem sido reiterada como marca da formação histórica da sociedade brasileira desde Freyre, Buarque de Holanda, Antônio Cândido, dentre
outros, aos escritores contemporâneos; tais estudos apontam para a existência
de um tipo de modelo híbrido familiar que parece combinar elementos de modelo hierárquico extenso do passado e do nuclear democrático do presente.
Se nas classes médias da sociedade norte-americana a lógica dominante
seria a de um processo de crescente individualização e conquista de autonomia nas relações interpessoais e familiares, em sociedades como a brasileira, e em especial em grupos de classe trabalhadora, se destacariam elementos de uma leitura não individualista da cultura. Tais elementos são os
que se encontram descritos no modelo holista e hierárquico da obra de Louis
Dumont (1992). Neste modelo holista há maior ênfase em um tipo de identidade ou totalidade superior, às das unidades individuais, que é ordenada com
base a valores relacionais diferenciadores resultantes de um sistema moral de
a casa das mulheres 45
reciprocidade – constituído pelas obrigações de dar, receber e retribuir – e de
complementaridade tratados também em obras de DaMatta (1978), Duarte
(1984, 1986) e Sarti (1996). Associada a esta visão, é forte a influência da matriz
antropológica brasileira que defende, entre pobres urbanos, a existência de
uma certa hegemonia do modelo nuclear hierárquico, desconhecendo a importância de outros modos de organização doméstica alternativos.
De modo similar, durante muito tempo, sob o predomínio do paradigma
freyriano de família patriarcal dominante no Brasil agrário colonial, a família
escrava e negra (liberta e livre11) foi vista ora como inexistente e subsumida na
categoria dos agregados da casa grande patriarcal do senhor branco, ora vista
negativamente e associada a características como às de instabilidade, falta
de autonomia, ilegitimidade e promiscuidade nas uniões entre escravos ou
negros, em um olhar muito próximo ao defendido por Frazier (1939). Assim,
ao longo da história brasileira, o tema da família negra ficou, de modo geral,
subsumido ou obscurecido pelos estudos e terminologia dominante de família patriarcal, no passado, em que escravizados eram vistos como integrantes desse sistema e dificilmente como capazes de formar unidades familiares diferenciadas; e no presente, como sendo apenas a do modelo nuclear,
ou no melhor dos casos, o reconhecido como modelo nuclear hierárquico
em classes trabalhadoras.
Outros tipos de estudos sobre família, preocupados com o campo das
práticas, experiências e trajetórias, concentram-se em identificar e demonstrar variações empíricas de formas de organização familiar presentes na
realidade brasileira tanto no passado como na atualidade. (CORRÊA, 1982,
1990a; FONSECA, 1995, 2000; MARCELIN, 1996; SAMARA, 1983, 1987;
WOORTMANN, 1984, 1987, 1990; HITA, 2004). Estes estudos levantam
novas hipóteses de análise e questionam a hegemonia de certos modelos ao
apresentar os inconvenientes de um olhar restritivo que terminaria por excluir uma série de variações familiares que seriam diluídas a partir de uma
perspectiva moral ou simbólica da matriz dominante. Nesta direção, vale
recuperar Mariza Corrêa (1990a):12
11
Termos utilizados em estudos sobre escravidão e em pesquisas do historiador baiano João José
Reis. Ver especificamente Reis (1986).
12
No texto Para uma história social da família (1990) e em Repensando a família patriarcal brasileira
(1982), Corrêa indica a representatividade de lares de mulheres sozinhas com seus filhos – chefes
de família – na época colonial, que junto a outros exemplos, questiona o modelo patriarcal como
o mais adequado para se abordar a diversidade de formas empíricas familiares existentes no
46 maria gabriela hita
Enquanto isso, o que podemos fazer para analisar a família é, primeiro, reconhecer que, seja no que se refere a seus integrantes (pais, mães,
avós, cunhados, ou seja qual for o termo usado para designá-los), seja
no que diz respeito a sua forma (‘nuclear’, ‘extensa’, ‘patriarcal’, ‘matriarcal’, etc.), ela tem assumido feições as mais diversas e o fato de estarmos
acostumados a um tipo de família – o mais popularizado pelos meios
de comunicação de nossa sociedade – não significa que ele seja o único existente, ou que tenha sido o mesmo de sempre. E, em segundo
lugar, distinguir claramente os níveis nos quais se faz essa análise: o nível estatístico, ou censitário, isto é, as regras de convívio que parecem
reger o comportamento da maioria das pessoas, numa sociedade, é diferente do nível simbólico, da família imaginada como ideal, ainda que
as pessoas não vivam de acordo com essa imagem onde se projetam
suas crenças religiosas, suas tradições e suas utopias. Quando Gilberto
Freyre fala da ‘família patriarcal brasileira’, está dando voz a um mito da
classe dominante açucareira do nordeste e o fato de reconhecermos
isso não deve nos impedir de reconhecer, seja sua importância enquanto mito organizador das expectativas de uma camada social, seja, sua
força de disseminação na sociedade mais ampla, nem de analisarmos
a maneira como a maioria das pessoas efetivamente organizava o seu
convívio, através da análise de outros dados. (CORRÊA, 1990a, p. 3).
Em uma posição diferente à de Corrêa, mas complementar, apontando
também dois níveis de análises distintos e fundamentais nos estudos de família, DaMatta (1987b) comenta:
Mas sem discutir as variadas e dramáticas significações associadas à
família como valor e categoria sociológica será certamente impossível entender alguns problemas importantes. Um deles (certamente um
falso problema central em muitas análises clássicas e recentes da questão) relaciona-se a tal diversidade de tipos de família, no caso brasileiro. Existe uma intensa discussão entre os autores que aceitam a tese
da família patriarcal, tal como a imaginam pela literatura de Gilberto
Freyre, e aqueles que negam essa realidade, seja para acentuar a relação direta entre dominação e patriarcalismo familístico, seja para demonstrar que essa forma de família estava conspicuamente ausente
passado. Levanta-se a hipótese de que o modelo freyriano de um nordeste coronelista de Casa
Grande e Senzala pudesse não ser o dominante em um sudeste cafeicultor. Novos estudos sobre
os cafezais paulistas da época da colônia levantam certas questões ao modelo patriarcal freyriano defendido como o hegemônico para o resto do Brasil. Outros estudos que também abordam
estas questões são o de Eni de Mesquita Samara (1983) e os de Robert Slenes (1999) e que mapeiam uma serie de estudos sobre família escrava.
a casa das mulheres 47
nas camadas subordinadas e entre os escravos. Em um certo sentido,
muito preciso, todos têm razão. Há diversidade, mas há também o poder
dos modelos dominantes que fornecem paradigmas sociais fundamentais
para toda a população, que pode ou não atualizá-los de modo aberto e
concreto. (DAMATTA, 1987b, p. 126, grifo nosso).
A complexidade do problema em torno desta temática torna imprescindível definir o que se entende por família e de que família se está falando
quando se inicia qualquer estudo, assim como explicitar qual é o nível de
análise utilizado. Ambos os níveis de análise, o simbólico e o prático,,13 são
igualmente fundamentais para o estudo da realidade social. É necessário admitir, entretanto, que partem de distintas definições do que se entenda por
família, respondem a distintas perguntas e formas metodológicas de abordar
o problema, apresentando, em consequência, resultados também diferenciados. Tal diferenciação aponta para estudos de teor díspar sobre família.
Imperdoável é confundi-los, ou em nome e primazia de um destes níveis,
ofuscar e negar as reflexões que advém do outro. O desejável é fomentar o
diálogo entre estas duas posturas ou, melhor ainda, se combinar ambos os
níveis de análise, simbólico e prático, os quais, em geral, não são de todo fáceis de distinguir e analisar devidamente. Neste livro, busquei sintetizar aspectos macro e micro da realidade social, elementos objetivos e subjetivos
nas trajetórias e narrativas dos informantes, como aspectos interconectados
e retroalimentadores um do outro: os das representações dominantes – ou
o que é entendido como relatos públicos, de um lado – e as representações
sobre práticas e experiências vividas – relatos privados – por outro lado;
como dois níveis que se interceptam e parecem se afetar mutuamente.
Do conjunto de estudos que privilegiam apenas as práticas, às perspectivas
mais empirista, há tendência em afirmar que a família, enquanto tal, não existiria, pois seria vista apenas como formulação conceitual falha, incapaz de incorporar em um (único) modelo a diversidade de características adotadas em
outras sociedades e épocas por uma diversidade muito grande de formas de
organização domésticas. Desta perspectiva há uma excessiva relativização das
formulações de ordem mais geral e conceitual, afastando-se delas e postulando
que nenhum tipo de teoria sobre família seria possível. Do outro lado, estudos
13
Vários autores tem abordado a tensão entre representações e práticas nos estudos de família; ao
respeito ver Corrêa (1990b), DaMatta (1987b), Duarte (1984,1986), Salem (1989), entre outros da
literatura nacional.
48 maria gabriela hita
que priorizam representações e modelos ideais familiares no imaginário social
tendem a cristalizar e reificar uns valores em detrimento de outros ofuscando
e desconhecendo o modo de operar de outros valores e práticas diversos aos
legitimados. Uma completa adequação entre discursos e práticas nem sempre
existe ou é total.
Em direção similar à de Corrêa, Claudia Fonseca (1995, 2000), questiona a
validade de um modelo explicativo para diferentes tipos de famílias do contexto estudado no sul brasileiro. Fonseca identificou que, devido aos momentos de rupturas familiares, os pais dividem a responsabilidade e cuidado
das crianças com uma grande rede de sociabilidade na qual a família está
inserida. A partir da prática por ela observada da circulação de crianças entre
sua rede de parentesco e vizinhança, a responsabilidade sobre essas crianças,
como também observado em outros contextos, torna-se coletiva e não necessariamente atribuída aos próprios genitores. Esta prática é bastante difundida entre famílias pobres, portanto recorrente no contexto de estudo
analisado, onde as crianças permanecem sobre a guarda de um parente, preferencialmente alguém da rede de relações da mãe. Essas crianças ou adolescentes (assim como adultos não consanguíneos) podem estar circulando por
diferentes casas ao longo das suas vidas. Nesta visão, a criança não é propriamente dada em adoção, e não é considerada apenas como filho de quem o
cria, sua filiação é considerada, em certa medida, coletiva, como resultado do
cuidado da rede à qual a criança pertence ou a que aceitou criá-la.
Por outro lado, autores que comparam famílias de classe baixa14 e de classe
média ou alta brasileira se apropriam da matriz que defende certa dualidade
de padrões de relacionamentos entre estes grupos, considerando se tratar
de dois modelos com lógicas operacionais distintas e contrapostas. Assim,
classes médias e altas compartiriam representações mais psicologizantes (tendências à interiorização e subjetivação), permeadas por um código mais individualista, enquanto grupos populares, em uma postura mais holista e indiferenciada, lançariam mão de representações mais hierárquicas e relacionais.
14
Outrora se usava a terminologia “Família de classe trabalhadora” para designar estratos mais baixos na estratificação social em relação a grupos mais abastados. Os modismos terminológicos
estão associados às matrizes teóricas que estão em voga, e como a do marxismo caiu em desuso
depois dos anos 90s, este termo passou a ser abandonado na literatura mais recente. Considero
entretanto relevante voltar a usar terminologias que tiveram seu valor e força semântica como
este de “família de classe trabalhadora”, outro sinónimo para classes baixas e que faço questão
de utilizar quando julgar necessário, recuperando o sentido histórico de certos debates.
a casa das mulheres 49
Em contexto popular, a noção de família é um dos mais importantes espaços
de construção da identidade, e muitos defendem que vigora o modelo hegemônico e hierárquico de família de classe trabalhadora entre os mais pobres
do Brasil. (DAMATTA, 1978; DUARTE, 1986; SARTI, 1993, 1996; VAITSMAN,
1994) A partir desta visão, pensar na existência de modelos familiares matriarcais, poderiam alegar alguns, tratar-se-ia de uma fantasia utópica.
A discussão sobre a tensão entre o nível de análise das representações e
o das práticas muito se aproxima, e em parte se fundamenta, em outras desenvolvidas na extensa obra de Pierre Bourdieu, quem distingue a lógica da
prática da do pensamento, chamando a primeira também de lógica do conhecimento prático, contrapondo-a à da razão (ou razão razoável, escolástica, teórica), se referindo àquela relação de tensão entre o que é pensado e o
que é vivido, ou à tensão da lógica teórica e a da prática. Na obra Meditações
pascalinas, Bourdieu atenta para o mesmo risco de confusão entre ambas as
lógicas que acontecem em abordagens de muitos estudos sobre o tema da família, e que para Bourdieu (2007) resultam da tendência de:
[...] substituir o agente atuante pelo ‘sujeito’ reflexivo, o conhecimento
prático pelo conhecimento erudito capaz de selecionar os traços significativos, os índices pertinentes (como na narrativa biográfica), e em
registro profundo, a submeter à experiência a uma alteração essencial
(segundo Husserl aquela que separa a retenção da lembrança, a propensão do projeto). [...] a ponto de tornar pouco provável que alguém,
imerso no ‘jogo da linguagem’ escolástico, possa vir a lembrar que o
próprio fato do pensamento e do discurso sobre a prática possa dela
nos separar. (BOURDIEU, 2007, p. 64)
Bourdieu alega que é muito difícil transpor a fronteira entre teoria e prática,
e que este obstáculo dificulta o alcance de um conhecimento adequado do conhecimento prático, originário da e na experiência pura e da “habitualidade”
daquele que vivifica a experiência. Para Bourdieu, a palavra experiência designa muito mais que um modo de comportamento cognitivo e judicativo, ele
é antes de tudo um comportamento prático e avaliativo. E comenta que para
compreender a prática, é preciso partir do sentido prático do habitus habitado
pelo mundo que ele habita (BOURDIEU, 2007, p. 173). Em suas palavras:
O princípio da compreensão prática não é uma consciência conhecedora (transcendente, como em Husserl ou existencial, como em
50 maria gabriela hita
Heidegger) [...] mas o sentido prático do habitus habitado pelo mundo
que ele habita, pre-ocupado pelo mundo onde ele intervém, ativamente, numa relação imediata de envolvimento, tensão e de atenção, que
constrói o mundo e lhe confere sentido”. (BOURDIEU, 2007, p. 173)
PAPEL SEXUAL E GERACIONAL NO MODELO
NUCLEAR HIERÁRQUICO DE CLASSE
TRABALHADORA15
p
Em setores populares, o desempenho de papéis em âmbito interno à família
parece claramente definido com a alocação de funções diferenciadas entre
homens, mulheres e crianças. Assim, ao homem caberia o sustento do lar
e a manutenção do respeito no seio da família e fora dele. O espaço do homem seria fundamentalmente o espaço público da rua, isto é, o do trabalho
e do bar onde se atualiza e afirma sua masculinidade. Dentre as atribuições
de pai, aparecem enfatizadas as seguintes: garantir a reprodução física da família por meio do trabalho, propiciar a segurança da família contra ameaças
externas, bem como ser o maior responsável pelo zelo e valores básicos, tais
como o respeito. Ao pai é atribuída uma maior severidade na inculcação de
valores morais à criança, dentre eles, o de obrigação e respeito para com os
mais velhos. (SARTI, 1993, 1996)
À mulher caberia o cuidado da família, do marido e da casa e aos filhos,
a obediência e as responsabilidades escolares. Caberia à mulher, primordialmente, a realização das tarefas domésticas como cozinhar, lavar roupa e
limpar a casa. A criação dos filhos também é considerada assunto basicamente
feminino, incluindo a resolução de problemas de saúde. Secundariamente, o
trabalho remunerado, sempre e quando (i.e., quase sempre e em todo lugar)
o salário do companheiro não for suficiente. Diferentemente do homem, na
moralidade popular – e não necessariamente nas práticas – a casa se inscreve
15
Este aparado foi parte de um artigo entregue para publicação em 1998 (HITA, 2001), que dialogava com boa parte da informação etnográfica e do survey realizado pelo ECSAS no Nordeste
de Amaralina.
a casa das mulheres 51
como o espaço por excelência da mulher. O mundo da rua, como extensão
da casa, seria legitimamente atravessado pela mulher, quando fosse uma extensão da casa, para ir trabalhar ou visitar parentes, dentre outras práticas.
De outra forma, sua presença na rua não seria bem vista nesta moralidade
popular. (DAMATTA, 1978)
Às crianças caberia uma relação de respeito e obrigação, na interação
com os pais. O respeito aos mais velhos, em especial aos pais é, sem dúvida,
valor fundamental ancorado na obediência, mas principalmente, caracterizado pelo não desafio à autoridade paterna, o não responder, não pirraçar,
etc. Desde cedo, as crianças começam a participar das tarefas da casa como
carregar coisas, buscar água, dentre outras; as meninas, mais especialmente,
ajudam na arrumação da casa e cuidado dos menores. Também quando necessário, trabalham para complementarem a renda principal com alguns
biscates. Normalmente estes ganhos são destinados à compra das próprias
roupas, merendas ou alimentos extras ao consumo familiar.
Esta é uma rápida descrição do modelo considerado padrão, que é modelador de famílias nucleares patriarcais e hierárquicas em classe trabalhadora, tal
como descrito nas obras de Duarte, DaMatta e Sarti. A disposição de papéis
de homens e mulheres no setor popular conduziria às diferenças citadas e,
portanto, espera-se (no nível normativo e não como análise de experiências
da vida quotidiana) coisas distintas de cada sexo, seguindo os parâmetros de
julgamento moral específicos em cada caso de desvio, seja do homem, seja
da mulher, ou dos filhos.
Relativo à esfera masculina, o julgamento moral estaria ligado a um ethos
do trabalho. Se o sujeito não trabalha, se diverte e não traz sustento para a
família, não merecerá o respeito dos seus, podendo justificar até o abandono
e infidelidade da mulher. Vez que, a mulher não esperaria necessariamente
fidelidade do companheiro mas, de modo prioritário, que seja provedor. Para
algumas mulheres, o marido pode até beber, jogar, ter outras mulheres, mas
se não faltar nada em casa, poderá ser ainda considerado bom marido, cumpridor do dever. Ao contrário, da mulher se esperaria fidelidade ao parceiro e
o cuidado da casa e da família. Não fica bem que ande à toa pela rua (mesmo
as solteiras), paquerando, ou de conversa fiada. Por isso, no caso da mulher,
o padrão de julgamento moral se associaria ao desempenho dos papéis no
ethos familiar. (SARTI, 1993, 1996a)
52 maria gabriela hita
Mas, até aqui, trato de um modelo de família que vigora no discurso, em
um modelo normativo hegemônico e nas expectativas de muitos, inclusive alguns de meus entrevistados durante a pesquisa. Na vida quotidiana de algumas
mulheres do Nordeste de Amaralina, entretanto, observam-se marcadas contradições em relação a este modelo, o que me remeteu a procurar nos estudos
de Klass Woortmann (1987) sobre famílias predominantemente negras em
Salvador, explicações mais sensíveis às particularidades deste contexto. Para
Woortmann (1987), os extratos mais baixos elaboram um sistema ideológico
bastante consistente, que não é mero desvio daquele da classe média dominante, tampouco a identifica com visões de teoria marginal de entender esta
construção como subcultura, ao estilo de Oscar Lewis, ou como algo separado
e distinto do sistema cultural dominante, o qual também estaria operando nas
mentes e é, ao mesmo tempo, manipulado por estes atores. Para Woortmann
(1987), os papéis e padrões de comportamento sexual são resultado da interação e manipulação consciente de dois níveis do sistema simbólico: um modelo ideal (a cultura dominante) e outro adaptativo (emergente da práxis cotidiana dos pobres), ligado a estratégias de enfrentamento da pobreza. A análise
de Woortmann é interessante, mas reduz a um esquema puramente estrutural
processos de construção de identidades muito mais complexos em que agenciamentos e escolhas individuais têm papel bastante importante a ser levado
em conta no estudo de vivências e diferentes experiências. O que mais nos interessa é que ele destacou as fortes características matrifocais das famílias que
estudou em Salvador, argumentando a não fixação do modelo patriarcal por dificuldades econômicas e/ou outros elementos culturais. As mulheres são peças
centrais nesse tipo de arranjo familiar, em que os parceiros, quando estão presentes, nem sempre são as principais fontes de recursos do grupo familiar. Nem
sequer os ganhos do homem, como os registrados em contextos de pobreza
pelo mundo, são sempre ou totalmente destinados para o bem-estar familiar.16
As reflexões do Klass Wortmann partiram da sua observação da vida e práticas
das pessoas e não da idealizada ou descrita em representações. Tratam-se de
dois níveis distintos da realidade que ininterruptamente estão interagindo e se
condicionando mutuamente: o simbólico e o das práticas, mas um não pode ser
reduzido ou traduzido necessariamente pelo outro.
16
Ver resultados nesta direção em obras de Mercedes Gonzales de la Rocha (1988, 1997) e Sylvia
Chant (1997).
a casa das mulheres 53
Woortmann mostra, mediante a diferenciação dos conceitos chefe de família e chefe da casa, como em famílias populares são geralmente as mulheres
que mantém relações rotineiras com as crianças, as quais, por vezes, gerenciam o orçamento doméstico e frequentemente contribuem para ele. Elas
têm autoridade imediata sobre os filhos, decidem questões de escolaridade,
amizade e trabalho. Determinam a alocação dos recursos do grupo doméstico para a reprodução familiar e devem ser consultadas na eventualidade de
usar o dinheiro para fins de acumulação (aquisição de bens, reformas da casa,
etc.). Desta forma, exercem geralmente o papel de chefes da casa mas, muitas
vezes também, o de chefe de família, devido à alta instabilidade conjugal e
abandono da família por parte do homem (quando não são expulsos pela próprias mulheres); se a casa pertence à mulher, quando novo parceiro chega,
continua sendo muitas vezes a principal provedora dos respectivos filhos.
Enfim, Woortmann (1987) descreve um sem numero de situações em que as
mulheres podem estar envolvidas, que caracterizam um modo de comportamento e formas de vida identificadas bastante diferentes de lares que seguem
princípios patriarcais, os por ele denominados de lares matrifocais.
Para Woortmann (1987), o homem em classes subalternas (ou de classe
trabalhadora) vai perdendo autoridade interna e função de provedor; tal
fato, por sua vez, fortalece o peso dos laços matrifocais. Esta abordagem privilegia a centralidade da mulher e das relações com a rede de parentesco em
detrimento do modelo tradicional de família, onde o homem é visto como
centro e representante da autoridade máxima.17 Nas palavras de Woortmann,
o homem perde toda força, não é ninguém no mundo da casa (“o terreiro onde
o galo não canta”), e não é ninguém no mundo da rua, (um explorado no sistema e mercado de trabalho), fica deslocado do papel central de provedor
que lhe outorga autoridade. Resta-lhe ficar vagando na rua e nos bares, como
17
Isto pode também ser interpretado como resultado do impacto das grandes mudanças ocorridas
na família, nas últimas décadas. Entre as principais mudanças no papel masculino, diversos autores
( JELIN,1994; GIDDENS, 2005, TOURAINE, 2007, CASTELLS, 2002) indicam a perda de função produtiva das famílias, o surgimento de individuação e autonomia de jovens e mulheres, debilitando
o poder patriarcal, devido em parte à maior inserção da mulher na F.T. após anos 1960 e à pressão
de movimentos feministas e de outros grupos sociais, à separação entre sexualidade e procriação
conduzindo a novas formas de expressão sexual fora da família e a maiores mudanças na formação
das famílias. Tudo isto traduzido a indicadores como o crescimento de lares chefiados por mulheres, aumento das separações e divórcios, o aumento da esperança de vida de um lado e redução da
fecundidade de outro, vem modificando as relações de poder entre os membros que compartem
a mesma unidade doméstica ou fazem parte da rede de parentesco.
54 maria gabriela hita
um jogado fora pela sociedade, que não tem lugar na casa ou família onde a
dominância seria feminina.
A ausência masculina na vida quotidiana, por um lado e a rígida segregação ideológica de papéis sexuais na moralidade popular, por outro sobrecarrega ainda mais a mulher de trabalho que, não podendo contar com o
apoio de uma relação mais igualitária com o marido, busca apoio em outras mulheres da rede de parentesco mais próxima. É normal filhos casados
continuarem morando com os pais ou se mudarem para uma casa nas redondezas, facilitando, assim, o contato contínuo e as trocas de favores. Das
redes de parentesco, os pobres18 podem obter apoio material em momentos
de crise, apoio moral, troca de serviços e cuidado com crianças. Nessa importante estrutura de solidariedade e reciprocidade, as mulheres são as peças
centrais. São quem principalmente cultivam e mantêm vivas as relações com
parentes e vizinhos mediante visitas e troca de pequenos favores. Estas redes
de relações funcionam como estratégias sociais, como importantes redes sociais que permitem enfrentar estressores da pobreza de forma mais efetiva.
A interessante hipótese de Woortmann sobre a centralidade da mulher e
fragilidade do homem em setores populares é insuficiente para entender a
vida quotidiana dos moradores do bairro estudado que não se apresenta de
modo tão unilateral. A presença da moralidade do modelo tradicional de família abordada nos trabalhos de Sarti (1996), Duarte(1986) e DaMatta (1978),
parece operar nas representações de muitos destes moradores como meio de
ascensão social e se imiscui, confunde e interage com a realidade dando-lhe
por vezes novos significados. Se pudessem escolher, muitas preferiam ser esposas tradicionais de homens de respeito. As dificuldades em cumprir o sonho
da casa própria e obter trabalho estável e bem pago constituem um dos principais obstáculos para alcançar esse ideal de família, em alguns dos casos, mas
não em todos. Sarti, em extremo quase oposto a Woortmann, acentuará a
presença e permanência do modelo hierárquico patriarcal na moralidade popular. Ambos os autores privilegiam níveis de realidade distintos: Woortmann
mais as práticas e Sarti muito mais as representações. E ambos pesquisam
contextos regionais bem distintos.
Uma postura mediadora entre ambas as perspectivas talvez seja a de
Alba Zaluar (1982), que reconhecendo a perda de autoridade masculina e
18
E dos ricos ou classes médias também, como mostram os trabalhos de Segalen (1981), na França,
Miriam Lins de Barros (1987), Jeni Vaitsman (1994) e Gilberto Velho (1986), no Brasil.
a casa das mulheres 55
a tendência a uma organização mais matrifocal de muitos lares populares,
entretanto, não despe totalmente o homem urbano e pobre de autoridade
como o fez Woortmann, que o considera um jogado fora. Zaluar (1982) considera que a presença de uma autoridade masculina não é descartada e
dispensável nestes arranjos onde o pai não está presente para exercer seu
papel, em geral o filho mais velho ou irmão da mãe pode ser chamados a representar a figura da autoridade masculina, tendência que foi bastante observada no campo de estudo da comunidade em foco. Relevante, no escopo
deste trabalho, é conciliar e integrar os dois níveis de análise, que longe de
ser contraditórios ou opostos entre si, remetem a níveis de abstração e práticas diferentes. Muitas pesquisas terminam por confundir estes âmbitos
ao trabalharem, por exemplo, no nível das representações e inferir a partir
delas formas de práticas sociais.
CONSANGUINIDADE, AFINIDADE,
CONSIDERAÇÃO E CORRESIDÊNCIA
p
Um dos mais importantes critérios usados para definir e classificar aqueles
indivíduos designados como parentes é o do sangue. A ideia de parentesco
está associada, em grande medida, aos laços de consanguinidade, à ascendência materna e paterna, à colateridade e à descendência. O princípio de
sangue é um princípio classificatório que aciona mecanismos sobre a visão
do si, do nós e dos outros; do próximo e do afastado; do igual e do outro na
família, no parentesco e na sociedade em geral; mas também opera como um
princípio classificatório moral informado pelos contextos socioculturais que
são produtores de diferenças em toda e cada sociedade.
Se a essência do parentesco passa essencialmente pelo princípio do sangue,19
a sua efetividade, entretanto, parece ocorrer apenas pela consideração, afirmam
19
Segundo Schneider: “A idéia da sociedade baseada no parentesco, o idioma do parentesco, a
idéia de que o parentesco e família são a base de toda vida social, de que o parentesco é um
sistema especialmente privilegiado, que o parentesco era a primeira, ou uma das primeiras formas da vida social – todas essas idéias não fazem sentido sem a suposição fundamental de que
56 maria gabriela hita
certos autores como Marcelin (1996) e Woortmann (1987), valorizando o caráter do parentesco social ou fictício, para além do físico-biológico. Isto é, o
parente só é parente quando reconhecido como tal. Pela consideração se pode
tornar um parente consanguíneo mais próximo que outros (excluindo outros),
ou até tornar uma pessoa não consanguínea em parente, em um tipo de parente fictício, mediante adoção ou compadrio.
Entre grupos populares brasileiros as concepções de família e de parente
passam tanto pelo princípio da bilateralidade do sangue, como pelo da consideração. (DAMATTA, 1987a; MARCELIN, 1996; WOORTMANN, 1987) O
sangue remete a uma substância comum partilhada por indivíduos originados
dos mesmos pais e mães e que, pela bilateralidade, distinguem o lado paterno
e materno. Já o princípio da consideração aciona mecanismos de seleção, integração e exclusão, mediando relações de afinidade, amizade, vizinhança,
apadrinhamento ou pertencimento a um grupo, transformando o parentesco
fictício em efetivo ou operante. Ele torna relativa a eficácia do princípio do
sangue ao instituir a modalidade da escolha, através da qual o parente em princípio pode se tornar um parente efetivo ou pode também ser excluído por este
mecanismo. Esta ideia é próxima àquela de parentesco social ou fictício discutido por Schneider (1984). De forma mais explícita, aparece esta noção em
Machado (1998), Marcelin (1996), Stack (1974), Woortmann (1987) e no contexto de diversos estudos sobre grupos negros. DaMatta (1987a) também recupera a ideia de consideração. E este princípio de parentesco é essencial no
entendimento do que chamo de matriarcalidade, a ser tratado mais adiante.
Nos estudos clássicos de parentesco, pode-se observar o debate estabelecido entre duas correntes que se apresentaram por vezes como antagônicas.
Uma delas defendia a prioridade de laços de aliança/afinidade (relação matrimonial entre esposo-esposa) na formação ou origem de uma nova família
sobre os laços consanguíneos ou de descendência (relação de sangue entre
pais-filhos). A outra vertente postulava o oposto, ou seja, priorizava o domínio da descendência ou filiação sobre laços matrimoniais, indicando não
ser este último aspecto condição suficiente para se pensar em um núcleo
familiar completo. Radcliffe-Brown foi o principal expoente das teorias de
descendência. Lévi-Strauss, por sua vez, atendeu àquelas de afinidade, fao Sangue é Mais Denso do que a Água. Não há dúvida de que seja qual for o modo como forem
ordenadas, tanto a reprodução física como a social serão funcionalmente pré-requisitos para
qualquer forma de vida social.” (Schneider: 1984, p.15)
a casa das mulheres 57
zendo das significações do casamento e aliança o centro de sua teoria. Em
estudos sobre a Casa (maison), entretanto, Lévi-Strauss buscou ultrapassar
a oposição do par filiação/aliança, pois Casa, como visto, é um termo que
cobre uma série de práticas familiares, da domesticidade e do parentesco e
inclui, muitas vezes, ambos os princípios. Por sua vez, o espaço doméstico e
privado da casa (corresidência) tem sido outro dos princípios privilegiados
por várias perspectivas teóricas no estudo das regras do afeto e de valores
familiares e é uma categoria central deste estudo para compreender a matriarcalidade, modo de organização familiar centrado na díade mãe-filhos,
em que os laços de consanguinidade e os da descendência/ascendência têm
prioridade sobre os de afinidade e alianças.
Durante décadas, o modelo nuclear isolado de família norte-americana,
aquele desenvolvido na teoria de Parsons (1956) – altamente influenciado
pelas perspectivas de Malinowski (1963) e Radcliffe-Brown (1960, 1973) – foi
tratado pelos estudos de família como o modelo universal contemporâneo e
o mais desenvolvido em sociedades modernas. Esse é um modelo que articula
poderosamente a ideia de afinidade e consanguinidade, mas que tropeça em
certo etnocentrismo quando busca defender sua pretensa universalidade e hegemonia, especialmente em sociedades modernas industrializadas e ocidentais. Assim, desde tais teorias, é perceptível a tendência em considerar demais
modos de organização familiar como variações deste modelo de família, tratado por certas disciplinas mais normativas como padrão, ou modelo típico
ideal, sem maiores problematizações de tudo o que isto indica. Para os estudos
apresentados neste livro, o problema com esta forma de abordar questões de
parentesco ou famílias é que se pode encobrir ou entender outros arranjos
domésticos diversos ao nuclear como desvios do modelo tido como padrão.
Neste livro, busco desconstruir alguns supostos de estudos de famílias que se
baseiem nesses pressupostos ao flexibilizar e problematizar certas visões e operacionalizações de alguns estudos realizados em campo.
A partir dos anos 1960 e 1970 do século XX, novos estudos da família na
História, Demografia e Ciências Sociais, em escolas de pensamento europeias
especialmente, trouxeram inovações teórico-metodológicas no modo de estudar o passado e o presente que questionam teses validadas sobre o desenvolvimento da família ocidental, como por exemplo as de ser o modelo de estirpe e de famílias tronco da Europa pré-transicional o hegemônico ou único,
naquela fase histórica ou certos contextos europeus. Outro questionamento
58 maria gabriela hita
refere-se à ideia de que o processo de transição para sociedades modernas tivesse respondido sempre a um mesmo tipo de evolução, supostamente mais
linear. (ANDERSON, 1984; LASCH, 1991) Em estudos sobre o presente passaram igualmente a criticar o suposto de ser o modelo de família nuclear americano o padrão hegemônico, único ou estágio superior da evolução do parentesco na modernidade. Nessas diversas e, de algum modo, correlacionadas
visões sobre o desenvolvimento da família, parte-se de um ultrapassado e problemático pressuposto: o de certo evolucionismo social e ideia de progresso
dos quais busco me afastar.
Nesta direção, dentre outros dos importantes debates, cabe citar os do revisionismo socioantropológico das últimas décadas que tendeu a se centrar
em três questões básicas: a) a da redescoberta da família extensa; b) o renascimento do amor romântico (fortemente estigmatizado por patologistas sociais) e c) um ataque liberal à família nuclear, considerada a fonte de grande
parte das patologias da sociedade contemporânea, propondo a supressão
da socialização (famílias de casais sem filhos) e maior flexibilidade nas relações de conjugalidade. (LASCH, 1991) Desde então, um novo olhar sobre o
campo epistemológico passou a repensar formas como se tratavam e definiam as principais categorias de análise. De um modo quase geral, estudos
caminharam na direção de ver a família no plural e não mais através de um
único padrão. Assim, enquanto os trabalhos anteriores tendiam a tomar arranjos distintos de família – quando estes eram detectados – como formas
desviantes, incompletas ou parciais do modelo aceito como padrão, a nova
leva de estudos passou a desenvolver olhares mais atentos, buscando compreender a partir deles próprios diferentes tipos de arranjos, sem subsumi-los
ou compará-los com os considerados padrão. Dos três tipos de críticas citadas
por Lasch é a primeira delas, a redescoberta da família extensa, a que melhor
situa o tema dos resultados desta pesquisa sobre famílias negras matriarcais.
Atacando a ideia de isolamento da família nuclear defendida pelo modelo de família parsoniano, diversos estudos indicam que, em algumas sociedades, o papel do parentesco continua sendo mais importante do que se pensava, especialmente em bairros operários, onde as dificuldades econômicas
impedem que filhos adultos (ao inicio de suas vidas conjugais ou iniciando
sua procriação) tenham os próprios lares, sendo muitas vezes forçados a continuar morando com os respectivos pais, mediante a corresidência de distintos núcleos e gerações em uma mesma casa.
a casa das mulheres 59
Por sua vez, estudos sobre redes sociais e de parentesco no mundo inteiro
(especialmente na pobreza) apontam que muitas famílias procuram se estabelecer e viver muito próximas de sua parentela; particularmente, que as
filhas mulheres tendem a viver muito perto das mães, desenvolvendo complexas redes de interações, trocas e ajuda mútua, fundamentais para a sobrevivência de cada grupo familiar. Durante algum tempo, segundo estudos
realizados no Caribe e nos Estados Unidos, essa tendência, denominada por
alguns de matrifocalidade, foi identificada como padrão vigente em famílias
negras. (CLARKE, 1972; MARCELIN, 1996; SLENES, 1988, 1999; SMITH,
1956, 1973, 1996; STACK, 1974; WOORTMANN, 1987; GONZALEZ, 1979)
Entretanto, conforme vem sendo apontado por extensa bibliografia a partir
de 1970, a matrifocalidade extrapola a esfera de ação de grupos e famílias
negras. (BOTT, 1976; DURHAM, 1978; FONSECA, 2000; SEGALEN, 1981)
E se o tema das redes sociais mobilizadas por mulheres é um dos elementos
mais mencionados na maioria dos estudos, certamente não foi ou é o único,
todavia o mais usados para identificar e medir a matrifocalidade. No escopo
desta publicação, este tema aparece como o que privilegiei no foco analítico
deste estudo.
MATRIARCADO, MATRIFOCALIDADE OU
MATRIARCALIDADE?
p
Uma das primeiras e mais citadas referências à noção de matriarcado são a
dos estudos de Morgan (1891,1871) e Bachofen (1861) apud Engels (1984) associadas a uma ideia de sociedades matriarcais primitivas. No século XIX,
houve polêmica sobre a origem e evolução da família que opôs a corrente
patriarcalista à de teóricos do matriarcado.20 Se no início da controvérsia os
matriarcalistas se apoiaram na suposição da precedência histórica de sociedades matriarcais, esta tese foi a seguir habilmente deslocada e desacreditada
20
Ver também artigo de Bamberger (1974): The Myth of Matriarchy: Why Men Rule in Primitive
Society?
60 maria gabriela hita
pela corrente contrária ao defender a universalidade do casamento monogâmico. Esta ideia, associada a outras que emergiam com estudos do tabu de
incesto, foi poderosa no combate de teses matriarcalistas que se apoiavam
na suposição de existência de certa promiscuidade sexual entre os primeiros grupos humanos. A defesa da universalidade do casamento monogâmico se apresentava em teorias iniciadas por Westermack por volta de 1891 e
em as principais teses da Antropologia Funcional dos anos 1920. (LASCH,
1991; MALINOWSKI, 1963 [1913]; RADCLIFFE-BROWN, 1973; VALE DE
ALMEIDA, 1995) Não pretendo ressuscitar esses velhos debates, nem adotar
um dos lados da polêmica, mas problematizar que as teses que destruíram os
defensores do matriarcado precisam ser igualmente questionadas.
Parte das teses patriarcalistas foi retomada no modelo funcionalista dos
anos 1950. No livro organizado por Parsons e Bales (1956): Family, Socialization
and Interaction Process, Zelditch (1956) procurou defender a tese da universalidade do modelo familiar nuclear, mesmo em sociedades de descendência
matrilinear como as citadas nos estudos de Malinowski. Examinando as etnografias do período, Zelditch (1956) argumenta ser possível verificar que
nos sistemas matrilineares descritos por Malinowski, Radcliffe-Brown, e outros, que a autoridade do marido é subordinada à do irmão da mãe quando
se considera um segundo sistema social (a família extensa ou a linhagem);
entretanto, ao interior da família nuclear, o marido atuaria sempre como
provedor e líder instrumental. Para autores desta vertente, o papel expressivo da mãe e o instrumental do pai – mesmo que se trate do pai social e não
biológico – em todas as culturas conhecidas, seria inquestionável.21 Essa postura é similar à defendida por Malinowski (1963, apud MARCELIN, 1996) no
extrato a seguir e por Radcliffe-Brown (1973) no seguinte. Os extratos dos
respectivos textos apresentam definições do que seja a família elementar que
21
Postura que vem sendo criticada por ser etnocêntrica e por continuar construindo as categorias
de sexo e papéis sexuais de forma naturalizada e dissociadas das relações de parentesco. A análise
cultural de Schneider (1984) teria sido pioneira na Antropologia no seu âmago de buscar desnaturalizar e desbiologizar alguns destes conceitos (veja-se o artigo de Adam Kuper (2002), sobre
Schneidder, com título Biologia como Cultura). Também produções do feminismo das últimas
décadas avançam na mesma direção. Esses estudos apontam que as fronteiras analíticas entre
as categorias de sexo e as relações de parentesco se diluíram e revolucionaram as formas de
conceber e entender-se como são construídas essas relações entre os grupos sociais e que exigem novos enquadramentos analíticos para abordar estes temas. (ALMEIDA et al., 2002; BUTLER,
1990; HARAWAY, 1991; LAQUEUR, 1994; STRATHERN, 1986, 1995; VALE DE ALMEIDA, 1995;
YANAGISAKO,1987).
a casa das mulheres 61
tem sustentado e fundamentado matriz da visão ocidental sobre família até
o presente:
A unidade da estrutura a partir da qual se elabora um sistema de parentesco é o grupo que denomino família elementar. Ele consiste em um
homem, sua esposa e seus filhos [...]. A existência da família elementar
cria três tipos especiais de relações sociais, a relação entre pais e filhos,
a relação entre os filhos de um mesmo leito e a relação entre marido
e mulher enquanto genitores. [...] Os três tipos de relação que existem
na família elementar constituem o que denomino como primeira linha.
(RADCLIFFE-BROWN, 1973, apud MARCELIN, 1996, p. 125)
Nenhuma criança teria sido posta no mundo sem que um homem, e
só ele, assumisse a posição de pai sociológico, quer dizer, a de guardião e protetor, de laço masculino entre a criança e o resto da sociedade. [...] Um grupo constituído de uma mulher e seus filhos é uma entidade legalmente incompleta. (MALINOWSKI, 1963 apud MARCELIN,
1996, p. 125)
Estas citações sintetizam a matriz comum e bastante poderosa que funda
a concepção ocidental dominante sobre família e parentesco de sociedades
contemporâneas, bastante generalizada, tanto no senso comum quanto nas
Ciências Humanas, tomada como parâmetro para analisar e avaliar outros
modelos de família. Tal matriz repousa sobre o postulado estrutural da universalidade deste tipo de família e da união monogâmica (elementar ou nuclear biológica), constituída pela presença da figura dos dois pais (ou genitores) e respectivos filhos, onde cada um dos componentes exerceria funções
definidas com variações de sexo e geração.22
Radcliffe-Brown (1973), buscando esclarecer certas confusões do campo
com termos como os de matrilinealidade e o de matriarcado, oferece, a seguir,
uma clara e bastante útil distinção de alguns desses conceitos que retomarei
adiante na redefinição da noção que proponho de matriarcalidade (e que eu
aplico a famílias e não a sociedades), mesmo quando a intenção deste autor
fosse justamente a contrária à minha intenção, a de afirmar este conceito,
22
Foi somente com o aparecimento da obra avassaladora de Schneidder em 1984 (A Critique of the
Study of Kinship) que este postulado passou a ser sistemática e irrevogavelmente questionado.
É quando Schneider passa a ser reconhecido como o autêntico sucessor de Levi-Srauss no campo de estudos de parentesco nas suas revolucionarias ideias e influências que vai exercer em
teorias pós-modernas e feministas mais recentes.
62 maria gabriela hita
pois ele buscava desacreditar, como também o fez Malinowski, teses que sustentassem ou defendessem a existência de sociedades matriarcais na África.
Ele esclarece tais confusões no trecho a seguir:
Em todas as sociedades, primitivas e adiantadas, o parentesco é necessariamente bilateral. O individuo é relacionado a certas pessoas através de seu pai ou para com outros através de sua mãe, e o sistema
de parentesco da sociedade revela o que seria o caráter de seu trato
com os parentes paternos e maternos respectivamente. Mas a sociedade tende a dividir-se em segmentos (grupos locais, linhagens, clãs,
etc.) e quando o princípio da hereditariedade é admitido, como o é
no mais das vezes, como o meio de determinar a comunidade de um
segmento, então é preciso escolher entre descendência materna ou
paterna. Quando uma sociedade é dividida em grupos com uma norma de que os filhos pertencem ao grupo do pai temos a descendência
patrilineal, ao passo que, se os filhos sempre pertencem ao grupo da
mãe, a descendência é matrilineal. Há, infelizmente, grande liberdade no emprego dos termos matriarcal e patriarcal, e por este motivo,
muitos antropólogos recusam-se a empregá-los. Se não podemos absolutamente passar sem eles, devemos em primeiro lugar dar definições exatas. Uma sociedade pode ser chamada patriarcal, quando a
descendência é patrilineal (isto é, os filhos pertencem ao grupo do pai)
o casamento é patrilocal (isto é, a mulher muda-se para o grupo local do marido); a herança (ou propriedade) e a sucessão (hierárquica)
são em linha masculina, e a família é patripotestal (isto é, a autoridade
sobre os membros da família está nas mãos do pai ou seus parentes).
Por outro lado, uma sociedade pode ser chamada matriarcal, quando
a descendência, herança e sucessão estão na linha feminina, quando o
casamento é matrilocal (o marido muda-se para a casa de sua mulher),
e quando a autoridade sobre os filhos é exercida pelos parentes da mãe.
(RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 35, grifo nosso)23
O tema do matriarcado é retomado de modo bem diferente e mais próximo
ao do interesse desta pesquisa em debates dos anos 1940 sobre a especificidade, ou não, de famílias negras nos EUA, Caribe e Américas. Vale mencionar
23
Ver também Radcliffe-Brown e Forde (1960[1950]).
a casa das mulheres 63
aqui o polêmico e conhecido debate entre Frazier e Herskovits,24 e as controvérsias sobre o relatório de Rustin Moynihan de 1956, publicado em 1967.25
O debate sobre família negra se polarizou nesse período em dois tipos de
respostas frente ao seguinte tipo de questão: qual é a parte da herança africana
na constituição do negro das Américas? O primeiro tipo de respostas, desde
uma postura estrutural funcionalista ergueu-se em torno das teses do sociólogo negro norte-americano, Franklin Frazier (1939). Esta postura defendia que
a família matriarcal (centrada na díade mãe-filhos e marcada pela ausência do
pai) dos negros americanos seria expressão de desorganização familiar resultante da experiência da escravidão. Preocupado com o problema da assimilação dos negros na sociedade americana,26 Frazier, que era negro, procurou
se opor a discursos racistas do final do século XIX e princípio do XX nos seus
estudos de práticas familiares negras, explicando-as como disfunções do sistema de parentesco e como consequência da expressão da desorganização proveniente do sistema escravocrata e não de aspectos de essencialidade da raça
negra. Para ele, se o negro está sem família hoje, é por causa de seu passado escravo. Durante a escravatura, o negro fora assimilado pela família do senhor e
também, devido às condições da escravatura, fora impedido de viver as dimensões de uma família normal, com pai, mãe e filhos. Frazier analisou negativamente o passado escravo a partir do pressuposto de considerar ser normal um
modelo de família nuclear branco ocidental.
A segunda postura, baseada nas teses de herança negra e na reinterpretação culturalista do antropólogo Melville Herskovits (1941), que era branco,
enfatizava a especificidade do passado africano dos negros americanos e, ao
contrário de Frazier, defendia que a família matrifocal (não exatamente o que
chamo de matriarcal) é expressão de heranças africanas. Herskovits, herdeiro
de Franz Boas, procurou revalorizar o passado escravo e africano ao apontar
a necessidade de se remontar à África para apreender os sentidos das práticas
familiares dos negros americanos. Ele foi um dos maiores propulsores da
24
Tanto Herskovits como Frazier – assim como a também americana Ruth Landes, que escreveu
“Cidade das mulheres” nessa mesma época – fizeram trabalho de campo no Brasil e visitaram
Salvador. Eles foram contemporâneos e do mesmo círculo de relações de Arthur Ramos e Edson
Carneiro, importantes pensadores do tema racial no Brasil. Parte desta polêmica remete aos trabalhos de campo desses autores na Bahia. Ver Healey (1996).
25
Debatia-se naquele momento sobre a existência ou não do matriarcado negro, e se seria este modelo matriarcal de família uma característica própria de grupos negros ou da pobreza (LASCH, 1991).
26
Ver também Parsons (1993).
64 maria gabriela hita
área de estudos “afro-americanos” em centro américa e Estados Unidos, especialmente. O que eu chamo de instabilidade conjugal, e seu efeito sobre
famílias centradas na relação “mães-filhos” de grupos negros, foi vista por
Herskovits (1941) como sendo motivada pela herança dos costumes africanos
e identificados por Frazier como aculturação e rompimento com valores culturais originários da África. A tradição culturalista de Herskovits dedicou-se ao estudo das práticas culturais (religião, folclore, parentesco, etc.), enquanto o tema da organização familiar dos negros foi um terreno quase que
exclusivo, até os anos 1970/80, do funcionalismo estrutural, que entendeu os
temas de matriarcado negro, isto é, a ausência do pai, a centralidade da díade
mãe-filhos e instabilidade conjugal (variáveis tidas como características marcantes de grupos familiares matriarcais negros em várias das pesquisas de
campo), como marcas de desorganização familiar e desvio do modelo considerado padrão e universal: o modo de organização elementar descrito anteriormente (muito próximo do nuclear descrito por parsonianos). Por isso,
durante muitas décadas, nenhuma cultura própria de comunidades negras
nem seus modos de habitar e estar no mundo foi tomada de modo positivo.
A postura de Herskovits (1941) enfatizava esse passado africano pela valorização e sobrevivências de africanismos em práticas e costumes de negros
americanos, entre outras, ele cita as de conjugalidade poligâmica e patriarcal
predominantes na costa oeste africana. Em termos concretos, tratava-se da
relação de um homem com distintas mulheres com as quais tinha filhos e
que viviam em casas separadas, com suas mães. De uma perspectiva analítica
distinta a esta, se pode falar de vários lares matrifocais onde o homem circula. Diferente de Ruth Landes, Herskovits não se perguntou, por exemplo,
sobre a centralidade e poder que podem ter estas mulheres em muitos desses
arranjos matrifocais no contexto baiano. Essas ideias do empoderamento feminino o escandalizaram, a ele e seus colegas da época, que se opuseram à
publicação do livro de Landes, considerado de pouco valor empírico e intelectual. Neste sentido, Frazier pareceu dialogar mais do que Herskovits com
os dados de Landes (ao falar como ela e usar o termo matriarcado), ainda
que ambos interpretaram essa realidade de modo bem diferente à inovadora
etnografia de Ruth Landes, ideias que na época eram totalmente desconhecidas e não participaram ativamente desta polêmica. As teses de Herskovits
(1941) não tiveram impacto inicial, e as de Frazier foram as que dominaram
a casa das mulheres 65
durante muito tempo no imaginário geral. Elas impugnavam à ideia de matriarcado significados de patologia social, carência e anomia.
Sobre o legado africano nos costumes e campo religioso, estudos nacionais
mais recentes indicam que não se pode falar simplesmente de africanismos,
já que se tratou de adaptações e recriações de um conjunto de distintas matrizes culturais africanas no Brasil, resultantes das influências de distintas nações africanas, mas que também está muito distante de se tratar de um simples processo de aculturação e adaptação da escravidão a valores dominantes
da sociedade branca colonial. Bibliografia recente articula, de certo modo,
ambas as posturas com diferentes matizes. (LIMA, 2003; HARDING, 2000)
O termo matriarcado ou ideia de organização familiar matriarcal aparece em estudos mais clássicos dos anos 1940, como o livro de Ruth Landes
(1967) escrito em 1947, e em estudos sobre a família-de-santo e o mundo
do Candomblé, na Bahia (LIMA, 2003; CARNEIRO, 1936). No restante da
Antropologia e Sociologia e especialmente depois dos anos setenta, houve
uma preferência geral no campo da família para o uso do termo de matrifocalidade ou famílias matrifocais, usado por alguns dos autores de modo
ambíguo, como sinônimo de matriarcado, em alguns casos, ou de modo bem
diferente a ele. A noção de matriarcado caiu em desuso e passou a se preferir
o uso da ideia de matrifocalidade (ou uxerolocalidade) em lugar de matriarcado, com algumas importantes variações semânticas. (MARCELIN, 1996;
SARDENBERG, 1998; SLENES, 1999; STACK, 1974; WOORTMANN, 1987),
podendo até ser expandido agora para além de grupos negros. (BOTT, 1976;
FONSECA, 2000; LEAL; FACHEL, 1998; SEGALEN, 1981)
Esse abandono da noção de matriarcado possivelmente esteve associado
aos significados negativos que lhe eram impregnados provenientes tanto
desse debate dos anos 1940 sobre famílias negras nas américas, quanto dos
anteriores, já superados. Não é interesse deste livro resgatar velhos e ultrapassados sentidos dado ao termo, tanto pelos matriarcalistas da época de
Bachofen, nem na visão vigente à década de 1940. Contudo, considero que
descartar o termo sem crítica que busque resgatar o valor remanescente
desses debates é problemático, antes do que mais confortável e conveniente.
Ao se rejeitar essa terminologia evitava-se recair em posturas que essencializam o modo de organização doméstica matriarcal como sendo próprio ou
mais típico de grupos negros. Tampouco os estudos que embasaram esta publicação compartilham deste pressuposto.
66 maria gabriela hita
Mas a opção pelo termo de matrifocalidade, conforme mostrarei, e quando
aplicados a casos como os deste estudo, pode conduzir a novas ciladas teórico-metodológicas, por se tratar de uma terminologia, por sua vez, mais ampla e
difusa, que passou a abarcar os mais variados tipos de situações domésticas nas
quais estão inseridas mulheres em situações muito distintas. Durante algum
tempo e entre alguns dos estudiosos, o interesse e debate propriamente sobre
famílias negras foi abandonado ou deslocado e foi se perdendo, em certa medida, a discussão sobre a especificidade e historicidade do fenômeno racial,
ou a função, importância e efeitos que experiências como a da escravidão de
grupos africanos teria exercido nas manifestações contemporâneas de distintos modos de organizar o modo de habitar e vivenciar de grupos domésticos afrodescendentes nas Américas.
A virada epistemológica observada nos estudos sobre família nos anos
1970 constata que o padrão descrito na díade mãe-filhos, ressaltado nos estudos de matriarcado negro, também se encontrava em outros grupos associados à pobreza. É notória a preferência nas últimas décadas pelo uso do
conceito matrifocalidade, que passou a ser associado à importância e ressurgimento de teses sobre famílias extensas e centralidade das redes sociais
e de parentesco nos estudos sobre pobreza, em que as mulheres desempenham papéis essenciais. Os posicionamentos polarizados de tratar estas dinâmicas como positivos modos de escapar ou reproduzir a pobreza voltaram
a se atualizar em novos debates.
Muitos estudos sobre pobreza reforçavam estereótipos populares de classes
baixas e de famílias negras nos EUA como matrifocais, desviantes e desorganizadas. Devido a esses vieses, poucos deles, antes dos anos 1970, conseguiram
observar famílias negras como de fato eram e reconhecer interpretações dos
próprios negros sobre seus padrões culturais e experiências. Estudo polêmico
sobre a pobreza foi o de Oscar Lewis (1975 [1966]) em Porto Rico, que explicou
a noção de Cultura da Pobreza em termos de presumidas qualidades negativas
ao interior da cultura: associando-a a desorganização familiar, desintegração
grupal, desorganização pessoal, resignação e fatalismo. Esta concepção presumia que a subcultura da pobreza desapareceria quando fosse anulada a totalidade de suas qualidades negativas. Muitas foram as críticas elaboradas contra
certo racismo implícito de teorias apoiadas na noção de cultura da pobreza,
culpando as vítimas de sê-lo. Os ensaios de Hannerz (1969), Liebow (1967) e
Valentine (1968), entre outros, teriam mudado o conceito de cultura da pobreza
a casa das mulheres 67
de O. Lewis, quem destacava as características matrifocais em suas pesquisas,
questionando se uma cultura que se autoperpetua da pobreza existiria entre
negros pobres dos EUA. Eles demonstraram que muitos dos aspectos eleitos
para caracterizar a cultura da pobreza – como desemprego, baixos salários,
quartos super lotados – eram simplesmente definições de pobreza em si mesma
e não de uma cultura distinta.
Por sua vez, em postura diferente, a principal crítica erguida por Carol
Stack (1974) à maioria dos estudos da época sobre famílias negras e pobreza
nos EUA é de que muitos deles, preocupados em analisar correlações entre
baixos empregos, qualificações e indicadores econômicos, não se perguntavam, por exemplo, que papel cumpriam as redes de parentesco ou vizinhança nessas comunidades negras norte-americanas; ou quem socializava
as crianças nascidas no gueto, ou mesmo como eram definidos critérios
sobre a qualificação da mulher para procriar ou criar filhos, ou ainda qual
era a função adaptativa de uniões sexuais e múltiplas redes de parentesco na
casa, etc. Pelo fato desses estudos não haver olhado para as respostas a essas
questões, considerava Stack, muitos deles se permitiram apologizar sobre os
modos de vidas dos negros, sem reconhecer o verdadeiro e positivo conteúdo
da vida cotidiana dos pobres ou das instituições adaptativas desenvolvidas
no gueto para lidar com a pobreza.27
Um clássico dos estudos de matrifocalidade em comunidades com forte
concentração de afrodescendentes é o de Raymond Smith nas Guianas britânicas (Caribe) nos anos 1950 e 1960. Para Smith (1996 [1956, 1973]), a noção de
família matrifocal não devia ser confundida com a de chefia feminina, pois
se trata de coisas distintas. Tampouco entendia a família matrifocal como
causadora da pobreza; para ele, este sistema precisa ser compreendido como
parte integral de um sistema de relações de classe, raciais e de status social.
Suas pesquisas sobre famílias matrifocais e negras no Caribe começaram a
ser publicadas em 1956, com subsequente amadurecimento de algumas de
suas leituras, em trabalhos de 1963, e 1973. Em 1996 se republicaram as principais contribuições deste autor de períodos anteriores.
27
A perspectiva de redes sociais é usada por Stack para interpretar a base de laços interpessoais
entre aqueles indivíduos mobilizados para resolver seus problemas domésticos cotidianos, vista
como importante e estável estratégia de sobrevivência na pobreza. Ela sugere que uma das vantagens da análise e atenção nos estudos de redes sociais é a de que o pesquisador pode rejeitar a
mera categorização desses sistemas sociais como desorganizados e permite explicar um conjunto particular de relações desde vários pontos de vista.
68 maria gabriela hita
Na pesquisa de 1956, ele já identificava os quatro principais aspectos que
caracterizariam sua compreensão do que eram as famílias matrifocais em região de Guianas inglesas (Caribe ou West Indies), a saber:
A. Os grupos de parentesco tendem a ser matrifocais no sentido em
que uma mulher, na posição de “mãe” é a líder de fato do grupo, e ao
inverso do pai-marido, que pode ser líder jurídico do grupo (se estiver
presente), é normalmente marginal nas complexas relações internas
do grupo. Por ‘marginal nós queremos dizer que relativamente ele infrequentemente está associado a outros membros do grupo, e que é
na franja dos laços efetivos que mantem o grupo junto’.
B. Grupos domésticos normalmente se iniciam quando um homem e
uma mulher entram em relação conjugal (legal ou consensual) e estabelecem casa juntos em um lar separado. Algum ou ambos parceiros podem ter crianças que tenham nascido antes do estabelecimento
desta união conjugal
C. Durante o período em que uma mulher cria os filhos ela poderá estar mais dependente de seu parceiro para sobrevivência económica e
estar mais sujeita a sua autoridade e controle, mas quando seus filhos
vão crescendo ela se torna mais independente e adquire maior segurança em seu status como ‘mãe’.
D. Casamentos consensuais são uma característica cultural de classes
baixas, e podem ser vistos como um desvio tolerado das normas do
sistema social total. A natureza não legal desse laço reflete a resistência
a estabelecer um limite conclusivo e está de acordo com a ênfase primaria sobre a relação da díade mãe-filhos, antes que com a da relação
conjugal. (SMITH, 1996, p. 14-5)
Já em artigo de 1973, A família Matrifocal, Smith dialoga com dados de pesquisas de Fortes, em Gana e com os Ashanti, para refletir sobre os achados
de sua etnografia no Caribe e efetuar, a partir do diálogo com o mestre,
sua derivação do que entende pelo termo família matrifocal. Ele encontrou,
como Fortes em outros contextos, muitos lares chefiados por mulheres.
Mas menciona que uma das diferenças mais importantes é que no caribe
não se encontravam grupos de descendência unilineal. Pelo que Smith conclui que, nas Guianas, a situação encontrada difere nestes e em outros aspectos da interpretação e leituras de Fortes, porque raça, classe social e laços
a casa das mulheres 69
de não linhagem tiveram maior peso na definição da posição em sistemas
“externos” ao do domínio doméstico. Curiosa foi a confissão de Smith que
revelou que suas pesquisa sobre a Família negra nas Guianas foi muito esquemática e que não chegou a usar na sua amostragem casos com presença
de elementos como elevados graus de ilegitimidade, lares chefiados por mulheres ou elevados grau de instabilidade conjugal, mostrando que sua definição de matrifocalidade incluía a não presença desses elementos (SMITH,
1956, p. 240-54, apud SMITH, 1996, p. 42). Diferente dele, minha etnografia
sobre famílias matriarcais, adiante, se apoia nesses tipos de indicadores.
De modo similar ao proposto em trabalhos de Klass Woortmann, na Bahia,
como analiso adiante, Smith (1996, p. 42) afirmava que:
Aonde a mulher havia sido previamente o foco de laços afetivos, ela
agora passa a ser o centro da coalisão de decisões económicas com
seus filhos. Esse aumento da qualidade ‘matrifocal’ é vista independente de se o marido-pai esteja ou não presente, e apesar da elevada proporção de mulheres que são chefes de lar, o que aumenta com a idade
delas – principalmente devido à viuvez – a matrifocalidade é uma propriedade dos lares tanto chefiados por homens como por mulheres.
E ainda acrescenta:
Ao escolher o termo ‘matrifocal’ de preferencia aos mais descritivos
termos como os de ‘matri-centrado’, ‘matriarcal’, ‘dominação feminina’, ‘família de avós’ e assim por diante, eu especificamente penso considerar que as mulheres, em seu papel de mães que se transformam
no foco dos relacionamentos, antes do que ser a cabeça do lar, em si
mesmo. De fato, é parte central do meu argumento que a família nuclear é tanto uma norma ideal, quanto um real estagio do desenvolvimento de praticamente todos os grupos domésticos. (SMITH, 1996,
p. 42, grifo do autor)
Outro estudo clássico com população afrodescente em Centro América
é o de Nancie L. Gonzalez (1970), que discute a amplitude de usos do termo
matrifocalidade e oferece-lhe uma definição. Ela mostra como alguns estudos usam ideia de matrifocalidade para se referir à autoridade e toma de
decisões sobre dinheiro e casa; enquanto para outros matrifocalidade se usa
para identificar chefia feminina de lares, quando a mulher é a provedora
principal e há ausência da figura do marido/esposo provedor; outros estudos
70 maria gabriela hita
simplesmente descrevem o que sejam famílias matrifocais ou consanguíneas
(redes de parentesco), dois termos que se relacionam em muitos casos, mas
que Gonzalez prefere separar, pois, para ela nem toda família consanguínea
é matrifocal. Apesar de que a grande maioria deles o ser, afirma, em contexto
de afrodescendência americana, como os por ela estudados.
Por meio de uma análise estrutural e funcional do termo, González considera, como Smith, que a célula expressa na diade “mãe-filhos” (a qual pode
ou não contar com a presença da figura pai/esposo) é a central, pois é através
dela que se definem as fronteiras e demais relações de parentesco. Na matrifocalidade, as outras relações de parentesco tendem a ser definidas em
termos da relação original entre mães e filhos. Os homens, como em sistemas consanguíneos, são centrais, mas não importa em que papéis: eles
podem exercer o papel de filhos, irmãos, tios, sem ser necessário que seja o
de pai ou esposo. A família matrifocal é vista por ela como um modo alternativo de organização doméstica ao de lares com chefes homens. E aponta
a centralidade das crianças como importante indicador na detecção de relações matrifocais, permitindo aos pesquisadores se perguntarem de quem
elas são filhos, quem as mantem e tem autoridade sobre elas, etc. O modo
como operam as redes de parentesco e vizinhança, na matrifocalidade, são
apontados por ela também como importantes modos de manutenção não
apenas de uma casa individualmente, mas várias ao seu redor, ao promover o
desenvolvimento de novas estruturas e lares, pelas relações de solidariedade
estabelecidas entre elas. Para Gonzalez, o modo como o termo vem sendo
usado pela maioria de antropólogos e sociólogos se refere ao papel dominante das mulheres em estruturas concretas como as famílias, grupos domésticos, vizinhanças, comunidades, associações voluntarias, etc.28
Na mesma direção, no Brasil, Woortmann (1987) recupera o termo para
tratar das práticas e formas de organização de relações de parentesco em
região do Nordeste Brasileiro, nos seus estudos do bairro de Alagados com
populações predominantemente afrodescentente, onde há forte destaque a
Díade Mãe-Filhos descrita em pesquisas do Caribe. Woortmann (1987) expande a extensão do termo até mesmo para arranjos nucleares completos;
na Bahia pobre que ele estudou, a instabilidade conjugal organiza e reproduz relações a partir e através das mulheres, aquelas que ficam sempre
com as casas e filhos enquanto os homens são os que tendem a circular.
28
Ver também González (1979).
a casa das mulheres 71
Na visão de Woortmann, nem sempre um lar matrifocal seria chefiado por
uma mulher (em um momento nuclear, ou de grupo extenso, pode ser chefiado por um homem), e todos aqueles lares chefiados por mulheres seriam
classificados, em princípio, como matrifocais. Mas nem todos eles são, certamente, lares matriarcais como os que descrevo adiante. Muitas vezes, o
termo matrifocalidade é utilizado para ambos os casos (mães solteiras ou matriarcas), o que, ao meu ver, precisaria ser melhor redefinido e distinguido. Na
definição de Woortmann sobre matrifocalidade a seguir, ele introduz novos
elementos e distinções úteis:
Por matrifocalidade, ou sistema matri-centrado, quero dizer que as
mulheres em geral, e as mães em particular são os pontos focais do
sistema de parentesco. Essa matrifocalidade pode ser estrutural, cultural ou ambas, tal como sugerido por Tanner: Por estruturalmente central quero dizer que a mãe tem algum grau de controle sobre os recursos
econômicos da unidade de parentesco e é criticamente envolvida em processos de tomada de decisões relacionados ao parentesco. O componente
estrutural da matrifocalidade relaciona-se ao poder econômico e político
dentro do grupo de parentesco. (TANNER, 1974 apud WOORTMANN,
1987, p. 288, grifos do autor)
[...] É mais do que certo que a família matrifocal não se restringe aos
pobres-negros do Novo Mundo. Nem, por outro lado, são todas as famílias negras matrifocais. Mas, parece plausível que a escravidão configurou a vida familiar durante séculos, e que se registrou um certo
continuum de privação social e material da escravidão até a pobreza
marginalizante atual. A matrifocalidade na Bahia parece ser um fenômeno secular, e esta profundidade de tempo pode muito bem ter contribuído para a consistência do sistema ideológico, isto é, para o desenvolvimento de uma ideologia alternativa, adaptativa, coerente [grifo nosso].
[...] O ponto aqui não é o de que os africanismos causaram a matrifocalidade, mas o de que os elementos culturais africanos, particularmente
a organização do grupo de culto e a ideologia correspondente contribuíram para a legitimação dos padrões culturais da classe pobre, ajudando a transformar uma matrifocalidade estrutural numa centralidade
cultural. (WOORTMANN, 1987, p. 296-297, grifo do autor)
Em direção similar, diversos autores têm pontuado que o agrupamento
ao redor do culto aos orixás e seus ancestrais parece ser um dos principais
motivos a partir do qual logravam se reunir os africanos e seus descendentes
72 maria gabriela hita
desde a época colonial, em práticas de resistência, religiosidade, reorganização e resignificação da identidade do negro no Novo Mundo. (HARDING,
2000; LANDES, 1967; LIMA, 1977; MARCELIN, 1996; WOORTMANN, 1987)
Estes autores reconhecem o lugar de destaque e centralidade exercido por
certas mulheres no culto do Candomblé na Bahia (matriarcas e sacerdotisas
do Candomblé); papel que outorgou bastante prestígio a algumas delas na
sociedade baiana, com força superior e caráter diferenciado do que o destaque alcançado por outras mulheres em funções ou papéis similares em sociedades matrilineais africanas. Ao que parece, a experiência da escravidão
teria permitido aos negros em contexto americano, não apenas reatualizar,
como também reinventar tradições africanas, construindo novos e diferentes significados sobre estes africanismos ou influências culturais desta
matriz afro, tal como sugerido em estudos de Herskovits revisados.
É também a partir de observações e debates como estes que proponho
reatualizar e deslocar a ideia do radical do termo matriarcado em novo conceito que mantém o mesmo radical e modifica a extensão para a de matriarcalidade, para ser aplicado aos estudos de família negra em contexto baiano
como os desta pesquisa. Com ela, viso a distinguir o novo termo de tantos
usos diversos dados à noção de matrifocalidade e debates anteriores sobre
matriarcado e matriarcado negro, outros conceitos com os quais este novo
conceito, por certo, também dialoga.
A pesquisa de Woortmann sobre religião do Candomblé sugere o estabelecimento de certos paralelos entre a experiência familiar doméstica de
descendentes de escravizados negros na Bahia com os da estrutura e relações desenvolvidas em cultos de família-de-santo (ou Candomblé). Acredito,
como eles, haver uma forte analogia e proximidade entre o que aqui chamo
de um modo de organização doméstico matriarcal com os princípios e valores encontrados nos sistemas de parentesco sagrado, do mundo e vida do
terreiro de Candomblé: um pilar importante da construção da identidade do
negro no novo mundo e na cultura baiana de modo mais concreto.
A definição de matrifocalidade de Woortmann introduz novos elementos,
como os da ideia de uma centralidade cultural, além de estrutural, da que me
aproprio para definir matriarcalidade. E, a partir deste olhar, busca resgatar a
importância do estudo da família extensa matriarcal, como modo de organização alternativo e contraponto ao nuclear patriarcal, propus o termo de matriarcalidade (resgatando a noção de matriarcado de sua raiz). Recupero nela
a casa das mulheres 73
alguns dos indicadores do conceito “matriarcado negro” (instabilidade conjugal e relação centrada na díade mãe-filhos) de estudos de anos quarenta e
cinquenta, mas desligados do etnocentrismo e caráter negativo que lhe eram
atribuídos nesse paradigma funcionalista. Também me apoiei na definição de
Alfred Radcliffe-Brown sobre sociedades matriarcais. Não rejeito a ideia de
matrifocalidade, mas a considero ampla e abarcadora do que entendo por matriarcalidade, que é uma forma específica e particular de manifestação daquela.
Nesta nova terminologia, busco diferenciar, por exemplo, famílias sem chefia
feminina ou com chefas de lar em arranjos matrifocais quando são mães solteiras, de outros arranjos familiares extensos cujas chefes são as idosas e poderosas matriarcas, como as descritas neste livro.
O modo de organização matriarcal não é exclusivo de grupos negros, nem
os caracteriza de modo especial, em contextos de pobreza, pois ele convive
com uma diversidade ampla de outros tipos de arranjos domésticos. Mas a associação deste modo matriarcal extenso ao de uma matriz cultural afro-americana descrita é central para a compreensão do que entendo por e circunscrevo
como matriarcalidade neste livro. Como sugerido por Landes nos anos quarenta e Klass Woortamann nos oitenta, intento demonstrar a possível associação entre a manutenção de uma serie de princípios e regras na estrutura de
organização doméstica com os padrões culturais encontrados na estrutura de
família de santo dos terreiros de Candomblé. Muitos têm reconhecido a herança africana nas religiões do Candomblé, mas até o momento são poucos os
estudos que correlacionam de modo mais explícito a possível associação entre
famílias de santo e profanas (grupos domésticos), e ainda que autores como
Landes (1967), Vivaldo Costa Lima (2003), Woortmann (1987) e Louis Marcelin
(1996) cheguem a insinuar, eles não chegam a desenvolver este tipo de análise.
Tampouco o farei de modo direto, mas acredito que os resultados deste estudo
permitem aprofundar sobre a plausibilidade desta hipótese.
Parto do postulado de que analisar a “instabilidade conjugal” e a “ausência
paterna” de outra perspectiva interpretativa – uma que associa estes indicadores à importância da mulher nas redes de parentesco e à centralidade da
díade Mães-Filhos – exige revelar significados que estes elementos têm nesta
lógica/ estrutura de parentesco, que são distintos das interpretações que só
viam neles patologia. Assim, entendo a matriarcalidade como forma específica e alternativa de organização familiar que precisa ser reconhecida como tal.
74 maria gabriela hita
A matriarcalidade designa esse conjunto de relações centradas na figura
da mãe, onde a mulher, que é bisavó e mãe é centro da rede consanguínea,
a pessoa através da qual passam a descendência e herança, e que exerce o
poder sobre sua casa e família. Ela é o principal foco difusor, a partir do qual
se multiplicam relações entre todos os outros membros de sua rede de parentesco que geralmente ultrapassa os limites físicos da unidade doméstica
enquanto local específico de residência (uma casa). Elas são donas (têm a
propriedade) de suas casas e dos principais recursos para a manutenção de
seu grupo doméstico; são chefes da casa e do grupo familiar, em que não é
raro encontrar vários homens adultos (e pai de outros filhos) que trabalhem
(parentes ou não). Por isso, tampouco a ausência masculina – de um esposo
– é o que determina a matriarcalidade.
a casa das mulheres 75
m
Capítulo II
organização
doméstica em contexto
de pobreza urbana
o Nordeste de Amaralina na cidade de Salvador-Bahia
O presente capítulo, a partir de bases de dados predominantemente quantitativos, abarca um olhar sobre o contexto urbano e o lugar específico ocupado pelo Nordeste de Amaralina, bairro de Salvador, estado da Bahia, onde
o estudo se desenvolveu. A este esforço analítico se soma o de tecer discussão mais focada sobre os tipos de organização doméstica e familiar e a relação ou presença do tipo matriarcal nesse contexto. O capítulo subsequente
continuará abordando o contexto de estudo a partir de metodologias predominantemente qualitativo-etnográficas, as quais se enfatizam perspectivas e
representações dos próprios moradores sobre o local, sobre si mesmos, seus
vizinhos e sobre o resto da cidade. Por meio da análise de outras representações sobre o tema da violência em diversos domínios (familiar, vizinhança,
bairro e sociedade de modo mais amplo) é indicado o modo como se processa a constituição da identidade local em diferentes matizes e posicionamentos internos. O tema da violência teve destaque especial na apresentação do
contexto, aparecendo representado nas preocupações dos moradores entrevistados e nas experiências das famílias analisadas nesta obra, motivo pelo
que foi o eixo central na minha análise sobre este aspecto em todo o livro.
Descrever elementos do marco socioestrutural e espacial e sobre o estilo
de vida popular de bairros urbanos como a do Nordeste de Amaralina é relevante para compreender o tipo de inserção que arranjos de família extensa
matriarcal têm no contexto, e como se diferenciam ou aproximam de outros
modos de organização doméstica. Estes dados nos permitem avaliar como
o modelo se legitima e é neste contexto tão aceitável quanto outros com os
quais convive e interage simultaneamente, não sendo visto pelos próprios nativos como modelo desviante ou de menor valor social quando comparado,
por exemplo, ao de uma família nuclear ou extensa chefiada por homens.
Para compreender como vivem, pensam e reagem distintos agrupamentos
sociais em seus diversos lugares de moradia, é preciso também partir da voz
dos nativos e do modo como organizam o mundo simbólico. Dar voz aos informantes ultrapassa o mero uso de respectivas falas ou indicar tendências
estatísticas sobre seus contextos; é, de fato, inserir essas falas nativas no contexto do qual fazem parte, vez que só fazem sentido nos lugares e relações que
a casa das mulheres 79
estabelecem onde convivem. É também identificando e descrevendo como
cada grupo social organiza práticas, vivências e respectivo campo simbólico
– desde marcadores analíticos como os de classe, gênero, geração, etnia, religião – que se torna possível construir parte deste conhecimento.
Para reconstruir parte deste contexto, usei neste capítulo alguns dos resultados de um survey sociodemográfico aplicado a 120 domicílios; dados de
pesquisa etnográfica produzida pelo Núcleo de Estudos em Ciências Sociais,
Ambiente e Saúde (ECSAS);1 assim como dados sistematizados individualmente a partir do censo do IBGE de 2000, o mais próximo ao do momento
da pesquisa. Como dados publicados pelo IBGE aparecem de modo agrupado
e não por áreas ou bairros, foi preciso fazer coleta separada de séries estatística para analisar alguns dos dados aqui descritos,2 especialmente aqueles
sobre tipos de chefias familiar por sexo, que não tinham sido controlados no
survey do ECSAS, em 1993.
1
Entre as pesquisas realizadas das quais participei e usei algumas das bases de dados para a presente pesquisa, estiveram dados e entrevistas de: 1) Signs, Meanings and Practices Related to
Mental Health, financiada pelo IDRC e coordenada pelo Dr. Naomar Almeida Filho (Investigador
Principal), entre 1991-1995; 2) Processos de fragilização e proteção à saúde mental na trajetória de
mulheres de classe trabalhadora urbana, financiada pela FCC e CNPq (Processo nº 521717/95-7),
sob a coordenação de Paulo César Alves e Maria Gabriela Hita entre 1994-1997; 3) Esterilização
feminina e Arrependimento em Classe trabalhadora (Projeto inicial de doutorado) que se transformou ao longo dos anos seguintes e na pesquisa que resultou neste livro sobre Arranjos familiares
extensos matriarcais (1997-2003). Todas essas pesquisas foram realizadas no contexto do bairro
do Nordeste de Amaralina, em Salvador.
2
Agradeço a Ângelo Sampaio, bolsista de Iniciação Científica (IC) pelo PIBIC/ CNPq desta pesquisa
durante 2003, pela coleta e sistematização dessa informação junto ao IBGE e SEI. Como os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000) são agrupados e publicados por
Distritos Sanitários e não são apresentados ao público por bairros como apresentados, fez-se necessário consultar dados originais para criar as tabelas que ilustram informações mais específicas
do bairro como as da chefia familiar dos domicílios, entre outros.
80 maria gabriela hita
BREVE HISTÓRICO SOBRE A OCUPAÇÃO
URBANA EM SALVADOR
p
A cidade de Salvador foi descrita, na década de 1930, pelo antropólogo Donald
Pierson (1971) como [...] “uma cidade medieval cercada de aldeias africanas.”
Tal descrição ilustrava as marcas de um passado revelado na ocupação espontânea de vales e encostas pelos pobres, maioria afrodescendentes,3 enquanto
os grupos privilegiados, maioria constituída por brancos, ocupavam cumeadas do relevo urbano. A esse padrão de ocupação seletivo acrescentou-se,
neste século, um movimento gradual de decadência de áreas nobres centrais,
ocupadas pelos mais pobres assim como pelo surgimento de invasões resultantes da intensa chegada de migrantes do interior ou de outros Estados,
como efeito da crescente industrialização, processo de modernização e urbanização pelos quais Salvador passará depois dos anos 1940. O processo de
urbanização de Salvador foi lento e ocorreu de modo bem mais definido e intenso depois de 1940, em especial entre o final do século XIX e o início do XX,
quando a população passou a crescer vegetativamente. (GORDILHO, 2000;
CARVALHO; PEREIRA, 2008)
A área em torno da Baía de Todos os Santos (BTS) foi a mais densamente
ocupada desde o período colonial até a década 1940. Com o incremento da migração do interior para a capital a partir dos anos 1950 e o crescimento abrupto
da cidade, a configuração espacial de Salvador sofreu uma grande alteração. Os
ricos abandonaram o antigo centro – que foi tomado pela população de baixa
renda – ocupando zonas próximas à orla, cada vez mais em direção ao norte.
Durante a década de 1960, a cidade foi rasgada pelas avenidas de vale: ampliação
do sistema viário aproveita terrenos mais planos ao redor dos rios que cortam
a cidade por entre seus inúmeros morros. As áreas próximas a tais rios, muitas
3
A Bahia é considerada o estado brasileiro de maior concentração de população negra. Muitos
estudiosos utilizam a junção das categorias de pardos e negros do censo, para designar as populações de afrodescendentes, estipulando-se ser este contingente em torno de 70 a 80% da população baiana.
a casa das mulheres 81
vezes mangues e alagados, até então habitadas por uma população pobre demais para morar na cidade, foram evidentemente valorizadas, provocando a expulsão de vários de seus ocupantes,4 e as íngremes encostas continuaram povoadas por casinhas e barracos precários, igrejas evangélicas e alguns terreiros
de Candomblé. A quase inexistência de políticas públicas de habitação para os
mais pobres até década de 1990 conduziu grandes massas de migrantes do interior a ocuparem espaços vazios da cidade à revelia de normas urbanísticas, em
condições muito precárias de habitação, marcadas pela informalidade e ilegalidade da ocupação do solo. Tais fatores determinaram a atual configuração da
cidade de Salvador. (GORDILHO, 2000; CARVALHO; PEREIRA, 2008)
Ao longo de todo o século XX, os antigos centros comercial e financeiro
da cidade – conhecidos como Pelourinho e Comércio – foram gradativamente
perdendo importância conforme empresas mais ativas transferiam escritórios para novas áreas, na direção do emergente novo eixo da Av. Paralela.
No auge da crise de 80, fábricas foram fechadas ou retornaram ao Sul e
Sudeste. Assim, o dinamismo econômico e social concentrado nas margens
da BTS, em torno da principal estação ferroviária na Calçada foi, paulatinamente, transferido para o norte da cidade, acompanhando a Orla Atlântica,
deixando atrás de si bairros de urbanização mais antiga onde permaneceu
uma classe média baixa ou se estabeleceu população de inserção econômica
mais marginalizada. Já os novos bairros da Orla, em direção ao norte, foram
atraindo cada vez mais as classes média e alta. Entre 1980 e 90 foi criado
também um novo Central Business District (CBD) na mesma região deste
vetor denominado “Orla”. (ALMEIDA, 2006)
Assim, de modo sumário, é possível afirmar que houve um primeiro deslocamento da região da BTS em direção ao polo Iguatemi–Pituba e um segundo,
a partir de 1980, para o eixo Av. Tancredo Neves-Paralela, cada vez mais em
direção ao norte e ao Aeroporto Internacional de Salvador. (GORDILHO,
2000; CARVALHO; PEREIRA, 2008) Este movimento cria novas centralidades com oferta de serviços variados e, portanto, atrai pessoas para a cidade, pelas mais diversas razões. Esta expansão foi impulsionada por investimentos públicos e privados em grandes empreendimentos imobiliários,
como o Shopping Iguatemi, o bairro do Imbuí, inteiramente tomado por
4
Este é o caso do Nordeste de Amaralina, que sendo uma invasão de 1940, continua localizada em
área hoje considerada uma das mais nobres da cidade, fazendo fronteira com bairros da Pituba,
Amaralina, Chapada do Rio Vermelho e Área de Parque da Cidade pela Avenida ACM.
82 maria gabriela hita
condomínios residenciais para a classe média. A Av. Paralela é ainda hoje a
principal via de acesso ao Aeroporto Internacional Luís Eduardo Magalhães
e à Linha Verde, estrada que acompanha o Litoral Norte do estado, ao longo
da qual se encontram pequenas cidades de veraneio com condomínios de
classe média e alta e empreendimentos hoteleiros de luxo, como o conglomerado turístico de Costa do Sauípe. Carvalho e Pereira (2008) caracterizam
os três vetores de expansão socioespacial de Salvador do seguinte modo:
a) Orla marítima norte: região nobre, com alta concentração de investimentos públicos, equipamentos urbanos e de serviços e como
foco privilegiado da produção imobiliária; b) Miolo: centro geográfico
do município, com grande concentração de conjuntos habitacionais
populares e loteamentos irregulares. Região que apresenta serviços e
equipamentos bastante restritos; c) Subúrbio Ferroviário: área de ocupação antiga (1860, com a instalação da linha férrea) que, a partir de
1940 se tornou o alvo das ocupações populares incrementadas pela
migração, tornando-se uma das áreas mais carentes da cidade, com
precariedade de equipamentos e serviços.” (CARVALHO; PEREIRA,
2008, p. 88)
Apesar de os três vetores descreverem características de grandes zonas de
ocupação de Salvador, é preciso ressaltar que, dentro de cada uma delas, a
partir de uma perspectiva de análise mais microsociológica e antropológica,
não existe apenas um único padrão de ocupação. Nestes locais se identificam
processos de distinção e separação profundos, que são tipificados nos estudos sobre pobreza apenas como áreas de homogeneidade social. Ou seja,
enquanto o Subúrbio Ferroviário e o Miolo apresentam uma homogeneidade
relativa mais alta – embora divididos em áreas muito pobres e outras nem
tanto –, a Orla norte passa a se caracterizar pelo elevado padrão econômico,
ocorrido após a erradicação da população de mais baixa renda em seus meandros. Enquanto surgiam os ricos bairros da Orla Atlântica, alguns bairros
pobres concentrados em diversas das áreas de encostas permaneceram lhe
ocupando as fronteiras. O padrão generalizado é a tentativa de remover a população mais pobre de áreas mais planas e morros menos íngremes, considerados melhores para ocupação de classes mais abastadas. Este foi sem dúvida
o caso do Nordeste de Amaralina: área acidentada e mais elevada próxima à
Orla Atlântica, onde um contingente pobre se instalou e continuou se desenvolvendo e crescendo desde o final dos anos 1950.
a casa das mulheres 83
Desde o mesmo período – a partir da década de 1950 – Salvador comportou importantes mudanças urbanas pela reativação econômica da cidade com a implantação da Petrobras. A cidade passou a atrair e ser base de
moradia de trabalhadores mais qualificados, provindos do sudeste do país
ou exterior, que chegavam para atuar na empresa. Nas décadas seguintes,
esse processo se solidifica com o surgimento do Centro Industrial de Aratu
(CIA) e, na década de 1970, com o Polo Petroquímico. As empresas instaladas
nestes complexos alavancaram a abertura para o estancado mercado de trabalho de décadas anteriores, impulsionando, assim, a dinamização dos setores de serviços e comércio. Do ponto de vista urbanístico, a cidade viveu
um processo de modernização semi-planejada com a abertura de novas vias
de circulação por meio da construção de grandes avenidas de vale e da ampliação do sistema de transporte, propiciando a valorização do solo urbano,
que passaria a ser ocupado diferenciadamente por distintos grupos sociais.
De um lado, levas de imigrantes do meio rural e seus descendentes que, buscando no centro urbano novas oportunidades de trabalho e melhorias de
vida, deram início à instalação de grupos pauperizados em áreas desocupadas
da cidade (as chamadas invasões populares, algumas das quais deram origem
a novas favelas ou bairros populares). Estas ocupações ocorreram sem a devida infraestrutura, por meio de arrendamento, pagamento de foro, aluguel
ou simplesmente, e na maioria dos casos, pela simples tomada do espaço.
(GUIMARÃES; AGIER; CASTRO, 1995; GORDILHO, 2000; CARVALHO;
PEREIRA, 2008) Este foi o caso do Nordeste de Amaralina, no início.
De outro lado, setores médios provindos de bairros decadentes passaram de
áreas residenciais a zonas comerciais saturadas (centro histórico), e também
classes em ascensão econômica, buscando áreas novas de urbanização planejada e ainda em processo de valorização imobiliária, procuraram investir na
melhoria do padrão de vida, transferindo-se de áreas centrais para áreas costeiras da cidade. Dessa maneira, surgem bairros de classes média alta como
Pituba, Stiep, Piatã, Patamares, Itapuã, Vilas do Atlântico e tantos outros que
se concentram na Orla Atlântica. Estes grupos sociais de maior poder aquisitivo, ao irem adquirindo novas propriedades e casas de veraneio na costa
norte da Orla Atlântica e na chamada hoje linha verde, são principais responsáveis pela expansão deste vetor da cidade identificado como “Orla”.
Tal processo de modernização e consolidação do atual padrão urbano
aconteceu, por vezes, sob o jugo da ação repressiva do Estado que, na defesa
84 maria gabriela hita
dos interesses imobiliários, tenta disciplinar e conter o crescimento descontrolado de ocupações populares em certas regiões da cidade, especialmente
nas mais valorizadas então apropriadas ou compradas pelas classes médias e
altas. O primeiro grande pico de crescimento ocupacional popular da cidade
ocorreu entre 1950-68. Nos anos 1970, a expansão de Salvador se consolidou
em torno de três novos grandes vetores bem diferenciados já descritos: 1) a
Orla norte, área valorizada, onde se concentram pessoas com maior riqueza,
a área industrial e a turística; 2) o centro geográfico da cidade com conjuntos
habitacionais de classes média baixa e populares; 3) o subúrbio ferroviário
e periferias com parcelas mais pobres da cidade (CARVALHO; PEREIRA,
2008). Depois disso, nos anos 80, novas ocupações ocorreram, ainda que
em áreas menores, forçando a utilização mais intensiva do espaço e provocando deterioração das já precárias condições de habitação em muitos dos
bairros populares existentes. Nos anos 90, inicia-se, ao longo da linha verde,
a construção de importantes e luxuosos empreendimentos hoteleiros, solidificando a nova faceta da cidade cada vez mais voltada ao turismo como
uma das suas mais importantes atividades econômicas. Com isto houve, ao
longo do século XX, mudança do eixo econômico centrado inicialmente na
região do Comércio para a região da Avenida Paralela e seu entorno, cujas
diversas transformações foram resultando no que se configura como a atual
Região Metropolitana de Salvador (RMS). (GUIMARÃES; AGIER; CASTRO,
1995; GORDILHO, 2000; CARVALHO; PEREIRA, 2008)
PERFIL SOCIOESPACIAL DO NORDESTE
DE AMARALINA
p
O Nordeste de Amaralina é um bairro popular situado próximo à Orla
marítima em área central e sudeste de Salvador. Ele integra o subdistrito
de Amaralina (cód. 6) do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho, distrito
que compreende as regiões administrativas VI (Barra), VII (Rio Vermelho),
VIII (Pituba) e parte da região administrativa I (Garcia e Campo Grande).
a casa das mulheres 85
Com superfície de 250 hectares, o Nordeste de Amaralina encontra-se limitado por bairros de classe média como Rio Vermelho, Pituba e Amaralina, e
espalha-se por sobre seis pequenos montes. Está dividido em três grandes
regiões: Vale das Pedrinhas, Santa Cruz e Nordeste. O bairro do Nordeste
de Amaralina (doravante denominado NE, aludindo ao nome Nordeste,
como identificado por maioria de seus moradores) é um típico exemplo de
invasão, com áreas recentemente ocupadas5 e zonas já assentadas e regularizadas de invasões anteriores. Até os anos 80, em torno de 60% dos residentes do NE se compunha por migrantes, muitos provenientes de áreas
rurais. Este dado se modifica com o aumento do percentual de filhos nascidos no bairro, diminuindo, progressivamente, a participação de migrantes
na área e mudando o senso de pertencimento ao NE.
O núcleo inicial de ocupação do bairro data de aproximadamente 1957 e
desenvolveu-se a partir do loteamento de Ubaranas, onde o retardamento da
ocupação dos lotes possibilitou a invasão de alguns terrenos e espaços adjacentes pertencentes a fazendeiros, cujas áreas, à época, já se encontravam em
adiantada fase de decadência. Atualmente, devido às modificações citadas,
o Nordeste de Amaralina é delimitado em alguns trechos por avenidas basilares para o sistema viário de Salvador como a Av. António Carlos Magalhães
(ACM) e, por este rumo, uma parte dele com o Parque Municipal da cidade;
por edifícios, nas proximidades da Pituba e ainda por casas, dos lados da
Amaralina e Rio Vermelho).6
As especificidades geográficas deste tipo de ocupação resultam de longos
processos mistos de parcelamento do solo: venda de posses e consequente
retalhamento de cada uma dessas parcelas em fatias menores, bem como de
novas invasões de terras não ocupadas por seus proprietários. Ao longo das
três últimas décadas, processo similar ocorreu em zonas mais ricas que o rodeiam seja através da compra de terrenos de antigas fazendas loteadas ou da
invasão e ocupação de alguns terrenos vazios. As áreas invadidas mais antigas
foram posteriormente regularizadas pela Prefeitura. Uma nova invasão de moradores do NE ocorreu nesta região, em 1980, a chamada Nova República, que
começava a ultrapassar timidamente os limites do Parque da Cidade no final
dos anos 1990. A área do NE se caracteriza por concentrar construções que na
primeira década de 2000, ocupavam quase a totalidade do terreno disponível.
5
Nova República nos anos 1980 e o Boqueirão no início dos anos 1990.
6
Ver mapa do NE em anexo A.
86 maria gabriela hita
Os contornos do bairro estão bem demarcados. Por isso, a expansão horizontal
é restrita, predominando a ocupação de poucos espaços ainda vazios e especialmente edificações de um segundo ou terceiro andar sobre as lajes de casas
já existentes. Esta dinâmica de reprodução das famílias e de suas casas será tratada mais detidamente no capítulo VI.
Em bairros populares como os do NE, o comércio local é bastante intenso:
muitas casas transformam-se em vendas improvisadas de bebidas e gêneros
alimentícios expostos nas proximidades de residências. É comum ver pequenas placas penduradas anunciando todo tipo possível de serviços, como o
de venda de geladinhos (um tipo de picolé de suco de frutas), doces e salgados,
ovos, borracharias, serviços mecânicos, banca (reforço escolar para crianças),
cabeleireiro, manicure, costureira, etc. Tais serviços ou produtos estão à disposição dos que transitam pelas ruas do bairro. Nas áreas de ocupação mais antiga e principais avenidas do bairro, observava-se a existência de um comércio
mais institucionalizado com lojas estabelecidas no setor da construção, panificadoras, mercadinhos, serviços mecânicos de automóveis, barbearias, etc.
Nas regiões de invasão mais recente predominavam casas de negócio na própria residência, geralmente tipo quitanda ou botequim, onde o cenário do NE
se caracteriza por um amontoado de pequenas casas espremidas entre si ao
longo de becos e ruazinhas sinuosas e estreitas. Neste contexto, as casas se
diferenciam entre si tanto pelo tamanho quanto pela qualidade do material
de construção utilizado. As construções costumavam ser bem precárias e, na
maioria dos casos, não passavam de pequenos cômodos sem divisões internas,
predominando a edificação em alvenaria de tijolos aparentes, transmitindo a
impressão de estarem inacabadas ou em processo de construção. Outras edificações eram edificadas em barro ou à base de papelão, tábuas e pregos, em
arranjos provisórios à espera de obtenção de recursos para iniciar construções
mais sólidas. Contudo, e ao longo dos anos, é visível a transformação do espaço, a ampliação das casas ou criação de novos andares.
A prática do “bater laje” na casa térrea para construir segundo ou terceiro
pavimento era recorrente; tornou-se, tal prática, projeto em curso, recém-concluído ou ainda por ser iniciado a depender do ciclo vital de cada domicílio e
dos recursos disponíveis. Por meio da “laje”, os residentes visam a aumentar
o número de cômodos disponíveis à família, seja para criar nova residência a
ser ocupada por um filho/a casado/a ou outros parentes ou amigos, seja para
ampliar e acomodar melhor os membros de seus lares, cujo tamanho oscila a
a casa das mulheres 87
depender de diversas conjunturas, a serem discutidas nos próximos capítulos.
Durante os anos que circulei pelas ruas do bairro entrevistando moradores, observei que as construções cresciam sem muita preocupação com detalhes técnicos. As construções eram erguidas aleatoriamente, desde que houvesse bastante brita nos alicerces e fossem obedecidas determinadas normas. A própria
comunidade cuidava de vigiar as construções, pois a quebra de toda norma
provocava, via de regra, sérios conflitos com a vizinhança pela ameaça que representa uma construção irregular para a segurança geral, vez que a topografia
do terreno composto por morros, facilita deslizamentos de terra após períodos
chuvosos. Algumas normas básicas de construção parecem ser compartilhadas
por todos: homens, mulheres e crianças. Muitas mulheres, em particular, são
bem familiarizadas com as particularidades de materiais de construção: nomes,
custos, usos. Não era raro que assumissem funções de arquiteta, tesoureira e
administradoras da construção de suas casas ou, até mesmo, a de ajudantes
de pedreiros, sempre que necessário, como será observado nos dados dos próximos capítulos e no caso da informante Dina, na Casa de D. Cida.
Este estudo iluminará como a construção da casa, erguida pouco a pouco,
passo a passo, dia a dia, era para moradores do NE naqueles anos, um dos mais
importantes projetos familiares; nele se investiam recursos materiais, horas de
trabalho, planejamento, negociações familiares, renúncias, abandono ou retomada de planos e desejos. O projeto da casa, como bem o demonstra este estudo,
significa muito para o pobre brasileiro que não mede esforços para conquistar
o sonho de possuir casa própria. Ainda quando é preciso reconhecer o quanto
o seu acesso ficou facilitado depois das novas políticas de combate à pobreza
que cresceram exponencialmente após 2003, com implementação e ampliação
de novos Programas de habitação como os de Minha casa, minha vida. 7 Mas, naquele momento e contexto, quando o acesso à moradia ainda era mais restrito,
erguer uma casa representava, perante a vizinhança e a comunidade em geral,
7
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), lançado em 25 de março de 2009 para incentivar a produção e aquisição de moradias à população com renda de até R$ 5.000, visa a construir
2,4 milhões de casas até o ano 2014. Este Programa, lançado no governo petista do presidente
Luís Inácio da Silva e ampliado no seguinte da presidenta Dilma Roussef, ampliou consideravelmente as metas previstas de oferecer moradia digna à população carente de políticas de habitação lançadas em presidência anterior, em programas como os Habitar Brasil e Ação Social de
Saneamento (1995-1999), e no conjunto de estratégias de combate à pobreza do Programa Viver
Melhor, que até o 2003 tinham atingido a meta habitacional de criar 300.000 mil novas casas.
Disponível em: <www1.caixa.gov.br/gov/gov-social/municipal/programas-habitação/pmcmv/>
e <www.vidamelhor.ba.gov.br>. Acesso em: 10 jul, 2013.
88 maria gabriela hita
certo sucesso econômico, refletindo, pois, o tipo de vida, recursos e aspirações
daqueles que habitavam essas casas. Para avançar nesta descrição do perfil socioespacial do NE e seus níveis de pobreza é preciso, ainda, apresentar outros
tipos dados e indicadores. Os dados a seguir combinam fontes do Censo demográfico de 2000 com outros provenientes do survey de 1993.8
No Nordeste de Amaralina, segundo dados recolhidos e sistematizados a
partir de diversas séries de dados do IBGE (2000), havia, em 2000, aproximadamente 13.689 domicílios (particulares permanentes) com população aproximada de 53.756 habitantes distribuídos nas três regiões citadas.9 Desses domicílios, 80% eram de casas próprias e já quitadas, 17% de residências alugadas e/ ou
apartamentos e os 3% restantes, cômodos ou residências ainda em aquisição ou
sob outras modalidades de cessão. Dos 13.689 domicílios dessa amostra, 47,6%
dispunham de até três moradores e os 52,4 % restantes acima de quatro moradores; 10,2% possuíam acima de sete moradores e 42,1% entre quatro e seis
moradores (IBGE, 2000). Foi significativo, entretanto, também o percentual
de lares unitários, que atingiram quase 10% do total dos domicílios, como o
apontam tendências nacionais e internacionais. (ANDRADE, 2012)
A população jovem, com até 19 anos, compunha 40% do total dos 53.756
habitantes identificados nessa amostra e aparecia, de modo geral, como dependente economicamente dos adultos ou idosos de seus domicílios. Cerca
de 50% do total de habitantes se encontrava entre 20 e 49 anos. Deste contingente, 68,8% eram responsáveis pelos seus domicílios (autodesignados como
chefes da família). Pessoas acima de 50 anos formavam um reduzido percentual de aproximadamente 10% dessa população. Entretanto, em relação a este
reduzido percentual populacional, e como será analisado em tabelas com
novos cruzamentos por sexo e idade, adiante, o grau de chefia domiciliar é
significativamente alto nessa coorte etária: 30,4 % das chefias da população
são de pessoas acima de 50 anos, correspondendo a aproximadamente 65%
dos responsáveis de domicílios neste coorte etário. Este dado é significativamente maior entre mulheres do que entre homens, como demonstro adiante.
8
Tratou-se de um survey realizado no NE destinado a controlar principais hipóteses do projeto de
pesquisa: Processos de fragilização e proteção à saúde mental na trajetória de mulheres de classe
trabalhadora urbana, financiada pela FCC e CNPq (Processo nº 521717/95-7), sob a coordenação
de Paulo César Alves e Maria Gabriela Hita entre 1994-1997.
9
É possível que neste total não estejam incluídas todas as sub-regiões que compõem os limites
do Nordeste de Amaralina. Para efeitos da presente análise interessava ter ideia em percentuais
aproximados de tendências sobre chefias de lares extensos e diferenciados por sexo.
a casa das mulheres 89
A chefia feminina declarada em Salvador é das mais altas do país; e nesta população do Nordeste de Amaralina, em particular, foi para esta amostra do
IBGE em torno de 38,24%.
Apesar das aparentes melhorias nas condições de vida nos domicílios, mediante consolidação e amadurecimento de novos núcleos familiares e da visível evolução dos materiais na construção, além de melhorias nos níveis de
educação e renda, a população continua a ser caracterizada como das mais
pobres de Salvador, com índices de desemprego naquele período entre os
mais altos do país e categorias menos rentáveis de tipos de emprego. Em
2000, a população acima de 5 anos indicava ter sofrido uma elevação significativa do índice de alfabetização que subia ao patamar de 88%, mas, a grande
maioria da população, não dispunha de quatro anos de estudos.
Dados do IBGE sobre a renda dos chefes de domicílios no Nordeste de
Amaralina em 2000, apresentados na Tabela 1, apontam que a maioria dos
chefes, 56,74% deles, ganhava até dois salários mínimos: 67,46 % eram chefes
mulheres e 50,11% homens. O percentual de responsáveis que ganhavam
entre 2 e 5 salários mínimos era de 24,7%: 14,82% eram mulheres e 29,78%
homens. Foi significativo o número de chefes que se encontravam nesse
censo sem nenhum rendimento, em torno de 12%: 14,31% mulheres e 10,54%
homens. Apenas um percentual de 7,21 % ganhava acima de cinco salários
mínimos (3,41% das mulheres e 9,57% dos homens). Dessa rápida análise, é
perceptível o caráter popular do bairro e os melhores salários de homens em
relação às mulheres.
Os tipos de ocupações mais frequentes identificados entre mulheres do
Nordeste, segundo os depoimentos de estudos etnográficos e resultados de
survey do ECSAS realizado a 120 domicílios em 1993, foram as de lavadeira, faxineira, cozinheira, babá, empregada doméstica, baiana de acarajé, quitandeira,
gari, merendeira. Entre os homens, predominam as ocupações de servente,
biscateiro, porteiro, vigia, mecânico, motorista, pedreiro, pescador, barraqueiro, garçom, balconista, office-boy, ambulante, serralheiro, gari, guardador
de carros em bares e empregado público ou de firma, entre outros. Outros
dados, entretanto, são ainda relevantes para caracterizar o perfil socioespacial
e popular deste bairro, como os apresentados a seguir. Eles apontam outras facetas da maior precariedade habitacional e ausência de serviços básicos como
os de segurança, educação e saúde em bairros populares.
90 maria gabriela hita
Tabela 1 – Rendimento nominal mensal dos responsáveis pelos domicílios do Nordeste de Amaralina
segundo o sexo
Homens
Mulheres
Total
77 (0,91%)
134 (2,56%)
211 (1,54%)
Mais de 1/2 a 1 salário mínimo
1485 (17,56%)
2061 (39,38%)
3546 (25,90%)
Mais de 1 a 2 salários mínimos
2675 (31,64%)
1336 (25,52%)
4011 (29,30%)
Mais de 2 a 3 salários mínimos
1370 (16,20%)
446 (8,52%)
1816 (13,27%)
Mais de 3 a 5 salários mínimos
1148 (13,58%)
330 (6,30%)
1478 (10,80%)
Mais de 5 a 10 salários mínimos
707 (8,36%)
146 (2,79%)
853 (6,23%)
Mais de 10 a 15 salários mínimos
57 (0,67%)
22 (0,42%)
79 (0,58%)
Mais de 15 a 20 salários mínimos
26 (0,31%)
6 (0,11%)
32 (0,23%)
Mais de 20 salários mínimos
19 (0,22%)
4 (0,08%)
23 (0,17%)
Sem rendimento
891 (10,54%)
749 (14,31%)
1640 (11,98%)
Total
8455 (100%)
5234 (100%)
13689 (100%)
Até 1/2 salário mínimo
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico 2000.
Quanto ao sistema de coleta de lixo, quando começaram os contatos da
equipe de pesquisa no Nordeste, era mais precário do que no final da pesquisa, época em que ainda existiam grandes lixões próximos às habitações
onde era jogado todo o lixo das redondezas, ficando ali depositado por dias
até ser recolhido por caçambas da limpeza pública municipal que não circulavam no NE diariamente, e locais onde não era raro encontrar de vez em
quando alguns cadáveres misturados no meio de todo esse lixo.
A rede de abastecimento de água potável e a rede de distribuição de
energia elétrica cobriam praticamente todo o bairro desde aproximadamente os anos 1980. Contudo, quanto ao sistema de saneamento básico,
era comum em todo o bairro o sistema de valas cavadas nas vias públicas,
cobertas por lajes de concreto, para onde eram canalizadas as águas servidas das edificações. Nas regiões de invasão mais recentes, e especialmente nos primeiros anos da pesquisa, os dejetos costumavam correr em
valas a céu aberto. Isto começou a ser modificado no final dos anos 1990
quando se realizou um maior esforço para integrar este bairro e o resto da
a casa das mulheres 91
cidade, ao sistema centralizado de esgotos da cidade, forçando os moradores a canalizar e introduzir vasos sanitários na maioria das residências.10
No que refere a serviços de Saúde no Nordeste de Amaralina, existe o 9o
Centro de Saúde, localizado na parte Sul do Bairro; o 15o Centro, no Vale das
Pedrinhas e um posto municipal, localizado em Santa Cruz. O Centro de
Saúde Mental Osvaldo Camargo, localizado no Bairro do Rio Vermelho é a
principal referência em Saúde Mental para a região. Nos bairros vizinhos de
Amaralina e Pituba localizam-se clínicas particulares que também atendem
ao Sistema Único de Saúde (SUS) tais como: SEMEC, CATO, SOMED, etc.,
e à população do Nordeste de Amaralina. Existe um bom número de escolas
de Ensino Fundamental e Médio, havendo ainda várias creches e pré-escolas.
Nos limites do Nordeste, encontram-se também vários espaços religiosos,
aos quais se costuma recorrer com frequência, especialmente em casos de
doença. Neste contexto, além da diversidade de igrejas pentecostais e algumas católicas, as religiões mais declaradas, existem ainda diversos terreiros de Candomblé, casas de Umbanda e centros espíritas, os quais a população frequenta e participa independentemente do tipo de religião à que
se afirme pertencer, como apontam estudos de Rabelo, Alves e Souza (1999).
Quanto à participação em associações, depoimentos de antigos moradores se queixavam da corrupção e descaso de algumas lideranças. Exemplo
disso foi o depoimento de um líder comunitário que ressaltou o trânsito
fácil que tinha com políticos, e se dizia proprietário do centro comunitário,
construído com dinheiro fornecido por um desses políticos. Mas havia outro
tipo de participação na comunidade, muito citada especialmente pelas mulheres, as caixas de dinheiro, dispositivo criado pelos moradores para obter
10
É a partir da década de 1990 que se inicia o processo da massiva adesão de áreas populares ao
sistema de esgoto sanitário convencional (baixo terra e com tubos de um metro ou mais de largura) na cidade de Salvador, através da reforma sanitária levada a cabo pelo projeto Bahia Azul
promovido pela Empresa Baiana de Águas e Saneamento (EMBASA). Para poder integrar áreas
populares ao sistema central, dado as carências econômicas e maiores acidentes topográficos
destas regiões das cidades, foi preciso adaptar um sistema superficial e condominial de esgotos,
de teor comunitário e não individual, com tarifas reduzias e tubos menores conectados aos do
sistema convencional. Estas transformações do entorno resultantes de novas políticas de saneamento e mudanças legislativas foram perceptíveis durante anos desta pesquisa que foi acompanhando o aparecimento e multiplicação de latrinas, como surgimento de espaços dentro das casas para criar banheiros até então inexistentes. No NE eram recorrentes as brigas entre vizinhos
motivados por conflito sobre o tema do esgoto: tanto daqueles que se recusavam a aderir às novas leis, quanto dos que eram impedidos de o fazer pela dificuldade em obter o consentimento
do vizinho para que suas tubulações passassem pelo seu terreno.
92 maria gabriela hita
um pequeno crédito outorgado pelos participantes. A escolha dos participantes era criteriosa, nem todos passavam na seleção. Todo mês, cada participante colaborava com uma quantia fixa de dinheiro e a arrecadação total
era doada ao primeiro na lista até chegar a vez de cada um. Com as quantidades recolhidas, muitos deles financiaram melhorias habitacionais. Uma
das matriarcas deste estudo, D. Cida parteira, era assídua participante desse
sistema de crédito comunitário.
TIPOS DE ORGANIZAÇÃO DOMÉSTICA
ENCONTRADOS NO NORDESTE DE
AMARALINA
p
Nesta seção, sintetizo dados do survey já mencionado11 e, para complementá-los, apresento dados do Censo Demográfico do IBGE 2000 sobre Famílias
Chefiadas por Mulheres (FCM). Com isto é possível aproximar a representação que arranjos familiares matriarcais (em famílias extensas chefiadas por
mulheres maduras) pode estar ocupando na diversidade de arranjos familiares encontrados nesta comunidade e em outros bairros populares de Salvador.
Em termos estatísticos, a Tabela 2 indica que no Nordeste de Amaralina o
arranjo doméstico mais significativo foi o de famílias extensas, formadas por
mais de um núcleo familiar ou que contou com a inclusão de outros indivíduos – parentes ou não – que não pertencem ao mesmo grupo elementar ou
núcleo biológico básico (pai, mãe e respectivos filhos de determinado casal).
O núcleo familiar básico ou independente, neste arranjo extenso, tanto pode
estar completo – isto é, com a presença das 3 figuras básicas: homem, mulher
11
Tratou-se da pesquisa Processos de Fragilização e Proteção à Saúde Mental nas trajetórias de mulheres de classe trabalhadora urbana, já mencionada, realizada pelo ECSAS sob a coordenação do Dr.
Paulo César Alves e Maria Gabriela Hita, com apoio da Fundação Carlos Chagas, CNPq e PIBIC/
UFBA (1993-1997). A pesquisa efetivou-se em duas etapas: A primeira, quantitativa, consistiu na
realização de uma amostra representativa e sistemática de 120 domicílios – uma em cada três casas de uma das quatro regiões do Nordeste de Amaralina; a segunda, de caráter qualitativo, coletou dados detalhados sobre o perfil dos indivíduos que compuseram a primeira amostra.
a casa das mulheres 93
e seus filhos (podendo ser ele parte de um arranjo nuclear puro ou extenso) ou
parcial12 (quando no núcleo básico falta uma das 3 figuras essenciais, como um
casal sem filhos ou a falta de um dos pais). Nem sempre é muito claro distinguir nestes lares qual dos núcleos ou membros são os chefes do lar. Em muitos
dos lares visitados, os avós, e não seus filhos adultos e já com os próprios filhos, são os verdadeiros chefes e gerenciadores de domicílios.13 Esta conformação, pois, é aqui definida como família extensa. No survey do ECSAS de 1993,
51,6% dos lares visitados apresentaram tais arranjos domésticos extensos.14
Ver Tabela 2.
Tabela 2 – Tipos de organização familiar no Nordeste de Amaralina
Total
%
Famílias Extensas
62
51,6%
Família Nuclear Pura
42
35%
Família Parcial
13
10,8%
Domicílio Unipessoal
Total
3
2,6%
120
100%
Fonte: ALVES; HITA, 1993.
12
O termo parcial aqui usado indica que este tipo, ao ser comparado ao modelo nuclear padrão,
seria visto como incompleto, devido a falta de um dos 3 elementos.
13
A centralidade do papel exercido pelas pensões dos idosos em contextos de pobreza nas últimas
décadas (devido às mudanças da legislação que garantem aposentadoria universal aos mais velhos) vem reconfigurando as relações de poder nestes lares e diluindo o imaginário ainda presente sobre a maior fragilidade do idoso em muitos destes contextos. Ver estudo de Barrientos
(2006) sobre a importância das pensões de idosos nas políticas de redução de pobreza.
14
Foi incluída nesse percentual a categoria de famílias compostas -4,5% – em tipologia de Garcia e
colaboradores (1982), caracterizada por um arranjo extenso adicionado ao de um membro sem
parentesco consanguíneo; assim como a categoria de díades maternas duplas de K. Woortmann
(1987) – com 7,1%. Esta é uma forma específica de arranjo extenso, o de pelo menos dois núcleos
parciais (ou incompletos na terminologia de Garcia et.al (1982) que definem o incompleto em relação ao modelo nuclear puro), caracterizado geralmente pela ausência do companheiro das mulheres adultas, e que em termos mais concretos se constitui por uma avó, suas filhas (uma ou mais
de uma mãe) e de netos presentes no domicílio. Por outro lado, identifico como arranjo nuclear
parcial (que não é extenso), em geral, às díades maternas simples de K. Woortmann (1987), e mais
conhecidas, em estudos recentes, como mães solteiras ou separadas (que em casos menos comuns
pode ser representado também pela presença de um pai e seus filhos). O modelo extenso aqui é,
pois, definido em contraposição ao de lares nucleares puros (sejam eles completos ou não).
94 maria gabriela hita
Assim, a família extensa pode ter como integrantes tanto avós, pais, irmãos,
filhos, netos, sobrinhos, etc. (do chefe ou parceiro/a), como membros sem nenhum parentesco. Defino como extenso todo e qualquer arranjo que extrapola
o modelo de família nuclear pura/biológica. Assim definido, o arranjo extenso é
comum no Brasil e nunca se encontra isolado de outras relações de parentesco
ou vizinhança, que extrapolam os limites do lar ou da casa. A rede de vizinhança
muitas vezes coincide com a de parentesco, na qual se desenvolvem interações
tanto de reciprocidade, apoio, afeto, mas, sobretudo, de conflitos. Essas relações de reciprocidade entre vizinhos e parentes são essenciais para a sobrevivência e compreensão de contextos de pobreza urbana.
Dado importante, especialmente em arranjos matriarcais – um sub-arranjo do modelo extenso de família aqui descrito – é a existência de filhos de
criação (em geral sem laços de parentesco) ou das crianças em circulação (geralmente com algum parentesco consanguíneo) já mencionadas – i.e. netos,
sobrinhos que vivem ou circulam entre duas ou mais casas da rede de parentesco, a depender do momento e circunstâncias de cada lar que o ampara ou
expulsa. A família extensa pode estar composta por avós, pais, irmãos, filhos
casados, netos, tios, sobrinhos ou até mesmo o filho de apenas um dos parceiros de um grupo nuclear (completo ou parcial). No caso do filho de apenas
um dos parceiros, apesar de aparentemente manter a estrutura nuclear, ela
não é resultante da união atual, sendo computado como extenso.
Ao analisar o tipo de parentesco de cada membro do domicílio com ego15
(ver Tabela 3), observou-se que das 715 pessoas que moravam nos 120 domicílios estudados (fossem eles nucleares, extensos ou parciais) ego representou aproximadamente 17% da população (geralmente a “dona da casa”,
mas não exclusivamente); “seu companheiro ou marido”, compôs 10,9% da
população recenseada; “filhos”, 41,5% do total. Dado interessante nesta categoria dos filhos foi perceber que – ao seu interior, i.e. tomando o valor
dos 298 indivíduos como o total – ela se distribuiu nos seguintes percentuais: 66,1% do total eram filhos do casal; 25,8%, filhos somente de ego
(mulher entrevistada); 6,1%, filhos somente do companheiro de ego e 2%
somente de um ex-companheiro e que ego “criava”. Isto aponta que os 39,9
dos filhos que não eram produto do casal estavam participando de lares
extensos. As quatro últimas categorias da tabela 3 refletem de modo mais
15
Ego é a pessoa que foi entrevistada no survey e em relação à qual a referencia de parentesco é
feita. Nesse survey só foram entrevistadas mulheres, em geral a dona da casa.
a casa das mulheres 95
claro a presença do lar extenso e a diversidade de relações de parentesco
encontradas nessa amostra de 120 domicílios. A categoria “pais, sogros,
avôs ou netos de ego” representou 13,43% da população (nesta categoria
o grupo dos netos isolado foi mais do dobro de todas as outras categorias
juntas) com um percentual levemente superior ao do companheiro ou esposo da entrevistada; irmãos, cunhados, genros e noras formaram um contingente de 8,67%; tios, primos e sobrinhos conformaram 5,60% da população e “não parente” ou “outro tipo não citado” 2,94%. Este conjunto de
dados somados aponta que 30,6% dos indivíduos indicados nesses domicílios pertenciam a lares extensos.
Tabela 3 – Relação dos habitantes do Nordeste de Amaralina com Ego (mulher entrevistada)
Ego (mulher da casa entrevistada)
Total
%
120
16,78%
Companheiro ou marido
78
10,90%
Filhos
298
41,54%*
Pais, avós, sogros e netos
96
13,43%**
Irmãos, cunhados, genros, noras
62
8,67%
Tios, primos e sobrinhos
40
5,60%
Não parentes
21
2,94%
Total
715
100%
*Filhos do casal: 66,1%; só dela: 25,8%, só dele: 6,1%, outro: 2%.
** Os netos compõem, isolados, mais do que o dobro da soma das outras categorias.
Fonte: ALVES; HITA, 1993.
Apesar da Tabela 3 sugerir a presença significativa de lares extensos no
contexto estudado, como no survey de 1993 não se perguntou quem era o
chefe dos domicílios, para obter uma aproximação mais precisa da possível
representação de lares matriarcais entre os 51,6 % de lares extensos indicados na tabela 2, precisei extrair esses dados do censo do IBGE de 2000 (o
mais próximo ao do período da pesquisa), com informações sobre a chefia de
domicilio no Nordeste de Amaralina, por sexo e idade, analisados adiante.
Antes, porém, serão analisados com maior detalhamento outros dos percentuais encontrados na Tabela 2.
Se os lares extensos apareceram como os que tiveram maior presença estatística, os de tipo nuclear puro (pai, mãe e filhos) foram os que lhe seguiram
96 maria gabriela hita
e é considerado por muitos dos moradores do NE como o modelo ideal: 35%
da amostra coletada configurava-se em arranjo nuclear puro (rever Tabela 2).
Não seria correto afirmar a priori que estes lares sejam sempre chefiados por
homens, o que depende, entre outros fatores, de como se define a chefia. Por
outro lado, estudos na zona da mata pernambucana apontam que ¼ dos informantes prefeririam declarar corresponsabilidade domiciliar; se existisse
tal categoria, i.e., definiriam a chefia familiar como compartilhada caso essa
possibilidade fosse oferecida pelas escolhas do censo e não como sendo do
homem ou da mulher (SCOTT, 1998 apud SCOTT, 2002). É possível, portanto, que em muitos desses casos ainda se atribua a chefia principalmente
ao homem, ou que os dados da chefia feminina e a compartilhada neste tipo
de domicílio continuem sendo subestimados.
Assim mesmo, diversos dados levam a supor que, em se tratando de arranjos nucleares puros, nestes lares predominará a chefia masculina e uma
maior concentração de mulheres “casadas formalmente”, do que as de uniões
meramente consensuais. Ao analisar o estado civil das donas de casa entrevistadas em 1993 (ver Tabela 4), é possível verificar que 20,8% delas declararam ter casamento formal ou, conforme termo usado, de papel passado.
A participação das mulheres unidas consensualmente nesta amostra foi em
torno de 41,7%. Dado curioso na comunidade, e em direção similar ao de etnografias sobre populações negras na Jamaica (CLARKE, 1972; STACK, 1974),
apontou prevalência ou tendência ao casamento formal ocorrer depois de
vários anos de convivência e nascimento de vários filhos do casal, em fases
mais maduras e estáveis dos grupos familiares e quando se encontravam
mais consolidados.
Tabela 4 – Estado civil das mulheres entrevistadas no Nordeste de Amaralina, 1992
Total
%
Casadas “no papel”
25
20,8%
União consensual
50
41,7%
Solteiras
21
17,5%
Separadas
12
10,0%
Viúvas
12
10,0%
Total
120
100%*
*Só 13 mulheres não tinham filhos, e destas, oito eram solteiras.
Fonte: ALVES; HITA, 1993.
a casa das mulheres 97
Ao somar o percentual de 35% de arranjos nucleares puros ao de arranjos
de famílias extensas que apresentam algum arranjo nuclear (ainda que nem
sempre o da entrevistada, nem o do chefe), i.e, que contam com uma estrutura de pai, mãe e filhos, este percentual sobe para aproximadamente 74% da
amostra. Assim, em 74% dos lares pesquisados encontrava-se alguma estrutura
de família nuclear. A impossibilidade de se seguir estritamente o padrão tradicional puro, ao que parece, deve-se, entre outros fatores, ao desemprego, baixos
salários, dificuldade de obtenção de casa própria, instabilidade de uniões conjugais, fatores culturais, etc. Via de regra, o modelo puro é logrado em fases
muito curtas do curso de vida das famílias. O modelo de famílias nucleares
puras apontaria para um momento de aparente estabilidade econômica desses
arranjos em relação ao de suas famílias de origem e antes deles voltarem a se
tornar extensos pelo nascimento de netos ou união de algum filho iniciando
um novo grupo dependente do núcleo mais jovem que se encontre vivendo na
casa dos pais.
Estatísticas recentes apontam para o acelerado crescimento do número
de lares chefiados por mulheres, identificado por alguns autores como o
composto por mães solteiras ou sem companheiro, vivendo com seus filhos.
Nestes lares estão incluídos o que aqui denominei de arranjo de famílias parciais, em que faltam um dos parceiros ou filhos. A presença dos lares com a
mulher como chefe nesta condição no Nordeste de Amaralina, foi em torno
de 19, 2% – ou 23 das mulheres entrevistadas – isto é, levando em conta a
total ausência de um homem adulto nesses tipo de lares. Neste percentual
está incluído os 2,6% que não tinham filhos e viviam sozinhas e os 6,6% de
díades maternas duplas (segundo a concepção de Woortmann) que apesar de
terem características de família extensa por incluírem três gerações (e que
foram por isso igualmente incluídas em aquele percentual), também têm características de arranjos de mães sozinhas, no caso, em dupla geração. Se tomásse apenas modelos nucleares parciais teria então 12,6%, (ao contrário dos
19,2% calculados) na amostra de 1993. O arranjo de apenas um dos parceiros
com seus respectivos filhos representou 10,8% da amostra total. De 13 lares,
apenas um era do pai com seus filhos, os outros 12 eram da mãe com seus filhos (ver Tabela 3).
Quanto à questão de mulheres sem companheiro, ainda que acompanhadas muitas vezes da própria mãe, há um conjunto de 19,2% das entrevistadas, com filhos, vivendo em lares de tal tipo, sem a presença masculina de
98 maria gabriela hita
mesma geração (união) ou ascendente (parceiro da mãe). A falta de companheiro é acentuada se considerar os dados do estado civil das entrevistadas
(que podem estar sozinhas, mas vivendo em arranjos nos quais existem núcleos de outros parentes), 37,5% das entrevistadas – destas 82,2% com filhos –
declararam não ter companheiros. Pois, 17,5% das informantes se declararam
solteiras; 62,5% estavam unidas ou casadas e 20,0% eram separadas ou viúvas
(Ver Tabela 4). Nota-se que apenas 11% das 120 mulheres declararam não ter
filhos, o que indica um significativo percentual de solteiras (mais de 60%)
com filhos: 13 de 21. Entre as mulheres sem filhos também algumas se declararam casadas, unidas ou separadas, as 5 restantes das 13 sem filhos. Se forem
excluídas as 8 solteiras sem filhos, se teria que 30,8% (37 mulheres) do total
da amostra de 120 estavam sem companheiros e tinham filhos. Este é um indício da presença e significativa instabilidade conjugal na amostra.
Por outro lado, a instabilidade conjugal, se assim for medida, estaria subestimada, pois o percentual de mulheres em situação de solidão – seja ela
fruto de uniões que nunca se consolidaram ou resultado de separações sucessivas – seria ainda mais elevado se a este percentual de 30,8% de mães
de família sem parceiros fosse anexado o conjunto daquelas outras que voltaram a se unir, uma, duas, três e até seis vezes como declaram algumas das
informantes da pesquisa. Com esta consideração, o percentual de instabilidade conjugal se elevaria para 50,8%, visto que 20% dessa amostra declarou
ter passado por mais de uma união e foram computadas como unidas ou casadas. E se por acaso fossem consideradas as trajetórias de vida, esse percentual também estaria subestimado já que metade da amostra era de mulheres
com menos de 35 anos que viviam sua primeira união, quando foram entrevistadas. O conjunto destes dados aponta para um elevado índice de instabilidade conjugal no contexto estudado. Este índice, por sua vez, é um dado
relevante trazido para iluminar este aspecto na compreensão do arranjo matriarcal a ser descrito adiante.
a casa das mulheres 99
O modo extenso de organização de familiar
A família extensa é um tipo de organização doméstica e o mais comum no
Nordeste de Amaralina. Este tipo de arranjo é formado pelo casal ou por
ao menos um dos pais (normalmente a mãe), vivendo com os filhos e netos. Famílias em formação, que ainda não conseguiram construir sua própria
casa, nas quais crianças pequenas dificultam o trabalho da mulher, podem
optar por permanecer durante certo período com a família de origem, em
geral a da mulher, até que possam se capitalizar e obter a casa própria. É de
se esperar também que mulheres separadas, que precisem trabalhar para garantir o sustento da família, contem com mais apoio se permanecem na casa
dos pais, um irmão, um parente ou até amigos. Assim, no NE, as famílias não
estavam isoladas de sua rede de parentesco.
De fato, é no bairro, e em especial no grupo de parentesco e na rede de
relações mais próximas, que se conhece o indivíduo por suas peculiaridades,
qualidades, seus defeitos e sua história. As redes de parentesco e vizinhança
podem ser instrumentalizadas no âmbito da rua e penetrar no domínio da
burocracia e das relações impessoais, para a obtenção de emprego, favores,
conexões com instituições, etc. Mas, é no âmbito da casa, da teia de relações
construídas em torno da família e com base nela, que o indivíduo se percebe
como pessoa.
Em quase toda família extensa existe geralmente um filho de criação ou
alguma criança da rede de parentesco em circulação pelas distintas casas de
parentes aos quais se pertence. No Nordeste de Amaralina são geralmente
as mulheres e as famílias com melhores condições econômicas no bairro as
que criam filhos – consanguíneos ou não – de outras mulheres. Como bem o
aponta Fonseca (1995), a prática da adoção à brasileira (falsificação ideológica
da paternidade) ou a do filho de criação, que ocorre paralela à adoção legal, é
a prática de dar o próprio nome a esse filho criado no registro de nascimento,
o que acontece, com frequência, bem tardiamente. Este fenômeno difere
daquele chamado por ela de circulação de crianças, que pode acontecer de
forma simultânea na mesma família que cria filhos de outros. A circulação de
crianças não renega a paternidade biológica e é, em geral, um mecanismo que
ocorre entre consanguíneos. Neste outro caso, a criança mantém a identidade dos pais biológicos e a dos adotivos é adicionada àquela; ela passa assim
a contar com várias mães ou responsáveis pela sua criação. Os contatos com
100 maria gabriela hita
pais biológicos não são rompidos. A relação entre mãe adotiva e genética não
é necessariamente excludente como poderia se supor. Nestes casos, o amor
maternal não se inscreve nos valores de um cuidado psicológico como seria o
de classes médias de outros contextos. As noções do bem-estar da criança e de
responsabilidade materna não implicam a necessidade de corresidência entre
geratriz e filho. A fragilidade infantil deve ser entendida antes em função das
privações materiais e de sobrevivência do que por critérios emocionais e psicológicos. Ao contrário do que se pensa ou suporia uma representação dominante e ocidentalizada sobre maternidade, a circulação de crianças ocorre
porque as crianças são desejadas e queridas e representam um valor em si
mesmas e não o contrário, comenta Fonseca (1995).
As crianças que circulam corporificam a ideia de família como valor.
Um filho, nesse meio, é uma riqueza que pode servir para solidificar laços
com a sogra ou para gratificar a própria mãe (avó da criança). Várias circunstâncias e adversidades podem determinar que uma mãe doe um ou mais de
seus filhos. A noção de criança como riqueza se afasta daquela outra noção
mais preconceituosa que vê na pobreza famílias quebradas e incompletas,
estados de anomia, prática identificada, pois, como indício de abandono
ou falta de amor materno. Apesar de a criança pequena ter valor pela graça
é na fase adulta, anos propriamente produtivos, quando ela pode retribuir e apresentar maior valor material para a rede de parentesco. Nesta lógica, o afastamento da criança da mãe pode ser, em muitos dos casos, visto
como uma etapa apenas temporária do processo. Dar um filho, neste contexto, não significaria, como se tende a acreditar e interpretado por Nancy
Scheper-Hughes (1992), necessariamente, em abandoná-lo. Durante a infância e mesmo quando estes filhos crescem o contato com as mães é frequente; mães e filhos se procuram e voltam a se relacionar sem demasiados
ou maiores ressentimentos, aparentemente. Os significados que estas práticas têm são bem distintos aos que parecem vigorar em ideias entre classes
médias mais ocidentalizadas.
Os problemas de privação econômica nos contextos em que esta prática costuma ocorrer são inegáveis, mas a miséria, em si mesma, pouco a
explica. A prática da circulação, como mostram estudos históricos e os de
Fonseca (2000), tem sido comum, também, entre grupos sociais mais abastados. Ela vem ocorrendo ao longo, pelo menos, dos últimos dois séculos na
história brasileira, pelo que não pode ser associada, para Fonseca, a teorias
a casa das mulheres 101
como as de estratégias de sobrevivência dos anos 1960. Essa é uma prática
que carece ser entendida e explicada, cujo significado precisa ser melhor
integrado, a um modelo cultural, como por exemplo, o de grupos afro-descentes. No caso da pesquisa que resulta nesta publicação, este ingrediente
é um dos que lhe outorga maior inteligibilidade. No modelo matriarcal estudado adiante, estes elementos, tanto o da circulação de crianças da rede
consanguínea como a criação de filhos não consanguíneos são centrais e
constitutivos da forma mesma de operar e reproduzir o sistema de parentesco, motivo pelos que são retomados neste momento.
Dados interessante sobre a presença de “outros parentes” ou “não parentes” nos domicílios brasileiros, para além dos de membros de um grupo
nuclear, é apresentado por Parry Scott (2002) quando associa esta informação à variável da responsabilidade dos domicílios por sexo. Ele afirma
que este tipo de composição extensa dos lares é mais comum em lares chefiados por mulheres do que por homens. Na sua análise de domicílios chefiados por mulheres do Censo Demográfico 2000, a presença de pais, mães,
netos, netas e outros parentes (ou não parentes) é mais marcada em domicílios com mulheres responsáveis (25,4% do total dos participantes) do que nos
domicílios chefiados por homens (5,2%). Enquanto para os lares chefiados
por mulheres uma de cada três pessoas na família não seria marido ou filho,
para os homens, apenas uma de cada oito pessoas não é esposa ou filho. Isto
aponta, segundo Scott, para uma clara evidência de um maior acionamento
das redes sociais mais ampliadas para o sustento e a convivência por parte
das mulheres.
Famílias chefiadas por mulheres
O crescimento acelerado de domicílios chefiados por mulheres nas últimas
décadas, normalmente associado à ideia de famílias de mulheres sem companheiros, é considerado das principais revelações estatísticas nacionais e mundiais mais recentes. Dentre os fenômenos que têm contribuído para o crescimento da chefia feminina, destacam-se os de origem cultural, econômica e
sociodemográfica. Certamente parte deste incremento de fato se deve a uma
série de modificações nos modos de vida das famílias contemporâneas, com a
ampliação dos índices de separações, divórcios, novos casamentos, formação
102 maria gabriela hita
de domicílios unitários, etc. Entretanto, o fenômeno da chefia feminina sempre existiu, e é evidente o quanto foi subestimado no passado. Assim, é possível que parte desse diferencial se deva também ao fato de que, apenas agora,
os dados estejam sendo medidos e visualizados mais adequadamente. Por isso
seria errôneo tratá-lo simplesmente como resultado de um fenômeno emergente. Defendo que o é também por surgir como novo fato conceitual, que
passou a chamar a atenção de pesquisadores recentes, independentemente
de sempre haver existido.
Por sua vez, vários são os estudos que associam lares chefiados por mulheres à ideia de feminilização da pobreza, identificados com os mais vulneráveis da sociedade por se pressupor que sofrem maiores carências econômicas, dado que salários de mulheres chefas são geralmente menores que
o de chefes homens, etc. (BARROSO, 1978; BASTOS, 1989; CASTRO, 1990;
GOLDANI, 1994; JELIN, 1994; NEUPERT, 1988; OLIVEIRA, 1992b, 1996;
OLIVEIRA; BERQUÓ, 1990; GONZÁLEZ DE LA ROCHA, 1988) Mas, se por
um lado é fato incontestável que muitos desses lares se encontram em situações de desvantagem, em relação a outros chefiados por homens, análises
mais cuidadosas e sofisticadas do fenômeno mostram a falsidade dos pressupostos nos quais se assenta essa ideia da feminilização da pobreza ao introduzirem novos fatores à análise da questão.16 Cabe observar, também, que
a grande maioria desses estudos tendem a definir a chefia feminina como
16
Estudos como os de Cortés e Rubalcaba (1994), com análises estadísticas mais sofisticadas, comparam o grau de vulnerabilidade de distintos tipos de lares chefiados por homens e mulheres,
no México. Neles se indica, por exemplo, como lares chefiados por homens, nos quais o único
salário é o da mulher serão, em geral, mais vulneráveis do que lares chefiados por mulheres ou
homens onde a composição de renda seja resultado do trabalho exclusivo de um dos dois gêneros. Quando a renda do lar resulta do trabalho combinado de mais pessoas, a vulnerabilidade se
reduz, independente de serem eles chefiados por homens ou mulheres. Este estudo indica, assim
como os de Chant (1997) e González De la Rocha (1997), que a vulnerabilidade do lar depende
de outros fatores para além ou exclusivamente da renda do chefe ou tipo de chefia por gênero.
É igualmente relevante observar o modo como os recursos obtidos são gastos ou aplicados nesses lares, se para o bem coletivo ou para uso individual. Tais pesquisas demonstraram como,
mesmo em lares onde mulheres ganhavam menos, a tendência era a de uma melhor administração do recurso do que em lares chefiados por homens, onde a renda principal era aplicada
fora do lar com amizades, outras mulheres e bebidas. Também apontam que lares chefiados por
mulheres, de modo geral, conseguem mobilizar maiores redes de apoio que os chefiados por
homens, e estas redes, por sua vez, são elementos fundamentais no combate à pobreza. Outro
resultado valioso das pesquisas de Chant (1997) e González De la Rocha (1997) sobre lares chefiados por mulheres é o da relação com o tema da violência: apontam que lares com chefia feminina são menos violentos e mais harmônicos que aqueles com chefia masculina. Até 2013, eram
a casa das mulheres 103
associada seja a famílias mono-parentais em domicílios caracterizados pela
ausência masculina adulta, o que nem sempre é o caso para alguns autores;
seja definindo a chefia como correlacionada ou sinônimo de ser a mulher a
principal ou única provedora de renda no lar. Pesquisas como as de Chant
(1997), González De la Rocha (1997) e de Macedo (2008, 1999) não apenas
contestam o pressuposto da maior vulnerabilidade de lares chefiados por
mulheres, como demonstram as diversas situações e tipos de lares que são
chefiados por mulheres. No caso do estudo de Macedo variam por diferenças
de classe e estado civil das mulheres, nas de De la Rocha e Chant há referências a gama mais ampla de fatores econômicos, culturais e sociais que podem
se cruzar, sobre o estágio de curso do ciclo de vida de grupos domésticos e
indivíduos, das distintas situações e contextos sociais e simbólicos nos quais
estas mulheres chefas estão inseridas.
Chant (1997) classifica as formas de chefias femininas encontrados pelo
mundo em seis tipos, a saber, as encontradas em: a) Lares de mães solteiras
(Lone Mother Households), com variedade significativa de subtipos em função
do status marital, estágio do curso de vida, classe, raça, apoios recebidos de
outras redes ou pessoas, etc; b) Lares extensos (Female-headed extended households), que também têm variações como no caso anterior e tende a ocorrer
em idade mais avançada; c) Lares de mulheres sozinhas (unipessoais) (Lone
female households); d) Lares de apenas mulheres (Single sex/ female-only households), com mulheres parentes ou não, com ou sem filhos, no caso filhas,
apesar de alguns estudos incluírem filhos do sexo masculino como formando
parte deste tipo. Chant, contudo, problematiza estas posturas e sugere que
tais casos ficariam melhor inseridos na seguinte tipologia; e) Lares com predominância de dominância feminina (Female-dominant/predominant households). Neles há duas ou mais mulheres adultas, podendo haver presença
de homens, em posição dependentes, em geral filhos das mulheres; f) Lares
chefiados por avós (Grandmother-headed households), formado por avós e seus
netos. A diferença com os lares extensos, com os quais poderiam ser confundidos, é que se trata apenas de avós e netos, sem respectivos pais das crianças
ou outros parentes. Ainda menciona outra modalidade, que na realidade não
escassos estudos comparativos deste fenômeno no mundo todo, foco sobre o qual se ocupou
Chant, cuja obra é uma das pioneiras e de maior envergadura nesta direção.
104 maria gabriela hita
a define propriamente como novo tipo de chefia feminina, mas recupera a
relevância de sua identificação para compreender a presença do fenômeno
oculto nas estatísticas oficiais: o que Chant(1997) chama de Chefias femininas
embutidas (Embebed female-headed units), que são, em geral, os casos de mães
adolescentes incorporadas nos lares dos pais. A rigor, esta não seria uma nova
tipologia, pois a chefia do domicílio difere da chefia do sub-grupo familiar,
motivo pelo que Chant propõe a segunda terminologia para detectar o fenômeno. Estas tipologias são úteis para melhor medir, definir o fenômeno e
elucidar os tipos de chefia envolvidos nesta pesquisa, que combina elementos
das chefias femininas em lares extensos com o de lares chefiados por avós.
Contudo, não é suficiente construir boas tipologias, apesar da utilidade
delas na elucidação do fenômeno. O tema da chefia familiar é complexo e
de difícil medição por si mesmo, ele depende das definições das que parte
cada autor. Em alguns estudos demográficos, o conceito associa-se ao
critério de rendimento do principal provedor da unidade doméstica. Tal
fato, a depender do tipo de estratégia metodológica, pode ser automaticamente projetado sobre o homem adulto e suposto provedor da casa: pai e
esposo. Visto que em domicílios populares o orçamento familiar pode ser
composto pela colaboração de vários membros, simultaneamente, a identificação do chefe pode não resultar eficaz ao se considerar apenas este
critério. No censo brasileiro, para se determinar a chefia familiar (ou responsabilidade do domicílio) adota-se o critério da autoidentificação pelos
entrevistados. Assim, é um membro da unidade doméstica entrevistada que
determina quem é o responsável pelo domicílio. Esta forma de medição
contorna certas ambiguidades, mas não garante um preciso controle de sua
extensão. Possivelmente estão se misturando critérios distintos, não explicitados ou distinguidos, do que se entenda por chefia ou responsabilidade
pelo domicílio em cada caso pelos respectivos entrevistados. Em uma sociedade patriarcal, como ainda é a brasileira mais em umas regiões que em
outras, ao menos no campo simbólico e dos relatos públicos, é bem possível
que a captação da chefia familiar feminina ainda seja, de algum modo, subestimada e nem sempre autodeclarada. Enquanto alguns autores definem
a chefia feminina por quem é o principal provedor do lar, para outros como
Sylvia Chant (1997), esse é um indicador relevante, porém não o mais im-
a casa das mulheres 105
portante ou único para definir a chefia de um lar. Segundo a autora, melhor seria nestes casos falar de mulheres que mantém esses lares, mas não
de atribuir a elas, necessariamente, a chefia deles. Para Chant (1997), toda
chefia feminina se define pela ausência de parceiros sexuais da chefe do lar.
Nesse sentido, então, nunca uma mulher casada poderia ser chefe de lar,
como sim o indicam outros estudos que não compartilham esta definição.
Outros critérios que interferem na definição da chefia são a propriedade da
casa e o da autoridade familiar em relação aos outros. Woortmann (1987), em
estudo sobre os Alagados, ilustra-o com várias situações em que a definição de
chefia dependeria da situação de cada grupo familiar: a autoridade da família
centrada no homem ou na mulher, a posse da casa seja de um ou do outro, a responsabilidade última pela família ou filhos seja da mãe ou homem da casa, etc.
Aponta que na sociedade baiana, o percentual de chefia feminina estava subestimado quando realizou o estudo nos anos 1970. Cada caso de chefia precisaria
ser analisado em suas particularidades com metodologias sensíveis e capazes de
observar dinâmicas de lares e suas relações, como são as técnicas etnográficas.
A polêmica sobre o que significa ser responsável ou chefe nem sempre se resolve com coletas de dados censitários, porque os valores e significados de relações hierárquicas vividas pela população quando pensa sobre suas famílias não
podem ser completamente desvendados com dados dessa qualidade.
Dados próximos aos da época da pesquisa apontavam que a Bahia estava entre os primeiros estados do Brasil em termos do aumento de lares
chefiados por mulheres, o que confirmava tendência similar verificada em
toda a América Latina. Dados dos censos de 1991 e de 2000 indicaram que
o crescimento deste fenômeno foi de 35,3%, ao longo da década. Segundo
publicação da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
(SEI) sobre esse último censo, o estado baiano estava atrás apenas do Distrito
Federal (32,8%), Rio de Janeiro (31,2%), Amapá (28,9%), Pernambuco (28,3%)
e Sergipe (27,9%), com um percentual de 27,1 % de chefias femininas. Este
crescimento foi mais significativo em zonas urbanas do Brasil (35,3%) do que
nas rurais (17,7%). Entretanto, quando se considerou a informação por município, as capitais da Bahia e de Pernambuco apareceram como a segunda e
terceiras cidades com maiores índices de chefia feminina, apenas precedidas
por Porto Alegre, com 38,2% de chefes mulheres.
106 maria gabriela hita
Segundo dados do Censo Demográfico (IBGE), Salvador apresentou, em
2000, o percentual de 35,9% de chefias femininas. Diferença importante, entretanto, eram os índices de qualidade de vida entre as cidades do sul e nordeste. A média de anos de estudos dessas pessoas em Porto Alegre era de 8,7
anos e a renda média era superior à nacional que era de R$1.101,20. Já em
Salvador, a renda média da capital era de R$ 657,81. Por sua vez, no Nordeste de
Amaralina, a renda média dos chefes não superava os R$ 427,43 e sabe-se que
a das mulheres, era de modo geral inferior à masculina. Apesar das melhorias
educacionais e do aumento das rendas dos chefes de domicílio na Bahia na última década, mais da metade dos responsáveis de domicílios no censo de 2000
(53,9%) possuía apenas três anos de estudo – nível de estudo que compõe o
chamado analfabetismo funcional. Para o conjunto do país, essa porcentagem
era em torno de 34,7%. (IBGE, 2000) Embora as mulheres chefes predominavam entre as pessoas responsáveis de domicílios com mais anos de instrução,
isso não redunda, como tem sido observado, em vantagens financeiras, pois
ao analisar-lhes as rendas, percebeu-se a tendência contrária à da escolaridade
e uma maior vantagem masculina nesse aspecto. Interessante para a pesquisa
foram os dados de chefias domiciliares por faixa etária e sexo que Parry Scott
(2002) analisou, em nível nacional. De tais dados, recupero apenas os específicos para o estado da Bahia na Tabela 5, a seguir, que apontam o aumento da
chefia feminina em coortes de pessoas mais velhas.
Tabela 5 – Percentual dos responsáveis por domicílios na Bahia por sexo segundo algumas faixas
etárias
Faixa etária
Homens
Mulheres
10 - 19 anos
1,2%
1,3%
25 - 29 anos
10,5%
6%
40 - 49 anos
22,2%
20,8%
60 – 64 anos
5,9%
8,5%
Fonte: IBGE, 2001a apud SCOTT, 2002.
A Figura 1 foi elaborada a partir de dados do IBGE sobre a cidade de
Salvador referentes ao NE de Amaralina. O percentual de chefias femininas
a casa das mulheres 107
declaradas no NE de Amaralina foi superior ao da região metropolitana, na
ordem de 38,24 %.
Figura 1 – Responsáveis pelos Domicílios no Nordeste de Amaralina por sexo
Homens
Mulheres
Homens,
61.76%
Mulheres,
38.24%
Nota: Total de domicílios = 13.689
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico, 2000.
Na Tabela 6, apresento os principais dados sistematizados sobre chefias
no Nordeste de Amaralina no ano 2000. Quanto aos níveis de estudos dos
responsáveis de domicílios por sexo, o Gráfico 2 apresenta perfil em que predominava, em números relativos, a chefia feminina entre as pessoas com
menos anos de estudos:
Tabela 6 – Anos de estudo dos responsáveis de domicílio por sexo no Nordeste de Amaralina
Homens
Mulheres
TOTAL
0 - 4 anos de estudo
3399 (40,20%)
2781 (53,24%)
6180 (45,21%)
5 - 9 anos de estudo
3031 (35,85%)
1476 (28,26%)
4507 (32,97%)
10 - 12 anos de estudo
1887 (22,32%)
899 (17,21%)
2786 (20,38%)
128 (1,51%)
67 (1,28%)
195 (1,43%)
8444,0012 (100%)
66,9872 (100%)
194,9857 (100%)
13 anos de estudo ou mais
TOTAL
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico, 2000.
108 maria gabriela hita
Figura 2 – Anos de estudo dos responsáveis pelos domicílios no Nordeste de Amaralina, segundo o
sexo
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
0-4
5-9
10 - 12
> ou = 13
Anos de Estudo
Homens
Mulheres
TOTAL
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico, 2000.
Na Tabela 7 e nos dois gráficos correspondentes (Figura 3), a proporção
da população masculina e feminina de habitantes no bairro é mais próxima
nas primeiras faixas etárias. Em etapas mais avançadas de idade, esse diferencial se distancia com predomínio da população feminina. Fenômeno
similar acontece, em números relativos, com as chefias domiciliares, ainda
que não o apontem os números absolutos, pois as chefias familiares entre
20 e 49 anos somados representam 68,8% (ver dois gráficos da Figura 3).
Em números relativos, entretanto, somente 35,9% das pessoas nessa faixa
etária são chefes de domicílio. Entre um contingente acima de 50 anos,
obteve-se chefia familiar em torno de 30% da população (soma das faixas
50-59 e 60 anos ou mais do gráfico à esquerda). Todavia, quando este dado é
comparado ao interior das respectivas faixas etárias (gráfico à direita), temse que 65% ou mais das pessoas com essa idade são chefes de domicílios.
Estes dados são reveladores do tipo de composição familiar e participação
dos idosos neste contexto de estudo. Os dados indicam a grande proximidade das chefias com o avançar dos anos, sendo superada pela feminina
entre os mais idosos. É possível que em contextos de pobreza como o do
Nordeste de Amaralina essa tendência se acentue.
a casa das mulheres 109
Tabela 7 – População do Nordeste de Amaralina por sexo e faixa etária (absolutos e percentuais) e
responsáveis pelos domicílios por faixa etária
Responsáveis pelos
domicílios
Habitantes
Faixa etária
Homens
Mulheres
% do
Total
% do
Total
Total
% do
Total de
hab.
0 – 9 anos
5192
51,4%
4913
48,6%
10105 (18,8%)
0 (0%)
0%
10 – 19 anos
5452
49,2%
5628
50,8%
11080 (20,6%)
102 (0,7%)
1,0%
20 – 49 anos
12281
46,8%
13967
53,2%
26248 (48,4%)
9420 (68,8%)
35,9%
50 – 59 anos
1402
44,6%
1745
55,4%
3147 (5,8%)
2037 (14,9%)
64,7%
60 ou mais
1228
38,7%
1948
61,3%
3176 (6,0%)
2130 (15,6%)
67,1%
Total Geral
25555
47,5%
28201
52,5%
53756 (100%)
13688 (100%)
25,5%
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico, 2000.
Figura 3 – À esquerda, “Responsáveis pelos domicílios por faixa etária”. À direita, “Porcentagem de
habitantes por faixa etária e da participação dos responsáveis por domicílios nos totais das faixas
etárias”
100
51.87%
50%
80
40%
48.4
40
Fonte: IBGE, Resultados do Universo do Censo Demográfico 2000.
maria gabriela hita
al
+
9
-5
Anos de Idade
Habitantes
To
t
50 - 59 60 ou +
Anos de Idade
ou
20 - 29 30 - 49
6
60
10 - 19
0
-9
0.74%
5.8
1
50
0
0
25.5
20.6
18.8
-4
9
10%
20
20
15.56%
-1
9
14.88%
10
16.95%
20%
110 67.1
64.7
60
30%
0%
100
%
60%
Responsáveis pelos Domicílios
Na Tabela 8, está resumida percentualmente a evolução das chefias familiares em Salvador, por faixa etária e sexo nos anos de 1987, 1996 e 2000.
Nota-se o aumento da chefia feminina em todas as faixas etárias e, de forma
mais acentuada, em coortes mais maduras, quando a chefia de homens e
mulheres praticamente se equipara. No Nordeste de Amaralina, o percentual
de chefia feminina era superior ao de Salvador; então, suponho que esse diferencial era maior entre mulheres acima de 50 anos, do que entre homens,
fase do curso vital familiar que costuma coincidir com os das famílias extensas e dos arranjos matriarcais como serão descritos adiante. Em princípio, se poderia considerar como matriarcais, lares extensos chefiados por
idosas, mas isso depende da definição a ser usada e no caso da que apresento
adiante, não se poderia fazer essa generalização.
Tabela 8 – Chefia familiar por sexo e faixa etária, em 1987, 1996 e 2000, na Região Metropolitana de
Salvador
1987
1996
2000
Faixa
Etária
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
Homens
Mulheres
10 – 19
0,67%
0,30%
0,39%
0,19%
0,41%
0,04%
20 – 49
54,73%
14,53%
51,78%
14,98%
46,7%
22,13%
50 – 59
11,39%
4,85%
9,66%
5,06%
9,26%
6,21%
60 ou +
7,20%
6,64%
9,44%
8,11%
7,66%
7,65%
Total
73,79%
26,21%
71,74%
28,26%
64,10%
35,90%
Fonte: Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)/IBGE 1987 e 1996;
Dados do Universo Censo Demográfico/IBGE 2000.
Assim, acredito, apoiada no conjunto geral de dados apresentados e especificamente aqueles por faixa etárias e sexo na Bahia, assim como por aqueles
sobre a prevalência de chefias femininas em lares de tipo extenso com outros parentes e não parentes que aponta Parry Scott (2002), que esse percentual estimado das chefias femininas supere o das masculinas nas idades mais
avançadas, especialmente naqueles arranjos de tipo extenso, contingente
entre os que se encontram os arranjos matriarcais.
Longe de afirmar que entre o contingente de lares extensos mais da metade sejam matriarcais, apesar de ser possível afirmar que mais da metade
a casa das mulheres 111
são chefiados por mulheres, o que defendo é uma noção que privilegia concepção de família em plural, dadas as diferentes formas e tipos de composições familiares que adotam distintos modos de organização doméstica
na realidade observada, sejam elas extensas, parciais, nucleares. O fato de
serem significativos os percentuais de famílias que não logram ou desejam
o modo de organização nuclear apresentado pela sociedade como ideal me
impulsiona a desconsiderar “a família” como concebida em singular. Ao
adotar o termo em plural, parto de alguns questionamentos como: qual a
relação entre o modo de organização de família como instituição e outros
modos de organização alternativos?
Pensar na família entre grupos populares a partir dos moldes do modelo nuclear parsoniano, com pai, mãe e filhos, cujas funções estariam sempre claramente pré-definidas entre estes membros pode ser, em muitos dos casos, incompatível com experiências cotidianas de muitos grupos de famílias. Isto é
mais significativo em contextos como os do Nordeste brasileiro, sobre o qual
os dados da pesquisa elucidam o modo como essa diversidade de arranjos domésticos opera, quais os tipos de relações, obrigações e normas que se desenvolvem em seu interior, as quais nem sempre são as encontradas em um modo
de organização nuclear, com chefia masculina e tem no pai o principal provedor. É preciso indagar e observar se a presença e papel exercido por outros
parentes, além dos integrantes de um arranjo nuclear típico, introduzem novos
elementos na análise; quando e em quais casos o fazem, se a presença de outros
parentes pode modificar as formas de interações intra-familiare, ou não; em
quais casos o fazem e em quais não. É isto o que me interessou fundamentar
nesta obra, cujos próximos capítulos mostrarão como estes arranjos familiares
estariam operando para um dos modos de organização doméstica: o de famílias
extensas e matriarcais. Por isso, partindo do estudo pormenorizado e etnográfico do modelo matriarcal, considero mais frutífero, ao se considerar “famílias”,
que é preciso nomear e outorgar legitimidade conceitual às especificidades
deste tipo de arranjo ou modo de organização doméstica. Não cabendo, portanto, ver-lhes apenas pelo que lhes faltam em relação ao arranjo padrão ou no
que se diferencia dele.
Parto da hipótese de que em famílias extensas há maior propensão à formação de arranjos de tipo matriarcal como o descrito adiante e na direção de
Klass Woortmann sobre ciclos vitais domésticos. Para Woortmann (1987), as
112 maria gabriela hita
mulheres maduras e idosas, mais estabilizadas economicamente que na juventude e no mais das vezes já sem parceiros, tendem a assumir a chefia das
casas e famílias, em amplas e extensas redes de parentesco. Este fato fica bem
perceptível nos dados analisados do IBGE em 2000.
Durante a coleta de dados nas outras redes de parentesco que analiso
adiante foi possível produzir base de dados extensa, complexa e difícil de sistematizar, mostrando como as casas matrizes observadas transitaram por distintos estágios e tipos de configuração, passando por momentos de arranjos
nucleares, nucleares incompletos, compostos, até chegar aos arranjos extensos
descritos. Foram esses os lares escolhidos porque é em grupos de tipo extenso
que o princípio de matrifocalidade pode ser mais visível e operante, o que dificilmente seria captado sem uma estratégia metodológica adequada como a
que resultou na presente pesquisa. Disso é do que tratarei em capítulos próximos. Mas no seguinte ainda apresento outros dados mais qualitativos sobre
o bairro onde estas famílias estão inseridas. Nele apresento a importância das
práticas sociais e de sociabilidade que só podem ser captadas com informações
de teor etnográfico e que revelam processos de reprodução e modo de significar o mundo neste tipo de contexto.
a casa das mulheres 113
m
Capítulo III
identidades, violência
e vida cotidiana no
nordeste de amaralina
Neste capítulo, abordo, a partir de estudos etnográficos realizados no
Nordeste de Amaralina no início dos anos 1990,1 outros aspectos relevantes
do contexto de estudo para esta obra. Apresento reflexão em torno do processo de construção de identidade do local pelo destaque de dois tipos de
análises que se interpenetram e enfatizam o tema da constituição da identidade e do espaço social e físico do bairro. A partir de reflexões que enfatizam
perspectivas e representações dos próprios moradores sobre o local, sobre si
mesmos, os vizinhos e também das diferenças com o resto da cidade, busco
focalizar distintos posicionamentos internos dos moradores do bairro.
Na segunda parte, realizo esforço analítico similar ao aprofundar argumentos em torno da identidade do local e, de modo mais específico, ao
abordar o tema da diversidade de representações que expressam a violência
em diversos dos domínios, o familiar, da vizinhança, do bairro como um todo.
Ao propor este tipo de analise das distintas representações a seguir antecipa-se o argumento central desta obra, a ser retomado de modo mais detalhado em capítulo VI quando trato do tema das casas matriarcais; qual seja o
da indissolúvel e dinâmica relação que existe entre o espaço social, simbólico
e físico ocupado pelos indivíduos. Isto significa afirmar, inspirada em pensamento de Bourdieu sobre espaço social e simbólico (1997), que a identidade
e o modo de pensar das pessoas são configurados e expressos na posição
que ocupam na estratificação social, no bairro, na vizinhança e respectivas
famílias. Tais posicionamentos não são fixos, podem mudar com o tempo
a depender dos investimentos e tipos de recursos que cada indivíduo logra
mobilizar em suas trajetórias, quando se incorpora a perspectiva de análise
diacrónica de suas vidas, para além da sincrônica.
Em suma, este capítulo trata do modo como a identidade destas pessoas é
dinâmica e mutuamente constituída pela relação de ida e vinda entre o lugar
1
Uma primeira sistematização destes estudos etnográficos encontra-se em Hita (1994). Outra foi
realizada na obra de Rabelo, Alves e Souza (1999). Em Hita (1994), está sistematizado e analisado
ampla gama de temas tratados em entrevistas gravadas e transcritas por uma etnógrafa contratada pelo ECSAS, que coletou os dados com uma diversa e bem escolhida amostra de moradores
do bairro, numa amostra de aproximadamente 20 entrevistados. Dados parciais apresentados e
publicados em diferentes anais de eventos nacionais.
a casa das mulheres 117
ocupado por elas num campo e estrutura social do contexto onde estão integradas; por um lado, a da definição e constituição destes lugares pelas pessoas, relações que neles vivem e transitam e distintos lugares por elas ocupados na estruturação social que são, por sua vez, poderosos indicadores do
modo como se constituem tanto pelo espaço do que fazem parte, como das
relações travadas, sinalizando o modo como elas se veem e são, ao mesmo
tempo, vistas pelos outros; como pensam sobre si e sobre os outros e como
se posicionam frente a diferentes situações e eventos das respectivas vidas.
Tudo isso é dinâmico e melhor captado pelo uso e perspectiva de análises
situacionais propostos em estudos urbanos pela escola de Manchester em
métodos de caso extenso e na antropologia urbana do Ulf Hannerz (1980).
Defendo que o lugar ocupado por diferentes pessoas em uma diversidade de
campos sociais é excelente indicador para analisar o modo como se processa
a própria constituição da identidade local em diferentes matizes e posicionamentos internos.
IDENTIDADES, DIFERENÇAS E
SOCIABILIDADE NO NORDESTE DE
AMARALINA
p
Ao analisar as relações das pessoas no interior do bairro, seus valores, modos de identificação e tipos de sociabilidade, é perceptível que um elemento
importante para entender o Nordeste de Amaralina depreende-se da própria história da constituição do bairro. O nome Amaralina vem de Amaro,
nome do dono de uma grande extensão de terras que, loteadas, também deram origem a outros dois bairros mais ricos e limítrofes: Amaralina e Pituba.
Tal gênese remonta a uma origem comum e, simbolicamente, registra certo
estado de in-diferenciação de identidade (que parecia ser reeditada quando
alguns moradores, os mais antigos e estabilizados, preferiam nomear suas
ruas com o nome que elas têm na sua continuação da Pituba, e não com os
nomes que ganharam ao interior do bairro). Pretensa igualdade perde força
118 maria gabriela hita
à medida que o processo de desenvolvimento e crescimento do bairro avançava, e em que seus filhos foram se sentindo cada vez mais Nordeste e menos
Amaralina; tal identificação era explícita em referências recorrentes dos mais
jovens quando afirmavam: eu sou do Nordeste, eu moro no Nordeste, eu nasci
no NE. A estratificação ao seu interior é grande e um marcador importante é
o da antiguidade no bairro.
Em Os Estabelecidos e Outsiders, Norbert Elias (2000) desenvolve interessante reflexão teórica e etnográfica sobre estudos de comunidade no campo
dos Estudos Culturais. O foco do estudo são as relações de poder no interior
de um bairro de classe trabalhadora industrial da Inglaterra após a Segunda
Guerra Mundial. O local, denominado Winston Parva, não se autopercebia como comunidade relativamente homogênea, apesar dos habitantes
não apresentarem significativas diferenças de classe, status ou condições
socioeconômicas e culturais – numa direção muito similar à observada no
Nordeste de Amaralina. A sua obra é virtuosa devido a produtividade teórica e reflexiva resultante do ecletismo metodológico que, pelo tratamento
de fontes diversas – observação participante, entrevistas, estatísticas oficiais,
relatórios governamentais, documentos jurídicos e jornalísticos –, permite
alcançar o conjunto de pontos de vista (e de posições sociais) que formam a
figuração social que Elias descreve. Mediante o uso dessa triangulação metodológica, combinando distintas técnicas, fontes e níveis de análises, Elias
busca compreender a natureza dos laços de interdependência que hierarquizavam, separavam e uniam indivíduos e grupos sociais naquele contexto da
Europa do pós-guerra.
Para Elias, Establishment e Established (Estabelecidos) são palavras que designam grupos e indivíduos em posições de prestígio e poder: a minoria dos
melhores. Um established se autopercebe e é reconhecido como identidade
social, cujo poder se funda no fato de ser modelo moral para outros pela
combinação singular que faz entre tradição, autoridade e influência. Os que
estão fora desta sociedade ou identidade são os Outsiders (os Excluídos), um
conjunto difuso de pessoas, não propriamente um grupo social, unidas por
laços menos intensos do que aqueles que formam o Establishment. Segundo
Elias, a relação Estabelecidos–Excluídos, baseada em relações de diferença e
desigualdade social é uma propriedade geral de toda relação de poder, que
a explica e ilumina em todos os níveis: familiar, local, cultural, nacional, intercontinental ou mundial. Um termo complementa o outro, nega o outro
a casa das mulheres 119
por defini-lo como seu oposto mas, e ao mesmo tempo, o une, indissociavelmente, a esse outro pelo laço tenso e desigual de interdependência que os
constitui e define mutuamente.
Na comunidade estudada por Elias, os estabelecidos fundavam distinção
e poder em princípio de antiguidade em relação aos excluídos, que eram estigmatizados por atributos associados com a anomia, como a delinquência,
a desintegração e a violência. Os estabelecidos se identificavam como os
moradores mais antigos de Winson Parva, e eles projetavam sobre os mais
novos uma série de desqualificações, indicando com isso a presença de dois
mundos sociais diferentes. Essa é uma das virtualidades de toda relação de
poder, no entender de Elias, e que se expressava naquele contexto mediante
a projeção ao outro do uso da força física, da violência e do assassinato.
A mesma divisão que Elias encontrou no bairro operário inglês do
pós-guerra foi encontrada nos estudos etnográficos sobre o Nordeste de
Amaralina na década de 90. As diferenças entre moradores antigos e mais
recentes não pareciam, à primeira vista, ser apenas materiais, pois os primeiros geralmente tinham melhores casas; era especialmente de teor e
ordem simbólica, os mais novos pareciam carregar a responsabilidade pelo
estigma do bairro como mais violento e degradado. Todavia, entremeados
pelas áreas mais assentadas, de vizinhança estabilizada, era perceptível a
existência de inúmeros segmentos de pobreza antiga quase tão carentes
quanto os recém-chegados de novas invasões, onde a presença da violência – bem o indicam relatos mais privados se contrapondo aos públicos2
– é tão presente nestas áreas como naqueles espaços das novas invasões.
A concepção e os relatos públicos que os moradores apresentam sobre o próprio bairro é uma das maneiras de expressão a identidade social enquanto
grupo e expressam como é visto pela sociedade de modo geral. Ao mesmo
2
Cornwell (1984 apud CASTRO, 2000) distingue o relato privado do público. O relato público remete a grupos de significados compartilhados que legitimam supostos sobre a natureza da realidade social. Em um relato público, as pessoas sabem que, não importa o que digam, o dito será
sempre aceitável pelos outros (por fazer parte de representações compartilhadas pela sociedade).
Portanto, este tipo de relato reflete apenas parcialmente a experiência das pessoas. Os relatos privados, por sua vez, estão vinculados com a experiência pessoal e os sentimentos dos indivíduos,
surgem quando o indivíduo é convidado a pensar e responder a partir de um contexto de interação onde se considera apenas o próprio ponto de vista e que exige tratamentos metodológicos
mais qualitativos e experiência do pesquisador. Os primeiros tipos de relatos surgem como respostas a perguntas diretas feitas pelo entrevistador, em questionários padronizados, os segundos,
quando os pesquisadores convidam os informantes a relatar experiências livremente.
120 maria gabriela hita
tempo imprime distintos matizes que expressam lugares variados onde cada
um se posicionava e falava dos outros. Este princípio de poder e identidade
que operou entre Excluídos X Estabelecidos descrito por Elias – similar ao
princípio hierárquico descrito por DaMatta (1978; 1987a) – também opera
ao interior das redes de parentesco estudadas como se verá em capítulos seguintes, respondendo a diferentes posicionamentos e lutas de poder. Outros
fatores serviram para hierarquizar e produzir desigualdades internas em um
mesmo grupo familiar, por exemplo, como os de gênero, idade, consanguinidade ou consideração.
No discurso dos moradores do NE sobre o passado do local apareciam características contrastantes entre a história mais recente, antiga e o do momento
em que as entrevistas foram realizadas. De um lado havia uma atitude de idolatria da tranquilidade do passado que se contrapunha ao da violência crescente daquela outra atualidade, mas também se reconhecia evidente melhora
de condições estruturais e de maior infraestrutura que facilitaram a vida cotidiana e melhoraram as condições de vida desses moradores, quando o comparavam ao início da ocupação do bairro.
Não havia tantas casas no Nordeste, era matagal, mais isolado. O ônibus
chegava só até a Amaralina, o resto era a pé. (D. Anete, 40 anos)
O discurso de moradores mais antigos evidenciava características contrastantes do passado em relação à história mais recente. O processo de identidade parecia ocorrer por polaridades. Comparavam-se as condições atuais
positivas – como maior urbanização, acesso aos serviços e transportes, etc. –
com dificuldades do início da ocupação. Com relação aos aspectos negativos
da atualidade, identificavam o aumento da marginalidade como o maior
problema, mas falavam também da sujeira e da elevação do custo de vida, da
fofoca e brigas com vizinhos, entre outros.
Outro tema que emergia era o da proximidade física do Nordeste de
Amaralina à Pituba, um bairro de classes mais altas e dos mais modernos de
Salvador. Este fato permitia aos moradores realizar a constatação das permanentes e desiguais diferenças sociais que os identificam no conjunto da
sociedade como classe desprivilegiada.3 Da imagem estigmatizada e negativa
3
A proximidade física outorga a ambos os bairros uma história comum e interação de mútua necessidade, reciprocidades e constante ameaça, seja pelos vitais laços econômicos nas relações
a casa das mulheres 121
associada às invasões, como símbolos da pobreza e degradação social, buscavam fugir os moradores mais antigos e estabilizados do bairro. Assim, ao
explicitarem a existência desta marginalidade e conferir-lhe exterioridade,
afirmavam-se como diferentes. Neste sentido, utilizam o modelo operativo
do princípio hierárquico polarizado em processos de identificação descrito
por DaMatta (1978, 1987a) para a sociedade brasileira, no qual, no caso dos
menos privilegiados ou mais pobres tendem a destacar contrastes morais 4
e econômicos. Este procedimento é utilizado tanto para hierarquizar iguais
quanto para igualar diferentes. Ao se falar do outro, de qual ego pretende se
distinguir, tende-se a erguer discursos mais generalizantes e estigmatizados.
Pelo contrário, quando o discurso é sobre si mesmo, tende-se a apresentar
posturas matizadas, mais relativizadas e flexíveis.
O processo de identificação descrito, entretanto, não era tão polarizado
como parecia à primeira vista. Entre os moradores mais antigos e estabilizados, como dito, foram encontradas também posturas mais tolerantes e integradoras frente aos considerados novos invasores ou aos grupos de delinquentes da comunidade. Isto parecia ocorrer, normalmente, entre aqueles
que tinham interações mais intensas com a invasão, pelo tipo de ocupações
desempenhadas, se eram proprietários de bar ou comércio, agentes de saúde,
parentes ou amigos de infância de algum marginal conhecido, etc. Entre moradores de invasão é possível distinguir posturas igual ou tão estigmatizadoras, relativo aos vizinhos, como as encontradas em velhos assentamentos
ou áreas mais antigas. O seguinte fragmento de uma narrativa é elucidativo
dessa polaridade e do processo de identificação que afirma a capacidade de
honestidade e de trabalhador daquele que está falando, no posicionamento de
uma moradora antiga do NE, estigmatizando os lugares ocupados pelas pessoas provenientes das novas invasões:
Ói, eu vou te contar, Deus vai me perdoar, mas eu não sei não, mas
esse negócio de invasão... O povo diz assim: <ah! que tem gente que
precisa>, mas eu digo: que nada [...] Sabe o que é isso? Hoje em dia é
muita sabedoria, é muita ganância. Eu vou te contar! [...] Tem gente ali
empregador/empregado, seja pela inimizade e consequências adversas da projeção no bairro
próximo da suposta criminalidade urbana.
4
Entre os tipos de critérios morais mais usados, DaMatta (1978, 1987a) cita valores a exemplo de
intimidade, consideração, respeito, favor, assim como apreciações éticas e estéticas generalizantes: limpo, bem apessoado, correto, sagaz, bom, de fino trato, etc.
122 maria gabriela hita
que tem casas boa e se aproveita da invasão. Pega as casa que tem, aluga, vende, (diz que) é necessitado, que é miserável.
Entrevistadora: E o que é que tem ali?
Não! É sabedoria! Precisava que nosso governo antes fizesse, tomasse
uma atitude com essa invasão e acabasse [logo] com essa bagunceira!
Porque, sabe que tem muita coisa ali? Tem ali muita coisa mermo.
Muito ladrão safado que tem ali dentro. E o povo agora aprendeu
a cooperar com gente safada [...] É trabalhando que se consegue
as coisa. É com muito esforço, gente! Né assim à toa com sabedoria.
(D. Pámela, 55 anos, moradora antiga)
Assim como em outros tantos estudos realizados com populações de grupos
pauperizados, a construção de identidade articula-se aqui em torno dos eixos
da família e do trabalho, como valores fundamentais que orientam a vida dos
indivíduos. (SALEM, 1981; ZALUAR, 1985; DUARTE, 1986; WOORTMAN,
1987; SARTI, 1996) Reconhece-se a pessoa direita como aquela que, em uma
atitude oposta à do vagabundo e do ladrão, trabalha para sustentar a prole.
Outro aspecto importante que se destacou na construção da identidade
do bairro foi o estilo de vida dos habitantes do Nordeste. O cotidiano é fortemente marcado pelo peso da sociabilidade e dos laços estabelecidos entre a vizinhança, muitos dos quais são parentes, indicando a vitalidade e centralidade
que as redes de parentesco, de modo muito especial, ocupam. Por sua vez, tais
redes se caracterizam pela forte reciprocidade, políticas de boa vizinhança, relativo distanciamento ou maior proximidade e, muito frequentemente, também
atravessadas por momentos de fortes conflitos, muitos dos quais resultantes
de fuxicos ou desavenças produzidas entre vizinhos. A rua é um espaço privilegiado para manifestar esta sociabilidade.
As ruas do NE estavam sempre cheias de crianças a brincar; de adultos
que estavam ora de passagem para seus trabalhos, ora nas portas de casa,
conversando ou jogando cartas e dominó, assim como aqueles que por elas
transitam para visitar alguém ou fazer algum encargo, ou dos que param nos
bares para beber e encontrar amigos. É na rua que as pessoas normalmente
se encontram, fofocam, contam suas histórias e estabelecem novas relações.
Parentes costumam se visitar com maior frequência que vizinhos e sem laços
de parentesco; especialmente entre as mulheres.
a casa das mulheres 123
Contudo, e apesar da intimidade que parecia reinar entre pessoas que
moravam mais próximas, nem sempre se avaliavam as visitas de vizinhos,
parentes ou estranhos de modo positivo. Havia regras implícitas relativas a
tais visitas que pareciam ser atualizadas pela importância de critérios como
o da consanguinidade e o da consideração. Neste contexto, conforme analisado mais detidamente adiante, pode operar tanto um, como o outro, numa
mesma direção (tornando alguns parentes mais próximos que outros no caso
da consanguinidade, por exemplo) ou na direção contrária (tornando, por
exemplo, parentes inimigos e vizinhos mais próximos, no caso da consideração). Entrar nas casas, onde nem sempre há uma sala separada da cozinha
ou do quarto, pode ser considerado como invasão de privacidade, a menos
que se trate de uma visita rápida quando a porta estava aberta ou quando
se justificava essa visita pela visita a uma amiga ou parente em algum serviço doméstico. Muitas vezes senti que minha presença inspirava desconfiança e só era recebida na porta de entrada; mas, com o tempo, fui conquistando a confiança dos informantes e passei a ser recebida na sala de visitas.
A franquia da casa e a entrada na cozinha ou aos quartos é permitida apenas
quando se ganhou essa confiança; relações mais íntimas ocorrem com maior
frequência entre mulheres que se visitam nas casas. Para os homens, a visita
nas casas é menos comum; eles preferem encontrar amigos em espaços públicos: na rua, nos bares e em locais de jogo. Apesar da reserva quanto à casa,
é habitual ver duplas ou grupos de pessoas conversando no portão, na frente
da casa ou pátio da casa e também na rua.
Se a rua era um dos espaços de sociabilidade do bairro por excelência, e
de diversos tipos de encontros, era vista também como espaço potencialmente perigoso, especialmente pelas mães, quando pensavam nos possíveis
riscos a que os filhos estariam expostos ao brincarem em espaço público.
O medo delas, especialmente daquelas que saiam para trabalhar e apresentavam mais dificuldade de controlar os filhos, era o de que na rua pudessem
entrar em contato com o mundo das drogas, do crime, da prostituição e
da sexualidade. Temor que aumentava quando os filhos cresciam e ficavam
adolescentes, já que nessa fase o fascínio exercido pelas drogas e crime era
uma ameaça real, dado ser o tráfico de drogas um modo bastante recorrente
e predileto de ganhar a vida mais facilmente por muitos jovens em contextos
de elevado desemprego, trabalhos informais e pouco valorizados, embora
estejam igualmente sujeitos a elevados riscos de morte e prisão. A presença
124 maria gabriela hita
de adolescentes ou jovens envolvidos no tráfico de drogas na maioria das
famílias pobres neste contexto é muito maior e mais comum do que se costuma pensar e uma realidade muitas vezes ocultada ou negada pelos que a
vivenciam. E que, portanto, precisa também ser melhor conhecida.
Neste modo de vida se está bastante próximo dos outros, na rua ou nas
casas, as relações se tornam íntimas, quase forçosamente pela proximidade das
casas e pouca privacidade; os dramas pessoais convertem-se, quase sempre,
em dramas públicos; as pessoas observam e são observadas pelos outros com
intensidade. Assim, a cooperação e a solidariedade, sob a lógica da dádiva de
Mauss, como a do tripé do dar-receber-retribuir, constituem apenas uma das
facetas da convivência. É, pois, a faceta mais pacífica e solidária que se desenvolve entre pessoas da vizinhança. A outra igualmente importante, como já
dito, e carregada de boa dose de ambivalência, é aquela caracterizada pelo elevado grau de tensões e conflitos que foram e continuarão sendo expressados
nas visões discordantes que uns e outros erguem sobre si, o outro e o mesmo
bairro onde se mora:
Aqui os vizinho, aqui não pode ver o outro sentir uma dor de cabeça,
né? [Eles vem e...] Dá, dão muita força mesmo, dá muita força, isso aí
é, é a realidade, entendeu? Então, tá o motivo que eu digo a você que
eu não quero sair daqui, porque, sei lá, se amanhã ou depois eu sentir
qualquer coisa aqui, eu vou ter uma grande ajuda, certo? (D. Pamela,
moradora de área antiga)
Essa história de que pobre se ajuda é mentira. Aqui se você tiver é porque tem, se não tiver então ninguém tem. Eu era muito besta, o que me
pediam, eu dava, agora eu digo: não tenho não. Deus diz: ‘Faz por ti e
eu te ajudarei’, cada um tem que fazer por si. [...] A gente não deve confiar
em vizinhança, não vale a pena. Aqui se você tiver com fome, você morre
porque ninguém lhe dá um prato de comida. (Nide, 21 anos, moradora
da área nova da invasão)
Um dos principais motivos de brigas entre parentes, amigos e vizinhos
é a quebra de confiança do outro pela revelação de segredo a terceiros ou a
criação de intrigas por práticas do fuxico.5 O fuxico ou fofoca, como também
é conhecido, é queixa de todos que se ofendem quando são vítimas, mas que
sempre a praticam e veiculam em se tratando dos outros. É pelo fuxico e
5
Para um trabalho pioneiro sobre o tema da fofoca ver Gluckman (1963).
a casa das mulheres 125
estigma levantado sobre o outro do qual se procuram diferenciar, que o falante (seja ele morador antigo ou da nova área de invasão) buscava se afirmar
e marcar distância hierárquica daqueles que consideravam em posição inferior às suas na estrutura social do bairro. Ao identificar o outro como mais
pobres, favelados, sujos ou ladrões, especialmente em se tratando de moradores antigos falando dos das novas invasões, apresentavam posturas mais
matizadas em alguns casos. Já no caso dos moradores da invasão, a estratégia
de distinção e marcador identitário seguiu dois caminhos diferentes: o de
procurar maximizar seu status mediante discursos que os distinguem de os
vizinhos, afirmando que moram na invasão, sim, e que são pobres, mas que
são trabalhadores, limpos e pessoas de respeito, diferente de outros marginais da vizinhança; ou então, buscavam minimizar as diferenças entre distintas áreas do bairro, ressaltando que são todos iguais e solidários.
É. Aqui era um lugar muito bonito, aqui era bom também. Nós todo
sossegado. A gente saía. [...] Deixava as coisa, encontrava, eu tinha um
bocado de roupa por aí, fazia... corda de secador. [...] Hoje em dia tá essa
bagunça aí danada. E aí o povo aí começou a chegar nessa invasão,
fazendo essa bagaceira, essa lixarada, esse mal-cheiro que ninguém
suporta, essa bagaceira... Aquilo ali era tão limpinho. [...] A gente
tem que trabalhar, né? É trabalhando que se consegue as coisa. É
com muito esforço, gente [...] Esse mundo tá errado. (Lena, moradora
da área mais antiga e consolidada)
Elas ficam tomando nota da vida dos outros, se tiver dez trabalhando
tem muita. [...] O povo aqui não se dá o respeito, a gente tá dentro de
casa e ouve o que quer e o que não quer... Eu acho triste, porque a gente é preto, pobre, mora em invasão, tem que dá moral. [...] Vizinho é
bom: bom-dia, boa-tarde, a palavra de Deus não quer. Num presta não,
distância é melhor. (Ticiana, moradora da invasão)
Aqui não tem um melhor do que o outro, tudo é igual. Quando tem
um que quer ser melhor, acontece que é escusado, deixam falando sozinho.
(Benê, moradora da invasão)
126 maria gabriela hita
A VIOLÊNCIA NO NORDESTE DE
AMARALINA
p
Dados analisados a seguir recuperam representações sociais que moradores
do NE de distintas áreas, idades e sexos formularam sobre o tema da violência em diferentes modalidades. Ao mesmo tempo, constroem com e através
das narrativas imagens do outro, do vizinho e de si, representando, assim, os
lugares ocupados por cada um na estratificação interna do bairro. As fronteiras entre os lugares ocupados por cada indivíduo no campo social do bairro são bem mais tênues e ambíguas do que as duas categorias acima sugeridas
por Norbert Elias, a dos Estabelecidos X Outsiders, ou, como aqui designado,
Antigos X Novos Invasores. Contudo, cabe a seguir tratar um pouco mais o
modo como se manifestaram essas diferentes percepções e categorias analíticas entre moradores do NE ao se referir a diversos tipos de violência encontrados na comunidade.
Violência policial e do tráfico de drogas
O temor dos moradores frente aos diversos modos de manifestação da violência na comunidade era constante. Eram forçados a presenciar e vivenciar
cenas de elevados graus de violência, de todos os tipos. O abandono de serviços de segurança por parte do Estado dirigido a áreas periféricas era visível.
Nessa época, no NE, não tinham sido implantadas as Bases Comunitárias de
Segurança (BCS)6 que chegam a Salvador a partir de maio de 2011 e em 2013,
6
Nova política de Segurança Pública, inspirada no modelo adotado por autoridades do Rio de
Janeiro a partir de Novembro de 2008 nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Ela pretende, em um primeiro momento, “pacificar” os bairros mais pobres e castigados pela violência por
meio do uso massivo da força policial ou militar, que visa a expulsar traficantes de regiões alvo;
para, em um segundo momento, estabelecer a presença permanente de policiais treinados para
atuar em comunidades. Em Salvador, o nome oficial destas unidades é Bases Comunitárias de
a casa das mulheres 127
o NE já contava com três delas. No período não existiam estes equipamentos
supostamente mais eficazes e sensíveis à necessidades de controlar a criminalidade, menos ainda o de controlar abuso de policiais quando lá entravam na
busca, supostamente, de algum marginal, sem distinguir moradores honrados e
jovens trabalhadores de pessoas ligadas, verdadeiramente, ao trafico de drogas.
Vívidos e indignados eram os relatos sobre a entrada de policiais no NE, barbarizando e apavorando os moradores. Em geral, demonstravam mais medo da
polícia do que dos próprios bandidos, alguns deles velhos conhecidos de pessoas mais velhas que os viram crescer ou amigos de infância, com os quais se
estabelecia maior ou menor grau de proximidade e empatia. Ao invés disso, em
relação aos policiais, predominava a postura do medo e desconfiança.
Entre os exemplos de violência citados como mais visíveis e graves era
geral o consenso em identificar aqueles praticados pelos marginais e pela
polícia, uma presença tratada como nefasta e iniludível, que os afetava em
maior ou menor grau, segundo o segmento de vizinhança que ocupavam, da
presença de alguém envolvido no tráfico de drogas na própria família, ou vizinhança próxima, das relações e reciprocidades que existiam entre essas famílias e/ou os envolvidos no tráfico, independentemente de não aprovarem
seus atos. Enfim, em relação ao tráfico, posicionamentos e experiências vivenciadas dependiam do segmento que cada pessoa ocupava na estrutura
do bairro. Dele falavam com desinibição alguns dos homens, mulheres e
criança; com maior cautela, outros, usando, por vezes, voz baixa indicando
medos e receios frente a tais atividades.
Guerras entre traficantes eram tão comum naqueles anos, como o são até
hoje. Não era raro encontrar relatos sobre cadáveres, especialmente de jovens do gênero masculino, nos terrenos baldios ou proximidades do Parque
da Cidade. A guerra entre quadrilhas e gangs existia, até que algum deles
se impunha e dominava o território. Aqueles que não pagavam dívidas podiam ser retirados com violência de suas casas e eram violentamente assassinados por grupos rivais ou grupos de extermínio. Também era comum
homens perderem a vida em brigas e desavenças com outros, esfaqueados
ou por tiro, e pelas retaliações entre inimigos, ferindo ou matando aqueles
que consideravam ser informantes da polícia ou inimigos pessoais. Um caso
noticiado nos jornais, entre eles no A Tarde, aos 20/07/ 2011, foi o do Pai
Segurança. A primeira de todas foi a BCS do Calabar, seguindo-lhe as instaladas no Nordeste de
Amaralina e Subúrbio Ferroviário.
128 maria gabriela hita
de Santo do Nordeste acusado, segundo informações da mídia, de apontar
à polícia nomes de delinquentes quando ocorreu a instalação da primeira
Base de segurança comunitária do Nordeste de Amaralina. A maioria dos
moradores conhece muito bem quem são os bandidos da vizinhança, mas
a grande maioria prefere não os denunciar buscando convivência pacífica
com eles, evitando retaliações futuras a seu grupo familiar se os denunciarem. A crítica ao comportamento policial e dos traficantes do bairro era
claramente identificada por todos como os principais e mais graves problemas de violência, acusados de serem responsáveis pela imagem negativa
do bairro frente a sociedade soteropolitana.
Essa imagem negativa que a sociedade tem de bairros periféricos e, de
modo massivo, é acriticamente divulgada na mídia, era alvo das principais
queixas dos moradores do NE que se queixavam, porque os estigmatizava em
conjunto, independente das diferenciadas experiências pessoais e familiares
ao interior do NE no que se refere a temas de violência, criminalidade e demais outros da vida cotidiana. Deste tipo de raciocínio se depreende implícita acusação de serem os pobres de espaços sociosegregados das periferias
os próprios culpados dos problemas de violência. A seguir são destacados trechos de percepções de moradores do NE sobre a violência em geral, e a policial e marginal em particular que visam a recuperar um olhar mais complexo
e matizado da experiência de viver em pobreza.
Para Nide, mulher jovem, moradora da invasão do Boqueirão, o problema
da violência ocorria tanto na área nova de invasão quanto na zona antiga:
Conheço o Vale das Pedrinhas, a Sta. Cruz, que agora tá um lugar perigoso, não se pode andar nem de noite nem de dia, tá fazendo medo de
você andar porque é morte toda hora, é estupro, é assalto. Aliás todo
canto tá perigoso agora, é tudo igual, 3 bairros que eu nunca devia
ter chegado - Nordeste, Sta. Cruz, Vale das Pedrinhas, pode ver até
nos jornais, no rádio, quando fala de qualquer crime, foi assalto, foi no
Nordeste de Amaralina. Porque é aqui que está a gang todinha, que está
as pessoas que não gosta de si mesma, gosta de se maltratar a si mesmo
e aí difama todo mundo. Porque o Nordeste é imenso, mora muita gente
boa aqui; mas no meio de 10, se tirar 5 tira muito. (Nide, 21 anos, moradora de invasão)
a casa das mulheres 129
Eliene avaliava a vizinhança da Nova República (área de invasão) com restrições, mas com um tom menos acusador e mais cuidadoso do que Nide, ao
falar dos vizinhos:
Não tô desfazendo de ninguém, mas prá mim isso é favela e vai ficar
pior ainda, porque é o bairro mais falado; quando acontece qualquer
coisa aí na Amaralina, Pituba, a polícia corre prá cá. Não gosto de ver,
ouço falar. [...] Outro dia mataram um ali. (Eliene, 37 anos, moradora
de invasão)
Neto, rapaz jovem que brincava e cresceu junto a muitos dos marginais
mais temidos do pedaço, constatava os efeitos da violência sobre a questão do
emprego para a nova geração e culpava a força policial de boa parte do problema, em atitude mais crítica:
A polícia reprime muito, a família também se você for envolvido em drogas, porque vai se preocupar com a sua conduta perante os vizinhos. A
área do trabalho também fica prejudicada, ainda mais se souberem que
você mora no Nordeste: Vale, Santa Cruz, Chapada. Na cabeça do empregador é tóxico, vagabundagem, dá uma impressão ruim, já aconteceu
comigo [Isso de ser confundido com marginal]. (Neto, 24 anos, área antiga)
Nas áreas mais estabilizadas, a demanda por proteção policial fazia sentido
para um setor da população. Alguns dos moradores mais antigos acreditavam
que o policiamento poderia resolver a violência sem um envolvimento direto
com os setores marginalizados. Para outros, principalmente os da invasão, a
solução ao problema não se reduzia à entrada da polícia, a qual, via de regra,
deixava marcas de mortes de inocentes que eram desaprovadas pela maior
parte dos moradores. Seu Mileno, pessoa idosa do bairro, reivindicava o policiamento para conter os “vagabundos” (que, aliás, para ele não eram de sua rua)
muitos dos quais queimavam fumo (ainda que reconhecia, por outro lado, que
eles não incomodavam), para seu Mileno: violência [mesmo é a que] tinha ali,
só no futebol e no jogo de baralho. D. Detinha afirmava que a polícia conhecia
o ponto dos marginais e que suas netas só frequentavam apenas um dos sambões do bairro – o Elite – porque os outros era bocada, muita briga, tiro, quando
juntava polícia civil com militar. Considerava, entretanto, que o Vale (das
Pedrinhas), onde ela morava, era mais calmo que o Areal e a Sta. Cruz, onde
os marginais se escondiam. O pai de Santo Xisfredo falava do fim de linha do
130 maria gabriela hita
Nordeste, onde morava, como local menos violento e o contrapunha ao da invasão: (lá) é tudo beco e tem o matagal e o Parque, longe da polícia, para o esconderijo dos malandros. D. Anete dizia haver presenciado cadáveres pela vizinhança,
e afirmava contundentemente que não reconhecera nenhum morador da sua
rua. D. Cica não gostava de sair à noite para ir ao Candomblé, como fazia antigamente, porque agora tinha medo: Eles não respeitam nem criança... quanto
mais, velho. Sobre a questão do policiamento, Nide, que morava na invasão e
tinha pretensões de ascender para outro status social, demonstrava insatisfação e medo com a violência da vizinhança:
[aqui] ninguém gosta de ninguém porque se todo mundo juntasse e fizesse um abaixo-assinado prá ter policiamento direto, até acabar com a
gang toda... Mas se fizer isso, a mesma pessoa que assina vai pro marginal e diz: tal pessoa tá fazendo assim, assim, prá polícia vir aqui, e aí o
marginal vem e te mata. (Nide, 21 anos, moradora de invasão)
Sobre a identificação dos marginais, Neto relatava, em um comentário
que buscava afirmar seu distanciamento desse modelo de marginalidade,
descrevendo e criticando o processo de iniciação ao tráfico:
Sei como começa, passa o dia todo no bairro, jogando bola, baralho,
quando você passa, ele cola junto e pede um trocado. A noite você chegando em casa, vê eles metendo mão em tóxico, com os próprios homens
(polícia). (Neto, 24 anos, morador antigo)
Nide observava que antigamente os delinquentes assaltavam rico porque
tinham, mas que agora estavam assaltando pobre com uma grande vantagem:
Os fracos não faz nada, só fica assustado, chora porque perdeu uma coisa
de valor; o rico vai prá polícia. Por isso é que o assalto aqui tá mais perigoso do que lá fora. (Nide, 21 anos, moradora invasão)
D. Tilde, médium espírita, ex-frequentadora de Candomblé, tinha para os
delitos dos marginais uma explicação sobrenatural: são as sombras negativas
daqueles que morrem assassinados e que não tendo descanso atrapalham a vida
das pessoas, levando-as a ter vontade de brigar, sem conseguir se conter. Dizia
que os crentes interromperam muitas seitas, sessões de caboclo e espiritismo
que limpavam a vida das pessoas: Aí começou a surgir essa agonia desses assalto,
roubo, esse povo tudo ai viciado... Isso tudo é arte de Ubusu, de perturbado, Egum.
a casa das mulheres 131
Contava o caso de um vizinho morto como vigia de um colégio, por um adolescente; contando que na área onde morava já havia morrido muitos marginais,
mas que apareciam outros no seu lugar. Para esta moradora, eram os espíritos
se manifestando e encarnando nos bandidos; a religião, marcada pelo sincretismo, era o modo pelo qual explicava a violência atual e do mundo.
Nina, que lamentava muito o fuxico e a inimizade na área, sustentava, entretanto, que a violência tinha maior procedência externa, do que a suposta
violência interna ou entre vizinhos da invasão onde morava:
Só tem briga quando gente de outro bairro provoca, mas, briga entre os
daqui mesmo não acontece. Só se envolver a morte de um policial ou se
tiver algum problema lá na Pituba ou no Rio Vermelho. A polícia vem
bater aqui com a arma na mão, na frente das crianças. Quando mataram um policial morador daqui, o ano passado, eles fizeram um rebuliço, mataram dois. Então o povo aqui fica revoltado, por qualquer coisa.
Aqui se discutir, quer logo matar. É muito fuxico. (Nina, 21 anos, moradora invasão)
Com respeito à atuação policial, Neto comentava a parcialidade e corrupção desta corporação envolvendo alguns dos membros que moravam no
próprio bairro, o que reforçava o estigma ao que todos os moradores do NE
estavam sujeitos, remarcando a situação de desvantagem quando entravam
em ação julgamentos discriminatórios entre classes sociais, em que o culpado é sempre o negro e o pobre:
Antigamente a polícia chegava e procurava saber o porquê do acontecimento para punir os culpados. Hoje é diferente, eles andam revoltados
com o próprio salário. Se tiver um barulho entre um cara da Chapada e
um cara da Pituba, só citar esses dois nomes já influencia muito, ele vai
ouvir o cara da Pituba, mas o cara da Chapada ele vai baixar o pau logo,
chamar de vagabundo, porque o cara é lenhado. Apareceu agora esse
Rambo, que tem fama de arregaçar, mora no bairro, antes era motorista
de ônibus e entrou prá polícia; é violento, mata, foi até suspenso por 90
dias. (Neto, 24 anos, morador antigo)
Cláudio, por sua vez, que também enfatizava a violência policial, mais do
que a da vizinhança, dizia:
Quando tem comando da polícia é demais, não respeita as crianças,
espanca gente que não é vagabundo, sai dando tiro, assustando todo
132 maria gabriela hita
mundo de madrugada, até por brincadeira. As vezes entra no colégio
abandonado e dá tiro. A casa do pai de santo já foi invadida, há uns 6
meses, teve umas mortes na minha porta. Tem um tal policial que chama Rambo, que faz barbaridades. (Cláudio, 27 anos, morador invasão)
A perspectiva de Cláudio e Neto era semelhante à de D. Tiza, para quem
violência há pouca na invasão, e a polícia é que entra acabando com tudo.
Quando D. Tiza recorreu à polícia devido à briga com uma vizinha no Areal,
foi mal entendida, por isso testificou que os policiais são todos descarados.
Sobre a ilegitimidade da ação policial, por sua vez, Eliene comentava:
Criança eles batem também. Se ele pegar uma criança no meio de um
adulto, ele pega, eles bate, eles faz malvadeza, algema, certo? Acha que
uma criança de 8/9 anos é pra sair algemada da polícia? Não é! É pra
eles pegar pelo braço e levar, né? Eles algemam, eles dão pontapé, eles
bate. (Eliene, 36 anos, moradora da invasão)
A oposição à polícia por parte de parcela significativa dos moradores, justamente os mais vulneráveis à ação, ou os mais críticos e esclarecidos, poderia questionar se alguns dos casos, podiam se tratar de certa proteção ou
cumplicidade com alguns dos bandidos do pedaço7. Contudo, na maioria das
narrativas coletadas, predominou clara manifestação de extremo desconforto e indignação com a violência da polícia, quando comparada à dos marginais, com frequência aparecendo posturas com forte teor crítico sobre a
violação de direitos humanos.
As duas formas de manifestação de violência apareciam, na maioria dos
depoimentos, como projeções do comportamento dos outros, os vagabundos e policiais. Tais depoimentos contrapunham a visão do trabalhador
honesto com a daqueles que não se respeitam, numa operação que pareceria
negar a proximidade com esse tipo violência. Mas se falava também de outros tipos de violência e conflitos nas próprias casas e vizinhança; este tipo
7
A noção de pedaço, segundo Magnani, (2002, p. 20 e 21): “[...] supõe uma referência espacial,
a presença de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles. É o
espaço demarcado que se torna ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores e sua pertença a uma rede de relações. Este é um espaço intermediário (lugar dos
colegas) entre o público (lugar dos estranhos) e o privado (lugar da família) que desenvolve uma
sociabilidade básica. Mas pedaço também passou a designar um território que funciona como
ponto de referência, para além do de um tipo particular de sociabilidade e apropriação do espaço urbano.” Ver também Magnani (1998).
a casa das mulheres 133
de comportamento era considerado menos grave que os descritos e muito
mais tolerados, apesar de serem, igualmente intensos, resultantes, muitas
vezes, de situações de perda de reciprocidade entre amigos, vizinhos ou parentes. Todavia, em outros momentos desse mesmo discurso havia amplas
referências aos fortes laços e consórcios entre a rede de vizinhança que dava
suporte em situações e casos específicos como os da ajuda recebida em momentos críticos, de problemas de saúde, tragédias familiares, etc.
Contudo, essa perda de reciprocidade da que falavam muitos e é discutida
demasiadamente pela teoria social contemporânea pode ser resultado dos
mais variados processos: ela pode ser resultante da crise e falta de recursos cada
vez mais absoluta que mina e debilita redes de sociabilidades urbanas; ou de
posicionamentos situados e subjetivos que, ao comparar momentos mais recente a outros vividos anteriormente, a pessoa tenderia a construir um tipo de
discurso mítico sobre um passado e tempos melhores que de fato nunca existiram como tais, em qualquer contexto urbano referido. Nesse sentido, considero fator preponderante na produção de tensões e falta de reciprocidades
o crescente e veloz aumento de densidade populacional do bairro, associado
à precariedade econômica, e diferentes estilos de vida entre vizinhos e membros de grupos domésticos, dentre outros, a serem exemplificados em capítulos subsequentes.
Considero também, por outro lado, que esses discursos aparentemente
contraditórios (de maior solidariedade e de perdas de reciprocidades, simultaneamente) expressam o tipo de tensões que existem nas relações entre pessoas no cotidiano e que continuamente estão negociando os indefinidos limites na vida social entre as esferas do público e do privado. E que dentro das
casas ou com vizinhos segue estratégias diferentes no seu enfrentamento,
inclusive o do ocultamento ou não reconhecimento frente aos demais.
Violência na vizinhança
Dado que o espaço ocupado pelas casas é muito pequeno, o material de
construção era precário e inexistia naquela época estrutura decente de saneamento básica, a convivência entre as famílias era aparentemente mais
difícil. O contato entre casas contíguas era quase inevitável, gerando muitas
134 maria gabriela hita
disputas entre vizinhos em casos como quando um deles constrói a casa utilizando-se da parede já construída pelo outro; a água que escorre da casa
mais alta para a mais baixa; a fumaça advinda da utilização de lenha para esquentar água ou cozinhar e que incomoda o vizinho do lado; a proximidade
física que impede um mínimo de privacidade, etc. Veja-se o relato de uma
briga entre Mariza e seu vizinho. No excerto, é possível perceber rancor, ódio
e impulsos violentos para com o vizinho:
[O problema é o beco] E da laje que é daí, da barraca que a gente já fez,
né? Bateu a laje e tudo. Ele, acho que ficou com raiva, [e] veio me xingar [...] Foi a premera vez que ele saiu pá me xingar, né? Tem discussão,
mas por causa de outras coisa, mas vim prá frente da minha casa foi
a primeira vez. E na segunda, eu já disse a Gago [marido] que eu vou
preparar um bocado de pedra [e] vou deixar aqui, que eu vou quebrar
os óculos dele de pedra no dia que ele parar aqui na frente pá me xingar, Eu vou socar pedra daqui, que eu vou estourar ele todinho na pedra.
(Mariza, 37 anos, moradora área antiga)
Nesse contexto, as crianças eram, por vezes, o estopim de muitos comportamentos agressivos entre adultos. Com regularidade, os filhos motivavam
desavenças entre vizinhos, que não raro, deixavam de se falar e se hostilizavam. Era muito comum a referência ao jogar pedras no telhado, quebrar
lâmpadas com bodoque, chutar a bola dentro da casa dos outros, etc., que se
encontravam entre os comportamentos considerados pintança de moleque.
Sobressaiam casos de conflitos graves iniciados entre crianças, com a posterior intromissão dos pais, no sentido de intermediar o desentendimento
com a vizinhança ou a de proteger o filho das agressões de outrem. Alguns
depoimentos reconhecem a naturalidade e presença da violência, indicando
o diferente teor e tipo de violência:
Violência aqui tem demais. Até os próprios adultos, até os próprios vizinhos não têm paciência com as crianças: [e] bate! Eu mesmo tenho filho
que já teve perna quebrada [por vizinho]. (Eliene, 37 anos, moradora de
invasão)
As vezes um menino, o filho, tá brigando com outro aí. A mãe segura
o menino aí manda o menino bater no outro, o filho dela bater [no da
gente]. Quer dizer que ela segura o menino [da gente], o menino tá sem
proteção, ela chega [e] manda o filho bater, como desse Daniel mesmo,
a casa das mulheres 135
aquele dali. Tava brigando com o filho de um cara aqui, o cara mandou
o filho dele passar um pau. (Bicão, 34 anos, morador de invasão)
Outra forma de manifestação comum da violência entre vizinhos é aquela
emergente nas atividades de lazer: no samba, no futebol, no jogo de cartas ou
dominó. Neto relata que a violência era muito comum durante o Carnaval e
nos pagodes de S. João, principalmente entre homens jovens que desejavam
demonstrar virilidade:
É provocação, coisa de valentão. Você passa, nego mexe, você parte prá
brigar. As galeras [turmas] se metem; é a tradição do bairro, nem precisa
estar doidão. (Neto, 24 anos, área antiga)
Acerca das rivalidades no bairro, Neto afirma que existiam, entre uma área
e outra, assim como entre distintos bairros da cidade de Salvador, frente aos
quais o Nordeste passava a ter uma unidade. Entretanto, esta unidade não se
consolidava na prática no interior do bairro, mas que com os de fora era necessário recorrer à violência para salvar a honra do bairro e para não serem
excluídos da turma que esperava deles esse tipo de comportamento violento.
Neste caso, a violência era vista como legítima e uma forma de afirmação da
masculinidade, bastante valorada no contexto e entre os colegas de turma:
Se você sair do Vale prá Liberdade, só se for com um conhecido, senão
come pau. Eu já andei muito de galera e a gente já bateu muito em caras de outros bairros. No Carnaval de galera, pega os que vão de pipoca
e arregaça! É a tradição! O que eu posso fazer? No futebol, se o que for
combinado no revezamento não acontecer, é briga certa. (Neto, 24 anos,
área antiga)
Violência na vida familiar e conjugal
Outros relatos etnográficos sobre o contexto de estudo apontavam que,
quando se falava de violência cotidiana, um dos tipos mais comuns e que pareciam por vezes aceitos como parte da vida familiar, na moralidade popular
e nem sempre reconhecida propriamente como sendo um tipo de violência,
era o ocorrido no âmbito interno do domicílio, dentro das 4 paredes do lar
onde, em geral, o homem agride crianças e mulheres. Tal ato é justificado
136 maria gabriela hita
pela maior propensão do homem à violência, exercício de masculinidade, ter
bebido demasiado, a superioridade de força física, etc. Estas características
masculinas podiam até fazer parte de um desejado e esperado papel masculino familiar, o do pai, tio ou irmão mais velho. A presença do pai (ou figuras masculinas ocupando este papel e tipo de autoridade) e o exercício desse
tipo de poder como princípio de autoridade moral importante na criação
dos filhos, normalmente atrelada à violência física, era muito valorizada pelas mulheres da comunidade, que tendiam a achar natural o exercício desta
manifestação de força de seus parceiros no exercício efetivo da paternidade.
Na fala de Neneca, notava-se esta posição e importância atribuída à autoridade masculina baseada no medo que o pai de seus filhos, quando era vivo,
produzia neles, visto este fato como um bom modo de contê-los. No relato é
perceptível que se remete ao passado com saudade:
Porque a mãe passa a mão pela cabeça e o pai não. Quando o pai de
meus filho, quando meu marido era vivo, meus filho não era assim como
é hoje não. Eles tinha medo dele. Ele não batia, porque ele não podia
bater em ninguém, entendeu, porque ele tinha, ele era, ele tinha defeito
nas mão, então ele botou platina na mão. Se batesse num menino daquele era pra quebrar os osso. Eu acho que aquilo era um medo pra eles,
entendeu? Já eu, se eu disser assim, Tá na hora de lavar os prato, quando eles for lavar, você perdeu até a graça. (Neneca, 34 anos, pessoa de
área antiga)
Analogamente, e com relação aos vizinhos, o pai-marido também cumpre
o papel de quem impõe respeito:
Eu não tinha marido, ela bateu no meu filho, chamou-o de vagabundo e
marginal. O pior é deixar o filho sozinho, porque ao pai, os vizinhos respeitam, mas quem respeita a mãe? A criança fica sem valor. (D. Tiza, 54
anos, moradora invasão)
Era recorrente no Nordeste o reconhecimento da autoridade do homem
frente aos filhos, predominantemente ligada às noções de respeito e medo pela
ameaça constante do uso da violência que os caracteriza. Se este exercício da
autoridade era por um lado valorizada, em outras circunstâncias, também
foram significativos os depoimentos de mulheres que apontavam a violência do
parceiro, em especial contra os filhos, como motivo legítimo de separação conjugal. Comparar o tipo de autoridade que homens e mulheres desempenham
a casa das mulheres 137
em contextos populares como este pode ser complicado, porque nem sempre
se está falando do mesmo tipo de autoridade ou desempenho de papéis no lar.
Nesta perspectiva, uma análise sobre a autoridade masculina referida, mesmo
quando valorizada e existente simbolicamente, indica ela operar de modo mais
virtual do que real; funciona mais como um mecanismo muitas vezes manipulado pelas mulheres como arma de controle dos filhos, ameaçando-os de remetê-los aos pais se não as obedecessem. Cotidianamente, entretanto, e na maior
parte de muitas das situações, eram as próprias mães quem exerciam autoridade com os filhos; eram, na maior parte das vezes, responsáveis por resolver
problemas da casa, família e relacionados aos filhos. O homem se reduzia, em
alguns dos lares, apenas a entregar, no melhor dos casos, parte e não a totalidade de seu ordenado para o consumo e a proteger o grupo com sua presença.
Muitas decisões importantes do que e quando comprar eram tomadas pelas
mulheres. E em muitos depoimentos do NE não se falava da autoridade do
homem, sequer simbolicamente, onde parecia contar muito mais a da mulher,
considerada, em muitos dos lares como os que descreverei adiante, o eixo central do grupo. Em quase todos os lares, entretanto, uma prática muito utilizada
e ainda valorizada pelos adultos na pontuação do certo e do errado na educação
dos filhos era indiscutivelmente a surra. Veja alguns depoimentos em relação a
este tipo de violência:
Acho que a porrada endireita, acho que a porrada endireita, porque falar,
você fala, fala, fala e eles continua fazendo a mesma coisa, entendeu?
Eu não gosto de bater. Eu sou a pessoa que menos bate aqui, num bato
muito nos menino não, mas também, quando eu pego eu desconto esse
tempo que eu não bati.
Gabriela: – E você acha que eles mudam, depois disso?
Muda, depois da porrada muda. Num muda por compreto não, mas mudar eles muda [...] Acho que porrada também, não toda hora, mas a porrada é válida [...] E principalmente por isso também, se botar uma coisa no
lugar e eles pega nessas hora eu acho que a pessoa tem que corrigi logo,
porque se deixar... se deixar vai acostumando, pega hoje aqui, amanhã ele
vai em sua casa já vê aquilo que ele viu aqui, que a gente não bateu logo,
ele vai apanhar e aí vai se acostumando, se acostumando, quando você
quer... tirar... num tem mais jeito, então eu acho que tem que tirar do princípio. (Dina, com 29 anos, pessoa carente de área antiga)
138 maria gabriela hita
As experiências das famílias do Nordeste de Amaralina estavam permeadas
e enquadradas pelo contato cotidiano com a violência a qual, por vezes, era
considerada legítima e com valor positivo em processos de socialização dos filhos. Dados de pesquisas atuais no Bairro da Paz e em outros contextos como
o NE apontam para a relevância dos contextos de socialização e aprendizagem
de modelos violentos na infância que, interiorizados acriticamente, passam
a ser reproduzidos e facilmente naturalizados em grupos de classe popular.
Certas formas de se reagir e atuar de maneira violenta emergem espontaneamente como modelos até esperados e defendidos como os mais eficientes e
adequados para lidar com certo tipo de tensões e conflitos na socialização das
crianças ou relações de vizinhança.
Nesses termos, é possível encontrar nos discursos de vários desses moradores naqueles anos as posturas mais variadas e aparentemente contraditórias frente ao tema das violências de que eram vítimas; ou mesmo aquelas
por eles praticadas que adota significados bem diversos aos desejados desde
um ideal societário mais justo e democrático. Era comum um mesmo indivíduo revelar simultaneamente sentimentos e atitudes tanto de resistência
como de conformação e aceitação da violência sofrida, a depender do contexto, momento e perspectiva em que se estivesse analisando. Ele podia descrever uma violência sofrida tanto como injustiça e desrespeito à sua dignidade e direitos individuais, como também como resultado esperado de
práticas normais e aceitas, ou como apreciado e legítimo mecanismo de socialização e sobrevivência. Em outro contexto de conversação podia aparecer o extremo de perceber no ato do agressor a intencionalidade e marca
de amor para com a vítima, de alguém que agiu com intuito de corrigir e
chamar a atenção de outro membro do grupo que se desvia dos trilhos. Neste
último caso, a violência opera mais como linguagem e modo de interação do
que como mecanismo de repressão e poder. Assim será compreendida por
momentos a postura repressora e violenta das matriarcas, por algumas das
vítimas de excessos. Era comum, portanto, encontrar narrativas próprias das
vítimas sobre a violência sofrida, e assim, a violência parecia estar sendo interiorizada e reproduzida, mais do que superada e vista como injusta, com
fortes doses de ambiguidade discursivas ao se referirem a essas experiências.
Em alguns casos, era visível como faziam uso desses mesmos dispositivos de
impor força em outro tipos de interações sociais, especialmente quando realizadas frente a outros com menor poder que eles.
a casa das mulheres 139
Sobre a violência doméstica entre casais, os depoimentos eram por vezes
breves, sugerindo uma discrição não condizente com as cenas públicas e o
disse-que-me-disse mencionado insistentemente em conversas ou referências a ela. O discurso sobre a violência não se restringia apenas ao que era
explicitado, nem era necessariamente consciente para quem o enunciava;
ele também era encontrado no não dito ou naquilo que era até mesmo silenciado. Era o que parecia mostrar, por exemplo, o que interpretei como
sendo evasão de Ignácio, em atitude de possível despistar o entrevistador, ou
a quem o ouvisse, quando afirmou:
[...] briga de marido e mulher? Se tem... eu não sei! É dentro de casa, é
difícil ver! (Ignácio, 28 anos, morador de invasão)
Já D. Anete associava a violência doméstica à promiscuidade, em processo
de distanciamento ao do estilo de vida por ela vivenciado. Sua fala evidencia
que a violência não sucederia, em principio, em seu grupo familiar:
Eu ouço falar, mas não conheço bem. Tem uma família [ali] em que os irmãos brigam com violência. Acho que as pessoas que vivem amontoadas
brigam muito, muita gente na mesma casa, cada qual com sua família,
sempre surge conflito [...] Mulher que apanha ou briga de rua. (D. Anete,
40 anos, moradora antiga)
Para D. Roca, senhora madura e mãe de Eliene (moradora de invasão de 36
anos), em um comportamento de resistência à violência do marido, afirmou
ser ele um carrasco com os filhos, mas que nunca teria batido nela, pois ela
defendia sua autonomia com firmeza, apesar dos conflitos. Ela defendia os
direitos conquistados como trabalhadora, e que ele não tinha autorização
para levantar-lhe a mão ou exigir submissão a seus mandos, lembrando-lhe
não ser ele seu pai:
Eu não vi você nascer, você não é meu pai, simplesmente eu não estou
comendo pra crescer, tô comendo pra viver. Ele me respeitando tudo bem,
agora eu não vou ficar presa que eu não sou porco, [se ele me batesse] aí
eu saía mesmo... Quer dizer, o porco come para engordar, né? [Mas] se eu
trabalhava igual que doida, porque eu não podia também sair? Eu achava que podia... (D. Roca, idosa, mãe de Eliane e moradora de invasão)
140 maria gabriela hita
Nete, Eliene e Nide revelaram que os conflitos de casais eram públicos
e muito frequentes nas famílias. Eliene, em direção similar, mas um pouco
diferente da apresentada pela mãe, que negava haver violência na relação
com seu marido:
Violência entre casal tem muita, a gente escuta mulher gritando, é comum. Eu nunca apanhei, mas meus irmãos batem, é só as mulheres pisarem na bola, responder pra eles, porque eles são muito machão, a mulher fica pra eles como tipo um filho, tem que obedecer. (Eliene, 37 anos,
moradora invasão)
Nete apanhava do marido, já se separara, mas voltou com ele. Batia nela
quando bebia, começava a provocá-la, tinha ciúmes exagerados e as cunhadas
vinham socorrê-la. A falta de amor era considerada fonte de agressão, mas
também o excesso dele. Para algumas mulheres e em nome do amor parecem
justificar os desejos mais ardentes que um ser tem de tudo aquilo que pode
saciá-lo, mas também as condutas de abnegação e impotência de muitas mulheres que mal conseguem fugir do ciclo contínuo da agressão de seus companheiros, ainda que muitas procurem negociar com eles, e muitas vezes de
fato consigam, enfrentá-los com outras estratégias.8 Veja-se o caso de Dina:
D: Foi o meu primeiro, e prá você vê que foi tão duro que eu tô com ele
até hoje. Forçado!
Gabriela: E porque está com ele?
D: Tô com ele porque jeito não tem, acho que eu vou ficar com ele de cacetinho na mão segurando e eu com a bengala. Ele me força...
Gabriela: Você tem medo? Dele
D: E... medo também, muito medo... Eu passei muitos momentos na vida,
[tenho] muitas marcas no corpo, eu tenho... já sofri muito, só eu sei, mais
ninguém.
Gabriela: E qual é seu medo?
8
Ao respeito, veja-se o trabalho de Elaine Reis Brandão sobre Subjetividade feminina em contexto
conjugal violento apresentado na XXI ANPOCS, Caxambu, 1997.
a casa das mulheres 141
D: Meu medo de largar ele não é nada, é medo de tá passando assim na
rua e ai de repente... ói ele! Eu tenho medo dele... que quem já fez uma,
duas, três vez... faz [de novo]... Uma vez, há um ano atrás, ele disse a mim
que se eu não sou dele, não vou ser de ninguém mais e se ele me ver com
alguém que ele me matava e eu tenho medo, porque ele faz.[...] Teve uma
vez mesmo, tem uns cinco meses, só porque eu sai, tava conversando ai
em baixo, com uma vizinha minha, ele chegou aqui acabando com tudo,
fiquei mortinha, eu prá ele estou fazendo 6 meses de morta, me agrediu,
me bateu, me xingou ... Gritei tanto com ele que maínha subiu, ele não
achou em que se vingar, achou que era duro minha mãe com a cabeça
cheia de cabelo branco... então [porque] não podia revidar [n] ela, quebrou o espelho todo, [de] um murro, quebrou, me xingou e eu passei três
dias com a cara feia pro lado dele. Ai [depois] ele veio e pediu desculpas
a mim, eu peguei e aceitei, né? (Dina, quando tinha 34 anos, pessoa carente em área antiga)
A primeira fase dessa lógica cíclica de agressão masculina contra as mulheres, e que tende a reaparecer a cada novo pedido de desculpas, se inicia
por meio de insultos que minimizam qualidades femininas e resultam em
perda de autoestima. Esta é a primeira verbalização do medo que o agressor
sente da vítima, por considerá-la diferente, pessoa à que se deseja controlar
e dominar. Dependendo da reação das mulheres, ocorre uma segunda fase
em que, de algum gesto corporal de uso e abuso da força física, passasse à investida aberta, golpes, empurrões, puxadas de cabelo, etc. Na terceira fase, se
pede desculpas, arrepende-se e se promete não voltar a repetir esse tipo de
agressão, até que o ciclo se reinicia em próximas e sucessivas vezes (RIQUER,
1991). Os depoimentos de Nete e Dina ilustram bem esta lógica e ciclo de
agressão em que mulheres são vítimas da violência doméstica de maridos
ou namorados. Nete afirmou que era comum marido bater em mulher na
invasão: todos fazem, mesmo sem beber; e contou o caso de um casal já maduro que vive se atracando. Mas a violência não ocorre apenas proveniente de
homem contra as mulheres, mesmo quando esta é sem dúvida o modo mais
expressivo, ela pode se generalizar, englobando toda a família. Nide afirma
que a violência nas famílias era comum demais:
Tem família revoltada mesmo, vem de pequenininho, os pais não deram
carinho, daí muitas crianças já nascem com a revolta de si mesmo. (Nide,
21 anos, moradora de invasão)
142 maria gabriela hita
Em relação à própria família, que vivia em domicílio múltiplo, pois no
mesmo terreno se acomodavam quatro casais com filhos, Nide comentou:
Aqui em casa é pau quase todo dia, é meu irmão com a mulher, é meu
cunhado que bate na minha irmã com uma violência que eu nunca vi,
é pau de sair sangue; mas ninguém interfere pra não ficar inimigo dele
ou dela, no outro dia, eles estão aos beijos. Se é comigo, meu pai quando
chega, resolve tudo. (Nide, 21 anos, moradora invasão).
D. Cica apresentou o depoimento sobre a morte do próprio filho quanto
ele tinha 24 anos, assassinado pela mulher e pelo cunhado, policial, morador
da Liberdade. Segundo ela, o casal brigava muito e seu filho batia na esposa,
era valentão, trabalhava como segurança e não gostava de marginal, pelo que
sua esposa e irmão se vingaram dele. D. Cica criava os dois filhos do casal e
disse que dava muito conselho para que os pais dos meninos se separassem:
se não dá certo, é melhor cada qual pro seu lado.
Como demonstram os diferentes relatos, era comum a manifestação
sobre a violência dos homens dirigida às mulheres e aos filhos. Entretanto, a
agressão, como já disse, não era unidirecional, era também a das mulheres em
direção aos seus companheiros e de filhos em direção aos pais. Estes casos,
entretanto, que são menos numerosos, quando aconteciam eram vistos pela
moralidade popular como fora do normal, e claro indicador de que algo estaria fora dos eixos, indicando que estes indivíduos perderam as estribeiras.
Assim era interpretado o caso de Mariza que apanhava muito do marido, mas
também revidava e agredia-o. Era considerada pela vizinhança, assim como
por ela mesma, sofredora de problema nervoso9. Segue relato em que descreve uma dessas brigas com o marido. Nele é possível observar que ocupa
posição da vítima tanto quanto o de agressora, sendo capaz de revidar com
tanta ou maior violência física e simbólica, numa confrontação e intento de
igualar e equiparar forças com o agressor:
Nós botou [o companheiro] na delegacia das mulê. [Prá] Ele sair...[de sua
casa] porque todo dia ele dormia com , com uma faca pá me matar e
eu com uma pá matar ele. Aí nem ele tinha coragem de [furar, nem eu.
Eu dizia a ele]: Ói, um dia o cão pode atentar... [ameaçando-o]... [e por
isso] eu fui na delegacia da mulher, dei queixa pr’ele sair de den’de casa,
9
Análise socioantropológica comparando experiências de mulheres autoidentificadas como nervosas e não nervosas no NE ver Hita, 1998.
a casa das mulheres 143
só que ele não foi, que ele tem medo, [de] chegar lá [na delegacia e] ele
apanhar. Ele não foi! [...]
Entrevistador: E me conte de novo aquele caso do revolver, ele lhe ameaçava com ele?
Ah se ele pegasse [e apontasse a arma] prá mim, ele não ficava dentro de
casa, não, se ele botasse o revólver em cima de mim, eu ia mais confiar
[nele]? De jeito nenhum! Não! Ele tinha um revólver e ele sabe que eu
sou muito nervosa... Aí ele pegou e escondeu o revólver.
Entrevistador: Aonde? Nesse sofá ai?...
Era no outro sofá pequeno, e tava furado esse pano aqui, que Nailton furou pá esconder... Aí chegou um rapaz aqui [e] ele foi apanhar o revólver
pá mostrar, Ne? Aí ele chegou aqui se sentou, ficou olhando pum lado,
olhando pro outro... Num achou! Quando ele olhando, num achou... eu
cheguei...[e] eu já sabia que era isso que ele tava procurando, eu cheguei
ali da porta e botei em cima dele ... [Ele] quase morre! [E eu lhe] Disse: Ô!
Tá vendo ? se fosse nós e andasse brigano, tu me desse um tapa agora eu
te matava, mas nós num tinha brigado nesse dia, não.” (Mariza ,37 anos,
pessoa carente da área antiga e mulher considerada nervosa)
Se por um lado se condenava fortemente aquela dimensão da violência social associada à polícia e aos marginais, que parecia indigná-los; por outro,
davam a impressão que se problematizava menos, em muitos casos, outros
tipos de violência que ocorria dentro das casas ou porta a porta com o vizinho
do lado. A educação dos filhos envolvia invariavelmente a punição física, considerada até hoje como o modo mais efetivo e melhor modo de educá-los na
moralidade popular. Recorria-se ao uso de métodos violentos, incluindo, em
ocasiões, o espancamento. As mulheres falavam com bastante desinibição do
nervoso dos seus maridos que perdiam o controle com facilidade, agredindo-as
e a seus filhos, deste modo, afirmando virilidade frente aos outros. As brigas
entre vizinhos se destacavam e justificavam nos casos de perda de reciprocidade e de tensões não resolvidas como muitas das aqui descritas. É assim que
a violência entre vizinhos ou no seio familiar, da qual a rua muitas vezes se
tornava o principal cenário, constituía a expressão mais frequente de conflitos
não resolvidos na luta pela sobrevivência. E parecia adotar, no NE, um significado diferente ao da violência de outras classes sociais. Por vezes, a violência
144 maria gabriela hita
parecia estar entranhada no cotidiano dos indivíduos que passava a ser experimentada em muitos desses casos como se fosse até natural.
Nos diferentes casos analisados, a violência parece estar operando como matriz ou eixo organizador e marco referencial da vida cotidiana neste contexto,
contribuindo de forma específica e profunda, na conformação e constituição
da identidade do bairro. Os distintos tipos e graus de violência analisados parecem estruturar e delinear as nem sempre claras fronteiras entre o normal e
o patológico nas representações dos habitantes, naturalizando e positivando a
violência em alguns domínios ou ao menos tornando-a mais comum e introduzindo novas interpretações e maior estranhamento ao seu respeito, em outros dos domínios, o que a um olhar de alguém de fora, poderiam parecer inverossímel. As diferentes modalidades ou domínios de violência descritos neste
apartado permitiram evidenciar também que a violência pode ser exercida
tanto por grupos contra outros grupos, em esferas mais institucionais e públicas, como também em esferas mais privadas e individuais entre membros
das mesmas famílias e grupos.
Mediante imagens projetadas a partir da visão do outro, de si mesmos e
do bairro, a violência operou como outro dispositivo de criar distinções e
de se aproximar ou diferenciar de outras vizinhanças. Mas isto não ocorreu
como visto, desde uma única e monolítica visão de mundo. As representações internas do NE eram variadas em função de tantas características distintas dentre as quais foram analisadas apenas algumas, como diferenças de
gênero, idade e lugar de Moradia. A ocupação exercida por cada entrevistado na comunidade (se a atividade profissional independia de relações com
o resto da comunidade para sua sobrevivência) também teve impacto diferenciado no modo de posicionar-se em relação aos temas, como foi possível
observar em diversas ocasiões. Estas diferenciadas posições na estrutura social do bairro e dependendo da biografia específica de cada entrevistado, permitiu-me perceber identidades, interesses e visões de mundo distintas, que
iam se conformando e negociando com outras, nas visões que se tinha de si,
dos outros e da violência, em particular, permitindo detectar como essa rica
e variada matriz identitária se expressa.
Muitos, mas não todos os moradores mais antigos, estigmatizam os da
invasão buscando legitimar sua posição privilegiada no bairro que foram adquirindo no curso do tempo, tendendo a associar a presença da violência à
outra vizinhança e mostrando maior aliança com a polícia, da qual alguns
a casa das mulheres 145
esperavam mais ação e proteção. Mas outros apresentaram posturas mais
matizadas com respeito a este tema.
Na modalidade da violência familiar e de vizinhos, outros eram os fatores
e questões que entraram em ação. Era bem distinto pensar o tema da marginalidade ou participação de membros da comunidade no narcotráfico, como
algo que acontece com os outros, num movimento de distanciamento, do
que quando se reflete sobre o problema a partir de um contato bem mais próximo e ambivalente do qual se participa. Também cabe refletir como a experiência de muitas das famílias entrevistadas com o mundo do tráfico passa a
operar e ser integrada na sua visão de mundo, seja mediante reflexões mais
críticas e fundamentadas sobre o problema, seja intentando ocultar a dor e o
modo como tal fato repercute na convivência e segurança cotidiana de todo
seu grupo familiar mais próximo.
Falar da violência cotidiana produzida pelas próprias mãos, ou por pessoas
mais próximas dentro do ambiente doméstico, demandou maior distanciamento analítico ou intentos de ocultamento. A violência, como outros tipos
de manifestação do poder, não opera uni-direcionalmente, pode ser exercida
e reproduzida por todos, em todos os níveis, com maior tendência dos mais
fortes em direção aos mais fracos, e depende da situação sendo analisada em
cada momento e conjuntura. A depender do contexto e situação, os atores
podem ganhar ou perder força no jogo das relações cotidianas.
No contexto estudado, a violência era normalmente utilizada como pretexto disciplinador; por estar culturalmente internalizada nas suas práticas,
parecia ser vista como algo natural e legítimo, dificultando, nestes casos, a
reflexão crítica sobre suas consequências e sua subsequente superação. Para
que assim fosse, seria preciso primeiro deixar de ser visto como um meio adequado, normal e esperado de ação, o que só se alcançaria, via de regra, com
suficiente tempo de reflexão e desejo de mudar esse tipo de comportamentos
e práticas arraigadas, geralmente exercidas de modo irreflexivo. A aquisição
de nova consciência sobre os próprios atos é sempre possível e resultante de
distintas trajetórias e reflexões ético-morais. Mas uma mudança que ocorre
no campo da vida privada das pessoas, antes do que ou unicamente como
resultado de mudanças comportamentais generalizadas impostas por novas
regras ou códigos morais da sociedade mais ampla, ainda quando estes têm
papel a cumprir. Novas normas e leis que protegem direitos infantis e de
mulheres são fundamentais, mas a verdadeira mudança ocorre quando, no
146 maria gabriela hita
campo da cultura e da visão dos que a praticam, também se modifica e se interioriza novos valores promovidos por estas normatizações.
Neste capítulo busquei iluminar essa matriz de variação identitária que
tentei situar pela sutileza de matizes encontrados nos diversos posicionamentos apresentados sobre as visões que os moradores do NE sustentaram
em torno a temas da vida cotidiana e o da violência em particular. Em posicionamentos teóricos mais próximos aos de outros estudos sobre contextos
de pobreza urbana do Rio de Janeiro, como os de Janice Perlman (2004), em
que sugere, como no presente estudo, que a experiência subjetiva de ser e
viver na pobreza nunca é idêntica para distintos grupos de moradores no interior de diferentes favelas.10
Esta visão matizada do viver na pobreza só é apreensível em pesquisas etnográficas como estas, que tende a escapar do olhar generalizante de muitos
estudos macro estruturais e teóricos sobre a pobreza que dificilmente conseguem captar a dinamicidade e complexidade dessa realidade, ou seja, de
captar essa realidade tanto como fato social quanto como fato etnográfico.
A partir de análises de estudos etnográficos como estes se evidencia a deficiência de perspectivas teóricas de sofisticados analistas contemporâneos
da pobreza, como os dos estudos que pretenderam ressuscitar o conceito
de marginalidade, já batizada de “avançada” nos estudos de Loic Wacquant
(2007). Para ele, devido ao aumento dos níveis de estigmatização das zonas
pobres onde o modo de ganhar a vida e o emprego tornaram-se mais precários nas últimas décadas, esses territórios segregados seriam lugares perdidos para seus moradores, onde a esperança de construção do lugar e de
significativas redes de sociabilidade não seria sequer possível de equacionar,
já que se parte de pressupostos que fogem deste tipo de olhar e perspectivas
de análise. Perspectivas mais positivadas destes grupos são mais facilmente
encontradas em estudos de teor etnográfico que consideram haver nas cidades e mundo moderno a transformação dos tipos de laços tradicionais em
outros tipos, ao invés de afirmar uma maior debilidade e desaparecimento
de laços sociais como defensores da marginalidade avançada a exemplo de
Wacquant, tal como o enfatizam perspectivas de antropologia urbana como
a de Magnani (1998; 2002), Agier (2011), Hannerz (1980), entre outros.
A seguir destaco dados etnográficos desta pesquisa sobre o que se entende
e conceitua como matriarcalidade. Nos capítulos IV e V, por meio de duas
10
Ver desenvolvimento mais detalhado deste argumento em Gledhill e Hita (2012).
a casa das mulheres 147
etnografias familiares, trato das trajetórias de duas Casas matriarcais acompanhadas por mais de 10 anos de pesquisas, contadas em formato de peça
teatral, com descrições de respectivos cenários, personagens centrais e diferentes atos que recuperam a temporalidade de eventos marcantes da vidas
destas famílias.11 Deste modo, acredito dinamizar e ordenar a sucessão de
acontecimentos e a descrição de cada novo personagem – principal ou secundário – que é apresentado. Para isto, intercalo a apresentação de cada
nova personagem com a de atos, ações ou história propriamente dita destes
grupos domésticos e personagens centrais. São também apresentadas personagens secundárias no capítulo VI. Os atos indicam o passar do tempo, contando a sucessão de acontecimentos do passado a um tempo considerado
como presente – o do final da pesquisa – e o do modo como o espaço físico
e social que ocupam se transformou no decurso do tempo. Deste modo, descrevo situações e pessoas que estiveram envolvidas na temporalidade desta
casa matriarcal. Por intermédio das duas etnografias, busco demonstrar
como opera a matriarcalidade e o principio de matrifocalidade no contexto
descrito. No capítulo seguinte, o central do livro, apresento dados etnográficos da espacialidade das casas, descrevendo as transformações físicas ocorridas nos domicílios ao longo dos anos, retomando dados e história de etnografias familiares a partir de outra perspectiva analítica.12
11
Inspirei-me na obra de Thomas Mann (2000) sobre a saga dos Buddenbrooks.
12
Uma discussão mais fenomenológica deste tipo de análise consta em Hita (2012).
148 maria gabriela hita
m
Capítulo IV
mãe-vó-bisa na casa de
mãe dialunda
chefia feminina em arranjo matriarcal extenso
A dicotomia entre coisa e representação no processo de conhecimento é interdita ao sociólogo ou, no mínimo, um estado provisório e fugitivo do desenvolvimento da sua ciência. Para se compreender convenientemente um fato
social, é preciso apreendê-lo totalmente como fato social total, isto é, de fora,
como uma coisa, mas também, por dentro e em sua subjetividade, resgatando a própria visão do indígena (nativo). (LÉVI-STRAUSS, 1988) Ou, no mínimo, acrescentaria aqui, da ótica do observador que busca iluminar sua compreensão da experiência nativa.
O principal objetivo destes próximos capítulos é o de construir, e oferecer
ao leitor, uma densa etnografia familiar1 a partir de dois tipos de família extensa matriarcal (negra) em contexto de pobreza urbana, partindo da apresentação de multifacetados trechos narrativos criteriosamente articulados.
A riqueza e complexidade dos dados falam por si, e têm maior valor que qualquer intento parcial e limitado de análise que eu pudesse lhes impor. Assim,
os trechos destacados em negrito visam a identificar para o leitor principais
frases dos informantes a partir das quais sustento algumas de minhas interpretações. Neste capítulo e no seguinte, por intermédio do uso intensivo de
narrativas, busco reconstruir os modos específicos de estar-no-mundo que
os colaboradores da pesquisa explicitaram sobre si e os outros. O tipo de
descrição densa e detalhada que priorizei busca transcender o puro ato de
descrever pretendendo atingir realidades mais profundas da experiência dos
atores e deste contexto. Na análise das narrativas, parti do uso intensivo do
discurso (em relatos privados ou vivenciados por eles) dos informantes mediante interpretação de teor fenomenológico das narrativas para, através da
voz dada a essas personagens, poder acessar uma compreensão mais profunda sobre o estilo de vida de comunidades como a estudada e o arranjo
familiar matriarcal em particular.
A experiência, categoria central em qualquer análise fenomenológica, é
definida por Rabelo, Alves e Souza (1999) como uma categoria que remete
a hábitos, conhecimentos e práticas que ocorrem através dos corpos, os
quais intervêm na realidade por meio da dialética entre: a) o enraizamento
1
Inspirada na metodologia de etnografia densa e detalhada do antropólogo Geertz (1973, 1998).
a casa das mulheres 151
original no mundo da sociedade e da cultura (embodiment2 - ou experiência
encarnada) e b) o engajamento com o futuro mediante projetos, elemento
característico da ação humana e que faz da ambiguidade uma marca definidora da existência.
A decisão de destacar com negrito trechos das narrativas visa a despertar
o leitor para fragmentos mais significativos das falas que demonstram argumentações centrais resultantes desta pesquisa. Dado que a lógica priorizada na análise nem sempre responde ao critério da cronologia ou ordem
de aparição de certos elementos nas falas, nem sempre os destaques em negritos são discutidos imediatamente, após serem citados, cuja compreensão
depende da integridade da obra. Contudo, o Apêndice B (em anexos) oferece uma síntese de principais acontecimentos ou situações vivenciadas por
cada família, em ordem cronológica, para possibilitar esse tipo de consulta
ao leitor interessado.
Neste capítulo, e de modo complementar, na seção Casa de Mãe Dialunda
no capítulo VI, estão descritos os principais habitus familiares desta Casa,
apresentando personagens e respectivas histórias desta saga familiar,3 identificando-lhes posições ao longo do tempo na cotidianidade da família, nas relações com a matriarca, chefe da casa e da família. Assim, através de distintas
trajetórias do grupo, demonstro como opera o princípio de matrifocalidade em
2
Ver Csordas (1990, 1993, 1994), que trazendo a discussão de Mearleau-Ponty (1994) a respeito da
percepção para a esfera da Antropologia, propõe colocar a experiência encarnada, o embodiment,
como ponto de partida para a participação humana no mundo cultural, por ver o corpo como condição existencial onde cultura e self se encontram. (CSORDAS, 1993, p. 136) O autor parte da ideia
de percepção e atenção como algo que se inicia no corpo e é princípio gerador e estruturador
das práticas e representações. Para tal reflexão, relaciona o conceito de habitus de Bourdieu ao de
pré-reflexibilidade cunhado por Mearleau-Ponty. Para que um habitus seja compartilhado por um
grupo, é preciso que os agentes que dele participam compartilhem o mesmo sistema de ação e representação. O habitus, além de facilitar interações sociais entre iguais, marca, ao mesmo tempo,
a posição diferenciada de cada sujeito enquanto ser pertencente a determinado grupo, instituição
ou tradição. Por sua vez, Mauss (1974), ao conceituar as técnicas do corpo como maneiras como
os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos (MAUSS,
1974, p. 211), considera o corpo instrumento que corresponde à cultura em que o sujeito está inserido. O corpo, assim, é mais que um instrumento: é condição de possibilidade no mundo dos
agentes.
3
Trata-se da análise de uma saga, mas que também pode ser apresentada como o de um ciclo de
desenvolvimento do curso de vida deste grupo familiar focado na centralidade da relação entre
Mãe Dialunda e sua nora Dalva, tanto no que concerne à forma de reprodução do grupo, como da
sucessão deste modo de autoridade: a matriarcalidade.
152 maria gabriela hita
arranjos matriarcais, que remete à força centrada na mulher e base de todo
arranjo familiar matriarcal, isto é, à relação diádica mãe-filhos.
APRESENTAÇÃO DO CENÁRIO
p
As relações deste grupo familiar se centram na figura da matriarca, Mãe
Dialunda (Didi, como também era carinhosamente chamada),4 uma mãe
de santo e baiana de acarajé que vendia quitutes e delícias no largo de
Amaralina. O local, também denominado por Abrigo de Amaralina, foi um
dos primeiros e mais tradicionais locais de vendas de acarajé da cidade de
Salvador em passado recente, e continuava funcionando até 2004. Mas, já
tinha perdido freguesia com o surgimento e a fama das baianas de Itapuã e
do Rio Vermelho: Regina, Cira e Dinha com as respectivas filiais. Hoje o mercado é disputado por vendedores que não seguem tradições de Candomblé,
inclusive por homens.
No tabuleiro de Mãe Dialunda, encontrava-se acarajé – com os devidos
complementos: camarão seco, salada, vatapá, caruru, pimenta –, abará, peixe
frito para petisco, bolinho de estudante, rapadura, cocada preta, cocada
branca, pé de moleque, etc. O ambiente entre as baianas no largo era curioso:
falavam alto, diziam grosserias, estavam a registrar e comentar sobre todos
que passavam na rua ou sobre suas formas de reagir frente aos clientes e os
que interagiam com elas. Era uma sociedade de amigas (também rivais), que
compartilhavam modos de ver o mundo, momentos de solidariedade e exerciam jogos de poder e manipulação do espaço nas pequenas e cotidianas disputas: viviam a se xingar, mas nunca deixavam de rir juntas.
Mãe Dialunda era uma mulher de 77 anos por volta de 2003 e estava separada (vivendo sem parceiro) há muitos anos. Teve três uniões mais estáveis
ao longo da vida, porém seus cinco filhos de sangue são de quatro homens
distintos. Com o último parceiro, com quem mantinha amizade, tiveram
4
Os nomes foram trocados e alguns dos pseudónimos escolhidos pelos próprios informantes,
como este de Dialunda, por exemplo.
a casa das mulheres 153
também um filho de criação: Carlinhos, que de modo diferente aos seus próprios filhos, tinha cor de pele mais clara. Tanto Mãe Dialunda como a maior
parte de seus filhos, netos e bisnetos tinham pele bem escura. Os diferentes e
por vezes os mais discriminados ou marginalizados neste grupo com rígida
estrutura de poder pareciam ser as pessoas de cor mais clara (morenos em
geral), sem laços de sangue direto, pelo fato de serem pessoas mais estranhas,
afins ou filhos de criação. A posição ocupada pelo filho de criação revelou
ser o lugar onde ocorre maior discriminação,5 evidenciando a premência da
consanguinidade na definição última do parentesco e herança da casa ou à
maior consideração das matriarcas.
O princípio da consideração, conforme já esclarecido, é um terceiro termo
do sistema de parentesco – junto ao de consanguinidade e ao de afinidade –
mediante o qual se acionam mecanismos de seleção, integração e exclusão,
intermediando as relações de afinidade, amizade, vizinhança, apadrinhamento ou pertencimento a uma mesma turma,6 transformando o parentesco
fictício em efetivo ou operante, diluindo a eficácia do princípio do sangue
e tornando-o um parente efetivo pela escolha. Pela consideração, um afim
pode se tornar parente próximo, isto é, um não parente pode passar a ser
considerado como parente fictício, como se fosse consanguíneo. Mas este é,
também, um princípio pelo qual se selecionam pessoas da rede de parentesco
que são mais significativas na interação dos indivíduos, aproximando-se
mais de uns que outros, formando-se turmas dentro da própria rede de consanguinidade. Dessa forma, na condição de um parentesco por consideração,
encontram-se todos os indivíduos que conformam determinada rede de cooperação mais próxima. As redes sociais agem dinamicamente em fluxos e refluxos de alianças e desavenças entre os envolvidos, com distintos jogos de
5
Filhos criados podem ter os mesmos direitos que os consanguíneos no seio familiar cotidiano,
mas não os mesmos deveres; via de regra, são mais exigidos. É comum ouvir testemunhos de
abusos, trabalhos domésticos intensivos e, frequentemente, de maiores graus de violência (seja
física ou simbólica). Por sua vez observou-se que os filhos de criação em ambas casas não entraram na partilha ou direito à herança da casa do mesmo modo que alguns dos filhos consanguíneos das matriarcas
6
Agier (1990) em pesquisas no bairro da Liberdade, em Salvador, sobre a influência dos valores
familiares na produção do sentimento comunitário, fala que a turma é uma forma importante
de identificação para jovens no bairro. As turmas constituem uma rede densa de relações quase-familiares, nas quais valores como os da fidelidade, generosidade, solidariedade e honra organizam diversas atividades do grupo, funcionando estas turmas como redes dentro da rede. Nestes
grupos de identidade, a consideração pode ser mais operante que o princípio de sangue.
154 maria gabriela hita
interesses, tipos de escolhas (coletivas ou individuais) que vão configurando
o perfil de cada grupo familiar em distintos ciclos de desenvolvimento.
Quando comecei a pesquisa, em 1997, moravam na casa de Mãe Dialunda
dois dos seus seis filhos – os dois caçulas – (o filho de criação, Carlinhos, e
Juruna,7 o caçula que estava casado), a nora Dalva – mulher de Juruna – e
sete netos: os quatro pequenos de Juruna e Dalva e outros três adolescentes
que Dialunda criava desde pequenos (filhos de Carlos Alberto, o Carlão, e
que nessa fase não morava mais na casa e tinha outra família). Mãe Dialunda
também criou duas netas (filhas de Bela) – Célia e Branca – mas que já haviam
deixado a casa em 1997, sendo que uma delas voltou várias vezes a ser acolhida
após sua primeira partida.8 Em 1997 havia dez pessoas fixas morando na casa
de Dialunda, além dela, e que estão identificadas na figura 4a, em Apendice
A, por meio de um balão. O número de pessoas oscilou constantemente durante toda a pesquisa e distintas fases do curso de vida deste grupo doméstico, variando ao longo dos meses e até mesmo por semanas. Por vezes, em
função das rotinas diferenciadas e dos movimentos de reintegração ou afastamento dos distintos membros, parentes ou não, das visitas por temporadas
longas de conhecidos ou filhos de santo, etc. Subsequentemente foi praticamente impossível definir um número preciso de habitantes desta casa, em
cada uma de suas fases, devido à alta mobilidade.
No contexto estudado, são geralmente as mulheres com melhores condições econômicas no bairro que criam filhos de outras mulheres. A partir
das observações feitas no campo, posso afirmar que a prática da circulação
de crianças não somente estava presente, como parecia ser um dos elementos fundamentais no modo de operar deste sistema cultural, a matriarcalidade. Filhos, netos, bisnetos ou outros – afins ou meros conhecidos –
iam e vinham, circulando contínua e intensamente pelo espaço físico da
7
O nome de Juruna – também trocado – foi dado pelo caboclo de Dialunda, que Mãe Didi recebia durante a gravidez e por isto o batizou com nome por ela escolhido. Dialunda contou que o
nome real desse filho esta associado à ideia do índio mais bravo de todos: o terrível que se esconde nos canaviais. Nome que provem do Tupi e significa dono da terra ou cobra de duas cabeças.
Contou também que o padre da igreja da Pituba não queria batizá-lo com esse nome, mas que
o fez após Dialunda ameaçar procurar outra igreja para o batismo.
8
Nesta fase anterior à chegada de Dalva, havia oito pessoas fixas na casa, número que oscilava,
dependendo dos novos agregados ou conjunturas de aproximação/distanciamento de membros
do domicílio. Ver em Apêndice B a árvore genealógica desta família – genograma – com a identificação da posição ocupada por cada membro.
a casa das mulheres 155
casa de Mãe Dialunda e de outras casas a ela ligadas na cidade de Salvador
e Itaparica. Vale salientar que esta rede de casas pertenciam a outros membros da rede familiar da matriarca, de quem filhos e agregados buscavam
proteção e abrigo. Mãe Dialunda era dura e lhes dava teto e comida sem distinção, mas cobrava deles, em contrapartida, posturas morais que por vezes
geravam brigas, fazendo emergir disputas e conflitos que promoviam afastamentos temporários.
Mãe Dialunda sempre foi, durante o tempo da pesquisa, a principal fonte
de renda da casa, e ocupou a maior parte do tempo a posição de pai, mãe e
avó, com todos ao seu redor como dependentes. Essa posição era o que lhe
trazia felicidade, conforme declarava, ao ser a responsável do amparo e proteção de seus entes queridos. Configuração que estava fortemente marcada
por relações de poder e dominação: ela geralmente no comando; os demais
na obediência de suas ordens, desejos ou expectativas. Entretanto, nos últimos tempos, era comum ouvi-la reclamar dos netos e dos problemas da sua
casa, talvez porque sentisse o peso da velhice, aumentando-lhe a impaciência
e cansaço do seu entorno. Esse sentimento de tristeza, cansaço e depressão,
que a debilitava, era igualmente observado por seus netos ao relatarem sua
maior dificuldade em conseguir levar as rédeas da casa como outrora, apontando nova transição no ciclo vital desta saga familiar: o do início da sucessão, marcada pela perda do vigor físico e auge da força matriarcal de Mãe
Dialunda que se fundava antes na exclusividade da sua autoridade e força de
trabalho, e que agora parecia se diluir e enfraquecer, com o fortalecimento
de alguns membros da sua saga. Esta transição, contudo, não significou a
perda da posição hegemônica. A maior flexibilidade e menor rigidez no seu
comportamento de últimos tempos era associados a sinais de enfraquecimento e mudanças relatadas, e à abertura para a nova configuração em curso
deste grupo familiar, com maior reequilíbrio de forças.
D: [Meus filhos] não foram criados apanhando, não criei eles apanhando, mas se merecer, apanha. Fui eu o pai e mãe que eles tiveram. Quem criou eles, fui eu, sem pai!
MG: Sem pai? E seu Gilberto não a ajudou quando morava com ele?
D: Ah, não! Quando ele procurou mulher... eu disse [a ele]: ‘A porta da rua
é a serventia da casa’. Os [meus] meninos era tudo pequeno!
156 maria gabriela hita
MG: Que idade eles tinham?
D: É! De 11 anos para baixo. Dai em diante não tive mais ninguém!
Pra não dar padrastro a meus filho, que eu não queria que padrastro tocasse a mão nos meus filhos... Não queria que ninguém desse
o que comer a meus filhos pra dizer depois [o parceiro a ela]: ‘Ah,
teus filhos come nas minhas costas...’ Não dava! Nunca! Não, não.
Não quis mais ninguém!
MG: Nem assim um namorado por fora?
D: Nem por fora!
(D. Dialunda, 22/02/99).
C: Vó tem personalidade muito forte. Sempre foi muito decidida. Agora
acho que ela está diferente. Ficou lerda. Ela resolvia ‘as coisas’ rápido.
Quando queria uma coisa, era aquilo mesmo. E agora ela deixa os outros
bagunçar, às vezes ela quer que façam alguma coisa e não faz [fazem], e
deixa por isso mesmo! Vó, hoje, não é mais quem ela era antes [...].
MG: Como ela era antes?
C: Vó era muito brava! Minha mãe tem marca no corpo. Ela era assim, de pegar na rua, assim, na frente de quem tivesse, e bater de
pau, do que fosse. Agora ela [es]tá diferente! Todo mundo [es]tá
vendo... Vó [es]tá diferente!
MG: Porque está diferente?
C: Não sei se [é] por causa da idade! Que ela não é quem ela era, ela
era assim... violenta mesmo!
(Célia, neta criada, 26/7/99).
O sucesso econômico como baiana de acarajé e mãe de santo é fruto do
trabalho da coletividade, resultado de uma produção familiar conjunta que
ela conseguia mobilizar. Observar a movimentação e produção doméstica
dos quitutes era como observar o funcionamento de uma pequena indústria (ou comércio) domiciliar, onde quase todos os integrantes ocupavam e
desenvolviam atividades ligadas, direta ou indiretamente, à venda; seja organizando processos necessários à preparação dos alimentos, à organização
a casa das mulheres 157
do lar ou à sobrevivência do grupo doméstico. Diferente de outros lares visitados, no de Dialunda, os homens colaboravam com atividades domésticas
como o catar camarão, descascar coco, catar feijão, fazer compras, jogar fora
o lixo, lavar panelas e pratos e até varrer a casa ou lavar as próprias roupas.
Muitos a ajudavam diretamente na venda, carregando o tabuleiro e as caixas
de quitutes, facilitando o troco dos clientes, etc. Em casa, Mãe Dialunda ordenava e todos acatavam, mesmo a contragosto. A diferença entre esse e outros lares consiste em que a renda familiar dependia desse trabalho coletivo.
Dialunda estava sempre a coordenar, controlar, vigiar e agenciar atividades
alheias em cada uma das fases ou cuidando dos elementos necessários para
o cozimento e o preparo dos quitutes e trabalhos religiosos solicitados por
terceiros. Todas as atividades eram auspiciadas por pequenos serviços dos
dependentes. O controle, a autoridade e o domínio que a matriarca exercia
se manifestava também sobre a vida dos residentes da casa, tornando as relações quotidianas bastante disciplinadas e carregadas de tensão em diversos
momentos. A liberdade individual parecia ser apenas conquistada pelos distintos membros dessa família mediante afastamento – temporal – da casa, e
quando não mais necessitavam do sustento da matriarca.
A mão de obra infanto-juvenil é recurso muito utilizado como estratégia
de sobrevivência em contextos produtivos como o estudado, em que adquire
status e valoração moral diferenciada daquele do trabalhador adulto, e é mais
positivamente valorado na comunidade e desejável a partir dos 16 anos ou
mais. Não é vergonhoso que uma criança pequena trabalhe, mas tampouco
é desejável; dado que indica o menor status socioeconômico das famílias
que recorrem a essa estratégia. No caso desta matriarca, como também no
da outra família, o retardo da entrada no mercado de trabalho dos dependentes menores e o investimento na educação de todos são indicativos de
conquistas de melhor condição econômica que estas famílias alcançaram em
relação a outras menos favorecidas da vizinhança. Isto tampouco transforma
estes lares em classe média ou mais estabilizados economicamente. Uma diferença importante entre suas infâncias e a de seus filhos é que as duas matriarcas começaram a trabalhar desde os oito anos de idade; elas se sustentavam e ajudavam às famílias de origem. Não foi esse o caso, porém, dos seus
filhos e netos, que começam a trabalhar apenas na adolescência, indicando-se com isso, possivelmente, uma certa mudança de posição social.
158 maria gabriela hita
No lar de Mãe Dialunda, as crianças eram poupadas, inclusive, do trabalho doméstico. Já os adolescentes, apenas tiveram afrouxamento de tarefas quando houve condições de pagar ou ocupar a outras mulheres para
fazerem o serviço da casa. À medida que filhos e netos – de ambos os gêneros – cresciam, eram exigidos a assumir certas tarefas e uma participação
mais engajada na produção familiar. Entretanto, os homens, ao se tornarem
adultos e começarem a trabalhar em atividades fora da casa, passavam a ser
menos exigidos nas da dinâmica familiar e reprodução cotidiana. Nesta fase,
a diferenciação de gênero passou a ser mais visível. Na fase de transição da
adolescência masculina para a vida adulta – por vezes marcada pelo início
da paternidade e do papel mais consolidado de trabalhador – é quando observei começar a aparecer a resistência às tarefas domésticas por parte dos
adolescentes masculinos, produzindo certas tensões e necessidade de negociação para redefinir posições ocupadas por esses membros no interior do
lar, de direitos, deveres e novas responsabilidades. Curiosa observação, neste
grupo, foi a de que o dinheiro obtido pelo trabalho desses homens tinha, via
de regra, um destino de uso mais individual e não de complemento da renda
familiar.9 Em alguns casos, sequer chegam a colaborar com a compra do leite,
roupas ou gastos mínimos dos próprios filhos, deixando esse encargo para a
avó, a matriarca da casa. Na maioria das vezes, a própria Mãe Dialunda, por
meio de contatos externos à rede familiar, conseguia empregos para filhos
ou netos. Entretanto, na maior parte do tempo, os homens da casa estavam
desempregados, vivendo à custa da mãe/ avó e/ ou vagueando pela rua. Eles se
acostumaram ao papel de dependentes, o que, em certa medida, parece ser
consequência da própria forma de criação e do excesso de proteção fornecido por Mãe Dialunda. Nas duas narrativas a seguir estão melhor ilustradas
tais considerações:
C: Ela [Mãe Dialunda] é responsável [pelos filhos de Juruna], que desde
quando Juruna pode tá trabalhando, Dalva de dentro de casa, Juruna
não dá nada, não sustenta... Então, pode se dizer que ela é a mãe, o pai
e a avó dos meninos.
9
Ainda quando é comum aqui, como em outros contextos de pobreza, o salário dos homens ter
outros destinos para além dos do gasto familiar (destinado à bebida, outras mulheres, etc.), o que
procuro destacar aqui difere sutilmente deste aspecto, como o ilustram varias das narrativas a
seguir. E é que os homens em arranjos matriarcais são desresponsabilizados de assumir gastos na
manutenção destes lares, quando a matriarca é a principal provedora.
a casa das mulheres 159
MG: E porque é que ela sustenta tudo?
C: Porque é que ela sustenta tudo? [Porque] Ela é a responsável!
Porque remédio é com ela, roupa é com ela, comida é com ela,
tudo! Colégio é com ela. Tudo é com ela.[Tudo isso] É responsabilidade pra ela também! Apesar dela não... não era para ela estar com essa
responsabilidade porque, não tem precisão para isso, né? Mas o que se
pode fazer?
(Carlinhos, filho de criação, 30/01/00).
MG: Porque Juruna não sustenta seus próprios filhos? Ele não trabalhava?
C: Porque ele, Juruna, que tem mulher e filhos, é homem preguiçoso e sabe que Vó não vai deixar seus filhos passar fome. Teve um trabalho de quatro anos e nunca deu um tostão na casa de Vó.
Ninguém sabe que ele tem ou não [dinheiro]. Conta de banco parece que
tem. Não compra nada, nem roupa, nem nada.
(Célia, neta criada, 26/01/99).
Antes de avançar na análise do significado desses dois relatos, em principio bastante similares entre si, cabe recordar a diferença entre o que seja
um relato público – de significados compartilhados – dos de relatos privados
– associados a experiências pessoais. Enquanto os primeiros aproximam e
legitimam egos pelos significados compartilhados que se ergue sobre a realidade social, os segundos expressam a individualidade e reflexões daquele que
fala sobre contextos de interação vivenciados.
Estas percepções de Carlinhos e Célia sobre o comportamento do filho caçula de Dialunda apontam dois tipos de questões distintas sobre o papel do
homem na família em contexto de pobreza, seja no modelo mais amplo da
sociedade em geral, quanto neste sistema matriarcal em particular. Carlinhos,
que era um dos membros fixos desta casa matriarcal, apesar de reconhecer (em
nível de análise equivalente ao de um relato público) o papel do homem como
provedor em outros sistemas de parentesco, evidencia, ao mesmo tempo,
como neste sistema matriarcal é a mulher chefe do lar quem prove o grupo,
mostrando (em nível de relato mais privado) como isto ocorre, de fato. Pode ser
desejável, mas não imperativo, que o homem sustente os próprios filhos, estes
homens pareceriam estar liberados desta responsabilidade. É perceptível que
cabe à matriarca essa função, combinando três papéis sociais distintos (mas-
160 maria gabriela hita
culinos e femininos): o de pai, mãe e principal provedora do grupo doméstico.
A narrativa de Célia, por sua vez, uma das netas prediletas de Mãe Dialunda
e que preferiu viver de aluguel, durante muitos anos, apenas com seu marido
e filhos, aponta questões complementares e sutilmente diferentes. Cabe destacar-lhe o lugar de fala, recriminando, mais que Carlinhos, como mulher e esposa em arranjo familiar nuclear, ao seu tio Juruna. Ela o criticava por ele não
assumir o papel de provedor da própria prole. Nesta narrativa, como em outras, Célia marca o distanciamento da casa da avó e escolha racionalizada por
outro tipos de habitus,10 distintos dos do sistema no qual foi criada.
Muitas são as características estruturadas e estruturantes (no sentido de habitus) dessa casa, e se destacava especialmente aquela da presença e da convivência nada agradável de casos ou intentos de abuso sexual na trajetória de vários dos seus membros, principalmente na infância ou adolescência. O trauma
sexual vivenciado inicialmente pela avó e matriarca do grupo, Mãe Dialunda,
pareceu-me que se reproduziu ao longo das gerações de filhos e netos de
formas distintas e com diversos significados. Mãe Dialunda declarou ter sofrido abuso sexual aos 13 anos pelo filho do patrão. Desta relação, teve a primogênita, por volta de 1939. Posteriormente, filhas, netas e o neto João Carlos
relatam terem vivenciado ou perpetrado experiências similares de estupro ou
intentos de abuso sexual na família.
A filha primogênita de Dialunda teve vida sexual muito ativa e promíscua;
para alguns, ela era prostituta. Iniciara a vida sexual também aos 13 anos,
por volta de 1952, quando deu a Dialunda, então com 26 anos, sua primeira
neta. Ela teve filhos de distintos parceiros e não criou nenhum. Neste caso
não houve evidência clara ou declarações sobre ela ter sofrido experiência
de abuso na infância, mas sua gravidez adolescente poderia ser configurada
10
Para Bourdieu (1997, p. 21-22): “O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as
características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em
um conjunto de escolhas de pessoas, de bens, de práticas. [...] Assim como as posições das quais
é produto, os habitus são diferenciados; mas são também diferenciadores. Distintos, distinguidos,
eles são também operadores de distinções: põem em prática princípios de diferenciação diferentes ou utilizam diferencialmente os princípios de diferenciação comuns. O habitus são princípios
geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e, sobretudo sua maneira de
comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de
expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o que é bom e
mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar etc.”
a casa das mulheres 161
como tal para alguns, mas suas sobrinhas declararam que ela certamente a
sofria como adulta, por parte do parceiro que tinha por volta de 2003, quem
era visto como pessoa marcada pelo vício e de ter efeito negativo sobre a
personalidade da tia. Duas das netas de Dialunda, filhas de Bela, afirmaram
terem sofrido intentos de abuso sexual por parte do padrasto, com certa conivência da própria mãe, quando circularam por um tempo na sua casa, na
ilha de Itaparica. No caso do neto declarado homossexual, e que declarou ter
passado por experiências de abuso sexual na infância, por parte de outras
crianças e adultos, parece ter havido uma ressignificação mais positiva deste
tipo de experiências na sua vida e na construção de sua identidade posterior,
marcadas pela orientação e desejo sexual homoeróticos. Ele narra como iniciou sexualmente um de seus irmãos menores, durante brincadeiras, quando
tinha 12 anos, o que pela definição internacional do fenômeno, levando em
consideração sua menoridade, não se configuraria propriamente como um
perpetrador de abuso sexual ou estupro, naquele período.
Outro elemento característico e constante neste grupo familiar, em parte
atrelado ao anterior, é a presença de um elevado grau de agressividade e violência nas relações do grupo familiar. Aqui a violência, como no resto do bairro,
é considerada natural e elemento cotidiano.11 É exercida e reproduzida pelos
mais fortes e também pelos mais fracos, atingindo até objetos, móveis, roupas
e brinquedos da casa, onde poucas coisas conseguem perdurar sem serem destruídas ou desaparecerem em lapsos curtos de tempo, como já foi analisado e
discutido no capítulo anterior, na etnografia do bairro. Todavia aqui fica mais
perceptível como dois tipos de violências, que pareciam diferentes ou excludentes, se cruzam e interpenetram na vida cotidiana. A violência tratada em
relatos públicos como mais externa, mencionada anteriormente – aquela de
policiais e marginais – se confunde e atravessa experiências de violência doméstica ou próxima – aquela das relações de vizinhança e família, porque há
nestas famílias, como na da maioria de famílias deste contexto, sempre algum
membro que foi perdido para o narcotráfico, trazendo sofrimento, preocupações e dificuldades para todo seu grupo familiar. Os casos de extrema violência
vividos nesta família foram os dos assassinatos de três netos de Mãe Dialunda
envolvidos no tráfico de drogas, situações de desgaste e tensão familiar que em
11
Cabe recordar que o uso da violência nesse contexto (e quando para a educação dos filhos) é claro exemplos do tipo de mecanismo pelo qual o grupo modela membros do grupo à sua imagem.
162 maria gabriela hita
diversos momentos significou verdadeira ameaça à segurança de outros membros da parentela e da própria Mãe Dialunda.
A força e determinação das mulheres, por um lado, e a instabilidade conjugal ou procriação (de filhos) de distintos parceiros e parceiras, por outro,
foi outra das características marcantes na história dos membros desta estirpe e do modelo matriarcal estudado (homens mulherengos, mulheres autônomas e independentes que, como a mãe e a avô Dialunda, não quiseram
se submeter a um único homem – ou mulher, no caso masculino – ao longo
de suas vidas).
ATOS E PRINCIPAIS PERSONAGENS
DESTA SAGA FAMILIAR
p
PRIMEIRO ATO
Vida de Mãe Dialunda no passado
Mãe Dialunda – mulher negra, forte e poderosa, cuja existência esteve sempre atrelada ao exercício de poder e vontade, nunca se submeteu, aparentemente, a homem ou pessoa alguma. Ela definia, as rotas do seu destino
desde menina-moça, e tornou-se uma paradigmática representante da figura matriarcal desta pesquisa. Ela tanto criou filhos próprios como de outras
mulheres e parentes, e foi a principal provedora do grupo doméstico em boa
parte da sua vida. Papel de provedora que se fortaleceu ao passar a exercer
seu papel como Mãe de Santo de Candomblé, depois dos 30 anos, fazendo
com que a manifestação de sua matriarcalidade não dependesse apenas dela
ser o foco do seu lar, mas também pela função exercida neste outro sistema
cultural e religioso.
Desde que se iniciou no Candomblé e lhe foi designado o abandono da
ocupação anterior como empregada doméstica para dedicar-se à venda de
acarajé e trabalhos de santo, a vida econômica e o prestígio na comunidade
a casa das mulheres 163
melhoraram muito. Nunca dependeu de ninguém, mas talvez só a partir
dessa opção, sua força e autonomia econômica tenham se evidenciado mais.
O principal instrumento para exercício de poder sobre os outros consistia
na sua forma de manipular e se relacionar com o dinheiro, atraindo sempre
dependentes junto a si, concedendo-lhes vontades e afagando-os quando seguiam seus mandatos; por outro lado, restringia ou impossibilitava o acesso
a bens àqueles que considerava menos ou que lhe estabeleciam oposição.
O direito à comida e à moradia era outra das formas de controlar e exercer
poder. Como dona e chefe da casa, decidia quem podia ou não ser acolhido
sob o seu teto. Tinha ideia clara do que esperava e desejava para os descendentes e de quais eram os caminhos a adotar para isso, motivo pelo qual
procurou proteger filhos e netos, quando mais jovens, da necessidade de trabalharem para se sustentar, tentando incentivar o amor pelo estudo e, posteriormente, pelo trabalho, o que nem sempre conseguiu.
Pelo temperamento forte e autoritário, a convivência no lar era complicada para seus dependentes, que aprenderam a amá-la e respeitá-la,12 mas
que, para isso, sempre precisaram reprimir os próprios desejos e individualidades para se adaptar ao modelo da matriarca. A maioria dos processos de independência de cada filho e neto foi conflituosa e difícil, pois Mãe Dialunda
não gostava de ver suas crias crescerem longe dela, nem tomarem caminhos
próprios distintos dos que ela projetava. Entretanto, passados os momentos
de atrito e afastamento mútuo, uma vez consolidado o processo de independência, as relações de afeto eram reatualizadas e reestabelecidas em novos
termos pela própria Mãe Dialunda, que parecia estar sempre a testar e colocar à prova os seus considerados nesses complicados e tensos ritos de iniciação à vida adulta. Ela se orgulhava muito e passou a considerar mais alguns
dos que encontraram o próprio caminho, como foi o caso da neta Célia depois do casamento.13
12
O respeito é o contraponto da consideração. Consideração é o que tem o superior ou mais velhos com inferiores ou mais novos; respeito é dos mais novos para com os mais velhos denotando cada categoria posições diferenciadas na estrutura social familiar.
13
Adiante, apresento mais informações sobre Célia, mas aqui cabe adiantar como Dialunda via
nela uma potencial sucessora na venda de acarajé e vida de santo, papeis e modo de vida que
Célia pareceu rejeitar ao optar viver em uma família de tipo nuclear, decisão de afastamento e
independência que inicialmente produziram muitas tensões na Casa de Mãe Dialunda antes de
voltar a ser apoiada e a re ocupar lugar dentre as netas prediletas.
164 maria gabriela hita
Como ela sempre trabalhou fora da casa, precisou ser substituída por outras mulheres nos afazeres domésticos e cuidado dos filhos. Na casa de Mãe
Dialunda, sempre existiram essas outras mulheres – sem laços de sangue empregadas, noras ou mocinhas que se integraram em conjunturas específicas
como filhas de santo ou alguma protegida – as quais a ajudavam no cuidado
da casa e da venda. Este mostrou ser um modelo relacional predominante
entre Mãe Dialunda e outras mulheres externas ou sem laços de sangue (as
outras ou excluídas). Mesmo com a presença dessas mulheres, sobre quem
recaia maior quantidade de trabalho, todas as pessoas da família, independentemente do sexo, participavam dos afazeres domésticos. Essa inserção
por estrutura de parentesco, idade e sexo, assim como o grau de exigências
na execução das tarefas de cada um variou ao longo dos anos a depender da
quantidade de trabalho e recursos humanos em cada momento.
Com filhos adultos, a presença de noras na casa de Mãe Dialunda passou
a ser constante no curso desta saga familiar, assim como o subsequente afastamento dessas mulheres quando se tornaram problemáticas para a conservação do sistema (ou quando seus filhos se separam delas e assumiam novas
parceiras). Mãe Dialunda usou serviços domésticos pagos, quando seus filhos eram ainda pequenos para ajudá-la, e em períodos em que possuía mais
recursos. O cuidado e o zelo com filhos e netos foram uma das suas principais preocupações.
A relação de Mãe Dialunda com as noras parecia responder a um modelo
estabelecido que combina aspectos de exploração econômica do trabalho,
associado a certa ambiguidade emocional, variável em função do temperamento, da personalidade e da relação impressa por cada uma das pessoas implicadas. A posição estrutural das noras na casa (família) de Mãe Dialunda,
como mulheres adultas e trabalhadoras, por um lado, como estranhas (sem
vínculo de sangue), por outro, tornava-as, no interior do grupo, espaço de
ambiguidade e fragilidade, produtor de tensões e constantes renegociações.
Esse tipo de relação oscilava entre movimentos de aproximação e distanciamento simultaneamente, de consideração, respeito e igualmente, de discriminação, por mais paradoxal que isto possa parecer. As noras eram tratadas e
identificadas frente a certos conflitos, como verdadeiras estranhas, como não
pertencentes totalmente ao grupo dos que estão dentro da família, e por vezes
como verdadeiras inimigas, ou outsiders nos termos de Elias e Scotson (2000).
a casa das mulheres 165
O acesso ao teto e à comida não era, neste caso, um privilégio, visto que
nesse lar todas as pessoas que Mãe Dialunda costumava abrigar (sempre
abrigou desconhecidos de ambos os sexos, e por diferentes motivos) pareceram ter o direito a alimento, roupa e moradia de forma indistinta.
As noras, entretanto, como mães de seus netos, tinham por isso, em relação
a esses outros estranhos, certo reconhecimento, direitos, privilégios e consideração diferenciada. Porém, ao lado dos próprios filhos e netos que carregavam o mesmo sangue de Mãe Dialunda, ocupavam visivelmente posição
desprivilegiada. A posição de cada membro no lar é hierarquicamente definida nesse campo de família matriarcal e varia em função de muitos fatores pessoais como certas preferências da matriarca e fatores como idade,
sexo, personalidade e trajetória de cada um, posição obviamente variável a
depender de relações e situações específicas de cada momento do curso de
vida do grupo familiar. Aproprio-me aqui da noção de Campo – e campo de
poder – de Pierre Bourdieu (1997), que concebe o espaço social como campo
de forças cuja necessidade se impõe aos agentes nele envolvidos, um campo
de lutas, de enfrentamento, onde cada agente usa meios e fins diferenciados
conforme a posição na estrutura desse campo de forças, seja no sentido de
conservar ou transformar essa estrutura. A relação entre as posições e as tomadas de posições dos distintos atores variam: cada agente constrói o próprio
projeto de vida em função da percepção das possibilidades disponíveis oferecidas pelas categorias de percepção e apreciação inscritas no seu habitus,
por sua trajetória e também, dirá Bourdieu (1997), em função da propensão
a acolher ou recusar, tal ou qual desses possíveis interesses associados a posição no jogo em que participa.
Devido ao forte temperamento e autoritarismo de Mãe Dialunda, as relações de convivência eram difíceis e conflituosas, mesmo com filhos ou netos
protegidos e preferidos. No caso específico das noras, devido à forma ríspida e discriminatória de tratamento, o fardo pareceu ser bem maior. Este
era claramente o caso da nora que morava na casa desde 1989. A experiência
de Dalva foi possivelmente diferente da de noras anteriores, pela nova fase
em que se encontrava o grupo familiar e pelas especificidades dos relacionamentos neste caso em particular. Foi essa tensão constante da relação de
Mãe Dialunda com outras mulheres outsiders o eixo central que escolhi para
revelar a identidade do grupo na descrição dos distintos momentos dos atos
– aqui e adiante.
166 maria gabriela hita
A pessoa que mais trabalhava na casa, desde que acordava até se deitar,
sem muito descanso, folga ou condição de criar algum projeto próprio de
vida, era visivelmente a nora de Mãe Dialunda. Dalva era uma mulher amargurada, carregada de frustrações e ressentimentos nos idos de 1997, quando
começamos a conversar. Ela é de cor morena mais clara que a da grande
maioria dos parentes de Mãe Dialunda, alta, graúda e extremamente gorda,
no início da pesquisa, quando devia pesar, pouco antes do ano 2000, cerca
de 150 kg. De aparência descuidada, tendendo para o desleixo na forma de
se vestir, pentear e se situar no mundo; parecia não ter vaidade feminina, ao
menos nos domínios privados da casa, onde passava a maior parte do tempo.
Pessoas do bairro, e de outra família estudada, afirmavam lembrar-se de
uma Dalva vaidosa, bela e mais magra quando solteira, julgando ser ela uma
pessoa fracassada e caída no desprezo (termo da etimologia popular utilizado
para referir-se a certos tipos de depressão crônica) devido aos sinais que emitiam a falta de cuidado com seu corpo e distintas reações comportamentais bem conhecidas pelos fuxicos e fofocas no bairro, que a própria Dalva
contou-me sem receios.
O vínculo de Dalva com Mãe Dialunda durante algum tempo evidenciava
dura relação de opressão e exploração econômica. Mãe Dialunda não pagava em dinheiro pelos serviços de Dalva; em contrapartida, vestia e alimentava a ela e aos seus quatro pequenos filhos. A relação de dependência não
era unilateral; era mútua, criando do lado de Mãe Dialunda uma contra-dependência igualmente nefasta. Ambas as mulheres eram ligadas quase que
umbilicalmente por meio de laços de ordens distintas: necessidades mútuas
satisfeitas por esse vínculo, por um lado, e impulsos mutuamente destrutivos, como parte da guerra de interesses e do círculo vicioso de relações em
que estavam inseridas, por outro. Esta situação produzia, de ambos os lados,
complexa e ambígua mistura de sentimentos: agradecimento e identificação
profunda e simultaneamente, de certo rancor, desconfiança, ressentimento,
impotência e esgotamento emocional.
Experiência similar a esta foi a de Dialunda com mulheres dos dois filhos
mais velhos, que também passaram um tempo vivendo na casa. Mãe Dialunda
protegia e dava teto ao grupo familiar e, em contrapartida, exigia uma dependência e total obediência das noras, com as quais estabelecia regime de
a casa das mulheres 167
trabalho duro e sem fim.14 Pelo temperamento de Mãe Dialunda e a forma
autoritária e discriminante de tratar os que estão sob seu jugo, as relações
eram hierarquicamente definidas, polarizadas, com alto grau de conflito.
A maioria das noras terminou cortando relações com Mãe Dialunda. Por
sua vez, Dialunda apenas manteve relativo distanciamento, consideração ou
respeito mútuo com algumas das noras atualmente unidas a seus filhos – filhos
homens pelos quais afirmava se derreter de amor e orgulho – indicando que
quando um dos afins rompia o vínculo com um de seus filhos ou consanguíneos, esse outro não só deixava de ser considerado parte da família de Mãe
Dialunda como passava a ser tratado, em geral, na sua visão simbolicamente
conformada pelos princípios e imagens do Candomblé, como traidor ou inimigo mortal. A maioria das noras que se separaram dos filhos, mesmo vinculadas ao grupo pelo fato de serem as mães de sangue de netos que Mãe
Dialunda criava, tornaram-se grandes inimigas, com as quais a matriarca desenvolveu relação de marcada hostilidade.
Caberia nos perguntar se estes são, como o indicam estudos de religião,
predisposições do tipo de autoridade exercido por uma mãe de santo, ou
quando esse modo autoritário de agir de Mãe Dialunda foi sendo resultado
do temperamento individual ou se também algo que foi sendo adquirido e
conquistado pela sua aproximação e envolvimento com o sistema cultural do
Candomblé. Tudo indica que sua entrada no Candomblé fortaleceu e potencializou, qualidades que já possuía e são exigidas a toda mãe de santo: autoridade sobre terceiros.
14
Nos estudos de Vivaldo Costa Lima (2003) sobre a Família de Santo se evidencia o caráter hierárquico deste sistema e como a relação entre Dialunda e sua nora Dalva é comum e parte de
rituais de iniciação, o que associado a outros dados que foram se manifestando no decorrer da
pesquisa, leva-me a crer que Dalva estava sendo iniciada por Dialunda para ser sua sucessora, em
algum momento.
168 maria gabriela hita
PRIMEIRA PERSONAGEM CENTRAL
Mãe Dialunda
(Mãe de santo, baiana de acarajé, 73 anos, três uniões,
cinco filhos consanguíneos e um de criação)
Mãe Dialunda liderava um extenso grupo familiar. Com pele de cor negra bem
escura e 73 anos em 2003, era mãe de santo do Candomblé, vivia de trabalhos
rituais e da venda de acarajé como Baiana no largo de Amaralina. Nunca foi
gorda, mas tampouco tão magra – comentava com tristeza – como quando
a comecei a entrevistar por volta de 1997, indicando como certo sobrepeso é
valorizado entre povo de santo, por ser sinal de saúde e prosperidade. Ela se
caracterizava principalmente pelo temperamento forte e agressivo, com um
tom de voz grave e autoritário que sobressaia no ambiente. Muitas vezes falava
gritando, impondo-se pelo tom da voz e usava muito o modo verbal imperativo; usava frases curtas e as pronunciava de modo cortante. Nas entrevistas,
com muitas pausas, parecia apresentar verdades inquestionáveis e profundas,
mesmo se tratando de assuntos cotidianos. Dava a impressão de transmitir conhecimentos que iam, naquele momento, sendo ditados por alguma voz que
somente ela ouvia quando fechava os olhos, desta forma pensava na realidade
que a circunscrevia e se concentrava para relatá-la.
Mãe Dialunda liderava um extenso grupo familiar. Com pele de cor negra
bem escura e 73 anos ,em 2003, era mãe de santo do Candomblé, vivia de trabalhos rituais e da venda de acarajé como Baiana no largo de Amaralina. Nunca
foi gorda, mas tampouco tão magra – comentava com tristeza – quando comecei a entrevistá-la, por volta de 1997, indicando como certo sobrepeso é valorizado entre o povo de santo, por ser sinal de saúde e prosperidade. Ela se
caracterizava principalmente pelo temperamento forte e agressivo, com um
tom de voz grave e autoritário que sobressaia no ambiente. Muitas vezes falava
gritando, impondo-se pelo tom da voz e usava muito o modo verbal imperativo; usava frases curtas e as pronunciava de modo cortante. Nas entrevistas,
com muitas pausas, parecia apresentar verdades inquestionáveis e profundas,
mesmo se tratando de assuntos cotidianos. Dava a impressão de transmitir conhecimentos que iam, naquele momento, sendo ditados por alguma voz que
somente ela ouvia quando fechava os olhos, desta forma pensava na realidade
que a circunscrevia e se concentrava para relatá-la.
a casa das mulheres 169
Entre dez palavras proferidas, invariavelmente dois ou três eram palavrões
(insultos) dirigidos a terceiros. Nos primeiros contatos, custava-me entender
expressões ásperas, rígidas e grosseiras usadas para se referir aos seus ou interagir com eles, quando, ao mesmo tempo, era muito controlada e cuidadosa para falar comigo. Em um mesmo momento, era capaz de intercalar
duas frases, uma suave para mim, com outra de tom áspero ou com xingamentos dirigido a um neto próximo que pegava doce sem consentimento,
estivesse brigando ou aprontando alguma traquinagem na rua (acusado por
queixa de vizinhos). A agressão também era assiduamente direcionada para
a nora se esta lhe filava algum cigarro – ambas fumavam compulsivamente –
ou se não lhe retornara o troco de alguma compra, acusando-a, sem rodeios
na minha presença, de ser uma ladrona, esfomeada e morta de fome. Estava
acostumada a humilhar seus dependentes e exigia obediência cega a seus
mandos e vontades, sem discussão, fossem razoáveis ou não.
Parecia ser a única que decidia tudo na casa e era comum ser consultada
por familiares, amigos e conhecidos. Em casa, determinava os castigos ou
agrados para todos e designava como os netos deviam ser educados, até
mesmo daqueles cujos pais habitam a casa e se ressentiam de falta de autoridade para exercer a própria paternidade/ maternidade. De sua nora Dalva
é o seguinte relato:
MG: Me conte como é criar seus filhos morando na mesma casa de Mãe
Dialunda
D: A criação deles são [sic] muito mau, minha filha. Porque uma, eu
não posso falar nada, eu não posso dizer nada, eu não posso escolher o que eles quer[em]. Eu não posso mandar nele[s]. Porque,
porque cada dia que passa, aí a criação de D. Dialunda é totalmente
diferente. As crianças só faz o que quer. Ela só faz o que ela quer. Quanto
mais ela [es]tá em casa, aí piora.
Lila mesmo [a filha de 10 anos] [es]tá de uma rebeldia danada. [Es]Tá
crescendo, oi!... oi!... [es]tá uma mocinha! Então, fazer uma coisa para
mim é uma dificuldade.
Ela [Mãe Dialunda] tem que bater. Principalmente se na frente dela, ela
não faz. Qualquer coisa que eu reclame com ela [Lila], ela chora, pra ver a
avó dela me esculhambando, me xingando. Que ela me xinga mesmo. Me
chama de tudo quanto é nome ruim, ela me xinga. Me esculhamba. Então,
170 maria gabriela hita
não tenho liberdade... Nem Juruna [o pai dos meninos] pode mandar neles.
Mãe Dialunda já bateu em Juruna por causa deles. Ele não pode falar. Ele
vê uma coisa errada e ele tem que ficar na dele.
Porque José [outro filho] é rebelde, e ele [ Juruna] não gosta das coisas que
José faz. Ele quer falar. Mas Dona Dialunda gosta de cobrir o erro dos
meninos. Com os neto[s] ela é liberal. Cheia de vontade!
Por mim, ela faz o que quer. Quando ela [es]tá retada, ela fala:
‘perepepé’... [reclamando com os netos]
Daqui a pouco ela [es]tá fazendo a mesma vontade deles. Faz o que
pode e o que não pode!... Que isso, eu não posso dizer que não.
Ela faz o que pode e o que não pode. De fazer a vontade dos neto.
Ajuda todo mundo. Pensa em todo mundo, só não pensa nela.
(Dalva, nora, 30/01/00).
Dalva se queixava por não poder exercer sua autoridade com os filhos
frente ao modelo de criá-los imposto por Dialunda. Mas também, e de modo
ambíguo, reconhecia tudo o que Mãe Dialunda fazia por eles e por todos na
casa, inclusive pela própria Dalva.
Difícil foi saber ao certo a idade exata de Mãe Dialunda que, ao longo dos
últimos dez anos, afirmava possuir entre 64 ou 65 anos. Essa confusão, ou
movimento de despiste sobre a verdadeira idade, estava por momentos associada com seu orgulho e vaidade feminina, relacionada com o orixá OxumApará. Tal característica, como denominou em certa ocasião, relacionava-se
com a Senhoridade – tempo de feita – de Oxum. Mas este problema de identificação da idade estava igualmente associado, no seu caso, às falhas de memória. Datas do seu passado ou o nome completo dos membros da extensa
rede familiar nem sempre conseguia lembrar com a mesma rapidez ou destreza de D. Cida, mais idosa do que ela.
Mãe Dialunda teve cinco filhos de quatro homens distintos e criou um,
mas quando lhe perguntei quem eram seus filhos, não mencionou este filho
de criação. Algumas vezes, afirmava ter cinco filhos, outras, seis, indicando
certa ambivalência para com o filho criado, que foi sempre tratado com mais
discriminação e rigidez. Até 2000, conheceu pelo menos 26 netos e 11 bisnetos, alguns dos quais ela mesma criou. Número que estava mudando constantemente com o surgimento de novos bebês. De temas desagradáveis, Mãe
Dialunda evitava falar; colocava barreiras ou era supereconômica ao dar a
a casa das mulheres 171
informação solicitada, transformando qualquer pergunta nessa direção em
um momento constrangedor pelas respostas cortantes e curtas. Boa parte
das interpretações propostas sobre vários aspectos da vida familiar foi produzida a retalhos, fruto de observação constante e estudo das suas reações,
assim como pelo cruzamento e enfrentamento de depoimentos de distintos
membros do grupo familiar. A vida de Mãe Dialunda pode ser dividida em
duas fases importantes que lhe marcaram a vida e a matriarcalidade: a vida
antes e depois de aderir ao Candomblé.
a) Antes do Candomblé
Mãe Dialunda dizia ter boas lembranças da infância junto aos pais, os quais
souberam educá-la e amar, afirmando, por exemplo, que a educação dos filhos
é a casa dos pais. Moravam no interior da Bahia, na cidade de Serrinha. O pai,
Seu Manoel Viera da Silva, homem caboclo, filho de mulher índia, foi empregado na Leste brasileira; a mãe, D. Maria Vieira Teles da Silva, mulher negra
como ela, trabalhava na roça, em trapiche de fumo e fazia crochê em casa.
Pela família humilde, conta Mãe Dialunda, teve uma infância nem boa, nem
ruim, porque tinha que trabalhar desde pequena na roça (desde 6 anos) e na
casa dos outros ajudando a mãe no ganho para o sustento da família.
[A relação com seus pais] Também era muito boa, porque nós não tivemos a liberdade, a mau criação. Porque antigamente não se podia
responder a pai e mãe. Se fazia o que se podia. [...] Criança sempre
gosta de ter essa liberdade, de criança, e eu nunca tive, nunca tive.
Trabalhando brincava, mas também trabalhava. Tinha que trabalhar para comer, vestir e calçar. [...]
Meus pais eram humildes. Nós... dentro de casa... nós tudo trabalhava.
Pra se manter e ajudar eles. Por isso, nós tínhamos uma relação muito
boa. Graças a Deus. (Mãe Dialunda, 10/01/96).
Os pais de Mãe Dialunda só puderam criar quatro dos 13 filhos que tiveram. Ela foi a caçula. E um desses quatro que eles criaram. Pela diferença
de idade entre os quatro (duas irmãs e um irmão), não chegou a conviver
muito com eles durante a infância na casa da família, pois já tinham formado
os próprios núcleos familiares nas redondezas ou viajado a trabalho. Mas
voltaram a compartilhar morada e experiências conjuntas em fases adultas,
chegando a coabitar o mesmo espaço residencial e a visitarem-se com frequência. Os irmãos restantes, muitos que ela nem conheceu, foram dados
172 maria gabriela hita
para criação ou começaram cedo a trabalhar, perdendo, assim, contato com
estes outros após a infância.
Eu, pequena, só não gostava de apanhar do meu pai. Agora, eu fui uma
criança muito travessa, eu não era... queta E apanhei muito da minha
mãe, porque ela tinha que me ‘exemplar’. Porque eu era terrível! Eu
batia muito nos outro. Fazia o que não devia... E eu tinha que apanhar.
Mas minha mãe foi uma boa mãe. Meu pai também! E fui uma menina... que meus pais gostavam de mim. Era a caçula. Só tinha eu na
casa de criança. As outra tava tudo mulher. Já tinha ido embora, cada
qual na sua casinha. Eu era sozinha, mas era terrível!! (Mãe Dialunda,
22/02/99).
Na infância, morou na casa da avó materna – mulher negra discriminada pela avó paterna de origem indígena – e com uma tia-avó, irmã do avô
materno. Bem cedo Didi deixou o núcleo familiar: aos oito anos foi morar
com família abastada em Salvador. Trabalhava em casa de família ou casa de
branco, em troca de roupa, alimentação e um ganho destinado à mãe. Talvez
por tratar-se de trabalho, pelo seu forte temperamento e por nunca ter rompido o laço com a família de origem, não declara que fora criada ou filha de
criação nesta outra casa, apesar de ter ido tão jovem.
Esta prática – configurada como exploração econômica do trabalho infantil – ainda é muito encontrada ainda hoje no Nordeste Brasileiro.
Geralmente vista de ambos lados como ajuda econômica a famílias que não
têm como alimentar e vestir suas crianças. Muitas das mulheres entrevistadas no survey trabalharam como empregada doméstica desde crianças e
identificam essa fase como integrantes de uma família de criação. Vale lembrar a associação da ideia de criado à de um serviçal da casa, com toda a
ambiguidade de sentimentos que estas relações produzem. No caso de Mãe
Dialunda e na representação do seu passado, ao contrário do discurso da
maioria de outras mulheres entrevistadas na mesma situação, não existe nenhuma dúvida quanto à forma de se referir a essa experiência passada: considerava-a apenas uma relação de trabalho.
Mas, antes de mudar-se para Salvador, quando ainda morava em Serrinha,
ela já ajudava na casa de parentes dessa família. Quando lhe morreu a patroa
de Serrinha, que não era muito rica, mas a tratava muito bem, e lhe dava tudo
o que precisava e queria, foi trabalhar na casa dos portugueses, a família Peres,
a casa das mulheres 173
com a qual ficou pouco menos de dez anos, comentou – até os 16 anos aproximadamente, afirmara em outra ocasião.
Esses portugueses tinham uma fábrica de chapéu no Pelourinho e hoje
o filho é dono de uma madeireira, gerenciada pelo sobrinho, pois nunca se
casou, contou-me Mãe Dialunda. Didi gostava da família, principalmente de
duas das filhas que lhe ensinavam a ler e escrever na escolinha improvisada
em um galpão em Serrinha, aonde também iam outras cinco crianças. Depois
tiveram um salão de aulas na respectiva residência, em Salvador, mas na cidade ela não voltou a ser convidada a estudar. Essas duas mulheres e respectivos descendentes sempre visitaram Mãe Dialunda no abrigo de Amaralina,
ao longo dos anos.
De quem Dialunda não gostava nada era do irmão dessas patroinhas que,
naqueles tempos, conta ela, abusou sexualmente dela e é o pai de sua filha
primogênita: Margarete. À época, contava com 13 anos. A primeira relação
sexual foi com esse homem, e recorda a experiência com ressentimento. Ela
evitava recordar ou falar mais do que o necessário a respeito. O Português –
nunca dizia-lhe o nome – foi considerado o seu primeiro companheiro, dizia
terem coabitado – ou mantido relações sexuais com esse homem – por volta
de cinco anos (tempo durante o qual ela era muito namoradeira, não tinha
juízo, e saía com outros, segundo suas declarações feitas em tom muito brincalhão). Veja-se o trecho de entrevista que revela estas informações com respostas cortantes e curtas que dificultavam explorar maiores detalhes:
D: [Eu] namorava, muito. Era muito paquerada também.
MG: Onde você morava?
D: Lá em Brotas, na Machado de Assis, na Chácara S. Geraldo, você não
alcançou, não! Sabe onde é? Ficava ali perto da Ladeira de Pedra, na Av.
D. João VI.
MG: Você lembra quem foi o seu primeiro namorado? Pode falar dele?
D: O primeiro namorado? Me lembro! Foi um sargento do exército.
Eu queria muito bem a ele, ele me queria muito bem, mas só que Deus
não queria. Também quando acabou, acabou. Ele era ciumento demais!
MG: E fora ele, você tinha outra relação nesse período?
174 maria gabriela hita
D: Fora dele? Só foi com o português, que eu fui morar com ele, engravidei logo.
MG: Me conte mais como era sua vida na casa dos portugueses.
D: Na casa dos portugueses [eu] já namorava e tudo, e o filho de português
achou que devia me tirar de dentro de casa,15 aí... Ele me deu uma casa.
Eu disse a ele que não queria.
MG: Nem para a filha dele?
D: Nem pra filha dele, eu nunca quis. Eu não gostava dele, dava um
corno nele como o diabo... Eu só tive uma [filha, com ele]. Era eu engravidar e mandar embora [de tantos abortos]...
MG: E como terminou essa história com ele?
D: [Quando ela quis:] Eu disse: ‘vou-me embora’. E fui-me embora.
Quando eu saí, não dei [a]té logo a ninguém...
MG: E quem lhe ajudou nesse momento?
D: A ajuda [que tive] era minha cabeça, minha cabeça decidiu, era isso
mesmo. Minhas amigas me davam muito conselho: [de] que eu não me
separasse, que era gente que tinha recursos... mas só que eu não gostava... não tinha conselho... nunca senti falta. Graças a Deus! [...] [Eu] Não
pensava muito.
MG: E depois dele? Teve outros paqueras?
D: Tive outros paqueras, sim... eu tive uma grande paixão, mas essa
grande paixão morreu. A gente namorou assim, ele era apaixonado
por mim, eu era apaixonada por ele, mas só que ele não sabia. Eu sabia
por intermédio de outras pessoas que ele conversava, mas eu não conversava. Mas até que a gente namorou uns dias, mas só que uma bala
perdida matou ele.
MG: Onde foi isso?
15
Expressão usada para se referir à iniciação sexual.
a casa das mulheres 175
D: Ali, na Fonte Nova. O tiro pegou na cabeça, entrou de um lado, saiu
do outro. Porque a gente tava conversando...
MG: E como foi?
D: Terrível! Eu nem sei nem como foi que eu me senti,... né? Que [eu] tenho pra mim que fosse esse sargento, que namorava comigo.
MG: A senhora acha que foi o outro que o matou?
D: Acho! E eu dizia sempre a ele: ‘Tenho certeza que foi você que matou’... Só que eu nunca abri minha boca; [disseram que foi] uma bala perdida! E ficou por isso mesmo!
Mas eu não sofri demais não... porque não era... porque maior sofrimento é quando a pessoa convive, né? Mas eu não tinha muito juízo, tanto fazia seis como meia dúzia [‘homem é como biscoito, larga um e
aparecem dezoito’, afirmou ela, em outra ocasião].
MG: E como foi sua vida depois de acabar a relação com o Português?
D: Foi um período bom, maravilhoso, trabalhava pra me manter, trabalhava pra minha mãe, que minha mãe tomou minha filha que eu...
ela... não queria... que eu trouxesse minha filha.
MG: A senhora chegou a viver com alguém depois da primeira separação?
D: Depois de dois anos.
MG: E foi bom? (Faz não com a cabeça). Também não?
D: Não.
MG: ‘Por quê? O que é que não gostou?’
D: Separei porque ele era safado.
MG: Então viveram quanto tempo juntos?
D: Cinco meses.
MG: E teve filho com este outro homem?
176 maria gabriela hita
D: Tive um filho só. Depois eu decidi [separar].
MG: E achou melhor?
D: Achei melhor. Ele era safado e eu não tinha juízo; então dois brutos
não se beijam...
MG: Eles lhe ajudaram a criar seus filhos?
D: Eu nunca quis [nenhum tipo de ajuda dos pais de meus filhos,
nenhum tipo de pensão], porque eu sempre fui uma pessoa rancorosa:
metida. Meus problemas quem resolve sou eu. É Deus do céu e eu.
Nunca quis. Depois disso, eu fui morar com o pai dos meus filhos, desses
filhos que eu tenho ai, Juruna, Carlos... esse resto que eu tenho aí [Se
referindo a Carlinhos, o filho de criação].
(Mãe Dialunda, 10/01/96).
A vida amorosa de Mãe Dialunda foi muito movimentada. Não é fácil reconstituí-la detalhadamente ou precisar-lhe a idade em cada fase, pois evitava
contar detalhes e não recordava datas, ocultando a quantidade de homens
com os quais chegou a conviver ou se unir. Soube ao certo que teve convivência considerável com três deles; com outros, nem chegou a morar. Fala
apenas de três uniões, mas os pais de seus filhos foram quatro: O Português
(pai de Margarete); o segundo a quem se referiu (pai de João); Deoclesiano
(pai de Bela, com quem não ficou claro se chegou a conviver, mas com quem
ainda mantinha ótima relação) e Gilberto (pai de Carlos, Juruna e com quem
criou Carlinhos).
De um dos parceiros (antes de Gilberto) Mãe Dialunda falou com paixão
que afirmou que, por tê-la traído com uma amiga, preferiu deixá-lo. Gilberto
era o pai dos filhos caçulas, com quem conviveu mais tempo, aproximadamente dez anos, afirmou certa ocasião. Apesar disso, considerava-se mãe solteira. Destacava o sentimento de criar filhos sem grande ajuda masculina ou
dos respectivos pais. As relações com os homens, pelo que conta, eram relativamente tranquilas e, quando deixavam de sê-lo, seja por infidelidade dela
ou dos companheiros, ou mesmo devido a desgaste cotidiano, ela decidia se
separar deles. Era visitada e mantinha amizade com Gilberto e Deoclesiano,
que vivem nas redondezas da casa com as respectivas novas famílias. Eles,
por sua vez, são visitados pelos filhos e netos.
a casa das mulheres 177
Se, na juventude, Dialunda teve vida amorosa mais ativa e mais promíscua,
depois do último companheiro, comentou, não quis mais se unir, para não dar
padrasto a seus filhos. Por volta dos seus 50 anos, perto da menopausa, dizia
preferir não manter mais relações sexuais. Declarou ter encontrado grande
descanso em dedicar-se apenas ao trabalho, nesta fase como mãe de santo, e
ao sustento da família, como sempre fez. Mãe Dialunda dizia estar cansada e
ter perdido interesse pelo sexo, chegando a correlacionar este processo a uma
cirurgia de extração do útero – histeroctomia – realizada para combater um
mioma que a colocou em sério risco devido ao tamanho que alcançara.
Reconhece não haver recebido muito apoio dos companheiros, exceto
quando ficava doente e não podia trabalhar. Os netos reconheciam e reafirmaram o esforço redobrado da avó em cuidar e criar caprichosamente filhos,
netos e bisnetos; mas alguns deles não chegavam a acreditar que o papel
dos companheiros de Mãe Dialunda (especialmente o de Gilberto) tenha sido
nulo como ela costuma afirmar.
b) A Vida de Santo como modelo cultural da sua matriarcalidade
Quando entrou para a vida de santo, morando já com seu Gilberto, por volta
de 1963, Dialunda teve grave problema de saúde. A solução lhe apareceu em sonho: Dialunda – uma entidade – lhe indicou as ervas que devia preparar para
curar-se. Motivo pelo qual escolhemos conjuntamente este pseudônimo para
substituir seu nome real. Nesse período, frequentava o terreiro do Engenho
Velho de Brotas, dirigido pelo pai de santo Manoel da Natividade, que costumava receber o caboclo Neive Branco. Nessa casa de Candomblé, recebeu o
desígnio da sua mãe ou Orixá (Oxum) de nunca mais voltar a trabalhar como
doméstica. A partir dessa data, seguiria a vida de santo e garantiria renda com a
venda de acarajés. Ela aprendeu a fazer o preparo da massa e comidas de santo
com uma menina de 11 anos, filha de santo de um outro terreiro:
D: A minha vida de vender acarajé começou em 1965 e antes de
vender acarajé, eu lavava roupa de ganho e trabalhava em casa de
família; quando eu cansava da roupa, trabalhava em casa de família.
Era muito pouco dinheiro. Sabia cozinhar muito, hoje em dia não sei,
mas sabia cozinhar muito. Sabia tratar meus patrões muito bem, meus
patrões também me tratavam muito bem. Nunca tive o que dizer de
uma patroa e sempre vivi assim. Depois, de 1965 pra cá, é que eu estou vendendo acarajé. Foi quando eu não pude mais trabalhar em
178 maria gabriela hita
roupa, porque a ‘santa da minha mãe’ [Oxum] diz que é pra eu [...]
[Eles] me botaram para dentro do Candomblé, que eu não queria e
me botaram, eu tinha uns 29 anos.
MG: Quem foi que lhe botou no Candomblé?.
D: O meu pai pequeno, um senhor de idade, pai de santo, lá em Brotas,
onde eu ia... Fui continuar meu serviço, e o santo não aceitou mais.
Nem o bom dos outros, nem a roupa dos outros! Eu fiquei pensando:
como é que eu ia viver?! Mas aí o Orixá disse [...] [que] eu posso vender
acarajé!! E [es] tou nisso até hoje. 35 anos!
MG: Quem lhe ensinou a trabalhar com acarajé? Pode me contar de
novo?
D: Uma garota de 11 anos, ela era do Candomblé. Ela foi feita menina [iniciada como filha de santo], mas não na mesma casa. Ela foi feita
menina. A mãe dela criava elas vendendo acarajé. E elas sabiam tudo, e
eu, nem lavar feijão, eu sabia. Ela me ensinou e eu aprendi, e estou até
hoje [...] Ela me ensinou a fazer queijada de amendoim, queijada de coco,
cocada; tudo que a mãe dela fazia, ela me ensinou.
E você gosta dessa vida de venda do acarajé?
D: [Eu] Gosto porque ultimamente é só o que eu sei fazer. Porque
todo dia que eu for vender eu tô com dinheiro na mão, nunca me
faltou o dinheiro na mão pra comprar o que comer, o que vestir, os
filhos estudarem... Nunca esperei o homem dizer assim:
‘–Toma aí esse dinheiro e vai pra feira, vai pra loja, vai pro armazém’.
(Mãe Dialunda, 10/01/96 e Mãe Dialunda, 10/02/99, entrevistas
intercaladas).
A venda de acarajé e os trabalhos de santo no mundo do Candomblé, doravante, foram suficientes para sustentar seu grupo familiar – o qual alcançou
rapidamente o estágio de arranjo extenso – e para mal-criar os filhos e netos,
que cresceram cheios de vontades e caprichos. Nunca faltou aos descendentes
alimentação e vestuário, ainda que a liberdade deles sempre fosse cerceada
pelo rígido esquema normativo desta chefe de família. Sempre que julgou necessário, usou a violência e o espancamento para educar e exemplar os seus.
Recebeu esse modelo dos próprios pais, e o julgava adequado, pelo que lhe
parecia natural reproduzi-lo com filhos e netos. E, pelo que foi observado das
a casa das mulheres 179
novas gerações, é um modelo que continua ativo e poderosamente interiorizado no imaginário deste grupo familiar (como no de todo o meio social em
que está inserido). O tipo de relacionamento de Mãe Dialunda com seus filhos e netos se descreve no depoimento a seguir:
B: Se precisar ela bate. Ela não é de bater! Mas se ela dizer hoje eu
vou pegar, ela bate! Oi, minha mãe, se vacilar, ela bate na minha
mãe, coitada!
MG: Mesmo já adulta e sendo uma mulher que tem sua casa e seus
filhos?
B: É! Filho pra ela nunca cresce! Ela mesma não deixa. Que tem que
coar a sopa... pegar panela quente mesmo, ela não deixa eu pegar.16
Outro dia ela falou:
‘Não sei porque, mas esses meninos para mim nunca cresce!’...
Ela pensa que é sempre criança. Ela fala, ela pensa assim. Se fosse por
ela, a vontade dela, todos os filho e netos tava sempre na roda da
saia dela.
MG: E ela gosta disso?
B: Ela gosta! Reclama, mas gosta! Gosta de ter os filhos e netos dela
por perto. Porque é a felicidade dela. [Es]Tá velha, ela se cansa, mas
é a felicidade dela. Eu acho que a única coisa porque ela veve ainda é
por isso, por causa dos neto. Por causa da minha filha também, que ela
gosta muito, Priscila. Ela veve, ela faz qualquer coisa pelos filhos. Não
gosta quem faz mal aos filhos. Não gosta que ninguém faça mal aos
neto, também.
(Branca, neta criada e irmã de Célia, 30/01/00).
Nos bons tempos de venda, dirigia-se apenas duas vezes por semana de
casa para o Abrigo, para vender acarajé. Mais recentemente, viu-se obrigada
a descer cinco dias e separar dois para preparativos de quitutes. Esta mudança indica tempos mais difíceis e o consequente estágio de decadência em
que se encontrava este grupo familiar. Em tempos passados, ela até produzia
16
Nessa época, Branca estava grávida com uma pronunciada barriga do segundo filho. Havia voltado a morar na casa de Dialunda com seu parceiro, porém este queria que fossem morar com a
mãe dele, no mesmo bairro, mais distante.
180 maria gabriela hita
a massa do acarajé para outras baianas,17 como indicador de prestígio e qualidade do produto.
Na Bahia, não é necessariamente a figura da mãe biológica mais importante na concepção popular, pois se mãe é antes de tudo a mulher que os
criou, essa mãe social é o centro desse imaginário. Em setores populares
como o estudado, se pode ser mãe de todas as crianças, como já dito, o que
se traduz em obrigações que têm certas mulheres de considerar como suas
as crianças de outrem por elas criadas – mesmo que esse outrem seja sua
inimiga – tornando aquelas crianças suas ou crianças de mais de uma mãe.
Esta visão e o papel exercido pelas matriarcas neste modo de organização
domestica está fortemente enraizada na matriz cultural e cosmologia do
Candomblé e na centralidade da figura da mãe de santo nessa religião.
Toda mãe de santo, afirma Silverstein (1979), como a mais importante e
visível sacerdotisa do Candomblé, é a porta-voz, a representante e símbolo
dessa religião na Bahia. Como figura materna, é a Mãe Preta, considerada a
mãe-de-todo-mundo, a principal responsável pela produção e reprodução do
terreiro e grupo social. A centralidade do papel feminino da mãe de santo no
Candomblé baiano foi claramente identificada e citada também por vários
estudiosos do tema que descreviam os cultos como sendo primitivos, rurais,
negros, africanos e talvez até de teor basicamente matriarcal (CARNEIRO,
1936; LANDES, 1967; LIMA, 1977; MARCELIN, 1996; WOORTMANN, 1987;
dentre outros estudiosos do Candomblé). Para Harding (2000), o papel das
mães de santo (Iyalorixá) é o de ser uma memória incorporada do trabalho
realizado pelos ancestrais escravizados que fundaram a tradição no Brasil.
Ela é a consciência íntima e imediata embutida no comportamento que conecta atividades e orientações presentes com a experiência das gerações passadas, continuação do processo pelo qual o axé – força vital ou espiritual –
tem sido cultivado e transmitido entre os devotos do Novo Mundo – através
do culto dos orixás ancestrais e através das responsabilidades transmitidas
pelo sangue. Muitos dos escravos e libertos em Salvador trabalhavam como
ganhadores nas ruas das cidades. Muitos destes se organizavam em cantos
(ou grupos de trabalho) e costumavam se reunir nas ruas e praças da cidade.
A rua era um instrumento de solidariedade entre escravos, libertos e pessoas livres de Salvador. Escravos e não-brancos a utilizavam como lugar de
17
Cândida, uma das mais antigas e conhecidas baianas do largo e mãe de uma ex-nora, mulheres
com as quais cortou relações posteriormente.
a casa das mulheres 181
encontro. Quanto às mulheres negras, acrescenta Harding, o trabalho das
ganhadeiras era especialmente notado pelas roupas bem cuidadas e por suas
aptidões para o comércio e a comunicação. Em Salvador, as ganhadeiras –
possivelmente precursoras das atuais baianas de acarajé – parecem figurar
entre as principais participantes e líderes do Candomblé.
A força de uma mãe de santo, considerada inata, herança divina, cultivada e ampliada por longo, árduo e cuidadoso treinamento, é geralmente
demonstrada pela habilidade de cada mãe de santo em mediar relações
entre humanos e Orixás. A ela cabe resolver questões relativas aos santos.
Na Bahia, ser mãe de santo significa ser “escolhida”, indicada pelos Orixás,
independente da vontade, pessoa que herdou e desenvolveu certas características de personalidade – como carisma, personalidade forte, inteligência
aguda, autoridade, sensibilidade, capacidade de mando – para dirigir seu terreiro e manter relações com os Orixás. A fonte do seu poder, para Silverstein
(1979), estaria muito mais na mediação exitosa que a mãe de santo desempenha com os Orixás, do que, por exemplo, na capacidade específica de dirigir o terreiro ou família de santo. E adoto a costura que esta autora faz de
uma série de conceitos weberianos tão ilustradora das dimensões e especificidades do tipo de poder e autoridade que desempenha uma mãe de santo
de Candomblé. Para ela:
Poder social é geralmente associado à influência, prestígio, autoridade,
força, domínio, carisma pessoal, capacidade, eminência, conhecimento, direito, etc. Poder não é uma esfera isolável separada e estática; não
é uma coisa que possa ser possuída eternamente. Poder somente deve
ser analisado como um processo, refletindo um sistema de relações
de pessoas ou grupos com os meios de produção e com outros indivíduos ou grupos. A partir desta consideração posso definir poder como
a capacidade real ou potencial de uma pessoa ou grupo, independentemente de sua base, e em qualquer momento, para tomar uma decisão e leva-la a efeito, apesar de uma possível resistência. Quando uma
pessoa ou grupo tem o direito de dirigir os pensamentos ou ações de
outros, chamo a isto autoridade. Esta é o acesso legítimo a regras e
implica que as decisões tomadas em seu nome obrigam a pessoa
e grupo a acatá-las. Influência eu descrevo como o uso da persuasão, o uso de recursos morais e ideológicos para impor o Poder. Força
por outro lado, é a aplicação de sanções. Poder, portanto, não é força, nem autoridade, nem influência, mas é sua síntese. Dependendo
182 maria gabriela hita
dos meios para influenciar o comportamento, o poder deve ser classificado como físico (coercitivo), econômico (utilitário) ou simbólico.
Poder representa então a força que é capaz de ser aplicada em qualquer situação e suporta a autoridade que é utilizada. (SILVERSTEIN,
1979, p. 146).
Nesta definição se distingue o poder social do econômico, do político, simbólico e militar, assim como das noções centrais de autoridade, influência,
prestígio, domínio, força etc. Com esta concepção de poder se compreende
melhor quais as transformações pelas quais passou a matriarca ao mudar de
profissão e entrar no mundo e família de santo. A mudança na vida profissional de Mãe Dialunda, que implicou na passagem do trabalho como doméstica para o da tradicional baiana com a venda de acarajés foi, no seu caso,
uma decisão de teor religioso, determinação feita pelo santo de sua cabeça –
Oxum, quando ela foi feita filha de santo. O poder de uma mãe de santo ou
pai de santo para alguns autores se mede pela autoridade sobre os filhos da
sua casa (filhos de santo), o que também se expressa pela quantidade de cerimônias de iniciação que realizam – pelos filhos feitos. No Candomblé, fazer
filhos ou filhas de santo é o mesmo que fazer nascer e criar descendentes
para receber os Orixás, socializando-os nos ritos e devoções prescritas. Neste
ato de “aumentar o terreiro” pela incorporação de novos membros estaria o
verdadeiro poder da mãe de santo (LIMA, 1977; SILVERSTEIN, 1979). Se Mãe
Dialunda não chegou a efetivar com suficiente sucesso sua trajetória de mãe
de santo ao não poder conseguir manter vivo o projeto de um próprio terreiro, ela fez, entretanto, alguns filhos de santo (algumas pessoas, contam,
foram iniciadas por ela) e incorporou o modelo ritual de família-de-santo
na experiência da família consanguínea, sobre a qual projetou esse modo de
vida, simbologia e organização ritual.
Os dotes religiosos de Mãe Dialunda são requeridos por pessoas amigas e
estranhas. Há clientes, hoje amigos da família, que costumam solicitar-lhe serviços no jogo de búzios, alguma limpeza de corpo ou tratamento de Candomblé.
Nunca é procurada por seus familiares mais próximos, que devem resolver
problemas com outras mães ou pais de santo, como manda a tradição, explicavam-me seus netos. Muitas visitas e entrevistas que iniciei foram interrompidas pela chegada, pré-combinada ou de surpresa, em casa ou no Abrigo de
Amaralina, de carros poderosos com mulheres bem vestidas, delegados de polícia e profissionais influentes, encomendando-lhe desde trabalhos específicos
a casa das mulheres 183
para os santos ou consulta no jogo de búzios, serviços que pode realizar independente de possuir o próprio barracão, até preparo de comidas festivas (acarajés, abarás, caruru), etc. Quando ainda tinha o barracão (terreiro), Dialunda
fazia sessões de Candomblé. Na época da pesquisa, já era uma mãe sem terreiro,
mas que tinha relações influentes em grupos de classes mais elevadas (entre
os brancos). Mostrava isso com orgulho quando me contava das viagens que
fez como garota propaganda da Bahiatursa – empresa de turismo do estado
da Bahia – dos filhos de santo que tem e de quem ela fez a cabeça – que ela iniciou – e dos que vinham de outros estados trazendo-lhe grandes presentes ou
fazendo-lhe favores.
D: As pessoas que precisam de alguma coisa e acham que minha seita
resolve e que eu tenho condições de resolver me procuram e Deus me dá o
direito de fazer. O que tem que fazer, eu faço! Gosto de fazer as coisas que
eu vejo o resultado. Aquele delegado [Dr. Eduardo, grande amigo da família] é da [Polícia] Federal! Ele tava com um problema MUITO GRANDE
[e ele lhe perguntou]:
‘Mãe Dialunda, será que a Sra. resolve isso para mim?’
Eu digo:
‘Dr, eu vou ver. Se Deus me der o direito...’
Graças a Deus que já está resolvido!
MG: E desde quando foi que ele começou a lhe procurar?
D: O primeiro trabalho já tem mais de ano. As outras coisinhas, tudo que
ele precisa vem aqui comigo. Aí ele pergunta:
‘Mãe Dialunda, quanto é que custa?’
[Vo]cê sabe! Que coisa de candomblé custa muito dinheiro! Qualquer
coisa dele com os filhos, a esposa, ele, vem a mim. Cobro conforme o
serviço, mas não cobro a ele.
MG: Porque Mãe Dialunda?
D: Porque Dr. Eduardo resolve muitos problemas. Se eu digo [a ele]:
‘Me resolva isso para mim?’
Não tem três tempos! [...]
No meu aniversário, ele me deu um vestido muito bonito e me trouxe uma torta do tamanho quase dessa mesa aí [2m x 1,2m aprox.]. No
Natal, foi uma torta que não tinha mais tamanho. Vinho muito bom,
que ele me traz, e presentes. No sábado, ele trouxe um sapato. Você estava aqui? [Es]Tava! [Ele] Ainda não veio hoje. É uma coisa ou outra...
184 maria gabriela hita
[Agora] Ele vai empregar Juruna. Para quê melhor? [...] E isso é mais que
dinheiro! Mais vale uma boa amizade do que dinheiro. Mais vale um
amigo na praça do que dinheiro no caixa. Dra. Eduarda [esposa do
Delegado e jovem advogada] agora ganhou um posto no SEBRAE18 e,
graças a Deus, é uma menina que comanda; na ordem dos advogados,
nada sem ela! [falando com orgulho! a quem admira] E eu gosto assim
de ter as minhas amizades!
(Mãe Dialunda, 22/02/99).
E sobre um trabalho que ela fez para os Santos de Dr. Eduardo e de Tito:
MG: Mãe Dialunda, o que eram aquelas comidas e pratos que vi
aprontados nessa mesa no sábado? Era um trabalho de santo que lhe
encarregaram?
D: Aquilo é um Omalá de Xangô. É a comida preferida de Xangô. Aí é
quiabo, camarão e aceite doce Galo e cebola. Aquele branco é acaçá,
feito de milho branco. Dois pratos. Um para Xangô Irá (o mais velho) e o
outro para Xangô Agodô (o mais novo). Aquele que estava com quiabo
é para Agodô, e o acaçá é para Irá, duas personalidades de Xangô: um
mais velho e um mais novo.
MG: Você fez para os Orixás? Ou para uma pessoa?
D: Não! Eu fiz para eles. Para Dr. Eduardo e Tito. Os dois são de Xangô.
Foi uma oferenda para eles. Tinha que trabalhar de branco. Para Oxalá,
Oxum também [trabalha de branco]. Iemanjá, Nanã, também
MG: E a Sra. pode trabalhar para vários santos?
D: É! Eu posso, Graças a Deus! Para todos os que [eu] quiser. Qualquer
um é especial para mim.
(Mãe Dialunda, 22/02/99).
Em outras de suas declarações sobre a relação com o Candomblé, contou:
D: Eu acho que eu tenho como um anjo de guarda que me dá assim
aquela reação, boa e maravilhosa, que me ajuda a superar tudo. Eu tenho dois advogado em cima de mim: Deus e o porteiro da minha casa:
Arrancatôco.
18
Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
a casa das mulheres 185
MG: O que é isso, Mãe Dialunda?
D: É um Exu.! (Mãe Dialunda, 10/01/96).
MG: Qual era o Orixá de sua irmã da Ilha, aquela outra Mãe de Santo
que é sua irmã de sangue?
D: Juçara é de Xangô. A mãe de santo dela é que era de Xangô. E ela é de
Omolu. O dono da minha casa é Xangô! [do terreiro do pai de santo dela
em Brotas]. Eu sou uma filha de Ogum com Iansã. E tem Oxum-Apará.19
que meu pai raspou e pintou [a cabeça dela, sua iniciação]. O dono da
minha casa é Xangô, a cumeeira da minha casa. Aliás, ele é dono da
cumeeira de qualquer pessoa. Porque todos tem. Quem é que não tem
seu orixá? E Ogum é meu pai! Meu pai, meu guia. Como ele é guia de
qualquer uma pessoa que chamar por ele, porque ele é que abre caminho para todo mundo.
(Mãe Dialunda, 10/02/99).
O pai de santo, dono do terreiro que Mãe Dialunda frequentava em Campina
Grande de Brotas, seu Manoel da Natividade, costumava incorporar o caboclo
Neive Branco. Esse pai de santo gostava muito das netas de Mãe Dialunda,
principalmente de Célia, filha de Oxum, e comentava que ela tinha o mesmo
dom para ser mãe de santo que sua avó (o que agradava Mãe Dialunda e a cobria de orgulho e esperanças de um dia vir a ter uma herdeira de sangue na sua
família ritual), mas Célia rejeitou esse destino. Já Branca, a outra neta, que é
filha de Ogum, se aproximou muito mais do Candomblé que a irmã, compartilhando mais, participando e utilizando-se mais desse meio simbólico para
interpretar a realidade que a circunda.
As festas de família20 que Mãe Dialunda realizava todo ano em casa
apontam para seu lugar de pertencimento, que é fonte de energia, de
19
Oxum, associada às águas doces e à vaidade, tem personalidade descrita na modalidade de
“Oxum-Apará” (guerreira e invejosa) na mitologia recuperada por Reginaldo Prandi (2001, p.
323-325), nela se representa o ciúme de Oxum pela beleza de Iansã (Oiá) que a prendeu até a
morte em um quarto, motivo pelo qual Oxum-Apará foi castigada por Obalatá a usar as cores
vermelhas e metais de Iansã.
20
Marcelin Louis (1996) em seu estudo de famílias negras do Recôncavo Baiano descreve festas
promovidas por estes grupos matrifocais, que ele chama de festas de família, e que estão atreladas à cosmovisão e tipo de trabalhos de santo na religião do Candomblé. Nela se oferece muita comida, festa e dança, e em alguns momentos orixás ou figuras do Candomblé podem ser
incorporadas.
186 maria gabriela hita
aquisição de certo capital simbólico e que outorga distinção e reconhecimento social, onde o coletivo e o individual se misturam, reconhecem
e reconstroem. Segundo Louis H. Marcelin (1996), em estudo sobre o
Recôncavo baiano:
A festa [de família], em princípio aberta a todos aqueles que são considerados como parentes ou não [...], é percebida por estes últimos como
sendo, ao mesmo tempo, um momento de demonstração de força e
um momento de abertura ao mundo, extremamente frágil. A festa inverte a ordem cotidiana da casa e da divisão do mundo dos agentes
entre o aberto e o fechado, o público, o privado, o próximo e o afastado, a mata e a casa, a casa e a rua, o conhecido e o desconhecido. Em
princípio, a festa é uma porta aberta para o mundo; ela é a celebração
da troca, e a cozinha, o alimento; é o elemento principal graças ao
qual o acontecimento é calçado, e, ao mesmo tempo, a própria matéria de reificação da troca. A cozinha constitui um meio excelente pelo
qual as lutas familiares podem encontrar suas mais trágicas expressões.
(MARCELIN, 1996, p. 296)
Tal como observado por Marcelin (1996) em pesquisa no Recôncavo
Baiano, Mãe Dialunda acostumou-se a receber gente em casa, oferecendo
um grande caruru para seus santos, todo dia 23 de outubro, no dia de aniversário de seu filho Carlos – com cargo de Ogã em outro terreiro – que, apesar
de ser o principal homenageado, nem sempre esteve presente. Nessa grande
festa de família, Dialunda costumava receber e incorporar seu Orixá – Oxum
– e seus erês – principalmente Crispina. Sobre estas atividades, a neta Célia
relata o imprescindível apoio de Dalva, a nora que reside com Dialunda, para
a realização das festas:
C: Dalva nunca deu Santo. Só Vó que dá Santo. Você nunca veio num
caruru aqui? Ela dá Santo nos carurus dela! 23 de outubro! E o negoço
desse Erê também, que fica parecendo uma criança, né? Ela dá isso tudo
no caruru. Todo mundo vem! Gente de todo canto! Primeiro vem o
Santo dela que é Oxum. E depois vem o Erê dela que é Crispina, o
Erê dela. A Santa dela vai rapidinho, vai embora, mas Crispina fica o
tempo todo correndo pela casa, nela. Mexe num, mexe noutro... precisa
ver! Come ali, bule com os meninos, suja o rosto, suja tudo. É um caso
sério! No começo eu ficava com vergonha, com meus amigos de escola.
Mas depois... [vi que] é isso mesmo! Muitos faz isso.
a casa das mulheres 187
MG: O que é mesmo um erê?
C: Um Erê é um espírito que fala e faz tudo como criança; depois
que vai, volta tudo ao normal. Caboclo nela é difícil!! Neive Branco é
o caboclo do pai de santo dela. Ela o conheceu. Ele tinha roça enorme, em Brotas, ia direto lá, passava meses. Depois que morreu, ela
não voltou mais. Aquele Candomblé desmanchou. As coisas de vó
que [es]tavam lá ela levou tudo para Mar Grande, na casa da irmã
dela. Ela tinha que ir lá para ficar cuidando. As coisas do santo.
MG: Que coisas ela levou para Mar Grande?
C: Tem um prato com uma pedra e dizem [eles do Candomblé] que isso
aí é um santo.
MG: E quem cuida agora desses santos de Mãe Dialunda?
C: O dela, a irmã dela em Mar Grande cuida. [Pois] Ela não tem quarto
adequado para seu santo. O quarto ali na casa dela tem um bocado
de coisa, e diz que tem um santo aí. Xangô está aí. Ela também tem um
bocado de coisa que [es]tavam na casa do pai dela e levou para lá. Acho
que lá [em Itaparica aos cuidados da irmã] está Oxum. Coisa de obrigação. [...] fotos dela de santo... Vó perdeu tudo já, não tem mais nada,
[es]tá tudo jogado, ela tinha tudo organizadinho.
(Célia, neta, 26/01/99).
Para Marcelin (1996), toda celebração é a recusa de uma condição em
proveito de outra. Ela é, metaforicamente, a celebração de uma passagem.
Poder-se-ia tentar agrupá-la em certos domínios da vida social: segundo ela
exprima o conjunto dos laços partilhados por uma nação (as festas carnavalescas, as festas patrióticas analisadas por DaMatta [1978]), um grupo (festa
da Boa Morte em Cachoeira etc.) uma religião (festas religiosas, ritos de passagem), uma família ou um conjunto de famílias.21 Para esse autor, o fato
de celebrar aciona mecanismos sociais de aproximação das forças, dos elementos ou dos indivíduos dispersos na estrutura social, que é o que contribui
para reconstruir um nós; é um modo que reúne mitos, símbolos ou objetos
rituais, dispersos na cultura e constrói outra imagem de quem somos nós.
A celebração nestas festas de família, como apontado por Marcelin (1996),
21
As festas de famílias descritas por Louis Marcelin [1996] ou estas de Mãe Dialunda ou as oferecidas também por D. Cida, na outra família.
188 maria gabriela hita
consiste na ruptura, cíclica ou não, da rotina, que é o que marca um lugar
social de troca e de festividade, entre pessoas dispersas em torno de um conjunto de símbolos ou objetos rituais, os quais constroem, aos olhos dos celebrantes, um lugar social e cultural de reconhecimento. Uma celebração desse
tipo, para esse autor, resulta: 1) de um posicionamento das pessoas num continuum temporal – ao longo da experiência vivida e partilhada; 2) da construção de um lugar social a partir do qual se articula a linguagem das formas
dessa celebração. (MARCELIN, 1996)
A sala da casa de Mãe Dialunda, antes da reforma de 1990 descrita no
Capítulo VI, chegou a operar como barracão, terreiro ou casa de sessões de
Candomblé, por uma curta temporada. O projeto de voltar a ter um barracão
é um sonho que Mãe Dialunda sempre alimentou. Entristecia-se ao perceber
a impossibilidade de reconquistá-lo, apesar dos insistentes convites que recebia de amigos e filhos de santo que tem em Espírito Santo e em São Paulo,
os quais a aconselhavam a largar tudo na Bahia e levar a vida tranquila que
merecia em algum terreiro ou casa onde faria o que gostava e servisse aos
santos como manda a tradição. Mas, a responsabilidade e o desejo de permanecer junto aos filhos e netos, disse-me ela em algum momento, nunca lhe
permitiram tomar tal caminho.
D: Eu tenho vontade disso: sair daqui, fazer assim uma casinha, onde eu
possa estar junto com meus santos e ter um lugar...
MG: Para tratar das pessoas?
D: Sim, parecido. E eu preciso ficar só pra ter cabeça, quando as pessoas
precisarem de mim; eu ter cabeça pra... [Mas] eu não posso... agora eu
[ já] tô achando isso um pouco difícil.
MG: Porque a senhora não colocou novo terreiro? O que a impediu?
D: Porque as pessoas nunca quis, pra poder ter tempo de criar meus filhos.
Criei meus filho, hoje meus filhos criados, minha filha me deu duas
netas, o filho me deu mais três netos. Dentro de casa completou novamente a mesma coisa. Tenho vontade de entregar os meninos, mas
os meninos não querem morar com madrasta; madrasta... Deus me livre!
(Mãe Dialunda, 10/01/96).
a casa das mulheres 189
Mãe Dialunda estava refletindo sobre escolhas e caminhos não adotados.
De modo ambíguo, imaginava o que teria sido e significado sua vida se tivesse
seguido o sonho de seguir seus santos, construído um terreiro, e escapado
do destino por ela escolhido e das necessidades que a rede de parentesco
lhe foi impondo, as quais ela foi aceitando. Quais seriam as circunstancias
em que poderia ter optado por essa outra alternativa? Estaria ela fazendo
alguma racionalização do seu fracasso no terreno religioso? Por momentos,
parecia responsabilizar a parentela pelos fracassos e escolhas, em outros, manifestava ser sua descendência o motor e principal motivo de viver. Outros
exemplos de mães de santo melhor sucedidas, como o de Mãe Eusébia, no
Bairro da Paz, ou Mãe Dionísia, em Pau da Lima, apontaram para as respectivas habilidades de fazer com que seu grupo de parentesco e sangue trabalhasse em favor e fortalecendo- lhes os projetos sociais, que iam para além do
barracão e puro terreiro, uma creche escola em ambos casos, que conseguia
angariar alguns recursos da Prefeitura, Estado e outros patrocinadores, que
terminaram fortalecendo-as, como Mães de Candomblé, mas que prestavam
serviços sociais à comunidade. Mas um fator preponderante foi a possibilidade que tiveram de separar, com o correr do tempo e do sucesso de seu empreendimento, a casa e família de sangue, do espaço físico das suas creches
e terreiros, onde filhos (de sangue e santo) estavam fortemente envolvidos
e participavam ativamente do projeto. No caso de Dialunda, parece ter sido
diferente, ao invés de articular ambas as esferas, tendeu a separá-las, e ela se
sente, de algum modo, induzida a escolher entre seu dever com os orixás e
serviços religiosos ou com seu grupo doméstico. Sua decisão por desfazer-se
do barracão naquele momento para reconstruir quartos pode não ter sido a
indicada, mas talvez uma decisão da qual tampouco podia escapar. Cabe observar, entretanto, que o papel da matriarca, e de modo especial neste caso
de Mãe Dialunda, tem forte analogia com o de mãe de santo, onde a primeira
irá criar e sustentar filhos seus e de outras mulheres, criando uma família
para além dos próprios laços de sangue, como o fazem as mães-de-todos, e
mães de santo neste complexo cultural que se apresenta como uma alternativa aos padrões culturais dominantes. Neste papel de matriarca da sua
parentela, estava de fato reeditando o de mãe de santo, ainda e que por isso
mesmo, sem terreiro.
A síntese da sua vida poderia ser resumida na seguinte declaração:
190 maria gabriela hita
D: Eu não tive infância, eu não tive adolescência. Toda [a] minha infância e adolescência foi trabalhando!22 Me tornei uma mãe de família, trabalhando. Hoje estou com 63 anos [73?]. Mãe, vó e bisavó.
Continuo trabalhando. Estou cansada, mas não tenho condições de
me descansar. Já não tenho muita saúde e tenho vontade de criar
pelo menos dois bisnetos. Mas acho que isso não vai ser possível!
MG: Mas, por quê?
D: Porque eu estou velha demais!
MG: Mas a senhora já está criando bisnetos...
D: Mas não vou ver crescer!! [tom angustiado do que perderia ou do que
vai ser deles sem ela]
(Mãe Dialunda, 22/02/99).
Criar os próprios filhos e os de outras mulheres, netos ou estranhos é
visto por Dialunda como dever. Na cultura e no imaginário da sociedade
baiana, ser mãe de santo, por sua vez, significa que essas mulheres, com o
trabalho fora dos terreiros e obrigações dentro do mundo do sagrado, são
as principais responsáveis pelo sustento de toda a família (de santo e de parentesco). Para sobreviver, têm de criar em volta delas uma rede de relações
com pessoas que têm acesso privilegiado à sociedade em constante mudança. Assim, a família de santo outorga à mulher que a conduz uma fonte
de poder e autonomia muito marcantes na cultura baiana, o que é entendido por muitos autores como afirmação consciente de diferença cultural.
Segundo Harding (2000), Lima (1977) e Silverstein (1979) através da família
de santo de Candomblé, mulheres, homens e crianças, numa posição subordinada na sociedade, podem lutar para manter, consolidar e reconstruir unidades básicas nas quais se reproduzem valores alternativos aos das culturas
dominantes. Por isso, a família de santo, com as mulheres como seus pontos
focais, se torna crucial para a sobrevivência e a perpetuação de um sistema
cultural alternativo de valores, costumes, comportamentos e habitus; propiciando uma matriz simbólica (campo) a seus integrantes que lhes permite se
22
A expressão eu não tive infância, recorrente neste contexto, é uma forma de identificar a privação
material e a pobreza. Tanto as matriarcas como as filhas utilizaram muito essa expressão remetendo à ideia de que infância é coisa de rico ou classe média, onde a criança tem diversão, certa liberdade e segurança material.
a casa das mulheres 191
situarem no mundo de maneira particular e diferenciada da de outros grupos
sociais, permitindo-lhes construir o próprio self e formas de ser a partir de
outros padrões culturais que não os dominantes. Para Silverstein (1979,
p. 161, grifo nosso)
O Candomblé da Bahia continua até hoje a transmitir e ao mesmo
tempo criar uma ideologia popular, não só dele mesmo ou das religiões afro-brasileiras em geral, mas também da mulher negra como
mãe-de-todo-mundo. Este é um caso de inversão simbólica, na qual a
posição da mulher negra e pobre é colocada em oposição à posição
que ela realmente ocupa atualmente na vida cotidiana. Esta inversão
simbólica, que compete analisar em outro trabalho, tem sua raiz última
no fato de que a hierarquia do parentesco ritual que compõe a famíliade-santo tem uma estrutura oposta ao tipo ideal da família brasileira, a
família patriarcal.
Se a matriarca é a mãe-de-todos que a matriz simbólica do Candomblé clareia e a provedora principal do grupo familiar, qual é, então, o papel de homens neste sistema? Como é exercido o papel dos pais?
O reconhecimento público da paternidade23 é a forma de manifestação por
excelência da paternidade e responsabilidade masculina neste sistema, pois garante às crianças abertura para a rede de parentesco, na qual, geralmente, outras
mulheres poderão oferecer o necessário apoio, ou a mãe da criança lançar mão
desse apoio no cuidado dos filhos. Negar-se a dar seu nome é falta grave dentro
da moralidade popular, visto como falta de responsabilidade e de virilidade.
A paternidade, assim, neste contexto, passa mais pela demanda e reconhecimento biológico do genitor do que pelas obrigações morais como provedor, outorgando ao nascido, com este reconhecimento público, com o nome do pai, a
bilateralidade, isto é, uma abertura para a rede de parentesco do homem, além
daquela outra que todo indivíduo sempre terá e será geralmente a mais ativa: a
da própria mãe. Mesmo quando a mãe da criança venha a se juntar a um novo
companheiro e possa até receber ajuda deste no sustento dos filhos, a obrigação
e laços para com as crianças das redes de parentesco paterna dificilmente se
rompem e costumam se reatualizar constantemente a depender dos indivíduos e conjunturas. É muito comum, inclusive, que filhos de homens da família sejam criados e amparados por mulheres da rede (a avó ou bisavó paterna
23
Stack (1974), em seus estudos de comunidades negras nos EUA, constatou que 70% dos homens
no gueto o exerciam.
192 maria gabriela hita
da criança, uma tia, etc.) sempre que estas sejam mais estabelecidas que a própria mãe da criança ou da rede. A criação ou circulação de crianças é, por vezes,
uma demanda da própria mãe da criança e outras vezes exigência das mulheres
da família paterna que reclamam direitos sobre a criança quando observam e
julgam que a mãe não os está provendo adequadamente, podendo levar a tensões e conflitos em torno do destino dos infantes.
O fato do homem não ser o principal provedor dos filhos (principalmente
quando não co-habita com a mãe desses filhos) não é considerado uma falta
em si mesma, apenas como algo indesejável – e desde uma ideologia dominante que opera simultânea e paralelamente ao princípio de matrifocalidade
– ou um claro sinal de orgulho e superioridade nos casos de homens bem-sucedidos que podem exercer esse papel. Quanto maior for a ajuda que o homem
oferecer a filhos e mulher(es), maiores serão seus direitos nessa(s) rede(s) de
parentesco e mais firme será a legitimidade da paternidade frente à comunidade. Como bem apontava Woortmann (1987), casos de poliginia, como de
poliandria seriada, podem igualmente estar operando dentro de um sistema
matriarcal como o analisado. Assim, mesmo quando o pai não cumpre o papel
de provedor e não mora com seus filhos, fornece uma identidade social, elemento fundamental para a integração social da criança.
Quando o pai não fornece identidade social, do ponto de vista material
ou na prática, muitas vezes pouca coisa muda. A centralidade da relação
mãe-filhos não é afetada na sua essência, apenas se restringe a amplitude
de redes dessa criança, a qual tende a ser vista como responsabilidade da
mãe ou das mulheres da rede. Nesta direção, pode-se formular uma interessante hipótese de análise. É bem possível que muitos dos homens inseridos
neste modelo e contexto social sintam paradoxal e ambígua pressão: se, por
um lado, o sistema matriarcal centrado na díade mãe-filhos parecia liberar
o homem do exercício de uma paternidade responsável (enquanto provedor
– e a partir de uma prerrogativa de um modelo patriarcal); por outro, esta
situação da condição masculina vivenciada neste contexto talvez gere, simultaneamente em alguns casos, a pressão contrária proveniente do peso
das representações dominantes da sociedade da qual o homem faz parte,
que associa o papel do provedor a um valorizado indicador de status social e trajetória bem-sucedida do homem que o pode exercer. A impotência,
frustração, perda de espaço e poder masculinos em sociedades modernas
são identificados como determinantes do aumento da violência masculina,
a casa das mulheres 193
muito presente em contextos de crônica restrição econômica e de falta de
condições de vida. É possível que a ambígua e paradoxal situação experimentada pelos homens neste modelo matriarcal com respeito a frustradas
expectativas de exercer o valorizado papel social de provedores e principais
responsáveis do sustento de suas famílias, assim como a perda de espaço e
poder masculino em relação a um modelo dominante, possa estar afetando
a forma de inserção no mundo, a maneira de se perceberem e entenderem
como pessoas. Pode ser que isso seja fator de fragilidade em alguns, mas
pode ser também um fator de empoderamento, fortalecimento ou proteção
para outros a depender do modo como articulem essa questão, do modelo
que mais opere em suas representações, se o matriarcal vivenciado ou patriarcal dominante. Como sabê-lo? As respostas seguramente variarão a depender dos indivíduos: de trajetórias, experiências, significações projetadas
em vivências, expectativas e desejos, o que poderá variar também em um
mesmo indivíduo em distintos momentos da vida. Parte destas reflexões retomo adiante ao observar distintas trajetórias como as das netas e nora de
Mãe Dialunda, a seguir.
SEGUNDO ATO
Vida de Mãe Dialunda e Dalva –
passado recente
Quando os filhos e netos de Mãe Dialunda ganharam autonomia, alguns
deixaram a casa para seguir caminhos próprios. Dialunda procurou ajudar
na construção das novas moradas de alguns deles. Ela tinha duas filhas e
uma neta morando na ilha de Itaparica, para quem deu terreno (exceto a
primogênita, que recebeu o terreno da tia Juçara, que a criou). Dois dos filhos homens e uma neta moram nas próprias casas em Amaralina e também
receberam apoio de Dialunda na concretização desses projetos. Dialunda
dividiu a própria casa em duas para dar o andar de cima ao filho caçula, seu
predileto, quando se uniu a Dalva, mantendo-os próximos.
Mãe Dialunda mostrava orgulho da descendência e sempre influenciou
o destinos dos seus. Afirmou ter incentivado todos a estudar, mas se entristecia de que apenas três membros da família tivessem aproveitado a
194 maria gabriela hita
oportunidade oferecida e que terminaram ou estavam cursando o Ensino
Médio, com intenção de investir em curso universitário. Eram eles, o filho
João, que abandonou o curso universitário de contabilidade e trabalhava na
Petrobras; o neto João Carlos, (que declarou que, quando era criança, Mãe
Dialunda relutou em deixá-lo estudar nas escolas do bairro e só permitia
seu estudo em banca, dentro de casa, com as primas24) e sua neta Célia que
retomou recentemente os estudos para concluí-los e tentar alguma especialização, pretendendo ser professora primária. Célia deixou o estudo quando
se uniu e teve três filhos. Voltou a estudar depois, pela noite, para concluir o
Ensino Médio com o apoio do marido e da vizinha, que cuidavam dos filhos
já mais crescidos e autônomos. Outra das expectativas satisfeitas por Mãe
Dialunda foi ter conseguido criar netos e bisnetos, imprimindo e reescrevendo, nesta nova geração, sua visão de mundo, talvez corrigida e melhorada em relação à que logrou produzir com os próprios filhos. Ela mesma e
a neta pequena falaram desta relação:
Vó? Eu adoro ela! Pra mim é a melhor avó do mundo. Pra mim é. Ela
faz um bocado de coisa aqui pra gente. Pra não deixar a gente assim
com fome, ela vai trabalhar. Pra cuidar da gente, não deixar a gente com fome, assim jogado na rua; ela não deixa a gente ficar muito
na rua por causa desses meninos lá de cima, muito brigão...[referia–se
às brigas de gangs] ai ela deixa a gente dentro de casa. (Lila, 30/01/00).
Mas vó, já viu como é! A mãe [Dalva] diz que eu sou xereta com os netos! Que eu fico paparicando os netos! Mas quem gosta, né? Ela educa,
eu deseduco. Eu não achei quem deseducasse os meus [filhos], que eu
não fui criada com vó, né. Mas... uma educa, a outra deseduca. Esse é
o papel da vó. Lila é boazinha. É menina meiga. Adoro minha neta.
Lucia é coisa gostosinha, fofinha de vó, que vó adora. Gilberto é
pintão, mas é coisa gostosinha. Meus neto são coisa gostosa da minha vida. A minha vida é meus netos! Hoje em dia, vivo pra eles.
Minha alegria são meus netos. (D. Dialunda, 22/02/99).
Sua entrega ao mundo religioso do Candomblé, e seu ofício como baiana
de acarajé eram outros dos legados que desejou deixar em família, no sentido do espírito de família integrador descrito por Bourdieu (1997). Alguns
24
Talvez para ocultar ou protege-lo da sua tendência homossexual que indicam ter aparecido bem
cedo.
a casa das mulheres 195
dos filhos, como Bela e João, tinham envolvimento mais direto com o
Candomblé; a neta Branca e, sem sombra de dúvidas, a nora Dalva. Mas o
maior desejo de Mãe Dialunda era ter uma herdeira de sangue no mundo
do Candomblé e na venda do acarajé. Ela depositou essa expectativa inicialmente na neta Célia, a predileta das mulheres, como houvera profetizado o
pai de santo.
A fabricação de acarajés tem importância central no sistema simbólico afro
-brasileiro; situa-se no encontro do religioso com o social.25 Fazer acarajé, no
sentido da aquisição de ingredientes, do modo de aquisição destes, da preparação e comercialização, é passo obrigatório nos ritos de passagem das casas de
santo. A vendedora ou o vendedor de acarajé investe provisoriamente num espaço, na rua, a fim de cumprir sua obrigação, que consiste na comercialização
do produto. O trabalho do acarajé exige investimento coletivo nas redes de
parentesco espiritual e social; constrói lugares de referência e pertencimento
para os novos iniciados. Alguns dos filhos de santo, após a iniciação, podem
decidir continuar o trabalho do acarajé em horas livres; outros continuarão
através de pessoas intermediárias constituindo uma fonte relativamente certa
de reforço da economia familiar. Assim, nas representações locais e mesmo
regionais, o acarajé é, certamente, um dos produtos nacionais mais relacionados à identidade negra e às religiões afro-brasileiras. Além da circunscrição
na esfera religiosa, o acarajé constitui uma verdadeira economia familiar para
negros mais pobres. Como se observa na casa de Mãe Dialunda, o acarajé e outros quitutes eram produzidos com a colaboração dos membros da sua casa.
O espaço público do ponto de venda de Mãe Dialunda no Abrigo de Amaralina
ou o que ele significou nesta Casa entrou como um bem importante na constituição de sua herança. Herança que a neta Célia oscilava em desejar assumir e
não estava convencida de desejar seguir, mas que, ao mesmo tempo, se sentia
fortemente ameaçada e usurpada pela posição que lentamente a nora de mãe
Dialunda, Dalva, a quem Célia tratava com rivalidade, foi ganhando no grupo
25
O acarajé – pão de comer feito de bolinhos de feijão fradinho frito no azeite-de-dendê – antigamente era feito pelas filhas de Iansã nos terreiros de Candomblé, colocados em vasilhames de
barro ou madeira e servidos em palhas de bananeiras. O dinheiro arrecadado era destinado ao
cumprimento de obrigações de santo. Hoje é comum ser comercializado para a sobrevivência. No
dialeto Yorubá, acarajé significa pão de comer e é o alimento de Iansã, Santa Bárbara, e é um dos
alimentos oferecidos aos orixás nos rituais de Candomblé. Mas o nome original “akará olelé” adotou o nome “acarajé” pela forma como as baianas o ofereciam pelas ruas gritando akara –jé que em
iorubá significa: coma akará ( Jornal A Tarde, 25/11/2003).
196 maria gabriela hita
familiar. Célia aprendeu tudo do ofício, era excelente cozinheira e chegou a
pensar em colocar um tabuleiro de acarajé com apoio de Mãe Dialunda:
D: Célia está aqui [na casa de Dialunda] volta e meia. Ela penteia meu
cabelo. Ajuda nas coisas da casa. Antigamente era ela que fazia tudo. Ela
aprendeu tudo e vendeu só dois dias lá embaixo [no Abrigo].
MG: E como é essa história que a senhora quer que ela passe a vender
acarajé aqui em cima, na rua do lado?
D: Agora é que eu quero botar um tabuleiro pequeno ali e mandar
pintar, para ela vender acarajé pequeno de 50 centavos, para ela ficar com dinheiro na mão, né? Mais independente e não só na mão
do marido. Eu não gosto ela ficar só na mão do marido, não.
(Mãe Dialunda, 22/02/99).
Mas a neta Célia, que respeitava e reconhecia o medo que o mundo do
Candomblé lhe produzia, desistiu inicialmente desse empreendimento e preferiu investir em terminar o Ensino Médio para tentar entrar na universidade
e tentar fazer algum concurso para ser professora do estado. Ela distribuía seu
currículo nos supermercados, qualquer lugar em que pudesse trabalhar para
incrementar o orçamento do casal e prosseguir com o projeto de ampliar a
casa de sua nova família nuclear. Ela era estimulada para isso pelo seu companheiro (homem trabalhador e de respeito) que se esforçava por pagar-lhe um
cursinho. Eles compartilhavam vários gostos e projetos: a paixão pelo futebol,
a construção da casa própria e também o da compra de um computador. Ele
cuidava dos filhos quando ela saia para estudar à noite e a apoiava no movimento de busca de autonomia e superação pelo estudo (o que não é um tipo
de comportamento masculino padrão entre muitos dos homens observados
neste contexto social, muitos dos quais se sentiriam ameaçados e ciumentos
pelos movimentos de superação e autonomia de suas companheiras). Célia
era uma bela e dedicada mulher ao marido, por quem mostrava estar apaixonada; a confiança entre eles parecia ser mútua. Quanto ao Candomblé, ela
afirmou que nunca se identificou nem fez parte da religião apesar de ter sido
criada e crescido nesse mundo desde pequena, morando temporadas em terreiros, conhecendo bem e presenciando distintos rituais e até utilizando, no
seu discurso, parte da simbologia desta matriz cultural. Ela contou:
a casa das mulheres 197
MG: Onde é que fica o terreiro de Juçara - a irmã de Mãe Dialunda, que
mora na ilha de Itaparica? E você gosta ou pratica o Candomblé?
C: É na casa dela mesmo, tem um terreiro lá. Ela tem filhos de santo, isso
tudo. Tem um... eles já quiseram me levar para me envolver nesse negoço todo aí, mas eu não quis, nem quero.
MG: Porque não?
C: Porque eu não concordo, eu não acho uma coisa boa para mim,
porque uma coisa é a gente olhar e estar do lado de fora. Outra coisa é a gente estar lá dentro. Porque eu convivo aí com Vó, eu sempre fui
criada por Vó. E quando Vó foi fazer a obrigação, essa lá na casa onde
foi raspar, né, eu sempre estava com ela porque não tinha quem ficasse
comigo. Porque Branca morou uns tempos com mãe. E eu nunca morei
com mãe, sempre estive com Vó. Ai eu tinha que ir. Ela ficou uma vez uns
três meses trancada, a gente sem ver a cara de Vó e quando ela saiu, com
aquela cabeça raspada. Eu ficava assim olhando. E essa mania que tem
de matar bicho, matar pombo...
MG: Você não gosta?
C: Eu fico com pena, matar bode... eu não gosto! Tem tipo de santo que
bate o rosto no chão, sangra, é uma coisa violenta. Eu não tenho nada
contra, mas para falar a verdade, não acho certo ou errado, nem
deixo de acreditar, mas fico neutra. Não gosto de crente, coisa de demônios, até dá medo! Gosto de Igreja católica. Acredito em Deus e
pronto. Uma vez disseram a minha mãe, que também é de santo, de
cabeça raspada e tudo, que tinha uma filha que ia seguir... E que essa era
eu. Quando eu soube, fiquei a noite toda chorando.
(Célia, 26/01/99).
A negação de Célia em participar do mundo religioso da avó, tomando
um caminho bem diferente, e apesar de ser das suas prediletas e desejo de
uma herdeira é o que certamente criou as condições para que, passo a passo,
Dalva, passasse a emergir como possível sucessora do legado desta mãe de
santo. A relação entre Dalva e Dialunda parecia ser também de iniciação religiosa, e a de uma potencial nova filha de santo.
198 maria gabriela hita
SEGUNDA PERSONAGEM CENTRAL
Dalva
(Nora de Mãe Dialunda, mulher de Juruna, quatro filhos)
Quando a conheci em 1992, Dalva era muito gorda e deformada. De aparência pouco agradável: faltavam-lhe dentes, um olho parecia menor que outro pela forma de olhar, era comum estar descabelada, pouco asseada e mal
vestida. No lar, no dia a dia, usava roupas pequenas e rasgadas para caber o
corpo largo (possivelmente as roupas de Mãe Dialunda), deixando aparecer
a grande barriga. Este conjunto de elementos era indicativo do pouco cuidado que dispensava ao próprio corpo. De temperamento esquivo, olhar desconfiado de soslaio, dificilmente encarava as pessoas quando falavam com
ela; percebia-se recalque e frustração na forma de atuar e se posicionar na
casa. Quando se vestia de baiana para substituir Mãe Dialunda no Abrigo,
se processava, entretanto, uma grande transformação: não parecia a mesma!
Mudava o sorriso, o ânimo e a postura geral: ficava uma mulher agradável!
Até bonita! E as belas e largas roupas de baiana no seu corpo igualmente largo lhe imprimiam um ar de força e superioridade que se percebe no mundo de
santo, onde a gordura é bem vista e apreciada, até identificada como símbolo
de fartura e poder.
Dalva foi se mostrando mais simpática e acessível com o tempo, mais
alegre e solta do que eu a imaginava, mas tão frustrada como os outros a
viam. A sensação que tive, muitas vezes, é a de que ela temia Mãe Dialunda,
abaixava a cabeça, acatava-a e, quando estava por perto, Dalva trabalhava
mais afoita, limpando a casa, adiantando o serviço do fogão ou descascando
camarão seco, coco... facilitando operações do preparo dos quitutes que Mãe
Dialunda ia vender embaixo; dificilmente participava das nossas conversas,
mas estava sempre por perto ouvindo-as. Mãe Dialunda gostava de conversar
comigo descascando camarão seco, o que, me explicava, costumava relaxá-la.
Juruna, o marido de Dalva e filho caçula de Dialunda, era homem preguiçoso e mulherengo na percepção de seus familiares, frequentemente estava
desempregado. Segundo a vizinhança, tinha fama também de estuprador.
Soube que espiava a sobrinha nos banhos, assediava outras mocinhas que
moraram na casa de Mãe Dialunda e espancava os sobrinhos. Dalva tinha
péssima relação marital e muita raiva desse companheiro. O ódio parecia ser
a casa das mulheres 199
mútuo. Apesar de viverem na mesma casa, em 1997, estavam praticamente
separados; cada um tinha o próprio quarto e, havia uns quatro anos, contava
Dalva, cortaram totalmente o contato sexual, por determinação de Dalva,
causando por vezes, a revolta de Juruna. Dalva teve quatro filhos e, ao que
parece, os quatro eram dele. A mais velha é Lila, que nasceu em 1990, com
11 anos em 2000. Lila era magricela, bem graciosa e meiga; dormia na saleta que dá acesso aos quartos separados dos pais. Alex foi o próximo filho,
nascido em 1992, ele era muito respondão e briguento, e sempre arrumava
confusão na rua. Lucia, a terceira filha do casal, era muito amiga da filha de
Branca – Priscila, bisneta predileta de Mãe Dialunda. O caçula, Gilberto, com
quatro anos em 2000, era de uma simpatia impar: sobressaíam-lhe a barriga
inchada, tropeçava na fala e me encarava com seu par de olhos grandes e bem
espertos; ele ficava sempre por perto, muito curioso com minhas visitas. Era,
dos netos, aquele que mais divertia a vovó Dialunda, que lhe dava um doce
de coco dos que preparava e ele desaparecia para comê-lo, escondido num
dos quartos, sentado atrás da porta. As quatro crianças, como o pai, são de
cor bem escura.
MG: Me fale um pouco do seu filho Juruna, Mãe Dialunda...
D: Juruna é o caçula. Ele é borracheiro. Não está trabalhando agora, mas
acho que vai trabalhar, eu acho! Tava tomando curso de vigilante com
aquele delegado [Seu Eduardo]. É coisa que eu não gosto. Mas ele quer!
Ele não gosta muito não, que ele não é violento. Mas Carlos é! Ele é
violento. Eu gosto muito dele [ Juruna]. Gosto muito de Dalva. Gosto de
meus netos, né? Não gosto de maltrato, né.
MG: Eles lhe maltratam?
D: Não! Eles as vezes são malcriados! Os netos! Os filhos não! Minha
nora, minha nora me respeita muito! Ela me respeita porque eu respeito ela. As duas se respeitando, completa, né? Mas se uma não se respeita e a outra não se respeita... não existe...
MG: E os filhos a respeitam?
D: Me respeitam, Graças a Deus! Só Juruna que é malcriado. É! Juruna
é! Mas assim mesmo ele é um bom filho. Às vezes é eu que agrido ele, de
200 maria gabriela hita
tapa nele... Ele é bom filho. Quando eu tenho desentendimento, eu meto
cacete e tudo bem
MG: A senhora bate neles? Nos adultos também?
D: Qualquer um! Eu bato em quem merecer! É João, é Margô, é
Bela... quem merecer!
MG: Até hoje?
D: Óoo!!! [indicando que sim] (Rss).
(D. Dialunda, 22/02/99).
E na visão da neta Célia que confirma algumas destas declarações, com
outro matiz, quando lhe pergunto quais dos filhos Dialunda gosta mais:
MG: Qual o filho que Mãe Dialunda gosta mais?
C: De filho, eu acho que é mais Juruna [...] Juruna e Carlinhos ficaram
em casa. Mas Vó trata Juruna melhor, dá mais coisas, roupa, dinheiro[...] Ele ficou 11 anos sem trabalhar, agora ele conseguiu um emprego,
recebeu um salário e ele não deu nada. Vó compra tudo. Ele tem outra
[mulher], diz que já levou ela pra comer acarajé no Abrigo, que Vó descarreirou ele com colher de pau querendo bater nele.
MG: Onde ela mora? Ele quer ir morar com ela?
C: Mora aí para cima, a mulher que ele está. Acho que ele não vai
morar lá... porque ele é homem preguiçoso e sabe que vó não vai
deixar seus filhos passar fome. Teve um trabalho de quatro anos e nunca deu um tostão na casa de vó.
(Célia, 26/01/99).
Dalva, de pele morena clara, chegou à família em 1990 quando, namorando o filho caçula de Mãe Dialunda, engravidou de Lila. Ela conheceu
Juruna num dos carurus de Mãe Dialunda. E contou:
Da: Meu nome é Dalva, Maria Dalva Santos. Tenho 30 anos e 4 filhos.
Eu não cheguei a estudar não, porque onde eu vivia era muito difícil. Vivi
a casa das mulheres 201
minha vida na casa da minha tia. Eu vim pra Salvador com 12 anos, cheguei aqui. Era muita roupa para poder lavar!26
MG: Seus tios trabalhavam de quê?
Da: Ela trabalhava de ganho, e o marido dela era tapeceiro. Aí ela foi
trabalhar nas casas de branco, e eu fiquei [cuidando da casa] [...] Os filhos
dela no colégio [...] aí ela não queria que eu fosse no colégio, queria que
eu ficasse em casa, e as meninas tudo me ensinasse dentro de casa. Aí eu
disse: também não quero! Que depois as meninas ia jogar tudo na minha cara! Aí fui crescendo... Quando eu ia fazer 20 anos, fiquei grávida
de Lila. Eu conheci Juruna aqui na rua mesmo.
MG: Onde você vivia antes?
Da: Vivia na casa da minha tia e eu vivia aqui.
MG: A casa da tua tia é na mesma rua?
Da: É! Aí do lado, onde tem um carro, tem uma garagem com portão de
tauba [tábua]. Ali mesmo.27
MG: Me conte como conheceu Juruna
Da: A gente foi se conhecer, quando foi uma vez, aqui no Caruru.
Eu nunca tinha vindo nesse Caruru aqui. Foi ali, nessa varanda ali, a
gente pegou o prato e começou a namorar, e aí foi. Eu gostava dele.
Gostava muito! Batia [nele]!
MG: Porque você batia nele?
Da: Era um ciúme desgraçado com as meninas da rua!
MG: Como assim? Ele namorava outras?
26
Como comentado, os filhos são dados para criar ou trabalhar em casa de outrem – parentes ou
não – para tirá-los de uma situação difícil, o que pode se traduzir em um favor prestado aos genitores por parte de quem os cria.
27
Indicando-me onde sua tia mora: umas dez casas para abaixo e do mesmo lado e ladeira de Mãe
Dialunda.
202 maria gabriela hita
Da: Não! Porque ele tinha amizade e eu tinha ciúme, era aquela amizade de ficar agarrando, apertando... Aí eu não gostava! Aí eu vivi...
MG: E conte de uma fase boa com ele.
Da: Mas nem tive época boa, minha filha! Fiquei grávida de Lila, mas
eu ainda estava na casa de minha tia. E eu [es]tava doida para sair de
lá que eu sofria muito... Aí, eu vim para a casa de Mãe Dialunda ajudar.
Aí tia dizia que eu vinha aqui ficar dormindo mais Juruna, passar o dia.
Não era nada disso! Eu ficava ajudando ela nas coisas da venda, era
catar camarão, cortar quiabo, essas coisas. Aí fechavam a porta lá
cedo. Diziam assim [os tios]:
‘Vamo fechá cedo, agora que ela tá lá, deixa ela dormir na rua’...
E de manhã, ela abria a porta, que era para eu poder ir lavar a roupa. Aí
um dia Mãe Dialunda disse assim:
‘-É Dalva, eu quero ver, até quando você vai ficar nessa’. Nessa de lá pra
cá, e eu com a barriga grande, de lá pra cá.
Tia chamava Juruna de vagabundo e esculhambava ele, ela achava
errado, né? que não podia ser... dele não trabalhar, que tinha a mãe
dele que dava condições a ele. Hoje em dia [é] que ela [Mãe Dialunda]
não tem condições, que a situação é mais difícil. Mas antes... ela tinha
condições de sustentar os filhos sem ninguém dar duro nenhum!
Sem ela precisar de ninguém... [trabalhar]
MG: E o que sua tia dizia?
Da: ‘O que eu quero saber’, dizia tia, ‘é quando você for ter neném, o que
você vai fazer?’
Mas ela não sabia que Mãe Dialunda descia para trabalhar e me
deixava com um dinheiro, se eu precisasse pegar um táxi... Mãe
Dialunda deixava. É! Que os filhos dela não tava trabalhando; é,
quem me dava era ela. Aí eu mudei para aqui, grávida.
(Dalva, 30/01/00).
A chegada de Dalva à família de Mãe Dialunda coincide com o período de
uma grande reforma estrutural na casa. Esta foi dividida em duas casas relativamente independentes uma da outra, pois Mãe Dialunda decidiu alocar a
família deste filho caçula, seu predileto pelo que afirmam, no 1° andar, onde
ela morava (embaixo havia um grande salão, cozinha e dois pátios). Para isso,
readaptou, dividiu e construiu sobre o grande salão que havia no térreo, três
novos quartinhos para ir morar com seus netos na parte baixa da casa original, com espaço suficiente para a atual sala de visitas. Esse enorme salão no
térreo da casa operava como barracão e lugar de sessões de Candomblé antes
da reforma e da chegada de Dalva e nascimento dos respectivos filhos.
Com as reformas estruturais (ver descrições do Capítulo VI) passaram a
existir duas casas relativamente independentes uma da outra: a do filho e sua
nora, na laje, e a própria, com os netos, embaixo. Esta foi a divisão projetada
ou ideada inicialmente, mas de fato, comentavam alguns netos, o uso, os vícios e a vida da casa parecem nunca ter conseguido institucionalizar tal divisão. A casa continuou operando como uma, como se a mistura de famílias
e usos de casas reconfigurasse a casa no modelo antigo, ao menos durante o
dia, quando a casa de baixo é a que permanecia em movimento e habitada.
À noite, se dava o rearranjo projetado na utilização dos espaços: Dalva, Juruna
e seus filhos dormiam na casa de cima; Mãe Dialunda, outros filhos e netos
na de baixo, cada qual em seu espaço delimitado. Por sua vez, Mãe Dialunda
usava e circulava no espaço de cima (a suposta casa de Dalva e Juruna) como
dona da casa que era, para receber clientes e fazer seus trabalhos privados de
Candomblé: na consulta de búzios, certas limpezas de corpo, longe do barulho e olhar de vizinhos e netos curiosos. Trabalhos para os quais recebia
todo o apoio e ajuda da nora, Dalva, que era sua fiel servidora e principal seguidora de seus preceitos, a única com permissão de entrar nos quartos do
santo para a limpeza e que era, normalmente, demandada para realizar alguns dos preparativos dos trabalhos.
Dalva vende [acarajé] e ajuda Vó. Limpa o quarto de Santo de Vó.28
[Mas] Dalva nunca deu Santo. Só Vó que dá Santo.
(Célia, 26/01/99).
Dalva tem uma forma de operar, entender e compreender o mundo muito
similar ao de Mãe Dialunda estabelecendo-se, ao mesmo tempo, entre elas,
apesar dos atritos e conflitos, grande cumplicidade. A relação entre elas era
carregada por tensões e ambiguidades, com movimentos simultâneos de
aproximação e distanciamentos, identificações, ressentimentos, respeito e
ódios mútuos. Algo disso pode se entrever na forma como a neta e o filho
Carlinhos, o de criação, analisam a relação destas duas mulheres a seguir e
28
Só Dalva tinha permissão para isso. E não é qualquer pessoa que pode entrar e pisar no quarto
do santo, explicou-me Mãe Dialunda.
204 maria gabriela hita
na forma como Dalva incorpora e utiliza o imaginário do Candomblé para
explicar problemas familiares:
Em casa de Vó é tudo fuxico, briga danada. Vó fala mais de frente o que
pensa. Às vezes também fala por trás. É um pouco falsa. Na frente, aquele amor... Já Dalva fala tudo pelas costas. Mas a gente sabe que ela...
(Célia, 26/01/99).
Oh, falar a verdade, eu acho que minha mãe [Dialunda], sinceramente,
de coração, acho que ela... tem coisas que dá para se entender, porque
mãe já está ficando de idade, ela [Dalva] ajuda bastante. Não vou mentir, ela ajuda minha mãe bastante. Certo? Tem defeitos que minha mãe
não aceita nela [o fuxico], mas... a minha mãe leva a vida desse jeito...
Mas eu acho que se entendem, né? Porque minha mãe até agora não...
ela aceita ela lá! (Carlinhos, 30/01/00).
E na própria visão de Dalva:
Da: Sem eu saber de nada, né? Mas Mãe Dialunda sabia, né? Ela é assim! Mas quem quer fazer mal pra ela sabe, óbvio, fazer! Porque Mãe
Dialunda finge que não sabe das coisas. Aí Mãe Dialunda falou assim... [sobre uma prima de Dalva – Marília – que a vinha visitar e que
teria sido enviada pela tia para trazer um feitiço, e que teria deixado um
preparado na sala de Mãe Dialunda][...]
MG: Um preparado?
Da: Uma Pemba e pimenta da costa para jogar no chão da casa dela.
Coisa de feitiço!29 Mãe Dialunda viu as coisas tudo preparada, aí ela
disse assim:
‘Ói o que tá dando você brigando com Juruna, é isso aí’.
29
Para os escravos negros em Portugal e no Brasil, na época colonial, comenta Harding (2000) as mandingas (uso de patuás), a poeira de sapatos, raízes de plantas e outros recursos mágico-materiais,
considerados feitiços na atualidade, eram elementos essenciais para o esforço de negociar um caminho através das humilhações e incertezas da posição subalterna como escravos ou libertos.
“Confrontos e tensões coloniais eram representados materialmente, através destes objetos, num intuito de acessar e resituar as desigualdades de poder e a arbitrariedade da violência vivida. As bolsas
de mandinga eram, também, consistente manifestação mágico-religiosa das tensões senhor-escravo
no império colonial português. Diversos documentos de várias regiões apontam como principal uso
de patuás/mandingas a busca por proteção contra danos e o enfraquecimento do poder dos senhores.” (HARDING, 2000, p. 27, tradução nossa).
a casa das mulheres 205
Quando ela veio me ver outra vez, Mãe Dialunda botou ela para fora...
aí minha tia veio querendo me bater... E passou. Depois que foi um dia
de ano novo, ela mandou me chamar aqui, e me pediu desculpas, pelo
que ela [tia] fez comigo. Eu perdoei, que eu não fiz nada, quem fez tudo
foi ela, né? Depois se eu fizer questão de pecado, hoje ando cheia de
pecado, não quero nem saber! Tive meus filhos! Hoje em dia, estou
nessa vida miserável!
(Dalva, 30/01/00).
Dalva teve dificuldades com o marido desde o começo, mas afirmava que
os últimos anos foram os piores, quando se deu um afastamento total entre
eles a ponto de ambos e a parentela afirmarem que estavam separados de
fato, ainda que dividindo o mesmo teto. Cada um em seu próprio quarto tem
o respectivo equipamento de som, dizendo que a única coisa que ainda compartilhavam era o mesmo teto da casa e os filhos:
MG: Há quanto tempo você não tem relações sexuais com Juruna?
Da: Tem três anos. Vai fazer quatro, agora. Foi por causa de briga.
Mulher na rua. Eu não quis mais, fiquei com raiva, não quis mais conta.
Mas ele sempre fica atrás.
MG: E consegue algo (Rss)?
Da: Quiii! Eu não! Nunca mais aconteceu nada! Ontem mesmo a filha dele pegou ele em pé, ele ali, ó! [na saleta que conecta os quartos] Ele tava nuzinho! Eu botei direto pra fora, ele dormiu ali. [...]
Ninguém me pega à força! Eu briguei. Porque eu não gosto mais. Ói,
quando você gosta de uma pessoa você se acaba por aquela pessoa, mas
quando não gosta é porque você não gosta! Eu gostava muito, brigava
com qualquer pessoa. Agora eu não tenho fogo por homem não. Sou
fogosa não!
(Dalva, 30/01/00).
Ao que parece, era a relação de dependência e subjugação de Dalva à Mãe
Dialunda um dos motivos iniciais do atrito com o marido. Dalva, por sua vez,
sentia-se na obrigação de retribuir o sustento que Dialunda lhe outorgava.
Como o marido nunca a sustentou, via-se forçada a retribuir a acolhida de
Mãe Dialunda ao seu grupo familiar com o próprio trabalho. Acusava Juruna
de ser o responsável pela situação e humilhações que era obrigada a passar.
206 maria gabriela hita
Da: A gente era feliz, porque ele me tratava bem, eu tratava ele. Agora
o motivo da nossa briga era porque ele... queria que eu fizesse a vontade
dele, fizesse o rock dele. Ele não queria que eu ajudasse Mãe Dialunda, e
ela sabe disso! Não levantasse de manhã, que eu descia para ajudar ela.
E ele ficava cá reclamando... [...]
MG: Eu soube que ele agora está trabalhando... é o primeiro trabalho
dele?
Da: Não! Não é a primeira vez que ele começou a trabalhar... E sempre
que trabalhou, não deu nunca nada a meus filhos. Quem sempre deu as
coisas a meus filhos foi Mãe Dialunda. Como é que eu tenho quatro,
que antes eu tinha três filho nas costa dela, que eu ia ficar aqui em
cima? Como? Bebo, calço, visto. Ele não dá nada, e eu ficar sem ajudar ela? Como é que ela vai trabalhar para me dar comida, sem [eu]
fazer nada?
(Dalva, 30/01/00).
Dalva passou a viver amargurada e frustrada, engordando cada vez mais a
tal ponto que conseguiu ocultar sua última gravidez até o dia do parto sem
ninguém saber que estava grávida. Aqui, conta esta história falando pelos
outros, perguntando, respondendo e retomando a narrativa, quando eu não
a interpelava:
MG: Eu lembro que sua última gravidez você escondeu até a hora do parto... conte-me como foi e porque a escondeu.
Da: Foi a de Gilbertinho! Porque a raiva! Quando as pessoas se mete
muito na sua vida, que você acha que sua vida não interessa a ninguém.
[...] então você se acaba sozinha. Então as pessoas para dar opinião, se
mete muito na sua vida. Eu tava trabalhando, aqui na casa de Mãe
Dialunda. Branca também tava grávida. Eu comprei o enxoval de Priscila
[sobrinha] todo, [e] não comprei uma roupa para Gilberto.
Da: Aí todo mundo [me] perguntava:
‘Mas você tá grávida?
Da: Eu tava gorda, muito gorda, gordona mesmo! Eu digo [a eles]:
‘Não, não [es]tou grávida, não!’
Da [replicando o que os outros voltavam a lhe perguntar]
‘Você não [es]tá grávida, não?’
a casa das mulheres 207
Da: Eu dizia: ‘Não! não [es]tou não!’
Vai um dia, volto um dia, eu vou trabalhar! ...Quando chegou de noite,
minha filha, isso eu já tinha pedido a um veado [o pai de santo da redondeza, Xisfredo] fazer uma garrafada para matar Gilbertinho... Quando
chegou de noite, ele trouxe o negoço preparado lá na garrafa. Menina,
mas me deu aquela dor nas pernas! Eu já tava sentindo tudo isso aqui
embaixo pesado [apontou bexiga]... Aí... peguei uma saia dela [Dialunda],
botei aqui. Aí... uma moça que era minha comadre, aqui em cima, e seu
Antônio... aí... mandei chamar ele e ele disse:
‘A gente vai aonde Dalva?’
Da: ‘A gente vai para a maternidade’.
Ai ela:
‘Menina, mas onde você botou esse menino? Você está grávida?’
[Aí] Eu disse: ‘[Es]Tou!’ [...].
Eu acho que eu já [es]tava no dia dele nascer, né? que eu não fiz pré-natal, eu não fui para médico.
MG: Você tomou a garrafada para abortar no mesmo dia dele nascer?
Da: Foi! Mas ele [também] fez outra para poder ficar e a outra [a abortiva], eu não tomei!
Da: Eu acho que Gilbertinho disse:
‘É hoje que eu vou ou eu morro, ou ela morre ou não morre, ou algum
dos dois vai!’
Deu a dor, nasceu logo!
MG: E o que você sentiu?
Da: Não senti nada. Nada, nada, nada! Ninguém sabia. Ói, eu cheguei
pra umas duas horas da manhã. Juruna podia pensar assim, que era um
desses homem que me trazia de carro, né?
MG: E como foi depois, quando eles souberam?
Da: Aí foi ele e Mãe Dialunda me ver. No hospital! Aí chegou lá, Mãe
Dialunda disse assim:
‘-Dalva, o que é que a gente faz?... Pra comprar a roupa para esse
menino’.
Da: Olha! Eu [es]tava com tanto ódio, com tanta raiva, [que] eu disse
assim:
208 maria gabriela hita
‘Se a senhora quiser, a senhora compra só a roupa dele sair daqui’.
MG: E ela comprou?
Da: Ela comprou dez fraldas e um conjuntinho azul, a toquinha, o capote com jaquetinha, a calcinha e o sapatinho azul e uma manta azul.
E eu disse [a ela]:
‘E se a senhora não comprar, eu peço a ela [enfermeira] ou eu enrolo na
minha roupa e eu levo ele para casa’.
Da: Ele gosta de bermuda aqui! [gesto de abaixo do joelho] Ele foi vestindo roupa grande [dos irmãos], então, de roupa grande ficou! Juruna
foi ver, foi direto para o berçário para ver a cara, para ver se era dele
mesmo. Achou que a primeira folga que eu tinha dado nele, emprenhei,
não liguei.
MG: Você tinha transado com outro homem?
Da: Não! A primeira transada que dei com ele [ Juruna]. [Pois] eu levava
um bocado de tempo brigada com ele.
(Dalva, 30/01/00).
Depois do último parto, Dalva decidiu se esterilizar e, apesar de ter afirmado não precisar, quis fazer plástica vaginal para apertar a musculatura por
motivos de saúde e próprio prazer, mas declarou, ambiguamente, não ter interesse em sexo:
Da: Eu me operei... não liguei [as trompas de falópio], porque ligar é diferente de estrangular. Eu estrangulei e fiz a plástica. Foi assim, Daví, esse
rapaz vereador que trabalha ali na Justiça... Ele tava fazendo campanha
e para conseguir voto das pessoas, ele tava operando, dando ficha através de médico. Então, a prima de Juruna se operou, [aquela...] a filha de
Eliene.
Aí... ela [filha de Eliene] disse a Juruna:
‘Diga a Dalva que eu me operei e que quem tá dando a ficha é Daví’ [...]
Aí eu fiz os exames...
MG: Você queria se esterilizar?
Da: Eu queria, né? Eu já tenho quatro filho. Eu fui me operar, mas eu queria, que eu não posso tomar nenhum remédio. Podia ser que eu... [fosse
aparecer grávida] ou aqui de dentro de casa, talvez, ou podia ter de fora,
a casa das mulheres 209
porque aqui de casa, eu tenho certeza que não é, porque eu não tenho
nada com ele.
MG: Você teve relações com outros homens depois dessa briga com
Juruna?
Da: Na rua só tive duas vezes podia ser que pegasse, porque eu não
tomo nada. Se eu não tivesse operado, era capaz de eu [es]tar até com
outro filho. Eu queria [me esterilizar]. Ele me ajudou. Ói, se fosse da vontade dele, dos filhos dele, eu só tinha Lila. Que dos filhos dele, quem ele
gosta, é só Lila.
MG: Quando você se esterilizou?
Da: Foi quando Gilberto fez um ano! Gilberto tem quatro anos. Eu aproveitei a campanha. Tava com 26 anos. E eu fiz a plástica [vaginal] porque
a plástica faz na operação logo, na mesma hora. Ele diz [o médico] que
não precisava, que não tinha rotura, não tinha nada não. Mas como eu
já não ia parir mais, então que fechasse mais... que aí corta aquelas carnes estragadas tudo que...
MG: E como foi depois disso? Quando voltou a transar? Gostou?
Da: Menina! Mas era uma dor que eu sentia... que eu gemia, chorava! [a
primeira vez que voltou a transar]
MG: Você se arrependeu?
Da: Eu não me arrependi não. Que foi bom; agora [es]tá bom! Eu quis
fazer para ficar mais apertadinha! <Risada>
MG: Então você estava querendo reconquistar Juruna ou algum outro
homem?
Da: Não! Eu não [es]tava pensando em ninguém não! Que diz que livra
de muita doença, também. [Es]tava pensando em mim mesma.
MG: E Juruna gostou da mudança?
Da: Gostou! Qualquer homem até gostava mesmo! <risadas!> Agora é
uma dor desgraçada quando vai de novo. Parece que a gente [es]tá perdendo a virgindade de novo! Eu levo muito tempo sem transar! Ai faz
210 maria gabriela hita
mal, porque tem que ir abrindo. Mas eu não tenho fogo por homem, não.
Sou fogosa não!
(Dalva, 30/01/00).
A indignação de Dalva não se restringia aos maus tratos e a outras mulheres de Juruna; também se revoltava pela falta de liberdade para rearmar
sua vida e falta de condições de poder arranjar novo parceiro morando na
casa do ex e com ele embaixo do mesmo teto. Tampouco tinha forças ou
coragem para partir e tentar vida independente. Dizia realmente desejar
que Juruna saísse da casa. Mas, quando surgiu uma possibilidade de Juruna
sair da casa para assumir um espaço que o pai lhe ofereceu na rua de trás,
onde morava, Dalva, de forma ambígua, criou tanta confusão, envolvendo
nela Carlinhos, que quem finalmente partiu para a casa de seu Gilberto foi
Carlinhos e não Juruna. A infidelidade conjugal era mútua, ainda que muito
mais complicada e desigual para ela que morava ainda na casa da família dele.
Ela contou sobre suas escapadas, e apresentou uma versão diferente à da parentela sobre a saída de Juruna e Carlinhos da Casa:
Da: Tive um caso ali na Amaralina, foi questão de momento, de cabeça
quente [...]
MG: Você ficou com outro homem?
Da: Foi! [depois de uma briga] ele [ Juruna] mandou eu arranjar homem
fora. Eu me piquei para rua, um dia ‘aguniada’, fui para rua, deixei o homem fazer o que queria em mim, acabou tudo aqui [apontou o pescoço]
assim roxo, namorando, aí eu larguei, mas foi assim dois dias, e eu não
quis mais conta! E isso já tem mais de tempo.
MG: E Mãe Dialunda sabe?
Da: Sabe! Eu não escondo não! A vida é minha!
MG: E ela ficou chateada?
Da: Ó!! Ela disse:
‘Dalva, não deixe Juruna saber disso, que perepepepé...
MG: Mas foi você mesma que jogou na cara dele, depois, né?
a casa das mulheres 211
Da: Ah, eu disse! Essa semana mesmo eu [es]tava retada...
MG: E ele ?
Da: Ficou queto!
MG: Ele não ligou?
Da: Não! Que ele [es]tava com mulher na rua. [Es]tava ajeitando a casa
do pai para ele morar, sem eu saber! Mãe Dialunda sabia, todo mundo
dentro de casa sabia tudo e oh! Por debaixo do pano! [Es]tava ajeitando
para ir embora. Aí, um dia, ele chegou aqui e eu perguntei porque que
ele queria ir embora. Ai ele disse que queria ir para casa do pai para esfriar a cabeça, que ele tava desempregado, né? Para esfriar a cabeça e
que depois ele ia voltar.
MG: E ele foi para a casa do pai?
Da: Não! Na casa do pai dele..., ele deu ao irmão, aquele chamado
Carlinhos! Hum!
MG: Mas você não disse antes que queria que ele fosse embora?30
Da: Não, minha filha! Eu quero! [...]
Eu [es]tou dizendo que ele, eu não faço questão de viver com ele
nessa situação que eu [es]tou. Ele [es]ta na rua vivendo a vida dele;
na rua, à vontade e eu não posso. Como é que eu posso arranjar um
homem com ele dentro de casa? Eu não [es]tou uma pessoa livre.
(Dalva, 30/01/00).
Dalva não era muito apreciada por boa parte da parentela de Mãe Dialunda,
que a via como criadora de intrigas e confusões. Para Célia, a vida da família e
de Dialunda teria começado a declinar desde que Dalva entrou na casa. Entre
o final de 1999 e o início de 2000, Carlinhos, o filho de criação, saiu da casa
por alguns desentendimentos e brigas que teve com esta cunhada; pelo que
decidiu deixar a casa ‘para evitar causar maiores problemas à mãe’, afirmou.
30
Eu sabia por outras fontes que Dalva criou tal caso que Juruna terminou ficando e Carlinhos saindo,
mas na entrevista com ela ficou sem assumir, que não tinha deixado ele ir ou que o queria perto
de si. Numa confusão de sentimentos encontrados que relatam distintos tempos ou disposições na
mesma narrativa.
212 maria gabriela hita
Dialunda, na época, ofendeu-se com a ida dele para a casa de seu Gilberto,
que teria um espaço livre originalmente a ser destinado a Juruna, ou para dividirem o uso de parte da casinha entre ambos. Talvez por isso ela pouco – e
mal – falou deste filho de criação na época da entrevista a respeito de quem
eram seus filhos. Entretanto, a centralidade que Dalva começou a adquirir por
sua relação de mútua dependência com Dialunda, que ia muito além das necessidades ou interesses econômico, e apesar de ser culpada pela parentela de
originar maior parte dos conflitos e contradições familiares, foi possível observar com o tempo e confronto das narrativas, o quanto seu estilo e modo de
ser ia se aproximando e seguindo o modelo relacional instituído por Dialunda.
O papel de ajudante mor das funções no mundo do Candomblé, preparando
os búzios, mesas de trabalhos, folhas ou garrafadas, alimentos a vender, limpeza do quarto de santo, etc... me levaram a pensar que a relação desenvolvida entre elas tinha uma forte analogia com a de uma iniciação nos rituais
de Candomblé. A rivalidade de Célia com Dalva, potencialmente ou inicialmente a escolhida como sucessora da matriarca pela avó, fica clara na narrativa a seguir, evidenciando como Dalva é quem parecia que iria ocupar o
lugar vagado por Célia. O desconforto da parentela com Dalva mencionado
por Célia pareceu-me estar relacionado a sentimentos de invejas e intrigas pelo
uso do espaço na Casa de Dialunda. E à crescente influência que Dalva conseguia exercer sobre Mãe Dialunda, fomentando ciúmes e ressentimentos. Na
narrativa a seguir, Célia ilumina outra faceta da briga de Dalva e Carlinhos diferente à mencionada por Dalva.
C: Ela faz as coisas errada e Carlinhos não gosta e reclama. Ela foi querer dar [bater] na cara dele. A casa dela [em cima] é tudo arrumadinho,
limpo. A de Vó [andar de baixo] é tudo largado, xixi no chão [de menino
pequeno]. Ela não cuida igual. Quebra tudo! Eu não entendo isso. Porque
na casa deles, eles tem cuidado e na de Vó não? Fico danada [...] Desde
que ela entrou ali, tudo mudou. A casa era bonita. Vó só andava
chique, bonita. Sei lá, parece que passou um vendaval que arrastou
tudo, deixou tudo destruído. Totalmente... Eu acho que ela destruiu
a vida da família da gente, desde o tempo que ela chegou. Se eu
pudesse, eu passava uma borracha assim e apagava tudo, desde o
tempo em que ela chegou, para aquele tempo não existir [...] Minha
mãe, [tia] Juçara, toda minha família não gosta dela, porque ela só
faz fuxico. Até o marido da minha mãe detesta ela; botou ela para correr da casa dele. Ela foi uma nora que parece que caiu na família errada
e hoje nem o marido quer mais conta com ela. E fica esse problema,
a casa das mulheres 213
que ninguém quer. Ela ajuda Vó. Ela ajuda a fazer a venda. Cuida da
roupa e casa de Vó. Mas acho que é obrigação dela também que ela
com quatro filhos!
(Célia, 26/01/00).
Devido ao péssimo relacionamento entre Juruna e Dalva, vez por outra
aconteciam verdadeiras revoluções internas, com muita agressão e violência
física de ambos os lados, e muito mais graves em direção a Dalva, que aparecia roxa dos espancamentos, deixando Mãe Dialunda, que intercedia, em
situação nada confortável. Pelo temperamento e pelo que contavam os netos,
por mais errados que os filhos pudessem estar, Dialunda seria sempre parcial: mais pro lado deles – filhos de sangue. Por seu lado, Dalva tornou-se uma
pessoa central no funcionamento desta unidade doméstica; era indispensável
na venda e na casa; Mãe Dialunda dependia do seu trabalho, e ela era sua mão
direita. A mútua interdependência colocava ambas as mulheres em uma situação extremamente delicada e fragilizante.31 O fato de Dalva ser a mãe dos
netos que Dialunda tanto amava e dos quais nem cogitava ver-se separada –
nem tinha mais a força de antes para criá-los sozinha – tornava a relação com
essa nora indispensável e complexa. Era pela combinação de conflitos como
esses que Mãe Dialunda não conseguia mais administrar a casa. Afirmava
estar perdendo a paz e a saúde. Depoimentos como os seguintes ilustram as
situações vividas nos últimos tempos da pesquisa e como os conflitos e frustrações de Dalva na relação com Juruna afetavam o clima geral da casa:
Até mulher [procurando Juruna] aqui na porta, deu pra vir. E Dalva fica
revoltada. Pior que ela se revolta e enche a cabeça de Vó, porque ninguém aguenta isso, né? E Vó também não gosta de maltratar os filhos
dela. Por mais que ela queira, ela não deixa de ser por ele e [para] ser
mais por Dalva.
(Branca, 30/01/00).
Da: Antes ele era borracheiro. Lá na empresa de ônibus, ele botou
o nome dos filho dele e botou o nome da mãe no plano de saúde
dele. No lugar dele me botar, ele botou a mãe dele... acho que foi porque a gente brigou, a verdade dói, eu disse um bocado de coisa a ele[...]
31
A ideia de fragilização à saúde mental de mulheres desta comunidade foi trabalhada em Hita
(1998) Uma das informantes consideradas mulheres nervosas da amostra foi Mãe Dialunda.
Outra delas, Dina, uma das filhas de D. Cida parteira, no outro grupo familiar.
214 maria gabriela hita
MG: E essa briga que vocês tiveram mais recente?
Da: Olha, eu não gosto nem de me lembrar disso. Tem hora até que eu
esqueço. Porque na hora da raiva, se fala coisa... Olha, eu mesmo sou
boazinha, mas eu com raiva digo coisas que me tira do sério. Eu me desabafo! Foi briga feia! A gente discutiu, brigou, eu dei porrada nele,
ele me bateu, que eu tava com a cara deformada. (Dalva, 30/01/00).
Essa semana, Mãe Dialunda chegou de viagem, eu não sei o que disseram
a ela, que disseram que eu disse que ia botar veneno na comida cá embaixo. Aí ela disse assim para mim:
‘Ói Dalva, eu vou deixar de ser preta para ser franca! Do jeito que você
esta vivendo aqui... ói, do jeito que tão indo as coisas, as pessoas estão
com medo’.
Eu [es]tou amargurada, porque quem sente a sua dor é você. Não é ninguém!...’ Então, quer dizer que eu, que fiquei dentro de casa, tomando
conta, ela não encontrou nada errado, nada com defeito, encontrou os
neto dela [vivos!]; eu trabalhando, ninguém com fome, pra quando ela
chegar, ela encontrar as coisas no lugar... Oh! Que necessidade que eu
tenho de colocar veneno pra ninguém? Eu disse a ela:
‘Eu vou deixar de cozinhar aqui embaixo. Eu vou tomar conta da minha
vida, porque enquanto eu mais faço, eu não presto’.
Eu devo tomar conta da minha vida. Ela que deve tomar conta dos
meus filho. Ela não [es]tá mais na idade de ficar se acabando, pra ficar tomando conta dos meus filho trabalhando. Que um dia ela não
vai aguentar mais trampear [trabalhar] nessa vida.
(Dalva, 30/01/00).
Dalva enfrentava um sério dilema: encontrava-se no limite das suas forças
de um lado, e de outro, não querendo perder o até então conquistado, isto
é, um pedaço de chão, e um possível direito a ter uma casa própria, mas que
não sabia se conseguiria se efetivar, pela fragilidade da sua situação no lar,
pois, em certa medida, ficava nas mãos de seu pior inimigo, o pai dos filhos,
quem teria direito legítimo a herança, e à vontade final dessa matriarca que
decide a quem dar ou não casa e comida. E se Dialunda morresse, o resto da
parentela, que pouco a apreciava até então, poderia vir a querer expulsá-la da
casa. O trecho a seguir indica como avaliava sua situação em 2000:
MG: E o que você vai fazer? Como vai ficar sua situação agora, depois
de tudo isso?
a casa das mulheres 215
Da: Como vai ficar minha situação? Eu não sei, sabe por que? Porque
eu sei que pro lado dela [Dialunda] pode mudar e pode não mudar.
Porque Mãe Dialunda é um tipo de pessoa muito rigorosa. Mas eu
tenho que pensar em mim. Eu não posso continuar vivendo minha vida
como [es]tá[...] Então. Eu tenho aqui, meu irmão. É a coisa mais difícil eu
ver. Eu tenho minha tia ali... É a mesma coisa que não ter. Então eu tenho o quê? Só tem eu e os meu filho! [Es]Tou com medo de sair! Eu
pensei que tinha arranjado um homem! Eu achei um homem, só achei
para fazer três [?] 32 filhos. Que um homem que não assume a casa, não
assume os filhos, que não faz nada, quer dizer, que é eu que assumo
tudo. (Dalva, 30/01/00).
Dalva andou fomentando a ideia de colocar um tabuleiro de acarajé para
ganhar seu próprio dinheiro, chegou-se a cogitar a possibilidade de um
bom ponto que ia ficar livre na Universidade Católica onde Gilberto (pai de
Juruna) trabalhava; ele conhecia bem a baiana que queria vender seu ponto
e o tabuleiro, e facilitaria o contato com a reitoria da Universidade. Mas ela
nunca tomou as providências necessárias para ir adiante, de fato; devia estar
dividida e acuada pelo desconforto de Mãe Dialunda, pois esta possibilidade
de independência de Dalva não era do interesse de Mãe Dialunda, que colocava empecilhos porque via, em sua concretização, a perda do controle sobre
a força de trabalho de Dalva e sobre a própria produção e ponto de acarajé:
MG: Dialunda sabe dessa história do delegado Eduardo querer colocar
um tabuleiro e arranjar um ponto para você vender acarajé?
Da: Sabe! Sabe. Ela disse a ele que não era pra fazer isso pra mim, não.
Que ele ia me dar o curso. Ele ia pagar o curso [para Dalva trabalhar
em restaurante]. Ela disse a ele que não era para ele fazer isso não,
porque quem cozinhava e ajudava ela na venda era eu. Aí, ele disse
que ia deixar eu para a fritura mesmo, que ia conseguir um tabuleiro e
um lugar.
MG: E Dialunda diz o quê? Ela está gostando?
Da: Mas ela não vai gostar! Porque, minha filha, cada um deve procurar
a sua vida. De um lado, ela entende o que eu faço, de outro lado, ela não
32
Ela declarou ter 4 filhos com Juruna, mas, como contou ter tido relações com outros homens e
Juruna achar que podia ser de outro, me perguntei porque ela teria mencionado 3 e não 4 na
entrevista.
216 maria gabriela hita
entende o que eu faço por ela [...] Então, quer dizer... ela protege Juruna
e me acaba. Porque eu praticamente não me considero aqui como
se fosse da família. Eu me considero aqui uma empregada. Eu acordo
de manhã aqui, desço. É fazer venda, é fazer comida, é casa, é roupa. Se
eu não quiser me acabar, eu tenho que esquecer a metade, e tenho que
fazer tudo. Enquanto mais você faz, mais você não presta.
(Dalva, 30/01/00).
TERCEIRO ATO
Desfecho familiar no presente
Mãe Dialunda começou a sentir o peso dos anos e o cansaço da vida. Não tinha mais a energia e o fôlego de antigamente. Até seus rígidos critérios normativos pareciam ter amolecido. Na casa, se multiplicaram os problemas,
principalmente a quantidade de bocas a sustentar. Ela procurava fugir de
tudo isso quando ia trabalhar no Abrigo, onde encontrava paz e sossego. Ao
voltar para casa, encontrava conflitos, cobranças, gritos e brigas de crianças
e adultos... interações criadas em parte por ela, mas com as quais não conseguia mais lidar como antigamente. Esse cansaço parecia estar sendo produzido pela fraqueza do corpo e por outros problemas crescentes de saúde:
problemas de coração, diabetes, além de complicações oculares, entre outros
que foram aparecendo com a idade. Mas seu desgaste parecia igualmente
consequência do acréscimo de problemas e tragédias familiares resultantes
de um grupo tão extenso, cujos membros, procurava por vezes acobertar. Na
visão da neta Célia, vizinha próxima dela:
C: A bagunça que é a vida de Vó agora não é nada do que era antes!
Ela gostava assim de [no] Natal, a família toda passar junto, nunca toda,
todos juntos, mas até minha mãe vinha sexta feira santa. Todos ficavam
juntos. Era uma alegria!
Agora todo mundo se separou, ninguém liga mais.
MG: E os filhos dela? Não apoiam ela hoje?
C: Os filhos de Vó são tudo... ninguém procurou ajudar ela. Todo
mundo procurou viver sua vida e esqueceu que ela existe. Só procurou fazer filho, jogou os filhos nas costas dela. Ele [ Juruna], mi-
a casa das mulheres 217
nha mãe e Carlão. Até minha sobrinha Priscila, tava morando aí.
Branca [a mãe de Priscila] a levou. Vó não queria deixar levar embora. Branca deixou bem tempo, depois pegou
(Célia, 26/01/99).
Depois do relatado por Célia, sua irmã Branca voltou a deixar Priscila
(bisneta de Dialunda) aos cuidados da avó/bisavó. Da última vez, a pequena
Priscila dormia no quarto de Dalva e seus dois filhos menores, os quatro
compartiam a mesma cama de casal. E, na visão do filho de criação sobre sua
mãe, a causa dos problemas estava relacionada com os netos que ela assumia
e tinha que cuidar:
C: Ela está super cansada [...] Porque lá em casa é o seguinte: não tem
respeito sobre ela. Apesar dela respeitar, amar todo mundo, mas
ninguém sabe gostar dela. Porque desde quando que não dão um sossego a ela... Nego pode até passar para mim: ‘ah, eu gosto’... Mas...pra
mim, não gosta. Pois minha mãe chega do trabalho cansada, é...
No outro dia, chega tarde, né, tem direito no outro dia de dormir. Que eu
mesmo sou homem, né? Quando chego de farra, qualquer coisa eu
quero dormir. Aí, principalmente ela, que na verdade, além de ser
mulher, e ela estar em certa idade. E eles abusam demais. Aqueles
meninos são muito danados, não respeitam ninguém.
MG: Quem são os que não a respeitam?
C: Os [filhos] de Dalva e os de Carlão, também, todos eles. Certo?
E vai mais confusão para a cabeça dela. Ela, às vezes, quer descansar, quer ficar em um lugar tranquila... e não pode. Que eles estão
procurando problema, brigas, eles mesmo brigam. Não quer fazer o
que eles tem direito [dever] deles fazer, e aí... o pequeno tá trazendo um
super problema para dentro de casa. É briga na rua! Não respeita os
mais velhos, vai [vem] queixa para dentro de casa. A escola mesmo,
a mãe esconde muito erro dele... [é] muito respondão... E tudo isso vai
pra cabeça dela.
A situação da vida [dela é] que... ela está cansada e não tem mais
força para trabalhar. [Só] Problemas. Dívida para pagar, sempre há uma
dívida para pagar [de netos, filhos]. Coisas para ela fazer. Então, ela não
descansa, não tem descanso para ela, ela não tem sossego.
(Carlinhos, filho de criação, 30/01/00).
218 maria gabriela hita
A sua casa mais parecia um campo de batalha onde se travava todo tipo
de guerras e disputas e nas quais ela sempre intercedeu.33 A tensão com a
nora pareceu se transfigurar e, aos poucos, ir fortalecendo a posição da nora
que, pela sua juventude, vitalidade e capacidade de trabalho passou, cada vez
mais, a substituir Mãe Dialunda na venda. Dialunda cada vez descia menos
ao Abrigo para fazer o que mais a alegrava: estar no meio das outras amigas
baianas. Nessa inversão de papéis, Mãe Dialunda se enfraquecia e sentia-se
humilhada, pois passou a depender do trabalho e do ganho de Dalva. Do
exercício do papel dominador parecia estar destinada a assumir maior dependência, imposta pela velhice, maior fraqueza e falta de saúde, porém o de
maior autoridade seguramente até o dia da sua morte. Seus netos achavam
que ela estava mais fraca e diferente e repetiam o que os médicos diagnosticavam: que se não se cuidasse, não duraria viva nem mais seis meses. Nas entrelinhas dos discursos de alguns integrantes deste grupo familiar, Dalva pareceria atuar estrategicamente no sentido de criar maior discórdia e divisões
no seio da família. E. ao que tudo indicava, poderia ser vitoriosa nos seus propósitos. Anteriormente, ela soubera aguentar, calada e pacientemente, todo
tipo de humilhações, sem reclamar ou romper com este modelo relacional,
que foi, até eficazmente, por ela introjetado, ela foi a mais apta – pelo capital
simbólico adquirido – na fase final do contato da pesquisa para seguir reproduzindo este sistema relacional. Como as netas criadas por Dialunda, Célia e
Branca, preferiram seguir as respectivas vidas fora deste grupo familiar, isto
ampliou, certamente as possibilidades de Dalva e seu fortalecimento.
Em 2003, havia claros indícios de que Mãe Dialunda estava sendo substituída por Dalva, que estava assumindo o sustento do grupo familiar. Dalva estava mais alegre, comunicativa, emagreceu mais de 20 kg, contava contente,
e estava usando dentadura postiça que lhe devolvera um belo sorriso. Descia
todos os dias para vender acarajé no lugar de Mãe Dialunda no Abrigo, e é
quem a acompanhava nas vendas de acarajé por encargos, para eventos ou
festas. O poder entre as duas mulheres estava agora mais equilibrado. Mãe
33
Curiosa é a letra da música (dos Racionais MCs) que os netos pequenos de Dialunda mais gostavam e escolheram cantar quando incitados a gravar o que quisessem:
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar! / Eu tô em cima, tô aqui, vamos dois esfatiar. / Eu sou
bem pior, do que você está vendo frente aqui. / Não tenho dô! É cem por cento, vendendo a
primeira faz PUM! A segunda faz TAAA! / Menino...eu vou na boca de fumo, eu vou na ponta de
faca, / Eu tenho uma missão, que eu não vou parar! / Meu estilo é pesado e vai ser pelo chão /
E minha palavra vale tiroteio: Muita curtição.
a casa das mulheres 219
Dialunda continuava sendo a chefe da casa e principal referência de autoridade familiar, mas a posição de Dalva não era mais de servidão como quando
a conheci, passando a opinar e participar mais nas minhas visitas à casa e
mostrando satisfação com o trabalho no Abrigo, que lhe devolveu a autoestima. Naquela época, Dalva não tinha lugar melhor para onde ir, apesar do
inferno que dizia ser sua vida; ficando na casa e nesta parentela, poderia ter,
acredito, maiores possibilidades de terminar ganhando o direito a seguir morando na casa de Mãe Dialunda (pelos seus filhos), como a herdar seus dotes
e o ponto de acarajé, o que, de alguma forma, já estava acontecendo e gerando desconforto em parte da parentela. Toda vez que passava pelo largo,
via Dalva vendendo acarajé no ponto que sempre foi de Mãe Dialunda.
Por mais que Mãe Dialunda tenha insistido em conjunturas anteriores
para que suas netas construíssem casas na laje – onde moravam Dalva e
Juruna, ou acima da deles – nenhuma delas aceitou a proposta. Naquela fase,
Dalva e Juruna, cada um de sua forma, pareciam resguardar com zelo, diferentes táticas e estratégias, o direito a esse pedaço de chão, que não pareciam
dispostos a compartilhar com outros dos atuais habitantes. É assim que,
neste caso, foi uma daquelas mulheres outsideres e externas, a nora, aquela
que me pareceu estar emergindo naquela fase como uma potencial herdeira
da posição ocupada por Mãe Dialunda, ou parte de sua herança, e não tanto
sua neta ou outro parente consanguíneo, como a própria matriarca parecia
desejar primordialmente. Talvez isto se deva em parte ao fato de que Mãe
Dialunda manteve sempre relação de maior proximidade e aliança com os
filhos homens do que com as filhas mulheres, o que, ora por competição, ora
por incompatibilidade de gênios, terminou por afastá-las. Apostou, então,
nas duas netas que criou, Célia e Branca, que apesar de serem por ela consideradas e ter boa relação com a avó, rejeitaram participar diretamente do
grupo doméstico quando tiveram oportunidade de escolher caminhos de
modo mais independente. Este fato parece ser outra peça importante que ia
permitindo o empoderamento de Dalva naqueles anos.
As relações de poder e luta de interesses no interior desta família eram
naquela época muito evidentes. No campo do poder, diz Bourdieu (1997),
se manifesta o espaço de relações de força entre diferentes tipos de capital
dos distintos participantes do campo. As estratégias dos agentes nas lutas,
as tomadas de posição dependem da posição que ocupam na estrutura do
campo, isto é, na distribuição do capital simbólico específico que, através da
220 maria gabriela hita
mediação das disposições dos seus habitus, leva-os a perpetuar ou subverter
as regras do jogo. Dalva é aquela que se submeteu e seguiu todas as regras de
Dialunda. Seus filhos e netos tenderam a se subverter e afastarem-se mais
da matriarca. Mas, as diferentes estratégias e posições ocupadas pelos dominantes e pretendentes, dirá Bourdieu, também dependem do estado da
problemática legítima, isto é, do espaço de possibilidades herdado de lutas
anteriores, o qual tende a definir o espaço de tomadas de posição possíveis,
orientando a busca de soluções e, em consequência, define a evolução do
jogo de forças. Dalva, ao longo dos últimos anos, aturou, cooperou e foi conquistando Mãe Dialunda, apreendendo e reproduzindo-lhe o modo de vida,
pelo que foi, legitimamente, ganhando o espaço que, em princípio, nem
mesmo a matriarca parecia disposta a outorgar-lhe.
Esta fase estruturalmente importante dentro do ciclo doméstico da Casa
de Dialunda pode ser descrita como a do início da transição e substituição
do papel e centralidade da matriarca e a redistribuição ou nova organização
doméstica das relações quando ela morrer e deixar de ser quem decide sobre
o grupo e a casa. Apesar de ser evidente a importância e centralidade neste
sistema relacional dos filhos e netos da matriarca, como ocupando posições
de maior destaque e tendendo a ser os mais considerados pela matriarca; o
fato da neta Célia, que estava sendo preparada para ser a herdeira legítima
da avó haver rejeitado participar mais diretamente deste modelo relacional
instituído por Dialunda e de toda esta parentela, é um elemento central para
compreender porque e como foi se dando a emergência e empoderamento de
Dalva, outra mulher, sem laços de sangue, mas que, além de nora, era fiel servidora, mão direita e sustentava a casa e venda, quando Dialunda não podia
mais trabalhar. Outro fator não menos importante desde a lógica deste sistema relacional, Dalva era a mãe e principal responsável dos netos pequenos
de Dialunda, a quem tanto amava e lamentava não poder vir a ver crescer.
Mas por volta de 2006, como três anos após fim da pesquisa, Dalva deixou
a casa para se unir a novo parceiro, com quem foi morar em outro lugar do
Nordeste. Os filhos mais novos a acompanharam. Ao visitá-la em fevereiro
de 2013, foi quando me contou que seu segundo filho, Alex, tinha se dedicado
ao tráfico de drogas, que estava fugido e morando com parceiros do tráfico
na rua e quando, há quase um mês, tinha sido assassinado. Notícia que todos
ocultavam de Mãe Dialunda devido à sua saúde. Dalva, que já não morava
na casa de Mãe Dialunda há uns 7 anos, mas a visitava com frequência, disse
a casa das mulheres 221
estar evitando fazê-lo para não ter que mentir e omitir informações sobre o
ocorrido com Alex. Ela contou-me com desenvoltura e detalhes sobre o sofrimento materno de haver perdido um filho para o tráfico de drogas. Em
2013, Dalva vivia da produção e venda de acarajé, agora em maior escala e de
modo profissionalizado. Ela produzia para uma empresa, com ajudantes de
cozinha contratados para ajudá-la, que recolhe seus produtos e distribui em
vários pontos da cidade. Este é um claro indicador de ter sido ela, no lugar
das netas de Dialunda, quem herdou os conhecimentos e estilo de vida da
matriarca, ao menos no que se refere à produção e venda de acarajé.
A filha mais velha de Dalva, Lila, continuou morando na casa da avó,
mas recentemente tinha ido morar com seu namorado, em casa de aluguel.
Juruna estava morando em casa de outra parceira, da qual estava se separando e indo morar mais perto de Mãe Dialunda, novamente. Célia tinha separado do marido, que se mudou para São Paulo, trabalhava como secretária
no Bom Preço, e vendia acarajé pequeno, alguns dos sábados, na esquina de
sua rua com a de Mãe Dialunda para complementar a sua renda, desde que
tinha separado do marido e vivia com dois de seus três filhos. Seu Filho Érico
estudava para fazer o vestibular em jornalismo e o outro estava trabalhando
no sul do Brasil. Branca, a irmã de Célia, já tinha quatro filhos e estava morando de novo com Dialunda, no Nordeste de Amaralina, como também sua
mãe Nancy, com seu parceiro Valdo e outra filha, que tinham deixado a ilha
de Itaparica e se instalado numa nova casa no NE.
O sistema relacional de matriarcalidade aqui descrito adotará outros
modos diferentes de se manifestar no grupo de parentesco de D. Cida, analiticamente e que serão descritos em maior detalhe pela maior diversidade e
qualidade de informações que foi possível coletar devido ao maior tempo de
contatos com a outra saga, havendo, entretanto, muitos elementos compartilhados em ambas parentelas, sobre os que vou erguendo e fundamentando
minha definição do que seja ser matriarca neste contexto e que melhor iluminam o modo de relações e de autoridade feminina centrada na figura da
mãe-avó-bisa e que a defino como matriarcalidade. Na outra família, a trama
principal é descrita a partir da relação de rivalidade entre duas irmãs, pela casa
e afeto da matriarca.
222 maria gabriela hita
m
Capítulo V
“só eu que sou avó,
mãe e pai”
um outro modo de ser matriarca na casa
de D. Cida parteira
A vida doméstica em setores populares e o sistema relacional que está sendo
descrito se produzem e se expressam na linguagem das redes de apoio entre
seus distintos integrantes. Essas redes sociais são articuladas e manifestam as
posições que cada um ocupa na família e nas casas de uma dada configuração,
a qual ocorre em territórios histórica e socialmente construídos. As relações de
reciprocidade e hierarquia (senioridade) que se estabelecem nas distintas configurações de casas matriarcais, compreensível dentro do paradigma da dádiva
– como entendido por Caillé (1998) – baseiam-se no suposto de que a condição
humana se origina de um estado de dívida. O homem encontra-se na obrigação de restituir o que deve às pessoas com as quais interage – Deus, pais, família, sociedade – em especial, com aquela que lhe deu a vida: a mulher, a mãe.
Na lógica deste sistema de trocas, e neste modelo matriarcal em particular, é
dessa dívida originária, como se verá a seguir, que se funda a exigência de dar
e retribuir em um movimento circular eterno de dom-contra-dom. Negar-se a
participar deste circuito de reciprocidade obrigatória no seio familiar será visto
como ingratidão ou renúncia ao desejo de formar parte da rede; como ato de
desrespeito e negação de retribuição à figura da mãe. Na moralidade popular
do contexto estudado, o ato é considerado uma das piores faltas morais que se
pode cometer. Em perspectiva complementar Lima (2003, p.79) citando o sociólogo iorubá Fadipe, vê nestas culturas que o princípio do parentesco é complementado pelo da senioridade. Enquanto o parentesco garante cooperação,
lealdade, ajuda mútua e tolerância, a senioridade garante obediência à autoridade, que reforça a da liderança e a do parentesco. Assim, uma participação ativa na configuração de parentesco a que se pertence exige devida consideração
pelo grupo e suas normas. Considerar denota que se reconhece ter recebido
benesses e entrar ativamente no circuito de reprodução simbólica do grupo de
parentesco e da sociedade, mesmo quando as regras desse sistema hierárquico
produzem e legitimam discriminações e desigualdades, por vezes, desconsideradas pelos que as experimentam como injustas.
Para a matriz holista e hierárquica matriarcal, a diferenciação de posições,
direitos e deveres dos respectivos membros é necessária. O modo desta matriz operar não é excludente: é integrador, ao trazer para o seio da casa o outro
a casa das mulheres 225
– o diferente, o filho de terceiros – fazendo-o participar nesta comunidade.
Através do princípio da consideração em bairros populares e neste modelo matriarcal em particular, como já dito, se une o próprio ao próprio ou o semelhante ao semelhante – parentes de sangue – e, no caso de parentes por consideração, transforma o outro, em próprio. Deste modo também, associado ao
princípio da hierarquia, são estabelecidas posições e diferenças no interior da
rede social. O princípio de consideração é, por tudo isso, princípio de reconhecimento, seleção e de parentesco, pois constrói e delimita as fronteiras da proximidade social, as da interioridade e da exterioridade de cada rede de parentesco ou família. Ele constrói o idêntico e o diferente; o próximo e o distante,
operando como princípio de legitimação das relações com os mais próximos.
Por isso, a consideração estrutura o jogo da sociabilidade, estabelecendo critérios de avaliação e de escolha de cônjuges, amigos, compadres, definindo o
próprio destino e orientação dessas relações. (MARCELIN, 1996)
A eficácia da reciprocidade das trocas para sobreviver na pobreza – ou a
arte da viração, na denominação de Telles (2011) – vista como meio complementar de enfrentar a escassez de recursos é amplamente tematizado
em campo de estudos sobre o assunto. Lógica subjacente deste sistema é a
crença de que, quanto mais se oferta a outrem, mais chances há de receber
em troca. Esta é uma regra implícita da lógica da reciprocidade que se mostra
muito eficaz em contextos de pobreza. Nas regras de obrigações mútuas se
expressam sentimentos de generosidade e egoísmo simultaneamente, em
que é comum desenvolver-se laços de alta competitividade e agressividade,
solidariedade e amizade. Um fator que se destaca pela capacidade de diminuir a solidariedade em uma rede de parentesco como a matriarcal é o da
mobilidade social. Existe ameaça das pessoas que conseguem subir na hierarquia socioeconômica desdenharem, se afastarem ou esquecerem os parentes
mais pobres.1 Existem sempre aqueles que, ressaltando papéis em certos
projetos ou realizações familiares, desconhecem a participação de outros,
afastando-se da rede com discursos que sobrevalorizam sua generosidade e
sacrifícios sofridos ou não retribuídos, buscando se diferenciar do resto pelo
destaque exacerbado de lealdade e superioridade em relação aos outros. Este
era o caso de Dina, filha de D. Cida, e de parentes por parte de pai das filhas
de D. Cida, como será demonstrado ao longo deste e do seguinte capítulo.
1
Ver em Ivo Santana (2009) uma sofisticada e instigante análise sobre o efeito da mobilidade social
nas relações e vida pessoal de indivíduos de classes medias negras em processo de ascensão social.
226 maria gabriela hita
Outro elemento importante deste sistema de relacionalidade no seio popular é o do tema do cuidado com as crianças. Esse é outro dos domínios que
aparece de modo mais recorrente nas narrativas sobre relações de reciprocidade, e portanto precisa ser levado em conta no estudo das redes de parentesco e vizinhança. Pedir a um vizinho ou parente para dar uma olhada na
casa e filhos enquanto se está ausente, ou deixá-los em suas casas para tomar
conta é um direito que têm todos os participantes de uma dada rede social.
Do lado de quem é demandado, poder oferecer esse serviço de apoio tende
a ser visto, na maioria das vezes, como um dever e de bom tom aceitar olhar
essas crianças. No caso de vizinhos, esse serviço é antes opcional do que um
dever. De acordo com o código de condutas desta ideologia familiar, onde a
oferta de boa parte deste serviço é traduzida em termos de direitos e obrigações, o grau de obrigatoriedade aumenta em relação ao aumento da proximidade e relações de parentesco do demandante e o que oferecerá o serviço.
Nesse contexto de estudo, as crianças são muito valorizadas e desejadas,
e se pode ter direitos sobre elas na rede de parentesco em que nascem. As
responsabilidades paternas e maternas são compartilhadas com outros e
não são exclusivas dos seus genitores. É muito comum a responsabilidade
ser transferida a outros indivíduos. Neste contexto, o critério para definir o
cuidado e criação das crianças depende menos da vontade ou possibilidades
reais dos seus pais biológicos do que do ciclo vital das suas residências, do tamanho das moradias, emprego, entre outros fatores. Nesta situação, o princípio da consideração – associado a maioria das vezes ao de sangue – prevalece, pois é comum se criar crianças de parentes pelos quais se tem especial
consideração. Com isto, os laços de obrigações, alianças e dependências mútuas ao interior das redes sociais de relações se estreitam; as obrigações de
reciprocidade futura se garantem em certa medida. Entretanto, criar filhos
de outros não é uma tarefa para todos, é preciso se ter aptidão e recursos para
exercer essa função. Nem todos os membros da família estão sempre aptos a
assumir esta educação e nutrição das crianças, tarefa em geral assumida por
mulheres da rede de parentesco ou vizinhança em fase de ciclo vital mais maduro, com casa, disposição e condições econômicas para fazê-lo. É o caso das
duas bisavós D. Cida e Mãe Dialunda, que criaram filhos, netos e bisnetos,
em fases mais avançadas das respectivas vidas.
Para a moralidade popular, o direito à criança pode ser maior para quem a
cria e nutre do que para quem a traz ao mundo, ao contrário do que costuma
a casa das mulheres 227
muitas vezes ser sancionado pelas leis do Estado. Quem sustenta e cria a criança
cumpre uma função materna e tem, por conseguinte, direito ao status de mãe
(ou pai), mas nunca se a confunde com quem a pariu. De forma geral, os distintos pais e mães destas crianças em circulação (genitores e de criação) não
chegam a lutar por seus filhos, ainda que tensões e conflitos sobre este domínio
sempre existam. O que vigora é uma ideia de maternidade social que opera simultaneamente com a biológica, podendo se expressar, ser filho de mais de
uma mãe e não apenas uma (a biológica, a de criação, a de consideração, espiritual, etc.). Coisa similar ocorre com os pais, ainda que em uma posição de
menor força do que com a mãe. Isto ocorre pelo papel menos central que exerce
a figura paterna neste sistema. Nele, onde as crianças circulam (a depender da
conjuntura) por distintas casas da sua rede, o contato dessas crianças com respectivos genitores (mãe e pai) não se perde, em muitos casos são mantidos e
atualizados em distintos momentos do ciclo vital da pessoa ou rede de parentesco da qual participa.
Se o peso da maternidade social parece prevalecer, ou ao menos operar simultaneamente ao da maternidade biológica, pode-se deduzir que em uma
ética de maternidade em setores populares como o estudado, a socialização
das crianças é compartilhada e que seja ela uma responsabilidade mais de algumas mulheres e suas redes do que dos seus genitores. A mulher que cria
seus filhos e os de outros é o protótipo da Mãe, uma mãe-de-todos. Este é
um elemento presente e central no sistema que denomino de matriarcalidade; uma maternidade social exercida por uma rede, ainda que sob a vigilância e responsabilidade de mulheres aptas para essa função. Neste sistema
não basta a ideia de maternidade como cuidado, passa também pela ideia da
mãe como provedora dos seus filhos e de toda a rede que a matriarca ampara. Ela é a mulher forte e apta a responder às necessidades básicas dos seus
parentes, aquela que oferece teto, comida, roupa e proteção para a mínima
sobrevivência dos seus.
Por isso outro aspecto relevante sobre o parentesco relacionado à circulação de seus membros entre distintas unidades é que a responsabilidade de
prover comida, cuidados, roupas, morada e a socialização de crianças pode se
espalhar e distribuir por muitas casas da rede de parentesco. Como as fronteiras entre o que seja uma casa ou sua rede são muito difusas, o melhor
é trabalhar com ambos os níveis de análise. Uma pessoa pode dormir em
uma casa, alimentar-se em outra, guardar suas roupas ou objetos pessoais
228 maria gabriela hita
em uma terceira; ou viver em uma casa uns tempos e noutra(s) em outros,
circulando entre distintas unidades. A circulação das pessoas ao interior das
casas é constante e outro dos elemento centrais que descrevo densamente
na etnografia sobre este sistema relacional, no qual a configuração e composição doméstica dos lares tende a oscilar constantemente como resultado
dessa grande mobilidade dos seus componentes.
Por tudo isto, a noção de rede de parentesco associada à de família permite observar melhor tanto a trajetória grupal, quanto a individual dos membros de certa configuração de casas. Este padrão de residência e a cooperação
na organização familiar das pessoas envolvidas em uma rede de parentesco,
com seus conflitos, alianças, trocas e reciprocidades são indicativo da constância, estabilidade e poder coletivo que exerce esse tipo de configurações de
casas nas suas trajetórias. Por isso é que a ideia de rede de parentesco, tratada
para além dos limites de uma única casa, é um instrumento heurístico bem
mais poderoso que apenas o de se pensar ou falar de uma única família ou
casa, dado que ela integra e foca o eixo da análise em um conjunto de casas
que participam de sua configuração e nas relações entre as distintas casas
que conformam a rede.
Contudo, apesar de se tratar de um modo de organização doméstica matrifocal e mais especificamente neste caso, também matriarcal, não significa
por isso que haja ausência de homens, pais ou que predomine unicamente
a descendência matrilineal. Também nele opera a bilateralidade do parentesco, a qual exerce um papel importante como pode ser observado. Neste
contexto, por exemplo, como já apresentado, o homem que registra oficialmente uma criança como seu/sua filho/a está exercendo a paternidade de
modo responsável, mesmo quando os contatos com a criança possam vir a
ser quase nulos no futuro e nenhuma ajuda material seja oferecida à mãe
dessa criança, com a qual poderá nunca mais ter relações. O fato de apenas
reconhecer e registrar civilmente uma criança é sinal de responsabilidade.
O contato de pais e filhos poderá vir a ser reativado em qualquer momento
das respectivas trajetórias a depender de cada conjuntura e caso específico,
no futuro. É bastante comum os filhos visitarem ou viverem por temporadas em novas casas de seus pais ou avós do lado paterno, mesmo quando
há maior densidade de vínculos e de modo mais duradouro com o parentesco das redes por parte materna, do que com as paternas. Ao registrar e dar
seu nome a uma criança, o homem integra esta criança na própria rede de
a casa das mulheres 229
parentesco, onde outras mulheres (mães, avós, tias) poderão olhar por ela e
protegê-la no seu lugar, em determinadas conjunturas. Neste contexto, mães
(e pais) de filhos homens ressentem-se quando seus filhos não têm coragem
de assumir a paternidade publicamente, negando-se a registrar um filho do
próprio sangue, indicando a falta de moral ou fragilidade deste filho.
Neste capítulo, ilustrarei boa parte dos princípios matriarcais identificados em um caso bem distinto ao do capítulo anterior, no qual a matriarcalidade de D. Cida se assenta menos na sua proximidade real com valores
ou práticas de Candomblé, e muito mais no tipo de organização familiar doméstica descrita – a qual, esta sim, apresenta analogias com as de uma cosmovisão afrodescendente e do Candomblé – e na qual se destacam relações
similares de parentesco, afinidade, consanguinidade, consideração e onde o
papel focal de D. Cida tem muito em comum com os da matriarca da outra
rede, Mãe Dialunda. Mesmo quando o modo de exercer a matriarcalidade e
autoridade desta senhora se assente em dimensões bem diferentes do caso
descrito no capítulo anterior.
APRESENTAÇÃO DO CENÁRIO
p
Esta rede de parentesco estava centrada na figura de D. Cida, uma velha parteira, muito querida na sua vizinhança, que trouxera ao mundo muitos dos
jovens que por aquelas ruas circulavam. Ela sempre trabalhou para o sustento do seu grupo familiar, junto aos dois maridos que teve, e após a morte do
segundo, ergueu-se como a chefe desta família e Casa, criando e mantendo filhos, netos e bisnetos até o dia em que faleceu. Seu grupo familiar, um
arranjo extenso quando do meu primeiro contato em 1992, foi se transformando e adotando nova configuração ao longo dos anos. Ele se ampliou e se
dividiu em novos arranjos domésticos, sempre interligados, convivendo todos, no mesmo espaço, originalmente uma única casa, a qual foi transformada com o passar dos anos em quatro unidades semi-independentes. Foi esse
processo de modificações espaciais ocorrendo de forma paralela à evolução e
230 maria gabriela hita
à dinâmica familiar, o que interessou estudar e descrever na etnografia familiar de ambos os grupos ao longo dos 10 anos em que estivemos em contato,
destacando as especificidades de cada caso, tema ao qual voltarei no próximo
capítulo. As idas e vindas de netos e filhos, a circulação de pessoas e reconfigurações espaciais nesta rede de parentesco é muito similar às já descritas
na família anterior.
Quando entrei em contato com esta família pela primeira vez, em 1992,
o domicílio de D. Cida – então uma grande família extensa – abrigava sete
adultos e vinte crianças/adolescentes. Eram eles, D. Cida, então com 75 anos;
Aurélio, o filho deficiente mental; dois filhos de Merina (filha de criação);
Dina (filha caçula de seu Diógenes e D.Cida) e seus quatro filhos; Neneca
(filha viúva e mais velha do casal, que voltou a se unir) com seus sete filhos
e seu novo companheiro (Gilson). Também faziam parte deste grupo familiar outros 7 netos e um bisneto: o neto mais velho de D. Cida criado por ela
desde o nascimento (Téo) – e primogênito de sua filha Lena – e seu respectivo filho (o bisneto de D. Cida, Willy), quem foi incialmente criado por sua
avó Lena (filha primogênita de D. Cida do seu primeiro matrimônio) até que
ela foi assassinada, em 1990. Foi então quando Willy (bisneto) e os outros
cinco filhos de Lena (netos) passaram a ser criados por D. Cida.
O atual companheiro de Dina e pai de seus quatro filhos – Doca – aparecia
no domicílio eventualmente pois residia com seus respectivos pais. Doca era
chapista, mas estava desempregado a maior parte do tempo, quando mais
jovem e filhos iam nascendo. Para identificar cada um dos membros deste
grupo familiar, suas idades e posições ocupadas nesta rede de parentesco ver
o genograma familiar (Figura 5 no Apêndice A), formulado depois do ano
2000, de modo a incluir novos bisnetos da matriarca que foram nascendo.
Na narrativa a seguir, D. Cida contava quantas crianças moraram com ela por
volta de meados dos anos 1990:
DC: Aí ficou a casa cheia que parei nim, nim vinte, vinte e duas
criança que eu tinha aqui dentro de casa, de menor. Eu dava comida
a essas vinte e uma criança. Hoje em dia já tão mais... uns já tão sobre si, outros tão coisa, mas tá tudo aqui comigo.
MG: E o que a senhora fazia para se sustentar?
DC: Sempre trabalhei [de parteira], aí me aposentei, sou aposentada né?
a casa das mulheres 231
MG: E a Sra. ainda continua fazendo partos?
DC: Inda tô velhinha assim, mas inda faço, ainda, que meu bisneto
quem pegou, foi eu.
MG: Você fez o parto dele [Willy]?
DC: Meu bisneto? Foi. Peguei um bisneto. E se chegar assim numa hora,
tiver uma [grávida] precisando mermo, que eu vê que dá pá fazer, eu
faço. Mas só que eu não faço mais. Já pedi minha aposentadoria, tô
aposentada.
MG: E porque assim D. Cida?
DC: Porque... perdendo as força né? Porque minha idade não dá
mais pra fazer certas coisa.
(D. Cida, 22/01/1997).
D. Cida vivia em 1992 de três aposentadorias: a do marido, falecido em
1985 (que era trabalhador rural e vigilante noturno em prédios da Pituba);
a dela própria, como parteira e agente de saúde e a do seu filho Aurélio,
único filho homem dela e seu Diógenes, que estava encostado como deficiente no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e também recebia
uma pensão. Ela agradecia a previsão que seu Diógenes teve quando decidiu
passar a recolher sistematicamente a contribuição do INSS deste filho, durante muitos anos de sua vida, e antes dele poder ser encostado por deficiência mental e, posteriormente vir a falecer.
Neneca recebia uma aposentadoria como viúva do marido falecido, que
teve ofício de guincheiro mecânico, mas foi registrado na carteira de trabalho como servente na empresa onde trabalhava. A maior parte da sua vida,
Neneca passou cuidando da casa e dos filhos. E o novo companheiro de
Neneca a partir de 1988, Gilson, trabalhava como autônomo em serviços de
pedreiro ou fazia biscates, quando desempregado.
Dina, a filha caçula de D. Cida, sempre trabalhou, mesmo depois do nascimento de seus filhos, com faxinas, obras de construção civil e, na fase final
da pesquisa, em marcenaria (polimento de móveis). Merina, a filha de criação
de Seu Diógenes e D. Cida que em 1992 estava morando em São Paulo, pouco
conviveu nesta casa depois de ter seus filhos. Ela trabalhava como doméstica
em casas de família e trabalhou também em alguns restaurantes. Lena, fale232 maria gabriela hita
cida em 1990 e primogênita de D. Cida, desde bem cedo foi morar longe da
casa, nas casas das famílias onde trabalhava, e contam que viajou bastante
pelo Brasil como dama de companhia ou empregada, que foi também cobradora de ônibus e fazia os partos junto com a mãe. E que, dentre todos os filhos, era a que mais gostava das práticas do Candomblé, como seu Diógenes
(que era o padrasto dela).
O Candomblé neste grupo não aparece operando de modo tão explicito.
No caso de D. Cida, ela atribuía essa relação ao mundo do seu finado marido,
quando era vivo e chefe da casa. Não é do Candomblé que D. Cida extrai a sua
fonte de autoridade e força. Contudo, mesmo quando na fase final da pesquisa, ela e sua filha Neneca optam por se tornar evangélicas, as metáforas,
imagens, valores e simbologia que usavam para se expressar e posicionar
no mundo, especialmente as das imaginativas e ricas narrativas de Neneca,
tinham fortes analogias e sentidos próximos aos desta cosmovisão de tradições de herança afro-brasileira. O sincretismo religioso e popular destas
duas mulheres era explícito no modo como combinavam elementos de todos
os modelos religiosos aos quais estiveram expostas em suas vidas (catolicismo, espiritismo, candomblé e pentecostalismo), e redes das que me pareceu se aproximarem mais por fins pragmáticos, na busca de obter alguma
nova vantagem ou acesso a algum bem material. Mesmo sem ser a presença
do Candomblé na vida de D. Cida tão importante como no caso da outra matriarca, Mãe Dialunda é aqui, igualmente, uma peça chave, pelo papel que
a simbologia e valores associados a esta tradição de herança afro-brasileira
exerce sobre este tipo de organização doméstica que estou descrevendo, com
a qual é possível estabelecer muitas analogias que o modelo de vida de santo
tem com os princípios que operam na forma de organização doméstica matriarcal, independente da autodefinição religiosa dessas matriarcas.
Dentre pessoas de sua vizinhança, dizia D. Cida, predominavam antes
os adeptos da Igreja Católica e do Candomblé que, nos anos mais recentes,
passaram a ser mais cooptados pelo grande aumento de grupos evangélicos
e seitas pentecostais. Neneca considerava os crentes pouco sérios, como
gente que se faz passar por regenerada, porque se cansou de pecar, dizia em
fase de maior aproximação com o Candomblé. Mas, não tardou muito para
que tanto D. Cida como Neneca fossem totalmente cooptadas por discursos
evangélicos e passassem a frequentar com assiduidade as sessões no bairro.
Nos finais de semana, antes de morrer, D. Cida costumava se dirigir para
a casa das mulheres 233
a Igreja Universal do Reino de Deus, localizada em um bairro próximo, a
Pituba, onde deixava sempre contribuição em dinheiro. O transporte dela
e da família era de responsabilidade da igreja que designava um carro para
levar idosos e pessoas mais respeitadas do bairro até o templo.
D. Cida, diferente de Mãe Dialunda, teve mais filhas mulheres, pois seu
único filho homem, Aurélio, que para a tristeza de todos era deficiente
mental, morreu jovem, aos 31 anos, em 1994. O sentimento de impotência de
Neneca manifestado pela inexistência na família de um irmão homem, e que
fosse saudável, fica claramente evidenciada no trecho subsequente. Ao que
parece, esta posição não resulta apenas da inimizade com as irmãs mulheres,
mas também de certa centralidade que a figura do filho homem desempenha
neste tipo de arranjo doméstico.
N: Eu não tive infância. Não sei nem o que é isso... Mas minha convivência com meu pai e minha mãe foi muito boa... Nunca me faltou
nada, graças a Deus. Só me faltou, sabe o quê? Mais irmão.
MG: Mais irmão?
N: É, mais irmão homem. Porque eu só tive um... e... eu queria ter mais
irmão homem, eu queria me sentir mais...
MG: Porque? Como assim?
N: Eu acho que a pessoa/ numa família com filho homem... a pessoa
se sente mais protegida. E eu não tive esse irmão. E o irmão que eu tive
era doente, entendeu?
Irmã eu tenho um bocado... Mas... é mesmo que não ter. Todas elas.
(Neneca, 23/02/99).
A posição ocupada por um filho homem na estrutura familiar matriarcal
estudada se destaca; os filhos têm maiores privilégios em relação às posições
ocupadas pelas mulheres. Isto porque operam simultaneamente o princípio
da consanguinidade da família, um dos alicerces deste modelo, associado
ao da dominância masculina (no sentido de masculinidade hegemônica)2,
2
O termo masculinidade hegemônica é usado por Miguel Vale de Almeida (1995) em seu estudo
sobre homens em Portugal. Ele define o termo como o modelo central que opera pela negação
das outras masculinidades subordinadas ou alternativas, e que é o modelo da dominação mas-
234 maria gabriela hita
em âmbito social mais amplo em que estas famílias estão inseridas. O filho,
ainda que simbolicamente e não necessariamente de modo pragmático, é
o que representa e vincula este modelo centrado em força eminentemente
feminina, a da mãe, ao modelo social da ideologia hegemônica no qual o
homem tem mais força e poder social. Como homem que é para a sociedade
e como filho/ irmão/ tio/ primo (consanguíneo) para o modelo matriarcal, os
filhos adultos da matriarca, principalmente, são nos casos estudados, os que
exercem poder articulador e intermediário entre as relações que o mundo
da família estabelece com a sociedade mais ampla. O filho homem, por isso,
ocupa uma posição de destaque e central na díade mãe-filho. Na falta deles,
o papel também pode ser ocupado por um neto adulto, um tio, etc. Essa
autoridade do parente consanguíneo é amplamente documentada pela antropologia em grupos matrilineares ou identificada como aquela posição
ocupada pelo tio – irmão da mãe – em grupos de parentesco africanos matrilineais (COLLIER; YANAGISAKO, 1987; FONSECA, 1995, 2000; RADCLIFFE
BROWN, 1973; STRATHERN, 1986, 1995). Por isso, em homens consanguíneos adultos recai uma autoridade que é necessária para garantir a proteção
do grupo para fora, para a rua, para a sociedade. A ausência do filho homem
na visão de Neneca por isso, era uma calamidade do destino. Neste sistema
matriarcal, os papéis de esposo e pai, que obviamente existem, não são centrais, nem suficientemente valorizados como o são em um modelo de família nuclear. Os homens com laços de afinidade tendem a circular, abandonar casas com maior frequência, por ser estes laços mais frágeis. O laço de
sangue, ao contrário, é o que perdura e parece ser indestrutível. Dos filhos,
pode partir e geralmente se espera uma eterna reciprocidade.
No arranjo matriarcal, o papel de pai, de companheiro ou marido – posição
que pode ser exercida em sentido de subordinação ao da matriarca ou chefe
do arranjo extenso – é menos operante do que em outros sistemas de parentesco e sempre estará subordinado ao poder dessa matriarca, e que na definição de chefia feminina usada por Chant (1997), não tem companheiro nesse
momento da vida. Por isso, a autoridade masculina neste tipo de organização
doméstica é geralmente desempenhada por um homem consanguíneo (filho,
irmão, tios), a quem a matriarca delega poder, quando preciso. Relações de afinidade têm menor peso e força do que as de consanguinidade neste sistema.
culina que inclui a heterossexualidade compulsiva [busca de várias relações sexuais com várias
mulheres] e reprodutiva.
a casa das mulheres 235
Por isso um irmão ou tio pode ter maior autoridade sobre os sobrinhos que o
próprio pai da criança. E, como o princípio de consideração pode atuar em direção contrária à esperada, poderá igualmente vir a fortalecer mais a posição
de um membro que tem laços de afinidade (casado com alguma das filhas do
domicílio) do que, por exemplo, um homem consanguíneo, a depender das
circunstancias e relações específicas que tem lugar em cada grupo doméstico.
Esta foi a situação no caso do genro de D. Cida, seu Léo, marido de Neneca,
quando ele era ainda vivo, que era considerado pelos sogros como um filho,
possuía, inclusive, força que o capacitava para o trabalho que o filho doente
não dispunha. Apesar do seu Diógenes ser o chefe da casa e família, quando
era vivo, há vários indícios de que a autoridade entre ele e D. Cida era bastante compartilhada, assim como de que ela sempre trabalhou tanto quanto
ele para sustentar esta família. Mas, devido a tais declarações, para efeito dos
estudos e reflexões elencadas, considerei que o grupo se transforma em um
arranjo matriarcal apenas a partir da viuvez de D. Cida. Outro elemento diferenciador desta rede de parentesco da anterior foi a presença de estratégias
de ascensão ou mobilidade social que envolviam certas mulheres. Algumas
delas buscaram investir na mobilidade social através de bons casamentos ou
uniões com homens provedores, e que se tornaram donas de casa, sem trabalharem para o sustento do lar, se afastando em parte do sistema de valores e
vida matriarcal. Esse foi o caso especialmente de Neneca, e da filha Lia, como
se verá adiante e talvez o de Dina, depois de ter estabilizado sua situação. Um
terceiro elemento diferenciador em relação à casa de Mãe Dialunda, é que
neste grupo familiar, as relações de conflito e alianças se concentraram nas
figuras de mulheres consanguíneas (porque havia mais), e entre duas irmãs de
sangue, Neneca e Dina, que viveram na mesma casa em uma eterna disputa
por conquistar o amor e a consideração do pai e da mãe e não entre nora e
sogra. Seu Diógenes, inicialmente, e D. Cida depois, donos da casa e centro
do poder doméstico, distribuíram favores e pedaços do terreno da casa entre
suas filhas e netas, especialmente entre as prediletas.
D. Cida e seu Diógenes gozavam de certo status e prestígio na comunidade do Nordeste onde viveram desde que o lugar começou a ser ocupado.
Formavam uma das famílias mais antigas e bem estabelecidas da região.
Foram capazes de criar condições para estabelecer o recurso central para a
reprodução e o desenvolvimento desta parentela através da posse da casa,
a qual seria depois disputada pelos herdeiros. Também tiveram outros ter-
236 maria gabriela hita
renos que as filhas esperavam algum dia poder herdar, entretanto os perderam gradativamente. D. Cida trabalhou sempre como parteira, junto a
hospitais da cidade e, durante certa fase, recebia crianças da vizinhança para
cuidar em casa que funcionava como um tipo de creche comunitária, inclusive recebia crianças de vizinhos que nada podiam lhe pagar. Seu Diógenes,
por sua vez, trabalhava como vigia noturno em prédios da Pituba (ou outros
bairros nobres da cidade), e complementava a renda com biscates, e algum
dinheiro extra que juntava com trabalhos de santo para fregueses do terreiro
de Candomblé onde frequentava. As filhas contam que era filho de santo e
jogava búzios, quando consultado. Ele foi iniciado como filho de Santo (filho
de Xangô). Além disso, garantia ainda alguma renda por meio do pequeno
comércio de bebidas e alimentos localizado defronte à casa da família que
era gerenciada por D. Cida e filhas.
Relatam que conseguiram adquirir vários terrenos e casas no Nordeste (provavelmente pela possibilidade de invasão de terrenos vazio) e, segundo as filhas, também tiveram terrenos na Ilha de Itaparica. Entretanto, por volta de
1985, antes dele morrer, nada restou, ficaram apenas com a casa onde moravam. Criar filhos alheios (como a filha de criação Merina) é outro dos sinais do prestígio que tiveram, indicador da possibilidade desta família poder
arcar com recursos materiais necessários para tanto. Nesta família, como na
de Dialunda, a filha de criação dispunha de mais deveres que as outras e sofreu
maior discriminação, sem direito a herdar um espaço da casa enquanto o casal
chefe estava vivo. D. Cida contava sobre aquela fase de maior auge da Casa:
Ent: D. Cida, as suas filhas lhe ajudavam com as tarefas da casa nessa
época?
D.C: Elas num tinham tarefas. Não! A tarefa toda vida foi minha.
Ent: Porque não, D. Cida?
D.C: Não... não, porque tinha empregada... naquela época eu tinha
quem fizesse.
Ent: A Sra pagava uma pessoa para lhe ajudar?
D.C: É, eu já tive... num tá vendo eu lhe dizer que eu tomava conta de
criança porque tinha condição de dar, dar o amor? Depois foi que eu caí
a casa das mulheres 237
no fracasso, caí no fracasso. E tô no fracasso ainda, né? Que hoje em dia
eu tô precisando de quem me dê. Mas já tive pra dar, eu já tive pra dar.
(D. Cida, 18/09/1992).
Quando seu Diógenes e o marido de Neneca morreram em 1985-86 e os
5 filhos de Lena – os que ela passou a criar – ficaram órfãos e ao encargo de
D. Cida em 1990, as dificuldades para a sobrevivência de todos começaram
a se acumular. D. Cida não admitia pedir ajuda aos vizinhos, preferia, antes,
ativar suas redes no mundo dos brancos com os quais se relacionou profissionalmente e desenvolveu laços de amizade: o pessoal do centro de saúde,
alguns médicos e políticos. Por ocasião da morte da filha Lena, recorreu a
um político para fazer o enterro. Para que essa mesma filha obtivesse do pai
de algumas de suas crianças uma pensão,3 recorreram ao advogado indicado
por conhecidos de D. Cida. O filho deficiente mental, Aurélio, foi encostado
pelo INSS orientado por um médico particular; além disso, conseguia empregos para alguns dos netos também com contatos com políticos e médicos.
Mesmo aposentada, D. Cida continuou sendo procurada e consultada pela
comunidade em diversos momentos. Sentia orgulho de poder ajudar os outros, outorgando conselhos ou oferta de tratamentos terapêuticos, operando
como referência importante para a vizinhança.
Mãinha não gosta [de pedir ajuda]. É bem capaz dela morrer se ela souber que... é bem capaz dela morrer. A gente vende as coisa, se tiver alguma coisa, né, se for alguma coisa no valor de trinta mil a gente vende até
por cinco pá num faltar.
(Neneca, 18/03/1992).
Pelo que pode ser observado neste outro grupo de parentesco, diferente
do anterior, neste as mulheres sempre buscaram um tipo de organização familiar em que os homens – parceiros – pudessem desempenhar um papel
normativamente mais desejado pela maioria de seus integrantes. Mas estes
projetos fracassaram em diferentes momentos chaves da história da família
por morte ou incapacidade de parte dos homens de desempenhar a autoridade desejadas, situação de certa fragilidade ou ausência da presença masculina que tem muito a ver com estruturas matrifocais devido aos laços
3
Sobre o qual havia a suspeitas de ser o assassino de Lena, como vingança desta ação judicial, mas
nunca foi confirmado.
238 maria gabriela hita
contínuos com as casas das mães. D. Cida parece ter se tornado matriarca
especialmente por ter ficado viúva.
Em 1992, D. Cida acordava diariamente às 5h da manhã, se ocupava do café
das crianças e mandava dez delas para a escola; preparava o almoço, lavava a
roupa da casa, arrumava a casa, com a ajuda de Dina, quando Dina não estava
trabalhando. Ao meio dia, D. Cida servia o almoço, descansava, terminava de
lavar a roupa, costurava um pouco para a família. À noite, servia o café com
pão, colocava os netos para dormir e assistia TV. Ela descrevia essa rotina:
D.C: Eu boto o feijão no fogo, cunzinho arroz e boto um pouquinho de
carne dento. Mei-dia é feijão com arroz e farinha, bebe água, pronto.
Feijão com arroz puro. Quando tem carne eles nem ligam. Começa onze
e meia, começo dar comida onze e meia, começam a comer onze e meia,
o último que vem comer é três hora. Mas tudo tem que ser dividido por
minhas mão, porque não vai deixar ninguém dividir. Senão... os menino
se esquece e come duas, três vezes o mermo.
(D. Cida, 18/03/1992).
N: [À noite] São dois, dois cruzado de pão... É meio quilo de café por dia.
De manhã e de tarde. Aí tem vezes também que é suco
Ent: Café puro ou com leite?
N: Que café com leite, Jorge! [entrevistador] que café com leite! que manteiga! Não entra a manteiga.
Ent: Você cozinha para seus filhos ou é da panela de D. Cida que todos
comem?
N: Eu não cozinho separado porque eu não tenho nada pra dar a
eles.
(Neneca, 18/03/1992).
Neneca se ocupava das tarefas domésticas da própria família, lavava, arrumava e mandava os filhos para a escola e às vezes fazia banca com eles. Todos
viviam das pensões de D. Cida e do que pudessem adquirir para si, os que
trabalhavam. O neto mais velho de D. Cida, Téo, de 21 anos em 1992, envolvido com o tráfico de drogas, tinha bastante autoridade sobre seus irmãos.
Também nesta família, o dinheiro, quando adquirido pelos netos, era nor-
a casa das mulheres 239
malmente para gastos pessoais em roupas, diversão e drogas, dificilmente
colocado à disposição do coletivo. Entretanto, a autoridade com os menores
e para fora da casa era amplamente exercida pelos homens da casa, quando
a matriarca não estava por perto ou delegava-lhes poder. Contudo, a última
palavra costumava ser da matriarca. Filhas e netos colaboravam nas atividades caseiras, mas apenas quando exigidos para tanto. Neste grupo, o temperamento de D. Cida, bem diferente do de Mãe Dialunda, era muito mais
meigo e flexível. Não batia em filhos ou netos; a estes buscava defender de
atos de violência das filhas. Defendia o uso de relações mais igualitárias, não
acreditando que a violência fosse efetiva para educar filhos e netos. Sobre
trabalho de sobrinhos (netos de D. Cida), Neneca comentou:
MG: Os meninos que D. Cida cria tão trabalhando? Eles ajudam com as
despesas da casa?
N: Acho que Orlando... e Mariano... e Téo parece que tá pegando um biscate aí... Mas só que eles trabalham, mas não quer ajudar ninguém.
Não paga/ não sabe quanto é que custa uma luz, não sabe quanto
é que custa um recibo de água... não sabe. Taí o chão pra pagar do
terreno, eles nunca puxam o dinheiro pra pagar [...] Então não adianta...
(Neneca, 27/01/2000).
D. Cida deixou de comemorar aniversários de crianças a partir do período
em que passou a chefiar a família, pois a situação depois da morte do marido não o permitiu. Durante algum tempo, D. Cida acreditou que vivemos
várias vidas (espiritismo), e não recorria a “simpatias” ou curas sobrenaturais (Candomblé). Tampouco atribuía deficiências físicas ou mentais a fatores outros que não os naturais, ao contrário do marido. Ela dizia nunca
ter recorrido à magia para problemas em assuntos amorosos ou de trabalho.
Apontava como causas para as doenças mentais a cisma, invocação, obsessão
e sugestionamento. Declarava-se católica e frequentava, em 1992, uma sessão
espírita no bairro, onde recebia leite para uma neta desnutrida e com aparentes problemas cognitivos naquela fase. A pequena Tita, que ao ser entrevistada após a morte da avó, fez a declaração subsequente. Repetiu, o verbo
mandava quase 25 vezes em curta e quase indecifrável fala. Parecia substituir o verbo mandar pelo verbo dar quando interpelada pela tia. Entretanto,
ainda que bastante desconexa, é possível observar como repete compulsivamente as duas expressões para descrever rotinas cotidianas e seus deveres.
240 maria gabriela hita
Neneca: Ela quer que você conte como era a sua vida com sua avó
T: Ela... mandava eu... comprar pão... mandava dormir cedo... pra ir pra
escola cedo... mandava eu comprar feijão pra ela... aí eu comprava no
mercadinho... e mandava dormir cedo... pra/pra ir pro médico. Minha vó
levava [eu] no médico... fazer exame... furar o braço aqui... Aí... ela mandava eu ir... ir pega o livro pra ver... o que eu tinha pra fazer...[deveres
da escola], mandava eu... eu varria a casa... mandava lavar os prato...
mandava lavar roupa... mandava fazer um bocado de coisa. Eu lavava a
roupa certa... ela mandava eu... eu... eu na escola pra ver se tinha aula...
vê se... se/se... coisava na rua... mandava eu ir almoçar, tomar banho pra
ir almoçar... Ela mandava eu... eu comprar... meio quilo de feijão, meio
quilo de carne... meio quilo de osso... meio quilo de... carne de sertão pra
fazer... pra botar no feijão... Quando não tinha aula pra mim. Quando
não tinha aula pra mim... ela mandava eu... mandava eu... mandava
eu... comprar... pão pra tomar café... mandava eu comprar... batata pra
fazer frita... mandava botar... fazer/fazer... fritura... po/pa... é... mandava
eu machucar... o coisa na...
Neneca: Mandava nada menina! O que ela quer saber é como é que
Mãínha era com você... se ela... se era bom... era... Se ela lhe batia...
T: Era boa! Batia não. Ela me dava as coisa... me dava ... pra eu ir
comprar... me dava... bocado de coisa... merenda... dava manga... Dario
(irmão dela)... pegava manga pra ela... e ela me dava... ela me dava..
mesa... não me batia... Antes... [quando] minha vó era viva... [Vó] Metia
a vassoura nos meninos... pra eles não me bater. Pra eles não me bater...
mandava... //vá// ** pro centro Mandava eu buscar as coisa... no centro
pra ela... mandava eu... ir pro centro pegar os brinquedo... mandava um
bocado de coisa... fazer. Mandava eu...
Neneca: Né mandava não, menina!
T: Mandava fazer um bocado de coisa... Mandava eu... lê a blibria... pra
ver o que tinha... pra ver...
(Tati, 27/01/2000)
Nesta rede de parentesco também se destaca a presença da morte trágica,
assassinatos por envolvimento em tráfico de drogas ou de modo drástico.
Como no outro grupo familiar, a presença da violência em todos os níveis é
um marcador importante, principalmente entre os mais jovens, indicando a
proximidade com o mundo da marginalidade e exclusão social em que tanto
a casa das mulheres 241
as famílias e o bairro onde vivem, estão inseridos, em relação à sociedade mais
ampla e áreas vizinhas de classe média alta. Outro fator marcante foi a presença de uma considerável quantidade de membros – filhos e netos – com problemas físicos e/ou mentais, característica que pareceu se reproduzir ao longo
das gerações (ver genograma familiar em Apêndice C, que identifica membros
com esse tipo de problemas). Situações e problemas que vinham se repetindo
ao longo das gerações, reproduzindo problemas de saúde ou de trajetórias bem
similares entre membros de distintas idades, e que pareceriam não ter muitas
oportunidades de lograr modificar ou evoluir demasiado.
ATOS E PRINCIPAIS PERSONAGENS
DESTA SAGA FAMILIAR
p
PRIMEIRA PERSONAGEM CENTRAL
D. Cida
(Bisavó, 83 anos, parteira, viúva de dois maridos,
4 filhos e uma filha de criação, falecida em 1999)
D. Aparecida dos S. R. T. (D. Cida) foi a chefe da família de sua rede de parentesco por cerca de 14 anos: entre 1985, quando se torna viúva, e 1999, quando
morre de infarto, aos 13 de outubro, após receber intimação policial por queixa de um vizinho. Por intermédio de relatos, soube que nascera em Minas
Gerais aos 19 de março de 1916; se a data for correta, morrera aos 83 anos.
Contudo, este é um dado controverso e que não coincide com outras informações sobre nascimentos ou chegada na casa das duas filhas primogênitas.
Em 2013 Neneca confirmou que na identidade de D. Cida aparece o ano de
1933, como o de seu nascimento, dado incorreto, por certo, pois teria morrido com 66 anos e Lena nascido quando ela tinha 14 anos. Mulher forte, alta
e de tez mais clara que a do seu segundo marido, de cor muito escura; tinha,
quando a conheci, um cabelo branco bastante liso, do qual muito se orgulhava e estava sempre a penteá-lo, encontrei-a, muitas vezes, com o pente fixado
242 maria gabriela hita
no cabelo indicando este hábito, ou ‘vício’, como identificado por sua parentela. D. Cida foi uma das filhas caçulas de uma grande e pobre família mineira: comentou que teve treze irmãos por parte de mãe. Migrou para a Bahia
com sete ou oito anos de idade, quando foi dada para criação, para trabalhar
em casa de branco, vendida (trocada) por um vestido, por falta de condições
da mãe de sustentá-la. Seus outros irmãos também foram dados para criação,
muitos dos quais sequer conheceu. Desde então, perdeu contato com a família de origem e começou sua vida em Salvador. Tem poucas lembranças da
infância e diz ter trabalhado como doméstica na casa adotiva (era vida de escravo, contava, até tronco tinha para castigar os empregados),4 onde ficou até
o primeiro casamento:
Minha fil... minha vida foi um romance, minhas filha num quer so... suportar o que eu passei, que eu passei fome, passei sede, passei... passei humilhação, e venci. Na minha infãnça, minha infãnça, na minha infãnça... eu num tive infãnça. Eu num sabia o que era brincar com criança,
num sabia o que era sair, num sabia o que era divirtir, nem nada. Que
uma criança com sete ano, oito ano, que eu vim po poder dele, né, po
poder deles; com sete ano, oito ano. Nove ano eu já enfrentava casa pra
fazer serviço, todo serviço de dentro de casa: sabia lavar, hoje em dia eu
faço de tudo na minha vida, tudo eu sei fazer, agradeço a ela porque tudo
ela me ensinava. Aí eu sei viver,5 eu não tenho inimigo em cima desse
mundo, não brigo com ninguém, não... cuido de meus neto, de meus filho com amor, eu acho que... sou contra a violência, não gosto de violência, trato minha... meus neto...eles são demais! Mas eu trato só com
amor, que eu acho que não tem jeito melhor no mundo que a gente se
confiar em Deus e tratar com amor. (D. Cida, 22/01/1997).
Como Mãe Dialunda, começa na infância a atuar em trabalhos domésticos
em casas de brancos. O casamento, como o descreveu, pareceu ser, no caso
de D. Cida, a estratégia adotada para sair da casa onde trabalhava – quando
fingiu ter engravidado para justificar sua partida e ser forçada pelo casal que
a criava a se unir a seu devedor pela suposta perda da virgindade, contava D.
Cida, na presença de alguns netos. Devido ao contexto da entrevista, não ficou
4
Eu não consegui saber se sua fala remetia a dados de sua memoria, ou se tratavam de referências
atualizadas sobre o que teria sido uma experiência considerada excludente, misturando imaginários compartilhados sobre uma vida passada de escravos com a dela em situações similares de
pobreza e carência.
5
Saber viver remete a ideia que não tem medo de trabalhar para se sustentar; saber se virar.
a casa das mulheres 243
claro se o modo de revelar que fingira haver engravidado e casado a seguir era
para disfarçar ou suavizar, frente às netas presentes, o fato dela ter tido relações sexuais antes de se casar, ou se, efetivamente usou a estratégia à época
para ludibriar os patrões e sair da casa deles. Não ficou preciso, tampouco, o
período que ficou nesta casa, de onde saiu apenas quando casou e teve a sua
primogênita (a finada Lena). Tais fatos teriam acontecido, segundo relatos da
própria D. Cida, quando ela tinha uns 18 anos. Outras informações recolhidas,
por exemplo, da comparação da possível idade de Lena com o suposto ano de
nascimento de D. Cida, porém, apontam para a possibilidade destes eventos
terem ocorrido ao redor dos 30 anos de D. Cida.
Não foi fácil precisar com exatidão a cronologia das histórias familiares,
pois parte dos dados foram fornecidos pela enfraquecida memória das pessoas mais idosas as quais tendem, como qualquer um, a reler o passado a
partir de vivências e marcadores do presente e confundem marcos referenciais do tempo. Sobre a idade de Lena e D. Cida, foram recolhidas distintas
informações que não se encaixam coerentemente, ficando confuso se Lena
era mais velha do que se afirma ou se D. Cida mais jovem. Ao que parece,
Lena teria nascido por volta de 1947 e morrido aos 43 anos, em 1990. Outros
afirmam que ela tinha 53 ao morrer, quando deu a luz a Tati, sua filhinha caçula. Se de fato D. Cida casou-se com o pai de Lena por volta dos 19 anos, e
se levar em conta o ano do nascimento o de 1916, Lena deveria ter nascido
depois de 1935, provavelmente por volta de 1938 e não em 1947, dado que
D. Cida ficou viúva logo após o casamento. Outra possibilidade, se o ano de
nascimento de Lena for realmente por volta de 1947, como parece ser o caso
cruzando diversas informações, D. Cida deve ter nascido por volta de 1924 e
não 1916, como se afirmou e calculei junto com Dina. Outra alternativa, se
D. Cida nasceu em 1916 – o que parece coerente com a idade por ela declarada ao longo dos 10 anos de contatos e entrevistas – teria se casado pela primeira vez, quando nasce Lena, por volta dos 33 anos. Se este referencial for
o correto, D. Cida teve a filha caçula, Dina, com 52 anos. A idade avançada
da primeira união poderia ser uma explicação possível para sua baixa paridade, já que afirmou nunca ter feito uso de anticoncepcionais ou usado qualquer outro método de controle natal. Como amamentava suas filhas longamente, por mais de três ou quatro anos, isso poderia ter evitado a vinda de
novos filhos. D. Cida teve quatro filhos, numa época, contexto e coorte geracional em que este dado parece ser destoante. Mãe Dialunda, ao contrário de
244 maria gabriela hita
D. Cida, iniciou sua vida sexual muito jovem, aos 13 anos, e declarou ter
tido seis filhos, mas, ao contrário de D. Cida, declarou ter praticado muitos
abortos e feito uso de práticas anticoncepcionais.
Vim [de Minas Gerais]. Aí eu casei a premera vez, meu marido morreu, eu
tive uma filhinha com ele, eu com 18 ano, ele morreu ni um acidente de
carro. Ele era do exército, ele morreu queimado. E eu fiquei viúva. Com a
filhinha. Aí comecei a trabalhar, trabalhava em Nazaré e alí no hospital
Santa Isabel, alí eu fui aprendendo, mutchia coisa. Aí ficava no meio daquela medicina e eles tudo alí, eu fazia tudo pra eles na pensão e tudo...
aí eu fui aprendendo mutchia coisa mermo... e cheguei em ponto, chegou
em ponto de eu, de eu fazer um curso, e aí eu fui parteira.
(D. Cida, 22/01/1997).
D. Cida lembra com carinho desse primeiro casamento que não teve tempo
de desgastar a relação, no qual era bem tratada pelo marido, se gostavam muito
e moravam em uma casa de aluguel em Brotas dada pelo próprio quartel em
que ele trabalhava. Após a morte do primeiro marido, passou muitas dificuldades com a filha pequena, trabalhando como empregada doméstica numa
pensão de médicos, em Nazaré, até fazer o curso de enfermagem e parteira,
promovido por setor médico de hospitais públicos, no que parece ter sido
um projeto piloto por volta dos anos 50.
Desse projeto, continua D. Cida, teriam sido selecionadas 40 mulheres
para operar como parteiras domiciliares, das quais, com o tempo, restara
apenas ela na comunidade. Trabalhava como assistente de médicos atrelada a algumas maternidades – Ticila Balbino, Iperba, Santa Isabel e no 9o
Centro de Saúde – mediante serviços de parto domiciliar. Era chamada e só
atendia casos de partos que fossem encaminhados pelos hospitais aos quais
estava vinculada. Sua área de ação cobria bairros pobres de Salvador entre
Itapuã e o Nordeste de Amaralina, aproximadamente entre 30 a 50 quilômetros de litoral. Casos de abortos induzidos só eram atendidos por ela se
a mulher confessasse quem o tinha praticado, no intuito de que o sistema
de saúde pudesse ter maior controle sobre essa prática. Visitava domicílios
realizando partos, ensinando cuidados de resguardo, de amamentação, aplicando injeções ou fazendo curativos de primeiros socorros. Nestas visitas,
era normalmente acompanhada pela filha mais velha, Lena, que aprendera
bastante do ofício, depois, pelas outras filhas, especialmente Neneca, que
preenchia os documentos exigidos pelo hospital para registros de nasci-
a casa das mulheres 245
mento das crianças. D. Cida foi capacitada como auxiliar de enfermagem e
treinava estudantes de medicina a fazer o parto natural nos hospitais onde
trabalhava. Também participava das campanhas de vacinação e de todo
tipo de curativos nas comunidades onde circulava. Atuou como parteira até
aproximadamente 1991, quando trouxe ao mundo o bisneto Willy. Nessa
época, devido à idade avançada e à perda de força, decidiu se aposentar.
Foi nessa épa [época] que aí eu fui parteira, aí já, já tava viúva, aí pareceu
esse senhor, que é o meu marido, aí eu tornei casar o segundo casamento.
Nesse segundo casamento, eu tive [ao todo] cinco filhos.6 Tive cinco filho,
aí fui trabalhando e vivendo, aí vim pr’aqui pra Amaralina. Eu tô aqui...
vim pr’aqui em 40, de quarenta tô inté hoje. Aqui eu criei meus filho,
criei meus neto e tô criando meus bisneto. [...] O segundo casamento
nós aturemos inté a morte.
(D. Cida, 22/01/1997).
Seu Diógenes foi o pai dos outros três filhos (ou quatro, com a filha de
criação).7 A casa onde eles viveram foi sempre a mesma, lugar onde nasceram
os filhos e a maioria dos netos, muitos dos quais D. Cida trouxe ao mundo
como parteira. Com sua visão de mundo, marcada pela adoração a Deus na
qual está embutida a ideia de que a função da mulher é reproduzir, sustentava
nunca ter usado métodos anticoncepcionais nem praticado nenhum aborto:
Essa culpa eu não levo a Deus, afirmou quando perguntada sobre esses temas,
julgando ser dos piores crimes que filhas ou netas cometeram em vida.
Seu Diógenes trabalhava como vigia noturno em prédios da Pituba, mas, em
horas livres, completava a renda com consultas (botava mesa) de Candomblé.
Com o Candomblé de seu Diógenes, D. Cida afirmava não compactuar, discutiam sobre as causas da doença mental do filho homem: para ele eram resultados
de feitiço que esperava curar com trabalhos para os Orixás. Distintamente,
D. Cida considerava o problema do filho Aurélio questão de saúde, do qual não
poderia se curar, só restando controlar e diminuir certas consequências com
tratamentos médicos. Mesmo assim, D. Cida respeitava a diferença religiosa e
6
Ela contabiliza a primogênita de outro casamento, e a filha de criação, também, nesta conta.
7
Os filhos deste segundo matrimônio são: Merina (de criação); Maria Aparecida (conhecida no
bairro por Neneca, a lá de baixo nos relatos de D. Cida); Aurélio (o hoje falecido doente mental);
Dina, a caçula (tida como nervosa pelo grupo familiar e por ela mesma; denominada nos relatos
de D. Cida como a de lá de cima). Seu Diógenes já tinha seis filhos legítimos de uniões anteriores
com outras mulheres, algumas delas morando no mesmo NE.
246 maria gabriela hita
os modos mais violentos de educar os filhos do seu marido. Todavia, se no assunto da doença do filho ela mantinha visão mais científica, em outros, tanto
ela como sua filha Neneca mostravam usar e compartilhar com valores e significados da cosmologia do mundo de Santo.
Durante um tempo, D. Cida foi vendedora de cosméticos Avon, e em outros
tiveram uma venda familiar no quarto da frente da casa. Apesar de sempre
ter trabalhado, e haver alguns indícios de um tipo de chefia compartilhada,
D. Cida declarava, como já dito, que seu Diógenes foi o chefe da casa, quando
estava vivo. Talvez porque não se discutisse a posição de chefia e autoridade
dele, distinta da dela. E afirmou como sua vida sofreu acentuado declínio econômico depois da sua segunda viuvez, por uma conjunção de diversos fatores
e o avanço de sua idade.
Trabalhar não mata ninguém não, né? Porque eu já trabalhei demais... Fazia muita coisa na rua, os partos, tudo... e os filhos aqui em
casa... Ah, eu [sempre] trabalhava... nós era unido!... eu mais meu marido era unido... Ele trabalhava pela noite... e eu trabalhava pelo dia.
Ele... durante o dia, ele olhava os f/ os mi/ os filhos, né?
(D. Cida, 24/2/1999).
O meu marido, ele nunca ficou parado, ele nunca ficou sem trabalho. Ele
era um homem que era vigia, trabalhou 40 anos de vigia, trabalhando
pela noite, então, quando ele ficava desempregado, ele ia inté catar papel na rua pra ter o pão pra dar aos filho, nunca foi preciso ele passar...
nós passar necessidade. Hoje em dia, eu passo necessidade porque
[sinto] a falta dele, [e pela] minha idade que eu num tô guentando mais
trabalhar e os neto que tem muito na minha frente e o cargo é muito puxado. Eu tenho vinte e um neto pra eu dar comida e tenho um filho
doente e eu já me sinto cansada que já não posso mais lutar, assim
mesmo ainda luto, né.
(D.Cida. 14/10/1992).
Durante o dia, D. Cida trabalhava, fazendo partos, aplicando injeções e
ocupada com outras atividades, enquanto o marido andava pela rua ou ficava em casa com os filhos. À noite era seu Diógenes quem saia para trabalhar como vigia noturno em prédios da Pituba ou outros bairros de classe
média alta. Este sistema de divisão do tempo de trabalho entre eles pareceu
ser um acerto altamente benéfico para ambos e para a relação conjugal, que
é descrita por ela e por seus filhos, como boa de modo geral, e de respeito
a casa das mulheres 247
mútuo. Segundo a filha Neneca, o pai não era ciumento e deixava a mãe sair
para trabalhar por aí, ressaltando a confiança que depositava na esposa. D.
Cida, em contrapartida, respeitava-o, aguentando excessos e relações amorosas extraconjugais.
Momentos críticos, embora superados, foram os de infidelidade do marido dentro da própria casa, quando seu Diógenes trouxe, em pelo menos
duas ocasiões distintas, outras mulheres para morar com a família. A prática
de receber pessoas que não são da família e oferecer-lhes um teto é muito
comum neste contexto, onde se criam crianças de outros ou amparam por
consideração pessoas estranhas à rede de parentesco. Foi o caso da inclusão
de Merina, inserida na família como filha de criação, tratada por vezes como
empregada e trazida pelas mãos da pequena Lena, com nove anos de idade,
quando recebera, contam na família, de uma mulher desconhecida, essa bonequinha para ela brincar ou, em outras versões, achada no lixo e trazida a
casa por Lena. A circulação de crianças e de pessoas adultas pela casa, como
também se observou na outra família, foi uma prática frequente e presente na dinâmica deste grupo familiar e de muitos dos lares do Nordeste
de Amaralina. D. Cida contou-me, com certa naturalidade, como esses dois
casos de infidelidade do marido chegaram a morar na própria casa, e de que
até pariram seus filhos com ela, como parteira:
D.C: Primeiro ele trouxe a primeira, né? A primeira ele trouxe... dizendo que era... sobrinha dele... que eu tava com um barrigão e... grávida.
E dizendo que era filha/ que era... sobrinha dele, né?, Então, eu aceitei
isso. Quando foi um dia... a minha filha... eu... eu saí, a minha filha disse/ quando chegou disse que encontrou ele... se beijando os dois... Aí eu...
MG: Quem? Lena?
D.C: Sim, a filha que morreu. A mais velha. Depois eu pe/ botei ela em
confissão, ela disse: ‘que ele tinha enganado ela, que ela trabalhava, que
ele tinha enganado ela, e que... ela... era rapariga dele’. Morava com ele
lá no trabalho. Na Gamboa. Ele tinha dito a ela que eu não/ é... ‘que eu
era mulher doente... mais velha de que ele – quando eu era mais nova de
que ele, né? – mais velha de que ele... que...
MG: A Sra. se incomodava com isso?
248 maria gabriela hita
D.C: Eu não me/ não me incomodava com isso, não. [...] Quando ele
chegou em casa, eu disse a ele. Né? Que ele me enganou. Enganou a
menina, a criatura e... e me enganou a mim. Aí ele aqui... se achou de
bravo pra botar ela pra rua, né? Disse que ... ia mandar ela embora. [Aí]
Eu digo [disse a ele]: ‘Não, não vai embora, agora! Ela está no dia de ter
menino... e ela vai ficar comigo... e você. Você vai aguentar ela... e a mim.
Porque você fez o filho... e... eu sou parteira/ eu não posso dizer que vou
botar ela pra rua’.
Aí ele ficou dentro como que... aí... ficou inimigo dela... né? Aí eu aguentei
ela inté ela ter a criança. Quando ela teve a criança... aí foi embora. Mas
foi embora mesmo! Que ninguém soube mais notícia nenhuma dela. Foi
embora para o Rio.
MG: Como se chamava?
D.C: Isabel, o nome dela chamava Isabel. Foi embora. Nunca mais. [...] Aí
ele... tornou arranjar outra.
Neneca: [ao fundo, que participava da entrevista]: Achou foi pouco uma,
arranjou mais.
D.C: Arranjou outra! Passou muitos anos, muitos anos, muito anos, depois ele/ já depois de velho, ele arranjou outra! Arranjou outra/ lá pela
Graça. As menina [filhas de D. Cida] que descobriu, lá pela Graça... quando ela só ta[va] com um/... perto de ter menino, ela veio pr’ aqui. Ele trouxe ela!: Uma branca! Aí essa, ele não disse que era nada dele, [só] que
era conhecida dele de lá e tudo. Era o pai dela. Aí ele trouxe ela... quando
chegou aqui, ela ficou comigo aí um bocado de tempo...
MG: E a Senhora sabia que era rapariga dele?
D.C: É! Sabia! Aí ela ficou comigo... depois, então, ela deu a dor de ter
menino. [...] Aí ela ficou aqui dentro de casa e tudo, depois... pessoal
dan/ me dando conselho, que eu botasse ela pra rua... que não dava
mais pra ela ficar... aí ela arranjou um... um cara aí pra morar, com o
cara... e deixou ele em paz. E deixou a mim também em paz. Eu sempre
aguentando mas... firme e na/ na/... em minha natureza que não...
não dava pra ...
MG: E a Sra. não brigava com ele ou com elas?
a casa das mulheres 249
D.C: Não brigava com ninguém! Nem brigava com elas... e nem
brigava com ele. Não, não dava pra eu... eu... discutir com ninguém...
nem brigar e nem nada dessa vida. [...] Ele era coisa, agora eu que não
dava... nunca brigava/ e nem nunca larguemos... com 40 anos que
nós moramos juntos... nós é casada e... nós nunca briguemos. Nem
eu e nem ele... nunca teve briga de nós, nem nunca ele separou de
mim, nem eu dele. Nunca não teve nada mesmo! Depois, ele teve
muitos filhos aí... tinha muitos filhos aí, por aí... É ! [dizem que ] tinha 21
filho! [...] Canso de dizer a elas aqui, a minhas filhas... se vocês aguentassem o que eu já aguentei... de homem, de marido... eu acho que... não
chegava a tanto
Neneca: Eu não aguentava, não. Eu nem aguen/ óh! Nem com meu
primeiro não aguentava, que tive mais de dezessete anos sócia... quanto
mais com este agora
D.C: Pois é! Todo mundo! Essa daí, a outra de lá de cima... elas tudo ciúma. E não aguentaram o que eu já passei! E venci! (D. Cida, 26/7/1999).
Na sua forma de ver e compreender o mundo, D. Cida devia ser solidária
ao marido, e no lugar de alimentar ciúmes e conflitos desgastantes, agia com
tolerância, paciência, resignação e inteligência, porque assim, dizia ela: ganhava sempre a parada. Filhas e mãe recordam sem mágoa o mulherengo que
foi seu Diógenes. Na visão de D. Cida, o marido tem autoridade e papel que
não deviam ser contestados para o sucesso da relação e comentava, desapontada com o comportamento de suas filhas e netas, de que: a mulher antigamente não era como as moças de hoje... elas querem se igualar ao homem... e fazer
o mesmo que eles. Dentre outras questões, parecia considerar a possibilidade
de trabalhar fora de casa apenas de houvesse comum acordo ou autorização
do marido. Nesses termos, a visão do papel feminino nas relações de gênero
na família de D. Cida, quando comparada com a de D. Dialunda, é distinta e
mais submissa. Tolera infidelidade do marido e defende resignação das mulheres frente a violência dos parceiros, parecendo valorizar a aposta das mulheres da rede em uniões onde homens pudessem exercer papéis normativamente desejados. Ela não aprovava o comportamento de netas e filhas para
com os respectivos parceiros, quando elas os enfrentavam publicamente e
procuravam fazer tudo que o homem faz, como traí-los, dando-lhes o troco
por eventuais infidelidades. Entretanto, cabe ressaltar que nunca deixou de
trabalhar e sua profissão era muito prestigiada na comunidade, mais do que
250 maria gabriela hita
a do marido, no meu entendimento. Por isso, apesar do discurso e visão de
um papel feminino mais submisso, seu exemplo marca o contrário e destaca
autonomia, prazer e responsabilidade desenvolvida frente a sua atividade
profissional como parteira e agente de saúde, que a manteve boa parte do dia
fora de casa e colaborando de forma significativa para o orçamento familiar.
D. Cida passou a assumir exclusivamente o encargo de sustentar todo o
grupo familiar após a segunda viuvez, quando as dificuldades para a sobrevivência foram crescendo junto ao aparecimento de novos netos e a concentração de todos no mesmo espaço físico-familiar. Apesar das dificuldades,
considerava-se uma verdadeira vencedora; entristecia-se em ver que nem
todos os descendentes tinham herdado a mesma atitude de luta frente à vida
– ressaltando, como exceção, o caso da filha caçula, em quem reconhecia
o destemor ao trabalho. É o caso também da neta Liliane e talvez Lica, as
quais, por falta de parceiro provedor, tiveram sempre que trabalhar, como a
tia Dina. A neta Lia, como a mãe Neneca, logrou consolidar vantajosa união,
com um bom e provedor parceiro, mas, por vezes, Lia tentou trabalhar às escondidas do marido para ter algum dinheiro só dela. Ele, por sua vez, desejava que ela ficasse em casa e tomasse conta da filha pequena.
Seu Diógenes, segundo contam, colocou todos os bens (vários terrenos e
casas) em nome da esposa, o que fazia D. Cida sentir-se respeitada e protegida por ele. Ele, como a maioria dos homens deste contexto social, entretanto, é lembrado e descrito como violento – carrasco na denominação da
família. Quando bebia muito, já na velhice, era normal agredir os filhos e, ao
que parece, também à mulher. D. Cida tendia a negar a violência conjugal e
descrevia seu relacionamento como pacífico. Essa visão é confirmada pela
filha de criação que viveu com eles durante a primeira fase da família, mas é
matizada por Dina, a caçula, quem diz ter vivenciado a proximidade do pai
até o final e revela que D. Cida teria apanhado do marido, no final da vida,
mais do que ela costumava reconhecer ainda que talvez não de modo tão sistemático e dirigido a sua pessoa, como as narrativas de D. Cida e a da filha
Merina matizavam a seguir:
Ele [pai] morreu, eu tava com 24 anos... Minha mãe sofreu muito, até prá
sustentar a gente. Até apanhar, apanhava, que hoje em dia ela não conta. Ela tem uma cicatriz nas costas que foi uma garrafada que meu pai
deu, velho, bem velhinho, só você vendo, que você não dava nada por ele,
ele morreu com 84 anos. Então, quando ele morreu, Mãínha ainda ficou
a casa das mulheres 251
com uma cicatriz nas costas, aqui, ó! Prá você vê como era ruim/ tinha
levado ponto. [Ele] Dizia: ‘fica sustentando vagabundo, bota essas meninas prá trabalhar, em casa de família, numa obra, alguma coisa’. Meu
pai chegava bêbado em casa, já vinha do lado de fora... ele chegava bêbado dentro de casa, acabando com tudo.8 Mãínha botava comida prá
ele, ele quebrava... aquilo... a gente crescia com raiva, tomando pavor.
Não era nem ódio, que ele era o pai da gente, né? (Dina, 16/03/1996)
M: Às vezes quando meu pai chegava bêbado... batendo em todo
mundo! (Rss) De/de chapéu/ como é? Com aquele chapéu... [Dina:
‘Com a/ com a aba do chapéu’] É. Batia em todo mundo. A gente ficava
quieta. A gente num... não tinha televisão naquela época... só tinha um
radiozinho. A gente mesmo fa...
MG: E ele batia em sua mãe?
M: Ele bater em mãinha? Não! Mãinha sempre foi uma mulher valente. Uma única vez que ele tentou bater nela, ela furou ele com
um guarda-chuva. A única vez que ele tentou... Minha mãe era deste tamanho [mostrou ser mais alta que ele]... e forte. Era bonita, um
corpo violão... Aí, a única vez que ele tentou, ela pe/ pegou [e] furou
ele... Foi! Com um/ com o cabo do guarda-chuva. Aí ele: ‘Cê me tirou
sangue! Cê me tirou sangue!’. Aí pronto. Nunca mais meu pai... queria
tocar na gente. (Merina, 23/01/2000).
Nós eram unido. União, nós vivia em união. Ele não fazia nada sem
eu e nem eu fazia nada sem ele. Nós não brigávamo, não dava trabalho a vizinho nenhum, nem a nada. Nós vivia em união. No dia
dele morrer ele, ele me disse a mim que ia morrer, aí ele tava se sentindo...
mas ele era são... [...] morreu com oitenta ano, ele tinha oitenta ano, era
mais velho de que eu, quando ele morreu. Mas nós vivia bem. (D. Cida,
22/01/1997).
Entre 1985 e 1990 aconteceu uma série de mortes trágicas e o rumo desta
família viu-se modificado. Nesse intervalo de cinco anos morreram seu
Diógenes (morte natural), o marido de Neneca (acidente de trabalho), a filha
8
A referência a pais violentos é constante em ambas as famílias. Desde os pais das matriarcas até
os netos, o que não faltam são narrativas de filhos defendendo as mães ou irmãos da agressão de
um pai bêbado ou tio violento. Doca se queixa do pai, mas fazia o mesmo com Dina e os filhos.
252 maria gabriela hita
primogênita de D. Cida (violentamente assassinada) e o pequeno bebê de
Neneca (inexplicado). Esta foi uma das fases mais críticas e trágicas vivenciadas por este grupo familiar. Crises e tragédias que não os abandonaram
mais, e que pareceriam ter sido apenas o início de uma sucessão de novas e
mais trágicas mortes que viriam depois, ao perder alguns dos membros mais
jovens para o tráfico de drogas.
Depois daquela fase, sucederam-se novas mortes: a de Aurélio e, mais recentemente, a de três netos de D. Cida envolvidos no tráfico de drogas, com
fins trágicos e traumáticos para todo o grupo familiar. Estes últimos eram
filhos de Lena, que também fora assassinada violentamente.
Ele [Seu Diógenes] morreu, eu fiquei. Sou viúva já há... já há dé...doze ano
vai fazer. E tô aqui! Agora tô sofrendo com... guentando com neto, com os
neto, bisneto. Aí parei dentro de casa, depois que meu marido pá... morreu, morreu. [E] uma filha minha, mataram uma filha minha, né? E ela...
ficou com esses filho tudo aqui dentro de casa, fiquei com oito filho dela.
[Da] mais velha. Depois a outra [filha, a de criação] foi pra São Paulo, largou um, fiquei com outro. Esses oito filho [netos e bisnetos], fiquei criando
(D. Cida, 22/01/1997).
Com a morte de dois dos homens provedores e da filha Lena, D. Cida ficou
sendo a única responsável pelo grupo familiar e pelos pequenos de Lena
(cinco filhos e um neto) que passou a criar, junto aos dois netos que já vinha
criando antes – um filho de Lena e outro de Merina, a filha de criação. Pela
importância no orçamento das três pensões que administrava, alguns serviços de saúde que ainda fazia e pela posse da casa, transformou-se na nova
chefe, de quem todos dependiam. Ela dizia:
D.C: Criei filho, criei neto, tô criando bisneto!... e tô aqui! Com a cabeça... no lugar!
MG: Com a cabeça no lugar...
D.C: Com certeza! Oxênte... Oxênte... Me lembro tudo! Eu me lembro de todo mundo. Mas eu/ é porque eu/ eu que sou uma pessoa que...
amava muito minha vida... não é porque eu sou cristão, não, antes de eu
ser cristão mesmo, amava muito a minha vida! Porque trabalhar não
mata ninguém não, né? Porque eu já trabalhei demais... Fazia muita
coisa na rua, os partos, tudo... (D. Cida, 24/2/1999).
a casa das mulheres 253
MG: Me conte como foi criar esses filhos e netos todos. Qual a diferença?
D.C: Não, pra mim... pra mim... Não tem diferença nenhuma, são as
mesmas coisas... Eu como mãe...é uma forma, né? Quando Vó... é... é a
mesma coisa... como bisavó, a mesma coisa! O amor que eu tenho a/ aos
filho... tenho (a) os neto, tenho aos bisneto. E... com os estranho também é a mesma coisa! Qualquer pessoa! E eu/ e esse amor... aqui/ não
é só os neto, nem só dos bisneto, é do... do/ da consideração a todas
[pessoas] que me considera. Os meninos que nasceram comigo e
tudo: ‘minha vó’ pra lá, ‘minha vó’ pra cá... (D. Cida, 24/2/1999).
MG: Quem lhe ajuda a criar os filhos de Lena depois que ela morreu?
Quem é a pessoa responsável por eles? E os pais deles?
D.C: É eu. Sou eu. Vó. É Vó mesmo. É, comigo é que eles dormem,
eles dormem lá comigo, comem... tudo pra eles, sou eu. A responsável deles sou eu, não tem pai, pai [o verdadeiro] não liga, QUE SÓ EU
QUE SOU AVÓ, MÃE E PAI. [Os pais biológicos deles] Já tem outra família e tem filho, ele acha que os filho de lá... só os de lá que é filho dele, os
daqui ele não tem responsabilidade não, não é desses pai... ele não é pai
não, sabe? É mini-pai ele, só assim, pra gente, que ele é pai, que a gente
sabe. (D. Cida, 18/09/1992).
Como já visto repetidas vezes, a circulação de crianças e a criação de filhos
(de parentes ou não) é uma prática difundida entre famílias pobres brasileiras,
pela qual as crianças costumam transitar entre as casas das avós, madrinhas,
vizinhas e pais genéticos ou de criação. Por isso, essas crianças podem ter diversas mães e pais. Uma prática comum é a da mulher que abriga filhos de um
homem parente seu – como foi o caso de Willy, que, sendo filho de Téo – primogênito da finada Lena criado por D. Cida desde nascido – foi criado primeiro por Lena – avó paterna de Willy – e depois por D. Cida – bisavó paterna.
Muitas mulheres criam crianças dos filhos, netos, irmãos ou de outros homens
da rede de parentesco. Este eficiente mecanismo de fortalecimento e reatualização dos laços de uma rede de parentesco é uma forma de manifestação do
princípio de consideração, variando os direitos, os deveres e as posições dos
implicados a depender dos motivos que levaram a circulação de cada criança:
se como demanda do adulto que as quer criar, e os pais lhe cedem o filho –
criança como dádiva – ou se imposição e demanda de uma mãe ou pai neces-
254 maria gabriela hita
sitado – criança chega ao novo lar mais como fardo.9 A situação dos filhos de
Lena na casa de D. Cida apresenta distinções importantes: Téo, filho de Lena
e Orlando, filho de Merina, foram tomados para criar desde o nascimento,
enquanto os outros filhos de Lena só foram incorporados no grupo dos netos
criados após o assassinato de sua mãe, sendo vistos assim mais como um fardo
do que dádiva. Entretanto, a avaliação mais positiva ou negativa da criança que
circula, como se observou ao longo dos anos, é variável, depende da conjuntura e das dificuldades que se têm com elas em cada momento, podendo ser
consideradas dádiva em certos momentos e fardos em outros.
Como na casa de Mãe Dialunda, D. Cida também educava e intercedia
por seus netos, e tinha grande autoridade mesmo entre aqueles que eram
criados pelos respectivos pais. Ao invés de aplicar a violência, como preferia
por vezes Dialunda, tentava protegê-los e dificultava às respectivas mães o
exercício de autoridade, pois a última palavra, como na outra casa, era a da
avó e dona da casa, a quem os netos sempre recorriam em momentos de conflito. Na visão de Neneca, em duas entrevistas realizadas em anos distintos:
Aqui ninguém apanha, aqui ninguém pode apanhar. Eu num posso recramar, entendeu? Eu num posso chegar assim pá recramar, falar grosso
com eles [próprios filhos], botar no castigo, bater, querer bater, qualquer
coisa de errado... eu num posso, porque vem a família toda pá cima de
mim. [Eles dizem:] ‘Eu num posso fazer nada que Neneca acha ruim,
Neneca quer me bater’... [para que D. Cida interceda por eles contra a filha e mãe desses netos] Vai dizer que eu bato?10 Eu... quando eles eram
pequeno, eles tavam do meu jeito, mas agora, agora mudou tudo. Aqui
ninguém apanha, tô dizeno a você que aqui ninguém apanha, aqui ninguém pode apanhar, eu num posso recramar, se eu alterar a voz um pouquinho, a primeira que sobe é mãínha: ‘Que é isso? Quê que tá aconteceno? Deixa os menino!’ Torra meu folêgo. Tudo que tá aconteceno hoje
que os menino é desobediente, eu só agradeço a mãínha, porque mãínha
quer dar amor exagerado sabe? E esse amor num pode... menino num...
você num pode botar ele no seu jeito assim... E, pá mãínha não pode ter
violência não, pá mãínha, pá mãínha porrada é violência, pá ela é
violência. (Neneca, 26/07 1999).
9
Ver Fonseca (1995; 2000).
10
Ela negava bater nos filhos, mas é fácil saber pois ela mesmo afirma em outros relatos, o quanto
se descontrolou batendo em filhos. Ao dizer que não bate, está se referindo à dificuldade que é
bater nos filhos porque todos os outros da parentela, especialmente a mãe, intercedem.
a casa das mulheres 255
Ela começava a falar de cinco horas da manhã inté a hora que ela ia dormir... Ela falava, tudo ela falava, tudo ela reclamava... Se tinha/ se Dina
batia nos meninos lá em cima, ela tinha que subir... para reclamar com
Dina; se eu batia num menino aqui, ela tinha que vir – que ela sempre
tá/ ficava a favor desses netos. Ela nunca foi contra neto nenhum, por
mais errado que eles tivessem, ela sempre tava falando que os meninos
tava certo. Se um/um/um respondia a ela lá embaixo e a gente descia
pra ir reclamar com eles, ela achava que /ela era contra a gente e a favor
deles... entendeu? E a minha revolta que eu tenho mais com eles são
essa: pô, mais do que ela fez, mais do que mãinha/ não tinha/ não
tem igual que faça o que mãínha fez!11 (Neneca, 27/01/2000).
Para Lia, filha de Neneca que casou e recebeu um quartinho na laje da avó,
a avó, quando estava viva, interferia e controlava a vida e comportamento de
toda a parentela, comandando esta rede, apesar de atribuir seu mau humor
à velhice e ao cansaço devido a conflitos produzidos pelos netos que criava:
Vovó agora/ ói! Vovó era boa... mas agora vovó tá chata! Tá... Acho que
é a idade chegando... Fala de tudo... de tudo agora ela fala!, comenta...
A menina tá sem calcinha... é... como é?... negócio de recibo de água pra
pagar... luz... gás, quando falta... faz compra, some tudo!... As compra
que ela faz/ aí os menino acho que pega, né?... troca por outra coisa... aí
some tudo!, ela fica nervosa... fica de mau humor com todo mundo... tá
muito chata ela... esses dias... Hoje mesmo/ ela tava acordada ou dormindo? Dormindo... Cheguei, e ela [disse]: ‘Já saiu?! Foi pra onde, menina?!... Saindo assim... Não fica dentro de casa mais!...’ Sempre dá uma...
fala assim uma coisinha... Ela agora tá muito chata!... (Lia, 8/02/1999).
A lembrança que os netos e filhos têm de D. Cida é bem similar à que
se percebeu entre os netos do outro grupo familiar, mostrando serem estas
idosas o foco e principais responsáveis pela família. Algumas diferenças é
que, neste grupo familiar, filhas e companheiros dependiam menos dos recursos da matriarca, gerando recursos próprios para os respectivos núcleos
familiares, mostrando avanço do ciclo familiar. Se o tipo de temperamento e
autoridade das duas matriarcas diferia no modo de manifestação (Dialunda
se apoiado na força e violência que D. Cida rejeitava, esta mais submissa que
a anterior em relação ao papel que a mulher tem na família), ambas as ma-
11
Neste trecho, Neneca acusa os netos de D. Cida de terem sido os que causavam maiores problemas, como se isso tivesse sido a causa de sua morte ou desgostos nos seus últimos anos.
256 maria gabriela hita
triarcas detinham autoridade e respeito das respectivas parentelas. Como
na outra família, os gastos da casa e comida de todos foram, durante muito
tempo, responsabilidade de D. Cida. O significado dela como mãe-de-todos
neste contexto social fica elucidado em trechos narrativos como os que seguem, coletados após sua morte:
Pra mim... Ela [Avó] era... como se fosse uma mãe. Por que ela me tratava bem... me criou junto com minha mãe... Me alimentou... Só não
me (teve) por quê... Me alimentou... [Me] cuidava. (Nete, filha de Dina,
27/01/2000).
Ah, minha vó foi uma pessoa legal, sempre me apoiou, sempre me apoiou
mesmo ali sempre quando eu tava precisando, ela tava ali... (Léo, filho
de Neneca, 27/01/2000).
De vovó... Deixou muitas/muitas lembrança boa, mas... que... a gente
num deve esquecer. A mim mesmo... ela me apoiou, me deu um lugar
pra eu dormir. Muita coisa boa. (Lia, Filha de Neneca 27/01/2000).
Acho que não dá/... nem tem palavra pra falar em mãe, né?... Eu acho
assim que... eles [os netos –filhos de Lena] tão sofrendo, sim... tá sentindo falta [dela]... o quê ela fazia, as coisa pra ele/ era/era ela que fazia
as coisa/era ela que lavava a roupa, era ela que da/fazia comida... era
ela que botava o dinheiro dentro de casa, porque ninguém botava
nada... entendeu? Não tinha [como] dizer que alguém botava, fulano
botava... Nada disso! Ela que fazia tudo pra família, em peso... Então,
agora tá todo mundo sentindo na pele... inclusive eu também tô sentindo
na minha pele, agora também... em geral, todo mundo... da/dos pequeno
aos grande. (Neneca, 27/01/2000).
E na fala da filha caçula, Dina, quando D. Cida ainda vivia, em 1996, mostrando a importância que a mãe tinha para sua vida:
O único momento feliz que eu posso me recordar foi quando bateu a laje
aqui em casa que mãínha, pô, ficou tão alegre, e ela ficando alegre, eu
também fico, porque é a única jóia que eu tenho em minha vida. Eu tenho quatro filho, mas se um dia alguém chegasse assim e dissesse ‘prá
sua mãe viver, vai ter que tirar um pedaço de você’, então, eu prefiro dar
a casa das mulheres 257
do que deixar... porque é a coisa que eu mais amo na minha vida...
não é tanto meus quatro filho, mas faço qualquer coisa por ela, se
tiver que me jogar em baixo de um carro, dar minha alma prá minha mãe ficar viva, eu dava, que sem ela, não sei não, viu? Que ela
me ajuda bastante..., tem momentos de raiva, de falar, ficar com cara
feia, mas... me ajuda muito, nem tanto em dinheiro, quanto em palavra,
pô só eu ver que ela está com saúde, prá mim é importante, prá mim,
não é preciso ter comida... E esse problema dele [Doca] que eu tenho que
carregar, essa cruz até o dia que Deus quiser... Às vezes eu penso até em
sair pelo mundo e me mandar... [E não o faço] não é tanto pelos filhos,
é por mãínha, que eu penso que se mãínha não existe mais, que eu
peço muitos anos de vida e saúde pra ela, se não fosse ela, acho que
eu já tinha me mandado, largava os meninos com ele, mesmo que
depois eu viesse buscar os meninos... (Dina, 16/03/1996).
A relação com a mãe é tanto das filhas mulheres como dos filhos homens.
Se o papel de pai e esposo de família não é tão obrigatório neste modelo, o
de filho, entretanto, parece ser central. Filho de verdade é aquele que o demonstra e está atento às necessidades da mãe. Cada vez que houver conflitos, ou mesmo sem eles, o filho volta sempre para a casa da mãe ou do núcleo de origem. Foi esse o caso de Gilson e de Doca, os dois genros de D. Cida,
que tinham com suas respectivas casas de origem – mães – uma relação forte
e marcante e é também o que se percebe na fala de Jerson, jovem pai, unido à
Lia, ao se referir ao grupo familiar de origem. É o que se perguntavam Doca
e Gilson em momentos de maior conflitos com suas mulheres, se não seria
melhor eles voltar à casa dos seus próprios pais:
Eu já sentei, eu já sentei sozinho aqui... pra pensar... o quê que aqui tem...
pra eu ficar ligado aqui [ na casa de Neneca]... Pra eu ta ligado aqui...
Porque eu tenho a casa de minha mãe... tenho a casa de meus parentes... e eu posso pegar e sair... (Gilson, 31/01/99).
Porque se tiver de/de/de acontecer... se não/tiver de acontecer... não der
certo/ agora, eu fico imaginando assim ‘pô, vou sair daqui...’, quer dizer... daria, né? Porque me/ me/ meus parentes me apoiam, minha
mãe... tenho mãe, tenho pai, entendeu? Tenho irmão... todo mundo
me apoia, ninguém me trata/ ninguém me trata mal [lá]... ninguém me
trata mal, entendeu? ( Jerson, 31/01/1999).
258 maria gabriela hita
É, porque eu era muito... até hoje ainda sou muito pegado com meus
pais, entendeu? Todo dia eu... tenho obrigação de ver minha mãe e meu
pai. É. Todo santo dia! Aí eu passo lá antes de chegar aqui em casa...
Minha mãe/ minha mãe é uma pessoa ótima, entendeu? Porreta. Dina
conhece ela... Uma pessoa que... tem muito carinho pelos filhos, entendeu? E ela mesmo disse... que ela, quer dizer, ela gosta de todos mas esse/
o que ela gosta mais sou eu... Eu nunca tive uma discussão com ninguém
em minha família... entendeu? Nunca teve uma desavença, sempre procurei respeitar... e considerar, tá entendendo? Às vezes, eu tô aqui, não
apareço lá, ela liga pra saber como é que eu tô... tá entendendo? Tudo
isso. (Doca, 23/01/00).
Sempre [Doca] morou aqui.12 Mas ele não afasta de lá da mãe dele! Ele
não afasta da casa da mãe. Fica por lá... vem pra casa de noite, trabalha
lá/ trabalha lá perto da mãe. Mora lá na Chapada, no Rio Vermelho.
(D. Cida, 24/2/1999).
A centralidade da figura materna fica igualmente elucidada em relatos de
transgressão, quando se aponta a fuga de um comportamento esperado, especialmente naqueles que levantam a gravidade do desrespeito a essa posição consagrada que é o lugar da mãe em terra baiana. O ato de desrespeito
à própria mãe é considerado como dos piores indicadores usados para julgamentos sobre a moralidade de uma pessoa. Dina, nos trechos narrativos a
seguir, evidencia claramente essa postura ao julgar o equivocado comportamento dos sobrinhos, netos de D. Cida, filhos de Lena, e dos filhos já adultos
de Neneca, que tinham comportamentos moralmente repreensíveis de desrespeito com as respectivas mães:
Porque o filho que não é bom pra mãe, não é bom pra ninguém... Então,
com mãinha... Mãinha que criou eles, mãinha foi mãe duas vezes...
duas vezes. Era mãe e vó... Então, eles não respeitava mãinha, eles nenhum! Nenhum! Nenhum dos meus parente... não respeitava mãinha...
xingava mãinha... jogava as coisas, quebrava as coisa que ela tinha,
roubava as coisas que eu dava a ela, o que ela conseguia. Quando ela
recebia dinheiro, eles pegavam o dinheiro dela... [...] Isso aí... eles não
12
Ele visitava muito Dina e a engravidava todo ano. Mas, a presença dele na casa de modo mais permanente ocorreu apenas nos últimos anos da pesquisa. A referência de D. Cida pode indicar que
ele foi o pai de todos os filhos de Dina e a que sempre estiveram, de algum modo, juntos. Em outras
entrevistas, Doca não era por ela considerado como morador da casa quando eram mais jovens.
a casa das mulheres 259
respeita a mãe que tem... É a mesma coisa, se a mãe [deles] depois fechar os olhos e morrer... os filhos dela não acha nada em minha mão...
Porque eu penso assim: um filho pode ser miserável pra quem for...
mas pra mãe?! Tem que ser bom! A mãe pode ser uma/ uma alcoólatra, a mãe pode ser uma prostituta, pode ser uma ladrona, pode ser uma
maluca, mas o filho tem que ter amor à mãe. O filho não pode olhar
a qualidade da mãe ruim, não, tem que... sei lá, tem que olhar pra
mãe com o coração limpo... Dizer: ‘minha mãe é minha princesa’...
O filho não pode ser ruim pra mãe. (Dina, 29/02/2000).
Ói, os piores marginais... os piores marginais... respeita a mãe – os piores!
Eu conheço marginal perigoso que se você mexer/ olhar pra mãe dele, ele
quer lhe matar! Eu conheço marginal perigoso que se você disser alguma
coisa pra/ falar assim alguma coisa/ até olhar, de mal olhar, já quer matar... (Neneca, 27/01/2000).
Nestas duas narrativas, ambas as irmãs repreendem o comportamento
desregrado e, por vezes, desrespeitoso dos netos que D. Cida criava. Alguns
destes netos terão limitadas perspectivas de vida e futuro pela entrada no
mundo do tráfico de drogas. A situação de desintegração familiar vivenciada
por este grupo de netos, antes mesmo de serem criados por D. Cida, era preocupação de todos e da avó que os protegia e defendia nos conflitos entre eles
e o resto da parentela. Entretanto, a situação era complicada, nem sempre
lograva controlar e terminava por gerar muito sofrimento para D. Cida.
PRIMEIRO ATO
Neneca e Dina no passado
Desde muito cedo, entre Dina e Neneca, irmãs consanguíneas de pai e mãe, estabeleceram-se distinções de comportamento, gostos, preferências, privilégios
e tendência a ocuparem posições diametralmente opostas na estrutura familiar. Ambas iniciaram muito cedo a formação de novos núcleos familiares com
gravidez adolescente,13 por volta dos 13 anos em ambos os casos, sendo Neneca
13
É a maternidade, antes que o casamento ou união, o que indica formação de novo núcleo familiar neste contexto, o que não implica, necessariamente que este seja autônomo ou comple-
260 maria gabriela hita
mais beneficiada pela escolha de um bom e provedor parceiro (que assumiu o
erro dele e se instalou com sua nova companheira no quarto oferecido pelos
sogros). A maternidade de Neneca foi bem acolhida por seus pais e o genro
incorporado, pelo princípio da consideração, como o filho saudável que não
tiveram. Mesmo fazendo parte de um núcleo familiar dependente do de seus
pais, a posição e status de Neneca na rede se destacou nessa fase. Recordava
com orgulho que, de todas as filhas de D. Cida, foi a única que casou no civil
(quatro anos após a união e nascimento dos primeiros filhos).14 Neneca, como
a primogênita de seu Diógenes, ganhou, com o passar dos anos, o direito ao
terreno da casa que correspondia ao lugar onde fora antes a venda da família,
onde passou a morar quando a filha Lia tinha cerca de sete anos e Dina já tinha dois filhos. Seu Diógenes e D. Cida destinavam o último quartinho da residência de 2 x 2 m para os novos núcleos familiares que iam se formando na
parentela. A primeira a ocupá-lo foi Merina quando nasceu Orlando, que ficou
aos cuidados de D. Cida quando Merina viajou para S. Paulo. Depois, Neneca
ocupou esse quarto com sua família. Dina, quando lhe nasceu o segundo filho,
finalmente, passou a ocupá-lo; ali nasceram-lhe os outros dois, até fazer a laje
da casa da mãe e conquistar o direito a construir a própria casa na parte superior, então com 4 filhos. Percebe-se, por intermédio das narrativas, a maior
aproximação, as alianças e privilégios que Neneca tinha com o chefe da casa,
seu pai, na primeira fase:
[O pai] Ele me tratava bem, num me deixava faltar nada, ele num me
deixava faltar nada, nada que o que eu pedisse a ele... Ele quando vinha
do ban ... que ele ia receber dinheiro, quando ele vinha, a primeira coisa que ele fazia, era dar o meu, escondido. Se ia pa banco, era eu que
ia com ele, se ia pa médico, era eu que ia com ele. Às vezes ele chegava
bebendo, assim um pouquinho, todo mundo corria, eu não, eu ficava,
sempre de junto dele. Tava sempre suportando as bebida dele. Com os
outro ele brigava, os outro respondia, eu num respondia ele. A gente se
dava bem, e mudou minha vida mais por isso, depois da morte dele,
to, pois a nova mãe pode permanecer na casa dos pais ou ir para a dos sogros sem formar um
novo e separado lar. Para a definição da posição estrutural do novo núcleo formado, o critério
utilizado para detectá-lo na pesquisa foi a dependência/ independência do “fogão” (panela que
alimenta) da casa materna/ paterna (propriedade/ alocação) que indicou se este novo núcleo é
classificado como independente e autossuficiente ou parte do de origem/ anterior. E esse mesmo critério foi o escolhido como diferenciador entre passado e presente nos atos desta família.
14
O casamento tardio mostrou ser prática comum também entre grupos matrifocais negros da
Jamaica (vide a detalhada entografía de Edith Clarke, 1972).
a casa das mulheres 261
começou a ficar tudo diferente. Comecei a, a mudar, até com mãínha
mesmo, mãínha também num me tratava igual a ele, era diferente também. (Neneca, 21/01 1991).
Ele [o pai] me adorava e adorava meu marido também, o que morreu, o
pai dos menino. Gostava tanto dele, que eu, quando eu me perdi com ele,
que eu apareci grávida dessa mais velha minha [filha], eu pensava que ele
ia me botar pra fora. Do jeito como ele tratava os outro? Eu pensava que
ele ia fazer a mesma coisa comigo. Não, ele aceitou numa boa, ele só, e...
ele mandou chamar ele, ele foi lá conversou com ele, assumiu o erro dele.
Eu já tava com minha trouxa arrumada, eu digo: qualquer coisa eu tô
pulano essa cerca aqui, já tô me mandano... que nada! Ele aceitou numa
boa. Aí eu num quis casar logo, né? Porque eu, eu mermo que num
quis casar, disse que eu num queria casar logo, que eu queria agora
conviver primeiro, pá depois ver se ia dar certo ou não. Aí a gente
conviveu, no quarto filho, eu me casei. (Neneca, 21/01 1991).
Dina, como Neneca e Merina, começou cedo a vida sexual e engravidou
de Doca aos 12 anos, que na época, era garoto e tinha 13 anos. Isso aconteceu
alguns anos depois da gravidez de Neneca, mas, diferente desta, o companheiro de Dina não era apreciado, pela falta de juízo devido à sua juventude,
por ser conhecido como maconheiro e andar em má companhia. Além disso, a
família dele não apoiou a união por serem muito jovens, motivos pelos quais
Dina e Doca sofreram marcada rejeição familiar. Ela foi severamente espancada e expulsa da casa pelo pai. Somente foi aceita de volta vários meses depois, pela interferência de D. Cida frente a seu Diógenes que terminou aceitando o retorno de Dina e sua pequena Jane. Seu jovem parceiro preferiu
morar com os respectivos pais, mas continuou visitando-a, e tiveram outros
três filhos. Pouco antes de Seu Diógenes morrer, Neneca e seu grupo familiar
ficaram alocados no quarto da frente e Dina passou para o dos fundos, considerado o pior por ser o menor, mais úmido, escuro, de barro batido e ao lado
do fosso do banheiro da casa. Conta ela que se molhava bastante quando
chovia. Nos trechos a seguir, nota-se o ressentimento, a personalidade forte
e a capacidade de luta desta filha da matriarca:
D: Painho só puxou mais, que era mais carrasco [comigo], só quando eu
engravidei, né. Que ele não queria de jeito nenhum, né. Me botou pra
fora. Mas aí sempre tinha a mãe do lado, mesmo ruimzinha, assim mesmo, mas me deu apoio. É, nessas horas, ela me apoiou. Eu saía pra rua,
262 maria gabriela hita
depois voltava de noite, né, que na época ele ia trabalhar, que ele era vigia. Aí, quando ele saia sete horas, eu entrava [na casa dos pais].
MG: E você chegou a morar na casa de Doca quando saiu de casa ?
D: Não, nunca morei na casa de Doca, não.
MG: E onde era seu barraco nessa época, no que você foi morar?
D: Era numa invasão, né, que tinha um terrenozinho que Lena conseguiu, né. Eu fui invadir com ela, aí fiquei com uma casa de taipa,
e ficamos morando lá. Mas aí não deu certo porque lá tinha muito
marginal... Aí não dava certo comigo, não era esse meio que eu queria.
MG: E Doca morava com você nesse terreno invadido onde fizeram
seu barraco?
D: Ia lá de vez em quando. Nunca moramos juntos.
MG: Você ficou lá sozinha?
D: Sozinha. Sozinha mesmo, nunca moramos juntos. [...]
MG: Mas depois seu pai lhe deixou voltar?
D: Ele me chamou de volta. Falando com mãinha: ‘Ah, Cida tem que trazer Dina de volta pra cá, porque ali naquele meio, passar tarde da noite
sozinha, pra ficar dormindo lá com essa menina. Manda vim pra cá’.
Eu sei que eu vim pra casa, e a casa ficou lá à toa, depois apareceu
alguém pra comprar por quinhentos cruzeiros, né. Aí eu peguei e
vendi a casa.
MG: E o que fez com o dinheiro?
D: E... eu sei que eu nem sei o que eu fiz com esse dinheiro, que não deu
pra nada mesmo... a precisão era muita. E eu fiquei aqui na casa de mãinha, ela me deu um quartinho pequeno de dois por dois...
MG: Esse no que está Teo?
D: No que [hoje] tá Téo, é. (Dina, 27/07/1999).
a casa das mulheres 263
E sobre o nascimento dos seus outros três filhos, todos de Doca, conta:
D: Aí foi indo, foi indo, foi indo, depois eu apareci grávida de novo. Antes
de Jane completar um ano, eu fiquei logo grávida de Guido, né?, Do menino. E eu fui pro quartinho, foi um sofrimento danado (Rss).
MG: E Doca?
D: Briga! [...]. Era sempre eu sozinha! Eu e meus dois filhos! Ele só
vinha de vez em quando. Toda vez que vinha... ‘pode falar?’ [frase sussurrada] Pode falar? [porque estava gravando] (Rss) Só vinha só pra transar, né? Só! E parece que era um visgo, toda vez que transava, tinha que
ter um filho, né. Tinha que botar um filho. Minha menstruação, quando
chegava a vim, era pra avisar que tava grávida. Só corria aquele mês só
e pronto. Depois de nove meses, aí pronto. Eu brigava muito com ele,
que eu queria que ele ficasse junto de mim, eu era obsecada por
aquele homem...
MG: E sua família lhe apoiava?
D: Ah, me esculhambava, brigava comigo e tudo. Dizia que eu não tinha
vergonha na cara. Talvez se naquele tempo, né, se eu ouvisse o que mãínha falava, talvez eu não tinha sofrido tanto como eu sofri! Né? Aí, o quê
que acontece? Eu fiquei atrás dele, ia lá com os menino de um lado e de
outro, atrás dele e ele tava com outra mulher. Aí pegava no pau com ele,
brigava mesmo, me batia, só chegava com a cara toda roxa. Mas [eu] só/
só queria ter ele junto de mim, não era nem...
MG: Você batia nele?
D: Batia, apanhava e batia, apanhava e batia. Mas, mais eu apanhava, né, que mulher... Aí, eu não queria nada dele, não queria que ele
trabalhasse, não queria que nada, queria só ter ele junto de mim. Só o
prazer de ter ele de junto de mim. Aí pronto aconteceu.
MG: O quê?
D: Ah, ele achava que o quê ele queria já tinha, né? Já tinha conseguido.
Me pegou na adolescência, ‘me tirou de casa’, me botou um filho, então
pra... ali, pra ele não servia mais. Eu pensava assim, né? E ele dizia que
eu encarnava demais atrás dele, me humilhava perante a família dele.
A família dele também não gostava de mim, né, dizia que o filho
264 maria gabriela hita
dele era muito novo pra procurar família... E era aquele sofrimento.
Era eu dentro de casa brigando com mãínha e... a família dele comigo.
Não tinha apoio nenhum, quem me deu apoio foi a madrinha de
Jane. Né? Foi um atrás do outro, que sofrimento! Quatro filho, um atrás
do outro, rastando... Eu enchia pneu dos outros, né, carregava areia...
pras pessoa, areava panela que as pessoa me pedia, só pra botar um
dinheirinho na minha mão... Mãinha fazia cocada também, eu vendia
na rua... Pra sustentar eles, depois eu fui trabalhar na obra, né, de
ajudante de pedreiro, levei oito anos trabalhando de ajudante de
pedreiro. [Eu] Rejuntava, né, pastilha, trabalhava no balancinho, lá em
cima, no décimo oitavo andar, e eu lá na corda rejuntando... Só pra cobrir a necessidade dos meus filhos, não deixar eles passar fome...
né? Mãínha [quem cuidava dos netos]. Quando eu chegava, os meninos tava tudo descalço, tudo sujo, o quarto uma bagunça... Aí eu tinha
que vim, pra lavar roupa, dar comida aos meninos/ porque mãínha,
no meio de tanto, né. Que Lena achou de morrer também, deixar sete
filho... (Dina, 27/07/1999).
Dina sempre foi decidida e brava, de temperamento forte e batalhador, o
que também produzia muitos atritos e dificuldades de relacionamento com
os parentes, vizinhança e seu meio-parceiro/namorado. Desde cedo é identificada como portadora de comportamentos desviantes por suas explosões de
agressividade, taxada por todos como pessoa nervosa, com mais de um intento de suicídio na sua trajetória. E, na visão da irmã e maior rival:
[Sobre Dina] O temperamento dela é gravíssimo. Brava, ignorante, e
tem esse negoço de dizer que não vou bater porque não é filho meu, bater, entendeu. Bate, se ela entender de quebrar essa porta aí, ela vem e
quebra. Ela é muito nervosa. Diz mãínha que tem problema, mas eu
não acredito não, só acredito que é baixaria mesmo, baixo astral e ela
quer fazer porque quer fazer e pronto. Ela é muito nervosa, não obedece ninguém, é muito grossa, sai muito, acha que a pessoa é empregado [dela], humilha muito a mãe, eu não admito em casa, por
isso que ela não é muito chegada a mim. E é uma pessoa que larga o
trabalho ... nesse horário, ela já largou o trabalho, vem chegar aqui nove,
depois que os menino já tomaram café, já tomaram banho, mãínha já
fez tudo, aí e que vem chegando do trabalho bota o cú pra cima, vai dormir e o resto que se vire. Sai de manhã a mesma coisa, se tiver teve, se
não tiver, não teve. A outra [irmã – Merina] pela mesma forma. A outra
já disse mermo aos menino: ‘Não adianta porque eu não gosto de criança e não gosto de ficar em casa’. Não tem paciência com os menino e
bate logo. (Neneca, 12/05/1992).
a casa das mulheres 265
[Dina] Com o marido também, o marido dela também. Ela briga né
só com os pessoal de casa não, viu? Ela já quebrou o braço dele, já.
Já quebrou, já botou ele no Pronto Socorro. Levou não sei quantos
dia com o braço aí gritano com o braço, gritava mermo, doeno mermo.
[Essa vez ele] Não revidou não, ele já tá acostumado. [Ela] enfrenta faca,
revolve, discute com qualquer uma pessoa, pode ser marginal, pode ser
quem for, ela briga, discute. Não tem medo. Uma vez tinha uma pessoa
que... queria atirar nela aqui, ela foi em cima da arma. Se a gente não
tira... Uma vez ela cortou os pulso, eu tava falano com Mônica [outra das
entrevistadoras], num foi mãe? [...] [Doca- o pai dos seus filhos] Achava
que ela tava fingindo. Mas agora já se acostumou. Agora ele não fala
mais nada não. Agora ele já chega, se ela tiver brigando, ele já num diz
mais nada. Ninguém nem ouve a vez dele. Nem a voz dele (Rss). Depois
que ela quebrou o braço dele, ele nunca mais falou mais nada. (Neneca,
12/05/1992).
Para D. Cida, o problema nervoso de Dina começou aos 19 anos, quando
decide abortar uma gestação de gêmeos de cinco meses para se esterilizar.
Dina afirma que seu nervoso começara muito antes, desde sua primeira gravidez, entre os 12 e 13 anos, quando foi expulsa da casa, muito maltratada pela
própria família e pelo companheiro, pai de seus 4 filhos. Naquela época, ele
não a assumiu como ela desejava. A situação de Dina no grupo familiar era
inferior e com menos privilégios do que gozava Neneca: bem casada e estabelecida, ainda que dependente do apoio dos pais.
D: Quando eu olho meu/ eu que eu sou prejudicada hoje por causa das...
porrada... não tem mais.
MG: Prejudicada de quê?
D: Ah, a cabeça, né? Que eu sinto muita dor de cabeça devido às porradas que eu tomava dele [Doca] e de Téo também, né? Téo também
quando brigava com mãínha, que eu me metia, ele só batia em minha cabeça, né? Xovê... hoje eu sou inutilizada da mão também, né?
De tanto ele apertar, puxar... foi um momento de ... Pode falar? Cortei os
pulsos, cortei. Marrei, foi. Não, aí/ deixa eu dizer! Teve uma vez que ele
me bateu tanto, me bateu tanto, que eu tava com tanta raiva dos vizinhos... olhar pra mim no outro dia/ que eu ia trabalhar/ ficar perguntando: ‘o que foi isso?’, eu dizer que era queda, que era queda... Aí eu fiz
assim: ‘Sabe de uma? É, eu dando fim na minha vida, vai acabar tudo
isso. Ninguém vai saber de nada, os meninos tão crescendo vendo essas
266 maria gabriela hita
cenas’ – que Jane mais Nete, né? E os meninos, todos eles, gritavam muito
e ficavam impressionado com aquilo, e depois que eu subi pra morar
aqui em cima da laje de mãínha, aí que o sofrimento foi pior... Porque
pelo menos lá em baixo, né?, ele [Doca] tinha mais respeito a mãínha,
né? É,. [lá embaixo] não ficava só, sempre/sempre tinha alguém transitando. Mas aqui em cima era só. Então, era mais espancada. Tomava
muito murro! Aí eu vinha pelo caminho - que eu andava pela mata aí,
né?, pra cortar caminho – aí, eu vinha pelo caminho pensando: ‘Quando
chegar em casa eu vou... dar um fim em minha vida’. Aí eu peguei a gilete e ele/, quando eu cheguei em casa, ele já tava... me esperando. Me
esculhambando: ‘Vagabunda! Prostituta! Descarada!’. Bem que dava
vontade de fazer mesmo [deixá-lo e sair com outros], né? Mas eu tinha
aquele medo... [E pensava:] ‘É... Se eu fizer, ele vai me matar...’. Mas ninguém gosta de maltrato. Quando eu cheguei em casa e ele tava conversando comigo, ele conversando e eu de costas pra ele, ele não tinha nem
visto... aí o sangue descendo no meu braço. Eu disse: ‘É, agora você vai se
ver livre de mim’. Ele ficou com medo, gritou: ‘Mãínha!’ Subiu mãinha!
Subiu Neneca! Abalou a rua... Né? Todo mundo.
MG: E quando foi isso?
D: Ah, tem uns... tem uns cinco anos isso... Cinco anos isso... Né? Aí me levaram pro pronto-socorro, quando chegou lá, deu ponto... eu acho que eu
fiz raso, que era pra fazer mais fundo, né? Aí pronto, ele passou um bom
tempo, durante uns quatro, cinco meses me tratando bem... e eu sempre
estranhando, né? Porque quando a gente já é avisada de uma coisa, não
tem jeito. Eu sempre estranhando. Aí, quando foi um dia, ele chegou bêbado... [reiniciando o ciclo de violência doméstica] (Dina, 27/07/1999).
Naquela época, Neneca parecia mais dedicada à maternidade do que Dina,
não trabalhando fora de casa para cuidar dos filhos e atender ao marido, que
trabalhava na construção civil. Ele impunha autoridade frente aos filhos e,
por conta disso, Neneca não tinha maiores problemas para criar e educar
as crianças. Já Dina se encontrava só, sem tanto apoio do parceiro, tendo
que trabalhar para seu sustento. Dina dependia do apoio da parentela para
deixar os filhos aos cuidados da mãe, irmã ou circulando soltos entre os espaços da casa, a brincar com os primos, situações que sempre produziram
problemas de convivência, stress, cobranças sem fim e necessidade de negociações. Ela se queixava das dificuldades que tinha em administrar bem suas
relações com a família, filhos e meio-parceiro, que saía com outras mulheres,
as quais ela enfrentava, violentamente, ao contrário do exemplo da própria
a casa das mulheres 267
mãe. Com tantas responsabilidades, Dina se sentia sufocada e infeliz, enquanto Neneca recordava com saudade daquele período como um dos melhores e mais tranquilos.
Durante esta primeira fase da trajetória familiar, em suma, pode-se concluir que Neneca ocupou posição privilegiada na família, enquanto Dina
foi menos favorecida. No período em que seu Diógenes era vivo e que tinha
autoridade reconhecida no lar, manifestava, segundo Neneca, clara preferência por ela, a quem, como filha primogênita e que lograra atrair para o
lar um homem provedor com sua bem-sucedida união, cedera-lhe parte do
terreno da casa – o quartinho da frente – a partir do qual formaria a própria
casa no decorrer dos anos.
Nem sempre é possível distinguir o que são projeções de cada personagem
e o que foram fatos consumados. É possível notar, nos discursos mais recentes de Neneca e Dina, constante tendência à polarização, à apresentação
de versões distintas ou aparentemente contraditórias sobre os mesmos fatos
e pessoas, etc... projetando no plano discursivo muitas das disputas entre
elas. Seja pelo pai no passado, pela mãe em período mais recente, por uma
posição destacada ao interior da família, frente a parentes, pessoas externas,
vizinhos, ou na mesma disputa que travaram pelo espaço físico e terreno
da casa. Discursivamente, encenam um movimento eterno de buscarem superar a outra em tudo. Até minha presença e atenção em campo passou a ser
elemento de competição. Suponho que pontos nodais de uma maior inconsistência aparente na informação, quando confrontados com os relatos de
distintos atores envolvidos, permitem visualizar e diferenciar melhor o que
sejam vivências ou construções mais subjetivas de alguns dados, o que é consensualmente fato indiscutível por vários dos envolvidos, e identificar, em
certos momentos, a presença de alguns segredos familiares. É curioso como
Neneca afirma ter sido quem ajudava o pai nos trabalhos de Candomblé e
ser, a mais interessada e verdadeira herdeira de suas crenças. Do mesmo
modo, afirmou ser ela quem ajudava mais a mãe nos trabalhos dos partos e
de saúde quando era criança. Dina recorda como ela era a encarregada pelo
pai de ir buscar e preparar os pós de pedras, e algumas das garrafadas dos trabalhos de Candomblé a ele encomendados. Ao mesmo tempo, confessava
não acreditar nessas crenças que identificava com pura charlatanice. Mas sabendo que sua irmã Neneca acreditava, Dina mandou colocar um bozó (tipo
268 maria gabriela hita
de trabalho encomendado contra inimigos, com uma galinha preta morta e
velas) na porta de entrada da casa de Neneca.
Dina era acusada pela irmã de ser mandante do bozó em momento de
alta conflitividade entre as duas. A família conta, por sua vez, que a mais interessada em Candomblé e que fazia partos com a mãe era a falecida Lena.
Penso que todas as versões são corretas e complementares em diferentes
graus, cada uma trazendo a própria experiência implicada nas distintas
interações da dinâmica familiar e que apontam para uma vivência compartilhada de todos e valores sobre o Candomblé. Até mesmo no caso de
D. Cida, que afirmara ter maior distanciamento (desde seu discurso mais
racionalizado e científico do mundo da medicina em casos de doenças),
mas que certamente respeitava e até no que parecia por momentos acreditar. Poder contrastar as distintas versões e perceber na fala de cada personagem (staindpoint segundo Haraway [1991]), o saber localizado e situação
do mundo de cada um, foi uma das principais preocupações da pesquisa
que procurou evidenciá-las e analisar o contexto relacional do grupo familiar a partir de distintos focos e de posições muitas vezes conflitantes.
A rivalidade entre estas irmãs e outros membros do clã de D. Cida é melhor
iluminada a partir de uma interpretação do paradigma da dádiva, já que a reciprocidade (alianças) e sua quebra (rivalidades) pode ser vista como uma relação entre diferentes, que não dissolve as partes separadas dentro de uma unidade maior, senão que correlaciona a oposição e a perpetua, na competição
constante das duas irmãs pela honra e dignidade, da qual nasciam seus ódios,
invejas e guerra. O paradigma da dádiva, segundo Caillé (1998), recupera nova
versão do diálogo entre o caos e o pacto, sendo uma espécie de contrato social, onde a guerra de todos contra todos pode ser substituída pela troca de
tudo entre todos ao longo do tempo, como se verá em períodos posteriores.
Nas inúmeras disputas por ocupar uma melhor posição na estrutura familiar, que evidenciava a dinâmica relacional da família, cabe destacar o modo
como ambas as filhas se aproximavam do pai ou da mãe em determinados
momentos na busca de maior reconhecimento, afeto e privilégios, disputando por melhores lugares na casa e herança familiar. A posição ocupada
por Dina e Neneca na parentela foi se invertendo com o passar dos anos.
Mudança que resultou dos recursos à disposição de cada uma e dos ativos
que lhes foram possível mobilizar, tais como fases de maior autonomia eco-
a casa das mulheres 269
nômica, graus de simpatia entre a parentela, maior prestígio ou reconhecimento da vizinhança, etc.
SEGUNDA PERSONAGEM CENTRAL
Neneca
(Avó, 42 anos, Dona de casa, 2 uniões; viúva do primeiro marido,
com o qual teve sete 7 filhos)
Com habilidade especial para a expressão oral, prazer e disponibilidade para
falar, o linguajar de Neneca era dos mais ricos em imagens metafóricas. Não
sei o quanto acreditava em muitas das histórias que me contava, se estava
ela mesma embarcando no que me pareciam ser fantasias ou exageros, ou
se faziam parte do seu modo de ser, ou parte de seu jogo e diversão, testando minha capacidade de percepção/ ou sua habilidade de convencimento.
Inicialmente, minhas desconfianças e incompreensão atrapalharam nossa
relação e empatia, talvez por minha pouca habilidade de saber entrar no jogo
de suas conversas e fantasias ao supor que queria me enganar. Parecia ficar
decepcionada ao ver que eu buscava também entrevistar outros familiares
e que nem toda a minha atenção e tempo seriam dispensados apenas a ela.
Apesar da tensão e frustração mútuas nesta relação e nas nossas expectativas iniciais, fomos aprendendo a nos aceitar, respeitar e comunicar. Demorei
algum tempo para perceber que, mesmo sem serem sempre verdadeiras, as
histórias estavam plasmadas de imenso valor pela reconstrução narrativa e
metafórica da realidade da qual falava – através delas alguns segredos familiares foram lentamente revelados ou sugeridos.
Durante a infância, Neneca tinha relação de grande proximidade, amizade, cumplicidade, mas também de marcante e declaradas disputas com a
irmã de criação, Merina. Ambas têm marcas no rosto – queimaduras e cicatrizes − resultados de brigas, acidentes e disputas desde aquela fase até a
juventude. Já adulta, e enquanto D. Cida era viva, pelo temperamento fuxiqueiro e criador de intrigas – segundo a parentela − Neneca se afasta das
duas irmãs vivas, Merina e Dina, mantendo especialmente com Dina, a irmã
consanguínea, maior rivalidade, ciúme, invejas mútuas e visível inimizade.
270 maria gabriela hita
A filha de Neneca (Lia) usou a expressão olho grosso (um tipo de inveja) para
definir a relação entre elas. Os depoimentos a seguir de Neneca e Merina expressam como viam as respectivas infâncias e relações que foram surgindo
entre elas:
MG: Conte-me como eram as relações entre vocês todas na infância.
M: Ah, eu... eu quando era pequena... a gente brigava muito! (Rss) Eu
com/com Neneca... [com] Dina também... e tinha Lena! A gente brigava
aqui um pouquinho, só.
MG: E com quem tinha mais amizade?
M: Ah naquela época, com Neneca. É, essa aí de baixo.15 A gente era
bem chegado. Saia pra escola junto, ia pra festa... era bem junto. E a finada Lena. Também, era bem chegado. A gente ia pra festa junto.
MG: Lena era a mais velha?
M: É. Lena era a mais velha. Lena era mais velha do que eu. Eu já tenho
41, Lena morreu com 38, não foi Dina? [Dina interrompe e diz: ‘morreu
com quarenta e... e três anos’] Ah, eu não me lembro não [...] Eu era, eu
era mocinha. Lena quando podia comprava anel pra mim, anel pra...
Neneca. Assim, aquelas aliancinhas que tá fingindo que tá fumando cigarro de papel... Aí depois Lena foi embora daqui, né? Arranjou marido,
foi embora. Aí ficou eu e Neneca. Dina era pequena, Dina é a caçula, é...
Eu dava banho em Aurélio, meu irmão... dava banho em Dina. Eu dei
banho até em Neneca! Foi. Dei / dava banho em Neneca... aí eu sempre
gostava muito de cozinhar... Aí mãe falava: ‘uma cozinha, a outra varre
a casa... a outra lava os pratos’. Aí Neneca largava tudo pra mim. (Rss)
Aí eu fazia tudo. E mãínha era aquela luta de pegar menino [realizar
partos], né? Ela era parteira, saía, as mulher aí pra pegar... toda hora,
qualquer hora que chegava aqui ela ia embora pegar menino. Aí eu ficava tomando conta da casa, das crianças.
(Merina, 23/01/2000).
Neneca: Merina... eu não era muito chega/ nunca fui chegada a ela, estudamos juntas – só quando era criança, que a gente estudou junto e tal...
Mas, eu vou lhe ser franca a você, ela não se dava muito bem comigo
15
A entrevista foi feita na casa de Dina (conhecida como a de Cima)
a casa das mulheres 271
porque ela gostava muito de maltratar meu pai. E com meu pai eu
me dava muito bem. Eu me dava bem demais com ele/ qualquer coisa
era com ele: dinheiro era com ele/ era comigo, se ele vinha da rua – é/
ele vinha bêbado/ brigasse com mãínha, ele me chamava a mim, eu tava
ali rente com ele – as outras não... Ninguém queria se dar bem com ele.
Ninguém queria. Ninguém queria aceitar também ele, que ele só vivia
bebendo. Merina é porque − é assim mesmo como eu tô lhe dizendo – a
gente nunca se deu bem, não era do mesmo sangue, entendeu? Meu
pai também não se dava bem com ela. Quando ele botava umas duas na
cabeça começava a implicar... e essa implicância ela respondia, queria falar mais alto do que ele, queria gritar mais do que ele... E elas tudo tinha/
tinha... inveja! Eu considero isso inveja. Porque ele se dava bem comigo e não se dava bem com elas, então elas nunca ia se dar bem comigo...
E... esse clima aí que cê tá vendo, até hoje é isso! (Neneca, 23/02/99).
Diferente da mãe, que começou mais tarde, Neneca engravidou muito
cedo de Lia, a sua primogênita, por volta dos 14 anos:
Eu tive [filho] com quinze [anos de idade]. Mas mãínha era uma pessoa
que criava muito menino da rua e então o costume, nem sei, não achei
nem muita diferença não. Quando começou a chegar esses menino tudo
aí. (Neneca, 18/03/1992).
Seu companheiro, homem trabalhador e bem mais velho que ela, por
aceitar se unir a Neneca, foi bem recebido e integrado ao grupo familiar.
Depois de alguns anos de convivência e do nascimento de quatro dos sete
filhos, Neneca oficializou a relação casando no civil, ato do qual muito se
orgulhava e que destacava como signo de superioridade moral em relação
às outras irmãs. Entre elas era então a que tinha melhores condições econômicas e maior estabilidade conjugal, afirmando sua identidade de mãe e
dona de casa.
Entretanto, esta condição de estabilidade conjugal como mulher bem casada que a aproximava a um padrão familiar de classes mais altas mostrou ser
mais frágil do que aparentava. Há evidências claras de que alguns dos filhos
– aparentemente dois deles – poderiam ser de outros homens que não do falecido marido, já no final do casamento, quando este passara a se entregar ao
vício da bebida. Um deles, segundo Dina, teria sido resultado de um relacionamento extra-conjugal com o ex-cunhado, parceiro de Merina, que passava
272 maria gabriela hita
uns tempos na casa de D. Cida, provavelmente no período em que Merina foi
trabalhar como empregada doméstica em São Paulo.
Em certa ocasião, Neneca comentou-me em segredo que Luana – sua 6a
filha com síndrome de Down (algo parecido ao problema do tio Aurélio, mas
identificado por eles como tendo foco na cabeça) – não era filha legítima do
primeiro marido; teria sido fruto de uma relação dela com um gringo-italiano,
dono do restaurante onde trabalhou e onde aprendeu a cozinhar (dotes com
os quais diz ter conquistado o cunhado e também o segundo companheiro,
contava faceiramente). Mas Luana, contou-me Dina revoltada, é a mais escura de todos seus filhos, como o ex-parceiro de Merina do qual Neneca teria
engravidado e, segundo Dina, teria enviado um aviso a Merina em S. Paulo,
via telegrama. Pensei que o relato sobre Luana como sua filha ilegítima com
homem italiano era uma metáfora por analogia, e sua forma de representar
um fato real, em processo simultâneo de revelação e encobrimento, invertendo, ocultando e também expondo alguns dos fatos da sua vida nessa narrativa. Quando a inquiri de como uma filha de italiano foi sair a mais escura
de seus filhos (Neneca é morena clara), alegou que foi um vento de jeito.
Outra filha aparentemente ilegítima também registrada pelo marido pareceria ter sido uma pequena chamada Leonora, a caçula, que teria nascido
por volta de 1985 e que morrera bebezinha, uns dias após a morte de seu
Diógenes, situação que associa à morte da bebê, aparentemente a uma surpresa que o pai lhe prometera fazer, antes da morte. Falando dessa época e
mortes, Neneca revelou:
N: O meu marido, pai dos meus filhos, se unia muito com ele [meu pai].
Ele era mesmo que... coisa e tudo...
Neta presente disse: É. Ele se unia. Tanto é que um morreu em 85, o outro morreu em 86. Um ficou chocado com a morte do outro.
N: E antes dele [Diógenes]/ um dia antes/ uma hora/ duas horas antes...
dele morrer, ele falou pra mim assim: ‘Ói... eu vou fa/’ eu tava parida... aí
ele fez assim: ‘Eu vou fazer uma surpresa, vou mandar um presente pra
você. Vou mandar/ fazer uma surpresa pra você. Vou fazer uma viagem
e de lá eu mando um negócio pra você’. Aí eu disse assim: ‘tá certo’/ porque eu tava pensando que ele ia pra Mar Grande [Ilha Itaparica], que ia
trazer alguma coisa de lá pra cá, né?... Não era! A surpresa foi que... ele/
ele morreu no dia 12 de setembro, [e] no dia 27 levou minha filha!
a casa das mulheres 273
D. Cida: ‘Levou minha neta’.
N: Levou minha filha! Morreu assim, ô. Eu fui pro enterro, quando eu
cheguei do enterro... ela aí começou a chorar, chorar, chorar, chorar, chorar, chorar...[ao que parece foi consequência de uma queda] levei pro médico, chegou no médico ela morreu! Nem atestado de óbito eu tenho da
menina!... Morreu!! Era! Léonora! Era... três meses mais ou menos... bebê.
Essa era a surpresa que ele ia mandar! No outro ano, antes de comple/
dele completar um ano, meu marido morreu!
MG: A morte de seu marido foi outra surpresa?
N: A da menina foi! A menina foi.
MG: Porque?
N: A menina era linda demais! É. Alguma coisa, alguma coisa de/ de
ruim não ia dar certo... Sabe o que é uma pessoa ter uma filha linda? Cê
já viu uma menina linda! Dos olhos azuis... Pode ser?! Eu/ de/ preta! Eu preta, pobre, ter uma filha dos olhos azuis?! Só se meu marido também tivesse os olhos azuis/ ou então alguma pessoa da família,
só que eu fiz uma filha branca dos olhos azuis! A surpresa foi essa! De
repente...
MG: E você gostou dessa surpresa?
N: Não, não gostei da surpresa, não. Mas alguma coisa de ruim ia
acontecer.
(Neneca, 26/7/1999).
Sem explicitar totalmente, deixou subtendida a preocupação que ela e
a família tinham com a identidade do bebê, como se este filho pudesse vir
a ser a prova da sua infidelidade, e por isso, a morte teria sido interpretada posteriormente por Neneca como um presente do pai para a proteção
da sua respeitabilidade.16 Mas foi quando falou da filha ser fruto de outra
16
Nos estudos de gênero de certas culturas mediterrâneas tende-se a identificar a honra masculina como o contraponto da vergonha feminina. No Brasil esses termos não aparecem tão frequentemente na fala das pessoas e são termos basicamente usados por estudiosos, resgatando
um modelo teórico que tem sofrido muitas críticas quando aplicado rigidamente em sociedades latino-americanas. Peter Wilson (1969,1973, apud REBRUN, 1999) em um esforço de criar
um modelo mais próximo às sociedades americanas da diáspora africana substituiu aqueles
274 maria gabriela hita
relação que ela mencionou ter sido com um italiano. Fiquei pensando se
ela estaria trocando informações para despistar, mas revelando outra parte
que era verdade.
Ainda sobre os filhos, é curioso notar que o nome de todos inicia com a
letra L (muitos com Léo) e que vêm do nome do pai que os registrou, Seu Léo,
ainda que o privilégio da escolha do nome era de seu Diógenes, o chefe da
casa quando vivo, contou-me Neneca. No final da vida, Seu Léo bebia muito
e Neneca associava sua morte a um acidente de trabalho por causa de bebida.
Neneca comentou sobre esta fase:
[Vivi com o primeiro marido] Treze anos. Treze anos. E foi aí que ele faleceu também. Ele morreu. Só queria saber mais de beber, bebia demais,
mas era um homem trabalhador, num faltava nada pra mim nem pros
menino, trabalhava, ganhava semanal, mas nunca faltou nada, nada,
ele nunca deixou faltar nada pra esses filhos, nunca ficou parado três
dias, se ele ficasse ele arranjava qualquer biscate para fazer, mas num
ficava. A morte dele foi porque começou cair da firma, ele trabalhava
no guincho lá, aí desabou um saco de cimento lá, eles enchiam muito
de cimento, só aí, como ele tomou a porrada nas costa, aí começou a
sentir doendo, né? [...] o coração dele estava inchado, inchou um lado do
coração, né, tava inchadão. [...] Quando eu cheguei lá no Pronto Socorro
[...] Eu entrei fui pra lá pro banheiro com ele, ele sentou, mas assim que
ele sentou, ele morreu. Assim, ele foi sentado foi... me pediu pra eu tomar
conta de um filho escurinho meu, Lelo, né, falou ‘tome conta de Lelo –
apelidadeo de Lico – e de Lela’ [...]
Sabe? Então eu acho que ele [primeiro marido] também num tinha amor
não, porque do jeito que ele me deixou... Que sem... ele bebia, ele era alcoólatra né? Eu dizia pra ele que ele num bebesse e ele dizia pra mim
que a bebida era mais importante do que eu. Tanto é que foi tão importante que levou ele. Ele preferiu beber demais, pra morrer, do que
me obedecer, ficar comigo. Eu acho que ele também num tinha esses
amor todo por mim não, então num me arrependo de num ter dado
amor também, muito amor pra ele não. Eu cumpria minhas regra,
entendeu? Vivia com ele numa boa, enquanto ele num bebia, enquanto
ele num chegava em casa bêbado né? E não me dissesse nada, que eu
também não era mole, se me dizer, ouve também. Até com esse aí,
esse Gilsinho [segundo companheiro, o da fase da entrevista], se ele me
termos pelos de reputação, mais aplicado aos homens e o de respeitabilidade é mais aplicado
às mulheres.
a casa das mulheres 275
dizer, ele ouve, ele sabe, num, ô... num ouço desaforo, de homem eu
não vou ouvir desaforo. (Neneca, 21/01 2001).
Aí depois dessa morte dele começou meu sofrimento. Comecei a vender
tudo, que eu tinha minhas coisinha tudo direitinho, eu tinha estante, eu tinha liquidificador, meu fogão não era esse, tinha mesa, tinha
radiola, aí vendi tudo porque pegou, né? [...] Fiquei com uma pensão
só dele, só minha, porque os menino não recebe nada. Disse que é porque
ele era servente, aí não tem direito, quer dizer, eu não tinha direito a essa
pensão, só quem tem é os meninos porque é menos de um salário mínimo. Já andei tanto... porque os pessoal diz “Ó menina, você, você consegue, que não sei o quê, os menino tem direito... a deficiente tem direito”,
porque todo mundo é filha dele, né? Registrada e tudo! Vou no INPS, tem
uns... tem um mês mais ou menos que eu fui, não foi Lia? [...] quando eu
consegui falar com... o supervisor lá o homi disse “não, porque isso é assim mesmo isso aí tá incluído o dinheiro dos menino”, eu disse “ah, meu
Deus, eu tenho duas menina deficiente, é [só] esse dinheiro?” Ele disse que
era esse. E tem gente que diz que recebe dinheiro de menino separado.
Pra quê que vai dar esse dinheiro?” (Neneca, 12/05/1992)
Frente às dificuldades econômicas e com as duas filhas menores deficientes em casa – que a impediam de se afastar para trabalhar, argumentava
Neneca – o jeito era depender dos favores dos familiares que trabalhavam: da
mãe, do novo companheiro ou da filha quando esta casou, pois eles administravam melhor que ela seus recursos:
N: As minhas irmãs eu tenho que paparicar, que a gente tem que paparicar, né?
MG: Porque?
N: Porque sim. Porque elas trabalham, eu não trabalho, entendeu?
Elas vão pá rua trabalhar e eu fico em casa. Eu tenho que paparicar e
me humilhar aí. Com Medo de mãínha morrer e depois elas me botarem daqui pra fora e eu não vou ter onde morar, e eu tenho que
xeretar aí, né. Elas trabalham, às vezes compra comida e eu pego escondido dela, pego mermo, quando eu não tenho nada aqui eu pego, aí,
elas chega vão contar pra ver se tá faltando pra ver se fui eu que peguei,
eu não digo nada, não falo nada, elas brigam muito, elas brigam muito.
(Neneca, 12/05/1992).
276 maria gabriela hita
Que minha mãe [Neneca] tem uma coisa... ela... o dinheiro dela não é só
pra comer. Ela... tem o cigarro... Se ela tiver com um real pra comprar o
pão e o cigarro, ela compra/ prefere comprar o cigarro. Jogo de bicho... o
dinheiro dela vai todo nisso... Ela faz bicho, esse negócio de/de... de bicho.
O dinheiro dela vai todo nisso. Aí pronto! (Lia, 8/02/1999).
Quando Neneca enviuvou e se viu sozinha com sete filhos para criar,
adotou a mesma estratégia anterior para sua sobrevivência: a conquista e
atração de um novo companheiro que pudesse ajudá-la a se manter, sempre
esperando dos outros a resolução dos problemas materiais mais imediatos.
Essa estratégia é também adotada pela filha mais velha. Gilson, seu novo
companheiro, era, quando conheceu Neneca, um homem casado, com dois
filhos e morava com a família na casa de sua mãe, no bairro do Uruguai
(bairro de classe média baixa, de status social sutilmente melhor que o bairro
de Neneca). Neneca entrou na vida de Gilson declarando guerra à sua ex
-mulher, decidida a ganhar o homem para si, o que conseguiu, afirmou, com
sabedoria, audácia, suas irresistíveis lasanhas e pratos italianos. Encantado por
Neneca, Gilson passou a visitá-la sorrateiramente pelas noites no quartinho
onde morava com os filhos, chegando à casa no meio da madrugada. Isso
foi acontecendo até ele se mudar de vez para viver nesta configuração de
casas de D. Cida (naquele momento o quartinho da frente de Neneca). A filha
Liliane fala como foi a chegada de Gilson na casa:
MG: Como é a relação de vocês com Gilson? Sempre foi assim?
L: Ah, no começo a gente não aceitava não, aí depois... quando ele veio/
ele pediu a minha vó <pequeno Riso>, pra namorar com minha mãe/ a
gente começava a dar risada/ ele era muito brincalhão... aí a gente foi se
apegando a ele, se apegando, aí... tái até hoje.
MG: E como está agora?
L: Legal, né? Ta fazendo ela feliz até agora. Não traz tristeza. Tá legal.
(Líliane, 27/01/2000).
Gilson, desempregado, dependia muito dos biscates e da ajuda da própria mãe.17 Aos poucos, e com muita pressão de Neneca, Gilson foi fazendo
17
A mãe de Gilson é quem o ajudava a manter os filhos dele com a outra mulher (mulher e filhos
que continuaram vivendo com a mãe de Gilson durante muitos anos, pelo que provocava ciúmes
a casa das mulheres 277
pequenas melhorias no reduzido quartinho onde moravam amontoados
com quase todos os filhos de Neneca. Com escassos recursos e espaço físico,
construiu um quarto e banheiro na laje, e embaixo dividiu o espaço criando
uma cozinha separada da reduzida sala. Trocou o chão de barro por um de
lajotas. Rebocou e pintou paredes.
Gilson até chorar, Gilson tá chorano, nunca vi home chorar e Gilson tá
chorando, não tá achano trabalho. Gilson tem profissão, Gilson é armador e pulidor, e ele não tem, tá pegano qualquer coisa. Nem bisca, ói, parece que foi uma coisa mermo que nem biscate. (Neneca, 18/03/1992).
Gilson fez segundo grau completo. Ele sabe conta muito bem, eu aprendi conta depois que eu vim morar com ele e que eu vim aprender conta
de dividir de três número, de quato número. Mas a educação, os respeito
dos menino eles num respeita não. Gilson brinca, brinca, ensina o dever,
quando os menino chega do colégio ele pega o caderno que ele, ele é formado né, ele é bem estudado. (Neneca, 18/03/1992).
Gilson se divorciou da primeira esposa e desejava efetivar a nova união
com Neneca no Registro Civil, proposta que Neneca rejeitou para não perder
o direito à pensão de viúva. Nela se percebiam, nos últimos anos, atitudes de
rejeição ao pacífico, tranquilo e paciente Gilson, a quem a parentela via como
um homem fraco.
Pela grande quantidade de gestações e partos, o útero de Neneca ficou fragilizado, com diagnóstico médico de improvável nova gestação, o que poderia
explicar a ausência de filhos do novo companheiro com o qual coabitou mais
de 10 anos em fase ainda reprodutiva da sua vida, e a quem conheceu antes
dos 29 anos. Mesmo assim, ela voltou a engravidar em 1997 (cerca de 13 anos
depois do nascimento da filha caçula), quando não esperava nem desejava
doentios em Neneca). Essa senhora colaborava também com alguns dos supermercados e feiras
para o orçamento da família de Neneca. Era ela quem comprava os remédios e comidas especiais que o filho Gilson precisava desde que desenvolveu diabetes. Esta senhora muito magrinha,
baixinha e de pele bem escura como o filho Gilson, usava óculos de alto grau, tinha voz macia,
meiga e baixa, indicando ser meio tímida. Costumava visitar o filho e sua nova família alguns
dias de domingo, porque Neneca se recusava a sair de casa para o Uruguai, alegando não ter
com quem deixar suas filhas menores deficientes – em privado reconhecia que tinha ciúme da
ex-mulher do companheiro ao qual, por sua vez, tanto parecia rejeitar. Também na relação de
Gilson com sua mãe, como a de Doca com a sua, se evidenciava a relação de dependência e proximidade com os lares de origem. Quando Neneca e Gilson se separaram em 2001, ele voltou a
morar na casa da mãe.
278 maria gabriela hita
mais ter um novo filho. Na mesma época, a filha de Neneca, Lela, e a namorada do filho Léo – Mila – que passou a morar com eles na casinha de Neneca,
estavam esperando seus primeiros bebês. Os conflitos e desentendimentos
familiares eram sem fim naquele reduzido espaço de convivência. Diferentes
interesses e conflitos entre distintas individualidades precisavam ser cuidadosamente administrados por seus moradores.
Dos três bebês a caminho, o de Neneca faleceu, causando grande ressentimento em Gilson e tristeza em Neneca. Várias histórias, algumas contraditórias, foram inventadas posteriormente em torno desta situação. Eles levantaram a hipótese de estarem sendo vítimas de chantagem e que teriam
sido informados por uns telefonemas anônimos por volta de 1999 não da
morte, mas do roubo da criança no hospital, para ser dada em adoção, e que
a pessoa teria como provar e mostrar onde o filho deles se encontrava. Como
a briga com Dina nessa época tomou dimensão inesperada, Neneca desconfiava poderem ser esses telefonemas resultantes de sua maldade. Por sua vez,
piorava o relacionamento com Gilson, pois Neneca também desconfiava ser
enganada por ele e alguma amante do companheiro, que inventaram a história somente para despistar. Mas também embarcava na argumentação e
achava ser possível que o filho estivesse vivo e, se tivesse o dinheiro que a
chantagista lhe pedia, dizia, seguiria adiante para ver no que a história iria
dar. Veja-se na entrevista realizada com Gilson, homem tranquilo, passivo e
generoso, o ressentimento que mostrava pelo lugar que ocupava neste complicado grupo doméstico (como dirá em outros depoimentos) e pela falta de
respeito dos filhos de Neneca e as dificuldades de relacionamento com a parceira que começavam a se evidenciar:
G: [Sou] Gilson da C. B. [E] Tenho 39 anos.
MG: Você tem filhos? Já foi casado? Conte como era sua vida antes
G: Eu tenho dois [filhos], já fui casado. Morei [com essa outra mulher] dez
ou onze anos. Era uma relação até boa só que/ mas... Por causa de que
ela... discutia com minha mãe/ isso eu detesto [motivo porque separou]. Eu morava com minha mãe, quer dizer/ ela morava numa casa, eu
morava encostado [...] Aí... larguei. Meu pai morava no Nordeste.
MG: Conte-me como conheceu Neneca
a casa das mulheres 279
G: Neneca eu... tava aqui na casa de meu pai aí... uma colega... uma colega minha que... Uma colega daí... de... quer dizer, uma cunha/ uma ex-cunhada minha que apresentou... eu a Neneca [Ele normalmente gagueja].
Aí... nós começamos a sair... Aí... Nem um ano/ nem um mês, aí eu já
tava aqui. <Rss>.
MG: Paixão Roxa!
G: Eu até agora não sei se era paixão roxa/ roxa ou se era... o problema
que eu tava passando, aí aproveitei... e... Eu tenho ... tenho onze anos [que
vive aqui, com Neneca]. É, mas... ficou... os três anos... os primeiros três
anos, todo uma beleza, mas depois começou a... a mudar, mudar, que...
A relação da gente começou a... ficar ruim... os meninos/ começou a
de/ não me respeitá... não respeita nem a ela, nem a mim. Esse é o
pior problema da casa! É o respeito. Tanto dela... Tanto dela... comigo quanto... dos filhos pra comigo. É... que a dificuldade é bastante...
G: Eu/ é/ ói... como eu disse a você... Como pai é ruim. Pior é padrasto.
Ainda é pior... E você como padrasto... tudo que acontece de ruim...
é o padrasto... o padrasto não pode tocar na mão/ não pode tocar a
mão porque aí vai dizer: ‘ah, você não pode bater porque você não...
não é pai’. Muitas coisas já aconteceu aqui por isso. Já ouvi muitas piadas, muita indireta. Aí eles [filhos de Neneca] foram criando... criando asa,
criando asa. Aí pronto... e perdi esse/ o respeito totalmente. E... porque... filha mulher... ainda é pior, porque filha mulher tudo que acontece... Neneca mesmo tem um problema da porra com essa... essa Lela. Ela
[Neneca]... ela fala/ fala demais. E só fala coisa que não deve. Diz que
eu tenho relação com/ que eu tenho relação com Lela... Isso eu nunca
tive/ eu/ é/ p / pessoa que já disse a ela: eu prefiro ter... relações com
as pessoas de lá da... da vida... fácil, de que com a filha dela. Eu já disse
isso a ela várias vezes, mas ela... continua ... Eu também tomei ódio dela
[Lela] porque ela não faz... nada, dentro de casa. Lela. Faz nada dentro de
casa e Neneca apóia...
G: Uma vez ela... disse a.... disse a Neneca que ela preferia ver Neneca
morta...caída da escada... Tanto é que... Neneca tava grávida de uma filha minha... juntou ela e a namorada do irmão Léo, a amiga [Mila, mãe
de Pedro, que também estava grávida todos morando na mesma casinha]... Aí, começou: Neneca grávida, [elas e Léo] começaram a... pirraçar
Neneca - tanto é, que minha filha... Por causa de... de negócio da briga
das namoradas, e ela... por que... tudo que Neneca falava ela queria bater em Neneca e aí... fui criando ódio. Hoje há... um ano atrás minha fi-
280 maria gabriela hita
lha... faleceu... e tão eles [Lela e Léo]... com o filho tudo aqui... Eu/ eu, sinceramente... eu às vezes tenho até pena de mim, véi [velho!]... e às vezes
eu tenho ódio... porque uma filha minha faleceu por causa deles, e ela/ e
eles tão aqui... eles que fizeram todo o drama tão aqui/ todos os dois... o
filho... não é obrigado você... aceitar uma filha e um filho, não... dentro
de casa/ dentro de casa [se] ele não respeita você. Não é obrigado não!
Né? Não existe lei... Porque eles tão com essa mania ‘por que é de menor’... Tem nada de menor! Dinho [Léo] não é mais de menor... Lela [ou
Mako como era chamada], desde quando... ela já teve um filho, ela sabe
que é pra ir... pra mim já/... não tem de menor certo... (Gilson, 31/01/99).
Neneca tinha sérios problemas de autoridade com os filhos, e quando
eles entravam em choque com Gilson, que procurava defendê-la, ela tomava o partido dos filhos, o que o deixava ressentido. Também nisso a lei do
sangue precedia e se impunha sobre a da afinidade. Neneca revelava comportamentos de imaturidade e mantinha com os filhos uma relação de camaradagem e coleguismo bem distinta à de uma mãe com autoridade. Ela
se colocava em posição similar à dos filhos, como mais um deles, disputando
um picolé ou copo de Coca-cola infantilmente, sem a autoridade que Dina
tinha, por exemplo, com os dela. Essa diferença de temperamentos explica,
em parte, porque ao longo dos anos Dina foi ganhando força e compartilhava
mais características do temperamento de D. Cida do que Neneca, como
certa autoridade com terceiros e capacidade de trabalho. Neneca se queixava
muito dos filhos, mas dificilmente agia ou se impunha. E os conflitos foram
ficando cada vez mais graves à medida que foram crescendo e o desrespeito
e as brigas constantes foram marcando o modo de vida deste pequeno sub-grupo familiar. Mas, era com a filha Lela, aliada da tia/irmã Dina, com quem
Neneca tinha mais dificuldades de relacionamento. Vejam-se seus depoimentos, em distintas fases de conflitos, e quando se acirraram na fase mencionada pelo companheiro Gilson:
MG: O que está acontecendo com você e Lela? Ela parece que está magoada com você.
N: Alguma coisa tem, porque em branco é que não é, pra ela tá com esse
ódio de mim dizendo que eu não gosto dela... tem alguma coisa aí. Olhe,
eu não dou roupa a Líliane, a Lia, não dou roupa a Dinho, a Lela, não
dou roupa, não dou sapato, não dou nada, o que eu posso fazer eu faço
se me pedir e eu tiver eu dou, mas dar ... eu nunca dei nada os z’outros.
a casa das mulheres 281
E no que eu vou tratar as meninas melhor do que ela? Não tenho condições, não sei o que é que tá existindo.
(Neneca, fevereiro de 1996).
N: Eu... luto!... arrumo casa, varro casa, cuido de duas filhas doentes,
entendeu? Faço comida... Pra eles chegarem encontrar comida pronta...
Eu compro uma televisão, boto dentro de casa pros filhos meu quebrar?! Boto um telefone dentro de casa pra um filho quebrar?! Um
vídeo, pro filho pegar e jogar pra cima e dizer que vai quebrar?!
Quebrar uma geladeira, quebrar um fogão?!... Tem/a grande parte da
igreja diz: ‘ah, você não pode guardar mágoa no coração’ mas a gente
não guarda mágoa, a gente alembra! (Neneca, 27/01/2000).
N: Esses menino [estão] tudo fora do eixo, num quer respeitar. As minhas filha mermo, meus filho, respondão. Agora que a fase tá pior, agora
que é ruim mermo. Eu querer bater, num poder, pô eu vejo grande
assim, daqui a pouco esses meni... eu quero dar uma porrada neles,
eles vão [a]vançar em cima de mim, porque cê sabe que avança?
Avança! Eu tenho que livrar minha cara minha filha, porque se eu num...
eu já disse a mãe, a próxima agora eu vo... sinto muito, mas já... tá vendo
uns cabo de vassoura alí no canto? Num tem? Alí no canto da escada,
alí é pá quando começar a derrubar minhas coisa, quebrar meus copo,
entendeu? Eu tinha um jarro bunito aqui em cima da mesa que Jerson [o
genro, unido à filha Lia] me deu [...], esse daqui chegou [referindo-se a seu
filho Léo], ele me deve essa comédia, ele chegou e quebrou entendeu? Ele
quebrou meu jarro. Eu disse a ele que ele vai me pagar meu jarro, nem
que saiba... u... uma hora, mas ele vai coisar. Essa Lela, esses copo aí, ei,
tinha essa banca alí cheia de copo, ela quebrou todos, sabe o que é todos? Ela quebrou tudo, e eu vendo assim ela quebrar. [...] Ela chutou com
o pé a mesa que eu recebi a mesa aqui assim, se eu num te... recebesse
ela [ a mesa] aqui assim, ela ia bater direto na televisão, ela jogou pá pe...
‘Jogou pá pegar na mãe’, [e ela me dizendo:] ‘Joguei pá pegar mermo, eu
te odeio!’, assim, na minha cara. Aí na hora que viu o negócio... que eu
vi que o negócio tava muito quente demais... que eu não agüentei mais,
mas botei ela alí no canto, mas ‘dei-lhe’. Veio pra mais de oito em
cima de mim, veio Gilsinho, veio o marido de Dina, veio o marido
de Lia, veio mãínha, veio os menino tudo. Na hora que eu alucinei,
que eu vi tudo no chão, que eu olhei pro chão, que eu vi tanto vidro no
chão, tanta coisa no chão, e ela dizer assim na minha cara: ‘Te odeio!’,
aí eu vancei em cima dela, mas dei-lhe tanto, quando ele viu que eu
ia vencer ela eles aí vançaram pra puxar em cima de mim. [...] A pior
parte de minha vida tá sendo essa agora. Esse daqui também, esse
daí, chega, mexe com a criatura, a menina tá grávida dele, co é [qual
282 maria gabriela hita
é?] a dele [Léo]? Num quer assumir ela... assume o filho, né? Procura
um jeito de... agora, na gravidez dela... ele num quer, ele num quer. Isso
tudo eu tô magoada com ele, inda acha a asa de mãínha: ‘Ah porque
a mulher tem vinte e tantos ano, vinte e cinco ano e ele tem dezenove’, o
que tem a ver? Não! E se ele mexeu, ele tem que assumir o menino.
Isso tudo me machuca, me magoa muito. Fico muito chateada com isso.
(Neneca, 21/01/2001).
No último depoimento, Neneca mostra a simpatia que tinha pela nova
namorada do filho, mesmo sendo mais velha que ele, pois a mãe do primeiro
filho de Léo, Pedro, bebê com lábio leporino e que Neneca criava, era o filho
de Mila, que tinha 15 anos, e que, na visão de Neneca, era inadequada para
o filho, imatura, impulsiva e irresponsável. Ela desejava que Léo esquecesse
Mila e arrumasse sua vida com a moça de vinte e tantos anos que tinha novamente engravidado, mas D. Cida defendia o neto por achar a moça inapropriada para se unirem, pois ele não gostava tanto dela e era mais velha
do que ele.
Neneca não saía para se divertir na rua, apesar dos convites de Gilson e
dos conselhos de D. Cida de que precisava relaxar. Não queria trabalhar, alegando precisar cuidar e melhor controlar e cuidar da sexualidade das filhas
doentes, pois temia que algum safado, aproveitando-se dos problemas mentais, pudesse abusar sexualmente delas vindo a engravidá-las. Como ficava
em casa, os filhos deixavam os netos para ela cuidar, do mesmo modo que as
filhas de D. Cida fizeram com a matriarca. Neneca se queixava da sina que ela
mesma delineou, a de estar transformando-se, sem o desejar, em uma nova
D. Cida – situação que assumia a contragosto e pressionava seus filhos para
contribuir (ao menos) para darem o leite dos netos e um pouco dos gastos
domésticos. Quando não participavam, ela tampouco se preocupava em demasia por alimentar os pequenos além das suas possibilidades.
Após a morte de D. Cida em 1999, Neneca sentiu-se mais livre para seguir
seus impulsos manifestos e reprimidos de uma nova vida e novos amores:
separou-se de Gilson, que voltou para a casa da mãe, e passou a namorar
um rapaz 20 anos mais jovem do que ela. Por causa deste romance, passou
a ser recriminada pela irmã Dina, que agora, depois da morte de D. Cida,
assumiu o papel de boa mãe de família e esposa. Neneca, por sua vez, recriminava Dina dizendo que se ela não tinha feito o desejo de D. Cida em vida
– viverem de acordo a seus preceitos, em união e respeito com os parceiros,
a casa das mulheres 283
relações solidárias entre os parentes; e que – com a mãe morta − não tinha
mais sentido fazê-lo, por isso se recusava a seguir presa a seus desígnios e
preferia refazer a própria vida. Neneca, com o novo romance, exalava jovialidade, alegria e uma vitalidade que há muito não se via.
Em 2002, com medo, por causa dos últimos acontecimentos ligados aos
assassinatos dos sobrinhos (os dois últimos extraídos da própria residência
por membros de gangues rivais ou grupos de extermínio, segundo diferentes
fontes), preferiu deixar a casa e ir morar com o namorado e alguns dos filhos
em Camaçari, perto da filha Lia, que também deixou a casa por causa da violência no Nordeste e na própria família. Até julho de 2003, Neneca não tinha
voltado para a casa no Nordeste. Dina comentou em 2003, que com o namorado maconheiro de Neneca, a família não aceitaria que ela voltasse para casa.
Os que ficaram na casa foram dois dos filhos: Lela e Lelo (Lico), os dois que
tinham melhores relações com Dina e com os filhos de Lena que restaram
vivos. As casas de baixo, em julho de 2003, estavam habitadas apenas pelo
grupo dos jovens (maioria masculina) e o aspecto geral delas imprimiu-me
uma sensação desértica, a de entrar em um lugar sem vida, sem movimento,
sem móveis e sem eletrodomésticos, bem distintas de quando habitadas por
D. Cida e Neneca. Havia na porta de entrada, amarrada, uma nova mascote
guardiã: um filhote de pitbull preto que pouco me convidou a desejar bater
na porta e chamar.
Daqui a 15 anos... eu não acredito que daqui a 15 anos eu tô viva mais.
Eu acho que não. Jamais! Jamais eu vou chegar/ jamais eu vou chegar a
idade que minha mãe chegou... Eu não vou tá mais/não... não vou chegar à idade de mãinha não. Convivendo com essas pessoas... mas se eu
tiver fora aí eu talvez até eu viva... mais uns dias, mas aqui... eu não
acredito que eu vou bater 2000. Daqui mais uns... cinco ou seis anos é,
eu sei que tô como bisavó igual a mãinha, né?
MG: Já?
N: É. Eu tenho uma neta que vai fazer três anos, né? Agora...
(Neneca, 27/01/2000).
O amor que eu tinha era só por minha mãe. Mais nada! Nem a filho
mesmo eu não tenho mais amor... Eu não tenho amor a filho/ pra que
eu ia ter amor a filho?! Pra ficar do mesmo jeito que mãinha ficou?
Aqui ó [um sinal] Aqui ó/ Eu tô/ eu tô... repetindo a mesma coisa de
284 maria gabriela hita
mãinha... eu tô indo no mesma coisa de mãinha... filho arranjar filho, largar nas minhas costas... (Neneca 27/01/2000).
MG: Como estão indo os netos que D. Cida criava? O que tem sido da
vida deles?
N: Eu acho que [tão indo] daí pra pior... E... melhorou! Quando ela era
viva as coisa era pior!... do que tá agora.
MG: Mudou?
N: Mudou/muita coisa mudou. Mudou o nervosismo... de muitas pessoas. É... agora tão começando a fazer as coisas que ela... queria! Por
que pra mim não me interessa mais/ eu fazer nada. Nun/eu/o quê
ela queria fazer que eu não pude (fazer)/ por que ela morreu, eu
não vou fazer! Nem adianta que eu não vou fazer. Eu queria que fizesse quando ela tava viva. Quando ela tava viva/não houve condições
de fazer... então, agora também eu não quero fazer mais nada. E pra
mim acabou. Pra mim aí... o mundo acabou, casa acabou, filha acabou, sobrinho acabou, irmã acabou... tudo acabou pra mim! Não
existe mais nada pra mim. (Neneca, 27/01/2000).
SEGUNDO ATO
Neneca e Dina em passado recente
Alguns anos após Dina deixar o quartinho dos fundos e começar a construir
na laje de D. Cida, começa a processar-se uma significativa transformação
na sua autoestima e na posição que ocupava na família. Dina passava agora
a ser a filha com melhores condições econômicas. Ela tinha orgulho da casa
que ia levantando, ampliando, remodelando, ajeitando, enfeitando, dia a dia,
mês a mês, ano a ano, com gosto e dedicação. E com orgulho do que estava
conquistando, me disse:
D: Não, antes não podia trazer amigo nenhum na minha casa, que pergunta[va]: ‘cê mora aonde?’, eu disse [dizia a ele]: ‘morava ali’. [Ele:] - ‘não
posso ir lá não?’ [Ela, respondendo:] ‘não, não, outro dia você vai...’.
MG: Porque?
a casa das mulheres 285
D: Porque eu tinha vergonha! Já pensou? Tinha vergonha!
MG: E Hoje?
D: Hoje não! Hoje eu tenho prazer em encontrar qualquer pessoa na rua
e dizer: ‘vá lá em casa’.
(Dina, 27/07/1999).
O investimento de Dina no processo de construção da própria casa indica
como seu grupo passou em um curto período de tempo do nada a habitar
uma pequena e bem montada mansão na visão dos olhares invejosos da parentela e vizinhança. Nesta fase, Doca deixou a casa dos pais e se instalou definitivamente na nova casa construída por Dina, assumindo de forma definitiva esta família. Mas a violência doméstica de Doca aumentou, pelo que Dina
passou a desejar romper esse vínculo. Se não o fez, diz, foi por medo dele e a
influência de D. Cida, que agora apoiava Doca na consolidação desta união. O
fato de Doca ter vindo morar na casa e ser o pai legítimo dos 4 filhos de Dina,
eram pontos suficientes a seu favor, e talvez, nesta fase, uma outra forma de
se evitar as fofocas e piadinhas que circulavam na vizinhança sobre a respeitabilidade de Dina, que, no período, recebia em casa duas amigas lésbicas (Greta
e Dinha), as quais eram tão amigas de Doca quanto da própria Dina. Dina era
acusada de ter desejos homossexuais, mas o fato é que a proximidade do casal
destas amigas parecia ser parte da estratégia de expansão do casal no terreno
doado por D. Cida. E de se ajudarem mutuamente no levantamento das paredes de ambas as casas. Foram ajudados pela parentela de Greta e eles ajudaram Greta também, a levantar a dela, dando-lhe hospedagem.
Apesar da ascensão social e maior destaque na estrutura familiar, o comportamento mais individualista e menos solidário de Dina (e Doca), dentro
da lógica de reciprocidade e dádiva que caracterizava o modo de operar desta
rede,18 era motivo de ressentimentos e desconfiança sobre os comportamentos e modo de ser de Dina e seu grupo familiar, vistos muitos deles como
desviantes do padrão esperado e motivos de muitas fofocas ou acusações em
momentos de maior conflito. Ela era menos querida (ao menos na sua percepção) que sua simpática e em fase de maior decadência irmã Neneca, quem
esteve sempre aberta a mobilizar as redes necessárias às que tinha acesso –
18
Especialmente no que refere às relações interpessoais na casa, na distribuição de recursos e propriedade ou uso da terra etc.
286 maria gabriela hita
que eram muitas pela sua sociabilidade − para ajudar os mais necessitados,
como eram considerados os sobrinhos criados por D. Cida. Na narrativa da
sobrinha Lia, que na época tinha aspirações a parte do terreno construído
por Dina, e esperava que ela o cedesse, se pode identificar a desaprovação do
comportamento de Dina pela parentela, que começava a emergir como um
dos principais motivos, ainda implícito: a falta de reciprocidade e consideração de Dina para com as pessoas do próprio sangue, e canalização da generosidade para com os de fora, com os quais podia fazer trocas mais lucrativas, rompendo o princípio organizacional de sangue, holista e matriarcal,
e de parentesco:
L: E agora ela tá com amizade com duas... lésbica. Aí pronto! As mulher
fica aí passando o dia todo, a noite toda, dorme, acorda, come... tá dormindo aí... mora aí... Aí vovó às vezes fala que isso não é/ não é bom/
o marido chega de noite não sabe de nada... o povo pode parar aí no
meio da rua... falar... ela sempre... acho que a/ a briga dela mais é por
causa disso...19 que acho que ela quer botar essas mulher aí, pra morar
aí... Elas têm onde morar, mas só que... fica mais aí do que... na casa delas. [...] Agora... Dina faz compra hoje, quando/ daqui a sexta-feira não
tem nada, porque as mulher tudo come... É leite! Não toma café não!
Toma leite! E elas alimentam isso...20 Dina alimenta isso. Aí quando eu ou
Neneca ou vovó dá... dá falação... às vezes ela acha ruim...
MG: Eu vi o outro dia Greta chegar com uma sacola de supermercado
cheia. Como é isso?
L: É! Greta chegou com uma sacolona de pêra... ela disse que vinha lá
do Extra. Porque o sobrinho dela trabalha lá, e quando vence assim... as
mercadorias... ela pega, e traz pra Dina... Ela não dá nada aqui embaixo não. Não dá nada a ninguém, só dá a ela, né?
Mas essa Greta trabalha, mas só que o dinheiro dela ela... tá juntando
tudo pra comprar uma casa, que ela tá morando aí.
MG: Ela mora com Dina e Doca? Ela não tem casa?
L: Eu acho que ela já comprou, porque ela tá morando [também] aí atrás.
Aí tá morando ela e os irmão... os sobrinho...
19
Refere-se à briga nessa fase de Neneca e Dina que desencadeou uma demanda policial. Trechos
narrativos sobre esta fase e briga ver adiante.
20
O tom era de crítica, de luxos que ela permitia às visitantes, como consumir leite!
a casa das mulheres 287
MG: E qual o problema dela ter amigas lésbicas?
L: Ninguém gosta. Até o povo da rua... comenta... [Elas com Dina] Ficam
o dia todo trancadas... bota os menino pra descer, fica as duas lá em
cima... aí dá pra imaginar... tanta coisa, né? Doca trabalha... Doca chega 10 horas, 11 horas da noite... dia de domingo ele fica dentro de casa
e [então, nesses dias] nenhuma delas sobe... é difícil subir... Aí o povo/
quem tá de... de cá olhando... dá pra perceber essas coisas... é sempre
esses negócio...
Quando elas sobem os meninos descem. A Jane, a filha mais velha
dela [Dina] mesmo, não gosta de nenhuma das duas... Jane não tem intimidade com elas... até quando elas tão aí, quando Dina sai que elas sobe
e Jane tá lá... elas não entra. Que Jane não gosta.
(Lia, filha primogênita de Neneca, 08/02/1999).
Eles erguiam a casa com a ajuda de mutirões ou serviços pagos a terceiros.
O irmão de Greta, pedreiro especializado, ajudou-a consideravelmente nessa
fase, o que consolidou muito a confiança e amizade de Doca e Dina com o
grupo de Greta, que passou a morar logo depois numa confortável casa na
rua de trás, e que naquela época estava em construção, razão pela qual Greta
morou algum tempo na casa de Dina. Como na pesquisa de Carol Stack (1974)
sobre comunidades negras americanas, também nesta que estudei, observei
que a reciprocidade e a consideração são atitudes fundamentais na criação,
sustento e desenvolvimento de fortes redes sociais, sejam eles parentes ou
vizinhos e tão necessárias na lide cotidiana de adversidades e importantes
estratégias de sobrevivência.
Do outro lado, as condições de vida de Neneca estancaram, sem grandes
melhoras. Sua morada evoluiu, mas de modo insuficiente para o tamanho e
ritmo de crescimento da família. E não tinha como criar novos espaços para
além do que a reduzida base do quartinho anterior o permitia. Gilson, o segundo companheiro de Neneca, pedreiro por conta própria, e vivendo a maior
parte do tempo de bicos, com temperamento tranquilo e pacato, trabalhava de
forma lenta e isolada. O grupo de Neneca ficou mais enfraquecido, indicando
maiores dificuldade em ascender; faltava-lhes motivação, ambição e esforços
que sobravam a Dina, além dos recursos (pessoais, materiais e físicos-espaciais).
E a menor evolução da sua casa ficava mais evidenciada quando comparada à
veloz ascensão da casa de Dina, que de forma ambiciosa e bem determinada,
288 maria gabriela hita
foi se expandindo para além do desejado pelo restante da parentela, o que motivou boa parte de novos conflitos. Por isso, nesse mesmo período em que Dina
ascendia, Neneca, ao contrário, permaneceu praticamente na mesma posição
na sua estrutura familiar e no mesmo espaço físico onde tinha começado com
vantagens: o quartinho da frente, tão almejado por Dina no passado. Dina desejava o terreno da casa de Neneca, pela posição da mesma em frente à sua barraquinha, próximo de onde, em determinada época, seu Diógenes e D. Cida
tiveram uma também, e que se encontrava a dois metros da entrada da casa
matriz de D. Cida, do outro lado da ruela de barro que dá acesso a esta configuração de casas. Dina contou-me que antes de iniciar a construção na laje de D.
Cida, que ela mesma ofereceu a Neneca trocarem os terrenos, o da laje (hipoteticamente maior) ainda por ser construído, pelo do quartinho da frente, cujas
possibilidades de expansão eram limitadas, mas que já estava construído e mobiliado. Contudo, Neneca não aceitou.
Nesta fase, Dina e também Neneca começaram a ter lares mais autónomos do de D. Cida, o que passou a se evidenciar pela compra dos respectivos fogões e pela divisão das primeiras contas a pagar, iniciando o processo
do que virá a ser uma nova e mais complexa configuração de casas ocupando
o mesmo terreno (na base) da casa original. É quando uma única casa (a matriz matriarcal) passa a se transformar em mais de uma, fase marcada pelo
ciclo de vida familiar mais amadurecido e pelo enfraquecimento da autoridade e força de D. Cida. Este enfraquecimento pode ser compreendido como
resultado de motivos diversos, como o do avanço de idade e menor lucidez,
fortalecimento e disputas de seus filhos e netos no jogo das relações e o acirramento de conflitos para além das suas forças, que evidenciam novo ciclo da
reprodução familiar, o do desmembramento ou conclusão deste lar original
matriarcal e o início de novos, mais independentes. E uma fase em que os
conflitos pareciam aumentar cada vez mais.
Contudo, a suposta autonomia conquistada pela casa de Neneca foi relativa, pois D. Cida continuou pagando (até o dia da sua morte) as contas
de luz, água e certos gastos gerais das casas de baixo (dela e de Neneca), enquanto já o deixara de fazer para a casa de cima (Dina), que nesta nova fase
apoiava significativamente, com doações materiais, à casa matriz de D. Cida.
O sentimento expresso por Neneca em relação ao passado apontava para
sua deterioração progressiva, possivelmente por se comparar, agora, com o
modelo bem sucedido da irmã, e vizinha, que ela viu subir rapidamente. Ela
a casa das mulheres 289
identificou como início do deterioramento como já relatado uma série de
mortes sucessivas na rede de parentesco.
N: [Antes] Tinha fartura, não faltava nada, a lata de farinha tava sempre
com farinha, a lata de feijão tava sempre com feijão, mas foi uma tragédia. [Foi] Meu pai piorar, da gente ficar mermo sem nada dentro de casa,
de primeiro do ano pra cá. Da gente vender tudo, ela [D. Cida] vendeu o
rádio, vendeu o relógio!
Ent: Quem morreu primeiro?
N: O primeiro foi meu pai, um ano depois foi meu marido, não, foi meu
pai, minha filha, depois meu marido, depois Lena. Isso tudo foi funeral,
quando a gente nem bem terminava de pagar um caía em outro, nem
bem começava a pagar um, caía em outro, nem bem começava a pagar aí outro caía [...] aí foi ino, foi ino, todo mundo aqui desceu que
desceu de vez.
(Neneca, 18/03/1992).
Foi ao entrevistar dois dos homens das casas – os companheiros de Neneca
e da filha Lia, Gilson e Jerson21 − que percebi a centralidade do papel que D.
Cida sempre exerceu em muitos dos conflitos e nos ressentimentos que foi
crescendo entre as duas irmãs e demais membros da parentela, ao menos
desde a perspectiva deles, que certamente diferirá da percepção que a própria
D. Cida terá da situação:
MG: Me digam, qual vocês acham que seja o principal motivo do desentendimento e tantas brigas por aqui?
J: Dela [D. Cida] proteger demais. É. É ela que tem que acertar tudo.
[Gilson interrompe e diz]: “-Ela protege demais. Ela protegendo um/
protege um, o outro não. Por isso que cria essa... inimizade entre
eles, quer dizer, [muita gente] tem o ciúme. Quer dizer... Por que ela
diz que... o Nacho [filho de Lena] é doente... e pra fazer o que for [ele quiser]/ mas ela [age] assim/ por ele ser o mais bravo. Ele é o mais bravo! Aí
ela... protege/ ela tem medo... Eu acho que eu/ eu acho que ela o protege
pelo fato dela ter medo.
21
Curiosamente este é o olhar do parente por afinidade, daqueles que se sentiam frente a certas
situações mais fora do que dentro da família.
290 maria gabriela hita
MG: E Téo? Ele não é o mais bravo?
J: Téo, de primeira, era assim mas depois melhorou. Depois que aconteceu
um negócio com ele... Ele não tomou... uns tiro?... melhorou/ não desrespeita mais ela, não.. E depo/
MG: Quando foi mesmo os tiros que ele levou?
Gil: Eu... eu até hoje não sei... Foi em abril, vai fazer um ano. ( Jerson e
Gilson, 31/01/99).
MG: E você Gilson, o que você pensa disso tudo?
Gil: É... D. Cida... é boa pessoa mas tem muita coisa que acontece... geralmente, por causa dela. Você é mãe e você não pode nem exemplar
[educar] um filho seu porque se for ... exemplar um filho teu, ela se mete,
quer ver... Tenho nada pra falar dela, não, só... que as brigas da casa são...
Porque ... parece que ela sempre tá de um lado de uma pessoa só...
Eu acho que ela tem [preferências/ faz diferenças]... Aí tem esse problema todo/ cria briga. [...] Aí ela tá incentivando eles brigarem...
(Gilson, 31/01/99).
Dina e Doca parecem concordar que a tendência de D. Cida a certos favoritismos, produzia parte dos conflitos. As falas parecem quase idênticas,
apesar da entrevista ter sido realizada em anos diferentes, mostrando como
estavam em maior sintonia:
D: Quem faz comigo, faz só uma vez [Levar desaforos]. A não ser mãínha, né? Se mãínha fizer alguma coisa comigo, jamais [irei reagir contra ela]. Ah... cê vê que eu falo mais de mãínha, né? E ela apoia mais
Neneca.
MG: Como assim?
D: Ah, mas sempre, sempre foi assim. Porque, ela gosta mais de
Neneca. Mais do que eu. Gosta muito mais. Não sei que é porque
Neneca tá mais perto dela ali. Mas às vezes quando ela precisa das coisas ela vem a mim, né.
Eu que faço por ela! De manhã, se eu bater uma vitamina tem que mandar o copo pra ela, meio dia se fizer uma comida, tem que mandar pra
ela. E Neneca não é assim, e ela gosta mais.
a casa das mulheres 291
MG: Como você sabe? Ela disse isso?
D: Eu sinto, a gente sente quando uma pessoa gosta mais de uma pessoa
do que de outra. A gente sente.
MG: Você está com ciúme!! (Rss)
D: Não, não é ciúme não. Sei lá! Deve ser ciúme mesmo. (Rss) Deve
ser ciúme... (Rss)
(Dina, 27/07/1999).
Do: Ói, pra ser sincero, D. Cida sempre foi mais pro lado de Neneca - não
sei porque. Porque é Neneca que... Aqui eu tô falando porque... Tem que
dizer a verdade, né? E [Neneca] é uma pessoa que maltratava muito D.
Cida/ D. Cida, em palavras e tudo, entendeu? Sim. Então... Dina que fazia mais as coisas pra ela, entendeu? Que o mingau; que eu comia aqui,
se a gente comia, D. Cida comia também. Se a gente tomava vitamina,
era obrigação o copo de D. Cida primeiro. D. Cida tomava café aqui primeiro do que os meninos. Era bem/ tratada bem, entendeu? Mas só que...
ela tinha/ gostava – eu acho – mais de Neneca.
MG: Porque?
Do: Não sei porque mas... Era mais pro /pra lá, mais pro lado de lá...
(Doca, 23/01/00).
Se D. Cida era vista pelos afins como motivadora de boa parte dos conflitos
na família, o que em parte pode fazer algum sentido, penso que isto ocorria
por ser ela quem concentrava o poder almejado por todos, era a dona da casa
e uma das fontes de renda importante, ao menos nas fases em que todos mais
dependiam dela. Autoridade que foi se debilitando com os anos, crescimento
e aparição de novas crianças e muitos mais conflitos. Ela desejava acabar com
as brigas e intermediar conflitos, mas seu modo de agir sugere ter criado mais
ressentimentos. Definitivamente estava perdendo o controle da situação. Mas
observei também que muitos desentendimentos e conflitos entre a parentela
surgiam do intento de conquistar o consentimento e a proteção de D. Cida,
ou que eram disputas internas para mostrar quem se preocupava e cuidava
melhor dela, afagando-a ou procurando diminuir seus sofrimentos. O jogo
entre preocupação e disputa caracterizava a rivalidade entre as duas irmãs no
292 maria gabriela hita
período em que competiam para ver quem tratava melhor D. Cida. Os estilos
de cuidado é que divergiam. Na visão de D. Cida, o desentendimento entre as
irmãs estava passando dos limites e era resultado das tensões que elas viviam:
D.C.: Então é o que eu acho errado hoje em dia porque eu vejo essa/
essas guerra... que aonde/ não era/ não era pra ser... essa guerra.
Pela educação que eu dei... pela forma de criar... não era pra hoje em dia
eu/ eu ver... no meio delas eu/ eu tá... ouvindo certas coisas nem/ nem...
aguentando isso tudo, né? [...]
MG: Mas Dina é uma pessoa magoada. Como foi que ela ficou assim?
D.C: Não, ela [Dina] é/ como eu tô dizendo assim, ela era... ela não era
assim! Ela não era assim. Foi ba/ o problema dela foi depois... Depois dessa, desse... estrangulamento de trompas. Que ela teve/ fez essa ligação.
As coisa, aí ficou... atingiu... em qualquer coisa os nervo dela, que
qualquer coisa ela... se zanga. E a outra... A outra também é a mesma
coisa, né?, porque... tem muito filho... tem filhos doente... ficou prisioneira dos filho... então ela veve nervosa. Precisa de saber/ eu canso de
dizer a ela: precisa é... se desligar de certas coisas mais e... cuidar de
si! Porque não é por aí... Ela não vai ficar presa a vida inteira com os
filho, doente... (D. Cida, 24/2/1999).
Dina procurava resolver os problemas materiais da mãe; enquanto
Neneca, os afetivos. Neneca parece ter sido a filha predileta de seu Diógenes
no passado. Quando D. Cida era viva, era a mais próxima da matriarca, com
a qual compartilhava uma mesma forma de ver o mundo e de se relacionar
no interior da família, o que as distanciava do modo de operar de Dina.
Dina, algo ressentida, disputava com Neneca o afeto da mãe, o que parecia
não estar em questão para D. Cida, quando afirmava gostar e admirar cada
uma das filhas e não entender ou querer reconhecer que motivava o ciúme
entre as irmãs. Creio que nem para Neneca essa motivação de Dina tivesse
algum sentido ou mobilizasse o seu despeito, pois, neste campo, ela sabia
ser vencedora e mais próxima de D. Cida. Dina tinha ciúme do bom relacionamento de Neneca com os pais. Enquanto Neneca invejava a posição conquistada por Dina na atualidade, lugar que lhe refletia a situação financeira
mais frágil e uma dimensão do próprio fracasso na administração da sua
vida com os filhos, que não a respeitavam como faziam os da irmã.
a casa das mulheres 293
Neneca, como a mãe, preocupava-se mais pelo bem-estar do grupo familiar, mesmo nada podendo fazer materialmente, lograva dar maior amparo afetivo e se preocupava mais com problemas coletivos. Ela é a mais
sociável da família e tinha boas relações com a vizinhança, era bem-humorada e apreciadora de intrigas e fofocas, mas também se conectava de
modo mais solidário aos problemas alheios, como sempre o fizera a mãe.
Sob este ângulo, D. Cida se identificava mais com o modo de ser de Neneca;
porém, por outro, também com o jeito empreendedor e trabalhador de
Dina, e assim, afirmava gostar das duas igualmente e de ter orgulho das
qualidades de ambas. Não parecia haver, no coração de D. Cida, distinção
entre as duas filhas ou demais membros da parentela, mas, como tinham
comportamentos diferentes, exigiam reações diferentes. Apenas com a filha
de criação, Merina, é que ficou, para mim, mais patente a diferenciação, o
preconceito e certo distanciamento de D. Cida, que não conseguia tratá-la
da mesma forma que tratava as outras filhas. Merina não tinha o mesmo
sangue, e isso se evidenciava na forma discriminatória como expressaram –
tanto Neneca quanto D. Cida – seus sentimentos sobre Merina.
Dina foi sempre mais individualista e severa em seus juízos, esquiva e
menos comunicativa, muito sensível e generosa, mas também vingativa
quando não correspondida. Ela guardava a privacidade fechando as portas da
casa e tampando as panelas da cozinha ao olhar bisbilhoteiro e interesseiro
da parentela. Os movimentos explícitos de isolamento e o temperamento
mais rígido impediam a aproximação dos parentes de sangue que se sentiam agredidos com a atitude de exclusão que Dina executava, e pela forma
particular como exercia o princípio de consideração na escolha dos amigos
e grupo de referência, tratando aos parentes como pessoas estranhas e aos
amigos (verdadeiros estranhos para a parentela) como irmãos.
A circulação de bens
Em uma lógica da dádiva baseada na trilogia dar-receber-retribuir, a negação de
Dina a retribuir poderia ser vista como declaração de guerra ao grupo familiar
e forma de se impor e mudar as regras do campo. A parentela a recriminava
pois, na perspectiva da reciprocidade, Dina deveria restituir gratidão à concessão materna de ceder-lhe o direito em bater laje na casa matriarcal. Talvez
Dina estivesse agindo do ponto de vista economicista, distinta da lógica da
294 maria gabriela hita
dádiva, ou talvez para ela o circuito da dádiva não era eterno, nem extensível a
todos os membros do clã, como era esperado pela parentela. Para Dina a casa
foi uma conquista e não uma doação da sua mãe a ser retribuída. O direito à
laje teria sido, segundo ela, a contra-dádiva da mãe ao seu esforço anterior de
reconstrução da casa materna.
Nesta direção, chamam a atenção as doações de Dina para a mãe – aparelhos domésticos tais como ventilador, geladeira etc. – as quais, após a morte
de D. Cida, ela tomou de volta para evitar o mau uso pelos netos da mãe. Eles
os trocavam por drogas. Relatos familiares associam os cinco tiros que Téo
levou, em uma emboscada no bairro, ao ato de Dina ter recolhido o ventilador
que seu sobrinho tinha entregue a um traficante para saldar dívida. Outro
exemplo curioso foram os distintos acessos de raiva e descontrole de Dina,
que quando contrariada ou frente a distintas brigas conjugais e familiares,
destruía completamente bens da própria casa e/ou dos outros e com muita
frequência fechava as portas para a parentela. Na interpretação de Marcelin
(1996), quando a porta principal de uma casa está fechada, isso denota ausência de moradores ou doença, e até mesmo um tipo de morte simbólica. A
casa de Dina, filha caçula de D. Cida parteira, costumava ficar fechada, com as
portas e janelas que dão para a rua lacradas e em silêncio sepulcral (devido, em
certas ocasiões, à sua ausência, mas, muitas outras, ao desejo de isolamento e
de privacidade que era mal visto pela vizinhança e gerava fofocas).
A quebra do processo de reciprocidade e o estado de guerra descrito nas
narrativas adiante (no contexto da demanda policial) caracterizam o potlatch
– estado de guerra – entre distintos grupos desta estirpe. Mas toda guerra é
uma troca mal sucedida, diz Sahlins (1983), e a sua supressão nem sempre é a
vitória de um e a submissão de todos, pode também ser uma rendição mútua
como de alguma forma pareceu se dar por uma temporada, ao menos após
a morte de D. Cida. Os comportamentos destrutivos de Dina contra bens da
própria casa, em distintos momentos da sua trajetória, ilustrados em diversas
narrativas, claramente indicam o que Leffort (1979) identifica com o valor de
prestígio que se liga ao intercâmbio. Este é evidente em certos casos em que
os clãs lançam uns aos outros desafios de dons e procuram explicitamente
a submissão do adversário, dominando-o por meio de presentes ou guerras
declaradas. Chega-se até a destruição das riquezas. Em certos casos, deve-se
até mesmo desprender de tudo e não conservar nada: aquele que soube tudo
consumir e tudo destruir é que será olhado pelos outros como chefe.
a casa das mulheres 295
Para Mauss (1988), destruir ao dar é colocar o outro na impossibilidade
de restituir, e neste sentido o autor do Potlatch destrói o bem para não receber, mas principalmente põe o outro diante do desafio de, como ele, negar
a riqueza, pois é um modo de afirmação, como aquele que sabe se elevar
acima daquilo que possui. Rasgar os tecidos preciosos, jogar colares no mar,
queimar suas casas, diz Leffort, é clara manifestação de que não se é esses
tecidos, esses colares; essas casas. É certo que o potlatch prova muito bem a
tendência do homem em se identificar com sua propriedade, pois lhe é necessário se destacar dela; continua Leffort, mas é em si mesmo sua negação.
O homem assim se desfaz de sua aparência e se põe graças a um eu não sou
isto... em confronto com a natureza. No quadro desta confrontação, não parece que o ideal seja colocar o outro na impossibilidade definitiva de restituir, pois o objetivo perseguido não é apenas a submissão de outrem, mas a
submissão da natureza, o que está sempre por ser reefetuada.
Em quase todos os conflitos ou manifestações de ciúmes que presenciei
entre Neneca e Dina (e outras guerras que aparecem em narrativas ao interior
dos subgrupos), a luta pelo espaço físico parece sintetizar o motivo principal
e latente da maioria dos desentendimentos. No conflito de janeiro de 1999,
que foi denominado como um dos piores que presenciei, e que culminou
com a demanda policial levantada por Dina contra a irmã e a sobrinha. Tudo
começou, comentam, quando Dina viu a sobrinha Liliane, moça adulta e
dona do seu nariz, se agarrando com um rapaz na praia. Dina foi contar a
Neneca. Liliane, incomodada com a intromissão e julgamento de Dina sobre
sua sexualidade, teria lhe dito que fosse cuidar e olhar da sexualidade da própria filha Jane também por estar namorando às escondidas um rapaz noivo
de outra garota e por ter sido vista se agarrando com ele atrás da Igreja (insinuando-se perda da virgindade).22
Este parece ter sido o estopim de uma guerra que levaria todo o dia, com
quebradeira de móveis, copos e taças de vidro. Dina atirava objetos de cima tentando acertar a irmã e sobrinha embaixo, chamando a atenção da vizinhança
com gritaria e xingamentos que iam e vinham de ambos os lados. As mulheres
de baixo (Neneca e a filha Liliane) acusavam a de cima (Dina) de roubo, prostituição e lesbianismo, e ao companheiro de cúmplice. Tais calúnias, vindas da
boca da irmã, aos gritos escancarados, para toda a vizinhança ouvir, a ofenderam profundamente. Dina ficou envergonhada de sair à rua por vários dias,
22
Quem levou uma surra por ter perdido o ano letivo.
296 maria gabriela hita
com pensamentos suicidas e com desejos profundos de vingança. Tal guerra
entre famílias só teria se acalmado à noite, quando Doca, que não presenciara
o conflito, regressou do trabalho e tomou partido a favor da mulher, ofendido
por ser acusado de corno. A casa parecia uma sepultura, estava toda fechada e
silenciosa no dia seguinte em que passei de visita... só meses depois entenderia e
conectaria os fatos. Mas a guerra continuou vários dias a seguir, com ameaças e
telefonemas anônimos mútuos, bozós (encomenda de trabalho de Candomblé
contra inimigos) nas portas e encruzilhadas próximas, abandono temporário
da casa pela sobrinha Liliane, que ficou preocupada com as ameaças de Dina e
do marido contra sua vida. Doca tinha contatos com a polícia, o que os deixava
mais preocupados.
No verão de 1999, e durante todo o carnaval daquele ano, o conflito familiar alcançou tal dimensão, que provocou aflição e constrangimento familiar
generalizado. O pessoal de baixo me afirmava, com impulso de revanche e
tom ameaçador, ter como provar e desmascarar a de cima frente ao marido e
à policia com respeito aos atos de imoralidade daquela. A de cima – Dina –
queria ver até onde as de baixo teriam coragem e firmeza para sustentarem
as calúnias, na delegacia de polícia. D. Cida, angustiada, implorava a todos
que ficassem calmos e procurassem dirimir o conflito, aconselhando às de
baixo a voltar atrás, evitando afirmações sobre moralidade da de cima na delegacia, dizendo nunca terem afirmado tais coisas, relatando apenas o acontecido. Foi isto o que fizeram depois de muitas dúvidas e sugestões de todos,
ganhando as demandadas – as de baixo – pelo comportamento esperado e
adequado na delegacia, certa cumplicidade e aprovação dos policiais. Isso
enfraqueceu Dina, que ficou furiosa e exaltada na delegacia, gritando, sem
habilidade de resposta às novas acusações feitas pelas demandadas quando
foi inquirida. Dina não previa enfrentar as acusações com que se defrontou,
chegando a reconhecer ter sido ela própria quem destruíra os bens perdidos
da sua casa na guerra com as de baixo e dando provas à policia de quem teria
iniciado ou produzido o conflito. Ela demorou a reagir e, ao compreender
o sucedido, sentiu-se traída por não encontrar nenhuma acusação sobre as
calúnias que a levaram a perder o controle. Por isso sentiu-se humilhada e
incomodada com a cumplicidade dos policiais com as parentas. Neneca, que
estava apavorada inicialmente, conseguiu se sair melhor na situação e por
seu temperamento mais conciliador na delegacia, foi quem saiu triunfante
daquele impasse. Ver a seguir várias versões familiares sobre esta briga:
a casa das mulheres 297
MG: O que a senhora pensa sobre essa briga toda entre suas filhas?
D.C.: Não havia necessidade de uma coisa dessas... Mas como... como
elas não tem... fé em Deus... então deve... no mundo e... do mundo eu
não posso dizer nada porque.../ Se elas/ se elas se entender... pode parar
isso. Se não for, pode continuar... Eu achava que elas devia parar, né? [...]
MG: E isso não lhe machuca?
D.C.: Não! Eu tô dizendo isso porque justamente essa guerra, essa briga deles...23 a mim não me atinge... porque eu agora eu tô na minha, né?
Não vão me atingir/ não sou contra nem a favor de uma, nem contra a
outra... então, eu fico por fora... deixa eles...resolver os problema deles...
São adulto... É a única [coisa] que eu podia fazer, era... orar e pedir a Deus
por... por ela[s] viver bem. Essa/ essa briga delas são... passageira/ de/ é...
é de costume elas brigarem, daqui a pouco tão tudo bem... [...]
MG: E o que aconteceu? Como foi que começou a briga? Foi por causa
da briga das filhas delas?
D.C.: Por causa de filho elas se desentender!? Eu não tô/ não entendi nem
por que foi... eu não entendo, eu sou uma pessoa que não posso nem contar o que foi/ tava na igreja, quando cheguei de lá, vi elas... discutindo aí,
nesse discutimento, ela começou a quebrar as coisas delas aí em cima
e... final das contas teve inté... polícia. Teve inté envolvido em... em polícia, foram... que nunca foram pra canto nenhum, foram agora!
MG: E a senhora acha que isso vai ajudar a resolver algo?
D.C.: Nisso aí... É. Eu não se/ eu não sei nem o que é que vai resolver...
Não resolve nada!
G: E porque acha que elas brigam tanto?
D.C: Quem sabe... Elas tem/a de lá de cima tem amizade, né? com...
Com gente que não... Que não... Que não... que [nós] não sendo de... de
acordo. Aí começa as fofoca, um dá conselho: ‘faça isso, faça aquilo’ aí...
começa a guerra. Eu penso que elas devem tomar vergonha. Deve
tomar vergonha e... se entender, que elas são irmã. Que elas são irmã,
são parente, são sobrinha... e não deve/ não deve ir no conte dos outro!
A de lá enche/ a/ a/ as amiga enche a cabeça dela: ‘faça isso, vamo fa23
Referia-se à luta entre irmãs e parentela.
298 maria gabriela hita
zer isso, fazer isso’, mas a de cá também pela mesma forma... então... ou
vão pra cá. Porque... a de lá diz que foi dar parte da de cá...24 foi com as
amiga dela.... Dar parte dessa de cá, dar queixa dela... Foram ficar lá na
polícia... A de lá também vem com conselho da/ de quem vem dizer a
ela... aí veve assim, desse jeito. É falta de entendimento.
MG: E isso atinge a Senhora?
D.C.: A mim não! (Rss) A mim não me atinge porque se quiser me atingir
não vai atingir porque eu não vou dar/ dar ouvido... Não... Se elas quisessem ver o meu bem... então elas faziam por viver. As duas. Que é
o que mais me agradava a mim é ver a união. Da família. Então, se
não tem união, então elas não querem amizade minha. Não querem
coisa comigo. Não é/ elas não tão olhando meu lado, tão olhando elas!
Né? Porque querem guerra. Então... O que achava que elas deviam querer era... querer é paz! Entre as duas.” (D. Cida, 24/02/1999).
MG: Me conte como foi aquela briga sua com Neneca e Liliane do inicio
do ano. Como foi que ela começou...
D: É. [...] Eu fui pra praia em fevereiro, eu e meus quatro filhos... quando eu chego na praia, encontro Liliane e um rapaz, que eu não sei nem
quem é esse rapaz. Aí, ficamos lá conversando e tudo, Liliane veio embora. Veio embora, aí quando eu cheguei aqui em casa, no domingo
mesmo/ Quando foi uma segunda-feira de manhã, que eu ia pro médico
pra ver o negócio do pé... aí tá Pireco [apelido de Neneca] falando com
Liliane: ‘Ó, Liliane, tá todo mundo aqui na rua sabendo que você tava
atrás da/ das pedras lá com um homem’. Aí ela perguntou: ‘Quem foi
que disse?’ – ‘Foi Dina’... Aí eu peguei, saí e perguntei: ‘Ôxe, que conversa é essa? Eu disse alguma coisa?’ – ‘Disse sim, você disse!’. É uma coisa
que eu não falei. Aí começou, a Liliane, né, que tem uma boca porca, me
esculhambou toda... Me disse coisa que eu fiquei horrorizada com as palavras que ela tava dizendo. É. Coisa que a mãe deveria corrigir a filha
– ‘não faça isso, que ela é sua tia, você tem que aprender respeitar’. Mas
não, ela tava influenciando a menina dizer as coisas né. Aí, era uma esculhambação danada, ela disse que minha filha tá atrás do colégio, né...
Que minha filha não era mais virgem. Aí, meu marido disse que se eu
não tomasse uma providência, que ele ia embora.
MG: Não era o que você queria?
24
A de lá e a de cima é Dina, a de cá, perto dela, embaixo, é Neneca.
a casa das mulheres 299
D: Doida que ele fosse!!... (Rss)
MG: Ele disse que ia embora?
D: Foi. Disse que se eu não tomasse uma providência, que eu ia/ que ele
ia embora, largar eu com quatro filho aí...
MG: E qual era a providência que ele queria?
D: A denúncia. Peguei, fui na sétima, dei uma queixa... né? Elas da/
desde a primeira intimação ela rasgou... primeira intimação. Eu voltei na
sétima de novo, trouxe a segunda – mesmo não querendo fazer isso, que
era minha irmã, né? Mas tinha uma pessoa do meu lado, me empurrando, que eu tinha que fazer isso, se não, ela não ia me respeitar mais. Aí eu
fui, o oficial de justiça veio, trouxe a intimação, ela assinou e no dia que
foi, ela negou tudo, disse que não falou nada disso, que ela gosta muito
de mim. Não pode ser assim, né? A pessoa tem que sustentar o que fala.
Que ela gosta muito de mim e que... quer dizer, que eu passei como
mentirosa. Mas, graças a Deus, depois dessa intimação, tá tudo numa
boa, né. Ela até que chega a falar comigo, mas meu coração ainda... me
magoou bastante. Não quero mais. (Dina, 27/07/1999).
L: Eu tava aqui na hora, vi tudo como começou... Ela [Dina] chegou nervosa, batendo na filha... que a filha num/num/ não passou de ano. Aí
pronto, ela como houve as coisas demais, achou que tavam falando alguma coisa dela... Mas esse pessoal daqui [Neneca]... sempre/ sempre
tem essas confusão aqui, se resolve no outro dia, com tudo se falando.
E dessa vez a coisa foi feia mesmo. Eu ia me envolvendo, ela disse
que não era pra me meter que se não ia sobrar pro meu lado... Então,
deixei pra lá... Que sempre a gente quer vê... as coisa... numa boa, né?
Deixa/ mandaram deixar pra lá... Mas elas não quiseram... Aí se envolveu
Doca, os filhos de Dina... Aí só ficou Liliane e Neneca. Neneca mandando
Liliane entrar, e Liliane discutindo com... com Dina. Vovó nem tava/ nem
tava chegando. Vovó só subiu na hora que/ pra segurar ela, que ela disse
que queria se matar, querendo cortar os pulsos.
MG: Ela disse que ia se matar?
L: É... Ela [Dina] dizendo querer se matar!: ‘Vou/ vou me matar!... Que
só assim vocês ficam com a casa!...’ Aí, eu não sei, né?... Foi uma confusão retada. (Lia, 08/02/1999).
300 maria gabriela hita
N: Foi isso que eu tô lhe dizendo. Começou porque... Liliane tinha saído... ido pra praia. Liliane sabe do segredo dela, ela sabe do segredo de
Liliane... Aí, ela foi comentar, foi falar da filha dela conversando discutindo lá com Jane, ela aí falou que não queria Jane junto com Liliane porque/ porque não queria Li/Jane sendo resenha.
MG: Ela falou isso? O que é resenha?
N: Falou. Resenha é ficar falada na boca de todo mundo. Liliane ouviu,
eu falei: ‘ói, Lídia, cê tá ouvindo, né? Então, cê procure o máximo possível evitar de sair com as filhas dos outro’. Dina [achou que falavam dela].
Aí chamou mãinha, chamou Liliane, aí [...] Aí ela começou a esculhambar Liliane. Aí Liliane, aí começou, ela aí começou a jogar as coisas em
Liliane, Liliane disse: ‘eu não vou sair’. ‘Saía daí, Liliane’. Ela: ‘Não vou
sair daqui não, não vou sair porque eu não falei nada a ela’. [Disse que]
Não xingou ela, porque essa educação eu dei pros meus filhos, nenhum...
todos eles respeita tanto minha mãe, quanto ela. Não xingou ela, não
disse nada. Ela começou a jogar as coisa, jogar, jogar, jogar, jogar... de
lá pra cá
MG: E o que é que ela jogava de cima?
N: Ah, tudo dela! Tudo: garrafa... tudo que/tudo/jogava como se fosse
pra cortar, entendeu? Pra pegar na pessoa, essas crianças tudo aí. Lila
não quer saber/ não sobe nem lá em cima. Quando ela passa aí, ela
faz...25 bota a mão assim na cabeça de medo. Aí o pessoal subiram... foram desapartar ela, esse pessoal daí, esse pessoal do exército. Foram acalmar ela, eu digo: ‘ói, eu não vou, porque se eu for lá, aí vai ser pior ainda’.
MG: A polícia subiu lá?
N: Foram, foram lá em cima. Tá testemunha aí, todo mundo viu... viu
que foi ela mesmo. Pronto, acabou. Ela aí se acalmou, disse que ia embora, ia arrumar as coisas – foram embora. Fiquei sentada assistindo minha
novela, saí, [Me disseram:] ‘saia, menina’, aí eu cheguei, saí, depois voltei
fiquei assistindo a novela. Daqui a pouco, eu tô aqui... me entra três policial aqui dentro... Nesse mesmo dia. Era de noite! Era nove e tanta. Aí o
policial mandou que eu descesse aí. Eu disse: ‘Eu não vou sair de dentro
de minha casa, não. Se o senhor quiser, o senhor entra que a gente conversa aqui dentro’. Aí ele entrou, conversou, depois foi que eu saí... aí eu
comecei a passar o caso a ele, ele disse: ‘É, só pode ser louca. Essa mulher
25
Faz um gesto colocando as mãos em cima da cabeça, como se protegendo
a casa das mulheres 301
aí é louca’. Eu digo: ‘É louca mesmo’. Agora eu digo ao senhor, porque o
marido dela/ não quero conta com ele, que ele mentiu, que ele não viu
nada, ele não tava aqui... e ele disse que viu e que tudo quebrou ali fui eu
que subi pra quebrar’...
MG: Doca disse isso?
N: Foi! Eu olhei pra cara dele e disse: ‘Mas rapaz... cê tá mentindo... um
homem com quase quarenta anos mentindo!’. Ele: ‘Foi! Eu vi tudo’ –
‘Você tem certeza?’ – ‘Tenho’ – ‘E se/ isso/ prova a você que não fui eu
que fiz isso?’. Ele: ‘Mas não tem prova nenhuma!’. ‘oh, tudo bem...’. Fiquei
na minha, calada... Foi embora o policial... Aí, eles disse que ia dar intimação, e que não sei o quê... Aí deu essa intimação de mim... Desde
o momento que ela/ que ele mandou os policiais vim aqui dentro
de minha casa que eu disse: ‘Pra mim tá morto. Morto e enterrado!
Tanto ele, como ela...’
MG: E como foi lá, depois, na delegacia? O que lhe disseram por lá?
N: Aí [ele] virou pra mim, fez assim: ‘A senhora tem alguma coisa pra dizer a ela?’. Eu digo: ‘Não’. ‘Então a senhora procure sair dali, porque ela
tem uma mágoa muito grande e ela pode fazer qualquer coisa contra a
senhora’. [...]
MG: O Delegado lhe disse isso?
N: Foi. Aí ele me disse a mim, o delegado mesmo: ‘pode procurar sair
de lá... procure um lugar/ se a senhora tem condições de alugar uma
casa, a senhora alugue, porque ela/ pode fazer uma coisa pior...’. E
pode mesmo! Porque uma/ uma irmã que chega pro homem/ pro marido de uma irmã.
MG: E você chegou a contar aquela história das amigas dela morando na
casa dela que você me disse ia contar?
N: Nada! Não toquei/ cês não me falaram? Nada, não toquei nada. Na
hora não precisou não. Não. Aí começou, ela perdeu [na delegacia], aí
começou [a gritar/ ameaçar]
MG: Ela lhe ameaçou na frente do Delegado?
302 maria gabriela hita
N: Foi! Na frente dele. Foi. Ela baixou a moral. Pronto. Aí pronto, vai ver
que ela perdeu o cuidado, né? Vai ver que ela perdeu, aí começou a fazer porcaria, a botar aqui na porta... Botou um bocado de macumba
aqui na porta e eu quieta.
MG: Quando foi que isso começou, isso dela botar as macumbas?
N: Semana passada
MG: Em pleno carnaval?
N: Foi. Que dia foi, Gilsinho, que apareceu aquele bozó aqui? Cê se lembra da data? Semana de carnaval. Apareceu dois. Não, antes da segunda. Aí, ela começou a botar. Botou o primeiro, botou o segundo... Todos
foi ela que botou! Depois botou/ apareceu umas vela lá vermelha, outra
preta que [...] foi a irmã de Greta que botou. Eu vi mais mãinha, aqui, ela
botar! Eu vi. [É] De Exu/ fez trabalho pra Exu/ tanto é, que não pegou
em mim, pegou em meu sobrinho... Porque no mesmo dia, ele foi preso.
No mesmo dia.
MG: Não pegou em você?
N: É. Não pode. Não pega, nada de ruim pega em mim. Eu tô protegida!
(Rss) Eu mesmo me protejo. Eu mesmo sei quando tem alguma coisa de
ruim pra acontecer comigo, eu já sinto antes. Como agora mesmo. Não
pega nada. Eu sinto quando tem alguma coisa que vai acontecer... com a
minha família – como agora – eu tô dizendo a você que tá pra acontecer uma coisa de muito grave, de muito ruim... Não sei com que/
foi/ qual das três famílias, mas/ das quatro famílias, mas que tá pra
acontecer, tá. É, pode ser. É/ coisa...
MG: Você tem mágoa dela?
N: Eu não/ não/ não tenho raiva, não tenho nada, só não quero mais
contato, tá entendendo? Porque se fez isso comigo, pode fazer coisa
pior... E eu já passei por coisa pior que eu nunca tive coragem de dar
intimação a nenhum/ nunca fui na delegacia, cê acredita? (Neneca,
22/02/1999).
MG: Você tinha me dito uma vez que queria sair do Nordeste, que tinha
comprado terreno em Itapuã, como ficou isso?
a casa das mulheres 303
D: É! Mas eu comprei, eu comprei o terreno em Itapuã, né? Foi três mil
e quinhentos reais. Doca pediu as contas do trabalho, né. Quatro ano de
emprego, né, pediu as conta.
MG: E ele fazia o que? Trabalhava aonde?
D: Ele?! Ele é pintor de para choque. É. São Paulo Para choques, ali perto
do Ibama, no Rio Vermelho. Né, ele pegou, pediu as contas, o rapaz deu.
O rapaz deixou o terreno por dois mil reais, ele deu todo, né. Mas aí, o
outro quinhentos que ele recebeu – comprou os material, mas não pude
meter mão, porque não tem quem/ tinha que pagar mão de obra. E o
terreno tá lá, né.
MG: Ninguém o invade?
D: Não, tá invadindo não. Tá tudo capinadozinho, tudo cercado, né. Eu
vou saí daqui, mas às vezes eu fico assim pensando: se eu sair, e mãinha
como é que fica? Só se [eu] levar ela amarrada. Né, [só se] amordaçar ela e levar ela assim mesmo. É, mas isso eu não vou fazer, não.
(Rss) Ah, eu penso. Ela eu levo, né. Já imagino quando ela fechar os
olhos, o que será dessa casa aqui? Se não tão respeitando ela em
vida, imagina quando morrer. Aí, vai virar bagunça mesmo. (Dina,
27/07/1999).
MG: E você acha que tem chance de Dina ir embora daqui?
D.C: Pra ir embora pra... onde?
MG: Ela me disse que queria construir em Itapuã...
D.C: E vai nada!! Queee!! (Rss) Nem/ nem a daí vai [Neneca], nem
essa vai [Dina]... nenhuma das duas. Porque tenho certeza que elas
não vão pra canto nenhum...
MG: E se fosse verdade, a senhora ia com ela, como tinha dito uma vez
pra ela que se ela construísse em outro lugar a Senhora ia com ela?
D.C.: Eu é que não vou sair de minha casa, né? Que não! É que/ isso aqui
é meu, isso aqui... não vou sair pra dar... elas que ache que deve sair/ que
deve sair pra dar lugar ao... ao que não presta! Tem essa carga aqui
minha... Se eu tenho uma carga grande... Porque essa/ es/ esses/ esses
304 maria gabriela hita
neto que mora comigo... eu não só tenho só os dois pequeno. Tenho é eles
todo! (D. Cida, 24/02/1999).
TERCEIRA PERSONAGEM CENTRAL
Dina
(Mãe, 37 anos, quatro filhos de Doca; marceneira
e ajudante de pedreiro)
Dina foi se tornando uma das figuras centrais da pesquisa deste grupo familiar, inicialmente pelo interesse da pesquisa anterior em pessoas com problemas de nervoso e que eram esterilizadas; depois, pela relação antagônica com
Neneca na luta pelo espaço e direito à casa, que foi emergindo como um dos
eixos centrais da minha análise. Pelo temperamento esquivo e desconfiado,
se recusava sistematicamente a participar como informante de pesquisas anteriores. O processo de aproximação foi gradual, resultante de anos de visitas à residência, trocas de alguns presentes, que no caso, foram também
recíprocos, e elogios às habilidades e logros na construção da casa. Pela empatia e confiança conquistadas, depois de alguns anos de intentos frustrados
de aproximação,26 me confiou e pediu que eu guardasse um dos cadernos de
seus diários pessoais, que vinha escrevendo há alguns anos porque queria
que eu o lesse e conhecesse seus segredos que não lograva me contar nas entrevistas, assim como proteger o material da invasão bisbilhoteira de alguns
dos parentes ou parceiro. A intimidade que nossa equipe de pesquisa tinha
com D. Cida e Neneca foi motivo do distanciamento e desconfiança inicial,
pois temia que alguma coisa que ela contasse viesse a ser sabido lá embaixo,
entre os parentes mais próximos e usado contra ela. Depois, foi cedendo e
aceitou colaborar com a pesquisa, recebendo as visitas e gravando entrevistas, reclamando quando os encontros ficavam mais espaçados. Ela sabia que
outros leriam sobre sua vida, o que disse não lhe incomodar. A maior preocu26
Neste processo, importante foi o intento de aproximação de bolsistas IC do ECSAS como Suely
Messeder e Adriana Prates, que tentaram se aproximar e entrevistá-la nas primeiras fases da
pesquisa.
a casa das mulheres 305
pação era manter a privacidade dentro do grupo de parentesco, considerados
seus piores inimigos naquele momento. Ela sentia orgulho de ser objeto de
estudo da pesquisa e alimentava a ideia de um dia ver sua história publicada.
Chegou a pensar em publicar, ela mesma, um livro a partir dos diários e histórias – como o fizera Carolina Maria de Jesus (1996), uma mulher pobre e
negra de Minas Gerais, semi analfabeta, catadora de papel, que migrou para
favelas paulistas e escreveu Quarto de despejo. Livro que lhe dei de presente, e
que leu em três dias, comentando que gostou tanto que o circulou entre amigos, com os quais o discutiu coletivamente. E seu projeto naquele momento
era poder tornar pública sua história, como o fez Maria de Jesus.
Dina se mostrava uma pessoa vivaz, suave no trato, tímida e gentil. Era
muito elogiada pelos amigos que lhe frequentavam a casa. A desigualdade
de poder intrínseca à relação de investigação entre pesquisador-pesquisado,
penso eu, ficou mais equilibrada pela forma como Dina conduzia os contatos. Ela me presenteava e se mostrava extremamente atenciosa; estabelecendo mediante sistemáticas doações a sua superioridade frente aos outros
e fortalecendo nestas trocas de favores, a obrigatoriedade da reciprocidade.
Meu ouvido atento, visitas e cuidados com ela pareciam ser-lhe importante e
valiosa contra-dádiva, da qual esperava continuar sendo beneficiária.
Em cada visita que fiz a Dina, ela fazia questão de demonstrar sua superioridade como boa anfitriã. Sempre oferecia e servia-me um café, um suco,
um almoço ou lanche, como fazia com todas as amigas e visitas da sua casa
– mesmo e quando podia faltar para o consumo próprio – e jamais aceitava
uma recusa, sob grave ameaça de não prosseguir com as entrevistas, dizia
brincando, fazendo-me desta forma, sua devedora. A forma de servir e apresentar o alimento primava pelo cuidado, usando suas melhores taças, pratos,
toalha de mesa; cuidava de tudo nos mínimos detalhes. Em certa ocasião, no
dia do aniversário de Neneca, com quem disputava naquele momento pelo
fato de Neneca ter adquirido uma linha telefônica e ela, Dina, apenas contar
com os aparelhos e a extensão da linha do seu patrão, ela me presenteou com
um dos dois aparelho telefônicos (em design bem moderno) idênticos aos
que tinha na sua casa, e que seu marido tinha ganho recentemente, provocando, com esse gesto, maior irá e ciúmes em Neneca.
Nas palavras de Leffort:
Dar é tanto pôr outrem sob nossa dependência quanto nos pormos
sob sua dependência ao aceitar a idéia de que devolverá o dom. Mas
306 maria gabriela hita
esta operação, esta iniciativa no dom supõe uma experiência primordial graças à qual cada um se sabe implicitamente vinculado ao outro;
a idéia de que o dom deve ser restituído supõe que outrem é um outro
eu que deve agir como eu: e este gesto em retorno deve me confirmar
a verdade de meu próprio gesto, isto é, minha subjetividade. O dom
é, assim, ao mesmo tempo o estabelecimento da diferença e da descoberta da similitude. Separo-me do outro e o situo defronte a mim
dando a ele algo, mas esta oposição não se torna real a não ser quando o outro age da mesma forma e, por conseguinte, em certo sentido a suprime. [...] Não se dá para receber; dá-se para que o outro dê.
(LEFFORT, 1979, p. 33).
Com os familiares, Dina era mais dura, grossa, altiva e de língua afiada,
diziam, não deixando passar nada calada. Parecia se identificar mais com
uma lógica individualista, própria de classes médias, do que com a lógica
holista identificada por Duarte (1986) como própria de pessoas de classe trabalhadora. Era vista, segundo os padrões familiares do grupo, como egoísta
pelo modo de dividir o tempo, a conversa, o espaço físico e o que tinha para
comer ou gastar. Dina é generosa, mas também muito seletiva no que toca
aos seus beneficiados, ao quando e ao quê compartilhar, tendendo em geral,
ao autoisolamento defensivo e ao castigo ou afastamento daqueles que considera serem seus desafetos. A fala de D. Cida, a seguir, revela como ela era
responsável, uma pessoa que não fugia do trabalho, mas que era também instável em seus relacionamentos, especialmente se tratando das relações com
os membros do grupo de parentesco. Algo similar vai apontar a sobrinha Lia.
D.C.: Dina é muito inteligente. Porque se ela pega um serviço, faz aquele
serviço mermo, é menina trabalhadeira, não fica parada... então se ela
fosse doente de cabeça, então ela não tinha esse meio de fazer isso tudo./
É percurada [procurada], todo mundo percura ela. Tem uma obra ali, ela
vai e... e... trabalha e ganha aquele dinheiro. Eu tenho pra mim que se ela
fosse [doente da cabeça] ela num ...num coisa.
MG: Então, qual o problema dela?
D.C.: Ela gosta muito de ter camaradagem, né, mas ela é toda desconfiada.
MG: Como assim? Desconfiada em quê?
a casa das mulheres 307
D.C.: Oxi! No mermo tempo que ela tá de bem, daqui a pouco... Ela tá de
mal. Só com os pessoal de dentro de casa que ela é assim. Na rua ela
é camaradagem, com todo mundo quer camaradagem, ela...
MG: E qual seria então o principal defeito dela?
D.C.: O que eu acho que ela tenha... é desconfiar. Desconfiada ela é... e
muito! (D. Cida, 12/05/1992).
MG: Qual o problema com Dina? Porque você acha que não conseguem
se entender?
L: De Dina mais é o olho grosso. Ela quer tudo pra ela... Vovó quando
recebe o dinheiro, a primeira coisa que ela faz é... tomar o dinheiro pra
num/ os menino [não pegar dela]/ e pior que ela pede... quando os menino pede o dinheiro às vezes à vovó, vovó não [tem como dar]... os menino vão pegar e ela termina... comprando outras coisas que... pra ela...
(Lia, filha primogênita de Neneca, 08/02/1999).
No campo profissional, sempre chamaram a atenção as escolhas e o engajamento de Dina em âmbitos tipicamente masculinos, com serviços físicos
pesados: pedreiro, auxiliar de construção civil, trabalhos de marcenaria.
Estas atividades lhe fizeram desenvolver um corpo forte, hábil e resistente.
Até pouco tempo, anterior ao fim da pesquisa, Dina participava na equipe de
um marceneiro especializado, seu Orlando, que se dedicava à remodelação e
polimento de móveis. Seu Orlando morreu logo depois de D. Cida, e era um
grande amigo do casal, tratado como um pai por Dina e Doca.
Este senhor estava casado com uma mulher doente (após derrame cerebral)
e vivia com um filho que sofria de problemas mentais, pelo que, para fugir dos
problemas da casa, passava boa parte do dia na casa de Dina. Era comum encontrá-lo lá, nos distintos dias e horários em que fui visitá-la, como também
à amiga lésbica do casal, Greta, almoçando, merendando, assistindo televisão
ou simplesmente conversando com Dina ou seus filhos. A linha de telefone
na casa de Dina, que era uma extensão da de seu Orlando, era por onde recebiam os pedidos da clientela. Essa linha não parava de tocar, durante minhas
visitas. Segundo Seu Orlando, Dina era sua mão direita, pessoa de confiança
e a melhor dos seus funcionários, pelo capricho, acabamento e trabalhos delicados que sabia fazer, havendo serviços que só ela exercia. Sempre foi a única
308 maria gabriela hita
mulher da equipe. Após a morte de seu Orlando, demorou um bom tempo
a ser chamada para novos serviços. Os familiares de seu Orlando tiraram a
extensão telefônica da casa de Dina, cuja clientela passou a ser administrada
por outro dos filhos de seu Orlando, e que possuía sua agenda telefônica.
Quando não aparecia serviço, Dina fazia todo tipo de bicos como faxinas,
serviços de tapeçaria, aplicava injeções no bairro, fazia geladinhos ou comidas
para vender: tudo o que fosse necessário para receber um trocado, um favor
em troca, para comprar o pão e feijão do dia. Desde que Doca, em sua nova
fase, passou a assumir responsabilidades como provedor e bom pai de família,
ela passou a cuidar mais da casa e agora também dos netos que começaram a
nascer a partir de 2003, e trabalhando quando membros da equipe de marcenaria a chamava para algum serviço.
Quanto à educação dos filhos, Dina e Doca eram rigorosos e autoritários,
mas também muito mais doces e meigos do que Neneca nos últimos anos.
A relação entre pais e filhos neste lar era respeitosa, ordenada e mais tranquila,
de forma geral, nesta última fase que observei. Como as de Mãe Dialunda, na
outra rede de parentesco, eles preferem ditar regras rígidas de convívio, sabendo
impor a autoridade. Isso faz com que fossem respeitados, pois do contrário, eles
não se acuam em castigar e conduzi-los para o bom caminho.27
Relativo a este processo, uma preocupação foi detectada nos momentos
em que optaram por afastar os filhos das más influências dos sobrinhos,
mandaram a mais velha viver com a madrinha e o filho mais velho, com seus
sogros, circulando estas crianças, como é costume, entre as distintas casas
da rede social de relações durante períodos mais críticos. Indo e voltando. E
com isso cuidando do futuro. Sobre as preocupações e comportamento de
Doca e Dina com os filhos, veja-se como opinam, discordam e o que esperam
do futuro da prole:
Do: Dina como mãe tá sendo até agora nota dez, viu? Uma mãe/
mãe exemplar, né? Exemplar mesmo! Agora que/como se diz, a gente
faz filho, mas a gente não.../cria o filho, mas não previne o futuro dele,
né? O mundo de hoje. (.) As crianças de hoje... a geração de hoje tá... uma
tristeza. Pô, os meus filhos, graças a Deus... (Rss) até hoje tá na linha,
27
Se Mãe Dialunda, Dina e Doca eram mais autoritários e rigorosos com os filhos, usando métodos
mais duros e violentos para impor a ordem, quando fosse preciso, essa forma de agir não era
aprovada por D. Cida, quem tinha maiores dificuldades em manter a ordem, na fase final da vida.
Pior ainda no caso de Neneca, cuja autoridade com os filhos era praticamente nula.
a casa das mulheres 309
né? Até hoje tá na linha. Como eu digo/ como eu tô dizendo a você,
eu tenho medo de... largar eles soltos aí na rua... Que tá fazendo medo.
As crianças tudo viciada aí na... [...] Emprego tá difícil... A gente tem um
trabalho, a gente tem de segurar esse trabalho... porque... não pode ficar
sem ele. Porque sair dele... pra partir pra uma/uma melhor - talvez não
consiga, tá entendendo? E a gente não pensa na gente não, a gente pensa em quem? Nos filhos. Tá entendendo? Então, a gente (pega), como eu
digo. Tá, ta [com a casa pronta]. Tá, e, pela idade deles, torna mais fácil, né? Agora/ quer dizer/ as coisas/ pela idade mais fácil porque... uma
já, Jane vai completar 17, o (Guido) já tem 15... né? Tico com 13 anos,
Nete com 12... já tão criados, né? Tá entendendo? Mas... é difícil [...] É
como eu falo...
MG: E se eles fossem pelo caminho errado? O que você faria?
Do: Não, se eles estiverem no caminho errado... eu prefiro entregar
à justiça. Logo no início. Se fosse/eu acho que pela idade... E... eu conheço meus filhos, tá entendendo? Eles não têm coragem disso não.
Entendeu? Isso aí... vem da adolescência, vem da/do/da criança mesmo,
tem muitos meninos aí ó... com dez anos, oito anos... que os pais não liga,
larga aí, doido aí, solto, andando com um e com outro, já usando droga, aviciado em droga. Então isso... pela idade que eles estão, nossos
filhos, a gente evitou, tá entendendo? E a gente puder evitar mais,
ainda é melhor... Porque muita criança aí ó, passa aí, usando droga aí deste tamanhinho assim, ó... Então, não pode [possível referencia indireta
a Willy, bistneto que D. Cida criava]. Quer dizer... o pai e a mãe criar um
marginal. Marginais. Não pode! Tem de levar pra justiça porque a
justiça sabe o que faz... Entendeu? [...] Pra botar numa casa de recuperação, enquanto é cedo, do começo, entendeu? Pra não pegar no
meado... e... pra não deixar crescer mais. Porque aí vai resolver o quê? É
o quê? Roubar, matar... entendeu? Andar na mão da polícia aí tomando
porrada adoidado, porque... o filho... como hoje/ diz que não pode o pai
e a mãe exem/ bater em filho. E porque a justiça pode... a polícia pode...?
Só a polícia que pode impe/ me impedir de eu estirar minha mão pra dar
na/ na cara... pra dar em um filho meu... Não tem lei, não. Hum? É. Não.
(Doca, 23/01/2000).
Já Dina discordava de Doca em alguns aspectos, mas mostrava concordar
em outros:
D: Que esses filhos meus... eu nunca vi como é tão... são tão revoltado
assim desse jeito... Porque eu dou carinho, trato bem, né?, Agrado..., mas
são bruto... Esse Guido mesmo, aí - Ave Maria! Esse menino é demais!
310 maria gabriela hita
MG: Você me contou que ele estava morando na casa da avó, mãe de
Doca. Ele voltou?
D: Voltou, é. E Jane [também].
MG: E porque eles tinham ido ficar na casa dos avós?
D: Na... pra ver se melhorava mais, porque às vezes afastado... né?
[...] Que aqui eles dormiam... tarde da noite e acordava... dez horas, onze
horas do dia. E lá na casa da madrinha, na casa da vó, não. Eles tinham
que levantar cedo. Tinham que fazer alguma coisa, se não fizesse, tavam
falando... E aí... Gostaram de voltar.
(Dina, 29/01/2000).
Quanto às preocupações com o desabrochar da sexualidade da filha mais
velha, a preocupação era em que não fosse desvirginada antes de tempo e que
tivesse um bom parceiro, pelo que os pais controlavam seus movimentos e
escolhas. Jane estava namorando escondido um rapaz não aprovado pelos
pais, por ter outra namorada mais séria, e o segundo namoro, eles mostram
como participaram no processo de definir o rumo do mesmo. Não demorou
demasiado tempo depois desta entrevista em que fiquei sabendo que Jane
tinha engravidado e depois tido o filho com o seu novo parceiro:
MG: Me conte aquela história da suas brigas com Jane por causa de um
namorado.
D: Ah, Jane... Tava namorando escondido, né? Dizendo/jurando de pé
junto, dizendo que não estava namorando, mas estava namorando!
Namorando escondido... Com esse Paulo, né? E teve outro namorado lá
no interior, um tal de Gessé... Que ela namorou escondido, né? Quando
ele veio pedir pra namorar com ela na porta, né?, já/ o povo já sabia que
tava namorando escondido. Então, eu não deixei... Eu não deixei da seg/
na seguinte maneira: [por]que... ele tinha namorada certa. Então, Jane era
só uma armaçãozinha... né? Então, já pensou se ele bulisse com Jane?!
Tirasse Jane de casa? [a engravidasse] Como é que eu estaria hoje, com
minha mão na cabeça? Aí, não deixei namorar com ele na porta.
MG: Você sabia que ela tava namorando?
D: Sabia! Eu procurei saber, né? Pesquisar a vida dele e s/ e soube que ele
tava namorando com uma menina na porta. Aí Jane dizendo que não,
a casa das mulheres 311
que não tava namorando com ele, que não tava, que não tava. Eu disse
[a ela]: ‘Jane você está?’ Ela disse: ‘Eu não estou, não, mãinha’. Aí eu disse
assim: ‘Tá certo.’ Aí, mandei alguém... seguir os passos dela, e alguém
descobriu que ela tava namorando... Aí então, por ousadia dela, eu
não deixei. Fiz com que ela terminasse. Aí, demorou uns dois ou três meses... Aí descobri que ela tava de paquera com esse... Paulo. Mas não tava
namorando certo, tava só de paquera mesmo com ele... Aí... Aconteceu.
Mandei chamar ele aqui em casa, ele disse que não. Que era só amizade mesmo. Eu perguntei a ele: ‘ói, se você tiver namorando com Jane
você me diga! Me diga, porque se não... vai ficar difícil também depois
quando eu descobrir.’ Ele disse: ‘não, não tô.’ [E ela voltou a lhe perguntar]‘Cê quer namorar com Jane na porta?’ – [Ele:]‘não, não quero’. Eu disse: ‘Porque se você quiser namorar com ela na porta, eu vou deixar.’ Ele
disse que não queria.
MG: Ele disse que não queria?
D: Foi, ele disse que não queria namorar com ela na porta, não, queria só
amizade... [mas Dina sabia, por parentes do pai, que ela andava abraçada na rua com ele] Chamei ela, ela continuou testando que era mentira,
que aquilo era invenção... Aí , eu não sabia [mais] em quem acreditar, se
era em Doca ou se era nela... Aí eu disse: ‘a única solução que tem é chamar Nete’ [irmã menor de Jane]. Aí foi que Nete pegou e disse... que foi
verdade... Aí eu peguei, fiquei dizendo a ela que ia bater nela/ não, bati
nela muito! Porque ela tava mentindo pra mim, eu queria que ela me
dissesse a verdade... Aí, passou uns três, quatro, cinco dias... Aí Doca... me
chamou de novo, fez/disse: ‘Ói, Dina, é melhor chamar esse rapaz pra
namorar com Jane na porta’... Eu disse que não queria... Aí ficou... insistindo, né?, durante uns três dias... batendo na mesma tecla que era pra
Jane namorar com ele na porta... Aí eu disse: ‘é, então tá bom’... Ele veio...
eu perguntei de novo a ele se ele queria namorar com Jane na porta, ele
disse que não, que era só amizade. Era isso mais que me dava raiva. Aí
eu peguei, disse assim: ‘é, então Doca conversa com/ com ele’. Aí,
Doca conversou com ele e ele disse que queria namorar com Jane
na porta e tá namorando com ela até hoje.
MG: E o que foi que Doca falou com ele?
D: Ah, disse que é pra ele não mexer em Jane, porque se ele mexer...
que aí... que ele vai... sei lá! (Rss) Que vai capar ele! Que vai bater,
que vai chamar a polícia, que vai casar... Aí ficou com medo. Aí, eu
disse a ele que/ tá bom, então é minha vez de falar. Ele vai namorar com/
312 maria gabriela hita
ele/você vai namorar com ela... então, de três em três meses eu vou levar
Jane no ginecologista.
MG: Para qué?
D: Pra saber se Jane ainda é virgem. Sei lá, né? Mesmo namorando na
porta... na rua/ não, ainda não tem três meses, não. Né? Mesmo namorando na porta, mas pode ser que o dedo corra, né?
MG: E você já levou ela no ginecologista?
D: Não, ainda não foi não. Mas eu confio nela. Até agora, né? Porque
não sai pra canto nenhum. O seu namoro é naqui na porta mesmo. Aí no
dia que... acontecer mesmo, eu acho que ela vai me dizer, né? Que/ que
eu serei a primeira pessoa. Já pensou?! Já pensou se acontecer com ela
o que aconteceu comigo? Eu era mulher batalhadeira, né? Eu... quer
dizer, também eu não escolhia trabalho, qualquer coisa eu enfrentava pra/... por eles. Por que o filho tira a vergonha da mãe, né? Se
a mãe for orgulhosa, né?. Não qui/se ela ficar pisando em ovos... Aí,
quando parir... que tiver o filho, aí vai acabar aquela vergonha toda,
vai cair tudo! Aí, vai começar... vender papel pra... manter os filhos.
É, e aí... Que foi que eu fiz, né? Enfrentei a vida.
MG: E subiu!
D: É/não, não subi não, né? Mas tô subindo uns degrauzinhos, ainda
falta bem uns... uns dezoito de/degrau. Só subi dois.
(Dina, 29/01/2000)
Por outro lado, parecia Dina ter esquecido as loucuras que ela mesma cometeu quando estava apaixonada por Doca e, agora como mãe, recriminava
o ciúme excessivo da filha Jane pelo namorado:
MG: Que história foi essa da briga com a vizinha e Jane que teve outro
dia? Como foi isso? Me conte de novo
D: [Eu tava] Aborrecida. Porque eu fui trabalhar... quando eu chego, aí
encontro... confusão dentro de casa - Jane dizendo que a vizinha veio
pr’aqui pra porta... né?, dizer desaforo a ela... Aí eu perguntei a Jane porquê... ela disse que (Rss) Que Jane ia pegar a outra filha da vizinha pra
dar porrada... E Jane disse que não disse.
a casa das mulheres 313
MG: E Jane dá porrada?
D: Jane dá! Jane é ousada, Jane é bruta, e Jane faz... Então, é por isso que
eu fui na casa da vizinha procurar saber a história direito. [Buscar saber]
Se foi mesmo a versão que Jane contou. A vizinha// diz/ já contou outra
história diferente. Que disse que Jane tinha dito mesmo... que ia bater na/
na menina. E Jane lá botando testão dizendo que não disse nada. Mas eu
conheço a filha que eu tenho. E eu sei que Jane é assim desse jeito...
Eu sei que Jane é bruta... Com ciúme do namorado. Porque depois
que ela passou a namorar... Né? Não quer que ninguém olhe pra
cara do/do/do namorado dela.
MG: Tinha outra de olho nele?
D: Tava olhando! Diz que a menina não pode passar... e nem olhar pra
cara do namorado dela que ela quer bater. Não é só com essa menina
como muitas outras. Jane já procurou confusão... E se não cortar isso agora, vai se agravar amanhã ou depois. Ele não olha [outras] porque... com
medo de Jane. Tem medo de Jane. De Jane brigar, de Jane ir em cima das
outras meninas... (Rss) Jane é muito ciumenta, Jane acha que... o namorado dela é só pra ela, que só pode olhar pra ela... não pode olhar pra
ninguém, não pode conversar com menina nenhuma... Ele não pode
ficar sem camisa... Não sei que milagre, ele chegou aqui sem camisa agora. Não po/ porque tá trabalhando. Não pode ficar sem
camisa, na praia, ele não pode usar sunga, tem que usar bermudão
até o joelho... Porque Jane não quer que ninguém olhe pras pernas
dele... Engraçado, namorando... imagine quando chegar a casar, viu?
Quando chegar a casar aí que vai ser fogo! Que ele não vai botar a cara
do lado de fora. Não vai botar a cara do lado de fora. Acha/ Não vai
querer nem que ele trabalhe, acho que ela vai ter que dar na mão a
ele... Né, Jane? Vai ter que trabalhar e ele ficar dentro de casa, amarrado em cima da cama... Esperando ela chegar...
MG: Ihiii... igualzinha à mãe dela...
D: Ahn? (Rss) Não eu não sou assim, não. Eu não sou assim não. Já
pensou?! Se eu quisesse só que Doca ficasse dentro de casa e eu fosse
trabalhar?! Ia morrer de fome! Ia morrer de fome. Então, ela tem que
se conformar que a vida não é assim como ela quer, não.
(Dina, 29/01/2000).
314 maria gabriela hita
Problemas vivenciados com a filha Jane reeditavam parte da história relatada pelos pais sobre a juventude da própria Dina. Muito rebelde e temperamental desde menina, Dina foi das mais difíceis de criar, comentava D. Cida,
e das filhas, uma das que mais apanhou do seu Diógenes. Com 12 anos, declara, ficou obcecada pelo seu atual companheiro, Doca, que também tinha
12 anos. No trecho abaixo, ele conta o que faz e sua versão do início da relação com Dina:
MG: Pode me dizer seu nome todo e sua idade?
Do: Doca. É... J.C.C. de C. E tenho 23... 24!
MG: 24 anos?
Do: É, 24 anos. [Dina ao fundo comenta: ‘Tem 24 anos é?’].
Do: Ô! Errei... 34 anos.
MG: O que você faz?
Do: To trabalhando. Eu... sou pintor. Trabalho com lataria de carro, chaparia e... pintura de pára-choque.
MG: A quanto tempo você trabalha alí?
Do: Eu tenho... 7 anos e pouco. Nesse mesmo local. [...]
MG: Me conte da sua vida, da sua infância, como foi quando conheceu
Dina...
Do: Eu nasci... ali no... no Morro do Gato. Ali no Chame-chame. Vim pra
cá pra/ pro Nordeste tinha... seis anos de idade.
MG: Veio sozinho?
Do: Com toda minha família. Aí com oito anos de idade eu comecei a
trabalhar, comecei a vender leite... Acordava cinco horas da manhã, saía
com... Aí, o negócio foi parando, foi parando, aí eu procurei... eu e meu irmão, a gente procurou uma distribuidora de jornais A Tarde, aí na Santa
Cruz... A gente aí já passou a vender jornal. A mesma rotina. Saía de madrugada e retornava umas duas horas, três horas da/ da tarde. Sem co-
a casa das mulheres 315
mer, nada. Às vezes a gente nem tomava café... porque... não dava tempo. Eu tinha doze anos. Essa época é que eu comecei a conhecer Dina...
Tempo de menino, criança mesmo... Aí pronto!
MG: E onde você morava?
Do: Eu morava Com minha mãe e com meu pai, meus irmãos, aqui na
Santa Cruz. Aí meu pai... disse que eu tinha que aprender alguma coisa,
que jornal não ia dar futuro... Aí eu tenho um primo chamado Zelito que
[hoje] ele tem uma oficina de carro. Aí eu... comecei a ir pra oficina com
ele, de manhã cedo... Ia e voltava... à noite com ele. Carregava uma caixa de ferramenta deste [grande] tamanho! No ombro. Chegava o ombro
ficar todo doendo. Ia daqui/ daqui pro Rio Vermelho, voltava, de tardinha... Comecei na oficina... me entrosei, aprendi minha profissão. Estudo
eu não fiz, negócio de estudo, entendeu? Não! Aprendi a profissão...
e aí... comecei a conhecer Dina, né? A gente menino [...] Aí com 12
anos. (Doca, 23/01/00).
MG: Aonde se conheceram? Me conte mais...
Do: Eu conheci ela aqui mesmo. Que eu vendia jornal... aí passava aqui...
na frente da casa dela [tinha a venda de D. Cida], aí... conheci e aí...
peguei uma amizade com/ com os menino daqui também, entendeu?
[Téo]. Uns menino direito... Aí pronto! Aí D. Cida... não gostava porque
a gente era muito novo, entendeu? [D. Cida o espantava a vassouradas]
MG: E quando Dina engravidou? Como foi isso?
Do: Pô! Isso aí foi o maior sufoco! Eu fiquei uns dias sem aparecer
aqui (Rss) Com medo! Não! Pressão! Um bocado de coisa.
MG: Medo de quem?
Do: Da velha... com medo! Com medo de tudo. Não tinha experiência
ainda, entendeu? Nem eu, nem ela. Aí ficou... aquele clima/ ficava
com medo, não sei o quê. [...] D. Cida ficou falando um bocado de coisa...
que eu fiz um mal a filha dela, que eu tinha que casar, não sei o quê...
Eu digo: ‘tudo bem, o que a senhora fizer tá feito’. Aí ela... entendeu?
Correu atrás, tirei os papel todo.
MG: E o que aconteceu? Porque não casou?
316 maria gabriela hita
Do: Na época eu não casei, porque [o juiz disse] eu era de menor... Aí
pronto. Aí ficou [assim]/ ela tinha... de aceitar mesmo... Ficamos. A irmã
dela me cedeu um pedaço de um terreno aí pra gente... alí na invasão onde tem o colégio Teodoro, ali embaixo, logo ali na frente...
MG: Qual irmã?
Do: A finada Lena. Aí a gente, aí fez um barraquinho... ficou lá, entendeu? Morando lá. Mas... na época eu... eu gostava muito de... de
andar, muito de camaradagem, entendeu? Entendeu? Eu tenho um
monte de colegas, agora colega direito,28 os colegas tudo de família...
Aí pronto. A gente saía, tal, chegava tarde, às vezes bebia... Aí não sei...
o que aconteceu, aí D. Cida aí... que eu chegava lá tarde... D. Cida aí tirou ela de lá. Eu sei que venderam o barraco, tiraram Dina de lá,
botou aqui no quarto, aí teve... Aí começou/ meus pais me dá conselho, e não sei o quê, não sei o quê... que eu procurei, eu tinha de
assumir... Porque eu... eu não procurei deixar... o que eu não - como
é que diz?... ‘Oh, porque você não deixou... aonde tava/ a menina
como tava?’
MG: Porque você engravidou ela? Eles queriam que assumisse ela?
Do: Sim/ Não! Entendeu? [Que] Eu não passasse do limite. Que eu
passei. Então... eu passei do limite, eu tinha de assumir... Aí... que não
sei o quê... [E] Eu disse: ‘Não! Mas o negócio não tá dando certo, eu vou
ficar um tempo aqui’. E ele: ‘Não! Cê vai voltar pra lá...’
MG: Eles queriam que você viesse morar na casa de D. Cida? 29
Do: É! (Rss) E eu não queria. (Doca, 23/01/00).
Dina diz que naquela época não tinha ouvidos para os conselhos maternos
que tentavam convencê-la a esquecer Doca e refazer a vida sem ele, de quem
engravidou mocinha e continuou a fazê-lo a cada novo ano. Mas ele morava
com os pais, e tinha outras relações. Procurou ocultar e se desfazer do feto,
na primeira gravidez. Sem sucesso, quando descoberta foi duramente espan28
Ao se referir aos colegas direitos, pela história e que outros contam de suas amizades, parece ser
esta uma metáfora para se referir a seu grupo de amigos maconheiros.
29
Dina sempre disse que a família dele o protegia e não gostava dela, e neste discurso, ele parece estar defendendo uma visão diferente, contrapondo-se à visão de Dina de que nunca a
aceitaram.
a casa das mulheres 317
cada pelos homens da família e expulsa de casa, sendo reintegrada ao lar pela
insistência de D. Cida frente a Seu Diógenes, meses depois.
Ah, escondi, porque tinha vergonha. Quando eu engravidei eu apertava
a barriga de um jeito! Com fio, com corda de nylon, vestia uma roupa
bem folgada, prá ninguém descobrir. Quando descobriram... Ah, eu
tava com 7 meses. Tentei abortar. Ele mesmo [Doca] trazia prá mim
remédio. Poxa era como se o mundo prá mim tinha acabado. Sei lá,
parecia que todo mundo ia virar as costas prá mim, uma tristeza,
mas hoje em dia, graças a Deus, que quando eu olho prá trás, que eu
vejo quatro filho criado, quer dizer, criando ainda... Ai... não tenho muito
arrependimento.
(Dina, 16/03/1996).
Dina lembrava com mágoa do ocorrido pelas dificuldades que passou e
pelos conflitos que tinha com Doca. Ela atribui a esta ocorrência o início dos
seus problemas de nervoso e dores de cabeça, devido aos espancamentos sofridos desde menina, declarou, e não aos problemas do aborto e esterilização,
como atribuía D. Cida. Problemas de nervoso e angústia que a afligiam e levaram a situações extremas, como a várias tentativas de suicídio.
Apenas depois do seu quarto filho, quando já tinha 19 anos, é que Dina
decidiu bruscamente interferir no próprio destino. Cansada do peso do cotidiano, em grande parte devido aos muitos cuidados demandados por várias
crianças pequenas, Dina não deixou passar a possibilidade de um acesso facilitado à esterilização oferecida gratuitamente à população carente naquele
ano de campanha eleitoral. Ela estava no quinto mês de uma gravidez de gêmeos. Não teve dúvidas, e decidiu abortar! Sem pensar muito, resolveu dois
problemas: o da gravidez não desejada e o do atestado de não gravidez exigido para a esterilização. Ela identifica essa fase como o início da vivência de
sua sexualidade de forma mais plena e tranquila. O pior do aborto, além do
risco de saúde, foi a indisposição que teve posteriormente com a parentela,
e com a mãe em particular, que recriminara o ato como cruel e coisa do demônio, quem nunca lhe perdoou esse crime contra a vida. Ela conta:
D: Eu estava com tanta raiva! [de Doca]. Pior que ele batia assim arrudo,
sem quê nem para quê, eu não fazia nada, nada pra ele quebrar a minha cara, nada, nada, nada. Aí eu fiz assim: Ah, está certo, é assim né?
Está bem! Peguei o Citotec [remédio abortivo]. Uma colega me deu, peguei coloquei. Eu fazia porque eu queria perder mesmo. Aí, aconteceu. Eu
318 maria gabriela hita
coloquei o remédio, né, eram mais ou menos umas 10 da noite, quando
foi 1h da manhã: [saíram] 2 meninos! tinha uns 20 cm os dois! Já pensou
que perturbação? Eu já com 4 filhos, com mais 2 capetinha do lado? Aí
é que ia me desgraçar mesmo! Aí que eu ia para a sarjeta pedir esmola.
Aí eu perdi!
MG: E sua mãe? Como ela reagiu? E Doca?
D: Aí mãínha... hoje ela é crente, né? Mas antes ela [me dizia:] ‘Você é
miserável! Fazer uma coisa dessa? 2 menino homem!’ [E Doca] Quando
ele soube [disse:] ‘que ia acabar o mundo, né, que esses 2 menino era a
riqueza dele’. Porque não os 4? Porque esses 2? Só para me iludir? Para
eu ficar pensando? Aí eu levantei a mão para o céu. [de agradecimento].
E no outro dia mesmo eu já fui na SOMEDE, falar com Dr. Gilberto. Que
eu estava menstruada, para fazer o exame, porque só fazia assim, a pessoa menstruada, para saber, né, se estava grávida ou não. Aí ele marcou
a ligadura. Pedi [a Doca] para assinar o termo, ele não assinou. Disse que
não ia assinar nada que eu procurasse ‘O Homem’, que eu procurasse
‘meus homens na rua’, para assinar, que ele não ia assinar. Ele estava
com tanta raiva, né, estava magoado porque perdeu os menino. Aí eu
disse: ‘Está certo!’ [tom de vingança] Cheguei lá e [o médico] disse: ‘Trouxe
o papel?’ – [E eu respondi:] ‘Mãínha assinou!’ Ela não sabe assinar não,
[mas] colocou o dedo [no lugar].
MG: Sua mãe assinou o termo? Ela assumiu?
D: É! Ela assumiu. Aí ele marcou o dia, peguei e fui! Fiz a ligadura... 8
dias depois do... [aborto] ainda sangrando. Minha menstruação nunca
vinha. Ai... quando eu liguei, né, esperei 1 mês para minha menstruação
descer. Ai eu disse [pensei]: ‘pronto que eu estou prenha de novo’! Eu ficava com medo já! Tinha aquela, eu já estava com aquele trauma de filho, de todo ano ter que parir [um]... Acontece! Quando foi no outro mês,
a menstruação veio. Quê felicidade! todo mês vindo (Rss). Aí foi que eu
comecei a transar com a mão na cabeça para não perder o juízo (Rss)...
antes ficava sem ação, né? mas agora não. Aí foi indo, foi indo, foi indo...
Aí depois que liguei as trompas, né, passados 3 a 4 meses depois começou
a briga tudo de novo.[com Doca] [...]
MG: E o que você acha de ter se esterilizado? Como se sente? Teve algum
problema?
D: A mim me alegrou, me deu paz, problema nenhum! A dor de cabeça
que eu sentia já vinha já antes da cirurgia, não tinha nada a ver, depois
a casa das mulheres 319
que fiz a cirurgia não senti nada, não tive nada, nada, nada. Dor de cabeça que eu sentia e Mãínha pensava que era por causa disso... Mas não
foi, isso eu já vinha sentindo há muito tempo. Eu já era nervosa, eu já tinha esse problema, devido às porradas que eu tomava na cabeça, espero
que não esqueça disso... Não, não, não...(Dina, 27/07/1999)
Depois da esterilização, e até 1994, Dina morou no quartinho do fundo
da casa de D. Cida. Esse quarto ficava como a meio metro (sete degraus de
terra irregulares) abaixo do nível do quarto de Neneca, na frente da casa.
Depois que a casa de D. Cida foi aterrada, este desnível aumentou para quase
um metro (12 degraus) de profundidade. Como Dina trabalhava de ajudante
de pedreiro em construção civil, tinha contatos e habilidade para a compra,
aquisição barata ou reaproveitamento de materiais de construção e ajuda na
mão de obra. Ela trabalhou muito em mutirões para a construção da casa de
outros e os utilizou também a seu favor para fazer melhorias na casa da mãe
e com isso conquistar o direito a erguer a própria casa na sua laje. Sempre se
queixou da falta de ajuda neste projeto, tanto dos parentes quanto de Doca.
Esta imagem, entretanto, parece não ser totalmente compartilhada por estes
– ainda que todos reconheçam o maior esforço e investimento por parte dela
na recuperação da casa de D. Cida.
Dina perdia noites inteiras de sono para aterrar os desníveis da casa, levantar uma parede, terminar um telhado. A própria utilização do espaço e
a forma de construir nele não foi nada pacífica. Antes de D. Cida morrer,
houve muitas brigas e disputas ao redor da distribuição e uso do espaço entre
os familiares. A rápida e acelerada ascensão de Dina mediante a construção
de ampla e bem equipada residência causava inveja de parentes e vizinhos,
que faziam comentários de despeito, criticavam seus ares de grandeza e procuravam atingi-la com fuxicos que mostravam a desconfiança que tinham
sobre o modo como ela e Doca teriam conseguido recursos suficientes para
construção de tal envergadura, chegando a insinuar em certos momentos
poder ter sido fruto de furtos e/ou atividades ilícitas em prostituição. Veja-se
a declaração de Doca sobre a reação da parentela e vizinhança:
Do: Ela [Dina] serviu tanto, ajudou tanto esse pessoal... e de uma hora pra
outra esse pessoal... virou a casaca. Viraram a casaca.
MG: Quem? Essa vizinha?
320 maria gabriela hita
Do: Sim... Essa da frente. Eu acho que o problema dela é despeito. E
eu... acho que ela não devia fazer isso...
MG: Ela cria fuxicos?
Do: É isso! Por Dina se dar bem... entendeu? Porque... ela diz que é
cristã – uma pessoa dessa não é cristã... Eu não considero como cristã,
né? Porque tem uma pessoa que/ muitas pessoas aí chega e... ela pensa
que não vai contar/ e diz/ aí... Porque eu não tô vendo nada aqui... anda
falando aos outros aí que a casa aqui é de barão, que não sei o quê
a gente faz pra conseguir isso – ó pra aí!? Que... [E diz] ‘É! Botou forro
de madeira... que não sei o quê, que tava fazendo uns quartos em cima,
botou a grade... tá com duas linhas telefônicas”... aí óh!... Só eu que não
posso?! Já/ já/ tá querendo minha linha... que não sei o quê. Fica falando
mal... não pode! A pessoa tem de lutar pra conseguir as coisas. A pessoa ficar de braço cruzado... ou de perna aberta, não consegue, não. A
pessoa tem de suar hoje. Se não suar, não consegue... Entendeu? Tem de
lutar! Mas eles não têm força e coragem pra fazer isso então fica...
olhando o que os outros têm, o que os outros consegue, pra ficar
criticando/ [falando] mal da pessoa. Então, eu conheço ela a muitos
anos – essa senhora aí – eu considerava muito, considero ainda, né?
que... apesar, né?! Pela idade que ela tem... eu tenho que considerar,
tenho que respeitar... (Doca, 23/01/00).
Percebia-se em Dina uma concepção aguçada do sentido de propriedade
privada. Diferente da maior parte da parentela, ela parecia ter claro projeto
de vida e do que precisava fazer para alcançar a meta. Para lograr a construção gradual da casa, foi planejando cada fase, que guiava suas escolhas e
decisões a cada momento. Tirava dos gastos em comida, roupa e transporte
para aplicá-los e traduzi-los em novas paredes, economizando cada centavo
a ser gasto, inventando todo tipo de formas de reproduzir dinheiro (como
o exemplo da sua barraquinha). Estas qualidades e características da personalidade de Dina são marcadores que a distanciam e afastaram do resto do
grupo, que parecia não compartilhar suas escolhas e condenava sua frieza e
falta de solidariedade para com os seus. Sobre o empreendimento da barraquinha, ela conta:
D: A barraquinha começou assim... eu já tava morando cá em cima... da
laje, da laje de mãinha. Aí eu fiz um... peguei umas madeira, né? Disse:
‘vou fazer uma barraca... barraca’. É. Tem uns quatro anos ou mais... A
a casa das mulheres 321
barraca eu fiz com sacrifício... cheguei um dia do trabalho, aí fui fazer
umas comprinhas, aí passei na bomboniere e comprei um saco de pipoca, um quilo de queimado e uma carteira de cigarro... Eu disse assim: ‘Eu
vou botar isso pra ver se vende’. Aí foi indo, foi indo, eu fiz assim: ‘Ói, cês
tem que ficar aí tomando conta’ – pros meus filhos, né? Os outros, meus
sobrinhos, batia nos meninos pra pegar coisa... Eu esmoreci um dia, depois no outro botei de novo! Já fui/aí já foi aumentando o dinheirinho,
né? Em vez de/de/ eu botava dois reais, quando eu vinha tinha quatro,
aí já ia juntando... Fui na feira, comprei laranja, manga... né? Cheguei
lá, fiz amizade, as pessoas me vendia fiado também, eu trazia as coisa...
A barraca já foi aumentando – foi feita por minha mão... né?... Aí a barraca ficou feia, eu fui comprei uma [tinta] na mão do/ do vizinho
que tava vendendo... Já tive dinheiro até pra comprar uma barraca, né?
Como é que diz? Aí já foi aumentando, as mercadorias já não era mais
pipoca e queimado, já botei cerveja... comprando de três em três garrafas.
Comprava ali, vendia aqui... né? Só pra não dizer que não tinha... Como
é que diz? Em vez de três em três garrafas, já comprava já dois engradados, refrigerante também. Aí já fui aumentando, já fui pagando o quê
tava devendo, já fui comprando fiado de novo... né? Porque as pessoa
quando vê a pessoa com a barraquinha já... aí já peguei amizade com os
pracista da/ da bomboniere, já vinha com/em vez de eu ir buscar, ele já
vinha trazer na porta... né?...
MG: E porque você fechou ela?
D: Porque roubaram... meus próprios sobrinhos mesmo reuniram com
os amigo que fumava droga e levaram tudo que eu tinha. Acabaram
com tudo. Neneca morando em frente, vendo tudo, e nem/ não disse
nada, nem pra me chamar na hora pra eu... ver se eu conseguia recuperar alguma coisa... E aí... acabou. Fui me desgostando, me desgostando,
até que... Decidi acabar...30
(Dina, 27/07/1999)
Foi após a construção do primeiro quartinho da casa de Dina (hoje parte
da sala), na laje da mãe, que Doca se instalou e começou a participar deste
novo lar. Nessa fase, Dina expressava desejos de separar-se de Doca, mas que
não eram aprovados por D. Cida, como demonstra a narrativa a seguir:
D: E se hoje eu tô passando pelo que eu tô passando agradeça ela
que me fez assim, ouviu? Eu dizia a ela: ‘mãínha, Doca não presta,
30
Em 2003, a barraca estava novamente sendo reerguida, mas agora em tijolo e cimento.
322 maria gabriela hita
eu quero largar Doca’. Ela dizia que não, que ela suportou de painho esse tempo todo, e que eu tinha que suportar também. Que já
viu mulher solteira, mulher e ficar com/ com filho pendurado, parando
de um e outro?. Eu disse [a ela]: ‘Não, maínha, vou largar não’. [Aí]
amanhecia com a cara inchada [de espancamento], pra ela [que] queria
minha felicidade... né? Mas antes apanhar do marido do que apanhar
dos outro da rua... E aí eu ia levando minha vida.
(Dina, 27/07/1999)
A tendência de Doca à bebida era duramente recriminada por Dina. Doca
fugia do cerco da parceira Dina se refugiando na casa da respectiva mãe, quem
protegia o filho e minimizava ou mentia sobre estado de bebedeira do filho
frente a Dina. Apesar de Doca trabalhar há anos na pintura de carros, eram
reconhecidos e temidos seus contatos com a 7ª delegacia de polícia, no Rio
Vermelho, onde afirmam que tinha parentes e amigos mafiosos. Um deles,
seu primo, fora identificado como o responsável pelos 5 tiros sofridos por
Téo em certa emboscada no bairro, por dívida de 10 reais de droga. Contam
que tudo aconteceu quando Dina foi recuperar o ventilador doado a D. Cida
e que Téo teria trocado pela droga. Devido a esse incidente, se afirmava ser
Dina a corresponsável, em certa medida, pelo trágico cerco e destino do sobrinho, que declarava só esperar que D. Cida morresse para fazer justiça com
suas próprias mãos contra os assassinos da sua mãe e irmãos – pois enquanto
D. Cida fosse viva, ele respeitaria seu desejo de não vingança.
Mas Doca parece ter certo poder de contenção sobre os sobrinhos pelos
seus contatos com a polícia. Em diversas situações, D. Cida, Neneca e a própria Dina deram indícios do medo que sentiam de Doca, e do que ele era
capaz de mandar fazer com os que se lhe opunham. Sobre os netos arruaceiros de D. Cida, ele sempre ameaçava querer exemplar e colocar em ordem.
Entre 1997 e 2000 Dina, cogitava se separar dele, mas ao contrário do que
esperava, a família não mais a apoiava e se aliava a Doca. Depois, o desejo
de separação de Dina se diluiu, a relação com Doca alcançou a estabilidade
desejada por ela, e ambos afirmam estar mais satisfeitos com as mudanças e
melhorias na relação. Nos depoimentos de Dina se percebe clara transformação no comportamento de Doca, com o amadurecimento:
Na adolescência dele... assim, na infância, né?, com... doze, treze anos,
ele era... aviciado... Não era totalmente aviciado, né?, que aviciado é
aquele que passa a... vender pra usar droga. Ele... usava por esporte,
a casa das mulheres 323
né? Pra jogar bola, pra correr, né?, pra fazer a mente - como eles diziam,
né? Aí... com treze, catorze anos, que começou a namorar comigo, né? Ele
usava! E eu não... suportava, como até hoje não suporto nem cheiro de
cigarro... Não suporto. Cheiro de cigarro, cheiro de bebida, me deixa virada! Eu acho que os outros bebem/ bebem e eu fico bêbada. Aí eu peguei
- quando eu engravidei... aí eu falei pra ele que... né?, ou ele parava com
aquilo do contrário quando a filha nascesse - que era Jane - que eu ia sumir com ela. Tanto que quando Jane nasceu, eu tava novinha - com quinze anos, ia fazer dezesseis... eu botei Jane em um... em um matinho lá na
casa da mãe dele, né? - que tinha uma frente assim... de mato... assim um
cercado. Então, o que aconteceu? Ele tinha muitas namoradas... tinha uns
amigos que iam procurar ele na porta... aí então peguei Jane... botei assim em um papel e tentei tocar fogo. Quer dizer, ainda tentei/ tentei
não! Coloquei fogo aí nos mato, né? Mas aí os pessoal vieram e tiraram
Jane - que eu fiquei tão revoltada com aquilo, que eu não aceitava
aquilo, que aquilo não era vida pra mim... Que arrependimento da
gente que erra, né?... só vem depois... Aí, com quinze anos, quando ele
completou quinze anos, dezesseis... aí ele parou completamente - ainda
achei que aquilo não ia acontecer, que era mentira... Né? Então ach/achei
que ele aceitou muito rápido... Ele não morava comigo, morava na casa
da mãe dele; e eu sempre morando aqui na casa de mãinha... Né?
(Dina, 29/02/2000).
Entretanto, em entrevista anterior, ela o identificou como malandro e mal
influenciado pelas turmas com que andava:
[Sobre Doca] Ah, porque antes... hoje ele é um homem regenerado,
né? Não é esse ladrão, né, nada disso! Ele tinha muito mal amizade,
muito mal companhia, e eu tinha medo, ele me ameaçava de mais.
O que aconteceu? Eu fui tendo o primeiro filho, o segundo, o terceiro e
aí do quarto em diante, que tá com nove anos, hoje é que ele veio
melhorar, arranjar um emprego. Mesmo assim, eu tenho medo, fico
insegura!. Eu gosto dele, não tô dizendo que eu não gosto. O que eu tô
achando errado é essas coisas que ele faz... ele é uma pessoa legal... só
é mão-de-figa. Ele é um cara de cabeça muito legal, [mas] não se preocupa com nada, não quer saber se saiu de manhã e se deixou pão prá
tomar café, se de noite tem.
(Dina, 16/03/1996).
Em fase recente, Dina mostra como ele se transformou e amadureceu:
MG: Me conte como está sua vida com Doca agora.
324 maria gabriela hita
D: Ah, Doca agora tá melhor! Tá bom. A primeira entrevista que eu dei,
ele tava péssimo! Mas agora está ótimo. Tá bom. É, tá um mar de rosas.
Traz presente... Me trata mais com carinho, né? Me maltratava muito,
mas agora tá com carinho comigo... Né?
MG: Porque assim?
D: Porque ele sabe, se/ agora não tem mais mãinha, né? Se ele fizer
alguma coisa que for me maltratar, eu vou... saltar fora, e agora não
tem mais pedido [da mãe- de não separar].
MG: E mudou como, assim?
D: Não chega bêbado... né? E quando chega tomando uma... trás um
presente debaixo do braço... Como trouxe um pano de mesa pra mim, né?
Aí... (Rss) Tá botando comida dentro de casa...
MG: E brigam?
D: brigando mais eu... Ain/ainda briga, né? por causa dos filhos.
(Dina, 29/01/2000).
E aí o tempo foi passando, com vinte e cinco anos... Ele largou completamente... Largou mesmo! Hoje ele [Doca] é um pai de família, que tem
um trabalho dele/ e antes ele não trabalhava... ele vendia jornal... Foi
eu, né?! A família incentivando ele... Então, o quê acontece... hoje Doca
é um pai de família... Hoje Doca trabalha pros filho... E pra mim! E
pra casa! Ele não queria casar comigo... Ele não/ não me aceitava como
mulher dele... A família dele também tinha preconceito de mim!... Né?
Que ele tinha que casar com/ namorar com uma pessoa clara31 como
tem/ tinha uma namorada dele, né?, que quando eu tive Jane e Guido
ele tinha namorada que ele namorava na porta... E a menina era clara...
Né? E... e aí... foi levando a vida e acabou com quem? - comigo! Tá com
trinta e quatro anos... e eu com trinta e três. E tá aí eu com vinte dois
anos... não vou nem dizer jogado fora, né? Que eu não tenho arrependimento de ter os meus quatro filhos. Tenho arrependimento, assim, da
vida que eu levei... e eu acho que daqui pra frente eu tô melhorando
cada vez mais.
(Dina, 29/02/2000).
31
Dina tinha cor morena claro. Talvez ela se comparava com alguma namorada anterior de cor
mais clara ou branca do que ela.
a casa das mulheres 325
Já Doca, comentando sobre sua atual relação com Dina, dizia:
MG: E sua relação com Dina mudou?
Do: Não, a relação continua a mesma.
MG: Está apaixonado?
Do: Hum? (Rss) Não. Paixão, paixão, não. A gente já... já...[sentiu]
Entendeu? Mas de uns longos anos pra cá... [mudou]. Eu gosto muito dela, ela gosta muito de mim, entendeu? Um respeita o outro. É
devido o clima! Entendeu? Devido o clima, às vezes é discussão, sobre
família, entendeu? O problema de/ mesmo da família dela, que não sei
o quê... Entendeu?
(Doca, 23/01/00).
Esta nova fase mais amadurecida do casal e de Dina em particular, indica
importantes transformações na imagem e na forma como a própria Dina
passou a ser vista pela parentela e a ver a si mesma, conseguindo se impor
e fazer-se respeitar. Os descontrolados e destrutivos sentimentos de ódio e
angústia que a atormentavam foram sendo agora canalizados para atividades
mais criativas (escrever, pintar, decorar a casa), tranquilizando-a e aumentando consideravelmente sua autoestima e afirmação da nova identidade.
Em 2003, evitava se intrometer na vida e casa dos sobrinhos, com os quais
procurava manter relações cordiais e mais distanciadas, mas sobre os quais
exercia também certa autoridade.
Nunca teve medo do trabalho, sua ferramenta para vencer era o principal
legado que herdara da mãe. A maioria dos objetos e móveis da casa eram resultado do próprio trabalho, de peculiar bom gosto, pouco comum para o
meio e suas possibilidades. Tudo tem um toque do seu estilo. Algumas das
peças, até com ar requintado para ambiente popular, afirmou ter recebido de
presente de casas onde fizera serviços, outras foram remodelações e adaptações que ela mesma fizera (como uma bela mesa de centro que tinha até 1999,
com pé muito trabalhado e tampo que improvisou). Ela reaproveitava, pegava
do lixo ou até pedia restos de obra nas casas onde fazia serviços, comentoume, adaptando peças quebradas de ferro ou madeira e transformando-os em
novos objetos de artesanato ou de utilidade doméstica (a mesa, o bar e a escada de madeira que davam a sua sala esse toque diferenciado; o sofá que ela
326 maria gabriela hita
mesmo fabricou colocando pés e recosto em um bancos traseiro de um carro
jogado no lixo, que − depois do trabalho − não se distinguia de um comprado.
As cortinas, enfeites e até os quadros foram por ela confeccionados ou pintados),32 tudo fruto de seu trabalho manual. Até mesmo na parte estrutural
da casa, ela participou, colocando vigas, erguendo paredes. Fazia questão de
mostrar, com orgulho e lisonja, a distinção de qualidade das paredes da sala
que ela edificara da erguida pelas mãos do cunhado Gilson: toda torta e defeituosa, dizia ela.
Nas paredes da sala havia, antes de 2003, duas interessantes pinturas de
estilo primitivo-popular que ela desenhou e pintou diretamente sobre a parede, criando sobre elas marcos igualmente pintados. A um olhar despercebido, tratava-se de quadros pendurados e bastante modernos33 contrastando
com a maioria dos lares que penduram imagens de santos, fotografias, dizeres em frases, ou quando muito, algum quadro de flores. Veja-se a descrição de Doca referente a habilidades manuais e capacidade de Dina em
fazer coisas, criticando apenas seus dotes artísticos, e o contraste desta critica com a interpretação feita por Dina sobre o momento em que pintou o
quadro criticado por Doca:
Do: [Dina] É jeitosa.
MG: E o que você acha dessa pintura da parede que ela mesma pintou?
D: A pintura até que é um... desenho... muitas pessoas chega aqui, olha
e gosta.
32
Ver fotos da casa de Dina e Doca no Anexo E.
33
Uma dessas pinturas, que gostei mais, lembrava-me algo do estilo surrealista de Dali ou alguns
desenhos de Miró pelo colorido, com vários olhos espiando, formas dispersas e amorfas em tons
azulados, pretos e vermelhos. O outro, retratava duas grandes flores alaranjadas e uma borboleta vermelha passeando entre elas. A história delas foi interessante. O primeiro pintou depois
de uma das últimas surras que Doca lhe dera, jogando todo seu ódio sobre a parede, pintando
aquele quadro em certa medida assustador, como o de um corpo esquartejado, e um aviso a ele
de que não permitiria outra surra dessas. O outro quadro representa um momento de ternura,
paz e luz na sua vida, uma bela história de amor. Em 2003 estes dois quadros tinham sido repintados e substituídos por novas obras, indicando a nova fase da sua vida em que se encontrava,
sendo o principal delas, uma homenagem a sua mãe morta, que antes estava representada por
uma enorme fotografia em forma de quadro na principal parede da sua sala.
a casa das mulheres 327
Mas se fosse parar pra ela pensar mais até que sairia melhor... né?
Sairia mais bonito porque ... Ela tem inteligência pra fazer melhor...
Ela é inteligente. Eu gosto de ver as pessoas inteligente, as pessoas muito ágil... pessoa prática, entendeu? Vamos dizer: ‘eu vou fazer aqui’, ele
consegue fazer, termina! Isso é bom. Né? Ela Faz! Consegue fazer. Então
isso é bom nas pessoas. Mas tem muitas pessoas que não consegue fazer
e não quer que os outros façam... Isso aí não é... não... não apoio. Não,
não consigo... aceitar. Porque nossa vida é lutar, entendeu? Nossa vida é
lutar, (aqui) a gente luta mesmo! Ôxe! Luta pra caramba. Pouco ou muito a gente chega lá, entendeu? Mas não adianta você tá... pra os outros...
tá só de olho no que você faz... botando... bom gosto... Com esse forro
mesmo aí... ela fez ela fez esse forro aí, fez o de lá, fez outro aqui...
Virge Maria! Esse forro aí parece... deu trabalho! Ô! Acho que esse
pessoal aí na frente tudo tava rezando pra desabar! As vizinha... um
bocado de gente aí... irmã dela também...
(Doca, 23/01/2000)
E aqui a versão de Dina sobre o que ela pensou e sentiu quando pintava o
quadro:
MG: Me conte de novo a história dessa pintura na parede. Você disse que
o fez em um momento de muita raiva de Doca?
D: [Foi!] A única solução que eu tinha era pegar um/uma caneta e um
papel e ficar rabiscando, né? Como eu tinha qualquer tinta na mão... ficava melando a parede, depois tirava de novo, pintava, né? E então esse
quadro aí na parede que eu fiz num momento de raiva, que eu tava com
tanta raiva, com... [Foi n] a vez que Doca, sem quê, sem pra quê, bebendo, me deu dezessete murro na cara! Eu contando, viu?! Tome
um, dois, três... aí foi indo... Aí tava com tanta raiva, eu disse assim: ‘É,
vou matar esse homem, quando ele tiver dormindo eu vou matar
ele!’. Mas aí - não sei... veio na minha cabeça que era pra eu pintar
a parede, fazer um quadro. E alí cada coisinha que eu tava fazendo
- torto, aleijado - era o quê eu ia fazer com ele, né? Foi tirando, foi
esvaziando minha mente, fiz um enjejum na minha cabeça, né?
MG: E Doca sabe disso tudo que você pensou quando foi desenhando?
D: Sabe! Ele sabe. Não, mas ele sabe. Pra ele, ali, aquele quadro quando
ele olha... Ele já sabe que ali foi um momento de raiva... minha, né?
Que eu senti muita raiva/ hoje/ hoje eu ainda tenho muita mágoa
no meu coração, e peço tanto a Deus que tire, né? Mas devido o que
328 maria gabriela hita
eu ando passando hoje. Fiz, [isso] com ele. Ele me deu tanto murro,
aí a única solução que tinha foi pegar nos culhão dele... Apertei tanto, apertei tanto, que hoje em dia ele é prejudicado... dos ovos, por
causa disso, né? E eu disse a ele: ‘Você vai ter que dormir de bruço
ou então com a... um pedaço de ferro/de zinco te cobrindo. Porque
se você vacilar, eu corto. Eu corto teu culhão’.
MG: E agora? Como está a relação com ele? Vocês hoje estão juntos...
D: É! Não sei. (Rss) Se ele fizer de novo, eu faço. Aí também foi... um dos
últimos/ últimas porradas que ele me deu, né? Mas também ele fazia
mais isso não sei nem porque. [Antes] Eu tinha medo de me separar dele
porque ele me ameaçava, né?
(Dina, 27/07/1999).
TERCEIRO ATO
Os netos de D. Cida: nova fase do conflito
Nos últimos anos, começaram a ganhar importância novas personagens na
disputa pelo espaço no grupo familiar: a geração dos netos.
Lia, a filha primogênita de Neneca, engravidou do atual companheiro
Jerson, um simpático jovem, visto pela parentela como bom pai e esposo; isto
é, homem provedor, trabalhador e responsável. Frente ao movimento ambivalente de Jerson assumir a paternidade e nova família, D. Cida ofereceu ao
jovem casal um pedaço do terreno para construírem sua casinha, o que foi
um passo decisivo na consolidação da união.
Eu sai/ eu comecei a namorar muito cedo, assim... aí não ligava muito
pra essas coisas de dentro de casa não. Só queria trabalhar... e... namorar... Chegava do trabalho, me arrumava, e saía com Jerson... não ficava
muito dentro de casa não... Aí pronto, quando eu engravidei/ que Neneca
começou a encher meu saco/ aí ficava mais nervosa ainda/ pronto, fiquei
grávida... E ela: ‘oh, procure um lugar pra você ficar’. E eu sempre pressionando Jerson: ‘Jerson, minha mãe vai me botar pra fora, não sei o quê’.
Aí minha vó chamou ele... e disse que se ele quisesse fazer aqui, que
ele fazia/ que não ia ter mesmo outro lugar pra ele poder ficar... ele
tinha que ficar aqui... Aí a gente tá até hoje...
(Lia, 08/02/1999).
a casa das mulheres 329
Lia foi a única neta, ainda quando D. Cida era viva, a ganhar um pedacinho
de terreno nos fundos da casa, na laje do que seriam hoje o quartinho de Téo
(anterior quarto de Dina) e o banheiro do fundo da casa de D. Cida. Foi esta a
estratégia de D. Cida para atrair e integrar ao grupo familiar o jovem Jerson,
homem de família decente, trabalhador e tido como um bom partido para se
unir à neta – o qual ergueu sua casinha como, no passado, fizeram os companheiros de Neneca.
O caso da irmã de Lia, Lela, filha ocupando posição do meio entre os filhos
de Neneca, foi diferente – ela não tivera a mesma sorte. Como a tia Dina, engravidou de um rapaz tido como vagabundo, que saiu fugido para a Ilha de
Itaparica por dívida de tráfico, filho de uma baiana de acarajé do bairro e que
nunca quis assumir a paternidade, nem chegou a registrar a filha, Cristina,
como sua.
Lela teve que deixar de dormir nas casas onde trabalhava, pois Neneca não
se dispunha a criar esta neta, exigindo de Lela que cuidasse da filha às noites.
Neneca e D. Cida insistiam em que filhas e netas cuidassem e criassem os
próprios filhos, exigência que não era cobrada dos filhos, sobrinhos ou netos
homens, os quais tinham maior respaldo delas, que lhes assumiam os filhos
com maior facilidade para que fossem trabalhar ou aceitando que eles ficassem pela rua até tarde. No caso de Lela, cada movimento de sair para
trabalhar implicava toda uma pressão e negociação com a mãe e outras mulheres da casa (a mãe Neneca, irmã Lia, a tia Dina ou a avó D. Cida) para que
olhassem por Cristina na sua ausência, motivo pelo qual levava sua filha consigo para os pagodes que frequentava. Alimentava-a apenas a peito, para não
ter trabalho de fazer mingaus, sendo recriminada pela irmã Lia, que com o
passar dos anos terminara tomando Cristiana para criar, já que tinha filha de
idade próxima e se criaram praticamente juntas.
MG: Me conte como está sendo a experiência de Lela como mãe?
L: Lela, como mãe? Eu acho que... ela nunca devia ser mãe. Ela maltrata muito essa menina dela. Ela chega tarde da noite, de madrugada, com essa menina na mão... a menina tem nem um ano... Ela leva a
menina pro pagode... bate na menina... só quer dar a mama à menina.
A menina já come tudo... ela só quer dar a mama... Quando tem um dinheiro na mão não pensa em comprar as coisas primeiro pra menina...
pensa primeiro pra ela... E é besteira que ela compra: bolacha recheada,
jaca, geladinho, picolé... Como mãe eu acho que ela não... não é boa
330 maria gabriela hita
não, viu?... Ela não cuida da menina direito, ela só sabe mesmo dar banho na menina, arrumar e sair. Só isso que ela sabe... arrumar a menina
e sair... mas negócio de/quando chega domingo de no/sexta-feira de noite, essa menina sofre na mão de Lela... pra/a menina tem que dormir a
hora que ela quiser, pra ela poder sair... e pra menina dormir ela tem que
bater... a menina, dia de domingo, fica aí o dia todo... a menina/ela não
faz um/um suco pra dar à menina... Fica só a menina no peito, no peito,
no peito... tem vez que eu subo, trago ela pr’aqui, dou/ bato um prato de
comida, dou a ela, ela come todinho, todinho... e Lela não faz isso. Ela diz
que é preguiça... Eu acho que ela não... e a avó da menina [de lado de
pai] já pediu [para criar], se ela quisesse ver a menina que ela ia ver
a menina, qualquer hora, ela trabalhando, né? [Eu, no lugar dela]
Deixava... com a mãe do pai... a mãe do pai da menina... deixava lá...
se ela quisesse pegar a menina.
MG: E ela visita a sogra?
L: Acho que visita... ela sempre fala de D. Bernadete... Só o pai da menina que ela não vê, né?, que não mora aqui... Foi embora ele.
MG: Ele não quis reconhecer, né?
L: Foi... não quis não, nem disse/ e disse até que não era filho dele...
dele... e a menina... saiu a cara dele.
MG: E aonde ele foi?
L: Ele foi embora aí pra uma ilha que os cara queria pegar ele... por causa de dívida... que ele também usa droga... essas coisa... aí foi comprando,
num pagou eu acho... Todo mundo conhece. Minha mãe avisou ela: ‘Lela,
não se envolve com esse rapaz, que esse rapaz... usa tóxico, usa isso, usa
aquilo...’ Ela: ‘Ah... que não sei o quê...’ Aí ela: ‘Só porque a senhora tá falando demais eu vou engravidar’. Assim mesmo! Engravidou mesmo! Aquilo
alí... nem como filha nem como mãe ela é boa não.
(Lia, 8/02/1999).
Mesmo sem ter sido registrada pelo pai, Cristina foi reconhecida como
neta pela avó paterna que pediu para criá-la. Lela negou-se a entregar a filha,
mas visita e frequenta a casa da avó, de quem recebe alguma ajuda estratégica
em certos momentos. Isto indica o papel que as mulheres mães, mesmo em
relações de afinidade, têm dentro de um sistema de parentesco onde as rela-
a casa das mulheres 331
ções com as mães são centrais. E, de como elas intentam fortalecer laços de
bilateralidade mesmo quando o pai da criança não as reconheça oficialmente.
Lela teve que se conformar com ter um cantinho para dormir com seu
bebê na sala da casa de Neneca, apesar dos permanentes atritos e problemas
de convivência que tinha com a mãe. Ela sempre preferia, quando podia,
dormir na casa das patroas onde trabalhava, mas depois da filhinha, ficou
mais difícil. Lela, de temperamento difícil, nervosa e explosiva como a tia
Dina, era a que tinha melhor relacionamento com esta tia. Havia uma interessante coincidência entre as condições de existência destas duas irmãs,
Lia e Lela, e aquelas que viveram Neneca e Dina no passado tanto em termos
de relação conjugal quanto de viabilidades econômicas. Enquanto Lela não
tinha um quarto próprio, companheiro, nem posição privilegiada, a irmã
mais velha, Lia, ganhou uma laje onde construiu seu quarto – casinha –,
tinha um parceiro provedor (Jerson) e gozava de posição de destaque na geração dos netos.
Por sua vez, a morte de D. Cida foi associada a uma tentativa frustrada de
expansão da casa de Lia e Jerson que terminou em briga de polícia com a vizinhança. Jerson e Lia, inicialmente, tentaram se expandir horizontalmente
sobre o terreno de Dina, a qual estava iniciando uma nova etapa de construção vertical de sua casa, no terceiro nível da rua (e segundo pavimento do
seu novo lar). O jovem casal esperava que Dina lhes cedesse generosamente
o espaço já construído e pronto que até o presente é seu banheiro e cozinha.
Não houve negociação possível e aumentaram os atritos entre as distintas
casas desta família. Outra ambição do novo casal proprietário, em arranjo
familiar nuclear completo e com aspirações ascendentes em relação ao resto
do grupo, era ganhar independência e privacidade do resto das casas desta
configuração, abrindo uma porta de entrada pela rua de trás, podendo ocasionalmente vir a isolar a conexão com a casa de D. Cida para passarem a participar, assim, da melhor vizinhança da outra rua. Com isso evitariam a necessidade de acessar a propriedade pela entrada principal à configuração de
casas (pela rua da frente), que os forçava a atravessar o corredor entre as casas
de Neneca e D. Cida até chegarem ao pé da escada pela qual se tem acesso à
sua casinha.34 O movimento em abrir uma porta para os fundos causou sérios atritos e indisposição com a vizinhança da rua de trás, com a qual manti34
Se pode observar nas plantas das casas no Cap. VI sobre estas descrições e disposição espacial
dos distintos subgrupos desta parentela
332 maria gabriela hita
nham, até então, relações cordiais e que teriam adquirido deles, a preços irrisórios, a posse dos terrenos que foram de D. Cida e seu Diógenes no passado,
comentava Neneca. No relato de Dina, a seguir, uma breve visão do contexto
em que D. Cida partiu:
D: [Os vizinhos] fecharam o condomínio.35 Aí não deixou mais que mãinha abrisse [uma porta para aquela rua], né? Aí o que aconteceu... Lia
construiu a casa dela... Tentou abrir [uma porta], [e os vizinhos] formaram
uma confusão/... lá, também, são presepeiros. Aqui também! não deixa pra/ pra trás, né? Aí foi aquela confusão toda... Não se dá/ agora não
se dão mais. Era uma/ uma... Era um metido, lá. É ele lá e a gente aqui.
Quer dizer, eles lá/ aqui em casa... e aqui em casa de lá, na casa deles. Amigos. Né? Aí, quando... tentaram abrir [a porta], o marido de Lia...
tentou quebrar a parede... Aí... eles do lado de lá pegaram facão, pegaram
revólver... Foi uma confusão danada! E mãinha não estava aí na hora.
Quando mãinha veio chegando já tava a confusão formada...
Mãinha pediu pra se acalmar tudo... Mãinha pensou que já tava tudo
quieto. Passado quinze dias... depois... mãinha nem esperava aí na porta...
quando chegou foi intimação... Em vez de mandar pra Lia e Jerson, mandou pra mãinha... Que a intimação veio no nome de mãinha... Mãinha
recebeu essa intimação... e veio a acontecer, né? Passou mal... eu saí
correndo pra le/ pra dar socorro a ela... mas não teve jeito. Morreu.
Morreu... e ficou casa, ficou parede, ficou quintal... tudo aí. E ela que
perdeu a vida... E os neto também, né? Que também... é, os neto também que foi causador da morte dela também, né? Que... quer dizer,
eles não/ não fizeram imediato, pra tirar a vida dela, né? Mas, veio matando ela aos pouquinhos... Muito bruto... Tudo aviciado... Destruía as
coisas que ela tinha... Né?
(Dina, 29/02/2000).
Comentam alguns que a intimação policial teria chegado no nome de D.
Cida e que esta, ao recebê-la, no dia 13 de outubro de 1999, sofrera um enfarte
e morrera antes de chegar ao pronto socorro. Outros, que a intimação veio
dirigida ao jovem casal, que se sentiu bastante culpado pela morte, apesar de
todos saberem da debilidade da saúde e da avançada idade de D. Cida.
Meses depois da morte da velha matriarca, não se colocava mais a responsabilidade da sua morte na conjuntura em que ocorreu. Os principais
35
Fecharam a abertura que conectava as duas ruas transversais, isolando e transformando a rua de
trás em um tipo de condomínio fechado.
a casa das mulheres 333
motivos para o declínio paulatino da saúde passaram a ser atribuídos ao sofrimento causado por situações adversas nos últimos anos, resultantes da
desunião entre todos e do encaminhamento de vida adotado pelos netos,
considerados agora como os principais responsáveis pela morte, na visão de
Neneca e Dina. Sobre os fatos, contava Neneca:
N: Eu não vou dizer pra você assim: ‘ah, a morte de mãínha foi causada por causa da briga de vizinho, [por] causa de... de porta de Lia...’.
Isso aí foi uma desculpa! Não teve... eu acho assim... foi uma desculpa. Eu não culpo ninguém, não tenho raiva de ninguém... entendeu? Me
dou com todo mundo, todo mundo que falar comigo, eu respondo... A
morte dela foi causada mais por raiva... entendeu? Pelos... problemas
dos neto dela mesmo... são/ eram muito desobediente, não respeitava ela... se queriam xingar, xingavam ela mesmo. Era! Passava a hora
de dormir... entendeu? Ficavam pela rua... Vinha bêbado, queria quebrar
tudo, é bagunçar tudo, pegava as coisa dela pra vender... na rua... entendeu? Ela comprava um liquidificador, pegava pra vender, se tinha um
bujão de gás, pegava pra vender. Então tudo aquilo foi... apertando o coração dela, né? E aí, quando veio aquela intimação que... o chegado momento dela morrer, aí... viu?... a morte foi essa desculpa [...] Num instante
todo mundo soube arranjar um biscate... pra fazer... entendeu? Quando
ela tava viva ela queria isso, ela queria que todo mundo fosse trabalhar.
Os menino dizendo [muda o tom da voz] ‘não vou trabalhar, não; a senhora tem mais é que se lenhar pra me dar comida. A senhora tem
mais é que... que/ que morrer! Os bom morre, os ruim fica’. Falava essas
palavra assim pra ela. Agora tá todo mundo... Aí tá... procurando trabalho. Todo mundo ta procurando trabalho.
MG: Mas isso é muito bom, não?
N: Pra mim tanto faz eles trabalhar como não trabalhar, pra mim tanto
faz eles ir preso como não ir preso – porque eu não vou me incomodar.
É como eu tô lhe dizendo: se eu puder ajudar pra não deixar morrer de
fome, eu ajudo, mas... as outras coisas não. Não vou pagar mais água,
não vou pagar mais luz, entendeu? Não vou fazer nada, porque...
quem fazia era ela... em vida. Mãínha morreu, continuou a mesma
coisa, todo mundo continua a mesma coisa – não mudou nada aí!
Nada! O que mudou aí foi isso que eu to lhe dizendo...
MG: Mas Merina não veio ajudar e assumir um pouco o papel que tinha
D. Cida antes, com eles?
334 maria gabriela hita
N: É! Merina ficou aí mais tempo, ta ficando mais tempo... Quando eu
precisava dela pra fazer uma coisa dentro de casa, pra ajudar mãínha,
levar os meninos no médico – ela nunca estava... Entendeu? Não vinha.
MG: E porque?
N: Porque/ porque não gostava dela. Porque não gostava. Se os menino
não trabalhava é porque não gostava de mãínha. Se... Merina não ficava mais tempo aí, [é] porque ela também não gostava de mãínha... Se
ninguém/ se os meus filhos não obedecia minha mãe... [era] porque eles
não gostava de mãínha/ Então, agora não adianta sentimento. Se eu
pudesse... no enterro/ porque fui eu que andei pa/ pra enterrar mãínha,
eu que caminhei pra enterrar mãínha. Se eu pudesse eu não via ninguém
chorando no enterro. Porque eu... via logo que era falsidade
(Neneca, 27/01/2000).
A filha Liliane discorda da mãe, Neneca, sobre seus julgamentos familiares
e de que ninguém gostava da avó, quando a retruca, na mesma entrevista:
L: Não, eu não acho nada disso não, mas... não sei, o que eu posso fazer...
Essa é a opinião dela, né? Eu não concordo com a opinião dela, não...
Acho que não foi isso e que essas coisas são assim... Eu acho que não foi
nada disso... que aconteceu no final das contas... Realmente ela reclamava, falava, repetia/ essas coisas assim, mas... dizer que a gente não gostava dela...[o tom da frase apontava o sentimento de estar-se tratando
de uma inverdade].
(Liliane, 27/01/2000).
Após a morte da mãe, as irmãs (Neneca e Dina) passaram a dirimir as
disputas até então insolúveis, como se com a ausência de D. Cida tivesse
desaparecido o principal motivo de conflito entre elas, ao menos temporariamente. Ou talvez porque não fosse mais possível para Neneca enfrentar a
irmã, de quem tentou se aproximar esperando, talvez, passar a receber dela
algum apoio, antes recebido de D. Cida, e intentando estabelecer com ela
novas alianças. As irmãs passaram então a coincidir em ver uma ameaça no
grupo dos netos, filhos de Lena, no destino e uso da casa. É o que apontam
os depoimentos a seguir. Neneca e Dina explicitaram com riqueza de detalhes o que acontecia na casa onde moram os sobrinhos quando D. Cida era
viva e como, após a morte da matriarca, o espaço começou a ser disputado
por todos, inclusive, na visão de Dina, até por Neneca.
a casa das mulheres 335
MG: E como está sendo para os meninos agora sem sua mãe?
D: Ah, lá embaixo, onde mãinha morava? Ah, depois... não, depois que
mãinha morreu aí virou tudo!... Como eu tava dizendo... Virou tudo! [...]
As coisas que mãinha tinha não tem mais, acabaram com tudo... né?
Os lençois, os vestidos dela, as coisa que ela tinha... Tem mais nada!
Acabaram com tudo... Né? A única coisa que eu tirei e que eu não tô
arrependida só foi a geladeira, né? Eu queria tirar tudo que tinha ali
dentro, tudo, tudo, tudo. Que eu/que se eu tivesse dado a mãinha...
eu tirava tudo! Deixava a casa oquinha. Mas não posso... Tirei só a
geladeira. Que era minha. A estante também era minha, que eu/ dava
a mãinha, né?, as coisas que eu dava a ela, a cama que era... que ela/
que ela dormia... até o fim... foi eu que dei a ela... Tá lá ainda, né?
MG: E quem dorme na cama dela agora?
D: Liliane que dorme, que traz as amigas dela pr’aí... Traz as amigas.
As amiga dela pra dentro de casa... Aí dorme aí na cama de mãinha.... É, os pequenos tá aí/entregue aos trancos e barrancos... né?
Um vem tira um pedaço... outro vem e bate, outros vêm... dá carinho... outro vem (enxota)... Taí! Tão criado aí como os/... como Deus tá
vendo, né?... É, meu mal é falar demais, né?
MG: E você não os pode ajudar?
D: Ah, eu mesmo eu não vou fazer nada! Eu mesmo, se depender de
mim... de um prato de comida, eu dou. Mas, pra tomar responsabilidade não.
(Dina, 29/02/2000).
N: [Os] Neto fica aí brigando por causa de/ Nem os filhos vão brigar
por causa de casa, quem vai brigar é são os neto.
MG: Só os netos dela?
N: Oh!... por que nem eu e nem Dina tamos brigando por causa
de casa... Mas olhe os netos! Olhe pra eles como é que eles estão.
Um/um... querendo matar uns aos outros, brigando, quebra as coisas...
Mãinha não queria deixar à toa! Mas ela em vida sempre ela dizia...
Que a don/os donos dali são nós duas... Não tinha outro dono. Se
eles tinham uma casa deles, porque que eles saíram da casa deles?...
336 maria gabriela hita
Eles! A mãe morreu, não? mas a mãe tinha. Ela tinha, ela sempre
teve casa.
MG: E Teo? Ele não foi criado aqui?
N: A mãe de Téo foi mãinha... dos outros não, dos outros, os outros tem/
tem pai/ tinha pai, tinha mãe... a mãe de Téo que sempre foi mãinha!
Mãinha criou Téo desde pequeno... porque que a gente atura ele? A
gente atura ele por causa disso! O mais velho. Agora, os outros não. Os
outros são/ são muito... revoltado demais e tá revol/ se procura um dinheiro pra fumar uma droga, não acha, quer quebrar tudo, quer bagunçar...
Pegavam muitas coisas de mãinha, vendia as coisas de mãinha, é...
(Neneca, 27/01/2000).
Neneca, por sua vez, sem apoio de D. Cida após sua morte, passou a depender mais dos outros, pelo que intentou novas alianças, sem muito sucesso, com Dina, suavizando os conflitos anteriores. Veja-se como Dina avaliou essa aproximação:
MG: Como anda sua relação com Neneca depois que sua mãe morreu?
D: Ah... Neneca... É. Depois da morte de mãinha... mudou, né? Que
ela ficou mais amiga... Mais amiga, se aproximou mais... Né? Mesmo
na falsidade, mas se ap/aproximou de mim... Né? E eu tô sempre
aqui pra ajudar, né? Até o dia... Vai chegar um dia que... eu num vou
mais poder ajudar...
MG: Porque não?
D: Porque, né? enquanto ah... tiver aquela feridinha aqui dentro, né? No
meu coração... eu vou tentar fazer... por merecer... mas depois... [E] Se voltar tudo que era antes?!
(Dina, 29/02/2000).
As estratégias de luta pela ocupação e posse do espaço adquiriram novos
contornos sem a presença de D. Cida. Grupos emergentes foram forçados
a estabelecer novas relações de alianças. Antigos e irreconciliáveis inimigos
pareceriam estar se unindo, quando morre a matriarca, para fazer frente ou
tentar expulsar o grupo emergente mais fraco ou mal visto de netos de D.
Cida (os filhos de Lena) que, no entender das irmãs, não tinham o mesmo
a casa das mulheres 337
direito à posse da casa de D. Cida do que teria, por exemplo, a irmã Merina,
filha de criação, mas que tampouco queriam que se instalasse na casa. Se
por um lado o grupo dos netos era visto como dos mais fracos pela posição
excluída que sempre ocupou na estrutura familiar, por outro lado, ganhava
força e se impunha com brutalidade. Eram temidos pelo comportamento
estigmatizado como altamente violento e descontrolado, sua imersão cada
vez mais comprometida com o mundo da marginalidade e das drogas e pelo
próprio fato deles não terem, como me foi declarado por um deles, muito a
perder. Este subgrupo foi se tornando, por isso, uma contra-força a ser levada
em consideração. Estes netos se encontravam em uma condição de extrema
fragilidade e dependiam bastante do apoio e da solidariedade que a parentela
(Dina, Neneca, Lia e Merina) podia lhes oferecer quando perderam a proteção da matriarca que os sustentava. Dois dos netos morreram depois da
matriarca e já tinha morrido uma neta, antes dela. Numa entrevista com Téo,
percebe-se falta de projeto e perspectiva para o futuro destes Jovens descendentes da filha Lena que entraram na vida do tráfico de drogas e foram sendo
assassinados em distintos anos de contato com a família:
MG: Estamos gravando. Você pode falar seu nome?
T: Falo... meu nome é Téo.
MG: Quantos anos você tem? Você sempre viveu aqui?
T: Tenho trinta anos. [Eu] Não tinha... mãe e pai/ não fui criado por eles,
sempre com minha vó.
MG: Você acha que tem chance de sua vida melhorar?
T: De ter, tem, né? [É] Só a gente suspender a cabeça e... num procurar
andar com certo tipo de elemento. E procurar um trabalho e... e se elementar só com os parente, né com... negoço de amizade de rua...
MG: E você tem vontade disso?
T: De ter vontade... Dá vontade. Mas minha chance é pouca, eu num
tenho mais... Eu mermo, num tenho/ ma/ nem mais vontade mais
de viver, porque como esse mundo é mermo, aí. [...]
338 maria gabriela hita
MG: E como está sendo a vida aqui sem sua avó?
T: Ah, depois do perdimento de minha vó, minha mãe, minha irmã, véi...
Do que aconteceu... de minha família aí... Perdi minha mãe... ela é assassinada. Perdi minha irmã, assassinada. Aí... agora minha vó... [eu estou]
um pouquinho desgostoso. Eu tento controlar, mas não consigo E... no
perder dela aí... meu mundo começou a mudar... beber... várias coisas/ a
piorar as coisas. Era bebida, procurar confusão... até hoje anda assim/ de
vez em quando tomo umas duas, procuro confusão... hoje em dia... meu
sistema é só é esse, nervoso até hoje... Meu sistema é que eu não tenho mais nada a perder.
MG: Mas precisa tocar sua vida para a frente...
T: É, tem que tocar a vida pra frente se não... como é que se diz/ é... aqui
nesse bairro que nós mora mermo... não dá mermo, tem muita gente, vizinhança, gente perseguindo... aí a gente fica abalado com... certo tipo
de coisa. Ou a gente procura fazer loucura ou... procura acalmar... mas
num... mermo tempo... é o sistema...
MG: Qual sistema?
T: Minha cabeça é... mais fazer besteira... Que eu, com minha vó, ela
me controlava, me regulava, falava... Era aquilo... Mas... depois do
perdimento de minha vó aí... [Tenho] muitcha preocupação. Tem de
ter, né? Nesse mundo, hoje aí, tem que ter muitcha preocupação...
Nesse mundo que nós veve aí... a gente tem que... ou a gente respira
o ar ou sujeira... uma coisa ou outra. Se misturar com sujeira, vai ter
que se... se alimentar com sujeira... então, se for um bom ar... vai ser
um bom ar. [...]
MG: E sobre aquele cara que matou tua irmã, você sabe quem ele é?
T: Conheço! Muitcho bem, o cara que matou minha irmã. [Ele] passa por
junto de mim... de vez em quando ....
MG: E o que você sente?
T: Ah! Eu sinto muita raiva! E o pior é que um dia... Peço que um dia
não teje... é... com/ com a mente fora do lugar que... aí vai ser eu e
ele... e mais alguém que tiver junto. Porque a justiça não quer fazer
nada, então... A própria justiça vai ser das nossas mão mermo. Eu
a casa das mulheres 339
não peço que meu irmão, nem meus parente nenhum... faça não, mas...
que eles tudo tão novo, mas eu...
MG: E quando ele te vê o que ele faz?
T: Realmente ele corre... várias vezes ele corre/ ele corre muito. Eu espero
que... mas se um dia quem corre cansa, um dia a casa caí... Que o que ele
fez com minha irmã... quando acontecer eu e ele de frente cara-a-cara...
eu acho que eu não vou conseguir... é... ouvir nem a palavra dele... num
vou conseguir. Não vai ter nem explicação. Antes eu me segurava, que
minha vó pedia, e agora... Não tem mais não. Não tem não. Não tem
nem envolvimento com família nenhuma, então... Mas um dia, o
dia dele chega. Se não for pela justiça de Deus... vai ser por a minha.
MG: Mas rapaz! Você está novo, tem uma vida pela frente...
T: Não, mas é isso mermo. É porque eu sô novo assim, mas... pra mim
o mundo já acabou... como vivo. Mal começou e... já acabou... por aí...
e ninguém vai tirar mais isso de minha cabeça... Fui um cara muito
revoltado da minha vida.
(Téo, com várias entradas na prisão, 27/01/2000).
Dina e Doca não tinham medo das arruaças provocadas por estes netos e
sempre que necessário os enfrentaram, inclusive chamando a polícia. Depois
da morte de D. Cida, comentam, ficou mais fácil estabelecer a ordem e o
respeito desejados. Neneca e os filhos indicavam interesses sobre o futuro
da casa de D. Cida, questionando o direito daqueles netos, filhos de Lena,
que não eram de mesmo sangue paterno, à herança da casa. Dina declarava
estar satisfeita com a casa que tinha construído e que não se importava com
a briga dos outros pela casa. Em fase próxima ao final da pesquisa, ela elevou
um alto muro na lateral da escada de acesso à sua casa, isolando-a da entrada
geral do resto de casas e aumentando a privacidade. Nesses últimos tempos
e para evitar maiores atritos com os netos que ficaram vivos, Dina decidiu
deixá-los em paz e manter uma convivência mais distante, porém pacífica.
A raiva que eu sinto é essa, que ela [D.Cida] deveria tá aqui... pra ver isso,
né?! Mas ela sempre me dizia: ‘Dina, quando eu morrer vai acabar tudo
isso, você vai ver, você vai ver como vai todo mundo ficar unido!’, e eu dizia: ‘Que nada mãinha, vai ser pior...’ Ah, não. Eu queria que eles se matassem agora... Eu queria que fosse uns contra os outros... Né?! Tão numa
340 maria gabriela hita
guerra agora porquê? Porque um pega as coisa/de/do outro... Um quer
ser melhor do que o outro... Né? É isso... Eles se matam assim, na droga,
né? [...] Não, quero nem saber. Se eles tiverem lá embaixo brigando...
MG: Você chama a policia?
D: Não, não chamo mais polícia. Não, agora não chamo mais polícia não. Se eles brigarem com revólver, com faca – com revólver não que
eles não... não sei, né? – com faca, com pau... com murro, com [arma]
pesada... não quero nem saber... Por mim, posso ver o mundo se acabar
lá embaixo. Ah, eu ando muito revoltada... Porque eles não tiveram
consideração à mãinha... Só por isso. [...] Às vezes as pessoas pensa assim que eu sou pior do que os/ do que todos... Como minha irmã, né?,
Neneca... ela acha que eu sou a pior. Mas não... Eu sou pior porque eu
não aceito... Eu não aceito as coisas que eles fazem.
(Dina, 29/02/2000).
Nesta nova conjuntura, houve claramente um novo arranjo das relações
entre os descendentes de D. Cida. Observou-se uma arrumação de alianças
e aparecimento de outros interessados, inclusive da irmã de criação, Merina,
com a qual Neneca tivera sérios atritos no passado, e que até então se encontrava bastante afastada e relativamente independente do grupo familiar.
Seu filho Orlando era o que estava morando em 2003 na casa do fundo que
Lia e Jerson abandonaram com medo do aumento da violência no bairro,
anos depois das entrevistas em 2000. Lia deixou a casa logo após o violento
assassinato do primo Darío, em 2001. E junto com o marido, Jerson, e a filha
foram morar na casa do sogro, em Camaçari, até construírem a própria. Em
2002, morreu o terceiro dos netos da estirpe de Lena, também violentamente assassinado: Nacho (Ói), considerado sofredor de distúrbios mentais
desde pequeno, a partir do trauma e sentimentos de culpa pela morte da
mãe. Antes de Neneca também decidir abandonar sua casa, ela afirmava:
N: Eles brigam muito por causa de casa, né? Fica lá falando: ‘a casa é
minha!’; outro diz: ‘a casa é de fulano, a casa é de beltrano, a casa é de
sicrano!’. A casa não é de ninguém! A casa não/não/não tem dono aí, o
dono daí é eu e Dina – somos as duas filhas do casal. Não tem ninguém. Porque Merina é filha de criação... né? Merina mesmo largou
Orlando aqui com 15 dias de nascido – foi embora pra São Paulo... Lá em
São Paulo ela/ o marido foi atrás; ela teve... Pitty, depois voltou pr’aqui...
ficou lá dez anos em São Paulo/ ou foi dez ou foi onze anos em São
a casa das mulheres 341
Paulo, depois voltou... foi morar lá/ arranjou outro/o marido morreu, ela
arranjou outro... foi morando... mãinha sempre por aqui, a gente sempre
por aqui, acontecia isso, acontecia/ teve os tiro de Téo, teve a confusão,
mãinha se acabando indo pra hospital, indo pra tudo – e Merina sempre lá... nem se aproximava. Agora, depois da morte de mãinha, ela taí...
A desculpa é: que tá... fazendo comida pros meninos – mas não é! Mas
não é mesmo! [...]
MG: E Merina teria algum direito à casa onde estão os meninos?
N: Teria. Ela teria... Porque ela foi/ ela/ Merina/ mãinha criou ela... entendeu? Mãinha criou e ela foi registrada com o nome do meu pai! Mas
os meninos não. Os meninos não tem... nada a ver! O pai deles, o pai
de Lena foi outro... Eles era/eles maltrataram muito ela.
(Neneca, 27/01/2000).
Dina completa as informações sobre a relação mais distanciada da mãe
com a filha de criação, e mostra uma mistura de arrependimento revestido
de acusação aos outros por não terem dado à mãe, em vida, o que ela conseguiu aparentemente lograr com sua morte, numa rearrumação das relações
e conflitos aparentes:
MG: Como era a relação de Merina com sua mãe? Elas tinham algum problema?
D: Sim tinha... problemas mesmo... Tinha problema de entendimento com mãinha. E porque depois que mãinha morreu ela veio pra dentro
de casa? E tá se dando super bem? Eu acho que... era um comboio, né?
Eles tudo tava planejando/... eu penso assim! É o meu pensar. Eu acho
que eles tudo tava premeditando já a morte de mãinha... Porque/que/
quando mãinha era viva todo mundo era que nem um gato com rato,
todo mundo brigava?! Todo mundo brigava. E agora tá todo mundo na
paz... Aí é uma coisa que nem eu mesmo sei entender. [...] Sei que a mim
mãinha tá fazendo muita falta! Não o dinheiro, nem comida - que
mãinha não me dava nada, muito pelo contrário, eu é que dava pra
ela... Às vezes eu tirava as compras aqui, que ela comprava as coisa dela
lá embaixo, fazia cem, cento e cinquenta reais de compra, né? Comprava
saca de farinha, comprava vinte, trinta quilo de feijão... e eles pegavam o
feijão, as mercadorias que ela comprava, pra vender pra comprar droga...
MG: Estamos gravando...
342 maria gabriela hita
D: Eu falo. Enquanto eu tiver força na minha boca pra falar, eu falo.
Enquanto eu tiver língua, não puder falar assim... falando com as minhas
palavras, né?, gravando... eu vou na canetinha escrevo tudo errado, certo,
mas eu escrevo, descarrego ali a raiva que eu sinto... É isso, né?
(Dina, 29/02/2000).
Nesta nova fase da família, Dina finalmente conquistou o reconhecimento da parentela fortalecendo sua posição na estrutura e rede de parentesco. Ela era, de todos, a pessoa melhor estabelecida, considerada uma “vencedora”. Soube se impor e ganhar o respeito de todos, mesmo indo contra o
modelo de convivência antes estabelecido. Em uma das últimas visitas feitas
à residência em 2003, muitas coisas tinham mudado. Dina passou a ser vista
como boa dona de casa e cuidava, durante o dia, do primeiro netinho – filho
de Jane, que engravidou e uniu-se em seguida ao companheiro. Jane e seu
parceiro viviam de aluguel em um quartinho perto da casa da mãe. Ela trabalhava e ajudava na venda da prima Liliane, filha de Neneca, que também se
uniu, tinha um filho e morava fora desta configuração de casas.
Neneca deixou sua casa por volta de 2001, como Lia, e foi morar em um
quartinho de aluguel em Camaçari com o namorado 20 anos mais jovem, as
filhas doentes menores e o filho adulto Léo, que em 2003 era pai de cinco
crianças de distintas mães, mas que criava com ajuda de Neneca, apenas, o pequeno e doente Pedro. Pedro, como a tia Letícia (a caçula de Neneca), nasceu
com problema de fenda palatina, e precisaria agendar algumas intervenções
cirúrgicas, já que sua alimentação era complicada, vivia doente e desnutrido,
não andava nem falava como Cristina, que tinha a mesma idade. Letícia, a
filha caçula de Neneca, devido ao mesmo problema de nascimento, ficou o
primeiro ano de vida internada no Hospital das Clínicas. Ela sofreu três intervenções cirúrgicas e precisava fazer uma nova devido ao crescimento, comentava Neneca. Letícia começou a falar e andar por volta de 1992, quando tinha
sete anos de idade e quando eu conheci pessoas deste grupo familiar.
Neste capítulo se discutiu um exemplo de matriarcaliade diferente ao anterior, onde foram sendo analisadas as principais distinções dos dois casos, e
a maior dificuldade de D. Cida em lograr mediar e equilibrar forças na distribuição de recursos e espaços para equilibrar a totalidade do sistema. Talvez se
pudesse pensar que nesta casa o sistema matriarcal encontrava-se em crise,
ou fase de dissolução, e que parte destas diferenças se expliquem por uma
combinação de fatores distintos, como o dos distintos tipos de autoridade e
a casa das mulheres 343
temperamentos das duas matriarcas e menor reconhecimento simbólico do
poder e força de se impor de D. Cida, que não se baseava ou usava do poder
e força que Mãe Dialunda parecia angariar da cosmovisão do Candomblé;
o momento mais avançado do ciclo doméstico desta Casa, próximo ao da
dissolução da morte da matriarca e seu crescente enfraquecimento; o papel
exercido por fatores como a ascensão social (ascendente ou descendente) de
alguns de seus membros, cada vez mais autônomos e se contrapondo aos
desejos da matriarca sobre o modo de desejar participar e cooperar – ou não
– da reprodução da Casa. No capítulo a seguir, em direção oposta aos dois
anteriores, a análise desenvolve as principais convergências e elementos comuns entre os dois exemplos estudados, com o reforço de ideias teóricas
mais aptas a desenvolver o tema do espaço, relações sociais e mundo simbólico. Nele ofereço mais detalhes sobre a vida íntima das famílias no sentido de compreender os processos mais gerais e dinâmicos da constituição
das duas Casas matriarcais baianas que transcendem diferenças na figura da
matriarca (ou seja as bases específicas de sua autoridade, elementos pessoais
que influíram na sua gestão de assuntos familiares, etc.).
344 maria gabriela hita
m
Capítulo VI
a casa na reprodução
da vida e do espaço
lugar e ethos de famílias matriarcais extensas
Compreender o domínio do parentesco e das casas é adentrar no mundo de
estratégias individuais e coletivas, na esfera em que se exercem relações de
afeto, conflito e poder; de lutas e negociações pela conquista de posições e
espaços, encenando ambivalências, contradições e paradoxos. A pesquisa etnográfica sobre relações de parentesco nos dois arranjos matriarcais descritos
buscou iluminar diversos desses aspectos. Pressuposto da pesquisa é que práticas, representações, experiências e trajetórias individuais em conjunto conformam identidades. Em suma, parto do pressuposto de que pessoas e grupos familiares não são passíveis de serem reduzidos e compreendidos por um
único aspecto de suas vidas ou mesmo por intermédio de uma única matriz
(ideológica, teórica, metodológica, etc.). A leitura apresentada aqui é uma versão, entre outras possíveis, que constrói parcialmente parte dessa realidade.
Quando comecei a organizar experiências e trajetórias dos dois grupos
de parentesco matriarcais observados, dois clássicos da Antropologia foram
particularmente valiosos para interpretações desenvolvidas ao longo deste
livro. A releitura de Os Nuer, de E. Pritchard (1993) inspirou reflexões sobre
o uso do espaço e do tempo em ambas as casas. O Ensaio sobre a Dádiva,
de Mauss (1988), de forma mais direta, imprimiu o tom da análise das interações, conflitos e alianças ao interior destas Casas, em paralelo próximo à
matriz de uma economia simbólica (doméstica) de bens em circulação: a circulação de dons e contra-dons que ocorre no intervalo de tempo em que se
processa a dádiva e a retribuição. Com esses esquemas em mente, ordenei
a descrição dos principais dados. Neste marco fez sentido pensar no que
chamei na introdução de força simbólica circulante (FSC) – que estaria depositada nas figuras matriarcais, traduzível na noção de Casa. A casa pode
ser vista como um dos mais importantes bens (dádivas) em circulação; é almejada e disputada pelos integrantes destas configurações domésticas. A posição de destaque e autoridade legítima que exercem as duas matriarcas negras, estudadas em suas redes, reside, entre outras coisas, no mana expresso
por meio do poder de decisão, vigente até a morte, sobre a circulação deste
dom precioso sancionado no imaginário popular pela representação coletiva
de quem casa, quer casa: isto é, o direito a ter um lugar no mundo, uma casa
a casa das mulheres 347
(ou pedaço dela), o espaço físico da moradia. A matriarca neste modelo familiar, como proprietária legítima dos terrenos e casas em que todos vivem,
é quem tem a última palavra e decreta o destino desse bem; administra a
utilização do espaço, manipulando, oferecendo, tomando e redistribuindo-o
a depender das conjunturas e relações ao longo dos anos entre os distintos
membros do grupo familiar extenso. Elas são as figuras centrais que determinam, em última instância, as regras de herança e sucessão; são as donas e
chefes das Casas (famílias e casas), pois é por intermédio da propriedade que
exercem sua matriarcalidade. Nesses termos, este capítulo trata dos desdobramentos do conceito de matriarcalidade a partir dos exemplos estudados.
Trabalhos que vão desde as abordagens de Gilberto Freyre às de Roberto
DaMatta, entre outras, mostram a importância da Casa como base da constituição do ser social brasileiro, um marcador de identidades. Para DaMatta
e Freyre, a casa é considerada mais do que meramente espaço geográfico ou
coisas comensuráveis. É também uma entidade moral, uma esfera da ação
social, províncias de positividade e domínios culturais institucionalizados,
capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens.
(DAMATTA, 1985, p. 12) A casa é um lugar e um mundo de ethos a partir do
qual sistemas de disposições fundamentais se constroem e se configuram.
Como todo lugar, a casa é presa a uma hierarquia cujos termos específicos no
Brasil são historicamente constituídos nos modelos sociais e culturais constituídos pela escravatura e colonização. Restituir o sentido da casa como categoria cultural é remeter ao lugar social e étnico a partir dos quais ela é inventada. Por isso, para uma compreensão satisfatória de práticas e projetos
familiares na sociedade brasileira, diz Marcelin (1996), é fundamental realizar
um estudo aprimorado da instituição da Casa e tratar o conceito como categoria analítica central. (DAMATTA, 1985; FREYRE, 1992; MARCELIN, 1996)
Mas, o que significa morar em meio popular e comunidades negras em
pleno século XXI, numa região urbana do Nordeste brasileiro, como a cidade de Salvador? Em que medida um passado colonial de escravidão marca
modos de ser e habitar de grupos negros na atualidade? Há modelos arquitetônicos e regras de moradia que governam seus comportamentos? Quais os
valores que sustentam estas comunidades?
Estudos sobre a forma de se habitar as casas e da importância do passado
escravo no Brasil, como mencionado, expressam características da matriz cultural afro-brasileira, marcada pela mobilidade constante de indivíduos que
348 maria gabriela hita
circulam entre várias outras unidades de uma mesma rede de parentesco, vizinhança ou configuração de casas. Por isso a casa deve ser pensada nas inter-relações com outras casas que também participam da construção e rede
(Marcelin, 1996). A ideia de configuração remete a um conjunto de seres ou
coisas que traduz relativa disposição de posições (ou pontos em geometria)
em um conjunto ou subconjunto, isto é, às redes de relações que configuram
as posições de casas que se correlacionam e são interdependentes entre si.1 A
casa é, seguindo o raciocínio de Elias (2001), em certa medida, um reflexo de
como os indivíduos veem a si mesmos.
A utilização feita por Marcelin (1996) do termo configuração de casas, no
contexto baiano, que extrapola fronteiras de uma única unidade doméstica,
nos permite identificar melhor o processo de eterna criação e recriação de
laços – redes – de cooperação e troca entre as casas, e de como, por meio
de relações entre distintas casas, tais laços se constroem em uma estrutura
de tensão entre hierarquia e autonomia, entre coletivismo e individualismo,
entre mecanismos tradicionais de socialização e impulsos modernos de consumos, dentre outros pares.
Pelo exposto, entendo aqui que a casa como construção física não pode ser
separada dos corpos que a habitam e transitam, nem das relações pessoais que
a modelam. As relações interpessoais se constituem em relações domésticas
centrais dentro da unidade social e física que é a casa. Enquanto construção
física e como instituição social total, a Casa se constitui em um dos melhores
registros dos momentos de articulação e de mobilização de alianças intra e
inter-geracionais entre os membros e indica os ciclos de transformação que
a acompanharam. (MARCELIN, 1996) No contexto analítico deste capítulo, a
casa é pensada como processo, como devir indissociável da permanente construção de alianças e tensões entre as pessoas que a habitam e que são traduzidas em termos das relações de parentesco que a expressam.
1
Configuração é um termo presente em obras de Norbert Elias (1994; 2001), que faz uma interessante análise da ocupação espacial, na corte francesa, e das regras de comportamento a que
estava atrelada. Naquela sociedade, a aparência física da casa (hotéis de nobreza e palácios da
corte) era símbolo de posição e nível da casa ou estirpe no decorrer das gerações e daquele indivíduo considerado seu representante vivo. O estudo dessas casas possibilitou a Elias uma primeira aproximação da estrutura social da corte. Segundo Elias, as dimensões e a ornamentação das
casas não dependem tanto da riqueza do proprietário como da posição social que ocupa, por
isso o dever de ostentar dos respectivos moradores naquele contexto.
a casa das mulheres 349
No meio popular não se pode isolar o fato da casa como resultado (produto acabado) daquele da própria construção, processo de erguê-la e constituí-la. Toda construção de casas lança mão de mecanismos socioculturais
acionados por valores (cosmovisões vigentes) da família e parentesco, mobilizando sempre projetos, recursos humanos e materiais tanto individuais
quanto coletivos. A decisão de construir não é uma simples operação individual. Ela conduz a considerações de ordem maior como: onde construir?;
com quem?; com quais recursos?; e, em certos casos, para quem construir?
Construir é, para Marcelin Louis (1996), sempre uma operação coletiva
porque coloca em jogo as negociações matrimoniais, a organização de um
território onde se exercem experiências e conflitos familiares, estratégias individuais e coletivas e se lança mão da utilização de recursos econômicos
e humanos. Construir é, pois, para este autor, um processo pré-configurativo da casa; assim, casa é compreendido como momento de um processo
bem mais complexo de invenção e reinvenção da família, da amizade, da vizinhança e da iniciação da conjugalidade nas diversas trajetórias populares.
A noção de Casa aqui adotada é, pois, a mais idônea para estudar processos e
experiências familiares em grupos populares. (MARCELIN, 1996)
Na próxima seção, descrevo o modelo de casa estudado por este antropólogo jamaicano em pesquisas sobre Família Negra no Recôncavo Baiano referente ao modo específico de habitar o espaço por afrodescendentes nessa
região. Tal análise será realizada a partir dos dados de uma das plantas arquitetônicas da casa de Mãe Dialunda (a original das aqui apresentadas), que é
muito próxima ao modelo descrito por Marcelin Louis (1996). Dados sobre
outra família são incluídos para fins comparativos. Na segunda parte, com
dados mais sociogeográficos dos domicílios (doravante casas) de D. Cida e
Mãe Dialunda, objetivo descrever transformações espaciais sofridas no lugar
e o movimento de pessoas no interior da casa ao longo do curso de vida de
cada grupo doméstico. Parto do suposto de que o ter casa e ser sua dona, é
expressão indispensável do próprio acontecer. A este processo, e neste modo
de organização doméstica, por sua vez, denomino de matriarcalidade, pois é
através dessa possibilidade que se manifesta a própria existência; só se pode
ser chefe de família e da casa caso detenha-lhe a propriedade e exerça o poder
sobre esse bem.
Neste sentido, o poder da matriarca se exerce pela doação ou restrição do
uso do bem da casa aos membros da sua rede doméstica. Ela tem o poder
350 maria gabriela hita
de ser a figura principal, foco e chefe da família e casa neste tipo de organização doméstica. A matriarcalidade de ambas as chefes fica claramente evidenciada, neste capítulo, que é onde se apontam principais convergências
entre os respectivos modelos, como causa e consequência, simultaneamente,
do acesso a construção de cada casa, onde a matriarca é a chefe. Em outras
palavras, os dados aqui reunidos são expressão de processos mais amplos e
compartilhados também por outras mulheres de outros lugares do mundo,
e o que aqui se enxerga são processos comuns e gerais na construção da matriarcalidade em contexto baiano (para além dos elementos pessoais, culturais ou do papel social destas mulheres) que podem influenciar na autoridade e conformação da figura social que é o de toda e qualquer matriarca.
DESCRIÇÃO ESPACIAL DE UMA CASA
POPULAR NA BAHIA
p
Ao observar a forma de habitar o espaço por famílias pobres no Recôncavo
Baiano, Marcelin (1996) percebeu a predominância de um padrão recorrente na construção das casas. Esse padrão pode ser descrito a partir da planta
baixa da casa de Mãe Dialunda, cuja peculiaridade associada a proximidade
ao mundo do Candomblé, apresentou espaços adicionais e específicos que a
destacam e diferenciam de outras residências da vizinhança. Entretanto, a
estrutura geral da sala, quartos e pátios é similar à de muitas casas visitadas
durante o período de coleta de dados em campo e a esse padrão do habitar
popular descrito por Marcelin, motivo pelo qual parto da descrição mais detalhada desta morada como o modelo mais próximo do tradicional popular
que Marcelin (1999) descreveu (ver na Figura 6, a seguir, planta desta casa).2
No início da pesquisa, a casa de Mãe Dialunda se destacava mais do que
outras pelos móveis e cuidado, denotando um período de maior apogeu.
2
O padrão convencional de construção de casas não é totalmente rígido, pode sofrer modificações com construções mais novas ou se transformar, ao longo dos anos e diferentes trajetórias,
como vem ocorrendo na casa de D. Cida, apontando certa tendência à modernização do modelo
em gerações mais novas.
a casa das mulheres 351
Já no final da pesquisa, foi gradativamente superada pela casa de Dina, na
outra família, que se expandiu e foi sendo mobiliada, com retoques mais modernos, seja na estrutura como nos objetos dispostos na sua sala, indicando
a ascensão deste outro subgrupo familiar na parentela de D. Cida e a fase de
declínio no grupo liderado por Mãe Dialunda.3
As casas arejadas e ventiladas eram as mais valorizadas, por isso as portas
e janelas costumavam estar bem abertas durante o dia. Mas, o crescente aumento da violência no bairro e a intenção de controlar os horários de movimentação externa dos membros, foi levando muitos moradores a trancarem
as portas à noite. A abertura das portas e janelas expunha a casa aos olhos
dos transeuntes, sendo por isto sinônimo de saúde familiar, pois, a porta de
entrada da casa abre caminho à comunicação social e ao contato com o público. Assim, uma porta aberta confirma a reputação da casa, é um sinal de
que não se tem o que esconder e que se pode compartir. A porta de entrada
é o ponto de passagem que põe em relação o dentro e o fora, o público e o
privado, o profano e o sagrado, como nos pares dicotômicos analisados por
Bourdieu (1972).
A Figura 6,4 planta da casa de Mãe Dialunda em 1997, mostra como as casas
distribuíam-se geralmente em superfícies retangulares cobrindo em média 7m
x 16m, com 10 pés de altura, onde o espaço interior era arrumado e organizado
de tal modo que o visitante, ao entrar, de acordo com o grau de intimidade
com a casa, atravessava por ordem sucessiva desde a varanda (ou pátio anterior): a sala/sala de jantar à cozinha, e desta ao quintal, onde se encontrava o
banheiro – todos dispostos diante de si em linha reta – tendo geralmente do
lado esquerdo os quartos de dormir. O interior da casa estava arrumado de
modo que, do lado esquerdo, as portas de entrada de cada quarto, a começar
pelo quarto principal – e frequentemente o único em muitas das casas – abria-se diretamente frente à sala/sala de jantar. A descrição da planta da casa de
Dialunda foi quase idêntica à realizada por Marcelin (1996) que considera ser
este um modelo de habitação típico de negros do Recôncavo Baiano.
3
Ver fotos da sala de Dina e Doca, no Anexo E, e compará-los com os da sala de Mãe Dialunda,
neste capítulo.
4
Levantamento cadastral e desenhos realizados pela equipe da Hita-Engenharia – Fernando Caldas
e Fátima Hita – com o objetivo de resgatar escala e maior proporcionalidade dos espaços internos.
Figura 6. Modelo popular convencional de construção de casas: e 1º pavimento da casa de Mãe
Dialunda por volta de 1997.
a casa das mulheres 353
A sala é o espaço privilegiado da casa onde se costuma receber as visitas;
representa a fase pública da casa e aquela que dignifica a família. Nela cada
unidade doméstica tende a socializar objetos ou quadros que traduzem os valores dos membros e expressam facetas da identidade familiar.5 (ver Figura 7).
5
Nas distintas casas que visitei em ambas as redes de parentesco, observei os seguintes tipos de objetos nas paredes e salas: na sala de Dalva, nora de Mãe Dialunda, que morava no segundo pavimento, havia uma frase sobre o mundo negro que dizia: ‘Enquanto a cor for demarcador de diferença,
haverá guerra’ e um grande pôster de Jimmy Hendrix. Era comum se ouvir o barulho estridente do
aparelho de som de Juruna, a todo volume, vindo da sua sala, desde o meio da empinada ladeira
de acesso a essas duas casas. Na sala de Célia, a neta de Dialunda que vive em outra casa, na rua
perpendicular à da avó, há um grupo de quadrinhos com casarios do Pelourinho pintados por um
amigo do casal. No outro grupo familiar, na sala de Neneca, vi nas paredes e ao longo dos anos, fotos
pequenas de familiares e crianças, dizeres de teor cristão com frases de amizade ou amor, calendário
anual com flores ou bichinhos e rabiscos de caneta escritos diretamente na parede (um nome, um
telefone) ou recados colados com durex.
Na sala de Dina, havia quadros ou obras por ela produzidas, entre outras peças de latão ou madeira.
Após a morte da sua mãe, pendurou em lugar central da sala uma enorme foto emoldurada (de uns
70 x 40 cm) da matriarca. Em 2003, a fotografia fora substituída por novo quadro que Dina pintou,
Na sala/quarto de Lia, a primogênita de Neneca, não havia nada nas paredes, seu quarto/sala – recém construído, e com materiais de melhor qualidade que o geral: grandes lajotas brancas no chão
– possuía paredes limpas e brancas, sem nenhuma ornamentação. De móveis possuía estritamente
o necessário: um colchão de espuma de solteiro – que servia de sofá durante o dia e cama à noite – e
uma grande e colorida televisão de 29 polegadas ocupando maior parte da sala, onde D. Cida e sobrinhas passavam a tarde a assistir programas e conversar; levando e trazendo cadeiras, a depender
do movimento dessa casa (visitas especiais ou idosos sentavam em cadeiras). Também no quarto-sala existia, no canto oposto à escada, um fogãozinho a gás de duas bocas, junto a uma pia inox.
A casa de D. Cida me transmitia sensações esquisitas de indefinição e transitoriedade, ela dificilmente me recebia lá, preferindo conversar comigo na casa da filha Neneca ou na da neta Lia, guardando
a privacidade dos netos homens ou talvez até me protegendo do olhar masculino ao evitar minha
presença na casa e mantendo a distância considerada talvez necessária por ela a minha distinta classe social, cor de pele e situação de mulher casada. As poucas vezes em que me recebeu na própria
casa, os netos mais velhos não estavam presente. Nunca consegui observar claramente os objetos
que havia na sala de D. Cida, a casa servia de passagem para as outras duas casas, (conexão entre a
de Neneca – mãe – e a de Lia – filha). A sala de D. Cida era também utilizada como quarto durante
boa parte do dia pelos netos que ela criava.
354 maria gabriela hita
Figura 7. Perspectivas da sala e da cozinha de Mãe Dialunda, em 2003. Fotos: Maria Gabriela Hita.
a casa das mulheres 355
No fundo da sala, à direita, encontra-se um altar numa mesinha com
santos e orixás da família. Quase toda casa tem um espaço destinado ao
oratório familiar, seja este representado por um quadro, uma imagem ou
um altar, geralmente no canto direito das salas. Neste altar se podia ver a
imagem de São Jerônimo (Xangô), representado pelo santo com um leão aos
pés; Jesus Cristo (Oxalá); São Cosme e Damião, entre outros (ver Figura 8).
No canto superior esquerdo da sala desta casa, encontravam-se dois quadros com os principais orixás protetores da família fixados na parede –
Ogum6 e Xangô,7 como na foto a seguir (ver Figura 9).
Na entrada da sala de Mãe Dialunda havia, em 1997, na parede direita, um
velho sofá de três lugares, meio destruído, que nos últimos cinco anos fora
remodelado e teve o forro substituído mais de duas vezes, investimentos que,
pela movimentação de pessoas e crianças, duravam pouco na casa. Em 2003,
vi que este sofá havia desaparecido, ausência que produzia sensação de maior
amplitude no ambiente dessa sala. Frente a essa parede onde ficava o sofá, do
lado das portas dos quartos havia, até a minha última visita, um sofá de dois
lugares (ver Figura 10 de Mãe Dialunda sentada com duas netas que criou e
bisnetos) e algumas cadeiras encostadas na parede esquerda, bem defronte
da televisão, a qual costumava ficar sempre ligada, localizada na divisão da
sala de estar com a de jantar, no meio da sala.
6
Ogum, sendo muito próximo de Exu, tem algumas das características atribuídas a Exu como a de
abrir caminhos, ser o guia entre o mundo profano e sagrado, comentou-me Mãe Dialunda, em
certa ocasião.
7
Xangô é aquele que fecha os caminhos, o protetor da casa, explicou-me Mãe Dialunda. Ele é forte e poderoso. Na terra é o rei dos leões. Não gosta de defunto.
356 maria gabriela hita
8.
9.
10.
Figura 8. Mãe Dialunda e netos junto ao altar de sua sala, em 2003. Foto: Maria Gabriela Hita.
Figura 9. Mãe Dialunda no canto esquerdo da sua sala com os quadros de Ogum e Xangó protetores da casa, em 2003. Foto: Maria Gabriela Hita.
Figura 10. Na entrada da casa: Mãe Dialunda e as netas que criou (Célia e Branca), em 2003.
Foto: Maria Gabriela Hita.
a casa das mulheres 357
Todavia, a disposição dos móveis, assim como a estrutura deles e das paredes da casa, estava sempre em movimento e transformação, mudava-se
com muita frequência a posição de enfeites, quadros, mesa etc. Os móveis
costumavam ser trocados ou substituídos por outros quando quebravam ou
apareciam melhores, colocando em circulação – na sua rede social – aqueles
objetos que iam sendo descartados, mas que havia sempre alguém para quem
destiná-los. Na sala, além do altar para os santos e dos quadros dos dois
orixás na foto de 2003, havia outros quadros de paisagens e uma estante com
alguns enfeite de porcelana.
Depois da sala ficava a cozinha, em espaço que se contrapunha aos anteriores. A cozinha era o lugar, por excelência, de sociabilidade da casa. Era
onde sempre havia pessoas da casa beliscando algo, conversando ou trabalhando: era espaço comum a todos os membros. Talvez por isto, senti mais
resistência dos moradores em permitir minha aproximação, indicando ser
um dos lugares mais preservados dos estranhos. As cozinhas e os quartos das
casas foram lugares que mais demorei em conhecer e ter acesso. Acesso forçado, por vezes, pela minha curiosidade indiscreta ao ir atrás de alguma conversa com moradores do grupo que ali se encontravam. Mas, em geral, um
acesso conquistado, resultante de distintas estratégias do perguntar e da paciente espera a ser convidada para conhecer tais locais ou algum objeto que
queriam mostrar-me. Muito ajudaram minhas insistentes perguntas sobre o
espaço como assunto central de certas entrevistas, visando a compreender
as principais mudanças espaciais da casa e da história familiar. Na casa de
Mãe Dialunda, o contato anterior ao desta pesquisa foi menor. Até a empatia mútua ser conquistada passou um tempo considerável, o que também
afetou a densidade de informação coletada. O dia em que ela me chamou
a acompanhá-la até a cozinha, foi quando percebi que estava sendo finalmente aceita e minhas visitas tornavam-se esperadas e desejadas, diferentes
do início da pesquisa, quando eram frequentemente remarcadas. Muitas
das conversas informais se deram na passagem da sala para a cozinha, pois
Dialunda ou Dalva me recebiam enquanto produziam os insumos da venda
ou trabalhavam nos afazeres do lar ajudadas, sempre, por algum neto ou neta
que estivesse na casa.
Na cozinha se desenvolvia uma das mais importantes dimensões da intimidade coletiva: não era do agrado dos membros que gente de fora soubesse
o que se come (quando se podia comer) e nem o como se comia. Percebi
358 maria gabriela hita
isso muito bem nas ocasiões em que fui visitá-las em horas indiscretas de almoço ou janta, quando as portas de suas casas se fechavam e, em geral, não
me convidavam a entrar. Poder comer e beber a cada dia era uma conquista
cotidiana e uma benção entre gente pobre no Nordeste.8 Não ter nada o que
comer era uma experiência carnal vivenciada por muitos dos meus entrevistados em ambos os grupos familiares – e outros do bairro – em diferentes
conjunturas e fases da vida. Uma casa onde o fogo da cozinha não se acendia
era considerada, no imaginário popular, como casa morta, em crise, algo que
devia ser evitado. Esta era a principal necessidade básica contra a qual se lutava todos os dias neste contexto, aquela luta pela sobrevivência mínima, isto
é: por ter o que pôr no prato.
O banheiro, associado ao ato de defecar, visto como sujo e repugnante,
ficava em geral nos fundos da casa, mais próximo ao quintal, no extremo
oposto à entrada da casa, vizinho e próximo do espaço da cozinha, com
acesso pelo lado externo da casa. Antes de iniciar o processo de reforma sanitária em toda a cidade de Salvador, entre 1990 e 2000, a maioria dos sanitários no bairro não dispunha de louça sanitária e os dejetos eram lançados
em fossas sépticas que infiltrava águas sujas para o terreno ou as lançavam
em canais de esgotos na rua, a céu aberto, espaços que nem sempre estavam
ocultos por divisórias ou paredes. Quando iniciei o primeiro contato com o
bairro em 1992, na casa de D. Cida, o banheiro era muito precário. Tratava-se
de um fosso cavado no chão, todo de barro batido, com cimento apenas em
um pequeno quadrado do chão. A limpeza facial e corporal era realizada com
balde e cuia, também a céu aberto, em um canto, ao fundo da casa, próximo
de onde depois passou a existir uma escada de acesso à casinha (quarto e
sala) da neta Lia. Em diversas visitas, à casa de D. Cida, por volta de 1992, era
comum me deparar com um dos membros (uma criança, adolescente e até
adultos) tomando banho naquele espaço. Na casa de Mãe Dialunda, nunca
tive oportunidade de entrar no banheiro, conheci apenas o da casa de cima,
pertencente à nora Dalva e ao filho Juruna, que estava perfeitamente instalado (com vaso, pia, chuveiro e porta improvisada com uma cortina), mas se
encontrava desativado e era usado como depósito de panelas, seguramente
porque não havia ligação de água, que significa um maior investimento sob
8
Ao menos antes dos programas do Fome Zero e Bolsa Família garantirem alguma renda para
muitas dessas famílias nos dois governos de Luís Inácio da Silva (2002-2010) ou o Brasil sem
Miséria, no de Dilma Roussef (2010 até 2014).
a casa das mulheres 359
responsabilidade de cada casa, ou pela necessidade do espaço para um uso
mais racional, como o guardar as panelas desta nora e a dos preparos de
comidas de Dialunda. Todos continuavam a usar o banheiro do pátio dos
fundos do pavimento inferior.
O quintal no fim do terreno da casa foi frequentemente habitado por galinhas pretas, pintinhos e outros animais, alguns deles que deixaram de existir
depois (cágados, gatos e cachorros). Nesse quintal dos fundos, Mãe Dialunda
plantava ervas que usava na cozinha e em trabalhos de santo. Ela tinha nesse
pátio, em 1997, uma geladeira sem porta, usada como um tipo de dispensa.
E ainda um tanque de lavar roupa, que ficava cheio de água parada, escura e
mal cheirosa (águas milagrosas), que costumam ser utilizada em certos trabalhos de santo, para preparar os denominados ebós ou garrafadas comumente
utilizados em banhos de limpeza visando à proteção contra mau olhado ou
espíritos malignos de seus clientes. A roupa era lavada em bacias. Anos depois, a função ritual daquele tanque foi substituída pela pequena fonte de
águas milagrosas no chão do último quarto de santo (ver Figura 11, adiante).
No quintal, realizava rituais de limpeza de corpo dos clientes, como o que fez
comigo com ramos de folhas, quando a consultei profissionalmente.
O primeiro e principal quarto na casa de Mãe Dialunda era o da matriarca,
logo na entrada da sala e do lado esquerdo. Tinha localização estratégica,
permitindo, através da janela, acompanhar o movimento da rua, prevenir-se
da presença indesejada de uma visita e controlar entradas e saídas dos próprios membros da casa. Neste espaço eram encenadas conversas mais importantes e mais íntimas. Fiquei especialmente emocionada no dia em que Mãe
Dialunda me convidou a entrar em seu quarto, compartiu alguns segredos e
mostrou-me fotos e roupas mais especiais. Nesse quarto havia uma cama de
casal, que partilhava com netos e bisnetos menores ou com as moças solteiras
e púberes da casa (segundo disse referindo-se às netas que criou ou filhas de
amigas que estavam de visita). Ao lado da cama havia um armário semidestruído, sem portas, pela falta de cuidado da parentela, queixava-se ela. A cada
ano da pesquisa, a casa parecia se deteriorar progressivamente em relação a
outras que ascendiam.
Enquanto no passado Mãe Dialunda dispunha de um quarto para guardar
pertences (chamado de o quarto das roupas), nos últimos anos, sobrou-lhe
apenas o reduzido armário sem portas indicando o quanto perdera do enxoval
e o quanto cresceu a família, com novos netos, bisnetos e afins. As roupas eram
360 maria gabriela hita
guardadas em grandes sacos plásticos, tudo amarrotado, separando as coloridas
do uso do dia-a-dia, das brancas e rendadas para trabalhos de santo. Também
guardava objetos mais preciosos em caixas de diferentes tamanhos, onde dispunha colares e outros pertences pessoais. Embaixo do colchão da cama, guardava a maior parte do dinheiro, proveniente da venda de acarajé ou trabalhos
de santo, pois quantias menores, ela carregava no seio, preso ao sutiã. Estes valores serviam para as compras do dia, para aqueles trocados presenteados aos
netos e para a compra dos cigarros que compartia com Dalva. Para ingressar no
quarto, era preciso pedir permissão, este era um dos espaços mais respeitados
e menos circulados da casa, principalmente vedado às crianças, durante o dia,
como o indicavam os gritos que Mãe Dialunda proferia quando via alguém ou
uma delas lá dentro. Apesar dessa clara restrição, a transgressão a esse mandato mostrou ser constante, pois ela se queixava, sempre, de que algo estava a
lhe faltar e que alguém mexera em suas coisas, perguntando desaforadamente,
a um e outro, quem foi que lhe roubara isso ou aquilo.
Depois do quarto principal de Mãe Dialunda, seguiam mais dois outros
quartos ocupados pelos filhos e netos, especialmente os que tinham vida conjugal e que estivessem vivendo na casa da mãe. Quando caia a noite, os espaços internos da casa costumavam sofrer redefinições do uso diurno para
servir de acomodação de descanso e dormida. Os quartos onde dormiam várias pessoas, apesar de serem espaços exíguos, não podem ser considerados,
necessariamente, espaços de promiscuidade como muitos estudos de teor
acadêmico sugerem. Percebi que existiam regras implícitas para ocupá-los,
e que, paradoxalmente, supõem exclusividade e inviolabilidade de certos espaços considerados mais particulares (microespaços) ocupados por cada um,
como bem o indicavam, por exemplo, as preocupações e maiores cuidados das
matriarcas e das mulheres de modo geral, com a sexualidade de filhas e netas.
Uma cama ou sofá pode ser dividido por dois ou três indivíduos a depender
do tamanho e idade de cada um. Aqueles que não têm espaços nos quartos
devem se acomodar na sala, corredores ou cozinha, cujos espaços são realocados e redistribuídos, cabendo a cada um o próprio lugar. A rearrumação do
espaço da casa durante a noite punha em relevo, como também o observou
Marcelin Louis, a divisão sexual e geracional do espaço, princípios mais importantes que governam as relações da casa. Estes princípios também estão
presentes e operam durante o dia, mas de forma menos explícita neste período diurno. Como todos os espaços produzidos nas sociedades humanas,
a casa das mulheres 361
a ordem da casa corresponde, entre outros, aos princípios que governam as
relações entre gêneros e gerações. Assim, os quartos tendem a se associarem
mais ao feminino, à idade adulta e à conjugalidade; enquanto a sala, ao masculino, à infância e ao celibato, conforme apontado pelos estudos de Marcelin
(1996) e nas reflexões que teço a partir do meu trabalho de campo.
Nas casas que observei, o lugar de dormir das crianças menores nunca foi
na sala, e sim na cama ou quarto dos pais, mãe ou avós. Aos adolescentes e
solteiros é que cabia mais o lugar da sala. Vale sinalizar que tais negociações
dependiam muito da quantidade de pessoas e espaços disponíveis em cada
configuração doméstica. Entretanto, às mocinhas que entravam na puberdade ou que eram jovens e solteiras, sempre que possível e dependendo dos
principais dotes para o futuro matrimonial segundo critérios familiares detectados, era destinado espaço ao lado da avó na sua cama, longe do olhar e
desejo masculino sempre pronto a atentar contra seus jovens corpos desabrochando ou já definidos.
Os quartos secundários – quando existem – tendiam a se transformarem
no lugar onde se exerciam interações íntimas, lugares da conjugalidade
quando havia mais de uma união adulta na casa. A sala tendia a ser o lugar
privilegiado do celibato. As mulheres solteiras, quando dormiam na sala, ficavam, em geral, segundo descrições de Marcelin, mais próximas aos quartos
e cozinha, enquanto os homens tendiam a ficar mais próximos à porta de
entrada, num gesto e simbologia do papel masculino de protetor das casas e
intermediário com o mundo da rua. Os mais velhos ficavam nas camas e os
mais jovens no chão.
Mas havia na casa de Mãe Dialunda espaços específicos que não encontramos em outras residências. Até 1999, havia lá um espaço (quartinho) destinado apenas às panelas. Nesse espaço se depositava grande quantidade de
panelas (de todos os tamanhos, formas e materiais como latão, alumínio,
cobre, barro, louça, plástico etc.) penduradas nas paredes e empilhadas no
chão, uma em cima das outras. Nele eram também guardados objetos de rituais, velhas caldeiras e jogo de tigelas completas com pratos especiais para os
trabalhos de santo. Em 2003, este espaço destinado às panelas já não existia
como tal, e não havia mais o arsenal de utensílios de outros tempos, o qual
possivelmente fora reduzido – até vendido, como se costumava fazer em momentos mais críticos – depois de 2000, quando Mãe Dialunda, acometida
por doenças, deixou de descer ao Abrigo e começou a deixar de oferecer o
362 maria gabriela hita
caruru de outubro em que incorporava seus santos e caboclos. Esse espaço,
quase defronte da cozinha foi reformado a partir de 1999, quando morreu a
irmã que morava na ilha de Itaparica, também mãe de santo. O quartinho foi
ampliado tomando parte do quintal a céu aberto e dividido em dois espaços
que formavam o quarto do santo (ver fotos do quarto de santo por volta de
2003 nas Figuras 11 e 12). Essa reforma visou a assentar seu orixá Oxum-Apará
que se encontrava no terreiro da irmã falecida, pois, anteriormente, na casa
não havia espaço apropriado para isso. Ela me explicou que necessitavam de
espaço fechado em cuja laje não circulassem pés humanos. Para uma visualização da planta da casa após as últimas reformas, ver na Figura 16, adiante, o
plano do primeiro pavimento da casa de Mãe Dialunda, em 2003.
Na foto do quarto de santo se observa sobre o fundo da parede um altar
cheio de objetos, santos (baixelas de barro e de louça, bacias e pratos que
compõem os assentamentos dos orixás), oferendas e uma pequena fonte de
água milagrosa no chão, em louça branca e azul clara, que foi naturalmente
escurecendo com o limo, tempo e mistura de ervas para esse fim, certamente.
Na entrada do quarto localizava-se a mesa de jogar búzios, que em 1997, era
improvisada na casa de cima, numa saleta interna de acesso aos quartos do
segundo pavimento, onde então o filho Juruna e nora dormiam.
No lado oposto ao quintal dos fundos, pelo hall de entrada da casa e acesso
à escada da outra casa, na época final da pesquisa havia um pequeno espaço
onde, em um primeiro momento, interpretei ser um simples depósito de lixo,
mas que com o tempo fui informada tratar-se do quarto de Exu, ou do diabo,
como era traduzido por alguns dos netos que tentavam fazer a conexão com
o mundo de religião católica. Era um pequeno depósito ou dispensa, de no
máximo 60 cm de altura, de cimento e com portinha de metal. No espaço,
Mãe Dialunda depositava temporariamente ervas ou plantas usadas nas limpezas de corpo dos clientes ou outros materiais utilizados em algum trabalho
de santo, e que posteriormente teriam outro destino (como bozós de encruzilhadas, oferendas em terreiros, etc.).
a casa das mulheres 363
11.
12.
Figura 11. Quarto de santo de Mãe Dilaunda com seus orixás. Foto: Maria Gabriela Hita.
Figura 12. Mesa de jogar búzios, no quarto de santo, em 2003. Foto: Maria Gabriela Hita.
364 maria gabriela hita
A casa, segundo Louis Marcelin (1996), está no centro de um sistema de
representações que é necessário estudar e explorar para determinar-lhe as
implicações na constituição das ideias de domesticidade, de família e parentesco. Para destacar desse sistema de representações o conteúdo social do
fato social total 9 da casa, diz ele, é preciso tomar como objeto de análise o
processo que leva a sua construção e concretização; isto é, faz-se necessário
compreender as determinações, os códigos de conduta aos quais obedece o
processo de construção da casa, identificar-lhe a natureza dos recursos que
esse processo mobiliza e, finalmente, resgatar a implicação na produção da
experiência familiar cotidiana. Instigados pela pergunta Como você construiu
a sua casa?, os informantes expunham um conjunto de temas, indo dos circuitos de troca na vizinhança aos sacrifícios e investimentos pessoais e familiares, passando por rivalidades e conflitos familiares, negociações matrimoniais, produção das redes de parentesco, o nome de família, o mito familiar,
etc.10 (MARCELIN, 1996).
CASA DE MÃE DIALUNDA
p
Breve história da casa com suas principais
transformações espaciais
Mãe Dialunda vivia com seu Gilberto e filhos na entrada ao bairro, onde fica
o Beco da Cultura e localizavam-se três escolas, no período anterior ao de
minhas visitas a estas famílias. Eles teriam ido morar na casa que descrevo,
em região mais interna do bairro, por volta de 1960. Nela nasceram muitos
dos netos e bisnetos, alguns deles trazidos ao mundo por Dona Cida parteira.
A planta original dessa casa, segundo contam, era muito próxima à descrição que fiz anteriormente. Mas a família não chegou a fazer uso do espaço
9
No sentido dado ao termo em Durkheim (2003, 2007) e Mauss (1988).
10
Variedade de temas observada nas narrativas das duas famílias.
a casa das mulheres 365
nessas condições inicialmente, pois antes de morar, a casa foi completamente reformada. Dialunda decidiu destruir as divisões do primeiro pavimento,
e construir um novo pavimento na laje. Dessa maneira, a sala original fora
transformada em grande salão (barracão, dizia ela), utilizado para sessões de
Candomblé e aulas de capoeira. Posteriormente, abandonou este projeto religioso, pelo excesso de trabalho exigido, desgaste resultante destas obrigações
e problemas familiares. No segundo pavimento, conectado por uma escada
interna saindo de quarto próximo à cozinha, foram construídos quartos com
área comum de conexão (ver planta da casa nessa primeira fase nas Figuras
13 e 14). Nessa reforma, como em outras, observou-se a preocupação de Mãe
Dialunda em resgatar a tradição, coerente com sua postura de mãe de santo,
procurando respeitar o padrão convencional de construção, a fim de melhor
harmonizar as energias da casa com o mundo do sagrado e o desejo dos orixás. Sobre a distribuição interna dos moradores na casa, antes da chegada de
Dalva, quando todos dormiam no pavimento superior, conta um neto:
JC: Eu cheguei a dormir ali também [com irmãos e primas]. Mas, às vezes,
era muito complicado, né? Porque eu mijava na cama. Aí eu tinha que
dormir aqui, no chão.11 Até os oito anos mijava. Eu acordava muito cedo,
4:30, 5h, botava a roupa no sol, ficava esperando abrir os canais da televisão. O vício de TV era muito grande! Ficava brincando com os irmãos
e fechava os canais junto comigo. O que é sala hoje, era o quarto de
Dialunda. Ela dormia só.
MG: Vocês não dormiam com ela?
P: É! Exatamente. De vez em quando dormíamos com ela, na cama
dela. Até uns 12 anos, dormíamos com ela, depois fomos tomando
vergonha na cara e não mais. [...] Depois veio Dalva, quando começou a
namorar Juruna, boa parte da minha infância. Teve tempo que chegou
a morar só eu, vó, meus dois irmãos e Juruna. Aí, então, vó só descia
duas vezes na semana, fazer venda. A gente fazia um monte de coisa,
lavava pratos, a roupa. Tinha vezes que ela não deixava, mas tinha vezes
que ela não podia, né? A gente fazia mesmo.
MG: E tinha muita briga sem ela por perto?
11
Ele se referia à salinha onde fizemos a entrevista no segundo andar, e onde dormia, na época,
Kely, filha primogênita de Juruna e Dalva.
366 maria gabriela hita
JC: A gente não brigava, o mais incrível, né? Porque hoje é difícil, é
muita confusão. Sempre há uma confusão.12
( João Carlos, neto criado por Dialunda, 25/7/99).
Naquela época, havia, no segundo pavimento, três quartos de dormir e
dois espaços menores (o de roupas e o das panelas) e uma pequena saleta
ou corredor conectando todos. Os filhos de Dialunda dormiam no primeiro
à esquerda a partir da escada interna; os netos no quarto do meio (correspondente em 1998 ao quarto de Dalva e seus filhos menores) e o do fundo
e maior era o quarto de Mãe Dialunda (onde ficaria a sala, em fase de reforma posterior). Este quarto da matriarca, que ficava no primeiro pavimento, tinha uma bela vista da frente da porta de entrada da rua ao lar, no
térreo. Ao lado do quarto de Mãe Dialunda no passado, ficava um quartinho
(espaço que na fase final da pesquisa, por volta de 2003, se transformou em
parte do acesso ao segundo pavimento, conectado por uma escada externa
independente que seria construída depois), denominado o quarto das roupas,
onde Mãe Dialunda guardava trajes de Candomblé, panos e toalhas rendadas
brancas. Muitas das suas rendas preferidas, ela mandava uma costureira
fazer, cada uma mais bela que a outra. Perto do quarto dos filhos, onde hoje é
o banheiro, havia o quartinho onde guardava panelas, frigideiras, vasilhas de
barro, louças e todo o arsenal que precisa para trabalhos e comidas de santo.
Com a reestruturação do espaço interno, a partir de 1990, passaram a
existir duas casas relativamente independentes: a do filho e nora na laje e
a de Dialunda, onde residia com os netos, embaixo (ver Figuras 15 e 16). O
jardim da frente perdeu espaço para dar lugar a uma escada externa para o
segundo pavimento, com entrada direta pela atual sala (ou antigo quarto de
Mãe Dialunda), transformando-se o quarto das roupas em hall de entrada.
Nesse pavimento superior ocorreram poucas reformas. O closet de roupa
desaparece para dar espaço à entrada e porta da casa. O desaparecimento
da escada interna, na parte de cima, ampliou o espaço da saleta e permitiu a
construção de uma pequena cozinha. O antigo quarto de panelas foi transformado em banheiro. Fez-se ainda uma pequena varanda aberta para o
pátio dos fundos.
12
Para comparar as mudanças, de fase posterior a esta, ver Figuras 15 e 16
a casa das mulheres 367
Figura 13. Projeto original do pavimento inferior da casa de Mãe Dialunda – por volta de 1960.
368 maria gabriela hita
Figura 14. Projeto original do pavimento superior da casa de Mãe Dialunda – por volta de 1960.
a casa das mulheres 369
Figura 15. Pavimento inferior da casa de Mãe Dialunda a partir da década de 1990.
370 maria gabriela hita
Figura 16. Pavimento superior da casa de Mãe Dialunda a partir da década de 1990: morada de
Juruna e Dalva.
Telha de fibrocimento
QUINTAL
VARANDA
BANHEIRO
COZINHA
Guarda Roupas
QUARTO
(Ibijara)
SALA
QUARTO
(Lua e pequenos)
SALA
PÁTIO DE ACESSO
VARANDA
S
CALÇADA
a casa das mulheres 371
No pavimento inferior, o grande salão foi diminuído. Foram construídos,
do lado esquerdo, novamente, os quartos antes destruídos, o primeiro de
Mãe Dialunda, o segundo de netos ou filhos. O antigo quarto de santo, que
alguma vez fora de dormir, e em 1997 quarto das panelas, foi posteriormente
reconstruído: um novo quarto de santo foi erguido na área liberada pelo desaparecimento da escada interna. Na primeira etapa, a área desse quarto de
santo ocupava a parte inferior da laje. Na segunda etapa de expansão, após
a morte de Juçara, mãe de santo na ilha, foi construída parte do quarto de
santo na área do pátio aberto, com teto, mas sem laje superior habitada, reduzindo-se, assim, o pátio dos fundos (ver Figura 15).
O uso, vida e hábitos da casa – reflexos das relações internas desta rede de
parentesco – pareciam ter resistido a institucionalização da divisão em duas
residências. Ela nunca deixou de operar como única casa, como se a mistura
das famílias e uso das casas voltassem a reconfigurar a(s) casa(s) no modelo
antigo, como espaço único, ao menos durante o dia, quando a casa de baixo
era a que permanecia em movimento e habitada, e apenas durante a noite se
dando o rearranjo projetado na utilização dos espaços. Dalva, Juruna e seus
filhos dormiam na casa de cima e Dialunda, outros filhos e netos maiores
na de baixo, cada qual em espaço delimitado. Entretanto, o uso da casa de
cima por Mãe Dialunda continuou sendo frequente, como dona da casa que
sempre foi. Também porque usava esse espaço para botar mesa, como um
espaço mais resguardado e arrumado, onde costumava receber clientes para
a consulta de búzios, certas limpezas de corpo ou trabalhos do Candomblé,
longe do barulho e olhar de vizinhos e netos curiosos. Trabalhos nos quais
era sempre apoiada pela nora Dalva, fiel servidora e principal seguidora de
preceitos, a única com permissão de entrar nos quartos do santo para a limpeza ou preparativos prévios de certos trabalhos.
JC: A princípio Dalva morava na casa da tia dela aqui embaixo, você
sabe onde é, né? Ela vinha, namorava ele e voltava. Até o primeiro filho. Ela ficou lá por uns tempos. Até que teve uma confusão lá com a tia
dela. Eles não aceitaram que ela saísse de lá para cá, vindo. Até que ela
escolheu vir para aqui.
MG: Ela mesma escolheu?
JC: Ela escolheu. Acabou vindo. E ficou morando conosco desde 1990.
É! Aí foi quando vó pensou em fazer essa divisão mesmo, tirando as
372 maria gabriela hita
escadas internas, colocando as externas, dividindo as famílias. Dalva
cá e nós lá embaixo. Às vezes nem parece que seja assim! E aí, ela
construiu aqueles quartos em parte da sala.
( João Carlos, neto criado por Dialunda, 25/7/99).
Na casa de Dialunda, diferente do observado na casa de D. Cida, o jogo de
relações e negociações da parentela no uso, controle e acesso aos diferentes
cômodos da casa ocorre de modo sutilmente diferente: de duas residências
aparentemente distintas operava de fato apenas uma, obscurecendo a sensação da reforma ter realmente objetivado separar a casa original em duas
novas residências (e unidades familiares) distintas.13 Como a casa de cima
(Dalva, Juruna e filhos) continuou sendo dependente da de Mãe Dialunda,
tal autonomia nunca ocorreu de fato; o modo de operar descrito mostra que
continuou funcionando como sendo apenas a casa de Mãe Dialunda, onde
ela decidia e controlava tudo, o que, por sua vez, gerava tensões entre relações de parentesco e afinidade.
Ao se observar a planta atual da casa – que modificou o lugar de acesso
ao segundo pavimento – vê-se que os quartos em cima se encontram agora
do lado direito e não mais do lado esquerdo, como em modelo convencional
descrito anteriormente. Antes da reforma, quando Dialunda dormia lá, o
acesso para quem entrava nesse pavimento era por uma escada interna perto
da cozinha e fundo da casa do primeiro, ficando os quartos posicionados no
segundo pavimento, desde esta perspectiva, à esquerda e o principal deles
no fundo, com vista para a rua da frente da casa. Quando Dalva foi incorporada, em 1990, isto se inverteu, isolou-se o acesso interno pelo fundo ao
segundo pavimento da casa mediante a construção de uma nova escada e
porta de entrada pela frente, separada da entrada de casa de Baixo, indicando
certo desejo de criar maior autonomia entre as duas casas, ao menos intencionalmente projetado. Esta reforma sacrificou parte do jardim dianteiro e
o limoeiro protetor da casa, dando-lhe as configurações registradas nas últimas plantas da casa indicadas nas Figuras 15 e 16. Essa reforma que modificou a entrada da casa no pavimento superior passou a deixar os quartos do
lado direito de quem entra, modificando, talvez, com isso – a partir de uma
cosmovisão popular – o fluxo energético anterior, como explicava Dialunda,
13
Na residência de D. Cida tive a sensação oposta. De uma única casa, com espaços internos indiferenciados a primeira vista, ter ido logrando, com esforço da imaginação (pois visualmente parecia
tratar-se de uma só casa), se transformar em novos e separados domicílios ao longo dos anos.
a casa das mulheres 373
ao atribuir a essa decisão o principal motivo daquela casa ter passado a funcionar mal, depois da reforma.
A casa de Mãe Dialunda modificou seu visual e estrutura, como descrito,
ao longo dos anos, acompanhando as distintas mudanças do grupo doméstico, mas essa não foi uma reestruturação espacial tão marcada como a que
ocorre no grupo de D. Cida. É mais fácil acompanhar e ver na casa de Mãe
Dialunda o que teria sido a estrutura original, do que naquela. Entretanto, o
que na casa de Dialunda se destacou mais visivelmente foi a mobilização de
pessoas, filhos, netos, bisnetos e estranhos. As idas e vindas das pessoas fixas
ou não, e a constante chegada de pessoas por temporadas é muito maior
do que na outra família. Muito se deve às atividades religiosas da matriarca
desta família que a colocam em uma situação diferenciada, de maior sociabilidade e comunicação com o mundo exterior.
Circulação de pessoas no uso da casa:
idas e vindas de moradores
A mobilidade das pessoas observada ao interior das casas no contexto estudado era muito intensa. Movimentos de idas e vindas eram constantes
e dependiam das distintas conjunturas e relações de aliança ou conflitos
entre a parentela: saindo-se da casa da mãe para uma própria, para a de
outro parente, vizinho ou conhecido, geralmente retornando à casa-mãe
tempos depois. Mobilidade de pessoas que foi constante ao longo do tempo
e das distintas gerações. A densificação das relações, com novos nascimentos, produzia transformações na organização familiar que exigia reconfigurações espaciais das casas e, não raro, aumentavam os conflitos. Contudo,
o movimento de idas e vindas pareceu ser mais acirrado entre membros da
casa que pareciam não ter o direito ganho ou garantido sobre o terreno,
como se ilustrará adiante. Os netos ou pessoas que estavam de passagem e
não seriam herdeiros em vida da matriarca eram aquelas que mais circulavam entre diferentes casas da parentela ou de suas redes. Este trânsito indica que não tinham o mesmo status ou possibilidades que os melhor posicionados ou considerados nesta rede de parentesco.
A circulação de pessoas na casa de Mãe Dialunda foi constante, bem mais
acentuada e intensa do que a detectada naqueles anos na de D. Cida. Como
374 maria gabriela hita
no outro grupo, percebi haver uso similar do espaço que era reacomodado a
depender das necessidades de cada nova conjuntura. Cada quarto, sala, sofá,
cama eram divididos e redistribuídos entre os mais distintos integrantes.
A chegada e partida constante de indivíduos, essa intensa mobilidade pela
constante circulação humana, acompanhava as distintas conjunturas vitais,
isto é, ao momento específico do curso de vida de cada indivíduo. Isto podia
ocorrer pela aproximação à outra parte da parentela – respectivas mães ou
pais no caso de netos, e também filhos, criados por Dialunda – por novas
uniões, separações, trabalhos, viagens, e principalmente, quando brigavam
com a matriarca ou com outros membros da casa. Relatos a seguir ilustram
parte dessa movimentação e alguns contextos em que ocorriam:
João Carlos,14 ele é todo queto. Tá fazendo uns cursos. Ele brigava muito com vó. Chegou a morar com a mãe alguma vez. Depois voltou.
Brigavam porque ele é preguiçoso mesmo e vó não gosta de gente preguiçosa. E porque uma vez teve um problema que os meninos na rua
diziam que pegavam ele, que ele era gay, né? Ele ia levar a massa na
Amaralina, para o acarajé. E que ele entrava nos beco para os menino pegar15 ele... e deu uma confusão enorme. Acabaram descobrindo
que era verdade. E aí, ficou todo mundo em cima dele por causa disso
que aconteceu. Um fala, outro fala, queriam bater nele... tudo. Aí ele
se mandou, foi para a casa da mãe, mas depois voltou novamente.
Agora foi de vez.
(Célia, neta criada, fala do primo, também criado por Dialunda,
26/01/99).
No trecho que segue, Branca, irmã de Célia, comenta momentos da vida
em que deixou a casa de Dialunda, na qual viveu a maior parte do tempo até
engravidar de Priscila:
14
João Carlos é o neto autodeclarado gay, criado por Dialunda, filho de Carlão e Crispina. Carlão é
o filho mais velho da terceira união de Dialunda com seu Gilberto. Esse filho morou na casa de
Dialunda quando unido a Crispina (como o faziam naquela fase da pesquisa Juruna e Dalva) até
que se separou, para ir morar com nova mulher, em outra casa que construíram. Ver a posição
destes filhos e neto no genograma deste sub-grupo familiar, no apêndice D.
15
Ver o estudo realizado no mesmo bairro de Suely Messeder (2009): Ser ou não ser: uma questão
para pegar a masculinidade. Messeder diferencia o termo pegar do de ficar, como terminologia
mais popular e paralela à de ficar, que se refere ao coito em relações sexuais casuais e sem vinculo estável. Ver também sobre significados do ficar em Salvador, pesquisa de Andrade, 2012.
a casa das mulheres 375
B: Minha mãe nos deixou aqui... e vó foi criando a gente... e fiquei aqui
até quando eu tinha 20 anos. Quando eu fiz 20 anos, eu fui embora
pra casa da minha mãe. Não deu certo por causa do meu padrasto. Eu
não me relacionava bem com ele. Ele, também, deu para se apaixonar
também por mim. E a gente ficava sofrendo. Ele ficava maltratando
ela. Ele falava as coisas que queria e tentava. E fazia minha mãe sofrer
que ele ficava passando as coisas na cara dela, dizendo a ela que ela me
botou lá dentro porque quis. Ficava oferecendo dinheiro a ela, pra ela
fazer minha cabeça pra eu ir pra cama com ele. Aí, quando eu descobri isso aí, desse dinheiro aí, eu saí de casa.
MG: E o que sua mãe fazia?
B: Ela tentava! Eu não sei se ela tinha medo dele ou se é porque ela gosta
dele, e não quer perder ele... Ai eu saí de casa, que ela tava sofrendo, né?
E fui morar com uma amiga, por uns tempos. Depois fui na casa de
uma tia, a filha mais velha de minha Avó.
(Branca, 30/01/00).
Quando sua neta de consideração (não de sangue), Kelly, uma garota branca
ou morena clara, filha de uma grande amiga e mãe de santo em Vitória do
Espírito Santo, passou uma temporada na casa de Mãe Dialunda, dormia na
cama da matriarca. Kelly era tratada e chamada como minha princesa, por
Mãe Dialunda, era sua hóspede de honra e não tratada como integrante do
grupo, como o eram muitos outros estranhos (outsiders) que também viveram
na casa. Dialunda oferecia-lhe água de coco, suco, todo tipo de dengo em comidas e afeto, sem que nenhuma obrigação ou serviço lhe fosse designado.
Kelly se hospedou diversas vezes nesta casa antes e durante minha observação. Quando a conheci, refugiava-se na Bahia, com Dialunda, fugindo de
um namorado em Vitória (que ameaçou matá-la) e buscava se desintoxicar do
vício da droga, temas que Mãe Dialunda jamais falava e se irritava quando se
fazia alguma alusão à respeitabilidade da sua neta de consideração. Jamais Mãe
Dialunda falou do assunto, quem me contavam estes detalhes eram os netos.
Em dezembro de 1999, Mãe Dialunda retribuiu-lhe a consideração, indo
ao casamento de Kelly em Vitória, quando, longe de casa, teve de ser hospitalizada por problema de pressão alta ao receber o trágico telefonema,
de Salvador, explicando-lhe a recente emboscada e assassinato do neto
Maycon. O policial e amigo lhe ligava para informá-la que o assassinato nada
tivera a ver com a polícia. Muitos jovens do bairro envolvidos com drogas
376 maria gabriela hita
também foram posteriormente dar as condolências à matriarca e explicarlhe, também, que não estavam envolvidos na morte do neto. Chumbinho,
como era apelidado esse neto que estava sendo perseguido no bairro e pela
polícia há mais de um ano, motivo pelo qual fugiu para Itaparica. Tudo indica que sua morte era de certo modo esperada. Um mês após seu assassinato, Mãe Dialunda declarou com satisfação e ar de ter sido vingada, usando
a expressão Graças a Deus, que o assassino do seu neto, um ex-colega de gang,
houvera sido igualmente assassinado.
Um ano antes de sua emboscada, Maycon conseguiu fugir do Nordeste
protegido pela saia de baiana da avó no Abrigo, onde se escondeu antes de o
enviarem de táxi para a ilha. Os jovens assassinados, em ambos os grupos familiares, pelo que observei do envolvimento com dívidas de drogas e tráfico
de crack, pareciam estar destinados a morrer; era do conhecimento geral a
inevitabilidade de tais mortes, que sabiam poder vir a acontecer a qualquer
momento. Por isso, quando Chumbinho voltou ao Nordeste, um ano depois,
contou sua irmã, foi assassinado com quatro tiros. No momento em que ele
foi emboscado, ela assistia à novela das oito, e ao ouvir uns tiros na rua de
trás, imaginou logo que podia ser ele. Esta dura realidade vivenciada pela
parentela de Dialunda (e também de D. Cida), primeiro com Diogo e depois
com Maycon, assim como com as prisões de Bela e Margarete (ou Margo,
como era também chamada),16 é um sofrimento constante na experiências
destas famílias. Até com estranhos considerados membros da casa, viveram
situações similares. Sobre a presença e circulação de estranhos ao longo dos
anos na casa de Mãe Dialunda, os netos relataram:
Na casa da minha avó sempre teve espaço e relacionamento com um
estranho. Podia ter 12 parentes, mas sempre tinha que ter um estranho. Esses meninos sem abrigo... teve um que morreu, teve uns dois anos.
Rosenildo. Veio com 12 e saiu com 21, ia e voltava... Chamávamos ele
de Grego. [...] Ele não tinha como sair dessa vida [marginalidade]. Mas,
uma vez, Vó deu uma oportunidade a ele, que por ele ter desperdiçado, foi que ele morreu. Foi trágico, porque ele traçou tudo, já tinha dois
trabalhos, carteira assinada. Tudo! Ele já era... quase uma pessoa,
socialmente falando.
( João Carlos, neto criado, 02/05/01).
16
Ver no genograma do Apêndice E, a posição destas filhas de primeiros parceiros de Dialunda.
a casa das mulheres 377
Um juiz do Espírito Santo, amigo da avó, ofereceu trabalho a Grego por
lá, mas ele voltou a Salvador atrás da namorada, retornou e foi assassinado
por um ex-companheiro de prisão. Sobre o tratamento que Grego recebeu
quando morou com Mãe Dialunda, João Carlos contou:
Grego era legal, super humilde. Ele tinha o vício da maconha. E minha
avó nunca gostou disso na família, se aborrecia quando percebia, e aí
ele se afastava... preferia se afastar lá de casa. Era como se fosse mais
um filho, ganhava tudo que nós ganhávamos... roupa, comida. Mas
lá todos trabalhavam, sempre trabalhavam. Todos os membros da
família, só os pequenos que não. Era o trabalho familiar mesmo, a
venda, comprar tudo. Ele ajudava, lavava os pratos assim. Outros tinha
função de jogar o lixo fora, que o lixo era distante, tinha que levar no
carro de mão até algum lugar. Limpar a casa. Essas coisas domésticas
mesmo. Era esse. Não é porque ele era de fora que tinha diferença assim
dos outros, não. Era tratado super igual.
( João Carlos, neto criado, 02/05/01).
Esse movimento de idas e vindas aconteceu, em maior ou menor grau,
com todos os integrantes do seu lar: filhos, netos e bisnetos – com exceção
do filho caçula, Juruna, que, até 2003, não tinha deixado a casa de Dialunda.
Mulheres que no passado habitaram a casa e nunca mais voltaram depois
da briga com a matriarca foram as ex-noras de filhos mais velhos. Similar à
relação observada entre Dalva e Dialunda, a dessas ex-noras pode ter sido
similar às relações desenvolvidas por Dialunda com Dalva, marcada pela
mútua dependência e exploração do trabalho. Uma vez quebrada a reciprocidade entre elas, animosidades e conflitos tenderam a dominar, com relatos de brigas e disputas pela criação de netos e respectivos filhos. Ver relato
de neto João Carlos sobre a relação de sua mãe e primeira parceira do filho
Carlos, com Dialunda:
J.C.: Minha mãe [Crispina] foi uma dessas pessoas que moraram lá. Vó
costuma ser mais visitada do que ela visitar os outros. Minha mãe se relacionou com meu pai e começou a ir mais lá, ficou se enquadrando nas
funções da casa e minha mãe acabou ficando lá. E depois de ter uns dois
ou três filhos, ele, que era ‘meio promíscuo’, perdão pela palavra, [pois]
ele pegava várias mulheres mesmo!... Tanto que ele teve filhos com outras mulheres, teve filhos até da mesma idade – que ele teve relacionamento no mesmo período, né? E nisso, minha mãe brigava muito com
essas outras mulheres, por causa dele. E meu pai também, gostava muito
378 maria gabriela hita
de maltratar ela, batia nela. Eu lembro de cenas que... cenas da minha
vida e do meu irmão que também estava lá... Quando as coisas ficaram
realmente... pegaram, ficaram feias mesmo... entre as duas famílias, foi
por causa da minha outra avó, que ela morreu. E quando um pai de santo que mora ali embaixo
MG: Xisfredo?
J.C.: Exatamente! Ele inventou um fuxico entre minha vó e minha mãe.
Ele disse que minha vó tinha feito feitiçaria. E por seu lado, minha vó
soube que minha mãe estava fazendo feitiço para ela, para se vingar. [...]
João Carlos ainda conta como, anos depois, sua mãe e avó brigaram pela
guarda de sua irmã Andreia, que naquela época foi passar um tempo na casa
de Dialunda:
Depois disso, minha irmã [Andréia] veio ficar uns tempos com minha vó e foi quando pai a proibiu de sair de lá. Ela sempre morou com
mãe. Quando minha mãe veio pegar, para que ela fosse devolvida,
meu pai não quis. Minha mãe fez uma zuada lá. Chamou a atenção da rua inteira e acabou levando ela à força. Ela tentou arrombar
a casa. Todos dentro tentando evitar. Isso foi em 1993. Ela dizia que
queria matar todos os filhos dela, se não podia ter nenhum... que ia
matar! Aí foi que entregaram minha irmã e ela foi embora, tal. Aí, ela
foi pro seu canto e não quis mais conversa nem com meu pai, nem
minha avó.
( João Carlos, neto criado, 02/05/01).
Novas casas no tempo: estabelecidos e excluídos
Mãe Dialunda, como D. Cida parteira, constituiu patrimônio que fora distribuído gradativamente entre alguns dos filhos. Teve vários terrenos na ilha
de Itaparica, doados a filhos e netos, e ajudou de diversas formas a parentela na construção de novas casas. A aquisição dessas posses foi possível, em
parte, porque ambas as mulheres contaram no passado com uma melhor situação econômica e elevado prestígio na comunidade pela respeitabilidade
de suas profissões e/ou de seus maridos ou companheiros, permitindo-lhes,
ainda que a preços módicos e uso de outras estratégias populares, comprar
a casa das mulheres 379
ou adquirir terrenos em outros locais ou mesmo outras cidades. Um sinal
do prestígio da Casa de Mãe Dialunda eram as festas de família e comidas
que oferecia. Outro elemento que sinaliza o prestígio desta casa foi o fato de
poder arcar com a criação de filhos de outrem, consanguíneos e estranhos.
É conhecido o processo de colonização de centros urbanos pelos pobres,
como resultado do surgimento de novas invasões de terrenos vazios por populações rurais ou sem teto. Mas exemplos como os destas duas famílias extensas ilustram bem dinâmicas de como este processo tem lugar, e de quais
grupos têm maiores chances que outros, nesta conquista, por contar com
maiores recursos humanos, econômicos ou pelo momento de ciclo vital no
qual se encontram: como o de poder ocupar mais de um terreno e expandir
seu acesso a outros terrenos da cidade. O fato de que a reprodução das famílias tome lugar em ambientes urbanos diversificados aponta como parentes
podem permanecer juntos, podendo se separar ou não, residencialmente, na
geração posterior e voltar a se reunir em novas conjunturas, a depender dos
recursos que são mobilizados a cada momento. Isto varia em cada lar a depender do tipo de relações internas que se desenvolvem entre pais, filhos,
irmãos e demais aparentados ou vizinhos. Famílias extensas como estas têm
maiores recursos e necessidades de se expandir, do que famílias menores.
O processo na família de D. Cida é muito similar ao de Mãe Dialunda.
Observou-se o mesmo ciclo e movimento de transformação da configuração
da casa-mãe única para a de muitas, expressando-se nas sucessivas transformações estruturais o próprio curso vital deste grupo doméstico. Isto é,
aquela passagem e transformação, ao longo do tempo, de uma casa (e uma
cozinha, onde todos comiam da mesma panela) para diversas novas residências independentes da casa-mãe ou matriz.
No caso da saga de Mãe Dialunda, a transição e transformações da casa é
mais perceptível em um sentido e bem menos em outro. O processo foi mais
perceptível porque as novas casas da sua rede familiar ocuparam, de modo
geral, espaços diversos e distanciados daquele da matriarca, indicando clara
e indiscutivelmente a formação dos novos lares. Esta foi a situação das casas
de filhos e netas que ela ajudou a construir, doando-lhes a casa, o terreno,
dinheiro, material para a construção ou todo tipo de apoio necessário nestes
momentos de consolidação desse importante projeto na vida dos pobres: a
importância da casa na formação de novo núcleo familiar. O processo de
transformação foi menos perceptível quando se analisam transformações espaciais da própria residência que, se por um lado foi dividida em duas, para
380 maria gabriela hita
abrigar e separar duas famílias em princípio, por outro lado, nunca operou
como tal. Juruna e Dalva não conseguiram a independência do próprio núcleo familiar do de Dialunda; ao mesmo tempo em que, tampouco, Mãe
Dialunda parecia facilitar muito essa possibilidade, se apropriando do trabalho da nora, cuja família ela sustentava. Como dito, Dialunda fazia uso
da casa de cima como se fosse própria, pois era local propício para trabalhos
com clientela que requeriam maior recato, silêncio e ordem, longe do caos e
gritos produzido pelos netos pequenos.
Mãe Dialunda ajudou filhos e as duas netas que criou na aquisição e independência das respectivas novas casas. Mas também existem nesta família,
como se verá depois, aqueles que foram excluídos da partilha. Como não há
fartura de recursos, é preciso adotar critérios para distribuição deste bem na
definição dos beneficiários. Entretanto, procurou dar a todos instrução, considerada por ela seu principal legado. Ela disse:
Eu não estudei, porque meus pais não tiveram condições de me botar
para estudar. E meus filho estudaram, [se eles] não são formado [é]
porque eles não quiseram! É a única diferença! Eu trabalhei para
isso, e continuo até hoje.
(Mãe Dialunda, 22/02/99).
Dos filhos mais velhos e que não moravam com ela quando a conheci, João
– único filho do segundo e fugaz parceiro – foi aquele quem mais estudou.17
A este filho afirmara não haver ajudado na construção da casa por que não
precisou, já que ele mesmo a fez, com recursos proveniente do seu salário na
Petrobras. Segundo a neta Célia, a mulher de João sente-se responsável pela
construção da casa em que moram, entretanto, esquece que na fase em que
as paredes estavam sendo levantadas, todo o novo grupo familiar de João se
mudou para a casa de Dialunda, permanecendo lá durante vários meses, comendo da panela da casa de Dialunda e economizando para a construção da
própria residência.
Carlos foi dos filhos de Dialunda e Gilberto (junto a Juruna e Carlinhos,
o filho de criação), o que permaneceu mais tempo na casa de Mãe Dialunda,
chegando inclusive, a viver na casa com sua primeira mulher (Crispina) e
filhos que teve com essa companheira, três dos quais continuaram a ser
criados por Mãe Dialunda, quando ele foi morar com a atual companheira.
17
No Apêndice E, o genograma dos filhos mais velhos de Dialunda que já não moravam na casa
quando a conheci.
a casa das mulheres 381
Carlos (Carlão) e Crispina se separaram e ela saiu da casa de Mãe Dialunda
bem antes de eu entrar em contato com esta Casa. A matriarca considera
haver colaborado menos na construção da casa de Carlão, mas deu-lhe
parte de um terreno na ilha de Itaparica, dividido entre ele e a filha Bela. Ele
também se beneficiou de outros tipos de apoios, em alimentos, lugar na casa
em determinadas conjunturas, etc. Além disso, Dialunda criou três dos seus
filhos. Carlos era o filho homenageado nos carurus de São Cosme e Damião
que Mãe Dialunda preparava todo mês de Outubro, no dia do aniversário
dele. Ele era Ogã em outro terreiro. E era comum encontrá-lo na casa de
Dialunda, de visita, comendo, tomando café e conversando com a mãe sobre
assuntos de Candomblé.
Mãe Dialunda afirmava haver doado uma casa, na Boca do Rio, a Bela,
sua terceira filha, oriunda da união com Deoclesiano. Este fato antecedeu à
prisão de Bela, juntamente com seu segundo companheiro Valdo, por roubo
à mão armada. Bela então abandonou a casa, terminando por perdê-la e posteriormente se mudou com o atual parceiro para a ilha de Itaparica, onde
juntos construíram uma ampla e confortável casa, em terreno também cedido por Mãe Dialunda. Além disso, Mãe Dialunda criou as duas filhas da
primeira união de Bela. Estas netas foram para Dialunda tratadas mais como
dádiva do que como fardo, eram suas prediletas. A matriarca sempre pediu
e decidiu quando os netos ficariam com ela, brigando pela guarda, ou cortando relações com respectivas mães por causa deles. Certamente, ao assumir a criação dessas filhas de Bela, Mãe Dialunda buscava protegê-las do
novo parceiro de Bela, do qual ambas as meninas disseram ter sofrido intentos de abuso sexual. Célia relata o dia em que, quando ainda pequena, foi
abandonada pela mãe: ela saíra para morar com o atual companheiro. Célia
segue relatando o quanto considera a mãe infeliz nesse relacionamento. Esta
percepção se assemelhava à da irmã, Branca, quem se queixou anteriormente
dos intentos de estupro do padastro:
Quando ela [avó] chegou, ela [mãe] não tava mais! Eu tava chorando, segurei na saia dela, não teve jeito, ela se mandou! Eu acho que do meio
que ela tá, sei lá, que já estava dependente, que não quer mais se
livrar desse lugar. E hoje em dia eles ‘vivem’, sei lá, acho que ela não é
feliz porque ela tem aquela casa bonita, tem tudo, você precisa ver!
Dá gosto! Tudo bom! Mas eu não vejo que ela é feliz! Ela tem tudo,
382 maria gabriela hita
mas é uma pessoa meio prisioneira dele. Tanto assim que quando ela
vem aqui ela se solta, ela apronta! Só passa a noite na rua!
(Célia, 26/01/99).
Os dois filhos mais novos de Bela com esse parceiro, Valdo, moraram
também, por temporadas, na casa de Mãe Dialunda, indo e voltando de uma
casa a outra. Mas a estes outros netos ela não criou. Eles ilustram bem o processo das crianças em circulação descrito por Fonseca, cujo status difere da
criança ou adulto criado como mais um filho, uma pessoa mais permanente
ou parte mais fixa da casa (aonde todas estas diferenças – consanguinidade,
permanência, consideração, trajetórias – tem peso importante na definição
da posição ocupada por cada membro neste hierárquico mundo de relações
intra-domésticas e que variam a depender da conjuntura, consideração da
matriarca, situações particulares vivenciada por cada membro). Maycon, o
mais novo, foi violentamente assassinado em dezembro de 1999. Pelo que
contam Célia – meio irmã – e o primo João Carlos, foi por dívida de droga.
Sobre os irmãos, inclusive este perdido para o tráfico, Célia relata práticas de
quando ainda estava vivo:
C: Milena e Maycon, nem sei onde eles estão. As pessoas vê ele num lugar e falam com minha mãe que vê ele e tudo. Mas ele não está mais
morando perto, não.
MG: Onde ele está morando agora?
C: Lá em Itaparica. Antes, ele estava aqui nesse meio e acho que lá
também está nesse meio. Aqui tem um pessoal que comprou uma casa
lá perto, na ilha. Aí os colegas foram tudo pra lá e começaram a brigar
com o pessoal lá da ilha, aí disseram que iam chamar ‘fulano’ lá da área.
Quando foi ver, era ELE. Aí quando viu, todo mundo daqui conhece ele,
aí ele disse: ‘-não, deixe prá lá, eu conheço esse pessoal!’, aí conversou
e foram todos embora. Todo mundo lá respeita ele. Mas eu acho que é
porque... é barra pesada mesmo! Ele tem 18 anos! Em agosto faz 19!
MG: Ele saiu daqui perseguido, não foi?
C: Foi!
MG: Por quem?
a casa das mulheres 383
C: Os bandidos mesmos! Era bandido daqui. Eu acho que ele deve ter
comprado alguma droga e não pagou... porque tem um primo nosso, neto de vó, que morreu também por causa disso.
(Célia, 26/07/99).
Depois da morte de Maycon, o primo João Carlos relata como a casa de
Dialunda viveu essa trágica situação
Também foi meu primo que se tornou uma ameaça, lá.18 O Maycon, que
a polícia chegou a invadir lá para tentar achar arma e drogas. Lascaram
o sofá. Chegou a ser preso durante 15 dias, mas vó soltou... que ela
tem influência, né? Com esse Doutor, Eduardo, que era superintendente da Polícia Federal. Mas ele não quis se envolver muito por causa
disso, que ele era influência forte e não podia acobertar uma pessoa que
realmente estava errada. Mesmo assim, de certa forma foi conseguindo
as coisas. Teve que pagar fiança e ele foi solto. Poxa... depois da morte
dele, as ameaças acabaram porque a qualquer momento a polícia
podia entrar lá e machucar alguém. Ou a polícia ou os amigos dele.
Que uma vez, os amigos dele chegou do lado de fora, apontando a arma
para o lado de dentro, tentando atingir ele lá na copa. Você sabe, atravessa a sala, a primeira, a segunda, atravessa a cozinha, para depois
chegar na copa. Aí, ainda tem a saída dos quartos que dá de frente
para a porta. Era muito arriscado. Mas agora não tem mais ameaça.
Não tem mesmo.
( João Carlos, 02/05/01).
Em 2003, Bela, Valdo, Milena e Branca (e netos de Bela destas duas filhas
e novos parceiros), estavam novamente morando na casa de Mãe Dialunda,
instalados na casa de cima, onde dormia Dalva, no segundo pavimento.
Dalva comentou ter sido ela quem decidiu emprestá-la, já que estava novamente como solteira (Juruna tinha deixado a casa, para morar por uma
temporada com seu Gilberto, pai biológico dele) e desceu com seus filhos
ao pavimento inferior, junto a Dialunda. Esse foi um arranjo temporário
dos distintos grupos domésticos até que o grupo de Bela conseguisse construir ou comprar nova casa no Nordeste de Amaralina. Isto porque, afirmou
Dalva, nunca se sabe se amanhã não serei eu que precisarei comer da mão deles,
mostrando a força da nova posição que passou a ocupar na casa e a impor-
18
Na casa de Mãe Dialunda, indicando que João Carlos não estava mais morando nela nessa fase
em que o entrevistei, em 2001.
384 maria gabriela hita
tância da reciprocidade, do dar, receber e retribuir, como estratégia central
de sobrevivência ou viração no sentido dado ao termo por Telles (2011). Além
disso, este lógica, acima de tudo pode ser compreendida como um modo e
estilo de vida entre os pobres e um comportamento especialmente descrito
como característico em etnografias de grupos negros no Caribe e Estados
Unidos.19 Nessa nova fase da vida de Dalva, seu prestígio se consolidou por
ser a pessoa que passou a vender o acarajé da Casa de Dialunda no Abrigo
e ter passado a ser a responsável por trazer dinheiro para dentro da casa.
Mãe Dialunda continuava com os trabalhos de santo e com a venda em ocasiões especiais como festas encomendadas, indicando, com o afastamento do
abrigo, o início de sua aposentadoria.
Dos netos, Dialunda apoiou com material de construção e terrenos as
netas por ela criadas, filhas de Bela, depois de terem parido, se unido ou formado novos núcleos familiares com nascimentos de respectivos filhos. O caso
de Célia foi complicado no início, quando ela se opôs à vontade da avó, decidiu levar avante sua primeira gravidez e uniu-se a seguir ao rapaz por quem
havia se apaixonado. Foi expulsa de casa e perdeu a criança devido ao espancamento que sofreu por parte de Juruna e Carlão. Célia tinha 15 anos na época
e foi obrigada a circular por várias casas até chegar finalmente na que seria a
sua: primeiro foi para a ilha na casa da mãe, depois tentou a casa da sogra, até
passar a viver de aluguel, na casa que depois comprariam. Por meio do relato
as seguir é possível ver como foi tensa a estadia na casa da sogra e a força da
relação existente entre mães e filhos em vários casos:
C: Primeiro, com quatro meses de grávida, fui na casa da minha mãe.
Mas o marido dela ficava alegando a comida, e meu marido ia lá fim de
semana e ele não gostava.[...] aí fui morar na casa da minha sogra. Mas
a gente nunca se deu bem, porque ela tem ciúme dos filhos. Os outros nenhum trabalha e Robson sempre dava as coisas a ela. Mas depois
que arrumou família, que tinha que dividir, e ela queria tudo para ela [...]
Ele ficava do meu lado, que via que ela tava errada. E minha sogra falava todo dia, para ele alugar uma casa e me tirar de lá. Ela ali falando,
falando. Um dia, eu consegui esse quarto aqui. Vó me ajudava a pagar o
aluguel, no começo, depois nós ficamos pagando. Quando a gente veio
embora, a sogra começou a chorar.
19
O papel exercido por redes sociais é amplamente citado em estudos sobre famílias negras e na
lide da pobreza, em geral, como os já mencionados estudos de Raymond Smith (1996 [1956;
1973]), Edith Clark (1972), Carol Stack (1974), Martine Segalen (1981), entre outros.
a casa das mulheres 385
MG: Porque? Não foi ela que pediu para que vocês alugassem?
C: Porque ela queria que ele me colocasse num quarto, mas não
que ele viesse comigo! Aí, ela quis que a gente construísse uma casa
em cima da casa dela, enorme! Mas eu não quis!20 Eu não tinha planos
de construir aqui. Tanto que paguei sete anos aluguel. Ela pedindo para
fazer lá.
Aí, nós comprou aqui. Rachou com a comadre [vizinha], madrinha de
Erico [seu filho primogênito], o terreno. A parte de lá é maior, ela só aceitava se fosse assim. E o dinheiro foi meio a meio, certinho. Mas como eu
estava tão necessitada, pagando aluguel, aceitei.
MG: Tem quanto tempo que vocês compraram?
C: Tem 1 ano que compramos [...] E foi construindo, aos pouquinhos [...]
Fizemos a fundação aqui. Graças a Deus, a gente está bem agora. Apesar
de ter três filhos! Deus ajuda que a gente está bem sem ter dificuldade nenhuma. [...] Vó também me ajudou assim. Às vezes ela dava
um saco de cimento. 100 blocos. Meu pai também. No trabalho de
Robson também, ele pegava sempre o dinheiro adiantado... Só sei
que a gente construiu e agora tamo querendo construir os quartos
em cima. Vamos fazer! Se Deus quiser, vamos fazer!
(Célia, neta criada, 26/01/99 e 30/01/01. Entrevistas intercaladas).
Dialunda fala sobre a casa desta neta, indicando sua preocupação em não
deixar que ela fique totalmente na mão do marido – ajudando-a com suas
doações de materiais, de modo a manter o equilíbrio nas contribuições e
garantir maior independência de Célia, mostrando nessa colocação que os
netos são sempre membros da sua casa e terão sua proteção:
Eu não gosto [d]ela ficar só na mão do marido, não. Agora eles estão fazendo a casinha deles ali, né [...] Quando ele botava 100 blocos,
eu botava 200! Tavam construindo. Ele não pode dizer nunca que foi
ele sozinho, que foi ele que fez aquela casa, e que Célia não ajudou. A
minha parte, é a da minha neta, né? Se ele botar comida dentro de
casa, ela tem o que comer, e se não, ela tem sempre, pois ela tem
vó! Se ele der o que vestir a ela, ela tem roupa, se ele não der, ela
tem roupa, pois ela tem vó!
(D. Dialunda, 22/02/99).
20
Mãe Dialunda lhe fez a mesma proposta na laje de Juruna e Dalva, mas ela tampouco aceitou.
386 maria gabriela hita
No caso da outra neta que Dialunda criou, Branca, irmã de Célia:
[Vó] tá querendo que eu venda uns terreno que eu tenho lá na ilha,
[que] ela me deu pra dividir, pra mim e meu irmão, eu e Maycon. Ela
quer que eu venda esse terreno [Para construir no 3o pavimento, na laje
da casa de Juruna e Dalva]. Só que eu não tô querendo morar aqui. Eu
quero morar lá na ilha. Eu quero morar lá porque aqui está me dando
muito trabalho. Porque quando eu estava com Etan na ilha... era uma
coisa totalmente diferente. Desde que ele veio pr’aqui, ele está se juntando com uns amiguinhos dele aí... fica botando coisa na cabeça, aí acaba fazendo as coisa errada... Sai, bebe, bebendo, ele fica muito chato,
abusado, fala demais, dizendo umas coisas que não deve, não respeita
as pessoas, procura briga, em vez dele sair, não, ele se mete no meio... Aí
pronto, eu fico preocupada, que eu tenho minha vida, tenho minha filha, Priscila. E mesmo que não aconteça nada com ele, as pessoas podem
querer se vingar e se vingar em mim, se vingar nela. Ele quer que eu vá
pra casa da mãe dele, lá na ‘Santa Cruz’.21 Eu não tô querendo ir porque
eu não aguento.
(Branca, neta criada e irmã de Célia, 30/01/00).
Mas também há neste grupo aqueles que não receberam tanto apoio de
Mãe Dialunda como outros. Parece ter sido este o caso da filha primogênita,
Margarete, conhecida por Margô filha com a quem Mãe Dialunda tinha cortado relações desde cedo, por choque de temperamentos, escolhas de vida
moralmente condenadas – alguns me disseram ter se dedicado à prostituição
– e porque foi criada inicialmente por sua mãe e irmã, quando Dialunda era
muito jovem e trabalhava como doméstica em casas de família. Margo era
recriminada por não haver criado nenhum dos inúmeros filhos que teve com
diferentes parceiros, nem netos que teve. Contam que alguns de seus descendentes moram no Rio de Janeiro, nas famílias dos respectivos pais.
B: O marido de tia Margarete bebe muito! Ela não tem filhos lá com
ela. Ela tem filhos, mas nenhum ela cria, não. Então, quando morei
com ela... lá era uma dificuldade, quem me ajudava um pouquinho era o
marido da minha tia Juçara, essa que faleceu, irmã da minha avó. Já morei com ela também. E minha tia Margô sofria muito também por causa
de marido. Ela não é assim... uma ótima pessoa, mas também, o marido tava bebendo e ela é ‘cristã’ [rsss]. Ele ficava esculhambando ela, fica
até hoje esculhambando ela. E ele é muito errado, muito errado mesmo.
21
Uma das áreas vizinhas que compõem o Nordeste de Amaralina
a casa das mulheres 387
E ela é uma pessoa muito sofrida também, assim... sofre muito com ele.
Ninguém da minha família gosta dele. Nem vó, nem ninguém. Primeiro,
porque ele bebe, segundo, ele maltrata ela. Ele é o tipo de homem que
bebe para fazer besteira. Já andou com outros homens. Você está entendendo, né? [relação homoerótica] Depois ele chegava em casa e queria
ela, queria pegar ela à força, fazer as coisas. Ela até parece mais velha do que minha avó, se você vê ela [...] E a vida dela era na casa dos
irmão... ‘de igreja’, né? Que ia de manhã cedo e só chega de noite. E
eu ficava o dia todo só. Tinha que fazer as coisas dentro de casa. Fazer
as coisas para o marido dela, que eu não tinha obrigação nenhuma...
MG: Ela tem irmãos de Igreja?
B: Tem! Tem vários! (Rss).22 Ela ficava lá. A vida toda. O dia todo na casa
dos ‘irmãos de igreja’. Fi... fica, todo dia era uma coisa... uma confusão!
(Branca, neta criada 30/01/00).
Pelo que contam, Margarete teria recebido o terreno onde tem casa na ilha
de Itaparica da sua tia Juçara (irmã de Mãe Dialunda, outra mãe de santo),
com quem conviveu boa parte da infância, quando criada por esta tia e pela
avó materna. Mãe Dialunda nunca quis a casa que o Português, pai desta
filha, teria lhe prometido. Talvez por não tê-la criado, sinta menores responsabilidades sobre seu destino ou talvez porque ela já tinha casa onde morar.
Carlinhos, seu filho de criação, tampouco tinha casa própria nem terreno
doados por ela e passou os últimos anos circulando entre as casas das distintas namoradas ou companheiras e a de Mãe Dialunda. E em uma determinada conjuntura viveu na casa de seu Pai Gilberto. Talvez por não ser de seu
mesmo sangue, Dialunda não demonstrava intenções de oferecer-lhe mais
do que ele já recebera: um lugar na casa, educação, alimento e roupas. Sobre
Carlinhos comenta Célia:
C: Carlinhos é diferente. Carlinhos trabalha, Carlinhos nunca respondeu a ela, trata ela muito bem, sempre ajudou ela. Fazia comida,
arrumava a casa, fazia a venda dela e tudo. E Juruna sempre foi preguiçoso, nunca gostou de fazer nada. E ela sempre fez mais por ele. É uma
diferença enorme. É a mesma coisa que João Carlos, Lula e Duda. Ela é...
com Duda e João Carlos, uma maravilha, faz tudo que eles quer, mas
22
Havia um tom irônico ao mencionar a palavra cristã e irmãos de igreja, e ao rir, como se estivesse
mencionando as palavras em sentido metafórico, mas podia estar achando graça da mudança de
hábitos da tia.
388 maria gabriela hita
com Lula, ela não gosta muito [...] Carlinhos cuidou de mim e Branca,
fazia mingau, a comida, cuidava da roupa, lavava prato, ajudava na
venda, nunca gritou. Juruna sempre foi preguiçoso, gritava com ela, dá
esporro.
MG: Porque sua Avó brigou com Carlinho? Porque ele saiu da casa?
C: Vó não brigou com Carlinhos. Mas sempre tratou diferente. Ele e
Juruna eram muito amigos antes de Dalva chegar ali. Hoje, eles se falam, mas não é como antes. Ela começou a criar fuxico. Hoje todos brigam [...] Eu acho que ela não gosta muito de Carlinhos. Ele morava lá e
saiu porque não se dava bem com Dalva.
(Célia, 26/01/99 e 30/01/01, entrevistas intercaladas).
Em 1999, se dizia que Juruna iria sair da casa de Dialunda para a de seu
pai biológico, Gilberto, pela gravidade alcançado dos conflitos com Dalva.
Contudo os desentendimentos entre Carlinhos e Dalva fizeram com que
ele fosse o acolhido por seu Gilberto (ex-marido de Dialunda), no lugar de
Juruna. Mas este translado não se tratou de uma doação de casa, apenas de
uma estadia temporária, como mais uma das suas fases de circulação. Algum
tempo depois de tê-lo entrevistado, fui informada de que Carlinhos deixara
a casa de Seu Gilberto para ir morar na casa da nova namorada. Quando
acabou seu romance, voltou para a casa de Mãe Dialunda. Ele mesmo relatou
sobre essa fase na casa de seu Gilberto:
MG: Quando você deixou a casa de Dialunda?
C: Morei lá até fevereiro [99], quando me mudei para casa do meu pai.
Tem um espaço lá. Dividiu pra mim e outro irmão por parte de pai.
É uma casa, com dois quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro e
uma varanda. Aí a gente dividiu. Eu fiquei com a cozinha, um quarto e o
banheiro. E ele ficou com as outras partes. É tudo em baixo. Só que meu
pai tinha outra casa de aluguel, que é no mesmo vão e ele está morando
na outra casa e dividiu essa com a gente.
(Carlinhos, filho de criação, 30/01/00).
Os netos homens que ela criou, filhos de Carlos, pareciam ser o outro
grupo de parentes excluídos neste processo de definição dos possíveis herdeiros da casa. Talvez pelos conflitos e indisposições entre Mãe Dialunda e
a mãe destes, nem sempre foi possível permanecerem na casa da avó, sendo
a casa das mulheres 389
expulsos por temporadas, embora sempre recebidos e alimentados mesmo
quando não dormiam sob seu teto. A situação de exclusão ao interior do
grupo ficou mais evidenciada por um estigma que terminaram incorporando, o estigma de ser diferente e menos dignos de herança, em situação
similar, talvez, à dos netos órfãos de D. Cida. Este movimento de exclusão
destes netos, vivenciado por ambas as matriarcas em certas conjunturas
como um fardo, em outras como dádiva, pareceria estar associado ao modo
como chegaram à casa, as trajetórias e respectivas mães, jogadas ao desprezo,
após serem abandonadas pelos parceiros.
O fato dos excluídos do projeto de construção das próprias casas em ambos
os lares serem os netos mais jovens e homens pode ter relação com a falta de
recursos para poder apoiar esta nova geração e a fase de declínio pela idade,
das casas matriarcais, além da prioridade do critério de gênero de deixar a
casa com as mulheres no contexto matrifocal baiano. Destaca-se, neste
grupo, o neto João Carlos (filho de Carlão), autodeclarado homossexual. De
todos, ele foi o que adquiriu escolaridade mais elevada (preparava-se para o
vestibular e desejava seguir jornalismo ou turismo), rapaz bem informado e
inteligente com diversos cursos de teatro e idiomas (falava com fluidez e ensinava o inglês, entendia alemão, e tinha noções de espanhol e italiano). João
Carlos demonstrava ter clara consciência do seu problema sexual e de cor,
assim como certo ressentimento, dirigido ao próprio pai, pelo fato de não
terem, ele, sua mãe e irmãos, casa própria. É possível vislumbrar como se misturam, no trecho a seguir, os problemas pessoais e de identidade, com expectativas frustradas de não possuir casa:
JC: Meu pai conversava com ela [mãe] achando que a gente tem raiva
dele, que ele sentiu um peso na consciência, de hoje nós não termos
uma casa, que era pra gente já estar em uma. E ele sempre comentava
com minha mãe essa questão mesmo do problema que eu tive.
GL: Qual problema?
JC: Sexo mesmo [homossexualidade]. Ele tentou resolver isso de forma...
tentando botar a culpa em mim, disso que aconteceu. Eu tive outros
problemas também. Eu cheguei a “usar” [iniciar sexualmente] alguns
dos meus irmãos nesse período. Eu tinha 12 anos de idade. E ele botando a culpa em mim.
390 maria gabriela hita
MG: Você usou sexualmente seus irmãos? Quais deles?
JC: Foi os pequenos, de parte de pai, os outros, da outra família. E minha
mãe sempre encurralava ele, que ele que é de mais idade, que tinha mais
responsabilidade do que eu. Ela foi franca com ele e disse que ele não
foi responsável quando ele deixou seus filhos sobre a face da terra,
sem teto e sem nada. E nós fomos sempre criados por vó e ele se
achava no mérito disso. Mas, na verdade, a pessoa que deve ser realmente privilegiada por nós, netos que estamos grandes, e temos todo
um agradecimento a ela, porque ela realmente foi uma pessoa que se esforçou e eu tenho muita admiração, é por vó. Apesar de tudo e todas as
coisas. Ela sempre foi carinhosa, ela sempre gostou, mesmo assim.
( João Carlos, neto criado, 02/05/01).
João Carlos recrimina o pai por haver abandonado a mãe e os filhos e
nunca dar-lhes casa ou moradia descente. O pai dele, por sua vez, tinha vergonha e recriminava o filho pela opção sexual e suposto abuso dos filhos menores, com a nova mulher, com os quais João Carlos tinha boas relações, mas
que foram afastados dele, ao descobrirem que ele os iniciara sexualmente.
Sobre a mágoa de João Carlos pela discriminação sofrida por parte de pai relata ainda:
JC: Numa dessas eu tava andando com um colega meu. E meu pai tava
num bar, nos viu e veio nos acompanhar e começou a me questionar: ‘Se
eu tava feliz com a vida que tava levando’. Eu não tinha uma resposta
para dar porque isso não parava no que ele achava, nem no que se passava realmente lá. Ele não sabia... E eu comecei a ficar nervoso com seu
questionamento. E ele disse: ‘você acha que tá certo? Você está feliz com
a vida que está levando?’ E eu disse a ele: ‘Tô!’ Eu fui irônico! É melhor
do que viver na pressão! Pressionado por uma coisa que não fazia mais
parte da minha realidade.
MG: O que não fazia mais parte da sua realidade?
P: Essa questão da sexualidade
( João Carlos, neto, 02/05/01).
João Carlos achava ter superado esse problema da homossexualidade,
nessa fase, em que estava tentando namorar mulheres. À época, fora expulso
da casa de Dialunda e morava na casa de outra prima, no mesmo bairro. A
seguir, relata o encontro desta prima com o pai dele, quando ela perguntou
a casa das mulheres 391
ao tio e pai de João Carlos, sobre a relação com o filho, recriminando-o por
não receber o filho na própria casa:
JC: [Falando no lugar da prima] ‘Você, com uma casa tão grande e seus
filhos todos estão lá em casa?’ Quatro filhos dele mora lá embaixo, na
Emídio Pio.23 Aí ele [o pai] falou isso, dessa situação [para João Carlos]:
‘Você está feliz com essa situação? Porque eu quero saber o que responder às pessoas’.
Aí eu fiquei muito magoado, por que ele estava preocupado no que as
pessoas estavam falando, e não comigo, o que eu estava sentindo ou se
passando comigo. Eu fiquei realmente zangado. Ai eu disse a ele:
‘Você tem alguma previsão de vida para mim? Se você tiver, eu me
mudo para lá, para a sua casa’.
Aí, ele disse: ‘Você tinha, você teve o da sua avó, você teve de mim’.
Aí, eu disse: ‘Eu não aceito o teve. Eu quero uma solução!’.
Aí, quando ele disse TEVE e insistiu nisso, eu peguei e dei as costas para
ele, fui embora com meu amigo. Ele pegou, tentou me agredir fisicamente se achando agredido pelo fato de eu ter dado as costas para ele. Mas,
ele primeiro tinha me magoado, mostrando que a opinião dos outros era
mais importante para ele do que o que eu pensava ou sentia. Segundo,
porque ele estava me dando esperanças passadas, de coisas que eu
poderia ter conseguido, obtido. Só que eu não estava pensando nisso, eu tava pensando no agora. Só que ele não quis. Ele não quis responder, tentou me agredir. Eu saí correndo, ele correu atrás de mim. Meu
colega fugiu de medo, de tão brutal que ele estava. Acabei me escondendo em um bueiro lá. Essa noite, eu ia dormir na casa de vó e acabei
dormindo na laje da casa do amigo, para mãe dele não se assustar e
pensar que era coisa mais grave. Eu dormi na laje sozinho. Eu não quis
mais papo com meu pai. Isso já foi em 1998.
( João Carlos, 2/05/01)
A mágoa de João Carlos com o pai ia além da falta de perspectiva deles um
dia poderem vir a herdar ou habitar algum espaço na casa paterna; devia-se
também ao estigma que marcou suas vidas, pela situação de abandono em que
o deixou e aos irmãos que viviam na casa da avó, vistos pelo resto da parentela, muitas vezes, como um fardo. Sobre isto, comenta na mesma entrevista:
JC: E eu fiquei muito chateado com meu pai que ele uma vez disse para
Juruna, que quando a gente crescesse, eu e Lula, que ele ia precisar botar
uma arma na cintura para se defender da gente. Porque ele já tinha a
23
João Carlos retoma o lugar da fala e me explica a situação, contando sua visão do pai.
392 maria gabriela hita
consciência pesada de que nós não aceitamos ele muito bem, por
causa da gente não ter uma casa, por ser humilhados na frente dos
outros. A gente tinha uma fama horrível de sugadores de sangue,
essa coisa. O pessoal falava sempre. Porque meu pai cometeu esse
delito de deixar a gente com nossa avó, né? Porque, na realidade,
não era obrigação dela. A obrigação dela era os filhos e não os netos, né? Então, todo mundo sempre se queixava de que a gente era
criado por vó, de que minha vó era explorada por Carlos, pelos filhos de Carlão... Esse tipo de coisa era muito chata, chata mesmo.
Mas, aos poucos, a gente foi superando, superando... Depois, eu fui procurando onde ficar, com minha mãe, Lula também escolheu assim.
MG: E como era o seu relacionamento com os irmãos menores, por parte de pai?
JC: Meu relacionamento com os outros irmãos sempre foi bom. Mas
a minha suposta madrastra colocava sempre os filhos contra nós,
porque ela se sentia ameaçada de perder a casa para nós. Nós sempre conversamos numa boa. Ele ergueu a casa com a ajuda da sua
mulher. A única ajuda que minha vó deu é que ela sempre alimentou eles, sempre deu comida. Porque ele estava sempre querendo trabalhar em função da casa e comida assim, era segundo plano. Teve até
um período em que eles foram morar lá, na casa de vó, foi questão
de meses. Eles não tiveram estabilidade boa, por causa de vó – o
relacionamento com ela foi difícil. Porque vó sozinha para sustentar
tanta gente. E, às vezes, eles queriam mais do que minha vó podia. Às
vezes, terminavam falando coisas que se tornavam fofocas e não dava
certo, então o melhor foi cada um tomar seu rumo.
( João Carlos, 02/05/01).
E, para concluir esta seção sobre a casa de Mãe Dialunda, apresento em
forma de entrevista, um interessantíssimo diálogo que presenciei e gravei
em 2000 com um casal desta família – a neta Branca – criada por Dialunda,
filha de Bela – e seu parceiro no período, Etan, pai de dois de seus quatro
filhos, em 2003, ano em que residiam na casa de Dialunda. Este é outro
exemplo interessante de como se luta pela conquista de uma casa própria e
quais as alternativas no caso de jovens casais. Etan era o pedreiro que estava
construindo o novo quarto de Santo na casa de Mãe Dialunda, devido à súbita morte de Juçara, na ilha de Itaparica (mãe de santo e irmã de sangue de
Dialunda que tinha assentado em seu terreiro os santos de Dialunda). Eles
estavam, naquele exato momento, negociando o projeto de onde, como e
a casa das mulheres 393
com que recursos construiriam a moradia para a nova família. Estava em
questão se seguiriam mesmo juntos ou não. Naquele momento, Branca estava grávida do primeiro filho de Etan e já era mãe de Priscila.
Pelo que eu observei em campo, em ambos os grupos familiares com jovens casais em formação, é fundamental e decisivo para o sucesso da nova
união desejada, poder contar com recursos como um terreno, um quarto,
enfim, o direito a um espaço – mesmo que na casa dos pais ou familiares –,
onde o jovem casal possa tentar construir o sonho de formar um novo núcleo familiar, de forma mais ou menos independente. Mas, nem sempre um
espaço na casa de origem é disponibilizado para todos os filhos, isto depende
de vários fatores e da existência desse recurso, de que tal oferta de construir
em espaço de terreno familiar seja do interesse do jovem casal e do conjunto
de relações de reciprocidade ou conflito que se desenvolvem com o resto
da parentela. Foi também possível observar como a vida daqueles sem tais
recursos pode terminar impossibilitando a conservação de suas potenciais
uniões, sonhos ou projetos. A aglomeração de muitos indivíduos em grupos
extensos, sendo todos forçados a compartir um pequeno e exíguo espaço,
costuma tornar as interações altamente conflitivas. Os interesses individuais
dificilmente conseguem ser respeitados pela coletividade, pois falta espaço;
os interesses de uns costumam ir de encontro com os dos outros.
No diálogo a seguir, pode-se observar uma das formas que costuma adotar
a negociação entre namorados, em grupos populares, quando enfrentam o
dilema de formar, ou não, novo grupo familiar, toda vez que um filho a caminho institui esse dilema. Neste contexto, é o momento da gravidez que
geralmente desencadeia o tipo de situação que exige uma resolução: seguir
juntos ou separar, formar uma nova família a três ou apenas de mãe e filhos,
em casa própria ou na de parentes. Decisões que dependem de trajetórias,
desejos, negociações e principalmente dos recursos para se formar um núcleo separado. É, em momentos como o detectado na seguinte entrevista,
que se pode captar os interesses do homem (de não perder sua liberdade e
onde se observa o destaque de ideologias do homem provedor de Etan indo
de encontro ao de ideologias matrifocais da parceira que desejava prezar
pela autonomia feminina) e os da mulher (de garantir sua segurança e a do
futuro filho). Momentos como este explicitam o modo como cada um avalia
possibilidades, posições, interesses e recursos em formar um projeto de vida
conjunto e negociações (de seus direitos, deveres, expectativas) na definição
394 maria gabriela hita
do tipo de contrato ou relação de casal que irão construir se chegarem a
algum consenso.
Veja-se, no seguinte trecho de entrevista, a riqueza de elementos que aparecem nesse processo de negociação sobre formação e manutenção de conjugalidade e como a casa ou o projeto de construção de uma pode consolidar
ou desmanchar tal sonho:
Negociação Branca (B) - Etan (E)
E: Eu quero morar na minha casa, que é herança!
B: [Dirigindo-se a mim] Não é herança ainda, que a mãe dele [sogra],
ainda tá aí, né?
E: É herança! Porque ela não toma mais conta da casa. São duas casas.
Eu tomo conta de uma e meu irmão da outra. E ela mora na ilha. Minha
mãe mora na ilha, a gente mora só. Eu e ela tava lá embaixo, só. Agora
acontece um problemazinho, que quando minha irmã era, tava viva,
sempre tinha uma conversinha, chegava que a casa é minha, a casa é
minha... comigo!
B: Ah! Eu até esqueci de falar da irmã dele!
E: Aí brigava ela e meus dois irmão! Eu sempre procurei sair fora do bolo.
Eu não olhava para cara deles para dizer: rapaz, tomem vergonha, meu
pai lutou tanto para ter e vocês estão brigando pelo que nem botou! E
sempre eu procurando me sair e quem levava a pior, levava, né? Sou eu.
Que agora... Deus levou minha irmã, faleceu, e agora acalmou. Morreu a
menos de um mês! [ Ele falou ter morrido de Câncer. Branca riu e ele perguntou a ela de quê que ela ria... [...]. Então minha senhora, uma, eu sou
uma pessoa muito calma. Certo? Mas, se me tirar do sério, uma verdade
é dita... sou pessoa calma e procuro me controlar, mas se me tira do
sério, só o exército para me parar.
MG: Você não está gostando daqui? De morar nesta área do Nordeste
de Amaralina?
E: Daqui? Oi, eu conheço essa meleca há muito tempo e aqui nunca prestou e nunca vai prestar. E, no lugar que a senhora sai [referindo-se à rua]
de noite, encontra três, quatro, cinco [sujeitos] limpando as armas. Então,
a casa das mulheres 395
um lugar desse, do jeito que eu sou, não dá para mim. Porque, se eu ficar aqui, vai terminar um me matando. Então, o melhor é ficar em um
canto certo. Quer dizer, eu quero ficar na minha casa. Ela por causa da
minha cunhada, não quer. Eu acho que não tem nada a ver, né? Eu acho
que tudo começa como também tem um fim. Mas, ela fica com medo de
eu ir falar e eu ter problema com meu irmão. Mas, se todo lugar que a
gente, for tiver uma conversinha, uma coisinha, a gente nunca vai parar
em um lugar certo!
B: Não! Porque, porque a mãe dele não gosta de mim. Aí acontece, ele
vai ter um problema com o irmão dele, vai acontecer o quê? Dizer que foi
culpa de quem? Vai dizer que foi a minha culpa, né?
E: Você não deve dizer um negoço desse...!!!
B: Eu não devo? A gente tem que falar a verdade!
E: Você não deve dizer um negoço desse...!! Porque lá na minha família,
você não gosta de ninguém.
B: E ninguém gosta de mim! Como é que eu vou gostar das pessoas que
não gostam de mim?
E: Como é que, se a senhora [se dirigindo a mim], se chega assim, num
lugar e não fala com ninguém! Alguém vai falar com a senhora?
B: Eu não falo porque eu vi, só pelo jeito da pessoa tratar a gente pela primeira vez que a gente vê que a pessoa não gosta. Só pelo jeito! A mãe
dele não gosta de mim. E o irmão dele mais velho não gosta de mim.
O irmão caçula, fala assim, um pouquinho comigo, mas ele não gosta de
mim. Então... Agora eu não falo, nem pouquinho, nem poucão, não
dou nem bom dia, nem boa tarde. Ninguém gosta de mim! [Falou
toda exaltada!]
[Sobrinhos de Branca presentes na entrevista, interrompem gritando em
coro e apoiando a tia: - Bravo! Bravo!]
B: [...] A irmã dela, nem me conhecia ainda, me botou no meio da briga
deles e ainda me xingou! Não quero mais conta com ninguém! Ele tá dizendo que depois que a irmã dele morreu, que melhorou um pouquinho...
Ele nem sabe, porque nem pra lá eu fui, depois que ela morreu. Nem sabe
o que vai acontecer!
396 maria gabriela hita
E: Mas pelo que eu desço lá, pra mim tá bom [...] Eu acho que, eu tenho
o que é meu, para ir procurar ‘aventurar’, tentar o quê? Tendo uma
casa grande, boa, deixar de ter um lugar bom pra intentar viver, pra
fazer um barraco de tauba, para fazer uma coisa? Uma, que eu tou
desempregado, mas lá [na casa da mãe], Graças a Deus, nunca me faltou comida e... sempre aparece algo para eu fazer
MG: E aqui tá faltando?
E: Também não! Mas... É melhor tar no que é nosso!
B: E a ilha?
E: Isso vai ser dela! Mas só que tem um porém. Que a gente vai pra
lá ‘tentar’ fazer alguma coisa. Não! É melhor a gente ficar no que a
gente [ já] tem e...?
B: Não! Não é meu! É teu! [a casa da mãe dele]
E: Ouça! Não é meu! Ainda não é meu!
B: Então Pronto!
E: Vai ser herança! Só que lá ninguém pode mandar em ninguém. Você
nem sai, nem deixa sair!
B: Pode! E se Sua mãe chegar lá e me botar para fora? Você acha que
eu vou continuar lá? Não Vou!
E: Isso que ela não faria! Ela pode ter o que for. Mas isso ela não faz!
MG: E daqui a uns anos, se você não quer mais? O que ela faz? E o filho?
E: Mas é o que eu tou falando com ela! Eu falo com ela. A gente tá aqui.
Procurar o quê? Primeiro a gente procura ajeitar a vida. Já tem o
terreno? [na ilha] quando puder separa o dinheiro e chega lá. Nem
que seja fazer, deixar a mãe dela tomar conta. Puder alugar, aluga. A
gente fica cá. Quando a gente quiser ir...vai. Se não der jeito mesmo
aqui, a gente vai lá!
MG: Ela fica com medo de não dar certo! E ela ficar sem nada!
a casa das mulheres 397
B: É... eu ficar sem nada.
E: É! Mas esse é o medo dela! Mas ela não entende... que a coisa que
eu mais quero é poder dar, eu queria dar uma casa a ela! Mas eu estou desempregado!
B: Mas também... porque [lá na ilha], ele não vai ter lugar com quem se
misturar lá! Porque ele tem uns amigos que não vale nada! Tá? É falso!
Com ele. E ele fica chamando meu irmão, meu irmão! [...] ENTÃO EU TÔ
QUERENDO IR LÁ NA ILHA QUE É PRA PODER, QUE ELE LÁ...[Ela gritou, pois ele a interrompia]
E: E ENTÃO, SE NÃO DER, VOCÊ VAI MUDAR? DE QUALQUER [ JEITO]?
B: NÃO VAI SE MISTURAR, LÁ NÃO VAI ACONTECER...[se acalmando]
nada do que acontece aqui, não vai ter cunhada para poder [...]
E: Eu já conversei com ela. Se for o caso, conseguindo o dinheiro para
construir... Eu vou pra lá. Eu vou fazer a casa. E ela fica lá! E se der
certo eu fico, se não der, eu vou embora!
B: Assim que eu conseguir construir, nem que seja um quartinho, eu
vou me mandar pra lá, porque eu quero distância da cunhada dele...
Eu não vou implorar para ele ir. Se ele quiser ir, ele vai! Eu vou aceitar
numa boa! Vou querer, vou agradecer muito a Deus, mas também,
ficar na casa dele, eu não vou ficar! Porque vai ter problema... porque
não é todo dia que a gente tá a fim de comer pão! Então, um dia me cansa, né? E no dia que eu também der para abusar ela? [...] Então, eu disse
a ele. Eu tou indo amanhã pra ilha, vou ver o que vai acontecer, que
Deus vai me ajudar! Vó diz que vai me ajudar! Mãe diz que vai me
ajudar! Então! E por ele não querer ficar lá, eu não vou implorar. Eu não
vou implorar a ele, eu já disse a ele, eu não vou impedir ele ficar aqui. Mas
também, ir para a casa dele, eu não vou!
E: Não me diga isso!!
MG: E aqui na casa de Dialunda?
B: E aqui também não quero, porque aqui está pertinho da Santa Cruz.
Ele sai daqui para se misturar com aqueles amigos [...] E lá na ilha, daqui
que ele chegue aqui...e ele vai querer gastar transporte do jeito que esse
aí é unha de fome?? Se ele for para a ilha, não vai querer ficar gastando
398 maria gabriela hita
transporte só para vir aqui ver os camaradas dele. [ameaçando:] E se ele
for sair, é pra voltar no mesmo dia, porque se ele vir aqui, para voltar no
outro dia, dormir comigo é que ele não vai! Porque eu não sei que ele
ficou fazendo aqui...
E: Agora senhora, a senhora quer saber de uma coisa? [se dirigindo a
mim] Se ela não quer ficar dentro do que é meu. O que eu vou fazer
no que é dela? [...] [mais discussões...!]
MG: Vocês estão juntos ou não?
E: É. Tamos juntos! Assim... Um lado encosta e o outro separa.
B: Ele não tem paciência comigo, eu fico nervosa, porque aqui é muita
zuada, muita agonia, sim, aí é rádio, é menino, é televisão, é tudo! Aí tem
hora que me dá...uma doidice. E tem hora que ele fala comigo, eu grito
com ele, sem que e nem pra quê, né? Que às vezes eu grito com ele que
depois eu me arrependo. Faço ignorância com os outros, mas é porque
minha cabeça fica muita azoada, muita coisa, aí ele acha ruim!
Algum tempo depois desta entrevista, Branca teve o bebê. Etan construiu
o barraco que ela queria, moraram juntos e depois se separam. Mãe Dialunda
achou melhor, não o considerava um bom parceiro para a neta. Logo depois,
Branca voltou para a ilha, e um tempo depois voltou a engravidar de Etan, o
que magoou a avó. Branca ficou dois meses na casa de Mãe Dialunda quando
teve o segundo filho desse parceiro e regressou a seguir para a ilha, deixando
a filha primogênita do parceiro anterior com Mãe Dialunda, que a impediu
de levar a menina. Em 2003, estava novamente na casa de Mãe Dialunda, esperando o quarto filho, mas agora de outro parceiro.
Em novo contato realizado em 2013 para obter autorização de veiculação
das imagens neste livro, fui recebida com muito afeto e alegria pela notícia
de que suas vidas seriam finalmente publicadas e conhecidas. Algumas coisas
tinham mudado. Dalva estava morando há uns 7 anos numa nova casinha,
pequena, do outro lado do Nordeste, com um novo parceiro, que se apelida
Pelé e tem hoje bastantes problemas de saúde e dificuldades de trabalhar.
Ela é cozinheira chefe de um grupo de pessoas que produz acarajé e outros
quitutes em grande escala, para uma empresa que os recolhe no local da pro-
a casa das mulheres 399
dução e armazenamento, umas dez casinhas acima de onde mora.24 Isto claramente a indica como a principal sucessora de Mãe Dialunda, ao menos no
que concerne à venda de acarajé. A atual produção é distribuída e vendida em
mais de 4 pontos diferentes de baianas na cidade de Salvador. A relação com
a família de Dialunda continua sendo boa, pelo que contam; os dois filhos
mais novos foram morar com ela. Dos dois filhos mais velhos, Alex perdeu-se
no tráfico: estava morando nas ruas, com parceiros. Em voz bem baixa, para
Dialunda não escutar, ouvi o relato de que fora recentemente assassinado,
por volta do final de 2012, mas a idosa e enfraquecida avó não fora avisada,
para evitar ter problemas de saúde. Esta notícia, por sua vez, era esperada
com angustia pela sua mãe Dalva, quem vivia sobressaltada e preocupada
com o destino deste, cada vez que batiam à porta procurando-o, pedindo-lhe
para depor na policia, ou trazendo-lhe dívidas a pagar para salvá-lo. Apesar
do sofrimento da perda, parecia, quando nos encontramos, já estar mais resignada e de certo modo aliviada com o fim do tormento. Esperava poder resolver com o pai do menino, Juruna, questões burocráticas sobre sua morte
frente às autoridades, já que ele detinha a certidão de nascimento deste filho
e ela precisava do documento para resolver tais questões, mandando-lhe o
recado por o sobrinho Lula que tinha me levado até sua casa. Disse-me que
estava evitando visitar Dialunda, por não conseguir ou desejar mentir sobre
este assunto.
Na casa de Dialunda, na planta baixa, estavam morando ela; a neta Branca,
que já tinha 5 filhos e estava trabalhando no Iguatemi; e dois dos netos, filhos de Carlão: João Carlos, que tinha se formado em turismo e trabalhava em
hotéis, e o irmão dele, Duda. Isso foi em Março, mas em Junho de 2013, João
Carlos já tinha saído para morar em Itinga, com sua namorada, contou-me Mãe
Dialunda. Duda já era pai de uma menina de aproximadamente 4 anos, sendo
criada pela respectiva mãe, em casa vizinha à de Dalva e seu novo parceiro, do
outro lado do Nordeste.25 O outro irmão criado por Dialunda, Lula, já tinha se
mudado para Cajazeiras onde vive com uma mulher e seu filho. Na planta de
cima, onde antes moraram Celi, Juruna e seus filhos, estavam vivendo agora o
filho de criação de Dialunda, Carlinhos, com sua mulher e um filho. Ele trabalhava com carteira assinada como porteiro em um prédio em Brotas.
24
Ver em Anexo F, fotos da produção de comida Bahia de Dalva, em 2013.
25
Ver em Anexo F, foto de Duda com sua filha, quando me levou a conhecer a casa de Dalva e sua
produção de Acarajé, em 2013.
400 maria gabriela hita
Lila, filha mais velha de Dalva e Juruna, esteve morando alguns anos com
Dialunda, segundo contou-me Tita, a neta de D. Cida, mas já tinha alugado
um quartinho com seu namorado, no Nordeste, iniciando nova família. No
dia que fui visitar Mãe Dialunda, Priscila estava por perto, participando do
entusiasmo de se verem nas fotos antigas.
Célia, a irmã de Branca, continuava na própria casa, morando apenas com
dois de seus três filhos, pois se separou do marido Robson, há cerca de 7
anos, e o outro filho, também com nome Robson, foi morar no sul do Brasil.
Ela estava muito bem, mais magra e bonita, usando óculos agora, tinha concluído os estudos e se formado em secretariado. No momento, trabalhava
como secretária no Bom Preço e no tempo livre, vendia Acarajé conforme o
antigo desejo da avô, na esquina de sua casa, uma vez por semana, para complementar a renda. Seu filho Érico, já quase com 21 anos, em 2013, disse que
pretendia fazer o vestibular para estudar produção cultural ou jornalismo.
O filho caçula de Dialunda, Juruna, pai de Lila, Alex, Lúcia e Gilbertinho,
com Dalva, estava morando em outra casa no Nordeste até inicio de 2013,
com outra parceira. Todavia, na segunda visita que fiz a Dialunda nesse
início do ano, havia alguns dos pertences de Juruna na sala (como sua cama
de casal), e fui informada que ele estaria se mudando para a casa de uma nova
parceira, agora em Cajazeiras.
CASA DE DONA CIDA PARTEIRA
p
Breve história e descrição da planta
original da casa
A ocupação da casa do grupo familiar de D. Cida teria ocorrido, inicialmente, por volta dos anos 50, quando, viúva e com uma filha pequena de primeiro
matrimônio (Lena), uniu-se a seu Diógenes. Os primeiros assentamentos no
bairro foram fruto de invasões ao longo das distintas décadas, onde moradores
a casa das mulheres 401
mais antigos adquiriam maior prestígio em relação aos mais recentes, habitantes de novas invasões.
Quando Lena (a primogênita do primeiro matrimônio de D. Cida) contava com aproximadamente dez anos, apareceu na família a primeira filha de
criação. Nunca ficou clara a história da chegada de Merina para a casa de seu
Diógenes e D. Cida. Segundo versão familiar bastante repetida, Merina foi
dada de presente a Lena, na rua, como se fosse uma bonequinha. Relataram
também que uma suposta verdadeira mãe de Merina buscou-a, 15 anos depois, quando tentou iniciá-la na prostituição.
Filhos do casal menores que Lena e Merina são Neneca, Aurélio (com problemas mentais) e Dina, a caçula. Téo, o primeiro neto de D. Cida e filho
primogênito de Lena – a enteada de seu Diógenes, que cedo deixou de viver
na casa – fora criado pelos avós desde o nascimento, sete anos após o nascimento de Dina, a filha caçula do casal. Lena, ao que parece, já não morava
mais na casa, nesse período. Ela conviveu menos tempo com a irmã caçula,
devido à diferença de idade, e por ter saído cedo para morar nas casas onde
trabalhava como doméstica, antes de ter casa própria. Ajudou Dina a construir um barraco perto do seu quando esta engravidou de Jane e foi expulsa
da casa paterna por seu Diógenes.
Estas teriam sido as primeiras configurações de pessoas a ocupar a casa
de D. Cida na fase inicial, distribuídas em um espaço que dizem haver
sido muito bonito e bem cuidado, amplo e cheio de flores, quando eram
crianças, bem antes do início das pesquisas em 1992. O terreno da casa
está posicionado em um morrinho, na entrada ao bairro do Nordeste de
Amaralina pelo lado da Pituba, e contam que naquele período estava todo
nivelado (sem perdas de terreno por erosão das chuvas), com distribuição
espacial próxima à da planta da Figura 17.
Possuir casa onde morar é um dos projetos de vida mais almejados na pobreza. Poder obtê-la é um sonho e conquista de todo pobre, sinal de destaque
em relação aos que não possuem casa e sonham com ela, como o aponta o
depoimento de D. Cida, sobre o início de sua vida no bairro:
A melhor, a épa [época] minha mais melhor, feliz, foi quando eu,
quando eu vim morar aqui no Nordeste, aqui pra mim foi bom, aqui
eu criei meus filho, aqui eu consigui casa, que eu não tinha casa, né?
Vivia em casa de aluguel, consegui casa e criei meus filho aqui e vivi...
402 maria gabriela hita
e vivo bem, Graças a Deus. Eu vivo, com toda tribulação eu num, num
me queixo da vida não. Eu sou feliz, Graças a Deus, sou uma mulher feliz,
sinto... feliz. Sinto com Deus, com Jesus, que tudo comigo eu acho que depende da gente confiar, que vence. E peço muito a Deus, peço mu... falo
muito, digo aí as menina minha, que seja como eu, seja vencedora,
não derrotada. Eu num sou derrotada, sou vencedora, porque tudo
que eu quero, eu venço, em nome de Jesus. (Rss).
(D. Cida, 22/01/1997).26
Possuir mais de uma casa é sinal de prestígio e sucesso em contexto de
pobreza. D. Cida e seu Diógenes, pelo que contam, tiveram mais de um terreno que hoje é ocupado por várias casinhas. Ao que parece, estes terrenos
foram perdidos e trocados por dívidas de bebida, por seu Diógenes, que lhes
deixou apenas o patrimônio da casa habitada para ser dividida entre alguns
dos descendentes. Na narrativa a seguir é mencionado que a propriedade
estaria em nome do casal, e que, se D. Cida encontrasse os papéis, poderia
reclamar a posse. Pouco foi dito sobre como foram adquiridos os terrenos,
se comprados ou invadidos, e qual o tipo de certificados de propriedade que
possuíram dessas terras, em determinado período.
Minha mãe... nunca bateu numa mulher [amantes do marido]... ela falava: ‘o importante é que eu sou casada com ele, a casa eu é que tenho’ – que meu pai era dono de muitas casas aqui... uma avenida de
casas... acho que tinha umas oito casas. Onde é a padaria, ali na casa
de Zezita, era de paínho. Na casa de Benito, tudo aí era dele... Aí, ele era
dono de muitas casas, então as mulher ficava muito de olho no... nas coisas que ele tinha, né? Quando/ quando Neneca/ mãínha foi ter Neneca,
ele pegou... deu por bagatela. Meu pai vendeu por bagatela. Aí, quando
mãínha chegou da maternidade, aí ele falou que tinha vendido as casas... Aí, até hoje essas casas ainda pertencem à minha mãe, porque... ele
não deu... carimbo, ela não/ não carimbou, porque ela era casada com
ele. Estão no nome de mãínha, até hoje. Até hoje. Não sei nem cadê esses
papéis. Já deve ter sumido na/ quando caiu a casa... O homem tinha um
medo danado de mãínha tomar... as casas. Aí foi levando, foi levando,
minha mãe não fazia questão por nada, Aí deixou pra lá... Mas o ho26
D. Cida afirmou ser uma “vencedora” pela posse de qualidades como persistência, paciência,
capacidade de lutar e trabalhar. E lamentava o fato da ausência dessas qualidades entre filhas
e netas, ou desconfiar se o futuro delas poderia ser tão bem sucedido, tranquilo ou feliz, como
avaliava ter sido o dela.
a casa das mulheres 403
mem tinha um medo danado! [Maínha] Falava: ‘Essas casas aí, minha
filha, tudo é sua, se eu quiser, mover um dedo... essas casas volta tudo pra
nós. Eu não assinei nada, só seu pai que... vendeu’. Minha mãe falava.
Aí/ mas eu não quero fazer isso não... que eu tenho pena dele também,
que é pai de família [...].
(Merina, 23/01/2000).
Como no modelo convencional das casas descrito antes, os cômodos
nesta casa se construíram um seguido do outro, enfileirados ao longo de um
terreno de aproximadamente 6m x 17m. (vide Figura 17) Trataram-se inicialmente de quatro grandes quartos precariamente construídos, de barro batido, enfileirados um atrás do outro e do lado direito do atual terreno que
passou a incorporar, posteriormente o corredor ou ruela de uso público, que
conectava a rua da frente e a rua de trás da casa, no lado esquerdo da planta.
O primeiro dos cômodos era destinado à parte social da casa, espaço que
inicialmente foi uma sala, mas que, com o aumento da prole, dividiu-se para
operar como parte do negócio familiar (bar) que o casal teve para complementar a renda da casa. Depois de 1985, esse espaço (sala) foi destinado ao
grupo familiar de Neneca. Na sequência, o espaço posterior foi sempre o
quarto de D. Cida, com cama matrimonial, compartida com filhas, netas ou
crianças, após a morte do marido e possivelmente com suas filhas quando
ele trabalhava como vigia. No espaço seguinte, onde dormiam os filhos solteiros, em 1992, funcionava a cozinha da casa. Provavelmente o quarto e último espaço, junto ao banheiro, fora ocupado pela cozinha na primeira fase
da casa, quando Neneca e Dina eram crianças, prática usual entre os modelos
de construção popular como o analisado. Todavia, pela posição da casa no
morro e a constante ação erosiva das chuvas, deteriorando o estado geral da
construção, esse último cômodo foi bastante prejudicado: foi afundando e
ficou em desnível em relação aos da frente da casa. Assim, serviu, quando
começaram a aparecer os netos, para a conjugalidade secundária, isto é, para
uso das filhas e netos com seus parceiros.
Merina foi a primeira a ocupar esse quarto dos fundos, quando nasceu
Robson. Permaneceu nele apenas por alguns meses, indo morar em São Paulo,
acompanhando a família para quem trabalhava como doméstica, inicialmente
sozinha, e deixando o filho e o parceiro morando na casa da própria parentela, isto é, D. Cida e suas irmãs. Tanto Robson, como Téo (filho de Lena),
foram criados por D. Cida desde bebês. Merina pouco viveu na casa depois
Figura 17. Casa de D. Cida por volta da década de 1950.
a casa das mulheres 405
de ter filhos, mas ia e vinha sempre que necessário. A segunda filha a ocupar
o quarto dos fundos foi Neneca, com seu marido e filhos, que ali ficaram pelo
menos até terem o quarto filho, quando casaram no civil, por volta de 1980, e
se deslocaram para o quarto da frente onde estava o bar. Quando morreu seu
Diógenes, em 1985, Neneca afirmava ser dona, por direito adquirido e doação
explícita do pai, dessa parte do terreno. Foi a época em que Dina passou a
ocupar o quarto dos fundos, saindo da sala ou cozinha da casa da mãe para um
quarto mais privado. Na ocasião, já com dois dos seus filhos e teve os dois outros alojada nesse quarto, que só deixaria por volta de 1995, quando começou a
construir casa na laje da mãe. A partir dessa época, o quarto passa a ser exclusivamente ocupado por Téo, que não o compartia com ninguém.
No final da casa, ao fundo do terreno e no limite com a rua de trás, separado por uma meia parede inicialmente, ficava o fosso do banheiro (apenas
um buraco no chão) sem as quatro paredes ou divisões que guardassem a privacidade para o interior da casa.
Para o irmão Aurélio, com problemas mentais, fora construído um quartinho separado, no pátio dos fundos, frente ao banheiro e do lado esquerdo.
Isto ocorreu por volta dos anos 80, fase em que começou a despertar para a
sexualidade, que precisava ser melhor controlada pelo bem das crianças da
casa, já que argumentos racionais com ele nem sempre operavam. E, certamente, porque com o crescente movimento de desmanicomialização dos
hospitais psiquiátricos naquele período, que passaram a adotar políticas
de reencaminhar doentes mentais para os respectivos domicílios, a família
deixou de contar com tantas possibilidades de internação de Aurélio em fases
mais críticas. Nessa fase, contam, o controle da doença tornou-se mais complicado pelos diversos acessos de violência, descontrole e fugas de casa. Ele
era ridicularizado pelas crianças da rua e tratado com crueldade por pessoas
que se aproveitavam da sua demência. Na adolescência, os problemas com
Aurélio se multiplicaram: foi atropelado uma vez, caiu de uma moto outra,
foi espancado várias vezes na rua e, em diversas ocasiões, voltou nu e sem
roupa para casa; isso quando não desaparecia por dias, forçando pais e irmãs
a correr ruas pela cidade inteira atrás de notícias, informando o sumiço no
rádio ou buscando pistas com algum vizinho que o tivesse visto circulando
no centro da cidade, perdido em algum lugar. Várias foram as ocasiões em
que ele sumiu, por dias, indo parar até em cidades vizinhas. Nesse novo quartinho, precariamente construído com madeirite e papelão, D. Cida e sua fa-
406 maria gabriela hita
mília conseguiam controlar melhor as crises mentais de Aurélio, ao mantê-lo
mais calmo, ou até preso, quando necessário. Aurélio também passou longas
temporadas fora da casa, internado em hospitais psiquiátricos, quando a família respirava aliviada, embora se queixasse dos maus tratos a que era submetido naquelas instituições, onde nem sempre – tratamentos e medicações
receitadas, quando seguidas – alcançavam a eficácia desejada.
Em 1992, o primeiro quarto da casa, onde passou a morar Neneca, se encontrava no nível da rua da frente. Era esse o local mais limpo e bem apresentado da casa. Com as chuvas, o terreno de barro batido foi sendo destruído
por erosões constantes, havendo uma diferença de uns 10 a 12 degraus, totalmente irregulares, entre a porta de entrada e o final do terreno. Isto corresponde a uma distância entre 80cm a 1 metro de diferença. Imagino que anos
antes, como relata a narrativa repetida a seguir, quando seu Diógenes ainda
era vivo, que esses degraus eram mais definidos. Lembro que, em 1992, era
necessário atravessar algumas tábuas para não escorregar quando chovia, e
era preciso fazer malabarismos para adentrar ao final da casa. Sobre a fase
final da vida de seu Diógenes comentou a filha caçula:
Meu pai chegava bêbado em casa, já vinha do lado de fora, que essa
casa era tão baixinha, que tinha doze degraus pra sair pro lado de
fora, você vê como entulhou tanto que só tem um degrau [agora]...27
ele chegava bêbado, dentro de casa acabando com tudo, mãínha botava comida pra ele, ele quebrava... aquilo... a gente crescia com raiva, tomando pavor. Não era nem ódio, que ele era o pai da gente, né?
(Dina, 16/03/1996).
A partir da reforma que Dina iniciou em 1992, o terreno foi entulhado e
nivelado, parte do chão cimentado e a ruela esquerda a céu aberto, que unia
ruas da frente e de atrás da propriedade, foi fechada. O novo telhado nesse
corredor, espaço público que foi apropriado pela família, trouxe vantagens e
desvantagens: por um lado perderam em ventilação e obscureceram a região
central da casa, onde ficavam D. Cida e seus netos; por outro lado, ganharam
novos espaços com esta ampliação e a possibilidade de construir em maior
terreno de laje, no futuro.
27
Dina refere-se à reforma da casa que ela irá fazer e que nivelará todo o terreno.
a casa das mulheres 407
Circulação de pessoas no uso da casa:
idas e vindas de moradores
Movimentos de idas e vindas de pessoas ao interior da casa são constantes
nesta família, similares aos descritos na casa de Mãe Dialunda. Como na primeira, esse deslocamento é mais intenso entre membros com menor força
ou ocupando posição mais baixa na hierarquia familiar; aqueles aparentemente menos propensos a serem os futuros herdeiros da casa ou parte dela
em determinadas configurações relacionais. As disputas pelo espaço neste
grupo familiar foram mais claras e explícitas e se traduziam nos distintos desejos por ocupar determinado lugar ou posição no grupo doméstico – ainda
que transitório – ocupando um quarto, um sofá ou uma cama na casa, ou
saindo dela para constituir novas famílias separadas do grupo doméstico,
com recursos próprios ou dos novos parceiros.
Foi interessante observar com relação à geração de netos a ocupação da
cama de D. Cida, que compartilhava com duas das netas (filhas de Neneca) em
fases distintas da pesquisa. Primeiro com Lia – a neta que depois se casou –
depois com Liliane, sua irmã, que também se casou alguns anos depois. Houve
determinada fase em que ambas as irmãs – Lia e Liliane – disputavam entre
si uma banda da cama da avó, chegando a dormir quatro mulheres de três
gerações distintas, no ano de 1997, quando nasce Lila – filha de Lia e Jerson
– na mesma cama matriarcal: D. Cida em um extremo, Liliane no meio, Lia e
a bebê do outro lado da cama, segundo contavam divertidas a avó e Neneca.
MG: Lia e Liliane brigam pela cama da senhora? Me conte de novo essa
história..
D.C: É! Inté hoje! Porque a Liliane mora/ dorme comigo. Fica lá com
a mãe... mas de noite ela dorme aí comigo. Então Liliane... E Lia também dormia comigo... [mas] quando se perdeu, porque arranjou um
marido... saiu e deu lugar a... a Liliane. Deu lugar a Liliane, Liliane que
mora comigo aí. Aí, vive que elas briga por causa de/ por causa disso.
Tem ciúme por causa de eu.
MG: Mas a senhora gosta de todos por igual ou tem algum predileto?
D.C.: É. Eu gosto de meus neto tudo... meus filho/ meus neto... tudo. Eu
como avó eu... eu considero todos eles que tudo/ os menino tudo...
408 maria gabriela hita
tudo me tem de consideração, né? Dina levou uns dias sem deixar os
menino descer, sem vim aqui em baixo... mas eu nada tenho a ver... depois, então, agora, já tá vindo/ os menino vem... as vez ela manda... os
menino aqui...
(D. Cida, 24/2/1999).
É interessante observar que, se inicialmente, a cama desta avó foi um espaço por ela cedido, acolhendo e resguardando a respeitabilidade das netas
mais velhas, em uma estratégia de proteção da sexualidade da proximidade
masculina do padrasto (e primos); este espaço, entretanto, passou a ser disputado pelas netas como lugar de privilégios e de acesso a um poder e relação
de proximidade com a matriarca, quem, por sua vez, lhes outorgava uma posição mais elevada do que a de outros membros que não tinham lugar em
camas ou quartos, como foi o caso de Lela, outra das filhas de Neneca.
Como a casinha de Neneca estava sempre cheia, Lia, primeiro, Liliane, depois, passavam para a casa da avó à noite. E foram casualmente estas as netas
que tiveram uniões mais bem-sucedidas no começo de suas vidas adultas. Lia
engravidou, ao que parece, para prender o namorado, homem trabalhador
considerado bom partido, com quem namorava há muito tempo. Liliane, ao
contrário e diferente da maioria das mulheres nesse contexto, casou-se primeiro. Liliane tinha fama de ser namoradeira e desperdiçar bons pretendentes,
casou-se por volta dos 22 anos, e teve a filha depois do casamento. Ela foi, deste
conjunto de netos, a mais escolarizada: pretendia ser professora primária ou
entrar na universidade. Quando casou, foi morar em outra casa, de aluguel,
com o parceiro. Em 2003, Liliane possuía, em sua casa, uma venda de alimentos, onde empregava a prima Jane, filha primogênita da tia Dina. Em 2003,
Jane tinha se unido ao namorado depois de engravidar e foram morar sozinhos
em um quarto alugado. Dina cuidava do bebê enquanto Jane ia trabalhar na
venda de Liliane. Ela comenta que após a morte da avó, só se relacionava bem
com a mãe Neneca, sua melhor confidente, e que tinha problemas com irmãs
e primos, fala de suas expectativas e situa um pouco como era a vida quando a
avó era viva e sobre o uso dado à cama matriarcal após a morte:
MG: Quantos anos você tem?
L: Tenho vinte.
MG: Estuda?
a casa das mulheres 409
L: Estudo. Tô fazendo primeiro ano agora.
MG: Em quê?
L: Formações gerais. E... eu espero conseguir entrar na faculdade... que eu
quero fazer Direito. Mas, se não der, eu quero fazer magistério mesmo.
Coisa mais próxima, né?...
MG: E você trabalha?
L: Tô fazendo... eu trabalho... com doce, tortas, salgados... essas coisas. [...]
MG: Conte algo da sua infância, do que você lembra, que imagem você
tem da sua mãe e avó?
L: O que eu lembro? Quando eu era criança, com minha vó e minha mãe?
Ah, [vó] se preocupava muito com a gente... Como quando eu comecei a
namorar um primo meu que fez eu namorar/ pagar ABC... essas coisas...
MG: Como?
L: Negócio de pagar ABC.
MG: O que é ABC?
L: ABC era dar... beijo na boca, essas coisa... Ele foi o primeiro e o último.
MG: Que idade você tinha?
L: Tinha quinze.
MG: E sua mãe? Ela reclamava desse namoro?
L: Não! Até hoje ela não reclama, assim, não...
MG: Qual dos seus primos foi?
L: Era esse que passou agora. [Robson] <pequeno Riso>. Ele que botou eu
pra namorar/ quer dizer foi por que [eu] quis, né?
MG: E sua avó?
410 maria gabriela hita
L: Vovó/vovó/vovó brigava muito também com a gente. Minha mãe não
falava nem tanto como ela falava, né? Por exemplo, se a gente saísse ou
fizesse alguma coisa de errado, minha mãe não falava tanto como ela
falava, ela falava o dia todo, ela falava. Aí, até quando... minha mãe se
retava também aí começava a brigar com a gente... mas era mais ela,
minha vó [que] se preocupava mais com a gente/ todo mundo do
que as própria mãe da gente.
[...]
MG: Conte mais da sua relação com D. Cida. Como era?
L: Ah, minha relação com ela é a que todo mundo sabia. A gente
dormia junto. Sempre quando eu chegava, ela era que abria a porta. Ela que... ela. E... depois da morte dela... me senti só! Aí foi que eu
chamei Tita pra dormir aí – [filha de Lena], a neta menor de D. Cida
– a gente dorme junto aí/ Mas ainda me sinto só! Um pouco. Porque...
uma criança do lado da gente <pequeno Riso> não ajuda em nada...
Dorme, dorme, dorme... ela de um lado, eu durmo do otro... assim... Mas
eu tô me acostumando.
(Líliane, 27/01/2000).
Como relatado por Liliane, Tati (a caçula da filha assassinada de D. Cida),
depois da morte de D. Cida, passou a dormir na cama de casal da avó, com
sua prima Liliane. Liliane era quem disputava um espaço na cama da avó,
quando D. Cida era viva, com sua irmã Lia, a primogênita de Neneca, antes
dela se unir a Jerson. Nessa fase, Tati dividia o sofá da sala com seu primo e
melhor amigo, Willy, com idade bem próxima à de Tati, nessa época por volta
de 10 anos. Willy é o filho do irmão mais velho de Tati, Téo.
Em momentos mais críticos de uma briga entre o sub-grupo famíliar de
Dina e Neneca, Liliane teve que partir desta configuração de casas, para se
proteger de ameaças e denúncias policiais feita pela tia, tendo que ir morar
em casa de umas amigas, temporariamente. Porém, conflitos e reciprocidades não são permanentes e mudam em cada nova conjuntura. Anos depois, Liliane empregará a prima, Jane, filha de Dina e da sua mesma idade,
em um novo negócio de venda de doces.
Outros casos de elevada mobilidade espacial observados nesta nova geração
foram os dos diversos netos de D. Cida que saíram em variadas ocasiões da
sua casa, indo, por algum tempo, morar com grupos de amigos maconheiros da
redondeza, quando não conseguiam viver pacificamente, na casa de D. Cida.
a casa das mulheres 411
Mas iam e voltavam a depender do grau de conflito e brigas entre eles mesmos
ou o resto de parentela (especialmente com o grupo de Dina como as descritas).
O mesmo tipo de movimento ocorreu com Léo, filho de Neneca, que mais de
uma vez tentou alugar casinha própria, para ir morar com a mãe do seu filho
Mário, Mila, garota pela qual estava muito apaixonado na época, e com quem
chegou a viver na casa de Neneca em 1996. Esta união com Mila não era aprovada pela sogra, Neneca, e terminou fracassando. Depois Léo foi tentar a sorte
no Rio de Janeiro, sem muito sucesso. Ele era dos mais namoradores e instáveis dos homens que conheci neste grupo familiar, muito alegre e simpático.
Em 2003, já tinha seis filhos de mulheres diferentes e apenas Pedro foi criado
um bom tempo por Neneca. Ele tem o mesmo problema de lábio leporino que
Letícia, a filha caçula de Neneca, menina desnutrida, com problemas de fala e
mentais que aprendeu a falar e andar com quatro anos, quando em 1992, iniciei contato com esta casa.
Lela e Liliane, filhas de Neneca, passavam meses ou temporadas morando
nas casas dos patrões onde trabalhavam como domésticas, voltando para casa
alguns finais de semana. Esta estratégia de viver na casa dos patrões era a
mais desejada por Lela, a filha do meio de Neneca e com menos espaço e
possibilidades, dentro desta estrutura familiar, de possuir o próprio espaço.
Devido ao seu temperamento, teve mais atritos com a mãe e sentia-se em paz
quando valorizada ou protegida por alguma patroa, o que produzia ciúmes
em Neneca. Depois da gravidez de Cristina, a possibilidade de dispor de liberdade foi restringida, pois Neneca não se dispunha a criar a neta Cristina,
como o fazia com o filho de Léo, Pedro. Ficamos sabendo, em 2013, ao voltar
a contatar a família que a irmã Lia passou a criar Cristina e que Lela teve mais
duas filhas de novos parceiros. Ela criava uma delas e trabalhava em casas de
família na Barra. A outra a avó paterna tomou para criar.
Os deslocamentos espaciais dos filhos de Dina foram bem distintos dos
casos relatados, seguiram outros critérios e preocupações. Os dois filhos
mais velhos de Dina deixaram a casa durante as temporadas mais difíceis,
em que havia menos dinheiro para sustentar todas as bocas e por desejo e
decisão dos respectivos pais. Dina e Doca decidiram protegê-los e ajudar na
formação, afastando-os de más companhias (proximidade da droga, no caso
do menino) e namoros considerados nada convenientes no caso de Jane (pois
seu primeiro namoro foi com rapaz que já era comprometido e não a levava
a sério na visão de Dina e Doca). Jane foi enviada a morar com a madrinha,
412 maria gabriela hita
na Amaralina; Guido, com seus avós paternos. Este afastamento ocorreu
também como precaução deste subgrupo familiar contra ameaças dos sobrinhos que D. Cida criou, os quais, devido a atritos e enfrentamentos constantes com Dina e Doca, poderiam ter ameaçado se vingar nos filhos, ou
serem péssimos exemplos, pela proximidade das casas e contatos em fases
mais rebeldes dos filhos.
Principais transformações espaciais no
surgimento de novas casas
As mudanças impressas na casa deste grupo familiar chamaram especialmente minha atenção: o movimento não é exclusivo das pessoas, também
é do ambiente físico que as acolhe. Este processo de reforma constante e renovação das casas é uma característica que marca invasões populares como
esta e também produto de recentes políticas públicas habitacionais. Durante
os anos de pesquisa que circulei pelo bairro, percebia-se a toda hora essa tendência. Sempre havia uma ou mais casas nas distintas ruelas do bairro que
sofriam modificações externas e internas: derrubavam paredes, criando novas divisões, mudavam portas, entradas, cores de paredes ou construíam lajes para erguerem novas casas. A construção sobre lajes é o movimento mais
visível devido à densidade populacional, que favorece a verticalização do
bairro pela falta do espaço, em perspectiva horizontal. Todo este movimento
estrutural imprime, a cada momento, uma nova e flutuante identidade nas
casas. Ao se observar as mudanças, na ampliação e/ou divisão do espaço original, acompanhava-se, ao mesmo tempo, o processo de desenvolvimento
dos diversos ciclos vitais pelos quais passavam cada grupo familiar, isto é, as
respectivas trajetórias familiares.
Um processo de reforma constante e renovação das casas é uma característica que marca invasões populares como a estudada, especialmente a
partir dos anos 90. O aparecimento de construções de casas de tijolo e materiais mais permanentes começou a transformar a paisagem das periferias.
Uma estratégia recorrente utilizada por famílias de camada popular era a de
invadir ou comprar, a preços irrisórios, diferentes terrenos vazios da cidade,
especialmente naqueles bairros onde há outros parentes. Este processo representa uma tendência de consolidar ou expandir o patrimônio original.
a casa das mulheres 413
Isto pode ocorrer em distintos terrenos e locais ou até em um mesmo terreno original, expandindo a casa para os lados ou para cima. Ainda que a
reprodução familiar tenha lugar em um complexo e diversificado contexto
urbano, marcado pelas invasões e crescimento desordenado de territórios livres das cidades; como dito, os exemplos aqui descritos mostram que a continuidade da união da parentela ou a separação residencial nas gerações seguintes dependem de vários fatores. Depende ainda, e em grande medida,
dos recursos que podem ser mobilizados para a ocupação das novas casas,
assim como do tipo de relações internas e de consideração que se desenvolveram entre casas matrizes e núcleos novos.
Sempre que possível, se torna imprescindível um contínuo investimento
na manutenção deste prezado patrimônio que é a casa, pois, devido à baixa
qualidade dos materiais, desníveis de terrenos e falta de controle na aplicação de regras corretas de construção, sabe-se que a ação das chuvas, o
calor excessivo e o tempo são suficientes para roer estruturas, paredes e telhados do lugar de moradia, sem devida manutenção. Foi esse o caso do
grupo familiar de D. Cida quando, por volta de 1993, parte do teto da casa
caiu. Veja-se o depoimento de Dina apontando essa deterioração da casa e
seu processo de reconstrução.
MG: Você pode me contar de novo como foi todo o processo da reforma
desta casa e das de baixo?
D: Conto. Começando de lá de baixo, né? É... Eu morava num quartinho,
né, como eu acabei de falar, num quartinho dois por dois, apertadíssimo,
com quatro filho, né. Doca quando ia lá que queria... não tinha como, né.
Mesmo assim insistia, viu. Era brigando, insistia. É!
MG: Mas você bem que gostava dele lhe visitar!
D: Gostava nada! Era que nem cachorro no cio! (Rss) Aí eu peguei chamei
Neneca, mãínha. Neneca [o nome dela] é Cida [como a mãe]. Chamei
elas e Merina também pra reunir e a gente bater laje, que a casa tava
preste a cair, quando chovia parecia uma piscina... Mas ninguém quis.
Merina também não quis não.
MG: Mas você gosta de Merina, se dá bem com ela, não?
414 maria gabriela hita
D: É assim, é boazinha e tudo, mas também... é ruimzinha. Tem um lado
dela. Aí eu fiz assim: ‘Ah, cês não querem fazer não, né, então eu vou fazer’. Mãínha disse: ‘que nada! Você é maluca! Fazer nada disso, vai querer
quebrar a parede aí, vai cai a casa mais ainda! Deixe como está!’
Eu disse: ‘não’. Mas aí eu insisti. Fui, dei o dinheiro que eu recebi na obra.
Eu tinha feito uma empreitada aí de/de rejuntamento de/de azulejo de banheiro. Aí eu peguei um dinheiro, aí comprei um saco de cimento, uma vara
de ferro, três latas de brita e três de areia. Eu mermo cavei o buraco, comecei a fazer os toco, né, eu sabia lá fazer! Na casa de mãínha, lá embaixo.
MG: Você mesma é que fez?
D: É! É, no qua/ mas era isso, era... Eu cavei o buraco porque, quem descia pra o meu quarto tinha que ser/ um metro de/ de/ pra descer, né?
Porque a casa de mãínha foi aterrando, aterrando, aterrando, mas
o quarto onde eu morava não, né. Não dava pra aterrar. Tanto que
quando chovia, enchia de água, tinha que tirar de balde que enchia
muito, né. E pra entulhar a casa de mãínha eu tive que pedir na obra
[onde ela trabalhava na época], ao rapaz pra trazer dois caminhão de/
de barro, pra entulhar a casa – que a casa era baixa demais!
E se o vizinho, né, comia alguma coisa, jogava pro outro lado de cá.
Porque era mermo que um chiqueirozinho. Aí eu peguei, cortei as paredes, fui fazendo, depois não agüentei mais, chamei o vizinho, porque lá
em casa/ aqui em casa com tanto homem, tanta gente e ninguém me
ajudava. Aí o vizinho que mora aí do lado, Alfredo, aí veio, me ajudou à
cavar uns três buracos [...]
Eu disse [a ele]: ‘não, cê cavando, o resto eu faço’. Porque o ruim era
cavar, né, pra mim que era mulher é difícil. Aí eu peguei enchi os
toco todo, e mermo assim, mãínha brigando: ‘Não! Deixe como
está! Não quero negócio de buniteza, não! Já tô no fim da vida; deixe como está!’. Aí eu disse [a mainha]: ‘Não’. Tá bom. Quieta eu tava,
e aquele negócio me enraivando, esse povo nem me ajudava e nem
deixava eu fazer sozinha... Aí, parou uns tempo, durante quinze dias. Aí
vai eu pra obra de novo, que a obra tinha parado/ que já fui pra outra,
ali perto do/do Imbuí. Aí foi que eu recebi um dinheirinho... Bom mesmo. Aí comprei o material. Aí ficou faltando, que eu já tinha enchido já
os pilares todos, só faltou as correntes em cima. Aí disse: ‘Pô, quem vai
me ajudar?’. Peguei e fui pedir a dona Mári. Ela me deu um cheque de
cem reais. Eu comprei o resto do cimento, né, e seu Gilberto ainda, dessa
vez ainda não chegou. Aí comprei oito sacos de cimento, comprei areia,
comprei brita... E os ferro que tava faltando, porque os outros eu pedi os
a casa das mulheres 415
pessoal na rua, né, se eles tinha um pedaço de ferro em casa. Muitos vizinhos aqui me ajudaram.
(Dina, 27/07/1999).
Neste grupo familiar, as sucessivas transformações da casa foram imprimindo um novo aspecto ao conjunto que o afastou, consideravelmente,
de qualquer proximidade com o padrão convencional de construção identificado por Marcelin (1999). Assim, por indicar uma mudança de valores
e expectativas, no caso de Dina ao menos, com aspiração de ascender socioeconomicamente para padrões próximos aos de classes médias. A mudança de valores também ocorreu nesta parentela no campo religioso, ao se
transitar de uma inicial simpatia com o mundo do Candomblé em Neneca,
e com o Espiritismo e Cristianismo em D. Cida, para nova religião pentecostal, mãe e filha passaram a frequentar e fazer parte da Igreja Universal
do Reino de Deus nos últimos anos da vida de D. Cida, contribuindo com
parte de suas mirradas pensões para tal seguimento religioso. Mas esta mudança de valores é apenas um dos aspectos que incidirá sobre as mudanças
sofridas pelo espaço físico da casa e os modos de ocupá-lo. Outros fatores
que também tiveram impacto sobre as transformações espaciais, ainda que
de modo indireto, foram as relações com o tráfico e consumo de drogas
pelos netos de D. Cida, e as ações de Dina e Doca em direção contrária,
quando pegaram de volta o ventilador entregue a traficantes, ameaças de
os denunciar à polícia, retirada de móveis doados à casa de D. Cida, etc. Se
na casa de D. Cida e Neneca as transformações físicas de seus domicílios
foram poucas, resultantes de desgaste e falta de manutenção das propriedades, na casa de Dina, as mudanças eram rápidas e visíveis, expressão da
mobilidade social ascendente deste lar. O projeto de vida bem traçado de
Dina a diferenciava da sua parentela e foi um dos fatores que maior impacto teve na reconfiguração espacial deste conjunto habitacional na fase
final da pesquisa. Para acompanhar esse movimento, retomo a seguir a história da casa e vida dos integrantes desta rede familiar.
Em 1992, o grupo de D. Cida ainda operava como uma grande família
extensa. Todos comiam da sua panela, inclusive Neneca que já se dizia proprietária do quartinho da frente (por determinação paterna), mas não tinha
os recursos suficientes para operar como núcleo independente, conforme
seu depoimento:
416 maria gabriela hita
[...] E no dia que ele morreu mermo [seu pai], antes dele morrer ele primeiramente conversou comigo, disse a mim um monte de coisa. Disse que ia
fazer uma viaje e que nessa viaje ele ia mandar uma surpresa de lá pra
cá pra mim. Eu ficava pensando que, que ele tinha uns terreno lá ni...
tinha não, tem um terreno lá em Mar Grande, eu pensava que ele ia lá
vender e ia me dar minha parte né? Mas, ele me deu isso aqui pr’eu
morar, que aqui era um, um bar.
(Neneca, 21/01 1991).
A casa nessa época, toda construída no térreo, teve espaços internos bastante modificados até a configuração atual. A casa matriarcal ocupada inicialmente por D. Cida, os netos (seis filhos de Lena após seu assassinato, um
filho de Merina e um bisneto) e os grupos familiares de Neneca e Dina (antes
dela se mudar para laje), sofreu grandes reformas. A mencionada incorporação da passagem externa permitiu ampliar espaços internos e, mediante
a laje construída, potencializou a verticalização. O novo corredor frente aos
dois quartos do meio na atual casa de D. Cida, pela derrubada da parede
frontal de um deles, transformou-se em pequena sala em “L” (sala e ante-sala
de jantar e TV, que se transformavam em quartos à noite). A fossa séptica improvisada como banheiro no fundo do terreno, após o quarto de Dina e posteriormente de Téo, foi transformado, ao final dos anos 90, em um banheiro
com latrina, isolado por paredes e com conexões sanitárias para a rede de
esgoto da cidade.28 Dina foi elemento chave no processo das melhorias e mudanças na casa da mãe e, ao menos da primeira etapa, do próprio lar. Seus
parentes e companheiro reconhecem o significativo empenho e dedicação a
este projeto por parte de Dina, mas os relatos apontam ainda para a importância do coletivo nesse processo.
Todo ato de construção é sempre coletivo, ao envolver negociações matrimoniais e familiares, organização do território, utilização de recursos econômicos e humanos (incluindo a posse e distribuição do terreno, material
de construção, trabalho, ideias, etc.). Os relatos de Dina o ilustram bem, ao
indicar a importância do mecanismo de mutirão ao qual recorreu diversas
vezes, colocando feijão, cerveja, pipocas ou agrados para todos aqueles estranhos (de fora da sua parentela) que estivessem dispostos a participar da
festa e ajudá-la. Entretanto, demonstra ressentimento com os parentes, de
28
O projeto Bahia Azul, iniciado no começo da década de 90, do que se falou no contexto do
estudo.
a casa das mulheres 417
quem esperava maior apoio e colaboração. Na Figura 19, quando comparada
à disposição espacial de fase anterior, na Fig. 18 (a mais próxima à versão
original da casa), é possível observar algumas das principais transformações
realizadas na planta térrea da casa matriarcal entre 1985 e 1995. Nesta nova
fase, observam-se duas casas distintas e separadas. A de cor azul era a casa
ocupada por Neneca e seu grande grupo familiar: sete filhos e o companheiro Gilson, com quem se uniu após a viuvez em 1986. Ele era pedreiro
e com o próprio trabalho, ao longo dos 13 anos de convivência, colaborou
para fazer melhorias no quarto de Neneca e transformá-lo em casa, composta por dois pavimentos, como indicam as Figura 19 e 20 em azul. O casal
foi lentamente transformando esse espaço, dividindo-o em cozinha e sala
inicialmente, construindo depois sobre a laje um outro quarto, quartinho e
banheirinho, tudo em espaços muito exíguos e apertados de uns 3m x 4m.
Na descrição de Gilson:
Gil: Que quando eu cheguei assim, isso aqui não era nada, isso era
um quarto... num quarto, todo mundo dormia... junto... Dividimento,
eu que dividi, era um quarto. Era fundo, era uma/umas camas, só... Aí
cheguei, fiz isso aqui... Pronto! e agora todo mundo dorme no seu
quarto... Isso! É. [E] Aqui tem um... até videocassete, tem aqui... uma coisa que não tinha! Não tem muita [coisa]... não tem... E eu ti/tinha televisão hoje, porque... foi minha mãe que deu... porque eles tem televisão,
tem sofá bom... tem videocassete, vídeo... eles não tinha isso... ela não
compreende nada disso. Quer dizer, ela/ela podia botar a mão pro céu...
e me apoiar... não ela me tratar mal... quer dizer... eu posso sair hoje e
eu num/eu como eu digo, eu num devo nada... nem/deve nada; eu posso sair... Livre. Que eu não devo nada a ela, nem ela a mim, nada... Que
eu do jeito que ela/que ela faz... tá se vendo que foi por que/ era por
causa da casa... que cê mora treze ano com a pessoa... a pessoa não faz
nada... tem/ só faz/ dar comida, como se fosse tudo... eu chego, venho...
comecei fazer... as coisa... hoje tá essa casa aí/ não é ‘casa’, mas é uma
casa que... que antes era... [...]
MG: Se a relação vai tão mal, porque você continua ficando com ela,
por aqui?
Gil: Eu já sentei, eu já sentei sozinho aqui... pra pensar... o quê que aqui
tem... pra eu ficar ligado aqui... Pra eu tá ligado aqui... Porque eu tenho
a casa de minha mãe... tenho a casa de meus parentes... e eu posso
418 maria gabriela hita
pegar e sair29... Graças a deus, tenho profissão, não ia ficar apertado por
isso... Às vezes, eu penso o quê que tem de eu ficar... ligado aqui. É... Eu
tenho que descobrir, porque...
(Gilson, 31/01/99).
Dina trabalhava em construção civil e, após a morte do pai e declínio progressivo do estado da casa da mãe, foi a mais empenhada em fazer melhorias
e recuperar-lhe o estado geral, conquistando com isso o direito a um pedaço
da laje da casa materna. Assim, por volta de 1994-1995, começou a surgir a
independência deste novo grupo doméstico.
Foi a partir de aproximadamente 1995, quando Dina começa a construir
sua casa (iniciando a construção com um quartinho, que em 2003 era parte
da sala) e D. Cida a envelhecer, que Neneca e Dina adquirem os respectivos fogões e passam a ir alimentando os próprios filhos, dividindo-se a
grande família extensa, em três novos núcleos. De um grande grupo familiar em terreno comum, passou-se a vários núcleos, no mesmo terreno,
onde quartos e espaços do que era uma única casa foram sendo divididos e
transformados em novos lares, os quais, com as sucessivas transformações
e construções, deixam poucos rastos da casa original. Posteriormente, por
volta de 1997/98, D. Cida cede outra parte da laje para a neta primogênita,
Lia, que, ao engravidar de parceiro provedor, Jerson, teve condições e recursos de construir, atraindo para esta Casa o braço de um homem trabalhador e de respeito, formando-se o quarto grupo doméstico ou Casa, que
marca nova etapa do curso familiar. Foi assim que se iniciou o processo de
construção de novas casas, cuja independência é sinalizada pelo aparecimento de fogões separados. Essa transformação espacial, dentro do mesmo
espaço inicial da casa-mãe matriarcal, no mesmo terreno, mas com casas
agora bem diferentes, rearrumando os grupos e pessoas a ocupá-las, aponta
como ocorre a importante transição familiar de um núcleo matriarcal extenso para o de vários novos núcleos familiares mais independentes, o que
foi sendo resultado da decisão, ordens, desejos e vontade da matriarca, associado às possibilidades de independência da sua parentela e distintos jogos
de forças de cada subgrupo. De uma casa de apenas uma planta e 4 quartos,
passou a ser 4 casas em 3 pavimentos, com a edificação de novos cômodos
e reocupação por novos membros de espaços antigos destinados, anterior29
Esta narrativa evidencia o processo de separação do casal que estava em curso, e que só depois
ficou mais claro, quando Neneca inicia outra relação e Gilson decide finalmente sair desta casa.
a casa das mulheres 419
mente, a outros, de acordo com os lugares e posições por eles ocupados
neste grupo familiar. Poder captar este tipo de movimento e transformações
na temporalidade das casas é apenas possível em pesquisas de teor etnográfico e longitudinal como esta, pois, nos estudos de censos, apenas se pode
registrar um momento específico, o da entrevista e momento conjuntural
específico da história do ciclo vital da casa pesquisada.
No depoimento de Dina, a seguir, percebe-se como foi acontecendo o processo. Por meio das narrativas de diversos atores, as quais trago para contrastar distintas posições e visões. Sobre todo este processo de transformações
espaciais da(s) Casa(s), se percebem também como cada um se posicionou em
distintas tensões. Dina contou como ficou isolada e foi a principal responsável pelas reformas realizadas no lar de D. Cida, onde inicialmente residia.
Sobre tais reformas, narrou como fez e com que ajudas contou:
D: Aí foi indo, foi indo, foi indo. [as primeiras reformas para a casa não
cair], depois, seu Gilberto perguntou [a ela]: ‘Dina, o quê que tá precisando aí em sua casa, que eu posso lhe ajudar?’. Aí eu disse: ‘Não precisa
não, seu Gilberto’. Aí... Comecei trabalhar com ele. Eu disse: ‘não precisa
não’. Ele disse assim: ‘Ó, menina, você primeiro tem que fazer seu quarto,
faça sua parte, deixe os outros pra cá’.
MG: Aqui nessa casa de cima?
D: Aqui em cima, ainda não, era lá embaixo, é, lá embaixo. Aqui foi agora, foi agora. Aí fiz as correntes assim.
MG: E quando foi isso? Quanto tempo faz?
D: É, tem [uns] cinco anos, é. Aí, eu fiz assim, é então eu vou colocar só as
correntes em cima. Ele disse assim: ‘ó, então faz o seguinte, eu vou pegar
um serviço bom, cê topa trabalhar comigo?’. Eu disse assim: ‘Eu nunca trabalhei com esse negócio de verniz, com cera, negócio de lixar madeira’. Ele
fez assim: ‘menina, o trabalho é fácil. Vai ser difícil pra você que é mulê,
né’. Eu disse: ‘não, não tem importância, não’. Peguei, fui. A primeira
vez que eu fui, passei mal, fui parar no pronto socorro com o cheiro do (tiner). Eu falava, o cheiro subia, né. Aí, o segundo dia também, o terceiro
dia, eu fiz assim: ‘Ah não, eu vou continuar, que eu vou conseguir’. Aí trabalhando com ele, ele recebeu um dinherinho, acho que quinhentos reais,
cruzeiro, né. Reais, né? Aí me deu cento e setenta reais. Foi, foi isso mesmo
420 maria gabriela hita
Figura 18. Casa de D. Cida por volta de 1985.
QUARTO
DE JULHO
Divisória de madeirite
QUARTO
FILHOS CASADOS
CORREDOR DE ACESSO
À RUA DO FUNDO
QUARTO
DOS NETOS
QUARTO
D. CIDA
Jardineira
QUARTO GRUPO
DE NENECA
TÉRREO
a casa das mulheres 421
Figura 19. Térreo da casa de D. Cida a partir de 1996.
422 maria gabriela hita
Figura 20. 1o andar da casa de D. Cida a partir de 1996.
a casa das mulheres 423
Figura 21. 2o andar da casa de D. Cida a partir de 1996.
424 maria gabriela hita
quinhentos reais, foi. Aí me deu cento e setenta, eu sei que eu comprei num
instante, eu comprei o material, né. Ficou só a laje.
E mãínha brigando: ‘deixe como está, né’. As pessoas vinha me ajudar, ela
ficava no meio do caminho, num queria sair, não queria botar o fogão pro
lado de cá/ pro outro lado, pra desocupar o lugar pra botar os bloco... Era
uma consumição danada! Neneca também era só sotaque, dizendo
que eu tava fazendo aquilo ali com o dinheiro que os homens me davam na rua, que eu era prostituta, né. Foi um sofrimento! Acontece...
(Dina, 27/07/1999).
Seu Gilberto era seu empregador e quase um pai para ela, que a aconselhava e apoiava. Mas ela também contou com ajuda de outros colegas, vizinhos e pedreiros que foi contratando ou pedindo diferentes tipos de ajuda,
já que com a família ou com o meio parceiro, dizia contar pouco, nessa fase:
D: Aí eu peguei, e conheci Paulinho, um rapaz que é do depósito, dono
do depósito. Ele fez assim: ‘Ó, menina, cê quer bater sua laje?’. Eu disse:
‘quero’. ‘Então você compra a prestação, você me paga quando você puder’. Mas Doca sempre amarrando/ já tava trabalhando nessa época.
MG: Doca já vinha mais lhe visitar nessa época?
D: Aqui?! Vinha, depois que eu conheci seu Gilberto e as pessoa/ os vizinho aí que se aproximaram de mim, aí ele começou a vim, de dois em
dois dias, de três em três dia – mas ajudar, em nada! Não arriava a mão
pra nada! Malmente dava um dinheiro pra comprar comida pros
menino... parecendo que os menino era só porco, vivia só de comida. Não dava uma sandália, andava descalço, os meninos, não tinha
roupa pra vestir... Aí, eu sei que eu comprei o bloco, ficou só a roncarina
pra comprar... também, outro sufoco. Eu disse: ‘é, já viu ninguém bater
laje sem/ só de bloco? Nunca vi isso’. Aí só impricando, né. ‘Cuidado, que
esse negócio de bloco eu não confio não!’. Mas, como é que eu ia poder
bater laje de cimento armado, se eu não tinha condições? Tinha que
ser assim! Aí, era brigando comigo, eu ficava danada. ‘Vou largar tudo
aí e vou me embora!’. Aí, no outro dia, eu ficava quieta, antes de trabalhar, eu tinha que carregar areia e botar pra dentro de casa pra sair sete
horas da manhã pra ir pra obra. Era um sufoco desgraçado (Rss).
(Dina, 27/07/1999).
Conta também da resistência da mãe, que não queria sair ou cooperar
muito com o modo como Dina administrava ou a velocidade com que desejava concluir. Sobre este aspecto, comentou:
a casa das mulheres 425
D: Aí, eu peguei bati a laje de mãínha toda, né. Ela dizendo: ‘Se você
bater essa laje aqui, daqui eu não saio’. Eu disse: ‘mãínha, você tem que
sair! Como é que vai bater laje com a senhora dentro do quarto?’. Ela dizia que não saia dali. Eu disse: ‘É, mãínha, então eu vou botar esse plástico aqui... Mas a senhora tem que sair. Se bater um bloco na cabeça da
senhora?!’. Ela dizia que não saia. Mãínha também é um pouquinho
ruimzinha, viu. Sofri muito! Consegui bater a laje desse jeito mesmo,
com ela de baixo, pedindo a Deus que não caísse uma massa na cabeça
de mãínha. Bateu a laje e disse [a] mãínha: ‘Não pode dormir aqui
no quarto hoje’ – [e] ela dormiu no quarto! Quer dizer, Deus abençoa, né? [pela teimosia da mãe]. Bati laje em toda a casa dela – deixa
eu vê... as duas sala, cozinha, dois quartos, né. Uns cinco vão, todo.
Menos no meu quarto que eu dormia, e nem no quarto de Aurélio, que
era meu irmão, né.
MG: O quarto de Aurélio é onde hoje é o de Téo?
D: Não [esse era o dela!], o de Aurélio era onde é o banheiro. Cê sabe
onde é lá embaixo, né? É, ali que era o quarto de Aurélio. Que os
menino fazia a maior bagunça. Coitado de mim e dele, né.
MG: Por quê?
D: Não! É porque a gente sofria... muito, né. Ele já morreu, descansou,
mas eu continuo sofrendo até hoje. Não sei nem... Ah, tô indo pra cima,
mas com dificuldade. Quando eu penso que eu dou um pulo pra
cima, neguinho vai e me puxa, eu desço de novo, aí vou começar de
novo, aí dou, pulo um degrau, aí, daqui a pouco, quando vou subir,
outro, aí pum, descer. Tá um sufoco danado.
(Dina, 27/07/1999).
Por intermédio desta narrativa, Dina mostrava como foi difícil fazer
a ampliação no térreo da casa da mãe e como conseguiu efetivá-la, apesar
da oposição da mãe e dificuldades que impunha. Quando disse que estava
construindo a laje dessa casa, estava se referindo ao novo telhado, não se
tratava, ainda, da fase seguinte quando começaria a construir a própria casa
no segundo pavimento e laje da casa de D. Cida. O relato a seguir demonstra
como tais etapas foram sendo conquistadas aos poucos e depois de várias
negociações. Inicialmente D. Cida ofereceu a Dina sair do quartinho úmido
dos fundos para se juntar a ela na casa por ela reformada (no primeiro pavi-
426 maria gabriela hita
mento). Mas Dina negociou o acesso a construir a própria casa na laje que ela
ergueu e ampliou na casa de D. Cida:
D: Aí, eu peguei e disse, pra mãínha:
‘Aí, mãínha, a casa tá boa, aí’.
Aí, ela disse assim:
‘Ah, então venha pra cá, né, cê já não fez sua casa aqui, quer passar a
dona da casa, então venha pro lado de cá’.
Era um sofrimento danado. Que eu já tinha batido laje na casa dela. Ela
disse que eu queria passar a [ser] dona da casa dela. Eu disse: ‘Não,
minha mãe’.
MG: O que ela lhe disse que você queria passar a ser?
D: Dona, passar [a ser] dona, na casa dela. Porque eu não bati a laje na
casa dela?! Então, ela queria que eu ficasse... ela queria que/ achava
que eu queria mandar na casa dela. Então, é. Aí, eu fiquei lá no quartinho. Aí Doca [dizia a ela]:
‘Aí, você fazendo o bom pros outros e você morando aqui dentro desse
chiqueiro! Por isso que eu não venho aqui! Esse mau cheiro danado! Os
menino vai no banheiro, defeca aí, larga aí tudo aí, à toa. Por isso que
eu não venho’.
Então, eu achava aquilo que ele tava falando certo, mas não era nada
disso, ele queria sair de mim mesmo. Doca. Aí, quando choveu, teve um
dia que choveu pra caramba, trovoada e em cima do telhado, lá do meu
quartinho, endireitando as coisa, botando plástico. E eles tudo cá no bem
bom, né. Não ouvia nem a chuva cair, porque laje, nem escutava. E eu lá
no fundo. Os menino dormindo junto com os piolho de cobra. Sim. Né,
aí eu tinha que levantar pra/ ficava com o olho aberto porque os rato
também entrava né, se deixava, eles fazia a festa, era rato, era barata,
era tudo, uma bagunça danada. Aí vai eu... enfrentar a minha vida. Aí,
mãínha se sentiu tão humilhada com aquilo, né. Sei lá, não sei se foi
humilhação dela ou se ela doeu mermo o coração, né, ela sentiu, que
os vizinho entrava e amostrava, ó a casa como é que ta bonitinha! E
meu quarto lá no fundo. Aí ela pegou quando cheguei do trabalho,
ela pegou e falou comigo: ‘ó, bate sua casa em cima da laje aí’. Em
cima da TUA LAJE, depois de ajudar? Aqui é minha. Embaixo: a laje
de mãínha.
(Dina, 27/07/1999).
Dina incialmente planejou ficar na casa já construída de Neneca e oferecer a ela construir em toda a laje de D. Cida, que era uma área muito maior,
a casa das mulheres 427
dado ser o grupo familiar de Neneca mais numeroso. Mas, esse projeto não
vingou, levando, então, Dina a construir na laje o primeiro cômodo de sua
futura residência, que começaria a surgir nos anos seguintes:
D: Aí, eu cheguei assim:
‘Ó, mãínha, não quer falar com Neneca? Se Neneca quiser subir... ela faz
a casa dela lá em cima, e eu fico na frente, que na frente eu abro uma
vendinha pra mim... e dá muito bem’.
MG: Você queria ir para o lugar onde está hoje Neneca?
D: Era. É. [Falei de] Dar a laje pra Neneca, e eu disse [a maínha]:
‘Não, mãínha, porque ela tem mais filho, e a venda pra mim/ a casa da
frente pra mim é melhor, que vai fazer uma/ botar uma venda e vai beneficiar todo mundo. Todo mundo vai/ vai ter uma ajudinha’.
Aí, eu peguei fui/ E mãínha disse:
‘Fale com ela!’
Aí peguei fui falar com Neneca. Neneca não quis! Disse que não, que
eu era muito esperta. ‘Você é muito esperta, não tem casa nenhuma pra
dá a ninguém aqui não. Vá construir a sua lá em cima’. Então, ela achou
o seguinte: que a laje era grande, e que eu não tinha condição de construir a casa, né? Eu também fiquei assim pensando: ‘meu Deus do céu,
eu vou subir, vou construir com quê, se eu não tenho quem me ajude?’.
Mas, só que foi engano.
(Dina, 27/07/1999).
Como Dina é ambiciosa, habilidosa, empreiteira e tinha relações no mundo
da construção, rapidamente expandiu sobre grande área da laje, adquirindo
assim, um pouco à força, o direito à construção da própria casa. Naquela época,
Dina tinha uma barraca de quitutes na frente da porta de Neneca, no meio da
rua, e próximo à venda onde, no passado, fora a de D. Cida e seu Diógenes que
vendiam para o bairro cerveja, refrigerantes, doces, biscoitos, salgadinhos etc.
Por isso, Dina desejava ficar no quartinho de Neneca (e que foi ele propriamente o lugar da venda dos pais, no passado). Frente à negativa da irmã de
trocarem os respectivos terrenos, seu projeto de casa foi adotando nova configuração. Como todo projeto de vida das pessoas, o de Dina foi também sendo
produzido pela experiência em curso e não como resultado de um claro e definido projeto a priori e que depois se coloca em ação. É a própria ação e seu
curso e distintas negociações que se fazem no tempo, que possibilita o surgimento de determinados projetos de vida e delineia seus contornos e direção.
428 maria gabriela hita
Não se pode nunca saber de antemão, nem exatamente, como se apresentarão
as coisas no futuro, mas se não se for o desenhando a partir de certas possibilidades e recursos conquistados no presente e a partir do passado (trajetórias de
cada um), nunca se chegará às metas que expectativas e desejos de indivíduos
projetam sobre o futuro. O passado e futuro ficam interligados pelas ações que
são adotadas em um suposto presente, que depois de acontecido, se torna imediatamente passado. E retomando outras partes desta narrativa, Dina revelou:
D: Aí fiz assim/ aí peguei e fiz um quartinho, um vãozinho. Não tinha
telha, cobri com um plástico preto, né? Era a felicidade! Nesse dia,
eu/eu fiz até pipoca, fiz arroz doce. Pra mim, era um... pô... morar
num quartinho desse aqui de... de três por/ três por dois! Aumentou
né, que era dois por dois, aumentou. Oxente!
Os meninos dormindo tudo lá amontoado... Peguei, subi, aí, antes
de eu subi, cheguei pra ela [irmã] e perguntei:
‘Neneca, cê quer subi? [depois de já construído o quarto].
‘Você sobe, eu fico aí em baixo’.
‘Não!’ [Disse ela].
Eu disse:
‘É... não vou ficar insistindo não, não vou insistir mesmo’.
Teve uma hora que eu fiquei pensando assim:
‘Mas, como eu [sou] besta, né? Fazer a casa e dar pros outro de mão
beijada’...
Peguei, subi, vim morar aqui em cima, quando a chuva dava, o plástico subia! Eu tinha que puxar o plástico, porque não tinha telhado.
Né? Um sofrimento danado... (Rss) Fui crescendo/assim, depois que eu
fiz a casinha aqui em/ o quartinho... aqui em cima, Doca começou a
chegar, né? Chegando de/ de beirinha. Pra todo efeito, foi ele que
construiu. Mas, só que não foi ele que construiu nada, quem construiu fui eu! Num tinha escada pra subir não, era escada de [obra]/
de madeira! Cê vê, né, subir com os menino... pequeno, porque a
casa não tinha escada... Aí eu peguei, fui trabalhar, disse assim:
‘Vou trabalhar no ponto de fazer essa escada aqui’.
No ponto pra fazer escada!... Aí, eu peguei trabalhei - também nesses dias, não comprei nada! Disse assim:
‘Ói, vai comer pouco...’.
Comprei umas/ umas (Rss) Comprei umas tripas de galinha, né, na/ na/
no abatedor vende, né, tripa de galinha. Aí, com o pauzinho a gente enfia,
né, (Rss) E fica que nem torresmo/ com arroz fica gostoso né, douradinho.
Aí, passou durante quinze dias comendo assim, carcaça de galinha tam-
a casa das mulheres 429
bém, né, asa, percoço, né, o miúdo da galinha. Só não a cabeça! (Rss) Aí
foi indo, foi indo, foi indo, depois comprei soja também. Eu disse:
‘É, não, tem que comer assim, porque eu quero fazer essa escada.
Como é que vai ficar subindo desse jeito em escada de pau, em tempo de cair?!’
Aí, eu peguei, falei com o rapaz, perguntei quantos sacos de cimento dava
pra fazer a escada, ele disse que cinco sacos de cimento dava. Comprei o
ferro, né/ e mãínha brigando! Aí pronto.
MG: E porque sua mãe brigava, o que você acha que ela pensava?
D: Ela? [brigava] Porque eu acho assim: que ela não gosta de/ Não/ ela
gosta e quer me ver com a sandália rastando, mas se eu botar um sapato – não quer, porque/ Não sei por que! Não é só ela, como todo mundo, né, de minha família. Se ver eu com o sapato quebrado, pra ela é a
maravilha:
‘Dina é a boa, minha filha é maravilhosa’
Mas se eu comprar o sapato, e perguntar:
‘Quanto foi? Cê gasta dinheiro em besteira, em comprar sapato caro’.
Só [fazendo uma] comparação. Aí eu fiz assim:
‘Ói, sabe de uma?! Já tô acostumada a isso mesmo, e vou fazer essa
escada’.30
Fiz a escada, não era pra ninguém subir nesse dia na escada. Bateu a
escada, era umas uma hora da tarde, quer dizer, que até no outro dia
não podia ninguém subir. Uma hora da tarde terminei de bater a laje/ a
escada, quando foi sete hora da noite, Téo tava subindo na laje. Né? Por
cima da escada, a escada mole, né? Ainda bem/ Graças a Deus, que já
tava mais... secou... rápido o cimento.
MG: Téo subiu no seu quartinho?
D: [Foi!] Assim, pra cima da laje, pra fumar droga, aqui em cima da laje,
né? Quer dizer, que ele tava fazendo já de foice, né?. Foi o que/ mais eu
quis... construir a casa [o] mais rápido possível. Mesmo assim foi devagarinho, quer dizer, menos de um ano, a casa já tava pronta, né?
Mas pra mim, parecia que foi uma eternidade.
MG: Você fez tudo sozinha?
30
Esse trecho da narrativa denota como para Dina o que estava em jogo eram sentimentos de inveja e desconfiança da sua parentela frente a sua rápida ascensão social. Mas não se questionava
se o ressentimento dos parentes era por sua nova lógica ou estilo de vida mais individualista e
menos solidário com o resto da família, processos que foram ocorrendo de modo concomitante.
430 maria gabriela hita
D: Foi! Eu sozinha, sozinha mesmo! Sozinha mesmo! Não foi de dizer
assim que tinha ninguém pra dizer assim ‘tome um saco de cimento’, não.
Seu Gilberto me ajudou muito, muito mesmo, isso aí eu não posso
negar. Seu Gilberto é a pessoa que arranjou trabalho pra mim, uma
pessoa como meu pai, né? Quer dizer, eu vejo nele o pai que eu perdi, né? Me ajudou muito, em cimento, em areia mesmo. E outras pessoas/ outros vizinhos aí, daqui da rua mesmo, que eu pedia, o pessoal pegava e me ajudava, né? E eu sozinha, ficava até quatro hora,
cinco hora da manhã/ às vezes, via até o dia clarear, enchendo as
correntes/ sozinha! né? E Doca dormindo... bêbado!
(Dina, 27/07/1999).
Os trechos que seguem esclarecem como Dina continuou trabalhando
para ter a casa que tem hoje:
Depois que eu fechei todinha [o quarto inicial da sua casa], aí não tinha
como não pagar um pedreiro pra levantar as parede, que eu não sabia
naquela época, né. Não sabia, foi que... eu peguei amizade com Greta,
né, essa moça que chegou aí, nesse instante. Foi que ela disse assim:
‘Ó, Dina, eu tenho um cunhado que ele tá vindo pra cá pra Bahia... por
esses dias. Você fala com ele, que ele vai construir sua casa’.
Eu disse:
‘Ó, Greta, mas eu não tenho dinheiro’.
Ela fez assim:
‘Não, menina, cê acerta com ele, talvez, até pra você, ele nem cobre’.
Eu disse:
‘Não. De Graça também eu não quero’.
Foi que ele chegou, aí falou assim:
‘Não, você é tão legal, o pessoal fala de você muito bem’.
E foi assim que ele fez a casa. Quer dizer, se ele cobrasse quinze reais um
dia de uma pessoa, pra mim, ele cobrava sete e cinqüenta. Sempre assim, me ajudando, né. E, meio pro fim, não tive nem como agradecer a
ele, né. [Pois ele morreu] Ele construiu a casa... num piscar de olho. Mas
sempre assim, com implicância e com olho grande [dos outros]. Mas pra
mim... né? caindo doente, me recuperando, trabalhando... foi que eu fiz...
MG: E com Greta? Como é sua relação?
D: É, com Greta ficou a amizade. É, aí eu disse assim:
‘Pô, pra quê uma casa grande dessa se eu não tenho móveis, não tenho nada pra botar dentro de casa?’
a casa das mulheres 431
Porque os móveis que subiu... pro quartinho, foi os caixotes de tomate, né? E as/ os/ os ripão e os madeirite... Que era a minha cama.
Eu disse:
‘É, não tem mesa não, vou começar a enfeitar a casa, né? Qualquer jeito aí...’.
Peguei, comecei a recortar papel de revista e colar na parede... dizendo que era quadro... A mesinha era uma lata de/ de tinta... das
grandes, né? Com uma tábua quadrada em cima, forrava com uns
pano de crochê – que eu fazia crochê/ faço crochê – e botava um
jarrinho de lata de óleo... com areia e umas plantinhas dentro.
Enfeitava a casa. Eu disse: ‘É, já tá com cara de casa. Já não tá mais
com cara de (Rss) de quarto. Já tá com cara de casa’. Não tinha banheiro aqui em cima ainda, aí tinha que descer... pra ir no banheiro
lá embaixo.
(Dina, 27/07/1999).
Dina continuou, dia após dia, a erguer e aumentar o seu invejado patrimônio. Fez, inicialmente, o segundo quarto no primeiro pavimento (hoje
sala) e, à medida que erguia e derrubava paredes, foi lhe dando a configuração que alcançaria até o momento de conclusão desta pesquisa, em 2004.
Inicialmente, todo o primeiro pavimento da casa era distribuído apenas
pelo pequeno hall de entrada, onde estava o quadro que assustava Doca, um
quarto, uma saleta, cozinha e banheiro. Na busca de maior privacidade, a
área de cima na laje da casa, usada como pátio e parte social da casa, foi invertida com os quartos de baixo. Em 1997, eu conheci esse espaço em construção do terceiro pavimento, onde Dina recebeu o grupo focal do projeto de
pesquisa sobre arrependimento da esterilização entre mulheres dessa comunidade, e sentia já à época, grande orgulho em mostrar a casa. Anos depois,
o agradável e arejado espaço passou a ocupar dois novos quartos e uma varanda para frente da rua, perdendo luminosidade e ventilação. O pavimento
de baixo foi transformado em uma ampla e agradável sala de três ambientes,
cozinha e banheiros melhor definidos e montados. Ver a parte em vermelho
da Figura 20 (e diversas fotos da sua sala no Anexo E).
Por volta de 2003, os dois quartos iniciais no terceiro pavimento – e segundo de Dina – foram reduzidos, dando lugar a um terceiro quarto (para
separar os dois filhos homens das duas filhas mulheres). Nessa fase, havia
uma abertura na parede da casa de Dina, perto da escada, que permitia a passagem para pequena área de pátio dos fundos: indicando ser este um novo
movimento de expansão do lar. Pela disposição espacial, esse pequeno pátio
432 maria gabriela hita
poderia ser incorporado ao segundo pavimento da casa de Dina ou da sobrinha Lia, com quem o disputou, antes dela partir para Camaçari.
Em pouco mais de quatro anos, o pequeno, asseado, cimentado e arejado
quarto de cima foi transformado em uma mansão quando comparada à casa
de Neneca e à de D. Cida. A casa de Dina tinha em 2003 duas salas e hall de
entrada, cozinha e banheiro em um primeiro nível (Figura 20, em vermelho)
e três quartos, com pequeno pátio para trás na direção da casa de Lia e minúscula varanda para frente da casa na direção de sua entrada, em cima, no
terceiro pavimento do terreno. Nesta nova configuração do terceiro pavimento, sua casa pareceu voltar a se aproximar ao modelo popular de construção de casas, com quartos localizados à esquerda e o principal de frente à
rua, para quem sobre pela escada interna. Ver Figura 21, em vermelho.
Às vezes, neguinho fechava a porta, eu ficava batendo pra... fazer necessidade... Né? E aí foi indo. Minha vida. Com muita dificuldade/. Não
tinha cozinha... ia cozinhando de/ de/ de fogareiro porque não tinha...
fogão, né? Depois, eu fui no lixo, achei um fogão de quatro bocas – só
funcionava só duas. Né? Mãínha me emprestou o bujão dela – brigando,
mas emprestou. Aí eu comecei a cozinhar aqui em cima. Não tinha panela, aí os vizinhos me arranjaram uma panela – oxente, eu tava feliz
da vida! Que eu já tinha já... quem não começou/ quem começou de
nada, né?, pra quem tem hoje... Aí, foi indo. Né? Hoje já tem! É, hoje!
Não, antes não podia trazer amigo nenhum na minha casa, que pergunta: ‘cê mora aonde?’, eu disse: ‘morava ali’ – ‘não posso ir lá não?’
– ‘não, não, outro dia você vai...’. Porque eu tinha vergonha! Já pensou?! Tinha vergonha - hoje não! Hoje, eu tenho prazer em encontrar qualquer pessoa na rua e dizer: ‘vá lá em casa’. Nunca pensei em
ter.... uma geladeira - já tá começando, né, por aí, pra não dizer o resto
das coisas, né? Uma geladeira/ eu já tive/ duas geladeiras, como uma eu
dei a mãínha, que mãínha não tinha, aí fiquei sem nada. Depois, consegui comprar – que os meninos quebraram a dela – comprei uma de segunda mão, dei a ela de novo – fiquei sem geladeira. Agora, tem uma lá
em baixo que era minha que eu dei pra ela, né? Que pra mãínha, eu
faço tudo. E comprei uma – de segunda mão. Cem reais... comprei.
Hoje, eu tenho geladeira, já tenho mesa, tenho sofá...
(Dina, 27/07/1999).
Para contrastar a versão de Dina, é interessante analisar um relato similar
desta transformação da casa feita por Doca, seu parceiro. Este procedimento
indica como cada sujeito, da posição que ocupa e do modo como vê a situação
a casa das mulheres 433
vivenciada, oculta, evidencia ou dá relevância e coloração similar ou distinta
em diferentes aspectos do relato a um mesmo conjunto de acontecimentos
que todos compartilham, transformando a versão, ligeira ou totalmente diferente àquela contada pelos outros envolvidos no processo em questão.
O mesmo processo ocorre ao contrastar relatos de outros personagens. Neste
caso, interessa destacar que, enquanto nas narrativas de Dina se evidencia
quase que exclusivamente a ação e sentimento dela como única responsável
pelo processo de reforma e reconfiguação da casa matriarcal, nos de Doca
a percepção é relativizada, divergindo, ainda que sutilmente, em alguns aspectos também mencionados por Dina, ou reforçando outros, indicando
onde o casal estava de acordo, como negociaram com o resto da parentela e
vizinhança, enfim, introduzindo novos matizes, e também a posição por ele
ocupada neste grupo.
A narrativa de Doca mostra, por exemplo, como outras pessoas e ele
mesmo participaram, ainda que menos do que Dina, neste processo, mostrando o caráter coletivo mais do que o individual da construção do habitar
e deste projeto, tão frisado por Dina. No que refere a outros temas da vida do
casal, Doca apresenta versão diferente sobre a estabilidade anterior da sua
relação de casal, ao menos neste momento posterior da entrevista em que
precisava legitimar sua posição de marido de Dina, declarando que estiveram
juntos, desde o período em que Dina ocupava o quartinho úmido dos fundos
da casa de D. Cida. Dados que tanto Dina quanto sua parentela trataram
de modo diferente, em outros trechos já apresentados e momentos de suas
vidas. Outro dado interessante a destacar é como Dina, Doca e o resto da
parentela entendem o tema da propriedade e direito à posse ou usufruto da
laje de D. Cida, onde ocorreram principais conflitos. Por tudo isto, cabe ressaltar que mesmo quando algumas informações pareciam em primeiro plano
repetir-se, a relevância de trazer boa parte delas de modo mais exaustivo visa
a demonstrar quem são e como se posicionavam distintos personagens neste
campo familiar, captar a multivocalidade e, através dela, pelo contraste e
confrontação destes relatos, recuperar os diversos sentidos que cada um imprime a sua versão do acontecido. Tal metodologia pode construir, mediante
a triangulação de todas essas informações, visão mais acurada e complexa do
processo que estou procurando revelar. Veja-se o relato de Doca, a seguir, em
comparação com os já apresentados por Dina:
434 maria gabriela hita
MG: Doca, me conte como você está se sentindo aqui na casa nova, e
como foi o processo da sua construção até chegar aqui, a relação com os
parentes de Dina, etc?
Do: [É] bom, [tô] me sentindo bem. (Rss)
MG: Você gosta?
Do: É! Tem que gostar porque... a gente, pô, a gente sofreu muito, a gente
lutou muito pra chegar numa bobaginha [sic] dessa que a gente chegou.
Entendeu? Quer dizer, bobaginha [sic] porque... muitos aí quer ter e não
tem, né? Um teto pra botar... a cabeça embaixo. Apesar de ser aqui...
que é na propriedade da mãe dela, mas ela tem direito, né? Que a
gente... veja bem. Quando eu comecei a trabalhar nessa... oficina que eu
trabalho – na São Paulo Pára-choques... então... a gente morava num
quartinho lá embaixo, pequenininho, apertadinho. Pequeno mesmo! Eu, ela e os meninos. E D. Cida tinha uma casinha baixinha assim
que quando chovia ninguém conseguia dormir. Nem de uma parte nem
de outra porque... vazava tudo, entendeu? Então aí, Dina trabalhando,
eu comecei a trabalhar nessa empresa – já tava com um ano lá. Aí, fiz
um acordo. Não, dois anos. Eu fiz acordo... e Dina trabalhando, né? A
gente aí pegou o dinheiro, começou a comprar material e... metendo mão aí na casa de D. Cida - veja bem! E aí começamos. Perepepê/ jogar pra frente aí... Gilson ajudando, trabalhando aí, mas... tava sendo
pago pra trabalhar... Os netos dela – alguns – ajudando, mas... dando
uma gratificação a eles. Trabalhando/... Aí pronto, a gente circundou
a casa de D. Cida, deixou em ponto de laje... E aí/ não, na escavação!
Gilson começou na escavação. Depois parou. Teve problema, pá/ com
Neneca, briga, isso e aquilo... Aí pronto, os pedreiros metendo mão aí,
deixou em ponto de laje, a gente aí: entrou a laje, mediu tudo, meteu a
laje aí... E, sem ninguém querer ajudar!... Aí, tudo bem... Bateu a laje,
aí D. Cida consentiu que a gente... ficasse/ montasse laje... Ninguém quis
ajudar.
(Doca, 23/01/2000).
O relato de Doca segue em sentido muito próximo ao de Dina, mostrando
como o quarto inicial foi erguido, naquela primeira fase e quando Dina trabalhava na obra com seu Gilberto, e como também contaram com apoio da
amiga Greta. Aqui interessa evidenciar como esta aliança parece ter sido
parte da estratégia de ocupar à força o terreno, e como este apoio material
e afetivo de novos e futuros vizinhos, contribuiu, de modo definitivo, para
consolidar o projeto da nova casa deste grupo familiar:
a casa das mulheres 435
Do: A gente aí fizemos um quartinho aqui – a gente subia numa escada de madeira, de lá... de baixo pra cima. Uma escadinha largando os
pedaço... Pronto. E aí... começou aí, pegou um pedreiro aí – rapaz que
trabalha bem... pronto! Fez essa escada aí. [Aí] a gente começou a
levantar as parede devagarzinho, devagarzinho e... começou a ter
[a má] sorte da/ da família aqui querendo pegar parte da laje, pegar daqui, pegar daquilo... A gente não deixou... Aí metemos logo
mão na parte [toda dessa laje]/ fizemos a parte, ficou todo mundo...
morando... A gente aqui, né?, e os meninos. Inclusive até... a Greta –
uma colega da gente – veio duas sobrinhas dela do interior que não
tinha onde ficar, ficou junto com a gente. Ficou aquele bololô danado,
entendeu? Aí pronto, a gente fez uma parte, depois... fez outra parte da laje... Pronto, aí começou... Teve a revolta aí da família dela...
da irmã, né? Sobrinha/ e da outra filha, aí voltando, foi até D. Cida
contra ela, contra mim... Por causa disso... Entendeu?
MG: Mas, D. Cida não tinha dado a laje para vocês construírem? Porque
ela ficou contra vocês, também?
Do: É... Sim... Porque eles não achava/ que a gente não podia fazer/
mas a gente/ ela teve/eu não!/ ela, né? Tinha todo o direito porque...
ela levantou a casa de D. Cida – fez tudo – que ninguém queria fazer...
Entendeu? E a/ D. Cida consentiu que a gente fizesse a nossa/ uma
casinha aqui em cima... Aí fez. É. Porque. Né isso? Né isso?! Então
[eles pensaram assim:] ‘porque ele não podia – a gente – metê mão
sem D. Cida ordenar’. [Mas] D. Cida deu a oportunidade, ao falar pra ela
que ela se virasse. Já deu o barraquinho lá, já pronto. Só faltava a laje.
Isso e aquilo... pra ela lá. E disse que aqui a gente podia fazer o que a
gente quisesse aqui. Que ela tá morando debaixo de um teto agora e
‘eu agradeço, que é junto’ [...] Aqui... o negócio às vezes tá indo bem/
eu gosto – entendeu? – eu gosto de paz! Entendeu? Mas às vezes dá
revolta... Porque, se eu pudesse, eu tinha saído daqui... Porque viver com parente é o negócio mais chato que existe no mundo... No
meio de parente, no meio de gente brigando – ôxe! Ninguém se entende, mas isso [das brigas] não/ nunca acaba não.
(Doca, 23/01/2000).
Em parte desta entrevista, Doca referiu-se também aos conflitos que estavam vivenciando com o novo núcleo familiar que estava emergindo nesta
configuração de casas no período: o da primeira neta de seu Diógenes, Lia,
a primogênita de Neneca, a quem D. Cida cedeu um pedacinho de laje por
volta de 1997 (ver na figura 20 a casa 4, de Lia e Jerson, em cor verde]. Esta
436 maria gabriela hita
parte da casa se localiza no final do terreno, acima do quarto onde se alojava
Téo e o banheiro da casa de D. Cida. Sobre como ocorreu esse processo relatou D. Cida:
[DC: Jerson] pra mim ele é uma pessoa boa, né? Não me incomoda...
MG: E como foi que ele subiu e foi construir na sua laje, me conte essa
história...
DC: Não...[foi] a situação dela... Ela parece que ficou logo de barriga... que
tava de barriga, ele trabalhn/ ele trabalhando, morava na casa do pai
dele... então, eu fiz a proposta a ele, disse a ele, se ele quisesse... fazer
um... um cantinho pra eles, que eu dava o terreno... que eu dava o
quintal, ele batia a laje, fazia em cima. Aí ele concordou, fez... foi caprichoso, fez a casa... e ela [Lia] mora lá... Saiu das costas da mãe [Nenenca],
que era uma briga danada com a mãe, a mãe não... A mãe brigava muito
com ela, brigava muito com ele... que nã... Porque morava tudo aí nesse/
nessa casa aí da frente... tudo aí, jogado aí... uma agonia aí... Por estar
tudo junto. Aí eu separei. É.
(D. Cida, 24/02/1999).
O casal construiu a escada de acesso à laje onde antes ficava o quartinho de
Aurélio. Lia, como a mãe – e pela doação do terreno por parte da avó, numa
clara estratégia familiar de expansão e melhoria da casa e de atrair um homem
provedor para a rede de parentesco – conseguiu consolidar uma união e levar
esse parceiro a assumir a paternidade e a nova família, formando um núcleo
familiar independente dos anteriores. Em situação paralela à vivenciada por
Branca e Etan no outro grupo familiar, este casal também estava negociando a
formação de um novo núcleo familiar e, diferente daquele, Lia apostava mais
no papel do provedor, do que Branca na força e segurança de permanecer
na própria parentela. Isto ficará mais claro adiante, quando ambos deixarão
esta configuração de casas para tentarem a vida na casa dos pais de Jerson,
até construírem sua nova casa, que dizem ser muito bonita e grande. Mas,
na fase inicial da negociação do casal e da gravidez de Lia, Jerson duvidava
se valia a pena ficar com Lia. Ele tinha outra namorada, que foi afugentada
pelos ciúmes de Lia, contava ele entre divertido e magoado, quando também
se queixava – junto com Gilson, com quem também realizei entrevista – do
excesso de ciúme e dominação das mulheres nesta parentela. Os relatos deles
evidenciam o papel que a oferta de D. Cida teve nesta negociação e formação
a casa das mulheres 437
do novo núcleo familiar. Sobre seu ingresso e permanência neste grupo de
parentesco, Jerson elaborou o seguinte relato, respondendo à pergunta feita
a ele e Gilson, no intuito de melhor compreender a sua posição no grupo e
visão que tinham dos acontecimentos. Eles eram os parceiros de mãe e filha,
outsiders na definição de Elias (2000), quando contrastados a parentes consanguíneos. No relato a seguir, foram instigados a pensar as razões de permanecer no local, já que tinham tantas queixas das parceiras e sua parentela:
J: Pra mim/pra mim... não tem/num/num/num tem nada de mistério,
entendeu?, Não tem nada de mistério. Eu acho assim... Lia taí, fez uma
filha minha, entendeu?... É. D. Cida me cedeu esse pedaço aí... a gente fez esse/ esse barraquinho aí, pra passar umas chuvas, que isso aí...
é pra passar uma chuva mesmo, que se tivesse uma condição, não
estaria morando [ali]... entendeu? É... mas é isso. Já estaria... com o
meu mesmo... entendeu? Já estaria com o meu. Mas não tem negócio de mistério, não. Porque se tiver de/de/de acontecer... se não/tiver
de acontecer... não der certo/ agora, eu fico imaginando assim ‘–pô, vou
sair daqui...’, quer dizer... daria, né? Porque me/ me/ meus parentes
me apoiam, minha mãe... tenho mãe, tenho pai, entendeu? Tenho irmão... todo mundo me apoia, ninguém me trata/ ninguém me trata
mal [lá]... ninguém me trata mal, entendeu? Agora, eu vou dizer: ‘Pô,
vou largar... Lia...’ou do contrário, eu vou ter que alugar... um quarto pra
eu morar ou vou ter que voltar pra casa de meu pai, com essa idade,
eu tenho 24 anos, vou ter que voltar pra casa de meu pai... entendeu?
Então... [prefiro] vou fazer uma/ uma tentativa dessa aí? É... [e é por
isso que] fico aqui. Agora, se um dia eu ver que não dá... aí eu vou pra
Jacarepaguá... não é? Meu pai é dali... entendeu? Não tem negócio de/
de... Que nada! [...] Você vê as coisas que eu falo/ as coisa que eu falo/
tem tudo a ver com Gilson. Quer dizer... o jogo, entendeu?, é um jogo!
Elas duas é um jogo. São filha e mãe – é um jogo, entendeu? [As duas,
segundo eles, têm ciúmes doentios, e são muito dominadoras, por serem
as donas da casa].
( Jerson, 31/01/1999).
O jovem casal construiu uma sala/cozinha, bem iluminada e projetada,
com grandes lajotas brancas no piso, paredes pintadas de branco, tornando o
espaço um ambiente agradável, onde costumavam subir D. Cida, Neneca e as
irmãs de Lia para assistirem TV, e conversar com a nova mãe e dona de casa,
que ficava impaciente com o desejo e imposição do marido dela não trabalhar fora para poder tomar conta da filhinha Lila. Mesmo assim, transgredia
438 maria gabriela hita
este mandato: trabalhava, quando podia, escondido dele que, ao descobrir,
chateava-se. Outras vezes Lia fazia geladinhos e coisas para vender sem sair
de casa, pois, apesar do marido dar tudo o que pedia, dizia, não tem nada como
ter o que é seu, seu próprio dinheirinho. Para Lia:
L: A nossa relação agora de família é melhor do que... a de namorado,
como era antes/ brigava, ele era lá e eu cá... aí ele ia de/ saía de lá mesmo e eu daqui também me sa/saía/ Quando era no outro dia, era briga
direto... eu acho que agora tá melhor que a gente senta, conversa... e
pronto... resolve.
MG: Sua relação sexual com ele é boa?
L: Eu acho que é.
MG: E querem outro filho?
L: Filho? Não... agora não... Vixe!... nem sei... Acho que quando Lila tiver
uns cinco anos... pode ser... Mas agora... dois anos...
MG: E como é essa história que ele não quer que você trabalhe? Conteme mais
L: Ele também não quer que eu trabalhe. Não sei. Não sei também o
quê que ele pensa... sempre pergunto a ele, ele sempre me diz: ‘pra quê
trabalhar se ele tá trabalhando?, tá... num tá passando fome, num tá vivendo’[...]. Antes, quando eu namorava, tudo bem, né?, com ele... ele
trabalhava... ninguém mandava na vida de ninguém/ mas agora...
ele diz que... bota tudo dentro de casa, num tá faltando nada, pra
quê ir trabalhar? A menina pequena... a menina ficando esperta agora... então [que] é melhor ficar dentro de casa. Aí eu tô saindo, fazendo
essas faxinas... ele nem sabe. Não... Ele sabe... mas ele não sabe, não...
que eu chego antes dele... só se alguém contar... Só quando eu apareço
assim com dinheiro, né? Que... sexta-feira, mesmo... quinta-feira mesmo,
eu fui e fiz a faxina... aí... a moça falou: 20 reais... ele... me perguntou
de quem era o dinheiro que tava ali debaixo. Eu digo: ‘é meu! ... que eu
fui fazer um negócio hoje pra moça’. Aí ele ficou: ‘ah, a menina ficou
com quem?’ Aí eu: ‘eu levei a menina’. Ele pergunta logo: ‘Quem é?
Quantas pessoas têm na casa?’. Aí eu: ‘É um casal...’ sempre/ mas sempre a mulher saí e deixa o marido dela lá, mas sempre o marido dela
fica lá dentro do quarto... é... ele, não saí não... nem me pede nada, me
dá o transporte assim em cima da mesa e entra... Fala mais nada. Mas
a casa das mulheres 439
eu queria trabalhar pra ter... um dinheirinho... sempre é bom!... Ele
[ Jerson] me dá. Sempre ele me dá... quando eu peço... agora mesmo
eu tô devendo... nota de roupa, sapato... ele pega e me dá... pra eu pagar.
Mas é... muito bom a gente ter o que é nosso na mão... Roupa, ele
me dá/quando eu quero comprar uma coisa... ele me dá o dinheiro... (Lia, 8/02/1999).
E sobre sua mulher Lia poder ou não trabalhar, Jerson argumentava, em
uma versão próxima e mais específica ao do resto das mulheres da família:
D. Cida, Neneca e Lia:
J: Não... trabalhar fora, é claro, todo mundo tem que trabalhar, entendeu?... No lance do trabalho... foi o que eu falei pra ela!... Ela tava trabalhando no Nordeste, ela/já tava já gestante, entendeu? Aí veio teve a
criança, eu disse: ‘É, Lia, já que cê já vai sair desse trabalho aí...’ – e fez
tudo certo pra ela sair – ‘Cê vai sair... você dá um tempo dentro de casa,
você vai ter a menina, entendeu?, vai dá um tempo dentro de casa, porque você sabe como é... seu pessoal lá... entendeu?. Quando/nego
bota na cabeça pra querer espancar, pra querer fazer, querer acontecer, faz mesmo! Então, cê dá um tempo dentro de casa... entendeu?
Pra gente não tá chegando do trabalho, tá encontrando a menina...
tomando porrada, do contrário... nego fazer, fazer o que faz, entendeu?’ A casa que é assim cheia, agonia, o pessoal faz mesmo! O pessoal/
‘Cê dá um tempo dentro de casa aí que... o pouco que eu tô ganhando
dá pra gente manter aqui a casa... dá pra gente botar as coisas dentro de
casa e dá pra sobrar... alguma coisa’. É, como de fato, entendeu? É, como
de fato dá! Ainda sobra... Mas não empato dela trabalhar, não... Eu acho
que... sei lá![...] [Mas se] Lia vai [fosse] sair, certo? Mas ela [filhinha] fica
aqui com Neneca, mas... sempre... tem aquele descuido, né?... aí a menina tá no meio da rua... como as três vezes aí, até Lia aí, na frente mesmo, passa bicicleta... às vezes cê... fala com a pessoa da bicicleta que... é
pra... passar mais devagar, quer dizer... a pessoa vem a você, quer brigar
com você, quer fazer, quer acontecer... Tem essas coisas aí... Ô!! Quer dizer, ela vai [ter que] dar um tempo dentro de casa... mas se ela quiser
trabalhar, e dizer que vai trabalhar, eu não vou impedir, né? Que a
galera... Eu disse a ela... se ela for trabalhar... ela [que] assuma a responsabilidade do... do/ do fato do quê, o que ela vai deixar a menina/
o quê [vier a] acontecer... Entendeu? Porque meu medo é esse... porque meu medo é esse. É a menina, entendeu? Não fosse a menina...
( Jerson, 31/01/1999).
440 maria gabriela hita
Como o espaço do quartinho de Lia e Jerson era pequeno, eles tentaram
negociar uma expansão para o lado da casa de Dina, solicitando-lhe que esta
lhes cedesse parte da sua cozinha e/ou banheiro para completar a independência total deste novo lar. Tal fato gerou conflitos entre toda a parentela
(ver Figura 20, posição deste lar, em cor verde). Frente à negativa de Dina,
este casal projetou continuar construindo para cima o seu banheiro e cozinha e fez movimentos de abrir porta de entrada para a casinha independente da de outras casas, em parede dos fundos que dava acesso à rua de trás
(já a esta altura fechada desde a primeira reforma da casa de D. Cida, liderada
por Dina), provocando a briga com vizinhança da outra rua. Naquela rua
também tinham fechado as entradas dos lados tornando o conjunto de casas
parte de um condomínio semi-fechado. Movimentos estes que coincidiram
com o desencadeamento da morte de D. Cida, motivos pelos quais a obra de
expansão foi interrompida e a propriedade do terreno no terceiro pavimento
ficou indefinida (ver Figura 21), naqueles anos.
Era perceptível como a rápida expansão sobre o terreno das casas por
parte de Dina e Doca, ao menos nesta fase inicial, produziram desconforto,
inveja, várias disputas, jogo de forças e negociações diversas entre os distintos subgrupos desta rede de parentesco. Com o crescimento do novo lar
de Dina, ao passar dos anos, a casa de Neneca, comparativamente com a da
irmã, passou a ocupar uma área menor, apesar do tamanho mais destacado
da sua prole. A narrativa da neta Lia é clara nesta direção e evidência algumas
das disposições entre as irmãs rivais e distintos interesses que estavam em
jogo na luta pela ocupação do espaço nesta parentela o que só me foi sendo
revelado através das diferentes versões e relatos de várias etapas deste conflito, dos anos subsequentes ao primeiro contato. Lia descreve o que move a
disputa entre Dina e Neneca:
É! Eu acho que é o olho grosso [inveja]. Entre ela [Neneca] e Dina. Porque
Dina mesmo quando discute fala: ‘que vocês tudo tem que ficar debaixo do meu (teto)! [sob o jugo dela], que não sei o quê...’, sabe? Acho que
é mais o olho grosso... Dina é mais... olho grosso... Porque o certo era
Dina ficar com a casa de cima... minha mãe com aquela que tá ali, e [e
o espaço lá] pra meu quarto, vó com a do meio e Merina, a mãe de/ a
outra filha de vovó, com a/a laje de cima. Dina não tem motivo de...
Minha vó pediu a ela e ela não deixou... [Merina] fazer a casa dela.
(Lia, 8/02/1999).
a casa das mulheres 441
Esta narrativa e as apresentadas a seguir apontam expectativas divergentes
sobre o que teria sido uma possível reconfiguração e uso legítimo do espaço
seguindo o desejo da matriarca em vida, e dos distintos grupos em disputa.
Em um extremo, encontrava-se a expectativa de Lia e Neneca, ao que parece, apoiadas por D. Cida, de impedirem novas expansões de Dina sobre
terrenos considerados como de D. Cida. Inicialmente as irmãs tentaram negociar ampliar parte da herança de Neneca, filha com mais filhos e menor
espaço construído, mediante o que sua primogênita Lia pudesse vir a construir: quando Lia pediu a Dina que lhe fosse cedido o banheiro e cozinha
construídos por Dina e Doca. Essa petição indica que, na visão da parentela,
esse terreno não poderia ter sido apropriado por Dina e Doca. A seguir disputaram quem poderia construir no terceiro pavimento. Frente ao fracasso
de Lia e Neneca, que já pensavam em deixar o Nordeste, a narrativa de Lia
mostra como defenderam o direito até então não reconhecido da irmã de
criação, Merina, poder vir a construir na laje de Dina de modo a impedir sua
nova intenção de expansão. Era a fase em que Dina já estava projetando a
construção dos quartos da sua casa nesse terceiro pavimento.
No relato de Dina se detecta a postura divergente dessa posição de como
deveria ser distribuído o espaço das casas de baixo. Esses relatos expressam
as distintas posições ocupadas por cada membro na parentela (com distinta
força e recursos, materiais e simbólicos, para impor a própria vontade) neste
campo de luta familiar pela ocupação do espaço da casa matriarcal. Tais recursos, com o tempo e após a morte da matriarca, mostraram não responder
mais, única ou especialmente, aos critérios por ela priorizados. Outros
grupos e forças de acontecimentos irão aparecer. E Neneca, como o indicaram relatos a seguir, também parecia nutrir certo interesse em disputar o
espaço da casa da mãe, após sua morte. Foi a fase em que buscou se aliar de
novo a Dina, buscando dirimir velhas disputas e brigas. Ela tentava agora a
aliança de Dina e dizia que nem Merina, nem os netos filhos de Lena, teriam
direito a herdar a casa matriarcal, que este terreno devia ser divido apenas
entre duas irmãs de sangue e filhas de seu Diogo, tentando excluir os netos,
filhos de Lena e Merina, dessa nova negociação, em um primeiro momento.
Acreditava ainda que, se fosse o caso de Merina ter algum direito, que caberia
a ela vir a construir acima da laje de Dina. Esta, por sua vez, não querendo
outorgar o direito a terceiros sobre a respectiva laje, insinuou que o direito à
casa por parte de Merina e dos netos que ali já moravam era legítimo, porém
442 maria gabriela hita
restrito ao espaço de baixo. Deste modo, começaram a desfazer-se as alianças
pretendidas inicialmente por Neneca. Dina, por sua vez, passou, seja para
alcançar a paz desejada, ou para evitar novos conflitos com estes sobrinhos,
a tolerar mais a convivência com esta nova e emergente força da parentela.
Essa foi a direção e configuração adotada por volta de 2003. As narrativas a
seguir ilustram bem as diferentes expectativas e conflitos que a distribuição
e lutas pela ocupação do espaço foi produzindo e como a configuração das
novas casas foi se redefinindo a partir destas negociações e reacomodações
no espaço. No discurso de Dina a seguir se evidenciam algumas destas diferentes posições que ela defendia nestes conflitos:
MG: Você acha que Neneca... vai continuar construindo a casa dela, para
a frente?’
D: É, eu espero que sim, né? Dou a maior força a ela, né? Peço a Deus,
né?, que assim como ele tá me ajudando, que ajude ela também, a todos
nós, né? Agora só vai/ não é só deus dizer assim: ‘eu vou ajudar’, ela
tem que ter força! Porque se não tiver força, como é que pode?!31
Encoste a porta Jane!... Tem... Né? Espero que deus dê força a ela... pra
que ela consiga também...
MG: Quem tem mais essa força da que você fala por aqui? Lia e você?
Neneca?
D: É. É, só nós três mesmo. Aqui dentro de casa eles/ eles [os netos, filhos de Lena] só podem contar com nós três. Mais Lia, né? Mais Lia! [do
que Neneca] Mais Lia, Lia/ a gente que tá... sustentando eles lá embaixo... né? Porque eles não fazem nada mesmo.
MG: E onde ficaram os menores de Lena que D. Cida criava?
D: Tita mais Willy tá... Aí embaixo? Eu não sei, lá embaixo... Não sei, né?
Neneca tem a parte dela, Lia também tem a dela lá, né? Aí vai ficar
entre eles e Merina, lá embaixo. É... Agora engraçado... quando mãínha era viva: nada disso, né? Nada disso acontecia. Ninguém [fazia]
lavagem [de] uma casa pra ela, ninguém fazia uma comida... ela se
acabava sozinha. Agora depois que morre, todo mundo tá querendo tirar um pedacinho, né?
31
Nesta frase ela parece revela a sua desconfiança e insinua Neneca não ter a força nem recursos
para seguir construindo sua casa.
a casa das mulheres 443
M: É mesmo? Você acha?
D: É/ é, não tão o quê?! Tão querendo. Um quer ser mais do que o outro:
‘a casa é minha’, ‘eu também tenho direito’. Aí tão brigando, lá... (tão em)
briga... Então, tem briga.
M: E Neneca também?
D: Ela também tá brigando aí.
M: E Lia também entra nessa briga?’)
D: Também! Todos aí tão querendo... Um pedacinho. (Rss) Quem não
tem direito sou eu, né? Eu/eu... Quem não quer sou eu, eu tô conformada é com o quê eu tenho. Né? Não tô conformada muito porque
não é aqui que eu quero viver não, viu? Eu quero melhor pra mim
M: Então... aquele seu velho projeto de você sair do Nordeste? Ele continua em pé?
Di: Quero. É, mas aí... Não, mas... eu falo assim que não vou sair assim como eu tava querendo... sair assim [antes], porque eu queria sair, o
quê?, pra... Eu saía e levava mãínha comigo, nem que saísse arrastada,
amarrava ela e saía arrastando... Mas aí agora, depois que ela morreu,
não. Tem que ser [mais] devagar. Vou primeiro/ vou construir o meu
ideal. Construir uma casa pra mim – não sei aonde, mas eu vou – pra depois eu sair. Aí quando eu sair. O terreno de Itapuã tá lá. Eu sem trabalho
também, né? Tá ficando difícil. Se eu conseguisse alguém que comprasse
isso aqui pra mim... Agora, hoje? [Quem vai querer?]
(Dina, 29/01/2000).
Na entrevista com Neneca, a seguir, reapresento alguns trechos usados no
capítulo anterior porque iluminam bem a discussão proposta sobre as disputas
e lutas pela posse da casa e as diferentes expectativas que cada um tem com
respeito a como o espaço deveria ser distribuído, após a morte da matriarca:
N: Eles [os sobrinhos criados por D. Cida] brigam muito por causa de casa,
né? Fica lá falando: ‘a casa é minha!’; outro diz: ‘a casa é de fulano, a casa
é de beltrano, a casa é de sicrano!’. A casa não é de ninguém! A casa não/
não /não tem dono aí, o dono daí é eu e Dina – somos as duas filhas do
casal. Não tem ninguém. Porque Merina é filha de criação... [...]
444 maria gabriela hita
MG: Então Merina não teria direito à herança da casa?’
N: Teria... Ela teria... Porque ela foi/ ela/ Merina/ mãinha criou ela... entendeu? Mãinha criou e ela foi registrada com o nome do meu pai! Mas
os meninos não. Os meninos não tem... nada a ver! O pai deles, o pai
de Lena foi outro... Eles era/eles maltrataram muito ela.
MG: Mas Merina está ficando lá na casa de D. Cida, ajudando os meninos agora, né?
N: Assim... Ela [Merina] tá aí, ficando aí, tá dormindo aí, tá ficando...
mais tempo. E... os filhos/ os filho/ os filhos dela também taí. Taí! Uma
coisa que eu... Eu/e/eu/me/revolto. Merina mesmo, ela vinha pra’qui
sempre, mas ela nunca vinha pra casa da/casa de mãínha, vinha sempre pra casa de Dina, nunca ficava cá embaixo na casa de mãínha.
Ficava sempre lá na casa de Dina. Não levava nem oito dias aqui. Ás vezes
mãínha caia doente... só ficava de horário médico...
MG: Você acha que ela tem algum interesse?
N: A casa! E casa era/ é... Como é?... A pessoa faz muita questão, entendeu? De um pedacinho de terra. E ela não vai sair daí nunca. Ela
vai ficar aí... sempre aí, com os menino. Agora que mãínha já se foi, vai
ficar aí. Ali vão morrer... vai matar uns aos outros, vai matando uns aos
outros assim, brigando com... Mas é [briga] por causa da casa.
(Neneca, 27/01/2000).
Depois de um tempo e pelo aumento da violência na casa e bairro, e numa
nova conjuntura de greve policial, em julho de 2001, morreu assassinado, e
retirado da própria residência, um outro neto de D. Cida. O jornal onde se
noticiou a tragédia especulava se tratar de queima de arquivos ou se era uma
vingança por dívida de droga. O que interessa resgatar aqui é o clima de pânico que se instaurou nesta parentela que levaram Lia e Jerson finalmente
deixar a casa deles aos cuidados de outro irmão e filho de Neneca, e irem
morar em Camaçari, junto à rede de parentesco de Jerson, onde pretendiam
recomeçam novos projetos de vida. Pouco tempo depois, Neneca e suas filhas menores, acompanhados do neto Pedro, que ela criava, também abandonam a casa e vão morar em quarto de aluguel em Camaçari, bem perto da
nova morada da filha primogênita.
a casa das mulheres 445
É perceptível que, por diversos motivos, Dina e Doca se consolidam como
o subgrupo mais forte e respeitado da família. Nesta nova fase, optaram por
manter relações mais cordiais e mais solidárias com o resto da parentela que
ficou morando nas casas de baixo e a abandonada por Lia e Jerson. Neneca e
Lia se enfraqueceram na disputa pelo direito à casa, pois decidiram abandoná-la para viverem com maior tranquilidade, fugindo da crescente violência
familiar e perigo que aumentou e teve seu ponto culminante com os assassinatos sucessivos de dois filhos de Lena, respectivamente em 2001 e 2002, foi
quando decidiram sair do Nordeste. Antes destas mortes trágicas, em 1998,
foi a vez de outra neta e irmã destes garotos, a vez de Daría, também envolvida em tráfico de drogas, e morte que seu irmão mais velho Téo, assegurou
algum dia desejar poder se vingar. Os netos sobreviventes descendentes de
Lena (bisneto) e dois filhos de Neneca passaram a dominar o terreno das
casas de baixo. Téo continuava morando nas casas de baixo, só ou com a namorada de temporada, ele ficou ocupando sempre o quartinho dos fundos,
antes ocupado por Dina. Orlando, filho de Merina, passou a ocupar a casinha
de Lia, possivelmente resguardando o interesse e possibilidade desta terceira
irmã de criação a alguma parte do terreno. Talvez, para vigiar a laje dessa
casinha, evitando que Dina continuasse a se expandir sobre esse espaço, do
qual em 2003, havia indícios dela estar intentado se apoderar de uma parte
desse pátio dos fundos. Esta pequena casinha no fundo da casa, depois de
ser abandonada por Lia e Jerson, foi primeiramente ocupada por Léo, outro
filho de Neneca, mas decidiu pouco depois ir morar perto de sua mãe Neneca
e o filho Pedro, em quarto de aluguel em Camaçari, junto ao novo namorado
da mãe e suas duas irmãs doentes e menores. Léo nunca teve boa relação
com Dina, nem com Téo e Mariano, atuais netos dominando a casa de D.
Cida, onde também ficaram morando Willy e Tita, nesse período. Na casinha
da frente de Neneca, estavam morando lá em 2003: Lelo (quem estava bem
melhor vestido e com cabelo pintado de loiro) e Lela (Mako), os dois filhos
de Neneca que até então tinham melhor relacionamento com os primos, filhos de Lena, e com a própria Dina. Lelo tinha um bom relacionamento com
todos, mas o seu preferido e melhor amigo foi sempre Téo, a quem muito admirava, e comentou em uma entrevista.
Quando retornei recentemente, em 2013, para pedir autorização de publicar fotos neste livro, vi poucas mudanças, fora o fato de que, na casinha
outrora ocupada por Neneca, estava morando a filha mais velha de Dina,
446 maria gabriela hita
Jane, com seu novo parceiro e filho dela. Três dos filhos de Lena continuavam
morando na casa de D. Cida, a pequena Tita, já com filhos; o primogénito
Téo que se tornara alcoolatra e estava muito envelhecido e perdido. Téo me
reconheceu de imediato e repreendeu sua prima Jane, que conversava comigo por trás das grades, por não abrir a porta e me receber na casa, como
correspondia com pessoas amigas e conhecidas da família há tantos anos.
Dina contou-me que Téo e Mariano brigavam muito e que sempre havia confusão nessa casa indicando que pouco houvera mudado. No momento em
que conversávamos, Mariano, que estava muito bem vestido e falando alto
ao celular na rua que dá acesso às casas, parecia estar controlando a minha
visita na casa de cima, a sua tia Dina. Foi quando Dina me pediu para ir falar
com ele, quando me reapresentei e expliquei-lhe o motivo de minha presença e intenção de publicar o livro sobre história da família. Ele se tranquilizou e começou a se queixar de Téo, do trabalho que lhe dava, confirmando
a fala de Dina de que a casa deles estava cada vez pior. As filhas de Dina sentiam vergonha da situação; Dina as tranquilizava dizendo que eu era velha
conhecida da casa e que nada era novo para mim. O que foi uma enorme surpresa foi o contato com Tati, que já era mãe e continuava morando com seus
irmãos na casa que foi de D. Cida. Ela estava muito alegre e desenvolvida, me
contou detalhes da vida de todos e da família de D. Dialunda, em cuja casa
fez questão de me acompanhar e se apresentar como neta de D. Cida.
Tudo indica que em 2013 o chefe deste grupo familiar passou a ser
Mariano, e não mais Téo. Ele é quem dormia no quarto de D. Cida, teve dois
filhos mas só criava o menor, com a mãe da criança. O outro era criado pela
respectiva Mãe. Willy saiu, e disseram que ficou morando uns 5 anos pela
rua, com grupo de colegas dedicados ao tráfico, mas que tinha recentemente
voltado para morar de novo na casa com o pai e os tios. Téo continuava ocupando o quartinho dos fundos, e Tita ficava em um pequeno espaço (quarto)
na região da sala em L. Tita teve dois filhos, o primeiro ela deu para criar; o
pequeno de 1 ano, ela estava criando sozinha.
Na casinha onde moravam Lia e Jerson, no segundo pavimento, continua
morando o outro neto criado por D. Cida, filho de Merina, Orlando, quem a
comprou do casal pelo valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Contudo, a casa fica
muito tempo fechada, pois ele permanece longos períodos com a namorada,
em outra casa do Nordeste.
a casa das mulheres 447
A maior parte de filhos de Neneca mora hoje em Camaçari, puxados inicialmente por Lia e Jerson, que vivem hoje em uma bela e grande casa comprada, já que ele trabalha na Ford, indicando estarem bem estabelecidos
economicamente. Eles já tinham 3 filhos e criavam a sobrinha Cristina. Lia
trabalhava vendendo roupa, quando podia, de modo autônomo. Neneca
continua na vida de sempre, dependendo do apoio dos filhos, das pensões
dos filhos doentes e dela como viúva, vivendo ainda com o mesmo parceiro
em uma casa de aluguel. Esse parceiro estava trabalhando de carteira assinada com carro de lixo (possivelmente na companhia de limpeza urbana), mas
tinha ficado recentemente desempregado. Ao que parece, já não criava mais
Pedro, que podia estar sendo criado pelo filho Léo ou respectiva mãe.
O outro filho de Neneca, Léo, que já tinha 5 filhos de mães diferentes, ao
sair do Nordeste voltou ao Rio de Janeiro por um tempo. Mas, em 2013, já
tinha ido se instalar em uma casa de aluguel com nova parceira e um filho,
em Camaçari, perto de sua irmã Lia e de seu irmão Lelo, quem também tinha
deixado o Nordeste, tinha um filho e estava morando com parceira e filho
em casa de aluguel. Léo virou pastor evangélico, o que todos comentavam
rindo das suas pregações.
Apenas Lela (Mako) e Liliane, deste grupo familiar, continuavam pelo
Nordeste de Amaralina. Liliane já tinha 3 filhos e morava em casa comprada,
no Nordeste, com seu marido, o pai de seus filhos, e criavam também dois filhos do marido com uma parceira anterior. Eles tinham uma vendinha de comidas na frente da casa em que Liliane atendia. De Mako, Lela, a outra filha
de Neneca, contam que saiu da casinha de Neneca, embaixo, também por
brigas e desunião na parentela, e que hoje mora no Boqueirão (outra região
do Nordeste), mas que recebe o valor do aluguel de Jane pelo uso da casa de
Neneca. Lela já tinha três filhos de pais diferentes, dos quais a primogênita,
Cristina, sua irmã Lia levou para criar, em Camaçari; a segunda filha, a avó
paterna tomou para criar, e ela estava criando a pequena, que fica na creche
ou com vizinhos, enquanto trabalha como doméstica, na Barra.
Na casa de Dina continuava tudo parecido a 2003, a casa mais arrumada e
bem mantida, morando com Doca e dois filhos menores, já que Jane, sua primogênita, depois de circular por outros quartos de aluguel, foi ocupar a casa
que continua sendo propriedade de Neneca, na frente das casas de baixo;
e o filho Guido estava morando na casa de uma parceira, com a qual não
448 maria gabriela hita
tem filhos, mas ajuda a criar os dois dela. Dina continuava trabalhando em
construção civil e rejuntamento fino, como autônoma e comandando, em
2013, uma equipe de 5 pessoas, prestando serviços para distintas empresas
ou arquitetos que a procuravam. Doca saiu da empresa onde trabalhava, mas
continuava trabalhando com carros, como autônomo. Dos filhos deles, Jane
trabalhava como merendeira em uma escolinha, teve apenas um filho, mas
mora hoje com outro parceiro, com o qual não tem filhos, alugando de sua
prima Lela, a casa de Neneca. E Tico, que mora com os pais, teve um filho
que visita a casa, mas é criado pela respectiva mãe (ver fotos destes grupos
familiares em 2013 no anexo G).
A casa – como demonstrado nestas duas etnografias familiares – é lugar
onde os membros se definem como indivíduos integrantes desse agrupamento
social, e portanto, um importante referencial de pertencimento. A casa é, antes
de mais nada, uma referência permanente para os membros; um bem simbólico coletivo, isto é, como bem o descreve Marcelin Louis nos estudos do
Recôncavo Baiano, é uma matriz simbólica na qual nascem a coletividade familiar e os mitos de família (MARCELIN, 1996). Contudo, considero que a casa
pareceria ser uma referência mais permanente, especialmente, para aqueles
membros com laços de sangue mais próximos e bem colocados na escala de
consideração das matriarcas ou seus grupos familiares, aqueles que pareciam
ter mais chances de se transformarem em legítimos herdeiros ou futuros proprietários do bem, ao menos de uma parte dele, enquanto as matriarcas estavam vivas.
A casa é para os membros que a habitam tanto uma referência temporária,
um lugar de passagem, como, simultaneamente, essa referência permanente
(MARCELIN, 1996). Ela é uma referência temporária para aqueles netos ou
membros dependentes da matriarca (grupo doméstico) que ali residem, mas
que estão de passagem e circulam entre várias outras casas da rede. Para eles,
a casa não necessariamente precisa ser a própria casa, mas daquela que assume sua coordenação, o centro focal por onde transitam as relações e em
quem se concentra o poder. Para estas pessoas, o sonho da casa própria dificilmente se concretiza, e alguns deles sequer o formulam, são pessoas que
estão sempre dependendo da aceitação ou integração na casa dos parentes
ou afetos mais próximos em que costumam transitar. Mesmo assim, a(s)
casa(s) pela(s) qual(is) circulam é(são) para eles um lugar onde, e pelo qual,
a casa das mulheres 449
constroem a individualidade mediante a complexa rede de relações e experiências familiares em que estão inseridos.
Mas, o acesso ou restrição ao bem da casa responde a critérios de gênero,
geração e consanguinidade em ambos os grupos observados. Notou-se uma
clara tendência a priorizar a herança das casas, ou construção das próprias,
para as mulheres antes que para os homens; aos mais velhos (filhas e netas primogênitas) e aos que têm laços de sangue. Neste sentido, pareciam estar sendo
excluídos, em princípio, em ambos os grupos, os filhos de criação. Também
excluídas foram duas filhas primogênitas das matriarcas, de primeiras uniões,
quando estas últimas ainda não tinham construído patrimônio. Este fato pareceu-me indicar um critério adicional na definição dos excluídos: mostrou
que os filhos beneficiados foram os primogênitos dos pais que ajudaram as
duas matriarcas a erguerem-se na vida, e sugere que a linha de consanguinidade paterna também opera na definição de respectivos herdeiros.
Mas estes critérios identificados não operam de modo fixo ou para sempre,
devem ser tomados como potenciais guias de ação e fonte de expectativas.
Na realidade, modificam o curso da vida de todos e o destas Casas, pois, a
própria dinâmica das casas, como se viu, pode se modificar consideravelmente com a morte das matriarcas, outros eventos ou fatos centrais na vida
de indivíduos que afetam o resto do grupo. Como o mostram as distintas
trajetórias e o peso que tem a negociação individual na redefinição do poder
e força dos grupos emergentes ao interior da casa, não apenas estes critérios não são determinantes como também outros podem vir a predominar
ao longo do tempo. O tempo foi mostrando como a força de alguns, no
grupo familiar de D. Cida, e os elementos da consideração no caso do outro
grupo de netos mais outsiders na Casa de Mãe Dialunda, tiveram papel importante para os sustentarem nas casas matriarcais até 2013. Entretanto, tal
fato pouco indica, por sua vez, quais netos ou filhos continuarão morando
na casa ou serão herdeiros deste bem quando Dialunda se for.
Os dois exemplos analisados destacam a importância do controle exercido
pela matriarca sobre a disposição do espaço físico da casa e os terrenos que
seus descendentes receberam e ocuparam ao longo de suas vidas e especialmente quando elas estão vivas, empoderando mais alguns e enfraquecendo
conjunturalmente a outros, de acordo com desejos, predileções ou suas determinações. Isto parece apontar para o fato de que, independente do tipo
de propriedade ou titularidade da posse da terra por definições de herança
450 maria gabriela hita
civil e estatal, que o observado nestes dois casos de família matriarcal se assenta no direito que as matriarcas deram a seus descendentes, de acordo
a sua compreensão e decisão de quem mereceria ter direito a uma casa ou
apenas a usufruir e habitá-la. As decisões e determinações destas duas matriarcas eram aceitas e reconhecidas por quase todos, cujas autoridades sobre
destino do bem estava legitimado, por ser elas consideradas verdadeiras proprietárias deste bem familiar. É essa propriedade e a trajetória destas duas
matriarcas como líderes do grupo familiar o que lhes davam esse poder e outorgavam-lhes o direito, em última instância, de decidirem sobre o modo de
se ocuparem as casas, dividir e formar novas. Elas decidiam os novos rumos
do grupo familiar de acordo a suas avaliações sobre o desempenho de cada
membro do lar e do maior ou menor cumprimento destes das normas por
elas estabelecidas, como forma de conquistar ou retribuir a seu legado. A decisão de quem seria o beneficiado dependeu, por sua vez, de um conjunto de
direitos diferenciados de distintos grupos de pessoas que variaram segundo
os graus de parentesco de sangue, afinidade, consideração, descendência de
pais diferentes, posição ocupada na hierarquia familiar e pela complexa e
única combinação de todos estes elementos em cada caso e conjuntura específica de relações. Tudo isto me leva a sugerir como este modo de operar e
entender o mundo, e o modo como se lida e transmite o bem da propriedade
das casas, não segue as mesmas regras de uma sociedade capitalista de mercado. Ao invés, é regido por princípios organizacionais da matriarcalidade
aqui descritos e demonstrados, os quais só podiam ser compreendidos e melhor visualizados a partir do exercício da matriarcalidade, que é uma, dentre
outras, das manifestações da importante matriz cultural afrodescendente
que tanto peso tem na sociedade baiana.
Para retomar reflexões iniciadas em capítulos anteriores, considero que
a dádiva da casa, o direito a ela foi, sem sombra de dúvida, um dos bens de
troca mais valorizados nas relações de reciprocidade destes dois grupos extensos de parentesco matriarcal observados durante os anos de trabalho de
campo; um bem a ser dado, recebido e retribuído, conquistado, rejeitado ou
usurpado, construído e destruído, transformado e traduzido no próprio hau
(alma) da matriarca.32 Um bem a ser cobiçado e dos principais motivos de
32
Para Sahlins (1983) a ideia indígena de hau (o espírito das coisas) é conceito fundamental sobre a
dádiva, em que o princípio vital da pessoa que dá seria o verdadeiramente trocado num kula (circulação de presentes), e onde a troca deve ser vista como ato e não fato. Entendo que um espaço
a casa das mulheres 451
conflitos familiares. A posse de uma casa faz dos proprietários pessoas respeitáveis, portadores legítimos do nome da Casa matriz, comenta Marcelin
(1996). Quando um membro do grupo doméstico parte para a construção da
própria casa significa uma conquista individual, mas também um logro coletivo, de ordem grupal, pois supõe certo apoio e recursos da coletividade. Ser
capaz de mobilizar mutirões para construir a casa própria e erguê-la, mostra
ao mundo o quanto se é respeitado pelo meio, o grau do relacionamento
social deste indivíduo e seu grupo familiar, a importância e integração à comunidade. A separação da casa matriz traz também, simultaneamente, além
da sensação de força e consequente prestígio grupal (e sinal de sua Força
Simbólica Circulante – FSC), um sentimento de ruptura e distanciamento
do novo subgrupo familiar que se diferencia do grupo matricial, impedindo
à casa matriz, no dia de amanhã, de poder dispor do mesmo modo dos recursos gerados a partir desses membros, da sua força de trabalho ou energia
que passarão a ser canalizados para a nova casa. Mas isto nem sempre ocorre
de modo claro, trata-se de processos longevos, que podem adotar diferentes
configurações espaciais.
Uma retribuição a esta dádiva do pedaço de chão recebido se expressou em
melhorias coletivas impressas na construção desse bem coletivo que permitiram a processual modificação entre o que inicialmente era a casa das mães e
passou a se dividir em mais de uma: as casas dos filhos e netos. Dons e contradons não são apenas de ordem material, podem ser também de ordem afetiva
(espiritual, etc.), e ocorrem no transcurso das relações estabelecidas entre a
parentela, sejam estas de aproximação ou de distanciamento às expectativas
projetadas sobre cada membro. Na circulação deste outro bem também muito
almejado – expresso como o afeto da mãe – foram sendo tecidas relações de
alianças e cumplicidades, interesses e obrigações espontâneas, conflitos e disputas. Nestas relações, o que parecia estar constantemente em jogo, e em
constante negociação, era uma certa posição, reconhecimento e prestígio ao
interior do grupo e fora dele; mediado pela relação direta com estas mulheres
que centralizam a autoridade nos respectivos grupos.
Entre as principais coisas trocadas que entravam em circulação – tais como o
afeto da matriarca – aquilo que era dado e recebido deveria ser posteriormente
outorgado nas casas matriarcais seria clara expressão do hau ou mana destas casas matriarcais, o
próprio ser destas casas (clãs, estirpes), onde cada nova modificação espacial, ao longo dos anos,
seriam emanações e objetivações desse complexo processo de trocas.
452 maria gabriela hita
retribuído, sob ameaça de se instalar um conflito aberto (potlatch). Também
circulavam pelas casas crianças e pessoas da rede de parentesco modificando o
mesmo uso do espaço físico. De fato, tanto as pessoas circulavam pelo espaço,
como este entre elas; o espaço também mostrou se mover, simbolicamente,
transformou-se e readaptou-se a partir da dinâmica impressa a ele pela vida e
trajetórias dos habitantes, e ao ser transferido de uns a outros em distintas conjunturas e temporalidades destas Casas.
Em suma, neste capítulo foi analisado o modo de reprodução de Casas
matriarcais baianas através da descrição das transformações espaciais ocorridas em determinada propriedade (casa) extensa chefiada pela mãe-avó e
pela descrição do uso do terreno feito por distintos subgrupos familiares que
a compuseram. Na Casa de D. Cida, por exemplo, quatro novas casas emergiram das transformações e novas construções sobre o terreno do que foi
originalmente a Casa matriarcal matriz. Esse desmembramento da casa matriarcal foi resultado de doações sucessivas de parte do terreno a seus descendentes pela matriarca, quando estava viva, apropriação indevida de parte
do terreno por subgrupos familiares e herança pós morte da proprietária.
Nestes termos, descrevi o processo de inclusão/exclusão de membros destas
redes de parentesco à herança e direito ao uso da casa. Algo similar também
ocorreu na casa de Mãe Dialunda. Essas transformações da casa ao longo do
seu curso vital revelam a dinâmica dessas Casas, evidenciam os conflitos e
alianças conjunturais tecidas por distintos subgrupos, assim como os sentimentos de pertença e identificação construídos e renegociados (nem sempre
de modo consensual), estigmatizando uns e empoderando outros.
A divisão em vários núcleos familiares, longe de romper com a lógica de
organização de família extensa, ao nosso ver a reatualiza, pelo reinicio de
processo similar nos novos ciclos. Nestes novos lares, mais autônomos do
matriz, se reproduzem velhas dinâmicas nas novas Casas, com habitus similares aos da original ao incorporarem os netos ou parceiros de seus filhos nas
novas casas. Mas também, porque estes lares continuam conectados à rede
anterior e maior de parentesco, matriz da que são parte, vizinhos próximos e
elementos constitutivos centrais, onde a sucessão da posição ocupada anteriormente pela matriarca passa a ser disputada. Isto nada mais é do que um
exemplo da reprodução das famílias, ou sucessão das gerações, nos termos
dado a essa dinâmica pela demógrafa Guaracy Adeodato Souza (2003).
a casa das mulheres 453
m
Conclusão
lugar de homens
e mulheres em familias
matriarcais
Diferentemente da maioria de estudos sociológicos sobre chefia feminina
em famílias populares, a chefia analisada na etnografia familiar deste livro
– referente a duas bisavós, uma parteira e a outra mãe de santo e vendedora de acarajé – não está diretamente associada à ideia de grupos mais fracos
ou carentes do ponto de vista da sobrevivência econômica, no meio popular no qual estão inseridas. Estas duas chefes de família analisadas na minha etnografia foram, durante parte importante de suas vidas, as verdadeiras chefes da casa e de extenso grupo familiar, em que não é raro encontrar
também homens adultos que trabalham (filhos, genros, outros parentes ou
não). Os casos aqui estudados sugerem-se atípicos, pois demonstram trajetórias de ascensão social que podem identificar estas mulheres como autênticas representantes de um matriarcado negro, figura tão presente na cultura
popular baiana e em comunidades negras de outros contextos americanos
de pós-colonização europeia. Nestas regiões, a experiência da escravidão de
africanos e descendentes foi elemento central e constitutivo da matriz cultural afrodescendente que foi sendo gestada ao longo dos séculos e que, apesar
de muitas similitudes, também é preciso registrar as especificidades e diferenças sócio-históricas de cada contexto.
Parti do suposto de que, em famílias extensas, haveria uma maior propensão à formação de arranjos de tipo matriarcal, como os descritos neste
livro, e em direção similar aos achados de Klass Woortmann sobre ciclos vitais
domésticos em novos alagados. Para Woortmann (1987), mulheres maduras e
idosas, mais estabilizadas economicamente que na juventude, e muitas delas
já sem parceiros, tendem a assumir a chefia de suas casas e famílias na Bahia
a fim de ampararem e protegerem, com seus recursos e propriedades, uma
ampla e extensa rede de parentes. Dados similares se encontram em outros
estudos sobre chefia familiar de mulheres em outros contextos latino-americanos e do mundo, onde não é incomum avós chefiarem seus lares. Mas os
significados dados a estas experiências podem ser bem diferentes.
Não considero que o modo de organização doméstico matriarcal seja essencialmente o que caracteriza estilo de vida de famílias negras pobres, em
contexto americano, ainda que seja um apontado em vários estudos e como
a casa das mulheres 457
mais recorrente entre afrodescendentes que entre outros tipos de agrupamentos étnicos. Há, certamente, outros arranjos familiares diferentes ao matriarcal que também se manifestam, mas este, acredito ter logrado demonstrar neste livro, é um que está fortemente atrelado a essa matriz cultural e
pós-colonial de grupos afrodescendentes, tão marcante da sociedade baiana,
a qual lhe outorga significado mais positivado.
A centralidade que a figura feminina exerce e o papel de chefes do lar exercido por mulheres idosas em casas matriarcais, traço comum na sociedade
baiana, é o eixo estruturador e estruturante de um modo de ser, habitar e de
reproduzir o modo de organização familiar que denominei de matriarcalidade (em atualização crítica de noções de matriarcado negro) expressada nos
dois arranjos matriarcais descritos neste livro.
As duas matriarcas que estudei concentravam e veiculavam um poder e
força que poderia ser entendido como um dom ou tipo de força simbólica circulante (FSC) – no sentido maussiano – que se fundamentou no prestígio,
poder e posses por elas conquistadas. Esse poder se traduziu, em concreto, na
propriedade e fonte de renda estável de que eram possuidoras. A casa foi um
bem que foi ou será herdado pelos descendentes, mas cuja distribuição antecedeu parcialmente à morte das matriarcas que cederam terrenos ou pedaços
do uso e ocupação a alguns dos seus mais considerados. O poder econômico
baseado na renda foi fruto do salário, no caso da baiana de acarajé e, no da parteira, de distintas pensões (a própria, a do marido como viúva e a pensão de
invalidez do filho que era doente mental, quando ainda estava vivo). O prestígio que elas adquiriram na comunidade estava assinalado pelo status de suas
profissões entre pessoas de baixa renda e das posses por elas conquistadas.
As duas matriarcas possuíam o estatuto de ser mães sociais, ou serem esse tipo
de mães de todos, porque foram capazes de criar netos e crianças de outras
mulheres, introduzindo-os nas suas famílias por consideração. Também foram
elas mães sociais, simbolicamente falando, pelas suas trajetórias e pelo tipo de
funções desempenhadas: a de parteira, no caso de D. Cida, e a de mãe de santo,
de D. Dialunda. A primeira prestou diversos serviços no campo da saúde, e
foi responsável de ter trazido ao mundo muitos dos jovens da vizinhança, ela
era considerada como uma mãe por jovens vizinhos por cujas mãos (e não
ventre, neste caso) foram introduzidos no mundo. A outra matriarca, uma
das mais antigas baianas de acarajé do abrigo de Amaralina e mãe de santo de
Candomblé, era vista como mãe de todos pela prestação de serviços religiosos
458 maria gabriela hita
à comunidade, sendo chamada por muitos pelo nome de Mãe Dialunda. E a
matriarcalidade destas mulheres se sustentou pela força e prestígio logrado
por suas Casas no contexto estudado.
A categoria Casa, como conceituada neste livro, incorporou tanto a noção
de espaço físico estrutural quanto a de grupo familiar (clã, linhagem, grupo
doméstico). A casa – espaço físico – foi o registro por excelência para o estudo
das relações de parentesco, pois nela se detectaram os distintos momentos
de articulação e de mobilização de alianças e conflitos entre os integrantes.
Pelo acompanhamento das próprias transformações estruturais e espaciais
das casas, foi que simultaneamente pude detectar transformações que se expressaram no curso de vida desses grupos domésticos e dos indivíduos que os
formaram, logrando com tal recurso detectar e explicar o movimento de reprodução dessas Casas (Clãs, tipo de organização domésticas). Nos capítulos
etnográficos, descrevi boa parte desses processos e movimentos, tanto o das
pessoas, como do próprio espaço, e através desses dados fui elucidando o
modo de operar do que denominei de matriarcalidade e princípio relacional
de matrifocalidade.
Por meio dos capítulos etnográficos que apresentam, respectivamente,
as duas famílias estudadas, fui exibindo empiricamente os principais elementos sobre os quais apoiei meu pensamento sobre matriarcalidade e que
iluminaram a forma como opera o princípio de matrifocalidade. Conceituei
matriarcalidade a partir da centralidade de relação diádica mãe-filhos, que se
traduz na prioridade de relações de consanguinidade sobre as de afinidade
e na presença da instabilidade conjugal nas relações de casais. Aqui o papel
de autoridade masculina central é exercido pelo consanguíneo (filho, tio ou
irmão das mulheres), e não pelos pais ou esposo de outras mulheres da rede,
papel que também está presente neste modo de organização doméstico, mas
que nele ocupam papel subalterno ao das mulheres. O papel central é exercido pela matriarca que, além de ser o centro focal na díade mãe-filhos, precisa ser a dona da casa e ter posses para sustentar todo o grupo familiar e
ampla rede de parentesco a ela atrelada. A matriarca é sempre a chefe da casa
e da família neste modo de organização familiar.
Para uma mulher tornar-se matriarca neste contexto, como demonstrado
nas duas etnografias, é necessário: 1) ser a chefe da família; 2) ter a propriedade
da casa (a qual circula principalmente entre mulheres); 3) recursos materiais
para prover ampla rede de parentesco; e 4) força, autonomia e determinação
a casa das mulheres 459
que se elucida nas suas trajetórias. Ambos os casos analisados tiveram uma relação precoce com o mundo do trabalho e ambas tiveram importantes transformações profissionais muito marcantes e satisfatórias. É possível que força,
autonomia, independência e autoestima conquistadas por elas estejam relacionadas, em alguma medida, também ao tipo de atitude e ocupação profissional que exerceram, em atividades destacadas e prestigiosas na comunidade.
Esses elementos são importantes já que permitem os destacar entre distintos tipos de chefias de lar feminino e podem acrescentar dimensões aos
critérios usados por Chant (1987) na formulação de suas tipologias de chefia
feminina pelo mundo. Esta pesquisa é um bom exemplo de como o quarto
critério sobre a força e autonomia da matriarca pode variar em intensidade
e qualidade, junto ao de recursos econômicos disponíveis. A variedade de situações e padrões de desenvolvimento dentro de diferentes tipos de formações matriarcais depende desses critérios e dimensões
Pensar na matriarcalidade como forma de chefia feminina particular sustentada pelas posses da casa, recursos e força, aponta para a diferença e menor
vulnerabilidade deste tipo de arranjo quando comparado a lares chefiados por
mulheres que se viram simplesmente abandonadas pelos companheiros ou
que nunca os tiveram e parecem ter menos recursos para enfrentar as adversidades da sua condição de chefia em situação de maior desamparo. A chefia
matriarcal, ao contrário, tem o poder de criar os seus filhos e os de outras
mulheres, o que lhe outorga prestígio e maior força, elevando o seu papel
de mãe ao de mãe-de-todos, com paralelo similar ao de família de santo de
Candomblé. Mulheres emergem como matriarcas como produto do meio,
das relações e circunstâncias de vida. O fato se concretiza pelas articulações
tecidas, e que faz da idade, experiência e curso de vida, fatores centrais que
lhes permitiram acumular recursos (salários, pensões, posse de uma ou mais
casas para herdeiros); criarem filhos próprios e de outras mulheres (criação de
filhos e circulação de crianças); ser capazes de transformarem casas, que, em
contexto de pobreza, tenderam a se converter em configuração de arranjo familiar extenso; a chefia familiar da casa e da família.
A herança da terra e propriedade da casa pareceria passar em contexto
baiano, afirma Klass Woortmann (1987), principalmente de mulheres para mulheres, e sem sombra de dúvida neste tipo de arranjos, dificilmente antes que
as mulheres mais novas se tornassem mães. Gênero, consanguinidade, consideração e geração se destacaram como os principais critérios de seletividade de
460 maria gabriela hita
a quem dar ou deixar de dar casa. Mas esta matriz de critérios não foi determinante, nem estática. Matriz que mostrou ser mais complexa e dinâmica na vida
destas duas casas, podendo variar a depender de cada caso e trajetórias pessoais,
jogo de forças de alguns de seus membros e outras variáveis que intercederam
na luta pela posse da casa em distintos momentos de seus cursos de vida.
Sem pretender fazer generalizações sobre processos da realidade social
que são em si mesmos muito dinâmicos, o que observei foi que alguns critérios mostraram ser mais operativos que outros, nos quais o desejo das duas
matriarcas teve peso, ao definir quem seriam seus principais herdeiros, ou
usuários das respectivas casas, a priori: as mulheres e as primogênitas da
principal união da matriarca ou filhas consanguíneas. Este foi o caso das
filhas e netas que receberam terrenos ou partes da casa matriarcal. Os excluídos do direito a herdar tenderam a ser mais os homens, especialmente
os que eram filhos de criação e filhas primogênitas quando provenientes de
primeiras uniões da matriarca, indicando o peso que também exerce a bilateralidade, ou seja, o de serem filhos do homem e companheiro de maior
apogeu na vida destas matriarcas, quando ergueram o patrimônio, que distribuirão depois. O papel do pai ou avô das principais herdeiras é mencionado nos relatos. Mas também observei como, após a morte da matriarca,
outros fatores entraram em ação, e de como elementos como a força física,
abandono do lar de anteriores proprietários, entre outros não identificados,
podem agir e fazer com que mudem as circunstâncias e conjunturas sobre
os que poderiam ser os futuros herdeiros das casas.
Na análise das duas casas matriarcais realizadas se destaca a importância do
controle exercido pelas matriarcas sobre a disposição, herança e uso do espaço
em suas casas (terrenos). Este controle delas pareceu ser uma consequência
do fato de que eram consideradas legítimas proprietárias da casa, motivo pelo
qual o conceito de propriedade no que este sistema parecia operar é distinto
do de noções modernas e capitalistas (baseadas na lei) de propriedade privada.
A noção de propriedade vigente é a dos direitos em última instância instituídos
pelo chefe do clã, e no caso, as matriarcas. São elas as que repartiam direitos
de ocupar o espaço ou erguer novas casas apoiadas em suas avaliações sobre o
desempenho dos seus dependentes no que refere ao cumprimento de normas
de retribuição a elas; apoiavam-se ainda em conceitos de direitos diferenciados
que distintos tipos de pessoas do grupo apresentassem usando critérios como
gênero, consanguinidade, consideração e outros dos mencionados.
a casa das mulheres 461
A noção de propriedade que opera aqui é bem distinta, como dito, à de
conceitos de sistema de propriedade absoluta (na lei romana), que se ampara na lei como poder coativo externo e princípios mais ou menos invariáveis. Ela reconhece a existência e possibilidade de negociações sobre tipos
de direitos distintos que se têm sobre distintos tipos de bens – casas, crianças,
afeto da mãe, etc.. Ou seja, se aproxima da ideia denominada por antropólogos ingleses como sistema baixo, no qual a propriedade estava definida
como um pacote de direitos (a bundle of rights). Mas é uma pessoa como a
matriarca ou chefe do clã a que tem poder, em última instância, de decidir
quem deve ou não desfrutar dos direitos de se beneficiar dos bens coletivos
que ela controla. E, como observado na etnografia, este conceito e variedade de direitos são sempre provisionais no caso das pessoas localizadas
em posições estruturais de maior dependência na Casa. Isto significa que
se outorga direitos conforme o comportamento dos possíveis beneficiários
que seguem ou rompem normas da casa. Este conceito de propriedade operante pode ser facilmente conectado às teorias de reciprocidade, doação e
lutas para estabelecer valor – ou seja, lutas para que outros reconheçam seu
valor e os defeitos dos rivais – por um lado, e também às teorias de sistemas
hierárquicos, por outro, já que a figura central (matriarca) é a que encarna a
totalidade do sistema.
Contudo, neste contexto, e especialmente no caso da Casa de D. Cida,
os jogos de poder, alianças e valores apareceram de modo muito mais intenso, talvez porque a autoridade da matriarca estivesse já fragilizada – seja
pelo tipo de temperamento, fase do ciclo vital mais avançado deste grupo
familiar próximo ao de sua morte – e seu intento de conter os conflitos foi
menos eficaz do que na Casa de Dialunda, que conseguia se impor mais rigorosamente. Alguns consideravam que D. Cida terminava acirrando lutas
entre os membros da família em disputa de seu favoritismo. Por outro lado,
neste conjunto de casas, algumas delas tinham ganhado maior independência e autonomia econômica, fazendo com que operassem de outro modo.
Definitivamente, esta Casa matriarcal já havia entrado no processo natural
de dissolução, que se concluiu com a morte de D. Cida. Ela já não contava, na
fase final de sua vida, com os recursos e força para manter o domínio sobre o
processo vital cotidiano de sua casa.
Mas, a questão sobre o uso e distribuição do espaço levanta relevante discussão sobre quem seriam os futuros herdeiros na casa ou da posição (valores
462 maria gabriela hita
morais) da matriarca, no que refere a reprodução social e simbólica da família.
Ele também aponta para o modo específico como ocorre nestes dois grupos
de parentesco o processo da sucessão das gerações, de quens seriam os principais herdeiros e sucessores da matriarca, ou de parte de seus bens. O que
se herdará serão tanto as dotes da matriarca e seu tipo de força ou modo de
operar, como os bens da casa por alguns dos seus dependentes. E a partir da
análise feita cabe retornar à questão sobre o que seja de fato a matriarcalidade
e como cabe conceitua-la.
Inspirada no conceito de sociedades matriarcais de Radcliffe-Brown (1973),
considerei pertinente usar o termo por ele proposto e sutilmente modificado para adaptar a este estudo e poder pensar em um tipo de agrupamento
menor, o de grupos familiares, onde considero que os grupos domésticos de
Mãe Dialunda e D. Cida podem ser tratados como um arranjo de família matriarcal, pois neles descendência, herança e sucessão pareceriam estar privilegiando critérios de descendência prioritariamente da sua linha feminina
de parentesco. Também porque o casamento ou tipo de uniões observado
foi predominantemente matrilocal e a autoridade sobre os filhos era exercida
principalmente pelos parentes destas mulheres.
A interpretação que faço dos elementos que compõem o modo de organização doméstica matriarcal, entretanto, diverge em alguns aspectos das leituras daquele autor. Desde um distanciamento à perspectiva estrutural funcionalista de Brown e de significados atribuídos por outros estudos sobre
matriarcado negro nos EUA, tratando-o como patologia quando comparado
ou interpretado a um suposto modelo nuclear mais saudável, propus-me a
realizar uma reinvenção do significado do conceito de matriarcado e da relação estabelecida entre variáveis tradicionalmente utilizadas para analisar o
que aqui busco reatualizar na ideia de matriarcalidade (e que busca dar conta
na ideia de processos e práticas na construção destas trajetórias, como se
demonstrou na densa etnografia apresentada). Muitos estudiosos do campo
tentaram escapar da cilada que tendeu a associar modos de organização domésticos matriarcais de famílias negras a estados de anomia, desorganização
familiar e negatividade por um lado, ou a uma perigosa tendência essencializante, atrelando resultados de processos sócio-históricos complexos a supostas características próprias de uma raça, por outro, preferindo abandonar
polêmicas noções como a de matriarcado negro e sociedades matriarcais, preferindo adotar o termo de matrifocalidade, que − por ser mais amplo e difuso
a casa das mulheres 463
– perdeu, ao meu ver, o poder explicativo da especificidade aqui tratada, e
se desaproveitou assim um instrumental analítico poderoso para entender
e melhor designar uma série de achados empíricos tão recorrentes em outras tantas pesquisas sobre famílias de afrodescententes no Caribe, Norte e
Sul América, especialmente aqueles já mencionados por vários estudiosos
estrangeiros na Bahia, sobre famílias negras. Considero que vale a pena recuperar, a partir de um novo e crítico olhar, parte dessas discussões e o radical semântico da palavra matriarcado, que para não ser identificado ao dos
velhos debates, propus ser substituída pela de matriarcalidade, para com ela
buscar recuperar a necessidade de continuar analisando diferenças e semelhanças de certas manifestações históricas e culturais distintas, de diferentes
regiões de uma América pós-colonial. A ideia de matriarcalidade mantém o
radical semântido matriarcal e na sua terminação de matriarcalidade se busca
imprimir um significado mais dinâmico e de práticas em curso, afastandome de posturas que essencializa a ideia de um matriarcado negro, como algo
específico ou único de raça ou grupos étnicos negros.
A centralidade e importância dadas em estudos de sociedades matrilineares africanas e da Nova Guiné à autoridade do homem consanguíneo
(tio, irmão da mãe ou propriamente o filho destas matriarcas no contexto
analisado) é aspecto relevante que também apareceu nesta etnografia e que
aqui busco destacar, porém com significados sutilmente distintos aos encontrados em escritos de Malinowski (1963), Radcliffe-Brown (1960, 1973) e
Zelditch (1956). Eles buscavam defender teses patriarcalistas para contestar
hipóteses inconsistentes sobre a existência de sociedades matriarcais, e por
conta disso Brown se preocupou em distinguir o termo sociedades matriarcais do de sociedades matrilineares, para demonstrar que as primeiras não
existiam. Minha pesquisa defende postura distinta. Busca recuperar na ideia
de matriarcalidade, de modo similar, o proposto por muitos desses estudos de
parentesco em sociedades matrilineares. Por meio deste estudo, percebo que
nesta a nossa pesquisa também o homem consanguíneo, e especialmente o
filho adulto, tem papel central nesses arranjos observados, protegendo seu
grupo e exercendo um papel simbólico mediador entre o lar e a sociedade
mais ampla. Entretanto, diferente do que se defendia em alguns desse estudos
de parentesco, o que observo, no contexto estudado de uma Bahia Negra e
neste modo de organização matriacal, é que a presença de uma autoridade e
esfera de ação masculina não invalida a supremacia da autoridade materna,
464 maria gabriela hita
à qual a masculina se subjuga dentro do domicílio e rede de parentesco estudados, pois na hierarquia de valores deste sistema simbólico analisado o
papel da mãe é a autoridade suprema. Observe-se que descrevo o termo ao
sistema familiar e não ao de toda a sociedade baiana. Falo de famílias matriarcais e não de sociedades matriarcais. A sociedade baiana, contudo, seguindo
hipóteses apresentadas de Woortmann, parece estar marcada pela presença
de fortes princípios de organização matrifocal. Afirmar este fato, necessariamente, não significa afirmar ser a sociedade em si mesma seja ela e em sua
totalidade matriarcal.
Nos arranjos matriarcais observados, como na cosmologia mais ampla do
Candomblé, matriz cultural na qual este modo de organização doméstica
se fundamenta, princípios de hierarquia e autoridade maternas são os operantes e estão interiorizados. Eles tendem a produzir modos de ser, masculinos e femininos, bastante específicos. Pela importância que a relação mãe-filhos assume, pareceria ser apenas possível para algumas mulheres, não
todas, conseguir superarem a condição inicial ou papel de filhas para ascenderem à condição de mães, ou melhor dito, alcançarem o status desse tipo
de mães sociais, no papel da matriarca, o que aconteceria apenas quando se
tornam elas mesmas avós e passam a poder criar e cuidar de filhos de outras
mulheres, na maior parte das vezes alguns dos próprios netos ou parentes.
Mas qual seria o papel e lugar ocupado pelo homem neste modo de organização doméstica marcado pela centralidade da figura materna? Esta é uma
pergunta que continua sendo relevante, inspirada nas questões propostas
pelo funcional estruturalismo de Radcliffe-Brown e, ao refletir mais sobre
ela, atualizei hipóteses iniciadas por Klass Woortmann para propor algumas
indagações teóricas mais pontuais.
Ao contrário do que se acostumou pensar e afirmar em muitas conceituações sobre matrifocalidade em arranjos matriarcais, a presença masculina
costuma ser elevada e significativa, diferente da traduzida ou denominada
ausência do homem e do pai em teorias de matriarcado negro, arranjos matrifocais, ou daquela ideia esboçada por Woortmann (1987) de ser este um terreiro onde o galo não canta. Homens adultos, companheiros, filhos ou genros
– e que são pais, fato que nos impede caracterizá-los como lares com ausência de homens e pais – têm a principal função de protegerem, com sua
presença simbólica em sociedades marcadas por valores patriarcais e maior
força masculina, a toda sua família frente à sociedade. Eles também exercem
a casa das mulheres 465
como pais, filhos e esposos outras funções específicas nestas redes, ainda que
em posição de menor autoridade, dependente e subjugada ao poder e organização doméstica no arranjo matriarcal – o que implica que a autoridade máxima e poder está centralizado nas mãos das amadurecidas matriarcas, mas
não que esses homens tenham presença nula ou insignificante. Nos arranjos
extensos matriarcais observados, a presença da família nuclear se apresenta
geralmente como um núcleo dependente da configuração extensa onde a
chefia é feminina. Quando a situação econômica do núcleo se estabiliza,
uma forte tendência é a da separação e independência dos mais jovens do
grupo matriarcal. Possivelmente, o núcleo independente emergente poderá
voltar no futuro a adotar novamente configuração extensa ao crescerem filhos e ingressarem netos na vida dessa casa, reproduzindo-se, muitas vezes,
de modo bastante similar ao vivenciado, o tipo de normas e relações interiorizadas e vividas naquele lar onde se nasceu e viveu, isto é, o da possibilidade
de se continuar operando com os princípios organizacionais de matrifocalidade, como os descritos neste livro. E como afirmaria Klass Woortmann, isso
seria independente de se as chefias dos lares sejam femininas ou masculinas.
No arranjo matriarcal, como foi visto, as crianças pertencem a suas redes
de parentesco antes que à de seus genitores. Quando uma mulher engravida
fora de uma união estável, ela geralmente informa quem é o pai, o qual tem
várias alternativas e modos distintos e possíveis de exercer a paternidade, mas
se trata de um papel diferente do que se espera e pede ao homem em um modelo nuclear. Este homem poderá: a) negar publicamente o filho, alegando
poder ser de outro homem – negação da paternidade que a comunidade geralmente sanciona, mas, em certos casos, também aceita como normal e justificada, o que leva a criança a ficar mais ligada e restrita à rede de parentesco
materna; b) uma segunda alternativa é reconhecer e assumir perante a comunidade a paternidade, dando o seu nome e uma identidade social também paterna ao filho – este é o comportamento esperado e o principal dever de um
pai, o que está longe de significar que deva ser ele o principal responsável pela
criação e manutenção do filho, especialmente em contextos de escassez de
recursos e dificuldades de sobrevivência. O homem, nesta situação, costuma
participar economicamente em momentos específicos e esporádicos como o
do parto, momentos difíceis etc. Prover os filhos é visto, indiscutivelmente
neste tipo de lares, como sendo responsabilidade principal das mulheres e
suas redes de parentesco, ou do homem em outro modelo familiar, como o
466 maria gabriela hita
nuclear; c) uma terceira alternativa para o pai biológico consiste em assumir a
paternidade materialmente, isto é, se tornar um ativo provedor do filho – diretamente ou mediado pela ação das mulheres da sua rede de parentesco – o
que não significa assumir a relação com a mãe; d) outra possibilidade bastante
desejada pelas mulheres em geral consiste em o homem assumir o grupo familiar, a relação com a mãe da criança e futuros filhos formando um novo lar
(dependente ou não do grupo matriz). A alternativa a ser adotada dependerá
de vários fatores, desde o tipo de relação estabelecida com a mulher que engravida, idade dos genitores, condições materiais, temperamento e interesses
do casal em se unirem e formarem novo lar. Por tudo isto, a paternidade neste
modelo, sem estar ausente, adota formas de expressão distintas menos centrais que, por exemplo, a de filiação a qual pareceria operar mais fortemente
no imaginário masculino neste modelo analisado. Mas, o lugar que o homem
parece ocupar no modelo diádico mãe-filhos é, a meu ver, central e o segundo
mais privilegiado, depois do da mãe: o do filho homem adulto.
À luz do hiato relacional mãe-filhos, e ao comparar as posições ocupadas
por homens e mulheres, de distintas gerações, em arranjos domésticos matriarcais, os dados etnográficos apresentados levaram-me a pensar que as
mulheres (filhas no início, mães e/ou avós no meio ou fim de suas trajetórias) podem cumprir um ciclo completo de identidade previsto para este gênero nestes modos de organização doméstica, conquistando, à medida que
seu curso de vida avança, transcender da posição subalterna de filha para
aquela superior da identidade popularmente valorizada da mulher como
mãe, figura central e focal da rede de relações no arranjo familiar estudado.
Se na juventude recebem apoio das redes para criarem os filhos, pareceria
ser que – quando se tornam avós e logram alcançarem maior estabilidade,
independência e autonomia – podem oferecer apoio e ajuda para a criarem
os filhos das suas redes. É no papel de avó (ou com maturidade, experiência e
condições matérias necessárias conquistadas) que algumas destas mulheres,
quando forem mulheres bem-sucedidas economicamente em suas vidas, poderão chegar à poderosa e prestigiada posição de matriarca familiar.
Os homens, por sua vez, pareceriam nunca poderem, dentro deste arranjo
familiar, superar o papel de filho, papel que mostrou ter privilégios, por outro
lado, pareceu apontar a impossibilidade de criar autonomia frente à força e
autoridade de suas mães, cujo papel central é exercido pela matriarca, onde
sua autoridade masculina lhe é subalterna. A opção de evolução, no melhor
a casa das mulheres 467
dos casos, como também foi observado, é vir a transitarem para outro modelo onde possam ocupar o lugar de chefes das casas, deixando de ser, aparentemente, nestes outros casos, parte de um arranjo matriarcal, mas possivelmente em lares onde o princípio de matrifocalidade, e habitus apreendido
durante infância, pode continuar operando e se reatualizando.
Nos arranjos matriarcais observados, o lugar central do homem se exerceu
no lugar do filho homem adulto, que mostrava ter maior reciprocidade com
respectiva mãe do que com esposas e respectivos filhos, tal como foi elucidado em diversas passagens da etnografia. O papel do filho é central e operacionalmente mais importante do que o de pai ou esposo das matriarcas,
porque − pelo vínculo de consanguinidade eterno (em oposição ao de afinidade do homem esposo) − é nele, como membro permanente da casa, que
as mulheres e respectivas mães depositam suas expectativas e esperanças de
proteção e autoridade que a sociedade projeta na figura masculina desde uma
ideologia patriarcal ainda vigente. Assim, os filhos ou homens consanguíneos
parecem funcionar, nestes tipos de famílias, como o elo que articula este modelo matriarcal de família ao simbólico mais geral e patriarcal que vigora no
campo das representações da sociedade brasileira em geral. Esta hipótese é
uma hipótese que mereceria ser testada por novos estudos que melhor detectem e descrevam como se interconectam e influenciam mutuamente práticas e representações em seus diversos níveis de complexidade, articulação
e contradição, tanto em arranjos matrifocais, matriarcais como patriarcais
(ou chefiados por homens) e em parentesco de santo, associadas à cosmovisões do mundo do Candomblé baiano. Afortunadamente, o impulso nos estudos atuais sobre identidade masculina, sobre a presença e ausência de sentimentos e experiências de homens em diversos campos vem preenchendo
lacunas dos estudos de gênero que certamente caminharão para elucidar
muitas destas questões em futuro próximo.
Espero que dados e reflexões reunidas nesta obra estimulem outros pesquisadores do campo a realizar mais estudos nesta direção que enriqueçam e
permitam avançar ou contestar interpretações aqui apresentadas. O presente
estudo, baseado em dois grupos familiares, a partir de uma densa descrição
etnográfica, por seu caráter minucioso e olhar atento ao sentido das relações
quotidianas estabelecidas entre os informantes, a partir de certa interpretação
dos dados apresentados, permitiu lançar uma série de novas perguntas e questionamentos a vários pressupostos considerados, durante longo tempo, como
468 maria gabriela hita
intransponíveis no campo dos estudos da família, mas não era preocupação
do estudo alcançar tendências ou generalizações. A principal intenção no estudo foi a de fundamentar, a partir de outro olhar, alguns questionamentos ao
campo de estudo no lugar de responder todas as questões que iam sendo levantadas. Considero, entretanto, que a profundidade e detalhamento de dados
alcançados deram sustentabilidade empírica para levantar algumas das hipóteses aqui apresentadas sobre o modo como operaria o princípio de matrifocalidade em arranjo familiar matriarcal, o tipo de homens e mulheres que cria, e
o que delimitei como sendo matriarcalidade.
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Sumário - RI UFBA - Universidade Federal da Bahia